31.12.06

Cinema Paraíso


O cenário festivo da passagem de ano pode não ser mais que o palco para o momento mais desencantado do mundo, sem que o fogo de artifício que se vê ao longe signifique alguma coisa perante a solidão dos nossos sentimentos.

Ou simplesmente para recordarmos quão belo é o filme de Giuseppe Tornatore. Bom ano 2007!

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (V)

FILMES

Já destaquei o academismo e o conjunto de estreias que invadem as salas sem que se vislumbre qualquer critério por parte de quem tem a responsabilidade de definir a programação. Existem no entanto obras que merecem destaque individual, pois, por razões diversas, marcaram negativamente o ano.

Pride and Prejudice
Risível adaptação de Jane Austen, que recebeu considerável apoio crítico e destaque mediático. Um tratamento visual anónimo, uma realização incompetente, desempenhos que parecem destinados a uma comédia nonsense. Tenebroso filme, a fazer certamente a autora de Sense and Sensibility revirar-se no túmulo!

Gabrielle
Patrice Chéreau, autor do desafiante Intimacy, regressou com novo projecto arrojado. Apesar das louváveis intenções, Gabrielle é um objecto de identidade vaga, oscilando entre os extremos do teatro filmado e de um abstraccionismo demasiadamente radical. Um filme com bons momentos, perdidos num mar de verborreia sonolenta proclamada em off que testa a paciência do mais estóico dos espectadores.

The Aristocrats
Colectânea de insultos de indescritível mau gosto disfarçada de documentário sobre o mundo da comédia stand-up. Cinema = ZERO.

Mission: Impossible III
O famoso produtor televisivo de Lost abraçou a realização da terceira encarnação do agente Ethan Hunt. Abrams mimetizou para o grande ecrã os visuais e o espírito narrativo da série Alias que o lançou para o sucesso. Tal como em Alias o único elemento de interesse é o carisma da protagonista, aqui a força de Tom Cruise segura o barco. Mas o resto - twists absurdos, um estilo visual marcado por grandes planos e uma sucessão acelerada, por vezes nauseante, de imagens e um completo desprezo pelas mais elementares regras do storytelling - faz ainda menos sentido que no pequeno ecrã e traduz uma contaminação de espaços que não tem só aspectos positivos.

The Proposition
Projecto independente rodeado de expectativas que pariu um gordo e rechunchudo rato. Carregado de violência gratuita e indigência visual, é o retrato de um cinema que quer ser indie, mas esquece-se de ser cinema.

98 Octanas
Marcado por uma patológica obssessão com a Nouvelle Vague e particularmente com Godard, este 98 Octanas tem tudo o que de negativo têm os últimos filmes de Godard, com alguns bónus extra. Disconexo e testando os limiares do pretenciosismo, atinge dimensões de ridículo surpreendentes, mesmo para um cinema português fértil no capítulo das megalomanias autorais. Para onde vai 98 Octanas? Para lado nenhum. E onde é que isso fica? Esperemos que longe, muito longe!

Lady in the Water
Shyamalan é porventura a maior revelação do cinema mundial da última década. Em meia dúzia de filmes construiu um universo com uma marca autoral sólida, visualmente arrebatador e com densidade ímpar. Pode até dizer-se, passe o exagero, que muita da esperança da sobrevivência do cinema clássico e de renovação do mesmo assenta nos ombros do jovem cineasta de Filadélfia. Mas, em Lady in the Water, Shyamalan deixou de acreditar no transcendente e passou a acreditar cegamente que ele era o Messias. A Fé nas imagens e no Cinema passou assim a ser a Fé no poder messiânico da sua própria história e na infalibilidade do seu cinema. Lady in the Water é assim um filme proclamativo, demagógico e maniqueísta, vítima ele próprio de muito daquilo que pretende criticar. É um objecto perigoso, pois vem embrulhado no papel dos belos visuais proporcionados pelo inegável talento de Shyamalan e do director de fotografia Christophe Doyle. Felizmente poucos mais convenceu que os grupos de fãs do realizador e alguns autoristas fanáticos. Recomenda-se a propósito o visionamento do pouco conhecido Wide Awake, segunda longa metragem do realizador e uma pequena obra prima, de um tempo em que o realizador se limitava a acreditar em Deus, não se julgando a sua encarnação terrena.

The Science of Sleep
Michel Gondry já havia nos havia trazido o simpático mas inconsequente Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Confirma-se agora que Gondry, grande realizador de videoclips, não tem, pelo menos por ora, dimensão como cineasta. The Science of Sleep é uma colecção de lugares comuns mal ligados, martelados por um universo visual oriundo de um videoclip de Björk. Cheio de chico espertices, armado aos cucos e nascido no ninho da preguiça intelectual é um filme completamente idiota.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (IV)

O CASO BÉNARD

Os factos falam por si. Há países onde existem leis, regras, compromissos que devem ser e são respeitados por todos. Outros há, onde a lei só se aplica apenas ao comum dos mortais mas onde uma oligarquia reinante, perene e imortal, se considera e, está, de facto, acima da lei.
Alguém chega ao fim do seu mandato. Quem detém o poder decide -legitimamente- que, dada a longa permanência no cargo, o facto de já estar há três anos para lá do limite de idade inscrito na lei e a necessidade de renovação, é altura de mudar. O visado estrebucha, o séquito revolta-se, o poder cede. Mil setecentos e vinte e cinco pessoas deixam o seu nome na Internet e fazem política pelo governo. Viva a democracia! Viva Portugal!

Singing in the Rain

DENEUVE...
... DENEUVE...
... E DENEUVE!

Os Melhores de 2006 (Tiago Pimentel)

1. «Munique», de Steven Spielberg

Um dos grandes monumentos da década! Um filme que retrata a violência sem receio de assumir um ponto de vista que nada tem a ver com clubismo político, mas antes se centra na desumanização de todas as formas de violência. Em Avner podemos ver tudo: desde a paixão violentamente humana de vingar os seus conterrâneos, até à extinção moral do seu corpo, do seu espírito e de tudo aquilo em que ele acreditou.

2. «Uma História de Violência», de David Cronenberg

Um dos grandes filmes da carreira de Cronenberg teria que figurar nos lugares cimeiros desta pequena lista. Um pequeno milagre de cinema, de arte e de catarse como epílogo da tragédia que lhe antecedera. É também um filme sobre o medo: não só o medo dos outros, mas o medo daquilo que fomos e que podemos voltar a ser.

3. «The Departed: Entre Inimigos», de Martin Scorsese

Com esta obra prima de Scorsese, fica completa a trilogia da violência e identidade (juntamente com Munique e Uma História de Violência). Um grande filme, devolvendo a Nicholson o protagonismo dos grandes secundários e consagrando DiCaprio como o grande actor da sua geração.

4. «A Dália Negra», de Brian De Palma

Um dos filmes máximos de De Palma. Um filme negro que permite ao cineasta a liberdade formal necessária para desconstruir todas as convenções interiores ao género e encenar um dos filmes mais hipnóticos do ano.

5. «Maria Madalena», de Abel Ferrara

É um dos filmes mais espirituais da década. Uma história de fé desconstruída pelo desencanto da actualidade. Forest Whitaker é assombroso.

6. «Match Point», de Woody Allen

O regresso de Woody Allen aos grandes filmes, depois de um punhado de filmes muito interessantes, mas menores na sua carreira. Quem diria que era preciso Allen sair da sua Nova Iorque para se reencontrar?

7. «Em Paris», de Christophe Honoré

Foi um bom ano também para o cinema francês (relembremos ainda o muito bom Le Temps Qui Reste, de Ozon), em particular para esta pérola sobre a amizade de dois irmãos, com a sobriedade necessária para retratar uma tragédia, mas com a liberdade formal (sinais de Nouvelle Vague - enfim, Godard, Rivette, ...) possibilitando um encantamento irresistível sobre os lugares, as personagens e a errância dos seus dilemas.

8. «Babel», de Alejandro González Iñárritu

Filme portentoso sobre a incomunicabilidade do mundo. Um filme fundamental de 2006 e que não podia deixar de figurar nesta lista.

