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Mapa do Mundo Helênico

Mapa do Mundo Helênico © 1986, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J. Berkenbrock Secretário executivo João Batista Kreuch Diagramação: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Juliana Teresa Hannickel Conversão para eBook: SCALT Soluções Editoriais ISBN 9786557131169 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brandão, Junito de Souza, 1926-1995. Mitologia grega, vol. I / Junito de Souza Brandão. 26. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2015. Bibliografia. 8ª reimpressão, 2021. Mitologia grega - História I. Título. CDD-292.0809 06-9289 Índices para catálogo sistemático: 1. Mitologia grega : História 292.0809 Editado conforme o novo acordo ortográfico. Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda. SUMÁRIO Nota à sétima edição Prefácio Introdução As famílias divinas I. Mitologia grega: preliminares II. Mito, rito e religião III. A Grécia antes da Grécia e a chegada dos Indo-Europeus IV. Dos Jônios à Ilha de Creta V. Os Aqueus e a Civilização Micênica: a maldição dos Atridas VI. Troia histórica, Troia mítica e as invasões dos dórios VII. Homero e seus poemas: deuses, mitos e escatologia VIII. Hesíodo, trabalho e justiça: Teogonia, Trabalhos e Dias IX. A primeira fase do Universo: do Caos a Pontos X. A Primeira Geração Divina: de Úrano a Crono XI. Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (De Nix ao Leão de Nemeia) XII. Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (Do Rio Nilo a Hécate) XIII. A Segunda Geração Divina: Crono e sua descendência XIV. A Terceira Geração Divina: Zeus e suas lutas pelo poder Apêndice: Deuses gregos e latinos Bibliografia NOTA À SÉTIMA EDIÇÃO A sétima edição do Volume I de Mitologia grega apresenta-se bastante alterada. Raramente uma página deixou de sofrer alguma emenda. Procuramos, de um lado, corrigir, tanto quanto possível, os erros tipográficos (e os nossos) e, de outro, aprimorar a redação de alguns tópicos importantes, enriquecendo-os com o que há de mais atual em mito e religião, de 1986 até o momento. A novidade maior, todavia, encontra-se na parte etimológica. É que, na redação dos dois volumes do Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega (Petrópolis, Vozes, 1991), tivemos a oportunidade de compulsar dicionários bem mais especializados em etimologia greco-latina, o que permitiu melhorar e até mesmo retocar alguns étimos. Agradecendo a grande aceitação dos três volumes de Mitologia grega, esperamos, agora, que os estudiosos os complementem com os dois indispensáveis volumes do Dicionário mítico-etimológico. Rio de Janeiro, 10 de julho de 1991. Junito Brandão PREFÁCIO Através do conceito de arquétipo, C.G. Jung abriu para a Psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural. Dentre estes símbolos, os mitos têm lugar de destaque devido à profundidade e abrangência com que funcionam no grande e difícil processo de formação da Consciência Coletiva. Os pais ensinam aos filhos como é a vida, relatando-lhes as experiências pelas quais passaram. Os mitos fazem a mesma coisa num sentido muito mais amplo, pois delineiam padrões para a caminhada existencial através da dimensão imaginária. Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial. Todavia, os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte que os realimenta. Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de comportamento humano, para vivermos criativamente, permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar. A obra de Jung demonstrou fartamente que o Inconsciente não é somente a origem da Consciência, mas, também, a sua fonte permanente de reabastecimento. Da mesma forma que a noite permite às plantas prepararem-se para cada novo dia e o sono descansa e reabastece o corpo, assim, também, o Inconsciente renova a Consciência. Das trevas fez-se a luz, que, através delas, se mantém. De noite, por meio dos sonhos; de dia, através da fantasia, os arquétipos produzem e revigoram os símbolos. A interação do Consciente com o Inconsciente Coletivo, através dos símbolos, forma, então, um relacionamento dinâmico, extraordinariamente criativo, cujo todo podemos denominar de Self Cultural. Os mitossão, por isso, os depositários de símbolos tradicionais no funcionamento do Self Cultural, cujo principal produto é a formação e a manutenção da identidade de um povo. A grande utilidade dos mitos, por conseguinte, está não só no ensinamento dos caminhos que percorrem a Consciência Coletiva de uma determinada cultura durante sua formação, mas também na delineação do mapa do tesouro cultural através do qual a Consciência Coletiva pode, a qualquer momento, voltar para realimentar-se e continuar se expandindo. Mas, poderíamos perguntar, qual a utilidade do conhecimento dos mitos de uma cultura, tão diferente quanto a greco-romana, para a Consciência Coletiva Brasileira? Nosso país atravessa atualmente uma fase histórica da maior importância para a busca de uma identidade a partir da sua sociedade multicultural. Valorizando nossa ecologia, tentando proteger o que resta das culturas indígenas, estudando as culturas negras representantes da negritude em nosso meio, traduzindo os rituais da cultura japonesa já pujantemente existente entre nós e voltando-nos às nossas raízes ibéricas para acompanhar o renascimento de Portugal e Espanha do interior do seu enigma histórico, nós brasileiros caminhamos para descobrir quem somos. Nesta tarefa, o conhecimento da cultura greco-romana muito pode nos ajudar, tanto pela imitação quanto pela diferenciação. A imitação nos permite buscar nossos símbolos e empregá-los como pontes entre nossa Consciência e nossas raízes, da mesma forma que os gregos o faziam. A diferenciação nos estimula a buscar nossa maneira especial e única de viver com os nossos próprios símbolos. Existe ainda algo extraordinário no estudo da Mitologia Grega, para o que gostaria de motivar a atenção do leitor. Trata-se de compreender a razão pela qual a Cultura Ocidental se voltou tão intensamente para a Grécia durante o Renascimento, o que muitos têm compreendido como um retrocesso ao paganismo e um consequente desvirtuamento do cristianismo. No entretanto, lado a lado com a intolerância da Inquisição e sua obra repressiva das variáveis míticas (heresias), percebemos, no Renascimento, a Consciência da fé cristã, não só com os símbolos da religião grecoromana e egípcia, como com toda a sorte de crenças, superstições e magia. Foi nesta convivência entre religião, alquimia, astrologia e superstição que nasceu o humanismo europeu, útero e berço da ciência moderna. Não vejo nisso um retrocesso do cristianismo, e sim um avanço. A árvore mítica judaico-cristã foi buscar em outras culturas o material imaginário necessário para implantar a transição patriarcal do Self Cultural e encontrou, na Mitologia Grega, uma fonte inesgotável de símbolos de convivência com as forças da natureza. O Ocidente reencontrou na Grécia não só uma cornucópia de mitos matriarcais, como também inúmeros padrões mitológicos de convivência destes símbolos matriarcais com os patriarcais. Estes ingredientes foram indispensáveis para os gênios do Renascimento constituírem a ciência moderna, a partir da busca da espiritualidade judaico-cristã, aplicada às forças da natureza. Este mesmo fator pode nos ajudar criativamente na interação entre, por um lado, nossas raízes judaico-cristãs e a cultura japonesa de dominância patriarcal e, por outro lado, as culturas indígenas e negras de dominância matriarcal na busca da construção da identidade brasileira, a partir de nossa sociedade multicultural. Para encerrar, uma palavra diretamente sobre este livro e seu autor. Esta obra nos traz o tesouro simbólico da cultura grega através de alguém que se dedicou ao seu estudo e ao seu ensino por mais de trinta anos. Quem já teve o privilégio de frequentar os cursos deste mestre, teve certamente a oportunidade de perceber que a delicadeza e o carinho com que transmite seus ensinamentos se respaldam na força do estudo, da pesquisa e da erudição. Junito de Souza Brandão, em sua vida dedicada ao ensino de culturas antigas, principalmente da greco-romana, tem expressado entre nós a essência do arquétipo do professor que tempera aquilo que transmite aos seus alunos com o amor que ele próprio sente pelo conhecimento transmitido. Ao proceder assim, o mestre se transforma em sacerdote, pois os fatos que ensina viram símbolos da atividade imemorial da humanidade em direção à totalidade através da cultura. É o produto desta dedicação de uma vida que temos à nossa frente. Desejo ao leitor bom proveito. Dr. Carlos Byington Psiquiatra e Analista Junguiano INTRODUÇÃO Quando da gestão do Dr. Roberto Piragibe da Fonseca, em 1960, como diretor da então Faculdade de Filosofia da PUC-RJ, conseguimos, após muita insistência, introduzir no Currículo de Letras a Cadeira de Mitologia grega e latina, que continua, até hoje, em plena vitalidade, e até mesmo com número excessivo de alunos... Ignoro se existe outra universidade, no Brasil,que mantenha regular e curricularmente o Mito como disciplina, ao menos eletiva. Se não existe, é de todo lamentável, porquanto não se pode, a meu ver, estudar com profundidade a Literatura Greco-Latina e seu κόσμος (kósmos), seu “universo” multifacetado, sem um sério embasamento mítico, pois que o mito, nesse caso, se apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Opondo-se ao λόγος (lógos), “como a fantasia à razão, como a palavra que narra à que demonstra”, λόγος (lógos) e μῦθος (mythos) são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida e do espírito. O “lógos”, sendo um raciocínio, procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar. O “lógos” é verdadeiro, se é correto e conforme à lógica; é falso, se dissimula alguma burla secreta (um “sóphisma”)1. O mito, porém, não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele ou não, à vontade, por um ato de fé, se o mesmo parece “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-lhe crédito. Assim é que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas as suas criações. E talvez seja este o caráter mais evidente do mito grego. Verificamos que ele está presente em todas as atividades do espírito. Não existe domínio algum do helenismo, tanto a plástica como a literatura, que não tenha recorrido constantemente a ele. “Para um grego, um mito não conhece limites. Insinua-se por toda parte [...]. Reserva de pensamento, o mito acabou por viver uma vida própria, a meio caminho entre a razão e a fé. [...] Até os filósofos, quando o raciocínio atingiu o seu limite, recorreram a ele como a um modo de conhecimento capaz de comunicar o incognoscível”2. De outro lado, sendo uma fala3, um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é uma como que metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da primeira. Não sendo um objeto, um conceito, uma ideia, o mito é um modo de significação, uma forma, um sýmbolon, acrescentaríamos. Donde não se pode defini-lo simplesmente pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere. “Metalinguagem” não é apenas a “literatura”, no caso em pauta a greco-latina, que não se pode explicar sem o mito, mas igualmente inúmeros fatos da língua. Se não mais é possível falar do “rapto de Helena” por Alexandre ou Páris, a não ser buscando fundo no mitologema quem era a “antiga deusa da vegetação” Helena e o significado de rapto, ainda mais que perpetrado por um príncipe outrora “exposto”; se não mais se poderia analisar a “Esfinge inquiridora” do Édipo Rei de Sófocles, a não ser partindo-se de sua morfologia primitiva de Íncubo, de demônio opressor erótico, e de alma penada; se não mais teria sentido expor os Doze Trabalhos de Héracles, impostos ao “herói” pela protetora dos “amores legítimos”, Hera, se não se visse neles, entre muitos outros conteúdos, um longo rito iniciático, coroado pela apoteose, como semelhantemente aconteceu com Psiqué – assim também muitos fatos da língua ficariam reduzidos a meras palavras, se não se buscasse esclarecê-los através do mito e da religião. Como explicar, por exemplo, em latim, contemplari, “olhar atentamente para” e considerare, “examinar com cuidado e respeito”, desvinculados do sentido profundamente religioso de templum, “templo”, e sidus, “constelação”? Uma coisa é templum, templo, local onde se aninham as estátuas dos deuses; outra, bem mais rica e nobre, é templum, espaço quadrado delimitado pelo áugure no céu e no chão, espaço em cujo interior o sacerdote tomava e interpretava os presságios. Donde contemplari, “contemplar”, é observar atentamente se os pássaros voam da esquerda para a direita (bom presságio) ou da direita para a esquerda (mau presságio) . Sidus,-eris é constelação, donde considerare, “considerar”, é “examinar atenta e respeitosamente os astros e sondar-lhes as disposições”. Cícero já emprega a expressão sidera natalícia (De Diu., 2,43,91), “astros que presidem aos nascimentos” e determinam as sequências da vida dos que nascem sob sua tutela. Pois bem, foi dentro desses cânones, que não são novos, buscando no mito o que ele tem de “permanente” em todas as culturas, que procuramos elaborar três volumes sobre Mitologia grega. Não desprezamos os significantes de nenhum mito, mas investigamos com afinco e persistência o sentido de seu conteúdo. Partindo de um suporte meramente expositivo, mas podando-lhe com cuidado o romanesco, e escolhendo com mais cautela ainda a ou as variantes mais antigas e “autênticas”, tentamos ir bastante além, esmiuçandolhe o simbolismo e, quanto possível, as significações psicológicas. Após Freud, Jung, Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, Mircea Eliade, e isto para citar apenas alguns dos grandes pioneiros e seus seguidores, o mito enveredou por caminhos bem mais legítimos e genuínos: deixou de ser uma simples história da carochinha ou uma ficção, “coisa inacreditável, sem realidade”, para, como acentua Byington no Prefácio, “através do conceito de arquétipo, abrir para a Psicologia a possibilidade de perceber diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva”. Se, a princípio, o estudo do mito nos interessou como um auxiliar poderoso e indispensável para uma melhor compreensão das línguas grega e latina e sobretudo de suas respectivas literaturas, a partir de 1982, quando começamos a trabalhar em dupla, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com o psiquiatra e analista Carlos Byington, é que percebemos com mais clareza o peso do mito, esse inesgotável repositório de símbolos, que realizam “a interação do Consciente com o Inconsciente Coletivo”. É exatamente esse “tipo de mito” que procuramos transmitir não só a nossos alunos de Departamentos vários da PUC-RJ, e em cursos anuais em nossa cidade, mas particularmente a universitários, professores, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e analistas de São Paulo e da Unicamp, com muitos dos quais, e prazerosamente, vimos trabalhando, há quatro anos. Na elaboração de Mitologia grega, Volume I, após os sete primeiros capítulos, em que focalizamos mito e obra de arte, definição de mito e religião, estudo da religião pré-helênica, chegada à Hélade dos gregos indo-europeus e visão panorâmica dos poemas e deuses homéricos, tivemos que fazer uma séria e difícil opção. Por onde começar? Poderia ser por qualquer mito, já que este, além de não se enquadrar no tempo, é totalmente ilógico. Mas, como Hesíodo, poeta do século VIII a.C., portanto, cronologicamente, o segundo depois de Homero, nos legou, conforme se comenta no capítulo VIII, duas obras preciosas com vistas à mitologia grega, Teogonia e Trabalhos e Dias, resolvemos, por dois motivos, iniciar por ele. Primeiro, porque o poeta de Ascra colocou certa ordenação, ao menos genealógica, no confuso mito grego; segundo, porque, inteligentemente, fez coincidir o Caos, “massa confusa e informe”, que dá início à cosmoteofania, isto é, ao aparecimento do mundo e dos deuses, com o caos social da Idade de Ferro, em que vivia seu século. Nesse caso, o homem percorreu o caminho inverso ao dos deuses: da Idade de Ouro degradou-se até a Idade de Ferro... Temos, por conseguinte, dois “caos”. Partindo do primeiro, o poeta há de fazer com que do Caos, das “trevas”, se chegue a Zeus, “à luz” e sonha com a extinção do segundo: quem sabe se o homem, apoiado em Zeus, símbolo da díke, da justiça, não há de emergir do caos social para a luz? Da Idade de Ferro não há de retornar à Idade de Ouro? Nossa Mitologia grega, portanto, abrange três grandes momentos do mito helênico: o Volume I, após os sete primeiros capítulos de que já se falou linhas atrás, irá do Caos até as lutas de Zeus pelo poder; o Volume II, mais denso, partirá de Zeus,já como deus cosmocrata e “pai dos deuses e dos homens”, e se fechará no mito de Eros e Psiqué; o Volume III será consagrado ao Mito dos heróis. Na feitura de Mitologia grega usamos algumas obras altamente especializadas no assunto, todas, por sinal, indicadas na Bibliografia Geral. Gostaríamos, todavia, de destacar o nosso manuseio constante, para interpretação da parte simbólica, do Diccionario de símbolos, de J.E. Cirlot, do Dictionnaire des symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, e de Le symbolisme dans la mythologie grecque, de Paul Diel. No que se refere à interpretação psicológica, nossos guias principais foram Sigmund Freud, C.G. Jung, Erich Neumann e Gaston Bachelard. Mitologia grega deve muito a muita gente. Não apenas às pessoas que tanto me incentivaram e até reclamaram de meu natural festina lente, como a estimada amiga Rose Marie Muraro, que prefaciará o segundo volume; o jovem psicólogo José Raimundo de Jesus Gomes; colegas e alunos do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas também àqueles que gentilmente me ajudaram manu laboriosa, como as professoras Miriam Sutter Medeiros, Lea Bentes Cardoso e o universitário Fred Marcos Tallman, que se encarregaram da parte datilográfica; Silvia Elizabeth von Blücher, Augusto Ângelo Zanatta, Valderes Barboza e o já consagrado Professor Synval Beltrão Jr., aos quais fico devendo o penoso trabalho de organização dos índices do primeiro volume. Esperamos, por fim, que os três volumes de Mitologia grega cumpram as duas finalidades únicas que tivemos em mira ao redigilos: cooperar para que as humanidades clássicas voltem urgentemente ao lugar que lhes compete e servir não só aos que lidam com a ciência da psiqué, mas também a quantos acreditam na perenidade do mito, que não é grego nem latino, mas um farol que ilumina todas as culturas. Rio de Janeiro, 26 de abril de 1985 Junito de Souza Brandão 1. Σόφισμα (sóphisma), sofisma, aqui no caso, é um expediente enganoso e enganador. 2. GRIMAL, Pierre. La mythologie grecque. Paris: PUF, 1952, p. 8ss. 3. BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1972, p. 137ss. AS FAMÍLIAS DIVINAS CAPÍTULO I Mitologia grega: preliminares 1 Os mitos gregos só se conhecem através da forma escrita e das imóveis composições da arte figurada, o que, aliás, é comum a quase todas as mitologias antigas. Ora, a forma escrita desfigura, por vezes, o mito de algumas de suas características básicas, como, por exemplo, de suas variantes, que se constituem no verdadeiro pulmão da mitologia. Com isso, o mito se enrijece e se fixa numa forma definitiva. De outro lado, a forma escrita o distancia do momento da narrativa, das circunstâncias e da maneira como aquela se converteria numa ação sagrada. Um mito escrito está para um mito “em função”, como uma fotografia para uma pessoa viva. E se é verdade que a forma escrita é uma característica das mitologias antigas, a grega ainda está comprometida por outra particularidade. Mitos existem, fora do mundo grego, que, mesmo em sua rígida forma escrita, conservaram um nítido e indiscutível caráter religioso: são aqueles cujo contexto tem um cunho ritual. O Enûma Elîsh1, por exemplo, se reduz a um vasto repertório ritual. Se dos mitos egípcios se conhece relativamente pouco, é porque tudo quanto nos chegou de autêntico provém de textos rituais, como os Textos das pirâmides, os Textos dos sarcófagos, o Livro dos mortos... Análoga é a situação dos mais antigos textos rituais da Índia. Acontece, no entanto, que a Grécia antiga não nos legou um único mito em contexto ritual, embora se pudesse, talvez, defender, ao menos como parte de um rito, o que chegou até nós de alguns festejos dionisíacos. “A mitologia grega chegou até nós através da poesia, da arte figurativa e da literatura erudita, ou seja, em documentos de cunho ‘profano’”2, se bem que profano aqui no caso deva ser tomado em sentido muito lato, uma vez que poesia, arte figurativa e literatura erudita tiveram por suporte o mito. É claro que houve, na Grécia, um liame muito forte entre literatura, arte figurativa e religião, mas, ao plasmar o material mitológico, os poetas e artistas gregos não obedeciam tão somente a critérios religiosos, mas também, e isso é fácil de se perceber, a ditames estéticos. Toda obra de arte como todo gênero artístico e literário possuem exigências intrínsecas. Entre narrar um mito, que é uma práxis sagrada, em determinadas circunstâncias, para determinadas pessoas, e compor uma obra de arte, mesmo alicerçada no mito, vai uma distância muito grande. A famosa lei das três unidades (ação, tempo e lugar), embora de formulação tardia, como teoria poética, está presente na tragédia clássica. Tal lei não é válida para o mito, que se desloca livremente no tempo e no espaço, multiplicando-se através de um número indefinido de episódios. Para reduzir um mitologema a uma obra de arte, digamos, a uma tragédia, o poeta terá que fazer alterações, por vezes violentas, a fim de que a ação resulte única, se desenvolva num mesmo lugar e “caiba” num só dia3. Não é em vão que, as mais das vezes, a tragédia grega se inicia in medias res. Édipo Rei de Sófocles começa quando termina o mito O flashback fará o milagre de recompor o restante... A redução do mito a uma obra de arte traz outra consequência com vistas à documentação mitológica. O mito, como já se assinalou, vive em variantes; ora, a obra de arte, de conteúdo mitológico, somente pode apresentar, e é natural, uma dessas variantes. Acontece que, dado o imenso prestígio da poesia na Grécia, a variante apresentada por um grande poeta impunha-se à consciência pública, tornando-se um mito canônico, com esquecimento das demais variantes, talvez artisticamente menos eficazes, mas, nem por isso, menos importantes do ponto de vista religioso. 