ESCREVER
Se eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra sêca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todos este artifício da composição sintá-
tica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, sêcas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim, ou não.
E, como isto, continuando.
E gostava para as infinitamente delicadas coisas
do espírito...
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas...
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gestos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre
vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?
Irene Lisboa, Outono havias de vir,
Lisboa: Seara Nova, 1937
[Lisboa, 18/05/013]