9. «World Trade Center», de Oliver Stone

Um comovente reencontro com Oliver Stone e (através dele) com os trágicos acontecimentos vividos em 11 de Setembro de 2001, no World Trade Center. Um filme que dignifica a memória daqueles que perderam a vida nesse dia, mas que sustenta também uma invulgar força anímica para quem os ficou cá a chorar.

10. «Nada a Esconder», de Michael Haneke

Sabendo que se fala tanto (eu incluído) na indisponibilidade do olhar do espectador face às imagens que recebe, Haneke filma este magnífico Nada a Esconder com a subtileza dos vários olhares que o percorrem. É um filme sobre o(s) olhar(es) mas também sobre as imagens e as suas várias decomposições.

30.12.06

Balanço do Ano (Miguel Galrinho)

2006 foi, de uma forma geral, um muito bom ano de cinema, sobretudo pelas cinco obras-primas que estrearam nas salas, e que se encontram nos cinco primeiros lugares deste top. Este, tem o valor efémero de qualquer top, dependendo muito do estado espírito em que me encontro quando o elaboro. De qualquer forma, penso que deve haver uma divisão: os cinco primeiros lugares nunca se alteraríam, na medida em que nenhum outro filme poderia substituir qualquer um desses, apesar da ordem entre eles poder variar. Exceptuando o primeiro lugar: Munique, de Steven Spielberg, por uma razão: trata-se, para mim, da obra máxima do realizador e, como tal, de um dos grandes filmes da História, pelo que nunca abandonaria o lugar em que se encontra neste ano cinematográfico. O resto do top é incerto, havendo outros filmes que lá podiam figurar: Maria Madalena, de Abel Ferrara; Infiltrado, de Spike Lee; A Prairie Home Companion - Bastidores da Rádio, de Robert Altman; ou 007 - Casino Royale, de Martin Campbell.

1. Munique, de Steven Spielberg
2. Babel, de Alejandro González Iñárritu
3. The Departed - Entre Inimigos, de Martin Scorsese
4. A Senhora da Água, de M. Night Shyamalan
5. Uma História de Violência, de David Cronenberg
6. Match Point, de Woody Allen
7. Ninguém Sabe, de Hirokazu Kore-eda
8. A Dália Negra, de Brian De Palma
9. World Trade Center, de Oliver Stone
10. Miami Vice, de Michael Mann

Pela negativa (não falarei os piores do ano, até porque tentei evitá-los) devo referir que O Novo Mundo, de Terrence Malick, foi talvez a maior desilusão que alguma vez tive numa sala de cinema, já que não consegui encontar no filme o encantamento do sublime Thin Red Line (um dos grandes filmes da década passada), mas apenas o mesmo registo usado de forma redundante e distanciada das suas personagens. Destaque-se ainda pela negativa Um Ano Especial, que vem demonstrar (novamente) que Ridley Scott é um realizador desequilibradíssimo, capaz do melhor e do pior, e neste filme a única coisa que consegue é uma comédia com gags sem piada, intercalada com um drama sem construção de personagens e um romance banalíssimo.

Num ano fraco em comédias, sinto-me obrigado a referir um filme francês que passou bastante despercebido: Faça Favor..., de Pierre Salvadori, que apesar de ter uma duração ligeiramente excessiva, tem também grandes interpretações (em especial de Daniel Auteuil) e um argumento engenhoso capaz de construir muito bem personagens, o que lhe permite tornar credíveis as situações mais absurdas. Para finalizar, devo reconhecer que apesar das minhas fracas expectativas, The Prestige - O Terceiro Passo marca o regresso de Christopher Nolan à boa forma depois do desinspirado e desequilibrado Batman: O Início. Mesmo com uma narrativa com algumas banalidades, a realização de Nolan permite criar ambientes soturnos e de suspense exemplares, enquanto que a desordem (mas uma desordem ordenada) cronológica narrativa é essencial para a construção dos mistérios e até para a evolução psicológica das personagens. O que se podia tornar num banal blockbuster com realização e montagem descuidadas (como no seu filme anterior), acaba por ser um interessantíssimo exercício de estilo, mesmo que imperfeito, e com marca autoral bem presente.

Esperemos um grande ano cinematográfico para 2007!

Os Melhores do Ano (Filipa Lopes)


1 - Munique, de Steven Spielberg
2 - Uma História de Violência, de David Cronenberg
3 - The Departed - Entre Inimigos, de Martin Scorsese
4 - World Trade Center, de Oliver Stone
5 - Match Point, de Woody Allen
6 - O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee
7 - O Tempo que Resta, de François Ozon
8 - A Prairie Home Companion - Os Bastidores da Rádio, de Robert Altman
9 - 007 - Casino Royale, de Martin Campbell
10 - Voltar, de Pedro Almodóvar

A Persistência da Memória

O primeiro filme da famosa Trilogia das Cores, de Kieslowski - Azul - tem como tema a liberdade, que aborda de forma bastante curiosa: uma mulher, após perder o marido (compositor mais famoso da Europa) e a filha num acidente de automóvel, tenta ultrapassar o sofrimento desligando-se de todas as recordações que tinha da família e evitando laços afectivos, procurando um sentimento de total liberdade. Ou, por outras palavras, tenta lidar com a dor da perda abandonando o espaço físico que habitava, na esperança de que a memória (e mesmo acontecimentos presentes, com o recurso constante à música que compunha) não persistisse em trazer-lhe recordações do marido. Desta forma, pensava, poderia atingir a liberdade que desejava. Mas a liberdade não será às vezes a maior das prisões?

Uma obra de arte absoluta, construída numa simbiose perfeita entre imagem e som, em que cada silêncio ou cada fragmento de música que é ouvido pode ter a mais poderosa função dramática.

29.12.06

Melville - Take 1

NEGRO
RADICAL
CINEMA PURO

25.12.06

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (III)

O ACADEMISMO

2006 veio reforçar a tendência para uma certa academização do cinema. Convém começar por explicitar o que se entende por academismo neste contexto. Pretende-se nesse termo condensar uma certa forma de ver o cinema como não mais que um veículo para relatar factos, ficcionais ou reais. Partimos assim de uma história, à qual há vezes a dificuldade em chamar argumento, dada a sua esparsa densidade. Nessa história, existem figuras com nomes, que não passam de representações icónicas, seja de sentimentos ou atitudes, muitas vezes traduzindo estereótipos de diversas ordens. A essas figuras falta qualquer dimensão humana (ou outra) para que se possam chamar de personagens. Pegando nesta história, passa-se então ao processo de a converter para imagens, alocando para tal amiúde vastos meios e produção. O resultado é muitas vezes um conjunto de imagens bonitas (às vezes nem isso), musicadas agradavelmente (dependendo dos gostos) mas irremediavelmente comprometido pela fina espessura do material original aliada à completa falta de visão artística do empreendimento. Uma secura criativa marca visual, narrativa e, porque não dizê-lo, espiritualmente estes objectos anónimos e unidimensionais, que vivem muitas vezes de boas intenções e bons sentimentos em detrimento de bom cinema. Memoirs of a Gueisha, North Country, Poseidon, Walk the Line são apenas alguns exemplos.

Dir-se-à, com propriedade que este “cinema” sempre existiu e não vem daí mal ao mundo. Se isto é em parte verdade, não é menos verdade que 2006 vem acentuar esta tendência, e que se anteveêm nos céus sinais preocupantes. Um desses sinais é a forma como realizadores indiscutivelmente talentosos, alguns até com uma distinta marca autoral, aceitam colocar os seus préstimos ao serviço de tais vacuidades artísticas. Um outro, talvez ainda mais sintomático do estado das coisas, é o facto de cada vez mais sectores tidos como vanguardistas caucionarem estes objectos com rasgados e surpreendentes elogios.

Ridley Scott estreou Um Ano Especial, um exemplo de boas intenções traduzidas num tratamento estereotipado de situações e sentimentos apresentados numa bandeja de anonimato visual e indigência narrativa. Tudo pronto a servir, sinal porventura de dias em que o espaço e sobretudo o tempo para a digestão do alimento intelectual deixou simplesmente de existir.