2 As alterações sofridas pelos mitos gregos, todavia, não se restringem aos poetas e artistas. Estes, conquanto reduzissem o mito e o recriassem, alterando-o, para que o mesmo pudesse atender às novas exigências artísticas, de qualquer forma o aceitavam e mantinham. Bem diferente é a atitude do pensamento racional, sobretudo dos Pré-Socráticos, muitos dos quais tentaram desmitizar ou dessacralizar o mito em nome do lógos, da razão. Acertadamente afirma Mircea Eliade: “Em nenhuma outra parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia e a comédia (e acrescentaríamos o lirismo), mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘desmitizado’. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal qual é expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas europeias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos”4. A crítica dos filósofos jônicos não visava, na realidade, ao pensamento mítico, à essência do mito, mas aos atos e atitudes dos deuses, tais quais os concebiam Homero e Hesíodo. A crítica fundamental era feita “em nome de uma ideia cada vez mais elevada de Deus”. Um Deus verdadeiro jamais poderia ser concebido como injusto, vingativo, adúltero e ciumento, como enfatiza Xenófanes (576-480 a.C.), de Cólofon, na Ásia Menor: “No dizer de Homero e de Hesíodo os deuses fazem tudo quanto os homens considerariam vergonhoso: adultério, roubo, trapaças mútuas” (Frgs. B11, B12). Repele a concepção de que os deuses tenham tido um princípio e se assemelhem aos homens: “Mas os mortais acreditam que os deuses nasceram, que usam indumentária e que, como eles, têm uma linguagem e um corpo” (Frg. B14). O antropomorfismo, iniciado com Homero e aperfeiçoado por Hesíodo, é violentamente censurado: “Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com suas mãos, pintar e produzir as obras que os homens realizam, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois e a eles atribuiriam os corpos que eles próprios têm” (Frg. B15). Para Xenófanes, a ideia de Deus é algo mais sério: “Há um deus acima de todos os deuses e homens: nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos mortais” (Frg. B23). A crítica racionalista veio num crescendo, e o mito recebeu com Demócrito (520-440 a.C.) um duro golpe. Com efeito, o sistema mecanicista do filósofo de Abdera, na Trácia, reduz tudo a um entrechoque de partículas insecáveis, ingênitas, denominadas ἄτομοι (átomoi), de ἄτομος (átomos, indivisível). “Por necessidade da natureza, os átomos movem-se no vácuo infinito com movimento retilíneo de cima para baixo e com desigual velocidade. Daí entrechoques atômicos e formação de imensos vórtices ou turbilhões de que se originam os mundos”5,os seres, a alma, os deuses, mas tudo, porque tudo é matéria, está sujeito à lei da morte. Assim, para Demócrito, os deuses vulgares e a mitologia nasceram da fantasia popular. Os deuses existem, mas são entes superiores ao homem, embora compostos também de átomos e, portanto, sujeitos à lei da morte. “Deus verdadeiro e natureza imortal não existem”. Dois outros sérios entraves para o mito foram a “dicotomização” e a “politização”. A primeira teve por corifeu a um dos maiores e mais religiosos poetas da Hélade, Píndaro (521-441 a.C.), com toda a justiça cognominado o príncipe dos poetas e o poeta dos príncipes, o qual, em nome da moral, começou a filtrar o mito. Para o gigantesco poeta tebano, dentre as diversas variantes de um mitologema, somente urna é verdadeira; as demais são coisas que possuem apenas o crédito dos poetas: “O mundo está repleto de maravilhas e, não raro, as afirmativas dos mortais vão além da verdade; mitos, ornamentados de hábeis ficções, nos iludem... As Graças, a quem os mortais devem tudo quanto os seduz, tributam-lhes honras e, as mais das vezes, fazem-nos crer no incrível!”6E vai mais longe sua tesoura ética: “O homem não deve atribuir aos deuses a não ser belas ações. Este é o caminho mais seguro”7. E quantas vezes o maior dos líricos da Grécia antiga não truncou, não podou e alterou o mito, para torná-lo compatível com suas exigências morais. Também Ésquilo (525-456 a.C.), o pai da tragédia, depurou o mito para dele extrair tão somente a variante sadia, como já o demonstramos em livro recente: “O dever do poeta, diz Ésquilo a respeito do mito de Fedra, é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer somente coisas honestas”8. Eurípides (480-406 a.C.), o trágico da solidão, seguiu as pegadas de Xenófanes: sua concepção religiosa é alta e depurada, como salientamos na longa Introdução que fizemos ao poeta e suas ideias na tragédia Alceste9. Outro perigo para a mitologia foi a “politização”, que, muitas vezes, usando e abusando de deslocamentos do mito, particularmente do mito dos heróis, fez que os mesmos tivessem por passagem inevitável, viessem de onde viessem, a cidade de Atenas. A peregrinação, como se pode ver na Introdução que fizemos ao mito dos heróis, no terceiro volume, é uma característica típica dos heróis, mas eleger Atenas como ponto obrigatório de convergência dos mesmos só se pode atribuir a intenções políticas. O desejo de defender a hegemonia política da cidadela de Atená levou seus poetas a “depurarem” e a castrarem, com esse encontro marcado, certos mitos de heróis locais, acrescentando-lhes gestas de heróis de cidades vizinhas, fabricando-lhes genealogias espúrias, atribuindolhes importantes fatos históricos com total inversão da cronologia. De modo inverso, as glórias e feitos dos heróis das cidades inimigas foram denegridos e empanados. Não foi com outro intento que desfilaram pelas ruas de Atenas Admeto da Tessália, Édipo de Tebas, Adrasto de Sicione, Orestes de Argos, Castor e Pólux de Esparta... Na realidade, a crítica racionalista entrou pelo século V a.C. e acabou por fazer discípulos ilustres. Ao contrário do crédulo Heródoto (480-425 a.C.), Tucídides (460-395 a.C.) baniu os deuses de sua História da Guerra do Peloponeso. Nesta 1, 21, o adjetivo μυθοῶδες (mythôdes), que significa “semelhante ao mito”, passou a ter a acepção de “fabuloso”, na expressão "τό μὴ μυθοῶδες (tò mè mythôdes), o que não é fabuloso, numa clara alusão ao mito. De pouco adiantaram as chicotadas e a “xingologia” do maior dos cômicos universais, Aristófanes (445-388 a.C.), contra os inovadores. Os sofistas, mercê da atitude intelectual de alguns pensadores precedentes, aproveitando-se das condições políticas e sociais do tempo, abalaram, com sua teoria ancípite e demolidora, os nervos da pólis. Prevalecendo-se do caminho já aplainado pelo ceticismo, entre outras sérias “depurações”, procuraram varrer o mito da mente de seus jovens discípulos, como tentamos demonstrar em As nuvens10. 3 Na realidade, a mitologia deixou o século V a.C. meio coxa, “depurada” e cambaleante. De saída teve, no século IV a.C., um encontro dramático com o Epicurismo. Epicuro (341-270 a.C.), retomando o atomismo materialista de Demócrito, procurava libertar o homem do temor dos deuses e da necessidade inexorável da Moîra. Afinal, se os deuses, distantes e desinteressados do homem, são também matéria, sujeitos, por conseguinte, à morte, já que formados, como os homens, por entrechoques atômicos, por que temê-los? O além, grande preocupação do homem grego, não existe. Se tudo é matéria, deuses e alma, o bem supremo está no prazer negativo, na ausência de dor para o corpo e de perturbação para a alma. Deus ou os deuses não agem. De sua Ética nos ficou um fragmento sombrio acerca da fragilidade e impotência divina face ao problema do mal: “Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que, igualmente, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que Deus não os impede?” Parecia morta a mitologia. Os deuses agora não estavam apenas desmitizados, mas também dessacralizados. Mas eis que, em pleno século IV a.C., surgiram duas novas modalidades de interpretação do mito, as quais, a seu modo, vão contribuir para “salvar uma certa mitologia” e, como se há de ver mais adiante, para perpetuá-la no “cristianíssimo” mundo ocidental. Alegorismo e Evemerismo, eis aí os dois novos monstros sagrados. Trata-se, como argutamente percebeu Mircea Eliade, comentando essas duas últimas novidades do pensamento grego, não apenas de “uma crítica devastadora ao mito”, mas de “uma crítica a qualquer mundo imaginário, empreendida em nome de uma psicologia simplista e de um raciocínio elementar”11. Já que os mitos não eram mais compreendidos literalmente, buscavam-se neles as ύπόνοιαι (hypónoiai), isto é, as suposições, as significações ocultas, os subentendidos. Foi isto que, a partir do século I d.C., se denominou alegoria, que significa, etimologicamente, “dizer outra coisa”, ou seja, o desvio do sentido próprio para uma acepção translata, ou mais claramente: alegoria é “uma espécie de máscara aplicada pelo autor à ideia que se propõe explicar”. Teágenes de Régio, já no século VI a.C., tentara fazer uma exegese da poesia homérica com base na ύπόνοια (hypónoia), mas somente no século IV a.C. é que a alegoria descobriu que os nomes dos deuses representavam sobretudo fenômenos naturais. Assim é que o estoico Crisipo reduziu a mitologia a postulados físicos ou éticos. Homero e Hesíodo estão “salvos”; “salva” está a poesia e a arte, que poderão continuar a beber na fonte inesgotável do mito, embora alegorizado. Não foi, todavia, só a alegoria que “salvou” a mitologia helênica. Um pouco mais tarde, lá pelos fins do século IV a.C. e inícios do III a.C., o filósofo alexandrino Evêmero publicou uma obra, de que nos restam alguns fragmentos, intitulada Ἱερὰ' Αναγραϕή (Hierà Anagraphé), História Sagrada, que, com o mesmo título, foi traduzida para o latim pelo poeta Quinto Ênio (239-169 a.C.). Tratase de uma espécie de romance sob forma de viagem filosófica, no qual afirma Evêmero haver descoberto a origem dos deuses. Estes eram antigos reis e heróis divinizados e seus mitos não passavam de reminiscências, por vezes confusas, de suas façanhas na terra. O Evemerismo, por conseguinte, nada mais é do que a tentativa de explicar o processo de apoteose de homens ilustres. Embora teoricamente antípoda do alegorismo, o Evemerismo muito contribuiu também para “salvar” a mitologia, injetando-lhe uma dose de caráter “histórico” e humano. Afinal, os deuses não passavam de transposições, através da apoteose e de reminiscência, um tanto desordenada, das gestas de reis e de heróis primitivos, personagens autenticamente históricas... O próprio Evêmero, aliás, diz ter encontrado na Ilha dos Bem-Aventurados um templo dedicado a Zeus. Neste templo se conservava uma coluna de ouro em que o próprio deus, quando ainda vivia como simples mortal, gravara a história da humanidade! Era a total desmitização... 4 Após batalhas tão ingentes contra a carência de documentos rituais; contra as reduções introduzidas pela própria literatura e arte figurativa, mercê de suas exigências estéticas; contra o lógos desmitizador dos pré-socráticos; contra a dicotomização e a politização; contra o sistema mecanicista de Demócrito e depois de Epicuro; contra a depuração da scaenica philosophia de Eurípides; contra o mythôdes de Tucídides; contra a lavagem cerebral dos Sofistas; contra o Alegorismo, tão aplicado pelos Estoicos; contra o Evemerismo... seria o momento de se perguntar: morreu a mitologia? A resposta é: ainda não. Com efeito, ao longo de todas essas refregas, dos fins do século VII aos fins do século I a.C., a mitologia, sem desmitização e sem dessacralização, se bem que bastante ferida, manteve-se viva e atuante. A fórmula de tal sobrevivência é facilmente explicável. Se a tenacidade e o vigor, com que os pré-socráticos bem como alguns outros pensadores e “reformadores” combatiam o mito, se tivessem imposto integralmente à consciência grega, a tradição mitológica teria desaparecido por completo. Mas tal não aconteceu, porque os ataques desfechados contra o mito partiram sempre da elite pensante, de filósofos, de poetas e de escritores (com muitas e poderosas exceções) e se uma parcela dessa mesma elite pensante descobriu, sobretudo no Oriente, “outras mitologias” capazes de alimentar-lhe o espírito, a massa iletrada, tradicionalista por vocação e indiferente a controvérsias sutis, a alegorismos e a evemerismos, agarrava-se cada vez mais à tradição religiosa. De outro lado estava a religião oficial, estatal, que, embora se apresentasse, não raro, como uma liturgia sem fé, tinha interesses óbvios em defender seus deuses, outrora destemidos paladinos da pólis. Mas a grande trincheira da mitologia foram as religiões dos Mistérios, em particular dos Mistérios de Elêusis, dos Mistérios Greco-Orientais, da secular autoridade religiosa do Oráculo de Delfos, do culto do deus do êxtase e do entusiasmo, Dioniso, de modo particular nas Antestérias, de que falaremos no segundo volume, e das Confrarias Órfico-Pitagóricas12. A tudo isso somaram-se as chamadas soteriologias ou doutrinas da salvação, verdadeiras “mitologias da alma”, propagadas pelo neopitagorismo, neoplatonismo, gnosticismo e hermetismo, a cujo lado se expandiram mitologias solares, astrais e funerárias, bem como a magia e a bruxaria. E se o cristianismo lutou tanto para impor-se e teve primeiro que “fertilizar” tantas arenas com o sangue de seus mártires, a oposição à nova e autêntica experiência religiosa não teve origem na religião e mitologias clássicas, de resto já agonizantes, alegorizadas e evemerizadas, mas na oposição tenaz das religiões de Mistérios, das soteriologias e dos diversos tipos de mitologias e religiões populares, que nem mesmo os decretos do Imperador Teodósio (346-395 d.C.), fechando e destruindo templos, conseguiram eliminar. A “extinção religiosa” do paganismo se haveria de conseguir por outros meios, sem repressão e sem violências. E se o cristianismo, sem nenhuma conivência, sem nenhuma alteração de sua doutrina, adotou da mitologia tantos significantes e tantos símbolos, o fez ad captandam beneuolentiam, isto é, com o fito de atrair os pagãos para a verdadeira fé e para o escândalo da cruz. Se, até hoje, muitos estranham e se espantam com “as múltiplas semelhanças” do culto cristão com “fatos mitológicos”, isto se deve não apenas à prudente cristianização de significantes da mitologia grega, oriental e romana, mas sobretudo ao Espírito de Deus, que sopra onde lhe agrada. Sob muitos aspectos o cristianismo salvou a mitologia: dessacralizou-a de seu conteúdo pagão e ressacralizou-a com elementos cristãos, ecumenizando-a. Quando se pensa na homologação, por parte do cristianismo, das tradições religiosas populares é que os fatos se tornam mais nítidos. “Cristianizados, deuses e locais de culto da Europa inteira, na feliz expressão de Mircea Eliade, receberam eles não somente nomes comuns, mas também reencontraram, de certa forma, seus próprios arquétipos e, por conseguinte, seu prestígio universal. Uma fonte da Gália, sagrada desde a pré-história, por causa da presença de uma figura divina local ou regional, torna-se santa para toda a cristandade, após ser consagrada à Virgem Maria. Os matadores de dragões são assimilados a São Jorge ou a um outro herói cristão; os deuses das tempestades o são a Elias. De regional e provincial, a mitologia tornou-se universal. É de modo especial pela criação de uma nova ‘linguagem mitológica’ comum a toda a população rural, que permaneceu presa à terra, e portanto na iminência de se isolar em suas próprias tradições, que o papel civilizador do cristianismo se tornou considerável. Cristianizando a antiga herança religiosa europeia, ele não apenas a purificou, mas ainda fez ascender a uma nova etapa religiosa da humanidade tudo quanto merecia ser ‘salvo’ entre as velhas práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão”13. Talvez não fosse de todo fora de propósito recordar uma verdade que o grande Cardeal Jean Daniélou gostava de repetir, verdade que atesta a perenidade da cultura clássica, de que o mito não é parte menos importante: “Uma coisa é a revelação, outra, as representações sob as quais os escritores sacros no-la transmitiram, hauridas, em grande parte, nas civilizações antigas”14. Em conclusão: foi graças ao alegorismo e ao evemerismo e sobretudo porque a literatura grega e as artes plásticas se desenvolveram cimentadas no mito que os deuses e heróis da Hélade sobreviveram ao longo processo de desmitização e dessacralização, mesmo após o triunfo do cristianismo, que acabou por absorvê-los, porque já então estavam esvaziados por completo de “valores religiosos viventes”. “Camuflados sob os mais inesperados disfarces”, evemerizados e despojados de suas formas clássicas, deuses e heróis conseguiram, embora a duras penas, atravessar toda a Idade Média. Na Renascença, porém, recobertos com sua roupagem de gala, regressaram triunfantes, de corpo inteiro, para não mais se esconder. Salva pelos poetas, artistas, filósofos e pelo cristianismo, a herança clássica converteu-se em tesouro cultural: Camões, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, apenas para citar o triângulo maior da poesia em língua portuguesa, estão aí para prová-lo. Estamos de acordo com Georges Gusdorf: “A consciência mítica, embora reprimida, não está morta. Afirma-se mesmo entre os filósofos e sua persistência secreta encoraja-lhes talvez os empreendimentos no que estes têm de melhor. Não se trata, por conseguinte, de uma simples arqueologia da razão. O interesse pelo passado constitui-se aqui na preocupação com o atual”15. 1. Enûma Elîsh são as duas primeiras palavras do grande poema babilônico e que significam “Quando, no alto...” O poema é inexatamente denominado Poema da criação, assunto que ocupa uma parte mínima da narrativa. Melhor seria chamá-lo Poema da exaltação de Marduc. 2. BRELICH, Angelo. Gli eroi greci. Roma: Edizioni dell’Ateneo e Bizzarri, 1978, p. 33ss. 3. Veja-se BALDRY, H.C. The Dramatization of the Theban Legend. Greece and Rome, s. 2, v. 3, p. 24ss. 4. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 130. [Tradução de Pola Civelli]. 5. FRANCA, Leonel, S.J. Noções de história da filosofia. 13. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1952, p. 40ss. 6. Olímpicas, 1,28-33. 7. Ibid., 35. 8. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: TAB, 1980, p. 46ss. 9. EURÍPIDES. Alceste. Rio de Janeiro: Bruno Buccini Editor, 1968, 3. ed., p. 19ss [Tradução de Junito de Souza Brandão]. 10. ARISTÓFANES. As nuvens. Rio de Janeiro: Grifo, 1976, p. 20ss [Introdução e Tradução de Junito de Souza Brandão]. 11. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 133. 12. Veja-se a respeito dos Mistérios Gregos e Orientais a obra monumental de Joseph HOLZNER, AutourdeSaintPaul, cap. V: “Les Mystères grecs et l’idée du salut”. Paris: Éditions Alsatia, 1953, p. 75-123. 13. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 230. 14. CHAUCHARD, Paul et al. La survie après la mort. Paris: Éditions Labergerie, 1868, p. 24. 15. GUSDORF, Georges. Mythe et métaphysique. Paris: Flammarion, 1953, p. 8. CAPÍTULO II Mito, rito e religião 1 É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito1, que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda2, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Em outros termos, mito, consoante Mircea Eliade, é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore, quando, com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser. Em síntese: MITO história verdadeira nova realidade: cosmoantropofania ocorrida no tempoprimordial (total ou parcial ) intervenção de entes sobrenaturais De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra “revelada”, o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nível da linguagem, “ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento”3. Maurice Leenhardt precisa ainda mais o conceito: “O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa”4. O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes, o mito não pode, consequentemente, “ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma”5. Assim, não se há de definir o mito “pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere”. 2 É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia, de mentiras, daí mitomania, mas não é este o sentido que hodiernamente se lhe atribui. O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos veem no mito tão somente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo. Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung, como a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido. Arquétipo, do grego arkhétypos, etimologicamente, significa modelo primitivo, ideias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo foi empregado pela primeira vez por Jung. No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois tipos de imagens: a) imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam a experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese individual; b) imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não podem ser incorporados à história individual. Correspondem a certos elementos coletivos: são hereditárias. A palavra textual de Jung ilustra melhor o que se expôs: “Os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre e a priori”6. Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da dispersão por migrações, casos há e muito numerosos em que essas imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente coletivo7. Mas, como este não é verbal, quer dizer, não podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego sýmbolon, do verbo symbállein, “lançar com”, arremessar ao mesmo tempo, “comjogar”. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de equivalência. Assim, para se atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma equivalência, uma “conjugação”, uma “reunião”, porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato. Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos princípios. “Traduzem” a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de um encontro. Na expressão de Goethe, os mitos são as relações permanentes da vida. Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo, então o que é mitologia? Se mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela tradição e mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia é o “movimento” desse material: algo de estável e mutável simultaneamente, sujeito, portanto, a transformações. Do ponto de vista etimológico, mitologia é o estudo dos mitos, concebidos como história verdadeira. 3 Quanto à religião, do latim religione, a palavra possivelmente se prende ao verbo religare, ação de ligar, o que parece comprovado pela imagem do grande poeta latino Tito Lucrécio Caro (De Rerum Natura, 1,932): Religionum animum nodis exsoluere pergo – esforçome por libertar o espírito dos nós das superstições – onde o poeta epicurista joga, como está claro, com as palavras religio e nodus, religião (“ligação”) e nó (uma outra ligadura). Religião pode, assim, ser definida como o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido mais estrito, pode-se dizer que a religião para os antigos é a reatualização e a ritualização do mito. O rito possui, no dizer de Georges Gusdorf, “o poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar o mito”8. Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, “o sentido de uma ação essencial e primordial através da referência que se estabelece do profano ao sagrado”9. Em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora. Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram “nas origens”, porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. “E o rito pelo qual se exprime (o mito) reatualiza aquilo que é ritualizado: recriação, queda, redenção”10. E conhecer a origem das coisas – de um objeto, de um nome, de um animal ou planta – “equivale a adquirir sobre as mesmas um poder mágico, graças ao qual é possível dominá-las, multiplicá-las ou reproduzi-las à vontade”11. Esse retorno às origens, por meio do rito, é de suma importância, porque “voltar às origens é readquirir as forças que jorraram nessas mesmas origens”. Não é em vão que na Idade Média muitos cronistas começavam suas histórias com a origem do mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo primordial e as bênçãos que jorraram illo tempore. Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. É o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: “Um objeto ou um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetição ou participação; tudo que não possui um modelo exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade”12. O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em verbo, sem o que ela é apenas lenda, “legenda”, o que deve ser lido e não mais proferido. 4 À ideia de reiteração prende-se a ideia de tempo. O mundo transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas não aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano e recupera o tempo sagrado do mito. É que, enquanto o tempo profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível (pode-se “comemorar” uma data histórica, mas não fazê-la voltar no tempo), o tempo mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano é o tempo da vida; o sagrado, o “tempo” da eternidade. J.B. Barruel de Lagenest tem uma página luminosa acerca da dicotomia do profano e do sagrado. Para o teólogo em pauta, o profano e o sagrado podem ser enfocados subjetiva e objetivamente: “Se considerarmos a experiência sensível como o elemento mais importante da atitude religiosa, a percepção do sagrado [...] será valor determinante da vida profunda de um indivíduo ou de um grupo. Diante da divindade a criatura só se pode sentir fraca, incapaz, totalmente dependente. Esse sentimento se transforma em instrumento de compreensão, pois torna aquele que o vive capaz de descobrir, como que por intuição, o eterno no transitório, o infinito no finito, o absoluto através do relativo. O sagrado é, assim, o sentimento religioso que aflora. No entanto, também é possível ver no sagrado um modo de ser independente do observador. Na medida em que o sobrenatural aflora através do natural, não é mais o sentimento que cria o caráter sagrado, e sim o caráter sagrado, preexistente, que provoca o sentimento. Deste ponto de vista, não há solução de continuidade entre a manifestação da divindade através de uma pedra, de uma árvore, de um animal ou de um homem consagrados. Nesse caso, nem a pedra, nem a árvore, nem o animal, nem o homem são sagrados e sim aquilo que revelam: a hierofania faz que o objeto se torne outra coisa, embora permaneça o mesmo [...]. Um objeto ou uma pessoa não são ‘apenas’ aquilo que se vê; são sempre ‘sacramento’, sinal sensível de outra coisa; e, por isso mesmo, permitem o acesso ao sagrado e a comunhão com ele”13. Nada mais apropriado para encerrar este capítulo que as palavras de Bronislav Malinowski, o grande estudioso dos costumes indígenas das Ilhas Trobriand, na Melanésia. Procura mostrar o etnólogo que “a consciência mítica”, embora rejeitada no mundo moderno, ainda está viva e atuante nas civilizações denominadas primitivas: “O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, masuma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática”14. 1. Claro que a palavra mito tem múltiplos significados, mas, como diz Roland Barthes, o que se tenta é definir coisas, não palavras. 2. Mito se distingue de lenda, fábula, alegoria e parábola. Lenda é uma narrativa de cunho, as mais das vezes, edificante, composta para ser lida (provém do latim legenda, o que deve ser lido) ou narrada em público e que tem por alicerce o histórico, embora deformado. Fábula é uma pequena narrativa de caráter puramente imaginário, que visa a transmitir um ensinamento teórico ou moral. Parábola, na definição de Monique Augras, em A dimensão simbólica, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 15, “é um mito elaborado de maneira intencional”. Tem, antes do mais, um caráter didático. “Os evangelhos evidenciam o caráter didático da parábola, que tende a criar um simbolismo para explicar princípios religiosos”, consoante a mesma autora. Alegoria, etimologicamente dizer outra coisa, é uma ficção que representa um objeto para dar ideia de outro ou, mais profundamente, “um processo mental que consiste em simbolizar como ser divino, humano ou animal, uma ação ou uma qualidade”. 3. VAN DER LEEUW, G. L’homme primitif et la religion. Paris: Alcan, 1940, p. 131. 4. LEENHARDT, Maurice. Do Kamo. Paris: N.R.F., 1947, p. 247. 5. BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1970, p. 130. 6. JUNG, C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 6. [Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, O.S.B.]. 7. Veja-se, para maiores esclarecimentos, a obra de C.G. JUNG e Ch. KERÉNYI. Introduction à l’essence de la mythologie. Paris: Payot, 1953, p. 95ss. 8. GUSDORF, Georges. Op. cit., p. 24. 9. Ibid., p. 25. 10. LAGENEST, J.P. Barruel de. Elementos de sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 25. 11. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 19. [Tradução de Pola Civelli]. 12. ELIADE, Mircea. Citado por Georges GUSDORF. Op. cit., p. 26. 13. LAGENEST, J.P. Barruel de. Op. cit., p. 17s. 14. MALINOWSKI, Bronislav. Citado por Mircea ELIADE. Op. cit., p. 23. CAPÍTULO III A Grécia antes da Grécia e a chegada dos Indo-Europeus 1 Por uma questão de clareza, não se pode falar do mito grego sem antes traçar, embora esquematicamente, um esboço histórico do que era a Grécia antes da Grécia, isto é, antes da chegada dos IndoEuropeus ao território da Hélade. Vamos estampar, de início, como já o fizera Pierre Lévêque1, um quadro, um sistema cronológico, com datas arredondadas, sujeitas portanto a uma certa margem de erros. A finalidade dos dados cronológicos, que se seguem, é apenas de orientar o leitor e chamarlhe a atenção para o “estado religioso” da Hélade pré-helênica e ver até onde o antes influenciou o após no curso da mitologia grega. Neolítico I Neolítico II Bronze Antigo ou Heládico Antigo Primeiras invasões gregas (Jônios) na Grécia ~ 4500-3000 ~ 3000-2600 ~ 2600-1950 ~ 1950 Novas invasões gregas (Aqueus e Eólios?) ~ 1950-1580 ~ 1580 Bronze Recente ou Heládico Recente ou Período Micênico ~ 1580-1100 Bronze Médio ou Heládico Médio ~ 1200 Últimas invasões gregas (Dórios) Se os restos paleolíticos são muito escassos e de pouca importância, no Neolítico I o solo grego é coberto por uma série de “construções”, obra, ao que parece, de populações oriundas do Oriente Próximo asiático. A transição do Neolítico I para o Neolítico II é marcada, na Grécia, pela invasão de povos, cuja origem não se pode determinar com segurança. O sítio neolítico mais bem conhecido é Dimini, na Tessália, e que corresponde ao Neolítico II. Trata-se de uma acrópole, de uma cidade fortificada, fato raro para a época. O reduto central contém um mégaron, ou grande sala, o que revelaria uma organização monárquica. Trata-se, e é isto que importa, de uma civilização agrícola. O homem cuida dos rebanhos e a mulher se encarrega da agricultura, o que patenteia a crença de que a fecundidade feminina exerce uma grande e benéfica influência sobre a fertilidade das plantas. A divindade soberana do Neolítico II, na Grécia, é a Terra-Mãe, a Grande Mãe, cujas estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam deusas de formas volumosas e esteatopígicas. A função dessas divindades, hipóstases da TerraMãe, é fertilizar o solo e tornar fecundos os rebanhos e os seres humanos. 2 Na virada do Neolítico II para o Bronze Antigo ou Heládico Antigo, ~ 2600-1950, chegam à Grécia novos e numerosos invasores, provenientes da Anatólia, na Ásia Menor. Cotejando a civilização anterior com o progresso trazido pelos anatólios, o mínimo que se pode dizer é que se trata de uma grande civilização, cujo centro mais importante foi Lerna, na Argólida, cujos pântanos se tornariam famosos, sobretudo por causa de um dos Trabalhos de Héracles. Uma das contribuições mais sérias dessa civilização foi a linguística: a partir do Bronze Antigo ou Heládic1o Antigo, montes, rios e cidades gregas recebem nome2, o que permite acompanhar o desenvolvimento e a extensão da conquista anatólia, que se prolonga da Macedônia, passando pela Grécia continental, pelas Cíclades, e atingem a ilha de Creta, que também foi submetida pelos anatólios. O grande marco dessa civilização, no entanto, foi a introdução do bronze, início evidentemente de uma nova era. De outro lado, a existência comprovada de palácios fortificados denuncia uma sólida organização monárquica. Em se tratando de uma civilização agrícola, a divindade tutelar continua a ser a Grande Mãe, dispensadora da fertilidade e da fecundidade. As estatuetas, com formas também opulentas e esteatopígicas, adotam, por vezes, nas Cíclades, uma configuração estilizada de violino, o que, aliás, as tornou famosas. As tumbas são escavadas nas rochas ou se apresentam em forma de canastra. As numerosas oferendas nelas depositadas atestam a crença na sobrevivência da alma. 3 Nos fins do segundo milênio, entre ~ 2000-1950, ou seja, no apagar das luzes da Idade do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, a civilização anatólia da Grécia propriamente desapareceu, com a irrupção de novos invasores. Desta feita, eram os gregos3que pisavam, pela primeira vez, o solo da futura Grécia. Os gregos fazem parte de um vasto conjunto de povos designados com o nome convencional de Indo-Europeus. Estes, ao que parece, se localizavam, desde o quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso, sem jamais, todavia, terem formado uma unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma civilização material comum. Talvez tenha existido, isto sim, uma certa unidade linguística e uma unidade religiosa. Pois bem, essa frágil unidade, mal alicerçada num “aglomerado de povos”, rompeuse, lá pelo terceiro milênio, iniciando-se, então, uma série de migrações, que fragmentou os Indo-Europeus em vários grupos linguísticos, tomando uns a direção da Ásia (armênio, indo-iraniano, tocariano, hitita), permanecendo os demais na Europa (balto, eslavo, albanês, celta, itálico, grego, germânico). A partir dessa dispersão, cada grupo evoluiu independentemente e, como se tratava de povos nômades, os movimentos migratórios se fizeram no tempo e no espaço, durante séculos e até milênios, não só em relação aos diversos “grupos” entre si, mas também dentro de um mes-mo “grupo”. Assim, se as primeiras migrações indo-europeias (indo-iranianos, hititas, itálicos, gregos) estão séculos distantes das últimas (baltos, eslavos, germânicos...), dentro de um mesmo grupo as migrações se fizeram por etapas. Desse modo, o grupo itálico, quando atingiu a Itália, já estava fragmentado, “dialetado”, em latinos, oscos e umbros, distantes séculos uns dos outros, em relação à chegada a seu habitatcomum. Entre os helenos o fato ainda é mais flagrante, pois, como se há de ver, os gregos chegaram à Hélade em pelo menos quatro levas: jônios, aqueus, eólios e dórios e, exatamente como aconteceu com o itálico, com séculos de diferença entre um grupo e outro. Para se ter uma ideia, entre os jônios e os dórios medeia uma distância de cerca de oitocentos anos! Se não é possível reconstruir, mesmo hipoteticamente, o império indo-europeu e tampouco a língua primitiva indo-europeia, pode-se, contudo, estabelecer um sistema de correspondências entre as denominadas línguas indo-europeias, mormente, e é o que importa no momento, no que se refere ao vocabulário comum e, partindo deste, chegar a certas estruturas religiosas dessa civilização. O vocabulário comum mostra a estrutura patrilinear da família, o nomadismo, uma forte organização militar, sempre pronta para as conquistas e os saques. Igualmente se torna claro que os indoeuropeus conheciam bem e praticavam a agricultura; criavam rebanhos e conheciam o cavalo. Os termos mais comuns, consoante Meillet4, são, resumidamente, os que indicam: • Parentesco – pai, mãe, filho, filha, irmã; • grupo social – rei, tribo, aldeia, chefe da casa e da aldeia; • atividades humanas – lavrar, tecer, fiar, ir de carro, trocar, comprar, conduzir (= casar); • animais – boi, vaca, cordeiro, ovelha, bode, cabra, abelha, cavalo, égua, cão, serpente, vespa, mosca e produtos: leite, mel, lã, manteiga; • vegetais – álamo, faia, salgueiro, azinheira; • objetos – machadinha, roda, carro, jugo, cobre, ouro, prata; • principais partes do corpo; nomes distintos para os dez primeiros números; nomes das dezenas; a palavra cem, mas não mil. O vocabulário religioso é extremamente pobre. São pouquíssimos os nomes de deuses comuns a vários indo-europeus. Básico é o radical *deiwos, cujo sentido preciso, segundo Frisk, é alte Benennung des Himmels, quer dizer, “antiga denominação do céu”5, para designar “deus”, cujo sentido primeiro é luminoso, claro, brilhante, donde o latim deus, sânscrito devâh, iraniano div, antigo germânico tîvar. Este mesmo radical encontra-se no grande deus da luz, o “deus-pai” por excelência: grego Zeús, sânscrito Dyauh, latim Iou (de *dyew-) e com aposição de piter (pai), tem-se Iuppiter, “o pai do céu luminoso”, Júpiter, bem como o sânscrito Dyauh pitâ, grego Zeùs patér, cita Zeus-Papaios, isto é, Zeus Pai. Zeus é, portanto, o deus do alto, o soberano, “o criador”. Cosmogonia e paternidade, eis seus dois grandes atributos6. Além de Zeus, para ficar apenas no domínio grego, podem citar-se ainda “o deus solar” Hélios (Hélio), védico Sûrya, eslavo antigo Solnce, e o “deus-Céu”, grego Ouranós (Úrano), sânscrito Varuna, a abóbada celeste. De qualquer forma, como acentua Mircea Eliade, “os IndoEuropeus tinham elaborado uma teologia e uma mitologia específicas. Praticavam sacrifícios e conheciam o valor mágicoreligioso da palavra e do canto (*Kan). Possuíam concepções e rituais que lhes permitiam consagrar o espaço e ‘cosmizar’ os territórios em que se instalavam (essa encenação mítico-ritual é atestada na Índia antiga, em Roma, e entre os celtas), as quais lhes permitiam, de mais a mais, renovar periodicamente o mundo (pelo combate ritual entre dois grupos de celebrantes, rito de que subsistem traços na Índia e no Irã)”7. Eliade conclui, mostrando que a grande distância que separa as primeiras migrações indo-europeias das últimas, como já assinalamos, impossibilita a identificação dos elementos comuns no vocabulário, na teologia e na mitologia da época histórica. Essas longas e lentas migrações, por outro lado, face ao contato com outras culturas e mercê dos empréstimos, sincretismos e aculturação, trouxeram profundas alterações ao acervo religioso indo-europeu. E se muito pouco nos chegou de autêntico dessa religião, esse pouco foi brilhantemente enriquecido, sobretudo a partir de 1934, pelas obras excepcionais de Georges Dumézil. Partindo da mitologia comparada, mas sem os exageros e erros de Max Müller e sua escola, apoiado em sólida documentação, Dumézil fez que se compreendesse melhor toda a riqueza acerca do que se possui do mito e da religião de nossos longínquos antepassados. Uma de suas conclusões maiores foi a descoberta da estrutura trifuncional da sociedade e da ideologia dos indo-europeus, estrutura essa fundamentada na tríplice função religiosa dos deuses8. Não há dúvida de que é entre os indo-iranianos, escandinavos e romanos que a “trifunção” está mais acentuada, mas entre os gregos, ao menos da época histórica, a mesma estrutura pode ser observada, ao menos como hipótese: Indo-Iranianos Escandinavos Romanos Gregos Soberania (Sacerdotes) Força (Guerreiros) Fecundidade (Campônios) – Varuna e Mitra Indra Nasátya – Odin e Tyr Tor Freyr – Iuppiter Mars Quirinus – Zeús Ares Deméter No que tange à Hélade, esta divisão há de perdurar, religiosamente, até o fim. Eis aí, em linhas gerais, o que foi a Grécia antes da Grécia e a primeira contribuição religiosa dos indo-europeus gregos à sua pátria, nova e definitiva. Voltemos, agora, aos invasores indo-europeus e ao destino da mitologia grega. 1. LÉVÊQUE, Pierre.La aventura griega. Barcelona: Labor, 1968, p. 6. Obs.: ~ =Aproximadamente. 2. Os nomes com sufixo-nthos, como Kórinthos (Corinto), Tíryns, Tírynthos (Tirinto), Hyákinthos (Jacinto), ou nomes em-ss,-tt, reduzidos ou não a-s,-t, como Knosós (Cnossos), Nárkissos (Narciso), muito comuns, quer na toponímia, quer na antroponímia grega, são, provavelmente, de origem anatólia, o que, do ponto de vista religioso, é importante para se estabelecer a procedência de determinados mitos. 3. Grego é um adjetivo (graikós, é, ón) e, como substantivo, hoi Graikoí, os gregos, a denominação somente apareceu tardiamente, após Aristóteles, substituindo, por vezes, a Héllenes, os helenos. A extensão do termo grego e sua aplicação a todos os helenos se deveu, ao que parece, aos romanos. Na realidade, os gregos chamavam-se mínios, aqueus e, depois, em definitivo, helenos. 4. MEILLET, Antoine. Aperçu d’une histoire de la langue grecque. Paris: Hachette, 1935, p. 3ss. 5. FRISK, Hjalmar. Griechisches Etymologisches Wörterbuch. Heidelberg: Carl Winter, 1958, verbete Zeús. 6. Deus em grego se diz theós, mas este, segundo H. FRISK, Op. cit., verbete theós, significa espírito, alma: a ideia de theós como deus é recente e teria se desenvolvido a partir da divinização dos mortos ou talvez o vocábulo signifique, a princípio, cipo, estela. 7. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, tomo I, vol. II, p. 15. [Tradução de Roberto Cortes de Lacerda]. 8. DUMÉZIL, Georges. Ouranós – Varuna, étude de mythologie comparée indo-européenne. Paris: A. Maisonneuve, 1934, passim; e Jupiter Mars Quirinus, essai sur la conception indoeuropéenne de la société et sur les origines de Rome. Paris: Gallimard, 1941. CAPÍTULO IV Dos Jônios à Ilha de Creta 1 Ao apagar das luzes do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, por volta de ~ 2600-1950, os primeiros gregos, os jônios, atingiram a Hélade, através dos Bálcãs, e ocuparam violentamente a Grécia inteira, levando de vencida os anatólios, que foram, ao que tudo indica, escravizados. Guerreiros e com sólida organização social do tipo militar, obedeciam em tudo a seus chefes. Instalavam-se em palácios em acrópole, fortificados com grandes muralhas, portas de entrada estreita, reforçada com torres, como se pôde observar nas escavações efetuadas em Egina, Tirinto e Micenas pré-aqueias. Não se trata ainda de palácios com o conforto e a beleza de Cnossos, em Creta, nem tampouco das futuras e gigantescas fortalezas aqueias da Grécia continental, mas, mesmo assim, os palácios jônicos atestam o caráter belicoso desses indo-europeus. Mercê da forte organização social desses primeiros gregos, o povo, ao que parece, “tinha uma vida igualitária”, com a terra dividida em glebas equivalentes entre os vários chefes das famílias de que se compunha cada uma das quatro tribos em que já se dividiam os jônios. Muitos arqueólogos e historiadores opinam que os primeiros indoeuropeus gregos, antes de penetrarem na Hélade, teriam passado primeiro pela “civilizada” Ásia Menor, o que explicaria sua refinada técnica em cerâmica, a chamada cerâmica mínia, já anteriormente bem conhecida naquela região, inclusive na denominada Troia VI dos arqueólogos. Se, em relação ao Bronze Antigo ou Heládico Antigo, ~ 2600-1950, as contribuições jônicas, no que tange à agricultura, foram somenos, o mesmo não se pode afirmar, como já se enfatizou, com referência à cerâmica, com os estilizados vasos mínios, de cor cinza e, em seguida, amarelos, encontrados no Peloponeso e na Beócia. A metalurgia não conheceu grandes progressos e seguiu o caminho do bronze, já mencionado na fase anterior. Em compensação surge o cavalo, há longo tempo conhecido dos indo-europeus, o que representa um marco importante para a época. Em matéria de religião, o primeiro ponto a ser observado é o deslocamento do processo de inumação, das necrópoles exteriores para dentro dos núcleos urbanos, mas as escassas oferendas encontradas nos túmulos mostram um enfraquecimento na crença em relação à imortalidade da alma ou ao menos no que se refere ao intercâmbio entre vivos e mortos. Santuários construídos em acrópole, como o de Egina, evidenciam a implantação da religião patrilinear indo-europeia na Grécia, o que explica o desaparecimento quase total das estatuetas e do culto da Grande Mãe nessa época, pelo menos nos núcleos “urbanos”. Em síntese, a Hélade dos jônios propriamente submergiu na barbárie e fechou-se ao comércio com o Mediterrâneo. É bem verdade que no Heládico Antigo já se encontram barcos jônicos na ilha de Melos, nas Cíclades e em contato com os cretenses, mas esse intercâmbio é esporádico e nem sempre amistoso. Representa, no entanto, algo importante: o grande batismo dos pastores nômades nas águas de Posídon, embora ainda faltasse muito para que o mar se tornasse o eterno namorado da Hélade. 