segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Merry Christmas (III)


PRELÚDIO DE NATAL 


Tudo principiava 
pela cúmplice neblina 
que vinha perfumada 
de lenha e tangerinas 

 Só depois se rasgava 
a primeira cortina 
E dispersa e dourada 
no palco das vitrinas 

 a festa começava 
entre odor a resina 
e gosto a noz-moscada 
e vozes femininas 

 A cidade ficava 
sob a luz vespertina 
pelas montras cercada 
de paisagens alpinas

E a multidão passava
E a chuva era tão fina
que parecia filtrada
de taças clandestinas

Finalmente chegava
triunfal     em surdina
a noite convocada
em todas as esquinas

Mas não se derramava
como tinta-da-china
Na cidade acordada
já se ouviam matinas


DAVID MOURÃO-FERREIRA
[Obrigada, Maria Manuel]

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

P de (Po)ética (LXII)

 



Louise Glück, Averno,
trad. de Inês Dias
[Relógio D'Água, 2020]

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A de Afinidades electivas (II)

 



Dois corações selvagens: a Clarice e o Barnabé.

[ID | 012]


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

P de (The) Privacy of Rain - XLIX



Inês Dias, Paris, 2008


*



Manuel de Freitas, Inês Dias, 
Lisboa: Nigredo, 2014

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

M de 'Mourned by the wind'


 "[...]

Este texto não existiria se eu não tivesse visto ontem, no claustro da Sé de Lisboa, uma grade românica do século XIII. Há oito séculos que estes pássaros não cantam, que estas cobras não deslizam pela relva húmida, que estas osgas não sobem paredes esboroadas. Ninguém sabe, aliás, que mãos lhes deram forma, que nome atribuir à beleza leve e robusta desta grade. Sabemos apenas, como diria Rui Chafes, que ali o ferro se fez vento - e que o vento chegou até nós, incólume e cantante. Estes pássaros, estas cobras, estão muito mais vivos do que nós, indiferentes a modas, balanços e ao Juízo Final. Não têm tempo, porque são o próprio tempo, traduzido em ferro por mãos feitas de nada e de ossos breves."


- Manuel de Freitas, 769118,
com capa de Inês Dias e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa, Averno, 2020



[ID, Lisboa | 019]

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

P de (Dois Anos de) Pássaros - mais andorinha, menos andorinha... - XXVIII b


[...]

que idade tinhas
quando a primeira árvore
te disse para subires?


- Emanuel Jorge Botelho




[André Kertész, 1979]

*

domingo, 1 de novembro de 2020

D de Dia de los Muertos (VI)

ESTA NOITE



     A primeira vez que vi Charles Chaplin e Paulette Goddard  mimarem os TEMPOS MODERNOS foi na véspera da minha Volta ao Mundo. Mostraram-me o filme numa sessão privada. Acabara de fazer as malas e tinha a certeza de que ia encontrar Charlie e Paulette nos mares da China, que nos íamos dar bem, que terminaríamos junto a nossa viagem, partilhando os inúmeros amigos que os seus filmes lhe traziam e os poucos corações dedicados que os livros me oferecem. 
    Os nossos amigos distantes cruzam-se muitas vezes, porque Chaplin é poeta. A sua poesia não precisa de ser traduzida mas, no fundo, a minha também não, no sentido em que a poesia é uma língua à parte que se se serve apenas de um idioma, e as pessoas que compreendem esta língua não são afastadas pelo idioma em que o poeta se exprime, tal como não são afastadas pelos costumes europeus dos filmes de Charlot.
     Os cartazes de MODERN TIMES acolhiam-nos em cada escala. Infelizmente, viajávamos demasiado depressa para revermos juntos o filme.
     Esta noite, em Montargis, numa garagem convertida em cinema, garagem essa que se deve parecer com o hotel de Bourgogne, revi essa obra, digna das farsas de Molière e das aberturas de Mozart.
     Os meus amigos iniciam nele uma segunda morte, e eu vejo-os, de boa aberta como na lanterna mágica, exprimir sentimentos complexos com o à vontade dos antigos coreógrafos quando descreviam a beleza com um gesto redondo em volta do rosto, e o amor juntando as mãos sobre o coração.
     Esta solidão, esta tristeza de lied que lança sobre Chaplin uma penumbra cuja causa deve ser o facto de ele se ter tornado rico a incarnar um pobre e a fortuna não trazer nada de novo a almas de tamanha elegância, são reforçadas ainda pelo meu cinema de província quase vazio.
     A última vez que nos despedimos foi ao telefone, em Hollywood. A sua voz e a de Pauline chegavam até mim, separadas das suas imagens, tal como esta noite as suas imagens chegam até mim separadas das suas vozes.
     Nunca desejei tanto um fenómeno que permitisse aos meus amigos ganharem relevo e cor, deixarem o ecrã, trocarem as estátuas finas de uma miúda e do ilustre vagabundo pela jovem resplandecente, e pelo dramaturgo de rosto vermelho e caracóis brancos.
     O meu sonho trazia-os até França, a esta data, nesta sala onde MODERN TIMES continua sem eles, onde falaríamos de uma época de máquinas, de armas e de cansaço. Época difícil, que precede uma ainda mais difícil. Sempre que repousamos, sempre que passeamos, o destino ameaça-nos, de dedo apontado, pálido e terrível como o director da fábrica na parede da casa de banho.