Mas mais marcante é, contudo, o caso de The Queen. Trata-se de um pretenso estudo sobre o peso da realeza e os seus costumes anacrónicos centrado na figura de Isabel II aquando da morte da Princesa Diana. Na realidade, não passa de uma colecção de figuras estereotipadas, desde o Príncipe Consorte arrogante e rabujento a um Tony Blair com o carisma de um nabo mal cozido, passando por uma esposa histérica que debita sound bytes anti monárquicos ou um Príncipe Carlos retirado de uma qualquer grupo de saltimbancos afectados. Decorado por infindáveis imagens de arquivo da Princesa Diana, esta colecção de figurinhas é servida num argumento nada trabalhado, a que apenas escapa a figura da própria Isabel II, por mérito exclusivo da interpretação de Helen Mirren. Stephen Frears é indiscutivelmente um realizador aclamado e, gostando mais ou menos de alguns ou de todos os seus filmes, é alguém a quem se reconhece uma visão própria e um modo de fazer cinema. Como pode um objecto que em nada se distingue de um banal drama televisivo sobre a realeza ostentar a sua assinatura tem tanto de preocupante como de enigmático.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (II)

DEGRADAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE EXIBIÇÃO PÚBLICA


Acompanhando a degradação da oferta esteve a deterioração das condições de exibição nas salas. A pequenez da visão do empresário de cinema nacional revela-se mais uma vez em todo o seu esplendor. Perante a diminuição do número de espectadores e consequente redução de receitas, a política é cortar a direito, dispensar quaisquer custos de manutenção e reduzir o pessoal ao mínimo. Projecções no formato errado, microfones na tela, desfocagens, lâmpadas gastas, cadeiras desconfortáveis, cópias degradadas, falhas de som. Enfim, um rol extenso de problemas que quem frequentou as salas no ano transacto certamente sentiu na pele (ou nos olhos) e que se acumulam perante a passividade alarve dos exibidores. A cereja no topo do bolo desta política é a concentração da venda de bilhetes e consumíveis alimentares (pipocas, refrigerantes, cachorros, gelados e afins) num único lugar. Ir ao cinema é, afinal, o mesmo que ir ao café. Que nos espera em 2007? Talvez a exibição de filmes no Continente.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (I)

EXCESSO DE ESTREIAS

Para quem ainda se lembra, e não é necessário recuar mais do que meia dúzia de anos, o número de estreias semanais em Portugal raramente ultrapassava as três. As queixas por parte da elite cinéfila eram grandes, reflectindo a reduzida oferta para além dos assim chamados blockbusters. A programação, com pontuais excepções além dos cinemas King e Nimas, era caracterizada por uma oferta que pouco mais fazia que reflectir as cadeias de transmissão do marketing internacional.

Foi assim com regozijo geral que foi visto o aumento para mais do dobro do número de estreias médio que ocorreu há cerca de dois anos. O que este contentamento obnubilou, como o demonstra o panorama consolidado actualmente, é que este aumento de estreias é feito exactamente pelos mesmos programadores que interpretam o seu trabalho como o de (maus) tradutores de nomes de filmes, sinopses e cartazes. Somos confrontados por vezes com um número de estreias semanal a aproximar a dezena, mas entre as quais encontramos filmes de qualidade duvidosa, em muitos casos lançados directamente em video nos países de origem.

As distribuidoras nacionais, em muitos casos as mesmas empresas que detêm as salas de exibição, alargaram o número de estreias numa medida puramente contabilistica para preencher o crescemente número de espaços disponíveis. Na sua esmagadora maioria, os departamentos de distribuição, desenvolvimento e promoção dos filmes são constituídos por gente que, além de incompetente, tem a visão estratégica de um funcionário público do governo de Salazar. Revelam uma preocupante incapacidade inata para distinguir as diferenças entre as propostas dos diversos filmes e as distinções que consequentemente devem marcar a sua introdução no mercado. As salas de cinema passaram assim a ser contentores do lixo destinados a limpar os catálogos das compras por atacado que os distribuidores nacionais fazem nos mercados de cinema.

Com uma média de cinco ou seis estreias semanais filmes tão diferentes mas relevantes como A Scanner Darkly ou American Dreamz não encontram lugar no mapa de estreias, ao passo que obras como Fauteuils d´orchestre ou Infamous são exibidas num anonimato que parece imitar um espião de Le Carré.

Muito se escreve, inclusivé na blogosfera, sobre a baixa exigência intelectual do espectador português. Mas, em abono da verdade e passando a sempre redutora generalização, o distribuidor nacional não lhe fica atrás.

Natal com emoção



Na noite de consoada, George Bailey vê-se confrontado com uma situação devastadora e decide por fim à sua vida. É então que algo superior intervém e revisitamos toda a sua existência na pequena terra onde nasceu, toda ela recheada de sonhos para sempre adiados pelo peso da responsabilidade que assumiu ainda muito jovem. Quando se preparava para viajar e estudar na universidade é confrontado com a morte do seu pai e a necessidade de retomar um trabalho que nunca desejou na sua companhia de empréstimos. Toda a sua vida é marcada por uma série de eventos que privam George das suas idealizações pessoais em prol do que considera correcto. Vemos o seu antagonista, Mr.Potter, um avarento milionário que tenta por fim à sua pequena empresa e vemos também a pureza sentimental de Mary, a mulher por quem se apaixona. E depois do momento de desespero vemos também como seria a vida destas e tantas outras pessoas caso a bondade e altruísmo de George não existissem em Bedford Falls. E na importância da vida de um só homem, e no buraco que a sua ausência provoca, é espelhada toda a verdade da época natalícia. Não é decerto por acaso que It’s a Wonderful Life é um dos filmes tão amado e recordado, nesta e em todas as outras alturas, uma comovente e inigualável história de Frank Capra com uma interpretação arrebatadora de James Stewart, que conjura como ninguém o espírito único do homem comum. E sessenta anos depois, continua a ser uma obra não só inspiradora como também de extrema importância. Isto porque nesta altura de tremenda comoção e oportunismo comercial, e do cinismo que tal invoca, é usual nos esquecermos da verdadeira e inabalável essência do Natal. No entanto existem certos objectos, de arte ou de tradição, que nos recordam dessa magia. It’s a Wonderful Life é um deles.

24.12.06

Natal sem emoção


Haverá melhor altura do que esta para ver ou rever os clássicos natalícios? Neste Natal, a escolha foi ver esse grande clássico, que já originou muitos remakes, chamado Miracle on 34th Street, realizado por George Seaton. Porém, comparar esse filme com outros clássicos e obras-primas absolutas (por exemplo, o sublime e intemporal It's a Wonderful Life, de Frank Capra) é comparar o incomparável. Miracle on 34th Street começa bem, desenvolvendo uma relação entre um homem que afirma ser o Pai Natal e uma menina que, pela educação que teve, não acredita em fantasias desse género. No entanto, todo o potencial de relações humanas que poderiam ser desenvolvidas a partir dessa relação, assim como as questões que poderia aprofundar (a importância da fé, da imaginação...), é desperdiçado quando George Seaton se lembra de esquecer tudo o que construiu e gasta todo o tempo, a partir de certa altura, em discussões de tribunal que tratam de provar objectivamente se aquele homem é, de facto, o Pai Natal. Tentando, no final, voltar às relações humanas, todas as questões levantadas acabam por ser feitas de forma superficial e sem o mínimo de genuinidade ou sentimento. Existirá Natal com menos emoção?

18.12.06

O poder arrebatador das imagens

Foi precisamente há 31 anos que Barry Lyndon estreou nos EUA. Apesar de, na altura, ter dividido a crítica, é hoje reconhecido como um dos grandes dramas históricos do cinema, que Martin Scorsese declarou ser o seu filme favorito de Kubrick e do cinema americano.

Mesmo com mais de três décadas, o poder dramático e a brutalidade do impacto mantêm-se, resultante da perturbante frieza das emoções das personagens que habitam o filme, enquanto a direcção fotográfica continua a ser uma das melhores de sempre.



Veja-se, por exemplo, a primeira cena aqui colocada, dos momentos mais belos de que há memória, e de uma perfeição técnica (repare-se no movimento de câmara e zoom in iniciais) e artística absolutas. Uma história de amor contada sem palavras serem ditas por qualquer um dos amantes: temos apenas a profundidade das trocas de olhares, conjugados com a beleza da encenação e com o sublime segundo andamento do Trio com Piano de Schubert em Mi bemol.