2 Da barbárie jônica, que sufocara os anatólios da Grécia, passamos à ilha de Creta, onde, por sinal, luzia intensamente essa mesma civilização anatólia, que até o momento mantivera contatos mais ou menos pacíficos com os povos da Grécia continental. Antes de se abordar, se bem que sumariamente, a história e o destino da ilha de Minos, impõe-se uma pergunta: qual é a origem dos cretenses? Há os que simplesmente escamoteiam o problema, ignorando-lhes o passado e iniciando a história da Ilha pelo Minoico Antigo, isto é, a partir de ~ 2800, quando, possivelmente, lá chegaram os anatólios. Outros, todavia, remontam além do Minoico Antigo e, partindo da linguística, procuram demonstrar que a língua cretense, tradicionalmente denominada pelásgico, não representa o substrato mediterrâneo anterior à chegada dos Indo-Europeus. Isolando do vocabulário grego os raros vestígios do pelásgico, seria possível reconstruir um “substrato cretense”, enriquecido com inúmeros topônimos e, através desse substrato, provar que o pelásgico teria certo parentesco com a língua indo-europeia, principalmente com os dialetos luvita e hitita. Neste caso, os cretenses seriam proto-indoeuropeus, aparentados portanto com os gregos, mas que, anteriormente a estes, se teriam separado do tronco comum indo- europeu. Hipótese sedutora, mas hipótese apenas. Os anatólios teriam vindo bem depois... Outra observação é que muito do pouco que se conhece de Creta, “este livro de imagens sem texto”, deve-se ao labor, às fadigas e à competência do verdadeiro descobridor de Cnossos, o sábio Sir Arthur Evans (1851-1941). Se o dinâmico investigador de Troia e Micenas, Heinrich Schliemann, por causa da instabilidade política de Creta, ainda submetida à dominação turca, não pôde prosseguir suas escavações, iniciadas em 1886, Evans foi mais feliz: desde 1894 já o encontramos na ilha de Ariadne, onde permaneceu quase até o fim da vida. A publicação de sua obra monumental sobre Cnossos ainda é o ponto de partida para estudos sobre Creta e o Palácio do rei Minos1. A história de Creta, a partir de aproximadamente 2800, costuma ser dividida em três grandes fases: Minoico Antigo Minoico Médio Minoico Recente ~ 2800-2100; ~ 2100-1580; ~ 1580-1100. Por volta de 2800, povos anatólios ocuparam-na. Terra fértil e rica, aberta para o Mediterrâneo e suas ilhas, para o continente grego, para o Egito e para o Oriente, sem ter sofrido as invasões que ensanguentaram a Hélade, teve um desenvolvimento político, econômico, social e religioso muito mais rápido do que o verificado no continente helênico. Uma longa paz permitiu que ali florescesse uma civilização próspera e opulenta, chamada indiferentemente minoica, egeia, mediterrânea ou cretense, centrada nos palácios de Cnossos, Festo e Mália. Lá, por volta de 1700, estes três soberbos monumentos foram destruídos ou por um terremoto ou, como opina a maioria, pelos gregos jônios, que lá teriam aportado numa vasta expedição de pilhagem. Com a reconstrução dos palácios, entre 1700-1400, começa o grande esplendor da civilização cretense sob a liderança política, econômica e cultural de Cnossos, que se tornara, sob o rei Minos (talvez um nome dinasta, como Faraó Ptolomeu, César), o centro de uma singular potência monárquica. Já conhecedores de um determinado tipo de hieróglifos, acabaram por transformá-los numa escrita silábica mais estilizada a que Arthur Evans denominou Linear A, ainda infelizmente não decifrada, e de que derivará mais tarde, por iniciativa dos gregos aqueus, como se verá, a Linear B. Império marítimo, suas naus dominaram o Egeu e as ilhas vizinhas. Uma sólida agricultura, uma pecuária muito rica e sobretudo uma indústria muito avançada para a época fizeram de Creta a mais adiantada civilização do Ocidente, entre 1580-1450. O comércio minoico, ativo e corajoso, transpôs as fronteiras das ilhas do Egeu, muitas das quais já estavam sob o domínio de Cnossos, levando os produtos de Creta e sua arte até a Ásia Menor, Síria, Egito e Grécia. A extraordinária prosperidade da ilha de Minos pode também ser observada em sua arte apurada, com magníficos afrescos, relevos, estatuetas, pedras preciosas, sinetes de ouro, cerâmica decorada com motivos vegetais e animais; os palácios gigantescos, com belas colunas, afunilando para a base e com engenhosas soluções para a iluminação interior, os cognominados “poços de luz” e já com um rudimentar, mas eficiente sistema de esgotos. 3 De uma civilização tão requintada, com um sentido de beleza tão agudo, era de se esperar um aprimorado sistema religioso. Na realidade, esse “requinte” no trato com o divino deve ter existido, mas a carência de documentos “decifrados” (como é o caso dos hieróglifos mais antigos e da Linear A) e de uma teogonia faz que o estudo da religião cretense somente possa ser feito indiretamente, através dos descobrimentos arqueológicos, da pintura, da escultura (embora esta seja bem mais pobre), da cerâmica e sobretudo da influência exercida sobre a religião grega posterior. É uma religião que se estuda com os olhos, dada a impossibilidade de se “ler nas almas”. “Um belo livro de imagens sem texto”, para repetir a feliz expressão de Charles Picard. A decifração da Linear B, em 1952, pelo jovem arquiteto inglês Michael Ventris, prematura e tragicamente desaparecido, assessorado pelo filólogo John Chadwick, não trouxe quase nada de novo acerca da religião da ilha de Creta2. Assim, só se pode ter da mesma uma visão arqueológica e indireta e esta através da religião grega, como já se assinalou. Para se estabelecer uma certa ordem na desordem com que o assunto costuma ser enfocado pelos especialistas e na multiplicidade de hipóteses que cada um deles (Arthur Evans, Charles Picard, G. Glotz, P. Faure, M.P. Nilsson, R. Pettazzoni, Mircea Eliade, Jean Tulard, Pierre Lévêque, J. Chadwick... ) se acha no direito de emitir, o que se deve ao modus como a religião cretense chegou até nós, vamos dividir o assunto em: a) locais do culto e as cerimônias; b) o culto dos mortos; c) as sacerdotisas e seus acólitos; d) a Grande Mãe e suas hipóstases; e) o grande mito cretense. As escavações arqueológicas permitem detectar os locais de culto na ilha de Creta através de grande quantidade de oferendas neles depositadas, como armas, esculturas, joias e do mobiliário religioso: mesas para libações, tripés, vasos sagrados. Inicialmente, são as grutas e cavernas que servem de “santuário” e de cemitério. Diga-se, de caminho, que vários mitos associados a esses primitivos locais de culto integraram-se mais tarde à religião grega, como a gruta de Amniso, porto bem próximo de Cnossos, onde estava, consoante Homero, Odiss., XIX, 188, a caverna de Ilítia, deusa pré-helênica dos partos e, mais tarde, hipóstase de Hera. No monte Dicta havia uma gruta célebre, onde, para fugir a Crono, que devorava os filhos ao nascerem, Reia deu à luz o grande Zeus. A partir do Minoico Médio, ~ 2100-1580, já se encontram modestas instalações para o culto, localizadas nos cumes das montanhas: tratase de pequenos recintos em torno de uma árvore, rochedo ou fonte, como atestam vestígios encontrados nos montes Palecastro e Iucta, bem como em Gúrnia e Mália. Ainda nesse período surgem as “capelas” no interior das habitações. No palácio de Festo havia um recinto com três peças: uma mesa para oferendas, uma fossa para sacrifícios e um banco sobre o qual se colocavam os objetos de culto. Um pouco mais tarde, ~ 1700-1580, esses recintos sagrados tiveram um grande impulso, como se pode ver pelo palácio de Cnossos: salas abertas na direção leste, dispositivo tripartite, como em Festo, colunas sagradas, ornamentadas com a lábrys e com os cornos de consagração. Em todas as residências reais há um dispositivo análogo com santuário e câmara de purificação. De qualquer forma, a ilha de Creta não conheceu templos. 4 Antes de abordarmos as cerimônias do culto, uma palavra sobre determinados objetos sagrados acima mencionados. As grutas e cavernas desempenhavam um papel religioso muito importante, não apenas na religião cretense, mas em todas as culturas primitivas. A descida a uma caverna, gruta ou labirinto simboliza a morte ritual, do tipo iniciático. Neste e em outros ritos da mesma espécie, passava-se por “uma série de experiências” que levavam o indivíduo aos começos do mundo e às origens do ser, donde “o saber iniciático é o saber das origens”. Esta catábase é a materialização do regressus ad uterum, isto é, do retorno ao útero materno, donde se emerge de tal maneira transformado, que se troca até mesmo de nome. O iniciado torna-se outro. Na tradição iniciática grega, a gruta é o mundo, este mundo, como o concebia Platão (República, 7,514 ab): uma caverna subterrânea, onde o ser humano está agrilhoado pelas pernas e pelo pescoço, sem possibilidade, até mesmo, de olhar para trás. A luz indireta, que lá penetra, provém do sol invisível: este, no entanto, indica o caminho que a psiqué deve seguir, para reencontrar o bem e a verdade. Todos os espectros, que lá se movem, representam este mundo, esta caverna de aparências de que a alma deverá se libertar, para poder recontemplar o mundo das Ideias, seu mundo de origem. O neoplatônico Plotino (Enéadas, 4,8,1) compreendeu perfeitamente o sentido simbólico da caverna platônica, quando afirmou que esta para o autor do Fédon bem como o antro para Empédocles traduziam o nosso mundo, onde a caminhada para a inteligência, isto é, para a verdade, só há de ser possível quando a alma quebrar os grilhões do corpo e libertar-se da gruta profunda. À ideia de caverna está associado o labirinto. Embora as escavações arqueológicas em Cnossos não revelem nenhum labirinto, este figura nas moedas cretenses e é mencionado em relação a outros locais da Ilha. Ao que parece, “os labirintos” em Creta foram reais: trata-se, provavelmente, de cavernas profundas artificialmente abertas pelo próprio homem, junto ou entre pedreiras para fins iniciáticos3. O famoso labirinto de Cnossos (labýrinthos, “construção cheia de sinuosidades e meandros”) designaria o próprio palácio. Neste caso, fazendo-se uma aproximação etimológica, mesmo de cunho popular, entre labýrinthos, labirinto, e lábrys, machadinha de dois gumes, o primeiro seria “o palácio da bipene”, cujo simbolismo religioso será explicado depois. Numa visão simbólica, o labirinto, como as grutas e cavernas, locais de iniciação, tem sido comparado a um mandala, que tem realmente, por vezes, um aspecto labiríntico. Trata-se, pois, como querem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “de uma figuração de provas iniciáticas discriminatórias, que antecedem à marcha para o centro oculto”4. Assim, em termos religiosos cretenses, o Labirinto seria o útero; Teseu, o feto; o fio de Ariadne, o cordão umbilical, que permite a saída para a luz. Acerca da construção de Cnossos e dos mitos que o envolvem há de se falar mais adiante. Eram múltiplas as cerimônias na religião cretense. Segundo Diodoro Sículo, “os cretenses afirmavam que as honras outorgadas aos deuses, os sacrifícios e a iniciação nos mistérios eram invenções suas e que os outros povos os haviam imitado”5. Se o todo da pretensão cretense não é verídico, fica ao menos atestada a importância concedida pelos minoicos às cerimônias do culto. Estas se iniciavam pelas purificações, que se reduziam, em princípio, a uma simples aspersão das mãos, exceto nas cerimônias solenes, quando se descia às salas de lustração, preparadas para essa finalidade. Os sacrifícios sangrentos de bois, cabras, ovelhas e porcos se faziam ao ar livre. O touro possuía uma peculiaridade: normalmente era sacrificado apenas em efígie, mercê de sua alta sacralidade. Num sarcófago dos séculos ~ XIII-XII, exumado em Háguia Tríada, vê-se um touro preso a uma mesa, enquanto seu sangue escorre num vaso. O sacrifício sangrento era acompanhado de oferendas de frutos e grãos, que representavam as primícias das colheitas, depositadas em vasos denominados kérnê, isto é, vasos de cerâmica com numerosos compartimentos. As escavações mostraram que turíbulos para fumigações e recipientes vários para brasas, sobre os quais se colocavam substâncias aromáticas e especiais, tinham certamente por finalidade provocar o êxtase e o entusiasmo nos fiéis. Os jogos eram parte intrínseca do culto, como as célebres touradas sagradas, nas quais o animal não era sacrificado. É muito provável que as acrobacias, que se realizavam sobre o mesmo por jovens de ambos os sexos, fizessem parte de uma dokimasía, quer dizer, de uma prova iniciática, uma vez que, como demonstraram Arthur Evans e Charles Picard, pular sobre um touro na corrida é um rito iniciático por excelência. “Muito provavelmente, como pensa Mircea Eliade, a lenda dos companheiros de Teseu, sete rapazes e sete moças, ‘oferecidos’ ao Minotauro, reflete a lembrança de uma prova iniciática desse gênero. Infelizmente ignoramos a mitologia do touro divino e o seu papel no culto. É provável que o objeto cultual especificamente cretense, denominado ‘chifre de consagração’, represente a estilização de um frontal de touro. A sua onipresença confirma a importância de sua função religiosa: os chifres serviam para consagrar os objetos colocados no interior”6, a saber, no interior desses mesmos cornos, e talvez ainda servissem de proteção mágica ao Palácio de Cnossos. As touradas atuais, diga-se de passagem, sobretudo as espanholas, em que se mata e se devora o touro, simbolizariam uma comunhão com o animal, uma aquisição de seu mana, de sua enérgueia, já que o touro, seja o Minotauro, seja o feroz Rudra do Rig Veda, é portador de um sêmen abundante que fertiliza abundantemente a terra. Ao culto em favor dos vivos estava indissoluvelmente ligado o culto em benefício dos mortos. Estes eram inumados e não cremados. Os cadáveres eram introduzidos pelo alto em salas mortuárias profundas, providas de oferendas e de objetos da vida comum: indumentárias, armas, talismãs, vasos e até archotes, o que mostra que para os minoicos a vida no além continuava muito semelhante àquela que tiveram neste mundo. As oferendas eram renovadas e até mesmo sacrifícios eram oferecidos aos mortos, sem que se possa afirmar com certeza que estes fossem divinizados. É bem verdade que o túmulo do rei-sacerdote de Cnossos tinha um formato especial: talhado na rocha, possuía uma cripta de pilares, com o teto pintado de azul, simbolizando a abóbada celeste; na parte de cima se havia erguido uma capela muito parecida com os santuários da Grande Mãe, mas isto não prova a deificação do morto. É mais provável que o santuário traduzisse apenas o fato de que o culto funerário ao rei falecido se fizesse sob os auspícios da Deusa-Mãe. A todos esses cultos presidiam sacerdotisas, hipóstases da Grande Mãe e não sacerdotes, o que parece normal numa sociedade essencialmente matrilinear, como já demonstrara Bachofen7, e que fizera da mulher “divinizada” a maior das divindades de seu Panteão. Tal preeminência se encontra também em certos cultos anatólios, principalmente em Éfeso, em torno de Ártemis. As sacerdotisas são facilmente reconhecíveis pela coloração branca do rosto e pela indumentária: um bolero aberto no peito combinado com uma saia comprida, confeccionada de pele, pintada e guarnecida com uma cauda de animal, ou um vestido longo, normalmente em forma de sino; pelo uso da tiara e pelo fato de carregarem a bipene. O elemento masculino apareceu tardiamente no sacerdócio e, assim mesmo, como réplica da junção de um deus à Grande Mãe. Com exceção do rei, que é o grande sacerdote do Touro, seu papel é apenas de assistente e acólito das sacerdotisas. Nada se sabe de concreto a respeito do recrutamento desses dignitários, de sua posição social e reputação moral. A única informação certa é que eles eram muito respeitados na Grécia arcaica e que os gregos recorriam constantemente à cultura e à ciência dos mesmos. 5 Se pouco se conhece do culto cretense, menos ainda se sabe acerca de seu Panteão. Uma coisa, todavia, é certa: a religião cretense estava centrada no feminino, representado pela Grande Mãe, cujas hipóstases principais, em Creta, foram Reia e a Deusa das Serpentes. Claro que se poderiam multiplicar os nomes, as projeções e as hipóstases da Grande Mãe em todas as culturas8, mas esta permaneceu sempre e invariavelmente como algo acima e além das apelações: mãe dos deuses, mãe dos homens e de tudo quanto existe na terra, a Grande Mãe é um arquétipo. “O traço mais original da religião cretense, escreve Jean Tulard, parece ter sido sua predileção pelos símbolos. Tal simbolismo atribui um valor emblemático a todo material sagrado e, como o símbolo é suficiente para criar a ambiência divina, não se torna necessário que o deus seja visível. Esse simbolismo de um caráter particular, no entanto, se casa perfeitamente com um incontestável antropomorfismo”9. Desse modo, na expressão de Charles Picard, a religião cretense duplicou as representações icônicas de seus deuses com o paralelismo dos símbolos. É assim, exatamente, que se apresenta a Grande Mãe minoica. Deusa da natureza, reina sobre o mundo animal e vegetal. Sentada junto à árvore da vida, está normalmente acompanhada de animais, como serpentes, leões ou de determinadas aves. Armada, e de capacete, simboliza a deusa da guerra, representação da vida e da morte. Para reinar sobre a terra, desce do céu sob a forma de pomba, símbolo da harmonia, da paz e do amor. Domina o céu, a terra, o mar e os infernos, surgindo, assim, sob as formas de pomba, árvore, âncora e serpente. E uma coisa é certa: a primazia absoluta das divindades femininas na ilha de Creta atesta a soberania e a amplitude do culto da Grande Mãe. Em geral, essas divindades femininas se apresentam sob a forma de ídolos do tipo esteatopígico em terracota ou bronze inicialmente de cócoras e depois em pé, com os braços abertos. As formas exageradas, com seios proeminentes, flancos largos, traseiro exuberante e umbigo enorme são a própria imagem da fecundidade. Pouco importa, portanto, que deusas tipicamente cretenses, como Reia, Hera, Ilítia, Perséfone, Britomártis, meras transposições da Grande Mãe, tenham sido assimiladas pelos gregos, com funções, por vezes, diferentes das que exerciam em Creta, porque um traço comum sempre as prenderam ao velho tema minoico: a fecundidade. Hera tornou-se a “mãe dos deuses”, mas teve um culto especial, como Grande Mãe, na Lacônia, Arcádia e Beócia. Ilítia, sempre ligada a Hera, tornou-se a deusa dos partos. Perséfone recebeu mãe grega: Deméter, deusa da vegetação. Britomártis, “a doce virgem”, fez jus a um pequeno, mas elucidativo mito cretense: perseguida durante nove meses pelo rei Minos, acabou lançando-se ao mar, onde foi salva pelas redes dos pescadores, recebendo, por isso mesmo, o epíteto de Dictnia, “a caçadora com redes”. Assimilada a Ártemis, tornou-se, como esta, deusa da caça e deusa-Lua, mãe noturna da vegetação. A grande Reia converteu-se em esposa de Crono. Mesmo determinados “objetos cultuais”, de que ainda não se falou, como a pedra sagrada, o pilar, o escudo bilobado, a árvore e certos animais sagrados, como otouro, aserpente, oleãoe determinadas aves, considerados por alguns simples fetichismo ou zoolatria, devem ser, na verdade, interpretados como outras tantas representações das divindades minoicas e, particularmente, da Grande Mãe. Os bétilos, por exemplo, caídos do céu, os estalactites e estalagmites, encontrados nas grutas, são símbolos da presença divina em todas as culturas, como o Bet-’el, o Betel (Casa de Deus), de Jacó; a pedra negra de Cibele e aquela encaixada na Caaba, tornandose, portanto, a pedra o substituto do divino. O pilar simboliza, de um lado, o poder estabilizador das divindades cretenses, susceptível de substituir a forma humana dos deuses e, de outro, a relação entre os diversos níveis do universo e o canal por onde circula a energia cósmica, constituindo-se num centro irradiador dessa mesma energia. O escudo bilobado, que figura, as mais das vezes, ao lado da bipene, é a arma passiva, defensiva e protetora, como a Grande Mãe. A árvore tem uma importância muito grande: traduz a própria deusa da vegetação, já que representa a vida em perpétua evolução. O touro é o mais privilegiado animal sagrado de Creta: símbolo da força genésica, confundiu-se mais tarde com Zeus, que, sob a forma de touro, raptou Europa, e também com o monstruoso Minotauro. A serpente é o animal ctônio por excelência: entre suas múltiplas significações e símbolos, destaquemos, por agora, ser ela uma ponte entre o mundo de baixo, ctônio, e o mundo de cima, uma guardiã das sementes, projeção da Terra-mãe. O leão é a encarnação do poder, da sabedoria e da justiça, e retrata, de certa forma, o rei Minos, cujas características e virtudes se mencionarão um pouco mais adiante. As aves possuem também papel relevante, seja como símbolos das hierofanias, isto é, das aparições divinas, seja como “acompanhantes” das deusas, destacando-se a pomba, como já se mencionou. A existência de deuses do sexo masculino na civilização minoica está mais do que comprovada. O culto ao escudo bilobado, a importância dos ritos de fecundidade, das hierogamias, do touro e mesmo do galo mostram claramente a existência de um princípio masculino em Creta, embora se tenha de admitir que “esses deuses” eram tão somente divindades associadas à Grande Mãe, como o deus- galo Velcano, sem lhe terem jamais ameaçado o poder e a soberania. Trata-se, na realidade, de filhos ou amantes seus. Todo esse feminino cretense reflete talvez, como quer Bachofen10, uma primitiva e longínqua matrilinhagem, que se apoia na crença fundamental que une a mulher às potências geradoras da vida. Não se quer dizer com isto que a mulher tenha sido o “cabeça do casal” na célula familiar e que tenha havido em Creta uma ginecocracia, stricto sensu. Minos é o rei e a história da civilização minoica não nos revela figura alguma feminina análoga à rainhamãe dos Hititas. Na realidade, nada prova, até o momento, que a cretense exercesse efetivamente um papel político. Sua preponderância foi social e religiosa. Longe de estar enclausurada no gineceu, a mulher participa de todas as atividades da “pólis”: trabalha, caça, é toureira, diverte-se, ocupa o lugar de honra nos espetáculos públicos, aliás maravilhosamente bem vestida, enfim tem e exerce direitos iguais aos dos homens... Religiosamente, a supremacia da mulher cretense é inegável e óbvia; ela é a sacerdotisa: os sacerdotes surgiram mais tarde e apenas como acólitos. Afinal, a augusta divindade de Creta é a Grande Mãe... Não foi por ironia que Plutarco afirmou que os cretenses chamavam a seu país não de pátria (de patér, pai), mas de mátria (de máter, mãe). Na ilha de Minos a mulher não governava, mas reinava. Os gregos, que tanta influência tiveram da civilização minoica, esqueceram-se de herdar-lhe a dignidade da mulher! 