Jean Cocteau
[Trad. ID]

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O de "Oh! qu'ils sont chers, les trains manqués/ Où j'ai passé ma vie à faillir m'embarquer!..." - d


MAIS ALÉM



Mais além,
o bosque é um biombo:
Não consigo ver o que oculta.

O vento assobia o nome das árvores.
Ouve-se passar um comboio. 
                                              Reconheço-me 
na peça que une as duas carruagens.

E a maior é sempre a da morte. 


Josep M. Rodríguez
in Telhados de Vidro n.º14, trad. Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno, Setembro de 2010




[Nascer do sol entre Vigo e Porto, Março de 2011]

domingo, 4 de outubro de 2020

P de Postais - V b



ESTÁTICA


A tempestade sacode as suas bátegas
contra a janela anoitecida:
o vidro estremece sob o granizo lançado.
Desengonçada, a televisão perde o controlo,
esvai-se em preto e branco,
depois em silêncio, enquanto as linhas descem.
Os postais dela agitam-se na prateleira, caem;
as luzes de Calais apagam-se uma por uma.

Ele não lhe pode contar
que os gansos regressam ao crepúsculo,
que o farol passeia a sua luz
por entre as trincheiras do mar.
Ele não lhe pode contar que a vasta noite
desliza como uma porta sem ela,
que ele é a fechadura
e ela é a chave.



Robin Robertson, A Painted Field
Londres: Picador, 1997
[Trad. Inês Dias]



[Inês Dias, Nazaré 013]


Estar não faz mal nem bem. Ser chave e fechadura,
ser aquele que se perdeu no atalho dos dias. Depois,
é só fazer de conta que tudo vai bem. Depois,
é só acreditar no pior.



Rui Baião, Rude,

Lisboa: Averno, 2012




[ID | Nazaré, 08/10/11]


sábado, 3 de outubro de 2020

S de "Semantics won't do" (XXIX)

 



GOTTFRIED BENN
[Trad. de Vasco Graça Moura]

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

E de Espinhas para um gato (XV)


LA CATHÉDRALE ENGLOUTIE


Deste lado da vida
são sete horas (vestidas
de preto, vermelho e medo)
da manhã de outro dia.
Mas a janela fechada dá
para a noite ancorada
de leve sobre as esperanças
azedas da cidade.

Conto um rio preso num poço,
dois comboios afogados na pressa,
meia dúzia de faróis
acesos em prédios
cuja felicidade parece sempre
proporcional à distância.

O vinil negro continua a rodar,
atiça os seus pássaros enferrujados
contra a lua atada 
a uma das chaminés.
E a luz que nunca chega
traz as últimas notícias da guerrilha,
expõe o plástico roto nas armas
dos nossos heróis de ontem.

Abandono as saudades 
pelos telhados, com
as patas embaciadas, os olhos
magros. Saio.
Recomeço a fazer horas
para novos sonhos. 


Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias,
Lisboa, Averno, 2013
[Fotografia: ID | 013]





terça-feira, 29 de setembro de 2020

I de Intimidade (IV)

 



René Magritte, Les Amants (1928)





Paul Delvaux, La Joie de vivre, 1937

sábado, 19 de setembro de 2020

S de Sense of Snow (XI)


BALLADEN OM JENNY LIND


E é de novo sexta-feira, na mesma cidade.
As sirenes respondem pontualmente
aos corpos e bicicletas que se perdem
noite dentro. Nada que possa incomodar
o sono altivo dos mendigos da Stroget,
enrolados em mantas e garrafas já sem cor.

Decidimos tomar o último copo
no café Monten. Ao balcão, os homens
dos barcos falavam de todos os países
que viram ou não viram, sob nuvens de fumo
que escondiam mal um inglês de circunstância.

Na parede junto à nossa mesa (recorte
da época) Jenny Lind morria - e eu
ficava a saber, em sueco, que "Rökning
dödar", o que não parecia incomodar
nenhum dos presentes. No Nyhavn,
porém, anoitecia muito depressa. Teremos
de esperar pela neve, agora que passou a chuva.


Manuel de Freitas, Brynt Kobolt,
Lisboa: Averno, 2008




sexta-feira, 18 de setembro de 2020

E de Espera (XXI)

CONTRA-TEMPO



Ainda mais alguns dias até ao acontecimento. Passa-se do outro lado da rua por causa disso - da espera. Toda a gente (alguns) dizem: "é para hoje" e fazem rapidamente as malas. Enchem-nas de chaves iale e parafusos, fusos horários e rocas peadas. "É para já" dizem. São os que anulam muito bem a coisa de que entre cada dia e cada dia há uma noite inteira para comover-se e pousar. Tomam a pose solar e iludem a chuva e todas as faces da água - provando pois que o espaço pode ser impermeável e a vida dois dias - o que esperaram no susto de antes do antes de ser este dia aplacado que fazem - o dia placa - e este. É a gente do já. Faut les aimer, faut les aimer, dizem as avezinhas de frança nos dias úteis. Mas essas não são o acontecimento, nem sequer seu anúncio.


[...]


Maria Velho da Costa, Desescritas, 1973

terça-feira, 15 de setembro de 2020

A de Aniversário (VI)


A BIRTHDAY


My heart is like a singing bird
Whose nest is in a water'd shoot;
My heart is like an apple-tree
Whose boughs are bent with thick-set fruit;
My heart is like a rainbow shell
That paddles in a halcyon sea;
My heart is gladder than all these,
Because my love is come to me.

Raise me a daïs of silk and down;
Hang it with vair and purple dyes;
Carve it in doves and pomegranates,
And peacocks with a hundred eyes;
Work it in gold and silver grapes,
In leaves and silver fleurs-de-lys;
Because the birthday of my life
Is come, my love is come to me


- Christina Rossetti (1861)

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

N de Nefelibata





SETE PRESENTES


I


Já as conheces
de certo modo são como as pessoas
querem muito encontrar-se:
as nuvens, as palavras.

Por isso agora
após o relâmpago
quando as nuvens lutam por criar raízes
as palavras juntam-se para descobrir

onde se encontram
os que desaparecem.

E os silêncios mudam de lugar.
E a vida é
quase mais estranha ainda
menos nossa

do que supúnhamos.

                                 Já nos conheces.


Abraham Gragera, Adiós a la época de los grandes caracteres
Valência: Pre-Textos, 2005
[Trad. ID]

terça-feira, 8 de setembro de 2020

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XXX)


Dizem que em cavidades de alguns poços,
nas fissuras, por onde cresce o musgo,
faz seu ninho por vezes certo pássaro
e solta desde aí seu canto incerto.

Duvidas e cantas: é o teu credo.
Salvar um pouco desse instante único
que chega a ti como um deslumbramento,
como uma convulsão que desfaz
e dilui fronteiras, coutos, limites.
Porque também o tempo, quando quer
e se detém a meio de dois números,
é um peso que eleva, é como um bálsamo
que alivia a dor de viver sem rumo,
de estar perdido onde nada é nada
e tudo muda de essência e forma.

Vive e alegra-te. E morde a fruta
que é ser e respirar ainda hoje
embora ao comê-la o sabor amargue.
Entra sem medo num lugar mais fundo:
não há sendas que saiam deste bosque.