Vale ainda a pena, em particular, rever vezes sem conta a segunda cena, em que Barry Lyndon vê morrer o filho, ficando, então, sem herdeiros. Uma questão: haverá melhor exemplo de como a montagem é, acima de tudo, um meio dramático? Sabendo (porque nos é contado em voz-off pelo narrador) que o filho de Lyndon irá morrer, haverá forma mais brutal de encenar essa morte do que cortar bruscamente as lágrimas de desespero de um pai para o funeral do filho? Mais um exemplo de perfeição técnica: na realização, na montagem, na fotografia, na utilização da música.

Um dos melhores filmes de sempre!

17.12.06

5 grandes filmes sobre...

... a Incomunicabilidade

Babel (2006), de Alejandro González Iñárritu

The Sixth Sense (1999), de M. Night Shyamalan

Le Mépris (1963), de Jean-Luc Godard

Tystnaden (1963), de Ingmar Bergman

L'Eclisse (1962), de Michelangelo Antonioni

11.12.06

Histórias de Violência




Numa altura em que os franchises cinematográficos estão cada vez mais a ganhar um lugar na indústria (sobretudo nas sinergias que se conhecem entre o cinema oriental e o americano, nomeadamente no terror), é fundamental definirmos a natureza deste The Departed. Em boa verdade, não se trata de mais uma transposição mais ou menos banal dos meios de produção de um cinema para o outro. Trata-se, sim, do cumprimento da premissa central deste tipo de dispositivos. Isto é: refazer uma história. Ou, para sermos mais tradicionais: recontar uma história. Para todos os efeitos, as histórias sofrem remakes constantes com corpos e lugares diferentes (se Jurassic Park pode ser lido como o revisitar do conto de Frankenstein, também o mais recente Happy Feet pode ser encarado como o refazer da história do Patinho Feio). De facto, The Departed pode e deve ser olhado com esta liberdade formal e dramática, com a abstracção suficiente para percebermos como a mesma história originou filmes tão distintos.
De facto, olhando para Infiltrados e para este The Departed, facilmente percebemos como as sinopses são sempre fracos elementos de caracterização de uma obra. A história é a mesma, mas os pontos de vista são diferentes. A Scorsese interessam-lhe os dilemas melodramáticos que surgem da colisão de pessoas divididas pelas suas opções de vida, mas unidas na sua mais íntima orfandade. Recordo-me da personagem de Leonardo DiCaprio (o melhor actor da sua geração?), um homem que, algures na sua mistura profissional de identidades (é agente infiltrado), esqueceu-se da sua. Na sua errância, procura apenas matar a sua última identidade para poder renascer de volta para a sua vida (haverá algo mais trágico do que esquecermos a verdade da nossa própria identidade?).
The Departed é um filme que recupera uma dialéctica já encenada de forma magistral este ano por outros dois objectos notáveis (Munique e História de Violência). De facto, Scorsese encena-a como se ambas fossem vectores contraditórios de um mesmo corpo (de forma quase trágica, a identidade de cada um também se constrói da nossa relação com a violência e as suas múltiplas interacções). É fundamental sabermos que a violência não existe apenas sob a forma de uma bala a rasgar o tecido de um corpo: ela existe também no rosto de Nicholson e na sua solidão irremediável, confinado a relações transitórias, encontrando um sentido nos filhos que adopta na rua; e também sexual, no triângulo amoroso em que os seus protagonistas se infiltram na intimidade uns dos outros. E a presença subtil mas, ao mesmo tempo, tão forte de uma mulher (Vera Farmiga) nos dilemas centrais do filme, introduz também uma fascinante perspectiva feminina que raramente encontramos em Scorsese. De facto, se existe um lado masculino muito forte nos conflitos morais e bélicos que se desenham neste The Departed, ao seu lado (como se fosse um cheiro suave mas decisivo) a presença de um ponto de vista subtilmente feminino, acaba por converter um conto de armas, polícias e ladrões, numa trágica história de amor. E, como a violência, também o amor existe em todos os seus detalhes. Sem hesitações: uma das grandes obras primas dos últimos anos.

4.12.06

A montagem é uma opção moral



Algures na aridez de Marrocos, ela leva um tiro e desespera um pequeno grupo de turistas, durante uma viagem de autocarro. De onde veio esse tiro? A lógica física obriga-nos a uma resposta simples (vendo o filme, sabemos quem dá o tiro), mas a lógica cinematográfica que Iñárritu propõe parece-me mais interessante. Isto é: percebermos que qualquer acto que tomemos terá consequências no mundo. E sabermos de onde veio o tiro não será tanto uma questão física, quanto cinematográfica ou até mesmo moral. A resposta estaria numa das outras histórias narradas neste magnífico Babel. O filme, tal como Iñárritu o constrói, está agora mais próximo de uma lógica de filme-mosaico do que o primeiro Amor Cão (mais fragmentado e difuso), totalizando um todo que é bem superior à soma das suas partes.
As personagens parecem estar perdidas numa tragédia errante sem reversibilidade aparente (a menina japonesa com o olhar revoltado, destinada a ouvir o silêncio ensurdecedor de um mundo que lhe fôra vedado, ou mesmo uma senhora mexicana com problemas em estabelecer uma identidade geográfica no país onde vive há 15 anos). A incapacidade dela em ouvir não será uma mera casualidade (Iñárritu merece-nos mais respeito intelectual do que isso), mas sim uma poderosa metáfora sobre a incapacidade de comunicarmos e estabelecermos o nosso lugar no mundo. Filme político? Claro que sim, mas faz questão de o ser de forma absolutamente lateral (o único vestígio de evidências políticas aparece-nos quando os media anunciam o incidente de Marrocos como um atentado terrorista – curiosa exaltação da verdade).
A verdadeira mensagem política surge-nos de forma quase purista (porque desarmadilhada de artifícios ideológicos), devolvendo o centro do mundo às suas pessoas. De facto, ela ouve tanto como nós. Não me entendam mal, não pretendo ter um discurso pessimista sobre as relações humanas, mas interessa-me, porventura, reflectir sobre a ideia de não sermos nós que não ouvimos, mas sim o mundo que nada tem para nos dizer. E ela, a menina japonesa, quer sentir o direito a ser amada como qualquer um, mas ninguém a parece ouvir (estarão tão surdos como ela?). Olhando para a verdade global destas histórias, apercebo-me que raras vezes o mundo esteve tão bem representado no cinema e, também por escassas oportunidades foi uma montagem de imagens usada de forma tão dramática. Em última instância, a escolha do plano seguinte afirma-se mesmo como uma opção moral. Qual? A de construir um sentido.

3.12.06

Como nos relacionamos com o(s) outro(s)?


Babel é um filme sobre a incomunicabilidade, seja pela incapacidade física de falar, por se falarem línguas diferentes, ou simplesmente porque as diferenças raciais, políticas, sociais, ideológicas, não permitem que seja possível compreender e respeitar o outro.

Babel é, portanto, um filme sobre a forma como nos relacionamos com outras pessoas, e as consequências que resultam da incapacidade de ultrapassar as diferenças que nos separam. Iñárritu explora, pois, as fragilidades e limitações do ser humano, mas também a força das ligações afectivas, que estabelecemos com um pai, um filho, um irmão, um amigo, ou com a pessoa que amamos. Ou ainda: como necessitamos dessas relações e, através delas, reconhecemos (e recuperamos?) a nossa humanidade.

Babel
é, enfim, um filme dolorosamente actual, humano e real, vivido num turbilhão de emoções constante, entre o sofrimento e o desespero (e a esperança?). Uma das experiências mais arrebatadoras que se pode ter numa sala de cinema, e um dos filmes máximos do presente ano cinematográfico.

2.12.06

Babel, de Alejandro González Iñárritu


Quando gestos de liberdade absoluta pairam sobre a prisão total da incomunicabilidade.

Ou como as luzes e as sombras de «Babel» nos deixam quase sem respiração. O último grande filme de 2006!