6 O grande mitologema cretense do rei Minos está indissoluvelmente ligado ao palácio de Cnossos e a seu labirinto, bem como ao arquiteto Dédalo, ao Minotauro e ao mito de Teseu e Ariadne. Se, do ponto de vista histórico, Minos foi um nome dinasta, que governou Creta, ao menos como rei suserano de Cnossos, miticamente a coisa é bem diversa. Filho de Zeus e Europa (que Zeus raptara sob a forma de Touro) ou do rei cretense Astérion e da mesma Europa, Minos tinha dois irmãos, Sarpédon e Radamanto, com os quais disputou o poder sobre Creta, eco evidentemente de lutas reais pela supremacia de Cnossos sobre Festo e Mália, dois outros grandes centros políticos e econômicos da Ilha. Minos alegou que, de direito, Creta lhe pertencia por vontade dos deuses e, para prová-lo, afirmou que estes lhe concederiam o que bem desejasse. Um dia, quando sacrificava a Posídon, solicitou ao deus que fizesse sair um touro do mar, prometendo que lhe sacrificaria, em seguida, o animal. O deus atendeu-lhe o pedido, o que valeu ao rei o poder, sem mais contestação por parte de Sarpédon e Radamanto. Minos, no entanto, dada a beleza extraordinária da rês e desejando conservarlhe a raça, enviou-a para junto de seu rebanho, não cumprindo o prometido a Posídon. O deus, irritado, enfureceu o animal, o mesmo que Héracles matou mais tarde (ou foi Teseu?) a pedido do próprio Minos ou por ordem de Euristeu. A ira divina, todavia, não parou aí, como se verá. Minos se casou com Pasífae, filha do deus Hélio, o Sol, da qual teve vários filhos, entre os quais se destacam Glauco, Androgeu, Fedra e Ariadne. Para vingar-se mais ainda do rei perjuro, Posídon fez que a esposa de Minos concebesse uma paixão fatal e irresistível pelo touro. Sem saber como entregar-se ao animal, Pasífae recorreu às artes de Dédalo, que fabricou uma novilha de bronze tão perfeita, que conseguiu enganar o animal. A rainha colocou-se dentro do simulacro e concebeu do touro um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro. Esse Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e foi o mais famoso artista universal, arquiteto, escultor e inventor consumado. É a ele que se atribuíam as mais notáveis obras de arte da época arcaica, mesmo aquelas de caráter mítico, como as estátuas animadas de que fala Platão no Mênon. Mestre de seu sobrinho Talos, começou a invejar-lhe o talento e no dia em que este, inspirando-se na queixada de uma serpente, criou a serra, Dédalo o lançou do alto da Acrópole. A morte do jovem artista provocou o exílio do tio na ilha de Creta. Acolhido por Minos, tornou-se o arquiteto oficial do rei e, a pedido deste, construiu o célebre Labirinto, o grandioso palácio de Cnossos, com um emaranhado tal de quartos, salas e corredores, que somente Dédalo seria capaz, lá entrando, de encontrar o caminho de volta. Pois bem, foi nesse labirinto que Minos colocou o horrendo Minotauro, que era, por sinal, alimentado com carne humana. Ora, se o rei já estava profundamente agastado com seu arquiteto, por haver construído o simulacro da novilha, estratagema através do qual sua mulher fora possuída pelo Touro, ficou colérico ao saber que Dédalo havia também planejado, com Ariadne, a libertação de Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas. É que, com a morte de Androgeu, filho de Minos, morte essa atribuída indiretamente a Egeu, que, invejoso das vitórias do jovem cretense nos jogos por aquele mandados celebrar em Atenas, enviara o atleta para combater o Touro de Maratona, onde perecera, eclodiu uma guerra longa e penosa entre Creta e Atenas. Como a luta se prolongasse e uma peste (pedido de Minos a Zeus) assolasse a cidade, Minos concordou em retirar-se, desde que, de nove em nove anos, lhe fossem enviados sete rapazes e sete moças, que seriam lançados no Labirinto, para servirem de pasto ao Minotauro. Teseu se prontificou a seguir para Creta com as outras treze vítimas, porque, sendo já a terceira vez em que se ia pagar o terrível tributo ao rei de Creta, os atenienses começavam a irritar-se contra seu rei. Lá chegando, foi instruído por Ariadne, que por ele se apaixonara, como se aproximar do monstro e feri-lo. Deu-lhe ainda a jovem princesa, a conselho de Dédalo, um fio condutor, para que, após a vitória, pudesse sair da formidável teia de caminhos tortuosos de que era constituído o Labirinto. Livre deste e do Minotauro, Teseu fugiu com seus companheiros, levando consigo Ariadne, cujo destino será estudado, quando se tratar do mito de Dioniso e sobretudo do mito dos heróis. Louco de ódio pelo acontecido, Minos descarregou sua ira sobre Dédalo e o prendeu no Labirinto com o filho Ícaro, que tivera de uma escrava do palácio, chamada Náucrates. Dédalo, todavia, facilmente encontrou o caminho da saída e, tendo engenhosamente fabricado para si e para o filho dois pares de asas de penas, presas aos ombros com cera, voou pelo vasto céu, em companhiade Ícaro, a quem recomendara que não voasse muito alto, porque o sol derreteria a cera, nem muito baixo, porque a umidade tornaria as penas assaz pesadas. O menino, no entanto, não resistindo ao impulso de se aproximar do céu, subiu demasiadamente. Ao chegar perto do sol, a cera fundiu-se, destacaram-se as penas e ele caiu no mar Egeu, que, daí por diante, passou a chamar-se Mar de Ícaro. Este episódio tão belo foi narrado vibrante e poeticamente pelo grande vate latino Públio Ovídio Nasão (43 a.C.-18 d.C.) em suas Metamorfoses, 8,183-235. Dédalo chegou são e salvo a Cumas, cidade grega do sul da Itália. Perseguido por Minos, fugiu para a Sicília, onde o rei Cócalo o acolheu. O rei de Creta, porém, foi-lhe ao encalço. Pressionado, Cócalo prometeu entregar-lhe o engenhoso arquiteto, mas, secretamente, encarregou suas filhas de matarem o poderoso Minos, durante o banho, com água fervendo, ou, segundo uma variante, Cócalo substituiu a água do banho por pez fervente, talvez por instigação do próprio Dédalo, que havia imaginado um sistema de tubos, em que a água era repentinamente substituída por uma substância incandescente. Foi este, miticamente, o fim trágico do grande rei de Creta. A interpretação dessa cadeia de mitos, já bastante enriquecidos pelo sincretismo creto-micênico, não parece muito difícil. Minos é “um rei sacerdote”, para usar da expressão de Arthur Evans, ou seja, é a personificação do deus masculino da fecundidade. Identifica-se ainda com o senhor do raio e da chuva, associando-se à Deusa-Mãe, que personifica a Terra. A influência egípcia parece clara: encarnação do Touro, Minos lembra o touro Ápis, de Mênfis: sua união com Pasífae e o nascimento do Minotauro evocam as tríadas egípcias. Minos não é o representante da divindade na terra, mas seu filho. Filho piedoso e submisso: de nove em nove anos, o rei se recolhia no mais temível e intrincado dos labirintos, no monte Iucta, para uma “entrevista secreta” com seu pai Zeus, a quem prestava contas de “suas atitudes” e de seu governo. Se descontente com o rei, este permanecia no labirinto; se satisfeito, Zeus o reinvestia no poder para mais um período de nove anos. Historicamente, o tributo novênio cobrado a Atenas parece refletir, desde o Minoico Médio, ~ 2100-1580, a penetração e o domínio cretense na costa oriental do Peloponeso e na Arcádia, onde se instala a dinastia de Dânao; na Lacônia, dominada pela de Lélex; na Beócia, conquistada por Cadmo, e na Ática, onde os agentes de Minos cobravam um tributo, em espécie ou em homens. Do ponto de vista religioso, no entanto, “o sacrifício” de catorze atenienses ao Minotauro simbolizaria “um estado psíquico, a dominação perversa de Minos, mas, se o monstro é filho de Pasífae, a rainha cretense estaria também na raiz da perversidade do rei: ela refletiria um amor culpado, um desejo injusto, uma dominação indevida e a falta, reprimidos no inconsciente do labirinto. Os sacrifícios ao monstro são outras tantas mentiras e subterfúgios para adormecê-lo e outras tantas faltas que se acumulam. O fio de Ariadne, que permite a Teseu voltar à luz, representa o auxílio espiritual necessário para vencer a iniquidade. No seu conjunto, o mito do Minotauro simboliza a luta espiritual contra a repressão”11, uma espécie de luta entre Antígona e Creonte! O retiro de Minos, de nove em nove anos, no labirinto do monte Iucta, é uma clara alusão ao processo iniciático, comum a reis e sacerdotes, periodicamente. A união de Teseu com Ariadne é um hieròs gámos, um casamento sagrado, com vistas à fecundidade e à fertilidade da terra. Dédalo e Ícaro representam também algo de sério... Dédalo é a engenhosidade, o talento, a sutileza. Construiu tanto o labirinto, onde a pessoa se perde, quanto as asas artificiais de Ícaro, que lhe permitiram escapar e voar, mas que lhe causaram a ruína e a morte. Talvez se deva concordar com Paul Diel em que Dédalo, construtor do labirinto, símbolo do inconsciente, representaria, “em estilo moderno, o tecnocrata abusivo, o intelecto pervertido, o pensamento afetivamente cego, o qual, ao perder sua lucidez, torna-se imaginação exaltada e prisioneiro de sua própria construção, o inconsciente”12. Quanto a Ícaro, ele é o próprio símbolo da hýbris, da démesure, do descomedimento. Apesar da admoestação paterna, para que guardasse um meio-termo, “o centro”, entre as ondas do mar e os raios do sol, o menino insensato ultrapassou o métron, foi além de si mesmo e se destruiu. Ícaro é o símbolo da temeridade, da volúpia “das alturas”; em síntese: a personificação da megalomania. Se, na verdade, as asas são o símbolo do deslocamento, da libertação, da desmaterialização, é preciso ter em mente que asas não se colocam apenas, mas se adquirem ao preço de longa e não raro perigosa educação iniciática e catártica. O erro grave de Ícaro foi a ultrapassagem, sem o necessário gnôthi s’autón, o indispensável “conhece-te a ti mesmo”. Para fechar este capítulo, uma derradeira palavra sobre a ilha de Minos. A influência cretense sobre a Grécia foi grande e benéfica. Aos minoicos devem os gregos aqueus uma parte de suas obras de arte e de suas técnicas, e do ângulo em que a civilização cretense nos interessa no momento, isto é, o religioso, a presença de Creta foi muito importante para o desenvolvimento da religião helênica. Mircea Eliade é taxativo: “Com efeito, a cultura e a religião helênicas são resultado da simbiose entre o substrato mediterrâneo e os conquistadores indo-europeus, descidos do Norte”13. A influência religiosa minoica não se restringe apenas à “importação” pura e simples de deuses, como alguns já citados, Velcano, Britomártis, Reia, Ilítia, Perséfone, e ao salutar sincretismo que se seguiu, mas também, e isto é importante, os gregos devem a Creta uma parte do mito de Zeus, algumas modalidades de jogos, os ritos agrários e certamente o culto de Deméter. E, se a capela cretomicênica, com sua tríplice divisão interna, teve seu prolongamento no santuário grego, o culto cretense do lar há de ter continuidade nos palácios micênicos. No que tange especificamente a Deméter, as origens de seu culto são atestadas em Creta e o santuário de Elêusis data da época micênica. O sueco Martin P. Nilsson diz que “certas disposições, arquitetônicas ou de outra espécie, dos templos de mistérios clássicos, parecem derivar, mais ou menos, das instalações constatadas na Creta pré-helênica”14. É possível que Nilsson não tenha exagerado, ao afirmar que de quatro grandes centros religiosos da Hélade, Delos, Delfos, Elêusis e Olímpia, os três primeiros foram herdados dos micênicos, que, por sua vez, os receberam dos cretenses. Sem omitir, nem tampouco esquecer o quanto a Hélade deve ao Egito e à Ásia Menor em matéria de religião, cabe, no entanto, a Creta um lugar de destaque nesse quadro de influências. Bastaria, para confirmá-lo, lembrar que a rainha do Hades grego é a cretense Perséfone e que, dos três juízes dos mortos, dois, Radamanto e Minos, tiveram por berço a ilha de Minos... Talvez da Grécia em relação a Creta se pudesse repetir, mutatis mutandis, o que disse o extraordinário poeta latino Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) de Roma em relação à Grécia: Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio (Epist., 2, 1, 157). – A Grécia conquistada conquistou seu feroz vencedor e introduziu suas artes no Lácio inculto. É tempo, porém, de voltarmos à Hélade. Temos um encontro marcado com os aqueus. 1. EVANS, Arthur. The Palace of Minos at Cnossos. 6 vols. London: Oxford, 1921-1936. 2. Chama-se Linear B a escrita silábica creto-micênica, derivada certamente da Linear A e elaborada pelos aqueus entre 1450-1400, como veículo de comunicação entre os gregos aqueus e os cretenses de Cnossos, uma vez que, em relação a Creta, somente na Cidade de Minos se usava esse tipo de escrita. O importante é que a língua das tabuinhas de argila endurecidas pelos incêndios, que devoraram os grandes palácios aqueus no continente e Cnossos, é um dialeto aqueu arcaico, muito semelhante ao dialeto homérico da Ilíada e da Odisseia. Lamentavelmente as tabuinhas de argila de Linear B encontradas em Cnossos, Micenas e, de modo particular, em Pilos, traduzem numa linguagem fria tão somente documentos administrativos e comerciais, inventários, listas de funcionários, de sacerdotes e alguns nomes de deuses. Nenhum texto literário, histórico, religioso ou jurídico figura na Linear B. 3. Veja-se, a esse respeito, FAURE, P. Spéléologie crétoise et humanisme. In: Bulletin de l’Association Guillaume Budé. Paris: 1958, p. 27-50. 4. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont, Jupiter, 1982, p. 554. 5. DIODORO SÍCULO (séc. I d.C.). Biblioteca histórica, 73,3. 6. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 163. 7. BACHOFEN, Johann Jakob. Das Mutterrecht. Stuttgart: Krais und Hoffmann, Erste Auflage, 1975, p. 112ss. O Autor usa as formas patriarcal e matriarcal, que foram substituídas por patrilinear e matrilinear. 8. Otto von EISSFELDT, em Éléments orientaux dans la religion grecque ancienne (Paris: PUF, 1960, c. VII, “Aspects du culte et de la Légende de la Grande Mère dans le Monde Grec”), demonstrou que, se em Creta a hipóstase da Grande Mãe é particularmente Reia, e se esta, na Grécia, com o sincretismo creto-micênico, tornou-se apenas “atriz de um drama mitológico”; se a Geia de Hesíodo é, em última análise, a Terra cosmogônica, enquanto Deméter é a Terra cultivada, onde estaria a Grande Mãe? Estaria num arquétipo, acima de nomes, de hipóstases e de sincretismos, mas para cuja composição muito concorreu a Grande Mãe frígia, Cibele, que, se não teve muita projeção na Grécia arcaica, foi a Grande Mãe (Magna Mater) do Império Romano, ao menos a partir de 204 a.C., quando o Senado mandou buscar a pedra negra que simbolizava a deusa. 9. TULARD, Jean. Histoire de la Crète. Paris: PUF, 1962, p. 50-51. 10. BACHOFEN, Johann Jakob. Op. cit., p. 123ss. 11. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 635. 12. DIEL, Paul. Citado por J. CHEVALIER & A. GHEERBRANT. Op. cit., p. 345. 13. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 158. 14. NILSSON, Martin P. The Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion. Lund, 1950, p. 142. CAPÍTULO V Os Aqueus e a Civilização Micênica: a maldição dos Atridas 1 Por volta de 1600-1580 a.C., a Hélade recebe nova onda de invasores indo-europeus: trata-se dos aqueus, nome genérico que Homero, logo nos dois primeiros versos da Ilíada, estendeu a todos os gregos que lutaram em Troia. Embora pouco numerosos, esses novos invasores eram aguerridos e rapidamente conquistaram o Peloponeso, empurrando os jônios para a costa asiática, onde se instalaram à margem do golfo de Esmirna. Na Grécia continental, os jônios permaneceram, ao que parece, apenas na Ática, na ilha de Eubeia, em Epidauro e Pilos, de onde, mais tarde, sairiam os nelidas (nome proveniente de Neleús, pai de Nestor) para colonizarem a Jônia. Falavam um dialeto grego muito semelhante ao jônico, o que pressupõe um habitat comum para jônios e aqueus, ao longo de sua lenta peregrinação em direção à Grécia. Teria sido por essa mesma época que também chegaram à pátria de Sófocles os chamados eólios? Ou seriam esses últimos tão somente um “ramo” dos aqueus, que ocuparam a Beócia e a Tessália? Seja como for, o mapa étnico da Hélade, à época aqueia, ~1580-1100 a.C., está “provisoriamente” montado: o Peloponeso, ocupado pelos aqueus; os jônios, encurralados na Ática e na Eubeia; os eólios dominando a Tessália e a Beócia. 2 Como se viu no capítulo anterior, os aqueus, desde ~ 1450 a.C., são os senhores absolutos de Creta, sobretudo após a destruição, em ~ 1550 a.C., dos palácios de Festo, Háguia Tríada e Tilisso. É bem verdade que também o palácio de Cnossos sucumbiu, devorado por um incêndio, por volta de 1400 a.C., mas ainda se ignoram as causas de tamanho desastre. O palácio foi incendiado e destruído em consequência de uma revolta popular contra o domínio aqueu ou por um terremoto? Até o momento nada se pode afirmar com certeza. O fato em si não importa muito: os aqueus, de ~ 1450 a ~ 1100 a.C., serão os senhores de Creta. Dessa fusão nascerá a civilização micênica, assim denominada porque teve por centro principal o gigantesco Palácio de Micenas, na Argólida, e durante os dois séculos seguintes a civilização minoica, ou, melhor dizendo, já agora a civilização cretomicênica, brilhará intensamente na Grécia continental. Após as escavações realizadas sobretudo em Tirinto e Micenas por Heinrich Schliemann (1822-1890), continuadas mais tarde, entre outros, pelos arqueólogos gregos Stamatákis, Tsúntas, Keramápullos, Papadimitríu e pelo britânico Wace, abriram-se novas perspectivas para uma melhor compreensão do mundo grego arcaico e de sua civilização. As fontes básicas para um estudo da civilização micênica são a arqueologia e os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia. No tocante a estes últimos, como “fonte história”, é preciso levar em consideração que Homero é antes de tudo um poeta genial e que a obra de arte possui suas exigências internas, não se coadunando muitas vezes com relatos históricos. Além do mais, os poemas homéricos foram “compostos” ou ao menos reunidos, após existirem como tradição oral, sujeitos portanto a inúmeras alterações, vários séculos após os acontecimentos neles relatados. Fatores, aliás, que levaram o competente e sério Denys Page a ressaltar, talvez com certo exagero, que os documentos escritos no alfabeto Linear B demonstram que “os poemas homéricos preservaram muito pouco do verdadeiro quadro do passado micênico”1. Tomado em bloco, Homero tem em seus poemas bastante de micênico! Com as necessárias precauções, isto sim, é possível estabelecer, partindo-se do II canto da Ilíada, na parte relativa ao Catálogo das Naus, em que o maior dos poetas épicos rememora os tempos heroicos da Guerra de Troia, a dimensão do mundo aqueu, que se estende, ao norte, desde a Tessália até o extremo sul do Peloponeso, abrangendo, além de Creta, várias outras ilhas, como Ítaca, Egina, Salamina, Eubeia, Rodes e Chipre. Não se trata, evidentemente, de um império, mas de vários reinos, alguns territorialmente diminutos, mas independentes entre si, preludiando já no século XVI a.C. o que seria a Grécia clássica, uma Grécia fragmentada em cidades-estados, não raro antagônicas e que dificilmente se congregam até mesmo contra o inimigo comum, como aconteceu nas guerras greco-pérsicas. Pois bem, esses reinos, pequenos e grandes, cuja hegemonia parece ter sido de Micenas, estão todos centralizados em grandes palácios, como Pilos, Micenas, Esparta, Tebas... São, na realidade, independentes, mas ligados por interesses comuns. Em sua ânsia pelo poder, o que exige sua coalizão, aceitam, se bem que não muito de bom grado, a autoridade do rei mais importante e poderoso entre eles, como se pode ver na Ilíada. Agamêmnon, rei de Micenas, logo no início do poema, I,7, é chamado ánaks andrôn, o rei dos heróis, o que deixa claro ser ele o chefe supremo dos reis aqueus confederados contra Troia, embora isto não impeça que o comandante-em-chefe tenha por vezes que fazer valer sua autoridade contra os recalcitrantes heróis aqueus. Aliás, os deuses homéricos, como se verá, agirão exatamente assim com Zeus, o deus supremo do Olimpo! Os deuses homéricos se constituem, não raro, como simples projeção social do mundo heroico dos micênicos. Dentre os grandes palácios que fizeram da Grécia do século XV ao XII a.C. uma soberba fortaleza, destaca-se o monumental palácio de Micenas, “um verdadeiro ninho de águias” numa acrópole, que culmina a 278 metros de altura. Trata-se, no conjunto, de um recinto de novecentos metros de perímetro, com poderosas fortificações de muros ciclópicos, aberto a oeste pela Porta dos Leões, encaixada em sólido baluarte, e, ao norte, por uma saída secreta. No interior desse formidável bastião ficava o palácio, cuja arquitetura, como a de suas réplicas em Tirinto e Pilos, é radicalmente diversa da de Cnossos. Ao labirinto minoico, Micenas opõe um conjunto rigorosamente ordenado em três partes: uma vasta sala do trono, um santuário e, como elemento básico, um mégaron (grande salão). Também este é constituído de três compartimentos: um vestíbulo exterior, um pródomos ou vestíbulo interior e o mégaron propriamente dito, com uma lareira no centro. O palácio servia apenas de residência para o rei e, segundo se crê, para alguns dignitários. A verdadeira aglomeração humana ficava numa cidade baixa, a sudoeste da fortaleza. 