Voa a teu lado o corvo e sentes frio.
Tuas mãos tocam uma porta, um muro.
Ao longe escuta-se um rumor de água.
Cercam-te vozes, passos de outra vida.
Aqui a tua casa: esta névoa.


José Mateos, A Névoa
trad. e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 
Lisboa: Averno, 2006







[ID, São Miguel / Agosto 012]

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

P de (Po)ética - XLIX e







Sim, tenho ouvido dizer
que as grandes causas
são grandes e lucrativas.

Mas prefiro falar
daquele armário azul
encostado ao coração
podre.


Manuel de Freitas, Game Over, 2.ª ed. rev.,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa: Alambique, 2017

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

P de (Po)ética (LXI)

 



Joaquim Manuel Magalhães, Para comigo,
Lisboa, Relógio D'Água, 2018


terça-feira, 25 de agosto de 2020

N de "Nous deux encore" (III)




João Almeida, As Condições Locais,
Guimarães, Opera Omnia, 2014

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

I de Incipit



[ID, Santarém | 2012]




João Barrento, Como um hiato na respiração - Diário do dia seguinte,
Lisboa, Averno, 2015




Manuel de Freitas, Incipit,
com capa de Inês Dias e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa, Averno, 2015

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

T de Tempo sem tempo (XX)

 



 Michael Ende, Momo,
trad. de Maria Margarida Morgado, Lisboa, Presença, 1984

terça-feira, 18 de agosto de 2020

M de Museu Imaginário (XVI)




Christo and Jeanne-Claude, Wrapped Trees,
Fondation Beyeler and Berower Park, Riehen, Switzerland 1997-98
Photo: Wolfgang Volz, ©Christo 1998

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

D de "deve ser/ com certeza um sítio muito triste" (II)


ADEUS


Envio-te o meu gato negro com um colar de violetas 
- Último gesto deste dia de Inverno. 

Não perturbar os pequenos barcos ao longe 
- Meu ir conventual pensar de flores. 

Não perturbar o fumo do cigarro 
- Pousado no silêncio.

 
Manuel de Castro, Paralelo W
(edição do autor, 1958)

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

L de Levantar a cabeça



[ID | Ribatejo, 12/009]

P de (Um Ano de) Pássaros (V)



Manuel de Freitas, A Nova Poesia Portuguesa,
capa de Pedro Serpa a partir de fotografia de Inês Dias,
Lisboa, Poesia Incompleta, 2010

terça-feira, 11 de agosto de 2020

(O) Jardim e a Casa (XXI)



António Barahona, A Fina Flora do Crepúsculo (Sétimo Tômo da Suma Poética),
Lisboa, Averno, 2019


*



Uma epígrafe:
Inês Dias, Ponto-Sombra, 
São Paulo, Corsário-Satã, 2018

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

F de Férias (II)


TEMPO SEM TEMPO
(Mario Benedetti)


Preciso de tempo necessito desse tempo 
que outros deixam abandonado 
porque lhes sobra ou já não sabem 
que fazer com ele 
tempo 
em branco 
em vermelho 
em verde 
até em castanho escuro 
não me importa a cor 
cândido tempo 
que eu possa abrir 
e fechar 
como uma porta 

Tempo para olhar uma árvore um farol 
para andar pelo fio do descanso 
para pensar que ainda bem que hoje não é Inverno 
para morrer um pouco 
e nascer em seguida 
e dar-me conta 
e dar-me corda 
preciso do tempo necessário para 
chapinhar umas horas na vida 
e para investigar por que estou triste 
e acostumar-me ao meu esqueleto antigo 

Tempo para esconder-me no canto de um galo 
e reaparecer num relincho 
e para estar em dia 
e para estar em noite 
tempo sem recato e sem relógio 

Que o mesmo é dizer preciso 
ou seja necessito 
digamos que me faz falta 
tempo sem tempo. 


Versão de Miguel Martins 
in Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia), 
Lisbao, Língua Morta, 2010

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

N de "Nous deux encore" (VII)


FALÉSIAS


Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual o faço vir como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-me os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.