1.12.06

Um mau ano para Ridley Scott

Com Um Ano Especial, Ridley Scott volta a deixar bem visíveis os seus desequilíbrios enquanto realizador. Max Skinner (Russell Crowe), um homem que só se interessa por fazer dinheiro, recebe da herança do tio (Albert Finney) uma quinta no sul de França. Interessando-se, inicialmente, por vendê-la e fazer dinheiro, acaba por, ao voltar lá, ir revendo em flashbacks alguns momentos que passou com o tio enquanto criança (Freddie Highmore). A ideia inicial fica, aliás, bem explícita e clara a todos, visto que não prima propriamente pela subtileza, sendo martelado cena a cena pelas mais diversas personagens que Max só se interessa por fazer dinheiro, e não por ir de férias ou por se divertir.

Toda a primeira hora do filme é de uma redundância narrativa absoluta, sem qualquer evolução a nível de personagens além do que é apresentado nos primeiros minutos, estando recheada de gags perfeitamente básicos e sem piada, acentuados por tiques de realização descabidos como câmaras aceleradas ou por uma montagem frenética e aleatória de imagens com o objectivo de demonstrar como Max anda perdido. É curioso que se fale, no filme, da importância do timing na comédia. O problema parece-me ser, no entanto, anterior a esse: na verdade, a maioria dos gags não funcionariam nem no momento mais acertado que se possa imaginar. Do ponto de vista dramático, Ridley Scott não está muito interessado na personagem principal: para além de alguns flashbacks pontuais, repetitivos, e de curtíssima duração, a personagem de Russell Crowe não tem muito mais desenvolvimento, e o actor também não consegue fazer grande coisa com os momentos humorísticos que tem à disposição.

Na segunda metade, os gags tornam-se pontuais e os tiques irritantes da realização desaparecem, tentando-se explorar uma relação romântica que, apesar de banalíssima e completamente by the book, não deixa de ser menos embaraçosa do que aquilo que se passou anteriormente. Apesar de alguns pormenores interessantes, como o da carta, o desfecho acaba por ser previsível em todos os aspectos. Esta segunda metade tem, ainda, outros defeitos, como um exagero de personagens secundárias insignificantes, mas supostamente relevantes. E o caso mais flagrante é por demais evidente: a relação romântica secundária que se estabelece em duas cenas de um minuto, terminando numa terceira cena de despedida, roça o patético.

Concluindo, esperemos que Ridley Scott regresse aos grandes filmes com American Gangster, escrito por Steven Zaillian (A Lista de Schindler) e com Denzel Washington e Russell Crowe, porque este Um Ano Especial entra desde já para a lista dos filmes mais escandalosamente falhados do realizador.

30.11.06

Numa noite


A melancolia visual de Antonioni é um dos grandiosos e memoráveis marcos desta idade de ouro do cinema italiano. La Notte é uma das suas obras inseridas nessa era, o relato de menos de 24 horas no dia de um casal constituído por Giovanni, um escritor a atingir o sucesso, e a sua esposa Lidia. Tudo começa com a visita a um amigo moribundo e a reacção de ambos é distinta e toma formas opostas. Reúnem-se de noite, para frequentar uma extravagante festa que irá definir o futuro de ambos. Parte de uma trilogia temática, antecedido por L’Avventura e precedido por L’Eclisse, La Notte é um ensaio contemplativo sobre a morte e estagnação de sentimentos, a apatia do quotidiano, e a maneira como se decide lidar, ou não, com tal. A mulher procura na solidão reencontrar a pessoa quem era há anos, primeiro vagueando, como um espectro do passado, a zona de Milão onde viveu, e depois tentando vislumbrar no marido o amor que nutria por ele. Este, em total antagonismo, tenta desesperadamente sorver a vida de tudo aquilo que o rodeia, numa vaga de impulsos descontrolados e inconsequentes. As interpretações de Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni são assombrosas, de uma mudez alarmante, incarnações contrárias de um mesmo sentimento de letargia e morte. Monica Vitti é também ela arrebatadora na pele da mulher que, naquela longa e reveladora noite, os afasta e simultaneamente os reúne pela primeira vez em anos. A precisão e beleza arrebatadora da realização de Antonioni, na forma como acompanha e ilumina as suas personagens para depois as abandonar na escuridão e vice-versa, faz parte do legado do mais puro cinema clássico (e não só) e este La Notte é mais um testemunho da sua perpetuidade.

28.11.06

Precipitação

A propósito deste post do Tiago Ribeiro, e do respectivo comentário do Hugo Alves, cumpre informar que para além das apressadas hipóteses nele levantadas (amnésia, vilipendiar ou esquecer que existe o «Juventude em Marcha») existe uma quarta hipótese, bem mais simples e menos «conspiratória»: por vicissitudes diversas, nenhum dos membros deste blog tinha ainda visto o «Juventude em Marcha» no momento em que a tabela foi colocada online.

Aproveito, pois, para informar que a tabela é actualizada sempre que ocorram novos visionamentos e que os filmes ainda não vistos por nenhum de nós nem sequer dela constam (como acontece, aliás, com qualquer tabela de estrelas).

Sobre o «Juventude em Marcha» (já visto por três de nós, eu incluído) posso dizer que é um belíssimo filme, a rever urgentemente e a comentar brevemente neste espaço.

Fica esclarecido.

22.11.06

O Anjo da Morte



Porque a Arte não morre, e porque a melhor homenagem que se pode fazer a um artista que parte é ver e escrever sobre as suas obras, queria deixar aqui uma pequena nota de admiração relativamente ao último (grande) filme de Robert Altman.

«A Prairie Home Companion», estreado entre nós há poucas semanas e ainda em cartaz, é um dos melhores filmes deste ano. Trata-se de um objecto que se propõe retratar o último dia (o fim, portanto) do programa de rádio com título homónimo, gravado ao vivo num teatro do Minnesota há anos a fio: os bastidores e o palco, os seus recantos visíveis e escondidos, as suas personagens e a sua alma.

Robert Altman, mestre absoluto do cruzamento e multiplicação de histórias e de personagens, filma tudo isto com uma simplicidade tocante e faz do espectador um cúmplice perfeito de tão nostálgica contemplação. É um filme divertido (e não haverá certamente, em todo o ano cinematográfico de 2006, filme que arranque gargalhadas tão espontâneas e contínuas quanto este), mas esse tom de comédia é apenas uma forma de libertar a infinita tristeza e o supremo desencantamento que as personagens carregam no corpo e na alma. É, nesse sentido, um filme sobre a decadência da Arte e do Artista, um último fôlego de algo que está prestes a acabar.

Ter sido este o último filme da longa e profícua carreira de Robert Altman, eis um dado simbólico que importa reter. Não há, de facto, maneira mais bela de encerrar uma carreira do que com este filme, um último fôlego que parece conter em si a libertação de uma vida de notável inspiração…


PS: O Anjo mencionado no título deste comentário refere-se à personagem interpretada no filme por Virginia Madsen – precisamente um Anjo que vagueava pelo teatro (e é da perspectiva do Anjo que grande parte do filme é filmado) em busca de uma pessoa para levar para o céu. Robert Altman?

16.11.06

Pouca ciência, algum sonho, e muito sono


Há já uns largos tempos que não via um filme tão mau. Não que considere este filme pior que outros que vi também recentemente, nomeadamente D.O.A. Guerreiras Mortais. Simplesmente este último não esconde aquilo que é. Adaptação de um jogo de vídeo, com um argumento risível, interpretações más, e principalmente, nenhumas pretensões de ser um grande filme. Ou seja: se vamos ver D.O.A. Guerreiras Mortais sabemos já de antemão que iremos ver um mau filme. E não nos sentimos defraudados. Tendo avançado esta pequena explicação, retomo o pensamento inicial: há já uns largos tempos que não via um filme tão mau.

A Ciência dos Sonhos é mau porque... não tem nada! É um vazio completo, ridículo muitas vezes. É um vazio onde o personagem principal (Stéphane, interpretado por Gael Garcia Bernal) se passeia, nunca sabendo bem o que é sonho ou realidade; nunca sabendo bem se sonha para fugir à realidade, se usa a realidade para fugir aos sonhos. Realidade e sonho confundem-se num só demasiadas vezes, sem uma destrinça que permita abarcar com clareza a narrativa do filme.