3 Com base na Linear B, nos poemas homéricos e na arqueologia, é possível delinear um panteão micênico, embora se tenha de proceder com grande prudência. Nas tabuinhas de argila da Linear B são pouquíssimas as informações acerca dos deuses: estes se reduzem a poucos nomes, a meras informações onomásticas. A Ilíada e a Odisseia, elaboradas a partir do século IX a.C., têm que ser manuseadas com muita cautela, porque, se de um lado estampam uma “mitologia remoçada de quatro a cinco séculos”, em relação à civilização creto-micênica, de outro, sofreram indubitavelmente adições posteriores. Quanto aos monumentos artísticos, estes são sempre objeto de interpretações divergentes. Para um estudo da religião desse período há que se partir de uma evidência: houve, sobretudo após o domínio de Creta pelos aqueus, um sincretismo religioso creto-micênico. De seu mundo indo-europeu os gregos trouxeram para a Hélade um tipo de religião essencialmente celeste, urânica, olímpica, com nítido predomínio do masculino, que irá se encontrar com as divindades anatólias de Creta, de caráter ctônio e agrícola, e portanto de feição tipicamente feminina. Temos, pois, de um lado, um panteão masculino (patrilinhagem), de outro, um panteão, onde as deusas superam de longe (matrilinhagem) aos deuses e em que uma divindade matronal, a Terra-Mãe, a Grande Mãe, ocupa o primeiríssimo posto, dispensando a vida em todas as suas modalidades: fertilidade, fecundidade, eternidade. Desses dois tipos de religiosidade, desse sincretismo, nasceu a religião micênica. Digase, de passagem, que esse encontro do masculinohelênico com o femininominoico há de fazer da religião posterior grega um equilíbrio, um meio-termo, muito a gosto da “paideia” grega posterior, entre a patrilinhagem e a matrilinhagem. Outras influências, particularmente egípcias, muito importantes para os hábitos funerários, enriqueceram ainda mais o patrimônio religioso creto-micênico. Vejamos mais de perto esse sincretismo. As tabuinhas de Pilos e Creta estampam alguns nomes de deuses e deusas2, por onde se pode observar que “a fusão”, por vezes, se realizou entre elementos muito heterogêneos. Zeus se apresenta com uma equivalência feminina Dia (Py. 28), que não se pode identificar com a cretense Hera, a qual já aparece associada a Zeus, como deusa da fertilidade, em algumas tabuinhas de Cnossos (Kn. 02) e de Pilos (Py. 172). Ventris e Chadwick3pensaram ser Dia uma hipóstase da Magna Mater, a Grande Mãe cretense, isto é, Reia, que Píndaro4saudou com o título de @En a*ndrw~~n e@n qew~~n gevnor, “mãe única dos deuses e dos homens”, passagem aliás “mal compreendida e mal traduzida”5na excelente edição Les Belles Lettres. De outro lado, o mesmo Zeus, sob denominação desconhecida, se apresenta em Creta, muito antes do sincretismo de que estamos falando, sob a forma de um jovem belo e sadio, cuja origem cretooriental, independente do Zeus grego, é defendida por Charles Picard6. Trata-se do Zeus cretágeno, isto é, originário de Creta e que vai surgir em Roma com o nome de Veiouis, Véjove, o Júpiter adolescente de cabelos anelados. Além do mais, a ligação de Zeus com a ilha de Creta, após o sincretismo, sempre foi muito estreita. Para evitar que o pai Crono lhe devorasse também o caçula, Reia, grávida de Zeus, fugiu para a ilha de Minos e lá, no monte Dicta ou Ida, deu à luz secretamente o filho, que foi amamentado pela cabra cretense Amalteia. Apolo aparece apenas com um de seus epítetos clássicos, Peã (Kn. 52), o deus protetor dos guerreiros. Na mesma tabuinha encontramse também Atená, Posídon, Hermes, Ártemis e Eniálio, o belicoso, cujas funções serão mais tarde inteiramente assimiladas por Ares, cujo nome não está claramente determinado na Linear B. A cretense Ilítia, que posteriormente se tornará hipóstase de Hera, como deusa dos partos, e Deméter, “a terra cultivada”, a Grande Mãe, lá estão inteiras (Py. 114). Dioniso (Py. 10) é outra presença importante e garantida e cujo culto já era muito difundido em Creta, bem antes do aparecimento do deus na Ilíada de Homero. Causa realmente estranheza a ausência de nomes de deuses autenticamente cretenses, como Reia, Britomártis ou Dictina, Velcano, o deus-galo, e Perséfone. Como se vê, com a inestimável cooperação cretense, o futuro panteão grego da época clássica, se bem que terrivelmente miscigenado, já estava pronto no século XIV a.C. Falou-se em cooperação cretense porque, dentre os deuses citados, são considerados como minoicos (posto que ainda se discuta a respeito de um ou outro) os seguintes: Atená, Hera, Ilítia, Perséfone, Reia; os secundários Eniálio, Velcano, Britomártis ou Dictina e talvez Hermes. Se Dioniso, Ártemis, Apolo e Afrodite são seguramente divindades asiáticas, sobra muito pouco de autenticamente indoeuropeu entre os futuros doze grandes do Olimpo, pois que, acerca da origem de Hefesto, não se chegou ainda a uma conclusão convincente, nem mesmo do ponto de vista etimológico (V. Dicionário mítico-etimológico). É de notar-se, todavia, como já se disse, que o sincretismo cretomicênico fez que as divindades helênicas tivessem um caráter essencialmente composto, miscigenado e heterogêneo, o que explica a multiplicidade de funções e um entrelaçamento de mitos em relação a uma mesma divindade. O Zeus indo-europeu, deus da luz, segundo a própria etimologia da palavra, deus da abóbada luminosa do céu, do raio e dos trovões, irá fundir-se com o jovem “Zeus” cretense, apresentando-se, por isso mesmo, também como um adolescente imberbe, deus dos mistérios do monte Ida, deus da fertilidade e deus ctônio, o Zeùs Khthónios de que fala Hesíodo. Ora, o Zeus barbudo e majestoso do Olimpo, no esplendor da idade, é inteiramente diverso do jovem deus dos mistérios cretenses e, no entanto, se fundiram numa única personalidade. Hermes, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, é a divindade por excelência da sociedade campônia aqueia. Pois bem, enriquecido pelo mito cretense, Hermes tornou-se mais que nunca o “companheiro do homem”. Deus da pedra sepulcral, do umbral, do hérmaion e das “hermas”, guardião dos caminhos, protetor dos viajantes – cada transeunte lançava uma pedra, formando um hérmaion, literalmente, lucro inesperado, descoberta feliz, proporcionados por Hermes – e, assim, para se obterem “bons lucros” ou agradecer o recebido, se formavam verdadeiros montes de pedra à beira dos caminhos. Possuidor de um bastão mágico, o caduceu, com que tangia as almas para a outra vida, tornou-se o deus psicopompo, quer dizer, condutor de almas, sem o que estas não poderiam alcançar a eternidade e felicidade que a religião cretense prometia aos iniciados. Deus dos pastores, cujo mito estava ligado ao carneiro de velo de ouro, “verdadeiro talismã das riquezas aqueias e garantia de fecundidade”, Hermes transformou-se no mensageiro dos imortais do Olimpo, em deus psicopompo e em deus das ciências ocultas. Quanto às divindades femininas aqueias, todas elas são herdeiras de deusas cretenses. Hera, a Senhora, também uma pótnia therôn, a “senhora das feras”, uma deusa da fertilidade, na civilização micênica converter-se-á na protetora de uma instituição aqueia fundamental, o casamento. Atená, genuinamente cretense, está, em princípio, associada à árvore e à serpente, como deusa da vegetação. Na civilização aqueia é uma virgem guerreira, como aparece, em Micenas, numa medalha de estuque pintado, em que a deusa está com um enorme escudo, que lhe cobre todo o corpo, e rodeada de deuses que lhe prestam homenagem. Atená aqueia é, por excelência, a protetora das acrópoles em que se erguem os palácios micênicos, como mais tarde será a senhora da Akrópolis de Atenas. Seu nome duplo, Palas Atená, Atená defensora, mostra bem o resultado do sincretismo. A dupla formada por Deméter e Core é uma junção muito frequente em Creta, de uma deusa mãe e de uma jovem (Core significa jovem) filha. O rapto de Core por Plutão, rei do Hades, e a busca da filha pela mãe relembram as cenas de rapto muito frequentes no culto cretense da vegetação. A junção, todavia, de Core, a semente de trigo lançada no seio da Mãe-Terra, Deméter, com a lúgubre Perséfone, rainha do Hades, é deveras estranha, mas ambas, mercê do sincretismo, constituem a mesma pessoa divina. Seria inútil multiplicar os exemplos. Os deuses aqueus, por força da herança egeia, tornaram-se semigregos e semicretenses. Pierre Lévêque mostra de modo preciso o resultado dessa fusão: “Com um mesmo nome grego (Zeus, Deméter), ou com um nome minoico (Hera, Atená) e, inclusive, com nome duplo (Core e Perséfone, Palas e Atená), os deuses aqueus têm uma personalidade complexa, híbrida, em que se fundiram elementos heterogêneos e, às vezes, contraditórios. Não houve uma justaposição de duas séries de deuses em um panteão único, mas sínteses estranhas propiciaram a criação de divindades que não eram nem indo-europeias, nem minoicas, mas sim aquéias”7. Destarte, para um estudo em profundidade dos deuses aqueus, é mister separar o que é indoeuropeu do que é cretense e oriental. Seja como for, desde o século XIV a.C., a futura religião grega já estava delineada e inteiramente distinta de suas coirmãs védica, latina e germânica, que puderam conservar melhor o patrimônio comum indo-europeu, sobretudo a organização tripartite e trifuncional da hierarquia divina, uma vez que, por motivos de ordem política e cultural, não se deixaram contaminar tanto por elementos estranhos ao mundo indo-europeu. 4 Se a influência cretense na elaboração do panteão helênico foi grande e séria, mais destacada ainda foi a sua influência no que se refere ao culto dos deuses e dos mortos. Como acentua o supracitado Pierre Lévêque, os sacerdotes da ilha de Minos são constantemente citados na Linear B e sua missão mais importante era a de consagrar as oferendas, fossem elas as primícias das colheitas ou os sacrifícios sangrentos. Num texto de Pilos faz-se menção de trigo, vinho, um touro, queijos, mel, quatro cabras, azeite, farinha e duas peles de cordeiro que deveriam ser sacrificados aos deuses. As peles fazem certamente parte da vestimenta litúrgica de sacerdotes de categoria inferior, denominados diphtheráporoi, quer dizer, “portadores de uma indumentária de pele”, como se pode ver no sarcófago de Háguia Tríada. Os locais de culto, como em Creta, estão inteiramente ligados à vida familiar. No santuário palatino de Micenas encontrou-se uma pequena escultura em marfim, representando as “duas deusas”, Deméter e Core, com o “menino divino”, Triptólemo, a seus pés. No de Ásina, na Argólida, descobriram-se várias estatuetas em terracota. Nas casas particulares havia sempre um local destinado ao culto: era a lareira, centro do culto doméstico e que nos grandes palácios, como Micenas e Tirinto, ocupava o centro do Mégaron. O altar, propriamente dito, em geral oco, modelo portanto do bóthros grego (fenda, buraco onde se derramava o sangue das vítimas), era erguido normalmente no pátio do palácio, como se pode observar em Tirinto. Nas escavações realizadas em Micenas descobriu-se grande quantidade de estatuetas, a maioria em terracota. Trata-se, em sua quase totalidade, de ídolos femininos vestidos à maneira cretense; os poucos masculinos encontrados representam um jovem deus despido. Pois bem, essas estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam, na realidade, certas divindades ligadas à Terra-Mãe, mas têm, segundo se acredita, que ser interpretadas como oferenda aos deuses e não como objeto de culto, o que só aparecerá no século seguinte. Também os hábitos funerários e o culto dos mortos são relativamente bem conhecidos na época micênica, graças a numerosos túmulos descobertos pelos arqueólogos. As sepulturas cretenses e, posteriormente, as micênicas, embora tenham sofrido algumas modificações e transformações no decurso do segundo milênio, não só quanto ao local em que eram enterrados os mortos, mas sobretudo quanto à forma das mesmas, possuem uma característica que permaneceu inalterável: os corpos eram inumados e não incinerados. Durante o Heládico Médio, ~ 1950-1580 a.C., os cemitérios eram construídos dentro do perímetro urbano, junto às habitações e as tumbas tinham a forma de um cesto e normalmente não se depositavam oferendas para os mortos. No Heládico Recente, ~ 1580-1100 a.C., surgem as necrópoles separadas das aglomerações humanas e construídas a oeste das mesmas, certamente por influência do Egito, que considerava o Ocidente como o mundo dos mortos. As covas funerárias, a princípio, simples fossas, à imitação das sepulturas em forma de cesto, evoluíram para um formato de habitação, um túmulo, que acabou por dar origem aos thóloi (rotundas, pequenas construções de forma abobadada). Os corpos eram colocados em ataúdes, junto aos quais se depositava um rico mobiliário: máscaras, armas luxuosas, vasos, joias... Em Micenas encontraram-se oficialmente nove thóloi, aos quais se deram nomes convencionais, como o Túmulo de Clitemnestra, o Túmulo de Egisto..., destacando-se entre todos o Túmulo de Agamêmnon, o chamado Tesouro do Atreu, que representa, sem dúvida, a mais bem construída e a mais bela sala abobadada da Antiguidade. Curioso para a época é um túmulo encontrado em Mideia, na Argólida, sem vestígio de sepultamento. Trata-se, ao que tudo indica, de um cenotáfio, “túmulo vazio”, construído para “atrair” a alma de pessoas, em tese, falecidas fora da pátria e plausivelmente não sepultadas ou que não houvessem recebido as devidas honras fúnebres, uma vez que o eídolon só poderia ter paz e penetrar no Hades quando o corpo descesse ritualmente ao seio da Mãe-Terra. O cenotáfio tinha, pois, por escopo, desde a mais alta Antiguidade, substituir simbolicamente a real sepultura, condição suficiente para descanso da alma, o que demonstrava também a crença dos aqueus na sobrevivência da mesma. Se é verdade que todos os mortos tinham direito a um culto, existem aqueles que, por circunstâncias especiais, fazem jus a honras peculiares e a um culto singular. Trata-se dos heróis, assunto que será bem desenvolvido em nosso Volume III. Para o momento, basta acentuar que o herói, normalmente “senhor” de um palácio, como na época micênica, goza na outra vida de um destino particular. Em se tratando de um culto a antepassados, outorgado pela família reinante, a ele deve associar-se toda a comunidade, porque o herói acaba por tornar-se um intermediário entre os homens e os deuses. Na época micênica, esse culto foi muito difundido e praticado, ultrapassando mesmo a civilização que, na Grécia, viu seu nascimento. Dentre todos os heróis micênicos vamos destacar, por ora, apenas Agamêmnon, o grande rei de Micenas e que, como o rei de Creta, Minos, parece ter sido um nome dinasta. O que dá relevo ao “rei dos reis” não é apenas o fato de Agamêmnon ter sido o chefe dos exércitos gregos congregados contra Troia, mas sobretudo a hamartía que pesava sobre o génos dos atridas. Antes de entrarmos no mito que transformou o gigantesco palácio de Micenas num “alcáçar de crimes e horrores”, uma palavra sobre hamartía e génos. Sem desejar entrar em longas discussões de ordem etimológica, linguística e literária acerca do vasto campo semântico de hamartía, que, na realidade, tem várias “conotações” no curso do pensamento grego, porque não é aqui o local apropriado, é melhor começar pelo verbo grego hamartánein que já aparece em diversas passagens da Ilíada, V, 287; VIII, 311; XI, 233; XIII, 518 e 605; XXII, 279... onde significa mais comumente errar o alvo. Dos trágicos a Aristóteles, apesar da ampliação do campo semântico do verbo, também este sentido de errar o alvo é encontrado, alargado com o de errar, errar o caminho, perder-se, cometer uma falta... Donde se pode concluir que o vocábulo hamartía, que é um deverbal de hamartánein, nunca poderá ser traduzido até os Septuaginta por “pecado”. Diga-se, aliás, de passagem, que também o latim peccatum, fonte de “pecado”, jamais possui, até o cristianismo, tal significado: peccatum em latim é “erro, falta tropeço”8, abstração feita de culpa moral. Assim hamartía deve-se traduzir por “erro, falta, inadvertência, irreflexão”, existindo, claro está, uma “graduação” nessas faltas ou erros, podendo ser os mesmos mais leves ou mais graves, como já observara Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.)9. Acrescente-se, por último, que, na Grécia antiga, as faltas eram julgadas de fora para dentro: não se julgavam intenções, mas fatos, reparações, indenizações à vítima, se fosse o caso. Quanto a génos, pode o vocábulo ser traduzido, em termos de religião grega, por “descendência, família, grupo familiar” e definido como personae sanguine coniunctae, quer dizer, pessoas ligadas por laços de sangue. Assim, qualquer falta, qualquer hamartía cometida por um génos contra o outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente vingada. Se a hamartía é, dentro do próprio génos, o parente mais próximo está igualmente obrigado a vingar o seu sanguine coniunctus. Afinal, no sangue derramado está uma parcela da vida, do sangue e, por conseguinte, da alma do génos inteiro. Foi assim que, historicamente falando, até a reforma jurídica de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia. É mister, no entanto, distinguir dois tipos de vingança, quando a hamartía é cometida dentro de um mesmo génos: a ordinária, que se efetua entre os membros, cujo parentesco é apenas em profano, mas ligados entre si por vínculo de obediência aos gennêtai, quer dizer, aos chefes gentílicos, e a extraordinária, quando a falta cometida implica em parentesco sagrado, erínico, de fé – é a hamartía cometida entre pais, filhos, netos, por linha troncal e, entre irmãos, por linha colateral. Esposos, cunhados, sobrinhos e tios não são parentes em sagrado, mas em profano ou ante os homens. No primeiro caso, a vingança é executada pelo parente mais próximo da vítima e, no segundo, pelas Erínias. A essa ideia do direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes “em sagrado” ou “em profano”. Esta crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos homens, pois a encontramos desde o Rig Veda até o nordeste brasileiro, sob aspectos e nomes diversos. No citado Rig Veda, o mais antigo monumento da literatura hindu, composto entre 2000 e 1500 a.C., encontramos esta súplica: “Afasta de nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos”. A mesma ideia era plenamente aceita pelos judeus, como demonstram várias passagens do Antigo Testamento, como está em Êxodo 20,5: “Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam”. Talvez não fosse inoportuno lembrar que há uma grande diferença entre o homem de lá e o homem de cá: o viver coletivo e o nosso viver individual. Fechado o parêntese, voltemos à machina fatalis, a máquina obrigatoriamente fatal que, por causa da hamartía de Tântalo e da consequente maldição familiar, há de esmagar todo o génos maldito dos atridas, cuja ninhada fatídica pode ser sintetizada no seguinte quadro: Tântalo Dione (ou Eurianassa) Pélops, Dáscilo, Níobe Pélops Hipodamia Atreu, Tieste, Plístene, Crisipo Tieste uma Concubina Plístene II, Tântalo II, Pelopia Tieste sua própria filha Pelopia Egisto Atreu Aérope Agamêmnon, Menelau Menelau Helena Hermíona, Nicóstrato Agamêmnon Clitemnestra Ifigênia (Ifianassa), Electra (Laódice), Crisótemis, Orestes Tudo começou com a hamartía de Tântalo, filho de Zeus e Plutó, o qual reinava na Frígia ou Lídia, sobre o monte Sípilo. Extremamente rico e querido dos deuses, era admitido em seus festins. Por duas vezes Tântalo já havia traído a amizade e a confiança dos imortais: numa delas revelou aos homens os segredos divinos e, em outra oportunidade, roubou néctar e ambrosia dos deuses, para oferecê-los a seus amigos mortais. A terceira hamartía, terrível e medonha, lhe valeu a condenação eterna. Tântalo, desejando saber se os Olímpicos eram mesmo oniscientes, sacrificou o próprio filho Pélops e ofereceu-o como iguaria àqueles. Os deuses reconheceram, todavia, o que lhes era servido, exceto Deméter, que, fora de si pelo rapto da filha Perséfone, comeu uma espádua de Pélops. Os deuses, porém, recompuseram-no e fizeram-no voltar à vida. Tântalo foi lançado no Tártaro, condenado para sempre ao suplício da sede e da fome. Mergulhado até o pescoço em água fresca e límpida, quando ele se abaixa para beber, o líquido se lhe escoa por entre os dedos. Árvores repletas de frutos saborosos pendem sobre sua cabeça; ele, faminto, estende as mãos crispadas, para apanhá-los, mas os ramos bruscamente se erguem. Há uma variante de grande valor simbólico: o rei da Frígia estaria condenado a ficar para sempre sobre um imenso rochedo prestes a cair e onde ele teria que permanecer em eterno equilíbrio. O tema mítico de Tântalo, na luta interior contra a vã exaltação, simboliza a elevação e a queda. Seu suplício corre paralelo com sua hamartía: o objeto de seu desejo, a água, os frutos, a liberdade, tudo está diante de seus olhos e infinitamente distante da posse. No fundo, Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido, sempre insaciável, porque está na natureza do ser humano o viver sempre insatisfeito. Quanto mais se avança em direção ao objeto que se deseja, mais este se esquiva e a busca recomeça... O grande poeta paulista Vicente Augusto de Carvalho (1866-1924) nos oferece a topografia utópica dessa busca: Velho Tema Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos. Níobe foi a primeira vítima da hamartía paterna. Casada com Anfíon, teve, consoante a maioria dos mitógrafos, catorze filhos: sete meninos e sete meninas. Na tradição homérica são apenas doze10, mas na hesiódica são