Luís Miguel Nava, Como alguém disse
com desenhos de Manuel Cargaleiro, Lisboa, Contexto, 1982

J de Janelas - V b


Convoco a luz para o lugar
da morte. Tu vibras numa vertical
do deserto, em plena velocidade
fracturada. Há nuvens de pontos
na dobra da visão, nenhum limite.
Exposto como um ferimento, que soberania
exerces no vazio? Assim se arruinaram
as arquitecturas: armadilhar a casa
ficar preso dentro de uma sala.
Fechar uma parede para abrir uma janela.


Carlos Poças Falcão,  Arte nenhuma (poesia 1987-2012),
Guimarães: Opera Omnia, 2012




quinta-feira, 30 de julho de 2020

A de A poesia é o menos (XII)


Por vezes distraio-me, Galateia, a olhar os outros
E esqueço o amor, nosso.
Mas um poema sem gente é um lugar
Cheio de pedras com palavras à volta.
É maior o mundo e a literatura em redor.
Nós, não;
O que somos é isto onde estamos,
Ao colo de uma distracção.


Nunes da Rocha, Colóquios dos Simples,
Lisboa, Averno, 2020

segunda-feira, 27 de julho de 2020

S de Santa Cruz (IV)


NO FUNDO DO SONHO


Às vezes tenho sonhos como mares:
as suas ondas batem-me, magoam-me,
deixam-me um gosto a sal sob a língua,
emaranham os meus cabelos e afogam-me.
E, quando chego ao fundo, repugnam-me
os seres que o habitam e o sujam,
seres escorregadios e viscosos,
sem pálpebras e sem extremidades,
sem linguagem, lágrimas ou ruído.
Às vezes tenho sonhos como mares
e, quando desperto enfim de um deles,
sei que me salvei de mais um naufrágio.


Amalia Bautista, Conta-mo outra vez,
trad. de Inês Dias, Lisboa, Averno, 2020


domingo, 26 de julho de 2020

O de "O mar, o mar" (IX)




Olivia de Havilland
[1916-2020]

F de "(Une) famille d'arbres" (X)




"[...] Whoever has learned how to listen to trees no longer wants to be a tree. He wants to be nothing except what he is. That is home. That is happiness."

- HERMANN HESSE

sábado, 25 de julho de 2020

P de Paralelo W (III)




É esse o nome desta gata, que passou cinco meses na rua e vive agora numa espécie de livraria. A mão trémula de um amigo procurou hoje tocar-lhe o focinho - negro, como quase tudo nela. A Ginja aceitou o afago, e eu não fugiria muito à verdade se afirmasse que se encontraram, nesse preciso momento, os dois melhores críticos literários portugueses. Na Rua dos Correeiros, ao entardecer.




- MANUEL DE FREITAS - texto
DÉBORA FIGUEIREDO - desenhos

[Manuel de Freitas / João Paulo Esteves da Silva, Prelúdios,
Lisboa, Alambique, 2020]

quinta-feira, 23 de julho de 2020

C de Começar o dia com um livro novo (LVII)




A. MARIA DE JESUS
(Reservado o direito de admissão, com poemas de João Paulo Esteves da Silva, José Carlos Soares, Nunes da Rocha, José Alberto Oliveira, Rui Nunes, Vítor Nogueira, Abel Neves, Nuno Moura, Miguel Martins, Fábio Neves Marcelino, A. Maria de Jesus, Teresa M. G. Jardim, Ana Paula Inácio, Fernando Guerreiro, Manuel de Freitas, Paulo da Costa Domingos, Inês Dias, A. M.Pires Cabral, Renata Correia Botelho, Emanuel Jorge Botelho, António Barahona e Ricardo Álvaro
(Piantao, Julho de 2020)

terça-feira, 21 de julho de 2020

C de Começar o dia com um livro novo (LVI)


SOL MAIOR


Mataram, deitaram abaixo o meu mestre de poesia. Era um telhado com muitos gatos que apareciam e desapareciam através de buracos.

Eu via-os, da varanda em frente, e aprendia a esvair a tristeza nos movimentos elegantes.


- JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA
(Manuel de Freitas / João-Paulo Esteves da Silva, Prelúdios
Lisboa, Alambique, 2020)




[ID, 'Confinamento', 03/020]

segunda-feira, 20 de julho de 2020

P de "(As) Praias Obscuras" (III)




António Nobre, ,
2.ª ed. revista, aumentada e ilustrada, Lisboa: Guillard, Aillaud & C.ª, 1898



P de (Po)ética - XLIX d


À BEIRA DE UM MAR PARECIDO


Sim, tenho ouvido dizer
que as grandes causas
são grandes e lucrativas.

Mas prefiro falar
daquele armário azul
encostado ao coração
podre.


Manuel de Freitas, Game Over, 2.ª ed. rev.,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos,
Lisboa: Alambique, 2017



domingo, 19 de julho de 2020

P de Pássaros anónimos (XVIII)





recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto, Horto de Incêndio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997





[ID, Santa Cruz,  2016-2018]

quinta-feira, 16 de julho de 2020

P de Perder a cabeça - IV b


(O pardal)

A catástrofe das pequenas coisas.
Um pássaro canta sobre a esfera de pedra.
Envolve-o a secura, não a do deserto, mas a do cimento. Desbotado.
Nem um vaso, nem uma cadeira, nem um toldo, nem uma rosa de ninguém:
a luz nos mosaicos anuncia a aridez de uma execução.
A catástrofe das pequenas coisas.
Em baixo, tão em baixo que é preciso olhar para baixo, o artifício das árvores. É esta varanda que lhes tira a humanidade. Mas que é a humanidade de uma árvore? Não o pássaro que a esfera tornou um pássaro de pedra. Um canto de pedra.
Que acrescenta à pedra a forma de um voo.
Não lhe atenua a aridez:
exalta-a.
Exibe-a.
A catástrofe das pequenas coisas.
Não lhe vejo o bico entreaberto, nem o estremecimento das penas: ouço-lhe o canto.
Como um memorial.
De súbito, levantará voo.
E a pedra deixará a pedra. Sem uma marca.
:
um osso exposto
fractura quem o vê?


Rui Nunes, A Crisálida,
Lisboa, Relógio D'Água, 2016




[ID, 'Memory of a bird', 07/020]

domingo, 12 de julho de 2020

F de Flor Suficiente (XXIII)


"[...]
Mas há dias encontrei, por acaso, um nenúfar branco, e a estação pela qual esperava chegou finalmente. É o símbolo da pureza. Nasce tão belo e puro perante os nossos olhos, e tão docemente perfumado, como se pretendesse mostrar-nos a pureza e doçura que podem brotar do lodo e do esterco da terra. [...]
A escravatura e o servilismo nunca produziram anualmente flores perfumadas para encantar os sentidos dos homens, pois não têm vida real: são apenas decadência e morte, desagradáveis para qualquer nariz saudável. Não nos queixamos de que estejam vivos, mas sim de que não sejam enterrados. Deixem que os vivos os enterrem até eles servem para estrume."


Henry David Thoreau, "A Escravatura no Massachusetts",
A Desobediênia Civil e Outros Ensaios, trad. de Inês Dias,
Lisboa, Relógio D'Água, 2017




[ID | Lisboa | Junho 018]

L de "Les yeux du chat" (IV)




EUGÉNIO DE ANDRADE

terça-feira, 7 de julho de 2020

sábado, 4 de julho de 2020

A de "A propósito de andorinhas" (X)



Takahashi Shôtei, 'Village with Japanese Yellow Rose', b. 1916

S de Solidão (ou C de Comunidade) LXIX




Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
trad. de Mário Rui de Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

sexta-feira, 3 de julho de 2020

C de Complicadíssima Teia



Le Journal de Jules Renard lu par Fred
[1988]


*



[ID | Madeira, 12/019]

quarta-feira, 1 de julho de 2020

B de Boal


A ILHA


para a Ângela


A ilha era deserta e o mar com medo
de tanta solidão já te sonhava:
ia em vento chamar-te para longe
e longamente em espuma te esperava.

À cinza dos rochedos atirava
na grande madrugada adormecida,
já saudosos de ti, os braços de água,
sem ter acontecido a tua vida.

Sim, meu amor, antes de Zarco vir
provar o sumo e o travo à solidão,
no litoral de pedra pressentida
o mar imaginava esta canção.

E as lúcidas gaivotas desse tempo
talhavam com um voo o teu amor:
o início de lava e sal que deixa
(talvez) neste poema algum esplendor (1).