Um filme vazio é mau. Mas torna-se pior quando temos expectativas altas para esse filme. E é natural termos expectativas para um filme. Boas ou más, a realidade é que elas estão lá sempre. Para este filme, eu tinha expectativas bem altas. Para começar, tinha Michel Gondry, realizador de O Despertar da Mente - filme que adorei - e vários (e excelentes) videoclips de Björk (nomeadamente o meu preferido - o de Bachelorette). Depois tinha Gael García Bernal. Posso não conhecer a fundo todo o seu trabalho. mas do que conheço gosto. Muito. Tinha Charlotte Gainsbourg. Confesso que como actriz pouco conheço do seu trabalho. Mas gosto do que ela canta.

Com estas expectativas, o que correu mal? Começemos por Michel Gondry. Apostou demasiadamente num visual muito apoiado num visual de videoclip. Erro crasso. Aquilo que resulta num pequeno filme de 3, 4 ou mesmo 5 minutos não justifica que nisso se baseie uma longa metragem de 1h40. E é essa a impressão com que se fica. Gondry queria experimentar com um determinado visual, e inventou uma história sem pés nem cabeça para o poder fazer. Charlotte Gainsbourg vagueia pelos vários cenários como se não soubesse bem o que está a fazer. E nem vou falar da colecção ridícula de personagens secundários. No meio de tudo isto... apenas Gael García Bernal consegue dar alguma (pouca) profundidade a uma história que não a tem.
É pena ver este desperdício de talento. Esperemos que, das duas uma. Ou Michel Gondry desenvolve extraordinariamente os seus dotes de argumentista, ou volta a utilizar material de terceiros (como de Charlie Kaufman para O Despertar da Mente). Não aguentava outro filme como este.

12.11.06

Amizade, Amor e Solidão


Dizer que estamos perante uma das grandes histórias de amor da história do cinema, não deixando de ser verdade, também não faz justiça à complexidade humana das personagens de Some Came Running (em português, Deus Sabe Quanto Amei), de Vincente Minnelli.

Ao regressar à sua cidade natal após abandonar o exército e a escrita, Dave Hirsh (Frank Sinatra) procura dar um rumo à sua vida, e finalmente assentar. Conhecido por sair com muitas mulheres e arranjar facilmente problemas em bares, Dave acaba por se apaixonar por uma professora de literatura que admira o seu talento enquanto escritor, mas que teme a sua forma de ser enquanto pessoa. Simultaneamente, Ginnie (Shirley MacLaine), uma rapariga inculta com quem costumava sair, começa a apaixonar-se por ele. Confrontado com um sentimento de desespero cada vez mais perturbante, Dave procura lidar com isso através das novas amizades que faz na cidade, como Bama Dillert (Dean Martin), com o qual tem muito em comum. Cada vez mais sozinho e fechado, confrontado com uma solidão que nem a maior amizade consegue fazer desaparecer, Dave é uma das mais desencantadas personagens de que há memória, e
Some Came Running um dos grandes melodramas do cinema clássico.

9.11.06

The Departed


É inevitável falar de The Departed sem falar dos Óscares. Porquê? Porque parece que pode mesmo ser desta vez que Martin Scorsese receberá a estatueta de melhor realizador, e porque o merece como ninguém. E podemos prosseguir, falando do elenco, da montagem, e do próprio filme, que dificilmente encontrará um concorrente de qualidade superior na cerimónia, o que não significa que ganhe...

No entanto, há que sobrepor as discussões sobre o filme às discussões sobre os Óscares. Isto porque estamos perante uma das grandes obras-primas desta década, e o melhor trabalho de Scorsese ao lado de
Raging Bull e Casino. Ainda a quente e sob o impacto do filme, posso dizer que Scorsese transforma um grande thriller com um argumento magnífico numa poderosa reflexão sobre a identidade e as relações humanas. Ou seja, estamos perante um policial que se vai desenvolvendo como um profundo drama humano; uma viagem de auto-descoberta que questiona a forma como nos relacionamos connosco e com os que nos rodeiam.

8.11.06

Dentro do cinema

Será possível recuperar a ligeireza trágica que as imagens da Nouvelle Vague pareciam sussurrar como se os pequenos detalhes afectivos do mundo e dos seus actores pudessem encerrar em si a imprevisibilidade irreversível da verdade? Como se a sequência dos detalhes mais efémeros do mundo pudessem compor uma história tanto mais complexa quanto revemos nela os espaços soltos e aparentemente irrelevantes que preenchem o nosso Ser. Muitos poderão pensar que falta a densidade que uma construção mais clássica poderia convocar, mas, em boa verdade, não há nada mais sério nem trágico do que a incerteza daquilo que estamos a construir. E «Dans Paris» herda de digníssimos nomes (Godard, Truffaut, Rivette, ...) a fragilidade sempre presente das suas narrativas, como se a complexidade do mundo dependesse, sobretudo, da disponibilidade de o olharmos.

«Dans Paris» é uma das experiências mais comoventes deste ano e, sem hesitações, um dos filmes mais urgentes de se descobrir. Por razões cinematográficas, afectivas, humanas, mas, sobretudo, por nos relembrar que ser espectador não é tanto uma opção, mas um compromisso que assumimos com a nossa intimidade, com a intimidade que está do outro lado da tela e com todos os novos espaços que se desconstroem à nossa volta. «Dans Paris» conta a história de dois irmãos reunidos pela tragédia pessoal do mais velho que chora de forma quase autodestrutiva o amor que perdeu. O seu irmão mais novo, Jonathan, assume a sua ligeireza amorosa com despreocupação, percorrendo Paris como se fosse um mapa de aventuras amorosas que vai correndo como alguém que desistiu de viver muito antes do seu irmão mais velho. Ambas as tragédias destes dois irmãos se cruzariam de forma diferente e, como sempre, a presença/ausência da figura feminina decide todos os dilemas dramáticos. Um filme tão urgente quanto o amor!

5.11.06

«Hiroshima Meu Amor», meu amor!


«Hiroshima Mon Amour» (1959) – assim mesmo, sem qualquer vírgula, «para atenuar a violência» do choque entre as palavras Hiroshima e Amor –, essa obra-prima imprescindível de Alain Resnais, esse verdadeiro monumento de modernidade cinematográfica, contém das mais belas frases da história do cinema. Pelo menos ditas daquela forma, naquele contexto, por aquelas personagens...

Aquilo que começou por ser um documentário sobre a devastação nuclear de Hiroshima, na esteira do sucesso de «Nuit et Brouillard» (1955), acabou por transformar-se numa extraordinária meditação sobre o amor, as memórias, o tempo e a guerra. Alain Resnais apresenta um majestoso e moderno trabalho de realização (basta atentar na imagem inicial, onde se entrelaçam dois corpos em grande plano), mas são também os diálogos escritos por Marguerite Duras que conferem a este filme uma aura de indizível beleza. Seguem alguns exemplos:

- «Tu és como mil mulheres numa só».

- «Daqui a uns anos, quando te tiver esquecido e quando outras histórias como esta, pela força do hábito, voltarem a acontecer, lembrar-me-ei de ti como do esquecimento do próprio amor. Pensarei nesta história como o horror do esquecimento.»

- «Ele virá direito a mim, vai agarrar-me pelos ombros, vai abraçar-me… Vai abraçar-me… E perder-me-ei.».

- «Devora-me. Deforma-me à tua imagem para que um outro qualquer, depois de ti, não entenda mais o porquê de tanto desejo. Vamos acabar sós, meu amor. A noite não vai acabar. O dia não se erguerá mais sobre ninguém. Nunca mais. Finalmente!»

29.10.06

Reencontrar Brigadoon


Importa chamar a atenção para o recente lançamento no mercado português de DVD de «Brigadoon» (1954), um dos mais esquecidos e injustiçados filmes de Vincente Minnelli. É uma excelente oportunidade para resgatar do esquecimento esse que é um dos maiores musicais de Hollywood.

Brigadoon, a pequena aldeia imaginária escocesa que ganha vida apenas um dia em cada cem anos, constitui um espaço cinematográfico único e irrepetível, onde se cruzam números musicais de verdadeira exaltação da cor, do movimento… e, claro, do amor. Nesse reduto espacial encantado, quase onírico, quase sussurrado, preserva-se a inocência do olhar e o poder aglutinador do sonho.

Minnelli capta esta belíssima fábula (que é também uma intemporal história de amor) num cinemascope exuberante e o eterno Gene Kelly contracena exemplarmente com a deslumbrante Cyd Charisse. «Brigadoon» é um musical de coração cheio. Quem o visita, jamais o esquece.