vinte. Orgulhosa de sua prole, Níobe dizia-se superior a Leto, que só tivera dois: Apolo e Ártemis. Irritada e humilhada, Leto pediu aos filhos que a vingassem. Com suas flechadas certeiras, Apolo matou os meninos e Ártemis, as meninas. Urna variante mais recente do mito narra que dos catorze se salvaram dois, um menino e uma menina. Esta, todavia, aterrorizada com o massacre dos irmãos, se tornou tão pálida, que foi chamada Clóris, a verde. Mais tarde, Clóris foi desposada por Neleu. A infeliz Níobe, desesperada de dor e em prantos, refugiou-se no monte Sípilo, reino de seu pai, onde os deuses a transformaram num rochedo, que, no entanto, continua a derramar lágrimas. Do rochedo de Níobe, por isso mesmo, corre uma fonte. A metamorfose em rochedo, como a de Eco, Níobe... pode ser interpretada como o símbolo da regressão e da passividade, que podem ser um estado apenas passageiro, precursor de uma transformação. Na realidade, Níobe é uma antiga deusa lunar asiática, mas é a lua negra, a outra face de Leto, a lua cheia. Seus filhos são mortos por Apolo (o sol) e por Ártemis (a lua cheia). Pélops é apenas mais uma engrenagem da machina fatalis... Após sua “recomposição e ressurreição”, o herói foi amado por Posídon, que o levou para o Olimpo e fê-lo seu escanção. Apesar de haver retornado ao nível telúrico, porque Tântalo dele se servia para furtar néctar e ambrosia aos deuses e oferecê-los aos homens, o deus do mar continuou a protegê-lo, dando-lhe de presente cavalos alados e ajudando-o na terrível disputa contra Enômao pela posse de Hipodamia. Após a guerra movida pelo Ilo, o lendário fundador de Ílion ou Troia, contra Tântalo, a quem acusava de ser responsável pelo rapto de seu filho Ganimedes, Pélops deixou a Ásia Menor, onde nascera, e refugiou-se na Hélade. Sabedor de que Enômao, rei de Pisa, na Élida, só daria a filha Hipodamia em casamento a quem o vencesse numa corrida de carros, Pélops, herói que era, aceitou, como tantos outros já o haviam feito, o desafio do rei. Esse Enômao, que reinava na Élida, era filho de Ares e de uma filha do deus-rio Asopo, Harpina. Como não quisesse que sua filha Hipodamia se casasse, ou por estar apaixonado por ela ou por lhe ter anunciado um oráculo que seria morto pelo genro, punha como condição que o pretendente o ultrapassasse numa corrida de carros. Enquanto sacrificava um carneiro a Zeus, deixava que o competidor tomasse a dianteira. Como os cavalos de Enômao fossem de sangue divino, facilmente o rei levava de vencida o “pretendente” e o matava, antes que atingisse a meta final, que era o altar de Posídon, em Corinto. O rei de Pisa já havia eliminado doze pretendentes, quando Pélops se apresentou. Apaixonada por ele, Hipodamia ajudou-o a corromper o cocheiro real, Mírtilo, que concordou em serrar o eixo do carro de Enômao. Aos primeiros arrancos dos animais, a peça partiu-se e o monarca foi arremessado ao solo e pereceu despedaçado. Pélops se casou com Hipodamia e, para silenciar Mírtilo, o vencedor de Enômao lançou-lhe o cadáver no mar. O cocheiro real, antes de morrer, amaldiçoou a Pélops... O nome de Pélops está intimamente ligado à fundação mítica dos jogos Olímpicos, que, a princípio, segundo parece, limitavam-se a corridas de carros. Pélops os teria instituído, mas, como houvessem caído no esquecimento, Héracles os ressuscitou em honra e em memória do fundador. As competições olímpicas eram ainda não raro consideradas como Jogos Fúnebres em memória de Enômao. À hamartía de Tântalo somam-se agora as do próprio Pélops e a maldição de Mírtilo. A machina fatalis tem combustível para funcionar por várias gerações! Antes, porém, que suas engrenagens voltem a girar, uma palavra sobre a morte do rei e sua substituição por Pélops no trono da Élida. Marie Delcourt, em sua obra famosa sobre Édipo11, comentando e discordando de uma passagem do pai da psicanálise12, opina que não se deve insistir sobre “a concupiscência dissimulada” do menino pela mãe e, em relação ao pai, sobre o sentimento ambivalente do mesmo, marcado de um lado pela admiração e afeição e, de outro, pelo ódio e ciume. Assim, consoante a autora, em lugar de se acentuar o ciume sexual do menino, melhor seria chamar a atenção para a impaciência com que o filho adulto suporta a tutela de um pai envelhecido. A hostilidade entre ambos seria provocada menos por uma libido reprimida do que pelo desejo do poder. Se isto é verdadeiro, pode-se perfeitamente fazer uma aproximação entre o mito de Édipo, que mata a seu pai Laio, e outros mitologemas, como o de Pélops, em que um pai luta contra o pretendente da filha; como os de Telégono e Ulisses, Teseu e Egeu, em que os filhos matam direta ou indiretamente a seus pais; como o de Perseu e Acrísio, em que a vítima é o avô, no caso em pauta, Acrísio; como o de Anfitrião que assassina a seu sogro Eléctrion e, para não alongar a lista, o de Admeto e Feres, em que o pai Feres, envelhecido, “abre mão do trono, em favor de seu filho Admeto, tendo havido, no entanto, entre ambos, violentíssima altercação, como atesta a tragédia Alceste13. Seguindo essa linha de raciocínio, o tema essencial não é bem o duelo entre pai e filho, porque este pode ser entre sogro e genro (Enômao e Pélops, Eléctrion e Anfitrião) ou entre avô e neto (Acrísio e Perseu)..., mas um conflito de gerações. O antagonismo, todavia, quer seja entre pai e filho, avô e neto, ou entre pai e pretendente, é sempre um combate pelo poder, cujo desfecho é a vitória do mais jovem. Ao que parece, essa luta, de início, entre pai e filho, fazia parte de um rito, o combate de morte que, nas sociedades primitivas, permitia ao Jovem Rei suceder ao Velho Rei. Todo o contexto familiar, com os problemas morais que o mesmo comporta, foi acrescentado mais tarde, quando a sucessão patrilinear se tornou a norma vigente. Assim, na luta de morte, que se travava pela sucessão, todas as atenuantes possíveis foram introduzidas para mitigar o impacto das “justas” primitivas. Jamais um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. Se Édipo mata a Laio, Telégono a Ulisses, Perseu a Acrísio e Pélops a Enômao, a ação é simplesmente o resultado do cumprimento de um oráculo, e mais: os dois primeiros ignoravam tratar-se de seus próprios pais e Perseu não sabia que Acrísio era seu avô. Julgando que a atenuante, oráculo, era insuficiente, os trágicos transformaram a morte de Laio num acidente decaminho... Quanto a Teseu, é bom não esquecer que foi por um erro, por um engano fatal que o herói de Atenas se tornou o responsável pela morte de seu pai Egeu! Desse modo, o parricídio ou é substituído por um simples destronamento, ou é realizado, mas como resultante de um erro, embora se tenha o respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, os poetas evitam colocar em cena o mais horrendo dos crimes aos olhos da sociedade grega. A despeito, porém, de seu horror pelo parricídio, tiveram muitas vezes que tratar em público de uma hostilidade de fato entre homens de gerações diferentes, o que patenteia a importância existente na sucessão por morte na pré-história grega. Os testemunhos mais curiosos desse rito arcaico se encontram, como se verá, nas teogonias. Para encerrar, uma pergunta: por que o Velho Rei deve ser substituído? Na Odisseia, XI,494ss, Aquiles, quando da visita de Ulisses ao país dos mortos, mostra-se preocupado com a sorte de seu pai Peleu e pergunta-lhe se ele não é desprezado pelos mirmidões, uma vez que a velhice lhe entorpece os membros. Na realidade, um rei envelhecido não é apenas um soberano demissionário, mas sobretudo um ser maltratado e menosprezado. É que a função do rei, já que o mesmo é de origem divina, é fecundar e manter viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor físico, tornando-se impotente ou não mais funcionando a força mágica, o monarca terá que ceder seu posto a um jovem, que tenha méritos e requisitos necessários para manter acesa a chama da fecundação e a fertilidade dos campos, uma vez que, magicamente, esta está ligada àquela. Na expressão de Westrup, “o mérito pessoal é uma condição necessária para se subir ao trono dos antigos e a persistência da energia ativa é indispensável para conservar o poder real”14. Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A razão é de ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la à natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei. Terminada esta longa digressão, necessária para que se possam compreender tantas sucessões violentas dentro do mito, voltemos à violência, à hýbris das hamartíai dos atridas. De Pélops e Hipodamia, conforme esquema já exposto, nasceram, entre outros, Atreu, Tieste e Crisipo. Consoante o mito, os persidas (filhos ou descendentes de Perseu) foram os primeiros a reinar sobre a Argólida em geral e sobre Micenas em particular. Esta, fundada por Perseu, foi governada depois por seu filho Estênelo e seu neto, Euristeu. Em seguida, o poder passou para os pelópidas, também denominados atridas. É que a maldição paterna empurrara Atreu e Tieste para Micenas, onde se refugiaram. Essa maldição se deve ao fato de Atreu e Tieste terem assassinado o irmão Crisipo. Mais uma maldição que se vai somar a tantas outras... Aliás, Crisipo, como engrenagem da machina, já havia contribuído para aumentar-lhe a potência fatídica. Quando Laio, ainda muito jovem, se viu obrigado a fugir de Tebas, porque Zeto e Anfião se lhe haviam apoderado violentamente do trono, refugiou-se na corte de Pélops, na Élida. Esquecendo-se dos laços sagrados da hospitalidade, Laio deixou-se dominar por uma paixão louca por Crisipo e, com o consentimento deste, o raptou, inaugurando, destarte, na Grécia, ao menos miticamente, a pederastia. Pélops amaldiçoou a Laio, e Hera, a protetora dos amores legítimos, anatematizou a ambos. O resultado dessa dupla maldição há de se traduzir também na Maldição dos labdácidas, com Laio, Jocasta, Édipo, Etéocles, Polinice e Antígona... Voltemos a Atreu e Tieste. Falecido Euristeu, sem deixar descendentes, os micênios, dando crédito a um oráculo, entregaramlhes o trono. Foi pela disputa do reino de Micenas entre os dois irmãos que surgiu o ódio mais terrível, alimentado por traições, adultério, incesto, canibalismo, violência e morte. Atreu, que havia encontrado um carneiro de velo de ouro, prometera sacrificá-lo a Ártemis, mas guardou-o para si e escondeu o tosão de ouro num cofre. Aérope, que era mulher de Atreu, mas amante de Tieste, entregara a este secretamente o velocino. No debate entre ambos diante dos micênios, Tieste propôs que ocuparia o trono o que mostrasse à assembleia um tosão de ouro. Atreu aceitou, de imediato, a proposta, pois desconhecia a traição da esposa e a perfídia do irmão. Tieste seria fatalmente o vencedor, não fora a intervenção de Zeus, que, por meio de Hermes, aconselhou a Atreu fazer uma nova proposta: o rei seria designado por um prodígio. Se o sol seguisse seu curso normal, Tieste seria o rei, se regressasse para leste, Atreu ocuparia o trono. Aceito o desafio, todos passaram a observar o céu. O sol voltou para o nascente e Atreu, por proteção divina, passou a reinar em Micenas, expulsando Tieste de seu reino. Sabedor um pouco mais tarde da traição de Aérope, fingiu uma reconciliação com o irmão, convidou-o a participar de um banquete e serviu-lhe como repasto as carnes de três filhos que Tieste tivera com uma náiade: Áglao, Calíleon e Orcômeno. Após o banquete, Atreu mostrou-lhe as cabeças de seus três filhos e, mais uma vez, o baniu. Tieste refugiou-se em Sicione, onde, a conselho de um oráculo, se uniu à própria filha Pelopia e dela teve um filho, Egisto. Pelopia seguiu para Micenas e lá se casou com o próprio tio Atreu. Egisto foi, pois, criado na corte deste último e, como ignorasse que Tieste era seu pai, recebeu do padrasto a ordem de matá-lo. Egisto, todavia, descobriu a tempo quem era seu verdadeiro pai. Retornou a Micenas, assassinou Atreu e entregou o trono a Tieste. Agamêmnon e Menelau, filhos de Atreu e de Aérope! Que se poderia esperar destes condenados e marcados por tantas misérias e crimes? Agamêmnon surge no mito como o rei por excelência, encarregado na Ilíada do comando supremo dos exércitos gregos que sitiavam Troia. Consoante a designação de seus ancestrais, é chamado atrida, pelópida ou tantálida. Reinava sobre Argos, Micenas e até mesmo sobre toda a Lacedemônia. Era casado com Clitemnestra, irmã de Helena, ambas filhas de Tíndaro e Leda. Para obter Clitemnestra, que era casada, Agamêmnon iniciou logo sua carreira por um crime duplo: matou-lhe o marido, Tântalo, filho de Tieste, e a um filho recém-nascido do casal. Perseguido pelos Dioscuros, Castor e Pólux, irmãos de Clitemnestra e Helena, refugiou-se na corte de Tíndaro. Desse casamento com Clitemnestra, que se ligara a Agamêmnon contra a vontade, nasceram três filhas: Crisótemis, Laódice e Ifianassa e um filho, Orestes. Tal é o primeiro estágio do mito. Surge depois Ifigênia ao lado de Ifianassa e Laódice é substituída pelos poetas trágicos por Electra, totalmente desconhecida de Homero. Desta ninhada fatídica os trágicos conheciam principalmente Ifigênia, Electra e Orestes. Quando uma verdadeira multidão de pretendentes à mão de Helena assediava a princesa, Tíndaro, a conselho do solerte Ulisses, ligou-os por dois juramentos: respeitar a decisão de Helena na escolha do noivo, sem contestar a posse da jovem esposa e se o escolhido fosse, de qualquer forma, atacado, os demais deviam socorrê-lo. Quando o príncipe troiano Páris ou Alexandre raptou Helena, Menelau, a quem ela escolhera por marido, pediu auxílio a seu irmão Agamêmnon, o poderoso rei de Micenas, que também estava ligado a Menelau por juramento. Agamêmnon foi escolhido comandante supremo da armada aqueia, seja por seu valor pessoal, seja porque era uma espécie de rei suserano, dada a importância de Micenas no conjunto do mundo aqueu, quer por efeito de hábil campanha política. Convocados os demais reis ligados por juramento a Menelau, formou-se o núcleo da grande armada destinada a vingar o rapto de Helena e atacar Troia, para onde Páris levara a princesa. Os chefes aqueus reuniram-se em Áulis, cidade e porto da Beócia, em frente à ilha de Eubeia. De início, os presságios foram favoráveis. Feito um sacrifício a Apolo, uma serpente surgiu do altar e, lançando-se sobre um ninho numa árvore vizinha, devorou oito filhotes de pássaros e a mãe, ao todo nove, e, em seguida, transformou-se em pedra. Calcas, o adivinho da vida militar, como Tirésias o era da religiosa, disse que Zeus queria significar que Troia seria tomada após dez anos de luta. De acordo com os Cantos Cíprios, poemas que narram fatos anteriores à Ilíada, os aqueus, ignorando as vias de acesso a Troia, abordaram na Mísia, Ásia Menor e, depois de alguns combates esparsos, foram dispersados por uma tempestade, regressando cada um a seu reino. Oito anos mais tarde, reuniram-se novamente em Áulis. O mar, todavia, permaneceu inacessível aos navegantes por causa de uma grande calmaria. Consultado mais uma vez, Calcas explicou que o fato se devia à cólera de Ártemis, porque Agamêmnon, matando uma corça, afirmara que nem a deusa o faria melhor que ele. A cólera de Ártemis poderia se dever também a Atreu, que, como se viu, não lhe sacrificara o carneiro de velo de ouro ou ainda porque o rei de Micenas prometera oferecer o produto mais belo do ano, que, por fatalidade, havia sido sua filha Ifigênia. Agamêmnon, após alguma relutância, terminou por consentir no sacrifício de Ifigênia, ou por ambição pessoal, ou por visar ao bem comum. De qualquer forma, esse sacrifício agravou profundamente as queixas já existentes e o desamor de Clitemnestrapelo esposo. Sacrificada a jovem Ifigênia, partiu finalmente a frota grega em direção a Troia, fazendo escala na ilha de Tênedos. Na ilha de Lemnos, Agamêmnon, a conselho de Ulisses, ordenou que se deixasse Filoctetes (sem cujas flechas, herdadas de Héracles, Troia não poderia ser tomada), de cuja ferida, provocada pela mordida de uma serpente em Tênedos, exalava um odor insuportável. Nove anos de lutas diante da cidade de Príamo, de acordo com os presságios, já se haviam passado, quando surgiu grave dissensão entre Agamêmnon e o principal herói aqueu, Aquiles. É que ambos, tendo participado de diversas expedições de pilhagem contra cidades vizinhas, lograram se apossar de duas belíssimas jovens: Briseida, que se tornou escrava de Aquiles, e Criseida, filha do sacerdote de Apolo, Crises, foi feita cativa de Agamêmnon. Crises, humildemente, dirigiu-se à tenda do rei de Micenas e tentou resgatar a filha. O rei o expulsou com ameaças. Apolo, movido pelas súplicas de seu sacerdote, enviou uma peste terrível contra os exércitos gregos. É neste ponto que começa a narrativa da Ilíada. Talvez não fosse fora de propósito dizer, e o faremos, de caminho, que a Ilíada não relata a Guerra de Troia, mas apenas um episódio do nono ano da luta, exatamente a ira de Aquiles e suas consequências funestas. Quando o poema termina, com os funerais de Heitor, Troia continua de pé. Vendo o exército assolado pela peste, Aquiles convocou uma assembleia. O adivinho Calcas, consultado, respondeu ser necessário devolver Criseida. Após violenta altercação com Aquiles, Agamêmnon resolveu devolver a filha de Crises, mas, em compensação, mandou buscar a cativa de Aquiles, Briseida. Este, irritado e como fora de si, porque gravemente ofendido em sua timé, em sua honra pessoal, coisa que um herói grego prezava acima de tudo, retirou-se do combate. Zeus, a pedido de Tétis, mãe do herói, consentiu em que os troianos saíssem vitoriosos, até que se fizesse condigna reparação a Aquiles. Para isso, Zeus enviou ao rei um sonho enganador para o empenhar na luta, fazendo-o acreditar que poderia tomar Troia sem o concurso do filho de Tétis. Além do mais, um antigo oráculo havia predito a Agamêmnon que a cidadela de Príamo cairia, quando houvesse séria discórdia no acampamento dos aqueus. Sem Aquiles, o rei de Micenas interveio pessoalmente no combate e muitos foram seus feitos gloriosos, mas os aqueus, após duas grandes batalhas, foram sempre repelidos. Diante de uma derrota iminente, Agamêmnon, a conselho do prudente e sábio Nestor, dispôs-se a devolver Briseida e comprometeu-se ainda a enviar presentes a Aquiles. Ájax e Ulisses foram procurá-lo, mas o herói não aceitou a reconciliação. Face à audácia dos troianos, comandados por Heitor, que ousaram até mesmo chegar junto aos navios gregos e incendiálos, Aquiles permitiu que seu fraternal amigo Pátroclo se revestisse de suas armas, mas somente para repelir os Troianos. Pátroclo foi além dos limites, além do métron: quis escalar as muralhas de Troia e foi morto por Heitor. Somente a dor imensa pela morte do amigo e o desejo alucinado de vingança fizeram o herói, após receber todos os desagravos por parte do comandante dos aqueus, voltar à cruenta refrega e não descansou enquanto não matou Heitor. Assim, a partir do canto XVIII da Ilíada, a figura de Agamêmnon se ofuscou diante dos lampejos do escudo e dos coriscos da espada de Aquiles. As epopeias posteriores ao século IX a.C. enumeram outras gestas do rei de Micenas, após a morte de Heitor e Aquiles, e suas intervenções na grave querela entre Ájax e Ulisses pela posse das armas do maior dos heróis aqueus. Na Odisseia se narra que, após a queda de Ílion, Agamêmnon tomou como uma de suas cativas e amantes a filha de Príamo, a profetisa Cassandra, que lhe deu dois gêmeos, Teledamo e Pélops. O retorno da Tróada do chefe supremo dos Aqueus ensejou também outras narrativas épicas. Os Nóstoi, ou poemas dos Retornos, contam que, no momento da partida, o eídolon, a “imagem” de Aquiles apareceu ao esposo de Clitemnestra e procurou retê-lo na Ásia, anunciando-lhe todas as desgraças futuras e exigindo-lhe, ao mesmo tempo, o sacrifício de Políxena, uma das filhas de Príamo, cuja esposa Hécuba fazia também parte, juntamente com Políxena, do quinhão de Agamêmnon, como está na tragédia Hécuba de Eurípides. Quando este chegou aos arredores de Micenas, Egisto, que se tornara amante de Clitemnestra, fingindo uma reconciliação, ofereceu ao primo um grande banquete e, com o auxílio de vinte homens, dissimulados na sala do festim, matou a Agamêmnon e a todos os acompanhantes do rei. Outras versões atestam que Clitemnestra participou do massacre e pessoalmente eliminou a sua rival Cassandra. Píndaro acrescenta que, no ódio contra a raça do esposo, a amante de Egisto quis também matar seu filho Orestes. Nos trágicos, as circunstâncias variam: ora Agamêmnon, como está em Homero, foi morto durante o banquete, ora o foi durante o banho, no momento em que, embaraçado na indumentária que lhe dera a esposa, e cujas mangas ela havia cosido, o rei não pôde se defender. Consoante Higino (século I a.C.), e suas informações devem basearse em fontes antigas, o instigador do crime foi Éax, irmão de Palamedes, cuja lapidação havia sido ordenada por Agamêmnon. Éax teria contado a Clitemnestra que o esposo pretendia substituí-la por Cassandra. Esta, com afiada machadinha, assassinou não só o marido, quando o mesmo fazia um sacrifício, mas igualmente a Cassandra. Egisto, outro amaldiçoado, é, como já se assinalou, filho de Tieste e da própria filha deste, Pelopia. Tieste, banido pelo irmão Atreu, vivia longe de Micenas, em Sicione, e buscava com todas as forças um meio de vingar-se de seu irmão, que lhe havia massacrado os filhos. Um oráculo lhe anunciou que o vingador almejado só poderia ser um filho que ele tivesse de sua própria filha. Certa noite, em que Pelopia celebrava um sacrifício, Tieste a estuprou, mas a jovem conseguiu arrancar-lhe a espada e a guardou. Sem o saber, Atreu se casou com a sobrinha e mandou procurar por Sicione inteira a criança, que, ao nascer, Pelopia havia exposto15. O menino foi encontrado entre pastores que o haviam recolhido e alimentado com leite de cabra, daí, em etimologia popular, o nome de Egisto, em grego Aígistos, uma vez que aíks, aigós é cabra. Aproveitemos o momento para um corte: normalmente a criança exposta é salva e direta ou indiretamente alimentada por um pássaro ou animal. Semíramis, a rainha da Babilônia, o foi por pombas; Gilgamex, por uma águia; Télefo, por uma