_____

(1) A ilha hoje é um paraíso inglês
     de orquídeas e renques orvalhados:
     mister X e a cana do açúcar
     mister Y, bancos, luz, bordados.

     Ó Cesário, pudesses tu voltar
     e deste cais onde não há varinas
     ver os garotos na água a implorar
     (sir, one penny) o oiro das neblinas.


CARLOS DE OLIVEIRA




[ID | S. Martinho, 12/019]

sexta-feira, 26 de junho de 2020

T de Tratado de Pedagogia - LXII


Outro dia reli o romance de Thomas Mann, A Montanha Mágica. Este livro encena uma doença que eu conheci muito bem: a tuberculose; através da leitura, reunia na minha consciência três momentos  dessa doença: o momento da anedota, que se passa antes da guerra de 1914, o momento da minha própria doença, por volta de 1942 e o momento actual, em que a moléstia, vencida pela quimioterapia, já não tem a mesma gravidade que tinha antigamente. Ora a tuberculose que vivi é muito pouco parecida com a tuberculose da Montanha Mágica: os dois momentos confundiam-se, igualmente afastados do meu presente. Apercebi-me então com espanto (só as evidências podem espantar) que o meu próprio corpo era histórico. Em certo sentido o meu corpo é contemporâneo de Hans Castorp, o herói da Montanha Mágica; o meu corpo, que ainda não tinha nascido, tinha já vinte anos em 1907, o ano em que Hans penetrou e se instalou na "região do alto"; o meu corpo é bastante mais velho do que eu, como se nós conservássemos sempre  a idade dos medos sociais por que passámos ocasionalmente. Se, afinal, quero viver, devo esquecer que o meu corpo é histórico e devo alimentar a ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes e não do meu corpo passado.  Numa palavra, devo renascer periodicamente, tornar-me mais jovem do que sou. [...] Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe: a isso se chama procurar.


Roland Barthes, Lição
trad. Ana Mafalda Leite, Lisboa: Edições 70, 1988

terça-feira, 23 de junho de 2020

S de São João


FOGUEIRAS DE SÃO JOÃO


Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro -
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.

E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda - com o seu peso indestrutível
presente -
no coração extinto da noite
me segue.


Antonia Pozzi, Morte de uma Estação, 2.ª ed., 
com sel. e trad. de Inês Dias, prefácio de José Carlos Soares e desenhos de Débora Figueiredo,
Lisboa, Averno, 2019




[ID, Porto | 018]

domingo, 21 de junho de 2020

L de "Les yeux du chat" (III)


8 de Novembro de 1981


Morte de Branca. 
Mal posso estar, mal posso viver no silêncio que a morte de Branca produz; mal a deixo aproximar-se em imagem, só tenho lágrimas. Quem era o ser que evoluía pelos armazéns e pelos sítios escondidos, aparecendo e desaparecendo com absoluta confiança em nós? Lembro-me dela sobre o parapeito da janela da casa de Jodoigne, por detrás da forsythia; lembro-me dela em toda a parte, na sua imobilidade branca, a recuar e a avançar sobre os meus pés com os sorrisos diferentes dos seus olhos, pois um era verde e outro azul. Mas são só palavras para o nada, estas que eu escrevo agora e sempre. 
Com Branca havia outra realidade, e por detrás dela estava anunciada uma alegria que eu desconheço. Sua morte súbita tornou preciosos para mim todos os seres de Herbais, incluindo eu própria. Vejo-a sempre sorrir numa clarividência total, e não vou continuar agora porque, neste momento, já procuro a escrita. Só sei dizer que ela, escapando da altura inacessível de um telhado, veio para nós de forma espontânea. Se ela pudesse voltar a vir, se eu pudesse voltar a recebê-la, e tê-la a viver connosco no âmbito do jardim, dos armazéns, do espaço da casa. Mas acabou definitivamente com esta forma. 
Gostava de ter uma recordação palpável de Branca. Mas qual?
Branca não possuía nada. 
Tinha-a feito figura para um livro; hoje ela é uma sombra de alegria.

[...]




Maria Gabriela Llansol, Herbais foi de silêncio - Livro de Horas VI,
Porto, Assírio & Alvim, 2018