24.10.06

Lágrimas de Felicidade?


Vale a pena regressar a 1988, sobretudo quando as últimas animações japonesas me têm passado ao lado, em particular as de Hayao Miyazaki, onde não posso deixar de sentir que à perfeição técnica e formal se opõe um conteúdo vazio e disperso, mais preocupado em que as personagens sejam meros símbolos ou metáforas de uma ou outra coisa, do que em explorar o seu lado humano e desenvolver a sua complexidade dramática. Curiosamente, é o que não se passa em Grave of the Fireflies, de Isao Takahata, em que são as personagens (a sua densidade humana e dramática) que definem o mundo que estas habitam, e não o contrário. E é por isso que Grave of the Fireflies é um dos filmes mais tocantes de sempre. É, acima de tudo, um filme que sabe aproximar-se do espectador pela humanidade que atribui às suas personagens, pela genuinidade das suas relações.

E é também importante referir que a primeira coisa que sabemos no filme é que o destino das personagens principais será a morte. Na verdade, a primeira frase do filme é de Seita, dizendo-nos a noite em que morreu... 21 de Setembro de 1945. Em plena Segunda Guerra Mundial, após a morte da mãe, Seita e Setsuko fazem o que podem e o que não podem para sobreviver sozinhos. Porém, a inocência da idade permite-lhes encontrar felicidade do meio do desespero. E é sobretudo daí que vem o impacto de
Grave of the Fireflies: as personagens não têm consciência dos seus destinos; nós, espectadores, temos. Na verdade, diria mesmo que quanto mais felizes são as cenas, mais tocantes, desencantadas e tristes são para o espectador. As lágrimas causadas por esses momentos não são, pois, de felicidade, mas sim por termos consciência da efemeridade dessa felicidade; por termos consciência de que em breve dará lugar à morte.

19.10.06

A Dama-Dragão

Que não haja dúvidas: Meryl Streep domina «O Diabo Veste Prada». Mesmo quando não está em cena, se sente a influência da sua personagem sobre todas as outras, de tal modo conseguiu contrui-la e torná-la real.

O que poderia ser mais uma banalíssima crítica ao mundo da moda, às mulheres de carreira, às escolhas a fazer para realizar os sonhos de cada um (e tão fácil que poderia ter sido!), é antes uma sátira inspirada, e que, a espaços, se sente real - isto por "culpa" de Mery Streep, cuja personagem é verdadeiramente um dragão, sem escrúpulos, em olhar a fins para atingir os seus meios.

No meio disto tudo, Anne Hathaway é o contraponto perfeito. No meio do glamour emanado por Streep, sente-se ali uma certa dose de idealismo, provincianismo e simplicidade, que vai ser muito posto à prova, e que se irá alterar com o passar do tempo, e com o desenvolver das circunstâncias.

E é precisamente no desenvolver das circunstâncias, e na alteração do padrão comportamental de Andy (Anne Hathaway) que se encontra o maior interesse do filme, e também o maior impacto de Miranda (Meryl Streep)... esse impacto que ela consegue ter em todas as alturas - até mesmo quando não está no ecrã, pois temos como certo que tudo quanto Andy faz, o faz para conseguir agradar a Miranda e segurar o seu emprego - e que consegue ser tão variado como possível, com apenas mais um sobrolho franzido, ou um trespassar momentâneo de fraqueza pelo seu olhar...

Só é pena o final. O final típicamente de Hollywood. O final politicamente correcto. O final "feliz" que o público gosta de sentir neste tipo de filmes. Mas que porém não se adapta ao que vinha sendo o rumo das personagens ao longo da duração do filme. Mas uma discussão sobre finais (felizes ou não) ficará decerto para outra ocasião, já que é uma temática que daria para encher várias páginas...

18.10.06

Muito Transe, Pouco Cinema


«Transe», o novo filme de Teresa Villaverde, é um caso flagrante de esbanjamento de recursos e de ideias e um penoso caminho cinematográfico de autodestruição. Na verdade, não é apenas Sónia, a personagem principal, que vai perdendo a sua identidade e dignidade: o próprio filme parece querer acompanhá-la nessa espiral de destruição e acaba por tornar-se num objecto amorfo, quebrado, vago e impenetrável.

Acompanhar este filme torna-se, assim, uma tarefa inglória e desapontante, agudizada não só pelas boas referências que dele tínhamos previamente, mas sobretudo pelas referências que ele dá de si próprio na primeira parte da narrativa (meticulosa, poética, sensorial, rica em referências e em ideias de cinema).

De facto, se o filme começa com interessantes referências ao lendário realizador russo Tarkovsky, numa inteligente simbiose entre a austera realidade e a poesia da natureza em movimento, a verdade é que rapidamente as descarta em detrimento de um discurso miserabilista e deprimente, que confunde profundidade dramática com a sobre-exploração do rosto sacrificial da protagonista.

As opções estilísticas e narrativas da realizadora são bastante discutíveis e à medida que o filme avança mais se torna evidente o fracasso do dispositivo montado. Se, por um lado, estamos perante um filme com preocupações sociais (o drama do tráfico de mulheres numa Europa desumanizada e indistinta), por outro verificamos que o social rapidamente é trocado pelo pessoal e que o realismo se compromete com o calculismo do artificial.

Onde inicialmente existiam ideias e certeira gramática cinematográfica passam a existir planos longuíssimos e impertinentes, redundâncias de vária ordem, processos narrativos herméticos e descompensados, e, sobretudo, uma enorme aridez emocional e a profunda incapacidade de fazer crescer a narrativa em termos dramáticos. No final, francamente mal engendrado, ainda se tenta recuperar o pulsar cinematográfico, com uma óbvia citação de Bergman (de «Persona», pois claro), mas nessa altura já nada pode salvar um filme moribundo e despedaçado.

Excepção à mediocridade geral do filme é Ana Moreira, actriz promissora e de talento latente, que aqui merecia melhor material narrativo. O seu olhar penetrante, a terna composição do seu rosto, a meticulosa encenação dos seus gestos e a enorme força dramática que brilhantemente soube conter fazem dela um verdadeiro porto de abrigo para o espectador. Num ano francamente mediano em termos de interpretações femininas em papéis principais, a sua interpretação em «Transe» é já uma das melhores do ano. Proeza sua, não do filme!

15.10.06

De Palma por dentro e por fora



Brian De Palma sofre de um estranhíssimo estigma, recorrente em quase todos os circuitos cinéfilos que lhe reconhecem uma espécie de astúcia de aluno dedicado e estudioso dos grandes mestres, reduzindo a sua obra a uma colecção de imitações de outras filmografias (tipicamente a de Hitchcock). Tão imitador quanto o foi Scorsese de Powell? Ou, mais recentemente, PT Anderson de Altman? Existe um rigor quase idiossincrático na mise-en-scène de DePalma que o coloca instantaneamente no exterior de qualquer rótulo que lhe queiramos impor; uma forma obsessiva de filmar os corpos como se fossem parte de um perturbante jogo de seduções entre as imagens e o espectador. Existe um diálogo erótico que se esconde nas suas imagens e que nos coloca constantemente na insegurança do nosso próprio papel enquanto espectadores. Na verdade, De Palma é um fascinante experimentalista da nossa relação com as imagens, relembrando, a cada fotograma, que uma imagem pode exigir a sua própria sinopse e impedir que a narrativa de um filme seja a exclusiva proprietária do direito de fazer avançar a história.

Sobre «Black Dahlia». Essa relação com o storytelling visual existe, mais do que nunca, na relação com os olhares das personagens, com as suas tragédias pessoais e a insegurança das suas certezas. Olhando para «Black Dahlia» - durante e depois – é, antes do mais, sentir que De Palma nos conseguiu colocar na errância do seu protagonista, impondo-nos a sua obsessão e a sua impossibilidade de querer controlar o mundo à sua volta. Em boa verdade, existem alturas em «Black Dahlia» que o mundo (a história) nos parece fugir, tanto mais quanto as próprias imagens não parecem querer dizer tudo; parecem, pelo contrário, ocultar a verdade indiscutível da sua identidade.

A única verdade que conhecemos é a morte e a ilusão de a podermos olhar como princípio para conhecermos a vida. A vida de quem? De Elizabeth Short, a enigmática jovem cuja morte nos fôra vedada, mostrando-nos apenas pequenos fragmentos da sua vida sob a forma de screentests que De Palma orienta com a perversidade desconcertante da sua voz. De facto, a invisibilidade da sua voz torna-o uma presença tanto mais perturbante quanto sentimos que ela – Elizabeth Short – parece perder o seu olhar (e a sua vida) numa contracenação com ele – o realizador – devolvendo-nos a nós (espectadores) a cumplicidade perturbante da sua vida (e da morte). Porquê? Porque é bom não esquecer que o olhar dela nos encontra apenas a nós, espectadores da sua vida. É esta ambiguidade visual que torna as imagens de «Black Dahlia» tão fascinantes; quem está a olhar para ela? É o realizador ou somos nós? E ela, para quem olha de forma tão cândida e decidida? Os nossos olhares cruzam-se, por diversas vezes, e a minha ingenuidade descansa ao assistir à interpretação que ela faz do discurso que Vivien Leigh celebrizou no papel de Scarlett O’Hara em «E tudo o Vento Levou». Rapidamente, a minha ingenuidade se perverte e deixa-se tomar pela consciência de estar a olhar para uma candura que já pouco preservava da inocência que lhe parecia pertencer.

E é desta ambiguidade que «Black Dahlia» se constrói. De Palma nunca foi um cineasta literário, isto é, nunca achou que as suas imagens tinham de pertencer a uma lógica literária dos acontecimentos e do mundo. Relembremos o seu filme anterior - «Femme Fatale» - onde o seu formalismo ditava os princípios de um outro mundo, com lógicas exteriores a qualquer vontade fugaz de lhe querermos impor um sentido. «Black Dahlia» preserva esse desejo formal de desafiar as imagens e convenções que guardamos do mundo, mas reserva um olhar próximo aos policiais noir dos anos 40, com De Palma a revisitar esse tempo específico com a experimentação e o risco suficientes para invalidarem a possibilidade de um mero pastiche mais ou menos interessante. Prova, aliás, desse arrojo tem a ver com o casting do filme: Josh Hartnett, cuja aparência limpa e ingénua parece redimi-lo da posição de herói; Hillary Swank que se decompõe laboriosamente no papel da anti-mulher fatal, numa inversão notável de papéis com Scarlett Johnasson – seria uma aposta bem mais segura para a tradicional femme fatale, que acaba aqui por utilizar a sua perversa sensualidade como tragédia inconsciente da sua presença na história. Dito por outras palavras: enquanto se sente em Swank uma invulgar fatalidade na sua presença feminina, Scarlett perverte a imagem da dona de casa bem comportada, baralhando os códigos e as expectativas. Nada no cinema de Brian De Palma é o que parece, nem as suas imagens, nem os códigos que ele tão injustamente é acusado de copiar.

13.10.06

Little Miss Sunshine


Filme menor que a crítica americana recebeu inexplicavelmente como se de uma obra-prima se tratasse, mas ao qual, ainda assim, se pode (e deve) apontar alguns méritos, entre os quais destaco:

1) O elenco é fabuloso e as personagens muito bem interpretadas, o que evita com que estas não sejam apenas caricaturas banais e desinteressantes. A profundidade do argumento é, de facto, muito pouca, preferindo-se a caricatura à complexidade das personagens. Os actores encarregam-se, no entanto, de que essa caricatura não caia nos clichés mais enjoativos do género, o que acaba por proporcionar muitos bons momentos de comédia.

2) Talvez consciente da sua (falta de) profundidade, o filme nunca escolhe ir pelo caminho do drama, o que sem dúvida seria despropositado, dada a falta de densidade das personagens. Apesar de tudo, Little Miss Sunshine tem uma "mensagem familiar" que pretende passar ao espectador. Ou seja, mais um factor que o poderia guiar pelo caminho do drama, o que os argumentistas e realizadores evitam muito bem, não a martelando em cenas dramáticas fora de tom, mas conseguindo transmiti-la através da comédia. Resultado: não deixando de ser superficial, também não tenta voar mais alto do que poderia, mantendo as suas pretensões ao nível da comédia, onde acaba por acertar de forma eficaz.

COMO O CINEMA ERA BELO

São 50 grandes filmes, escolhidos por João Bénard da Costa, e farão parte do importante ciclo denominado «Como o Cinema Era Belo», que a Fundação Calouste Gulbenkian irá acolher a partir de Novembro para comemorar os seus 50 anos.

Todos os filmes serão apresentados no Grande Auditório da Fundação, aos fins-de-semana, entre 4 de Novembro e 18 de Fevereiro, e os bilhetes custarão €2,50.


Segue a lista:

1 – HOW GREEN WAS MY VALLEY (1941), de John Ford
2 – STARS IN MY CROWN (1950), de Jacques Tourneur
3 – E.T – THE EXTRA TERRESTRIAL (1982), de Steven Spielberg
4 – CITIZEN KANE (1941), de Orson Welles
5 – SOME CAME RUNNING (1958), de Vincente Minnelli
6 – SPLENDOR IN THE GRASS (1961), de Elia Kazan
7 – CHIKAMATSU MONOGATARI (1954), de Kenji Mizoguchi
8 – U SAMOGO SINEVO MORIA (1936), de Boris Barnet
9 – ORDET (1955), de Carl Th. Dreyer
10 – THE GHOST AND MRS. MUIR (1947), de Joseph L. Mankiewicz
11 – SPIDER (2003), de David Cronenberg
12 – EYES WIDE SHUT (1999), de Stanley Kubrick
13 – UNBREAKABLE (2000), de M. Night Shyamalan
14 – VAMPIRES (1998), de John Carpenter
15 – BIG FISH (2003), de Tim Burton
16 – JOHNNY GUITAR (1954), de Nicholas Ray
17 – FORTY GUNS (1957), de Samuel Fuller
18 – THE SEARCHERS (1956), de John Ford
19 – CASABLANCA (1942), de Michael Curtiz
20 – MAN HUNT (1941), de Fritz Lang
21 – THE THIN RED LINE (1998), de Terrence Malick
22 – THE RIVER (1951), de Jean Renoir
23 – AU HASARD BALTHAZAR (1966), de Robert Bresson
24 – SICILIA! (1999), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
25 – THE STRAIGHT STORY (1999), de David Lynch
26 – THE SHOP AROUND THE CORNER (1940), de Ernst Lubitsch
27 – IT’S A WONDERFUL LIFE (1946), de Frank Capra
28 – LEAVE HER TO HEAVEN (1945), de John M. Stahl
29 – GERTRUD (1964), de Carl Th. Dreyer
30 – PERSONA (1966), de Ingmar Bergman
31 – LILITH (1964), de Robert Rossen
32 – LETTER FROM AN UNKOWN WOMAN (1948), de Max Ophuls
33 – VERTIGO (1958), de Alfred Hitchcock
34 – LA CHASSE AUX PAPILLONS (1992), de Otar Losseliani
35 – L’ÂGE D’OR (1930), de Luis Buñuel
36 – ZIR-E DERAKHTANT-E ZEYTUN (1994), de Abbas Kiarostami
37 – VIAGGIO IN ITALIA (1954), de Roberto Rossellini
38 – THE GIRL IN THE RED VELVET SWING (1955), de Richard Fleischer
39 – IL BIDONE (1955), de Federico Fellini
40 – I KNOW WHERE I’M GOING (1945), de M. Powel e E. Pressburger
41 – KAAGAZ KE PHOOL (1959), de Guru Dutt
42 – MOONFLEET (1955), de Fritz Lang
43 – L’ATALANTE (1934), de Jean Vigo
44 – ONLY ANGELS HAVE WINGS (1939), de Howard Hawks
45 – LA RÈGLE DU JEU (1939), de Jean Renoir
46 – THE SCARLET EMPRESS (1934), de Josef von Sternberg
47 – VIVRE SA VIE (1962), de Jean-Luc Godard
48 – SENSO (1954), de Luchino Visconti
49 – IVAN GROZNY (1944-58), de S.M. Eisenstein
50 – THE NEW WORLD (2005), de Terrence Malick