corça; Páris, por uma ursa; Rômulo e Remo, por uma loba... Provas iniciáticas desse tipo parecem ter por origem longínqua as denominadas crenças zoolátricas: prova-se que “o exposto” pertence ao clã, se o animal do clã pode se aproximar dele, sem fazer-lhe mal. Trata-se, em todo caso, de um duplo ordálio (juízo de um deus): a criança sobrevive em condições em que normalmente deveria perecer; é reconhecida por um animal do clã e por meio dele ou diretamente pelo mesmo é alimentada. Ao sair dessa prova dupla, o exposto está destinado a “grandes feitos”. Observe-se, portanto, nesses ordálios menos um rito familiar que um rito político, capaz de habilitar “o desconhecido” a ser recebido num grupo social que normalmente o repeliria. As práticas acobertadas pelo mito da criança exposta deviam se aplicar a pessoas que, de um modo ou de outro, eram intrusas, ou ainda a homens que tinham que lutar para conquistar uma posição a que primitivamente ou “aparentemente” não tinham direito algum. Voltemos a Egisto. Criado como filho por Atreu, este um pouco mais tarde mandou-o procurar Tieste, prendê-lo e trazê-lo à sua presença. Egisto cumpriu a missão e Atreu lhe ordenou que matasse Tieste. Quando este viu a espada com que deveria ser assassinado, a reconheceu de imediato. Perguntou a Egisto onde ele a obtivera. Respondeu-lhe o jovem que tinha sido uma dádiva de sua mãe Pelopia. Tieste mandou chamar a filha e lhe revelou o segredo do nascimento de Egisto. Tomando a espada, Pelopia se traspassou com ela. Vendo a lâmina toda ensanguentada, Atreu se rejubilou com “a morte do irmão”. Egisto, então, de um só golpe, o prostrou. Em seguida, Tieste e Egisto reinaram em Micenas. Tendo seduzido Clitemnestra, com ela passou a viver. Após a morte de Agamêmnon, Egisto ainda reinou em Micenas por sete anos, até que chegou o vingador. Orestes, com todo o fardo das hamartíai de dois génê, paterno e materno, já é conhecido desde as epopeias homéricas como “o vingador de Agamêmnon”, embora não se fale do assassinato de Clitemnestra, praticado pelo filho. É só a partir de Ésquilo e sua Oréstia que Orestes se tornou uma figura de primeiro plano. O primeiro episódio de sua vida situa-se no mito troiano, quando, na primeira expedição grega, a armada foi dar na Mísia, no reino de Télefo. Tendo sido este ferido por Aquiles, não podia ser curado, segundo o oráculo, senão pela lança do filho de Tétis. Algum tempo depois, quando da segunda tentativa aqueia de navegar para a Tróada, Télefo foi ter a Áulis, em busca de cura, pois ali estava acampado o exército grego. Preso como espião, Télefo agarrou o pequeno Orestes e ameaçou matá-lo, se o maltratassem. Conseguiu, assim, ser ouvido e obteve a cura. Quando do regresso de Agamêmnon a Micenas e de seu assassinato por Egisto e Clitemnestra, Orestes escapou do massacre graças à sua irmã Electra, que o enviou clandestinamente para a Fócida, onde foi criado como filho na corte de Estrófio, casado com Anaxíbia, irmã de Agamêmnon e pai de Pílades. Explica-se, desse modo, a lendária amizade que uniu para sempre os primos Orestes e Pílades. O mérito, todavia, da salvação de Orestes das mãos sangrentas de Clitemnestra tem outras versões no mito: o menino teria escapado, graças à presteza de sua ama, de seu preceptor ou sobretudo de um velho servidor da família. Atingida a idade adulta, Orestes recebeu de Apolo, deus essencialmente patrilinear, a ordem de vingar o pai, matando Egisto, e sua amante. Acompanhado de Pílades, Orestes chega a Argos e dirige-se ao túmulo de Agamêmnon, onde consagra uma madeixa. Electra, que vem fazer libações sobre o túmulo do pai, reconhece o sinal deixado pelo irmão e combina com o mesmo a morte de Egisto e Clitemnestra. Claro está que variam bastante de um poeta trágico para outro os sinais de reconhecimento entre os irmãos e os estratagemas que se planejaram para o morticínio dos então reis de Micenas. Mas tragédia é obra de arte! O mito, no entanto, continua o mesmo... Iniciando seu plano de vingança, Orestes se apresenta como um viajante vindo da Fócida e encarregado por Estrófio de anunciar a morte de Orestes e de saber se as cinzas do morto deveriam permanecer em Cirra, sede do reino de Estrófio, ou ser transportadas para Argos. Clitemnestra, livre do medo de ver seus crimes punidos, deu um grito de júbilo e mandou, de imediato, avisar Egisto, que estava no campo. O rei regressou pressuroso e foi o primeiro a tombar sob os golpes do vingador. Clitemnestra, com suas súplicas, conseguiu abalar o filho, mas Pílades lembrou-lhe a ordem de Apolo e o caráter sagrado da vingança. Assassinando a própria mãe, Orestes é, imediatamente, envolvido pelas Erínias, as punidoras do sangue parental derramado, segundo se mostrou páginas acima, tema aliás amplamente desenvolvido na análise que fizemos da tragédia grega16. Orestes buscou asilo no omphalós (“umbigo”, pedra que marcava o centro do mundo) do Oráculo de Delfos, onde foi purificado por Apolo. Essa purificação, no entanto, não o libertou das Erínias, tornando-se necessário um julgamento regular, que se realizou numa pequena colina de Atenas, mais tarde denominada Areópago, tribunal onde se julgavam os crimes de sangue. Como o julgamento terminasse empatado, Atená, que presidia o tribunal, deu seu voto, “Voto de Minerva”, em favor do matricida. Libertado “exteriormente” da perseguição das Erínias, Orestes pediu a Apolo uma indicação do que deveria fazer a seguir. A Pítia respondeu-lhe que, para se livrar em definitivo da manía, da loucura, da “opressão interna” provocada pelo matricídio, deveria dirigir-se a Táurida, na Ásia Menor, descobrir e apossar-se da estátua de Ártemis. Acompanhado de Pílades, Orestes chegou a seu destino, mas foram ambos aprisionados pelo rei Toas, que costumava sacrificar os estrangeiros à sua deusa. Foram levados a Ifigênia, de quem se falará mais abaixo, a qual era a sacerdotisa do templo e encarregada de sacrificar os adventícios. Interrogados por esta a respeito de onde vinham e a que país pertenciam, a filha de Agamêmnon descobriu logo de quem se tratava, pois Orestes era seu irmão. Contou-lhe este por que motivo procurara a Táurida e qual a ordem que recebera de Apolo. Disposta a facilitar o roubo da estátua de Ártemis, de que era guardiã, Ifigênia planejou fugir com Orestes. Para tanto persuadiu o rei Toas de que não se poderia imolar o estrangeiro, que fugira da pátria por ter assassinado a própria mãe, sem primeiro purificá-lo, bem como a estátua da deusa, nas águas do mar. O rei deu crédito à sacerdotisa, que se dirigiu para a praia com Orestes, Pílades e a estátua de Ártemis. Sob o pretexto de que os ritos eram secretos, distanciou-se dos guardas e fugiu com os dois e a estátua no barco do irmão. Desde menino, Orestes era noivo de Hermíona, filha de Menelau e Helena, mas, em Troia, o rei de Esparta prometera a filha a Neoptólemo, filho de Aquiles. No regresso da Táurida, Orestes foi para junto de Hermíona, enquanto Neoptólemo se encontrava em Delfos. Raptou-a e depois matou-lhe o marido. Com ela teve um filho chamado Tisâmeno. Reinou em Argos e, em seguida, também em Esparta, como sucessor de Menelau. Pouco tempo antes de sua morte, uma grande peste devastou-lhe o reino. Ifigênia, a filha mais velha de Agamêmnon e Clitemnestra, como se viu, foi reclamada por Ártemis como vítima para que cessasse a calmaria e a frota aqueia pudesse chegar à Tróada. No momento exato em que ia ser degolada, Ártemis a substituiu por uma corça e, arrebatada, Ifigênia foi transportada para Táurida, onde se tornou sacerdotisa de Ártemis. O sacrifício do primogênito é um tema comum no mito. Em todas as tradições encontra-se o símbolo do filho ou da filha imolados, cujo exemplo mais conhecido é o “sacrifício” de Isaac por Abraão. O sentido do sacrifício, todavia, pode ser desvirtuado: é o caso de Agamêmnon, imolando Ifigênia, em que a obediência ao oráculo, por intermédio de Calcas, dissimula, certamente, outras intenções, como a vaidade pessoal e o desejo de vingança, camuflados sob o disfarce de “bem comum”. O sacrifício de Abraão é inteiramente diferente. Embora, de certa forma, Isaac fosse mais um filho de Deus que de Abraão, pois que Sara o concebera já em idade avançada, por bondade de Deus, quando, normalmente, não tinha mais possibilidade de fazê-lo, a exigência de Javé se coloca em outra dimensão. Isaac foi concebido em função da fé: ele se tornou o filho da promessa e da fé. Se bem que o sacrifício de Abraão se assemelhe a todos os sacrifícios de recémnascidos do mundo antigo, a diferença entre ambos é total. Se nas culturas primitivas um tal sacrifício, não obstante seu caráter religioso, era exclusivamente um hábito, um rito, cuja significação se tornava perfeitamente inteligível, no caso de Abraão é um ato de fé. O Patriarca não compreende por que uma tal ordem lhe é imposta, mas ele se dispõe a cumpri-la, porque o Senhor o exigiu. Por este ato, aparentemente absurdo, Abraão inaugura uma nova experiência religiosa: a substituição de gestos arquetípicos por uma religião implantada na fé. Talvez valesse a pena repetir, a esse respeito, a fórmula comovente de São Paulo: contra spem in spem credidit, contra toda a esperança, ele acreditou na esperança... Voltando ao assunto. No mundo paleo-oriental, o primeiro filho era, não raro, considerado como filho de deus. É que no Oriente antigo as jovens tinham por norma passar uma noite no templo e “conceber” do deus, representado, evidentemente, pelo sacerdote ou por um seu enviado, o estrangeiro. Pelo sacrifício desse primeiro filho, do primogênito, restituía-se à divindade aquilo que, de fato, lhe pertencia. O sangue jovem restabelecia a energia esgotada do deus, porque as divindades da vegetação e da fertilidade exauriam-se em seu esforço espermático para assegurar a opulência do kósmos e manter-lhe o equilíbrio. Tinham elas, pois, necessidade de se regenerarem periodicamente. Movendo-se numa economia do sagrado, que será ultrapassada por Abraão e seus sucessores, os sacrifícios no mundo antigo, para utilizar da expressão de Kierkegaard, pertenciam ao geral, quer dizer, eram fundamentados em teofanias arcaicas, cuja tônica era, tão somente, a circulação da energia sagrada no kósmos: da divindade para a natureza; da natureza para o homem e do homem, através do sacrifício, novamente para a divindade, num ciclo ininterrupto. Na época histórica esses sacrifícios reais foram substituídos por urna “provação” como o de Isaac ou por um ato de submissão, como o de Ifigênia, mas cuja execução não mais se consumava: Isaac foi substituído por um carneiro e Ifigênia, por uma corça. Trata-se, no paganismo, ao que tudo faz crer, de uma repressão patrilinear: obtida a submissão, o ato se dá por cumprido e o opressor por satisfeito. Electra, a destemida irmã de Orestes, não é mencionada nas epopeias homéricas. Nos poetas posteriores, sobretudo a partir de Ésquilo, Electra substituiu de tal maneira a Laódice, que esta “filha canônica” de Agamêmnon acabou por desaparecer do mito. Após o assassinato do pai por Egisto e Clitemnestra, a princesa, não fora a intervenção da mãe, teria sido também eliminada pelo padrasto. Na realidade, por seu apego incondicional ao pai Agamêmnon (o Complexo de Electra está aí para perpetuá-lo), “a jovem indomável” odiava Egisto e não perdoava a Clitemnestra a coautoria no massacre de seu amado pai. Segundo algumas versões, salvou de morte certa ao pequeno Orestes, confiando-o, em segredo, como já se viu, a um velho preceptor, que o levou para longe de Micenas. Por tudo isto, era tratada no palácio como escrava. Temendo que a enteada tivesse um filho, que, um dia, pudesse vingar a morte de Agamêmnon, Egisto fêla casar com um pobre camponês, residente longe da cidade. O marido, todavia, respeitou-lhe a virgindade. Por ocasião do retorno de Orestes, a jovem princesa trabalhou incansavelmente na preparação da grande vingança e tomou parte ativa no duplo assassinato. Quando, após a morte de Egisto e Clitemnestra, Orestes foi envolvido e “enlouquecido” pelas Erínias, ela colocou-se a seu lado e cuidou do irmão até o julgamento final no Areópago de Atenas. Na tragédia de Sófocles, intitulada Aletes (que era filho de Egisto), hoje infelizmente perdida, Electra figurava como personagem principal. Como Orestes e Pílades houvessem partido para Táurida em busca da estátua de Ártemis, anunciou-se em Micenas que ambos haviam perecido às mãos de Ifigênia. De imediato Aletes apossou-se do trono de Micenas. Como louca, Electra partiu para Delfos e lá, encontrando Ifigênia, que retornara com Orestes e Pílades, arrancou do altar de Apolo um tição ardente e quase cegou a irmã, não fora a pronta intervenção de Orestes. Voltando a Micenas com o irmão, cooperou mais uma vez com ele no assassinato de Aletes. Após as núpcias de Orestes com Hermíona, Electra casou com Pílades. E a maldição dos filhos de Atreu continuou... O ciclo da fatalidade dos atridas serviu de banquete trágico a nove grandes tragédias que chegaram até nós: de Ésquilo (525-456 a.C.): Oréstia (Agamêmnon, Coéforas, Eumênides); de Sófocles (496-405 a.C.): Electra; de Eurípides (480-406 a.C.): Electra, Helena, Ifigênia em Áulis, Ifigênia em Táurida, Orestes. É tempo de se voltar a Micenas. No capítulo seguinte há de se abordar histórica e miticamente a última grande façanha de Micenas, A Guerra de Troia, com o rapto da esposa de Menelau, Helena. Depois, as trevas dóricas descerão sobre as ruínas de Hélade... 1. LLOYD-JONES, Hugh et al. O mundo grego. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, cap. I, p. 18 [Tradução de Waltensir Dutra]. 2. Todos esses deuses e deusas terão seus mitos relatados e comentados nos capítulos subsequentes e sobretudo no Vol. II. 3. VENTRIS, Michael & CHADWICK, John. Documents in Mycenaean Greek. London: Cambridge University Press, 1956, p. 125-126. 4. Nemeias, VI, 1ss. 5. PICARD, Charles. Monum. Piot., t. 49, p. 41ss. 6. PICARD, Charles et al. Éléments orientaux dans la religion ancienne. Paris: PUF, 1960, p. 16ss. 7. LÉVÊQUE, Pierre. Op. cit., p. 69ss. 8. O grande poeta latino Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) nos dá, Epist., 1,1,9, o sentido exato, “físico”, de peccare: Solue senescentem mature sanus equum ne peccet ad extremum ridendus et ilia ducat: “Tem o bom-senso de desatrelar a tempo teu cavalo, que envelhece, a fim de que ele, em meio ao riso, não venha a tropeçar e perder o fôlego”. 9. Parad., 3,1: Alius magis alio uel peccat uel recte facit: “Há uma graduação nas nossas faltas como em nossos méritos”. 10. Doze é um número redondo homérico, inseparável de sua perspectiva cósmica. No gigantesco túmulo de Pátroclo, construído sobre uma base quadrada, Aquiles sacrificou doze jovens troianos. Trata-se do número da “totalidade”. 11. DELCOURT, Marie.Oedipe ou la légende du conquérant. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 66ss. 12. FREUD, Sigmund.Totem et Tabou. Paris: Payot, 1924. A passagem de que fala Marie Delcourt está na p. 197: “O sentimento de culpabilidade do filho gerou os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por este motivo, devem se confundir com os dois desejos reprimidos do complexo de Édipo”. 13. EURÍPIDES. Alceste. Rio de Janeiro: Bruno Buccini Editor, 1968, vs. 615-740. [Tradução de Junito de Souza Brandão]. 14. WESTRUP, C.W. Le roi dans l’Odissée. In: Mélanges Fournier. Paris: 1929, p. 772. 15. A respeito do tema Criança exposta (L’enfant exposé), cf. Marie DELCOURT, Op. cit., p. 365. 16. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: Tragédia e comédia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 2235. CAPÍTULO VI Troia histórica, Troia mítica e as invasões dos dórios 1 A esplendorosa civilização micênica, que, lato sensu, se estendeu do século XVI ao XII a.C., e cuja expansão colonizadora já havia atingido o litoral asiático, culminou com a histórica Guerra de Troia. “Dez anos míticos” de um assédio sangrento teriam posto fim à gloriosa Ílion ou Troia. Hodiernamente, não se põe mais em dúvida não apenas a existência de Troia, que deve ter sido uma superposição de cidadelas muito importantes, desde o terceiro milênio até o século XII a.C., mas sobretudo a sua destruição histórica pelos aqueus. O primeiro grande passo para o descobrimento da “Troia homérica” foi dado por Heinrich Schliemann, que, a partir de 1870, fazendo escavações na colina de Hissarlik, na atual Turquia, a noroeste da Ásia Menor, encontrou várias cidades sobrepostas, nada menos que sete, a que seu extraordinário ajudante, o arqueólogo Wilhelm Dörpfeld, acrescentou mais duas. Schliemann, a princípio, pensou que a Troia II fosse a homérica, mas a cultura e a experiência de Dörpfeld fizeram-no inclinar-se para a Troia VI, que possuía restos de cerâmica muitíssimo semelhantes à de Micenas e Tirinto. Por este e outros indícios conclui-se que a Troia VI fora erigida ~ em 1900 a.C., por um povo sem dúvida proveniente também do mundo indoeuropeu para a Ásia Menor. Cultivando a cerâmica mínia, esse povo não apenas mantinha um comércio ativo com os micênicos, mas, o que é mais importante, devia ter um possível parentesco com os primeiros gregos. Trata-se, segundo todas as probabilidades, dos hititas1. Cercada por magnífica muralha, Troia VI era uma cidade opulenta, cuja prosperidade se baseava na fertilidade de seu solo, na pecuária e na criação de cavalos. Os troianos são chamados comumente por Homero de “domadores de cavalos”, como atesta o último verso da Ilíada, em que o maior dos heróis de Troia recebe este epíteto: – Assim, eles (os Troianos) fizeram os funerais de Heitor, domador de cavalos (Il., XXIV, 804). As escavações em Ílion ou Troia terminaram sob a direção de W. Blegen e, consoante o grande mestre da Universidade de Cincinnati, Troia VI foi destruída por um tremor de terra, seguindo-lhe, sem nenhuma solução de continuidade nem de cultura, embora sem a opulência da anterior, Troia VIIa2com todas as possibilidades de ser a cidade de Príamo, a Troia homérica, a Troia histórica. Aliás, alguns outros fatos rigorosamente históricos, relacionados por Page3, confirmam a historicidade da Guerra de Troia. Há registros hititas de uma aliança de cidades da Ásia Menor, entre as quais aparece Ílion ou Troia4, contra uma coligação de reinos aqueus, ~ pelo século XIII a.C., exatamente no momento do grande poderio de Micenas, e, coincidentemente, da destruição de Ílion, que deve ter-se processado ~ entre 1230 e 1225 a.C., segundo os arqueólogos americanos, com uma diferença de poucos decênios em relação à data tradicional da Guerra de Troia. Esta, consoante o geógrafo e philologus alexandrino do século III a.C., Eratóstenes de Cirene, fora em 1183 a.C. A Ilíada funde, pois, o fausto da Troia VI com a ruína da Troia VIIa. Com a VI, que trouxera consigo o cavalo, se dera início a uma civilização diferente da anterior. Troia VIII, que ainda se sobrepôs à Troia VIIa, culturalmente nada apresenta de importante e Troia IX é de data muito tardia. Discutem-se ainda as causas dessa guerra. Uma vasta operação de pilhagem ou uma bem planejada operação de expansão imperialista, para se apossar de vastos domínios territoriais no Mediterrâneo oriental e assegurar o monopólio aqueu de um grande e rico empório? Na realidade, é grande o número deobjetos micênicos encontrados nas margens do Mediterrâneo, o que atesta a sua expansão comercial. Para o agressivo comércio helênico não bastavam, porém, as “praças” conquistadas no Mediterrâneo oriental. Avançaram também em direção ao Egito, com o qual mantiveram excelentes relações comerciais. Descobrimentos arqueológicos mostraram inúmeros objetos egípcios chegados à Grécia nos séculos XIV e XIII a.C. e, em contrapartida, desenterram-se no país dos Faraós numerosos vasos micênicos, principalmente em Tell-elAmarna, a célebre Akhetaton, a efêmera capital do “herético” Akhnaton ou Amenófis IV. Disputaram com o Egito e os hititas, já em decadência, as praças da Síria e da Fenícia. Penetrando pelo interior, chegaram até Jericó... Os aqueus, por conseguinte, não se satisfizeram com a ocupação de Creta, Rodes e Chipre, mas conquistaram estabelecimentos comerciais em toda a costa do Mediterrâneo oriental, desde Tróada até o Egito e isto sem falar em sua “expansão ocidental”, que atingiu, comprovadamente, Tarento e Siracusa. Ora, um tal império marítimo haveria, mais cedo ou mais tarde, que chocar-se com interesses de outros povos. E foi exatamente o que aconteceu. Os micênicos, que já se haviam instalado em Mileto e Cólofon e que tinham em Troia um excelente cliente, para a qual vendiam punhais de bronze, pontas de flecha, mármore, objetos de marfim e sobretudo vasos, acabaram chocandose com o império hitita e com o reino vassalo de Asuwa. Daí, possivelmente, a supracitada coligação de vinte e duas cidades da Ásia Menor, entre as quais se alinhava Troia, contra os aqueus. Esta é, em síntese, a tese de Denys Page. Pierre Lévêque, apoiado em outros autores, julga que seria um método muito estranho o empregado pelos aqueus, para ampliar seu negócio: destruir precisamente uma cidade que com eles mantinha um comércio ativo e regular. Opina o ilustre professor de Besançon que a Guerra e a consequente destruição de Ílion se deveram simplesmente “a uma gigantesca operação de pilhagem”5. É mister, no entanto, não esquecer que a riquíssima cidadela de Troia (as escavações o mostraram), no momento, fazia parte de uma coligação contra os micênicos. Estes, astutamente, teriam aproveitado a oportunidade para destruir um inimigo e confiscar-lhe as riquezas. De qualquer forma, a Guerra de Troia foi o canto de cisne do “império” aqueu. A derradeira expedição em que heróis destemidos se congregaram para impor-se no Mediterrâneo oriental. Tudo não teria passado de mais uma gesta, certamente heroica, não fora a epopeia homérica, que imortalizou o arrojo e o arrebatamento de Aquiles, a astúcia e a “nostalgia” de Ulisses, a fidelidade de Penélope, a dignidade de Heitor e a ternura de Andrômaca! Mais um pouco e as trevas dórias descerão sobre a Hélade. 2 A civilização micênica havia pois atingido seu clímax, quando lá pelos inícios do século XII a.C. chegaram à Hélade as últimas levas de invasores indo-europeus, tradicionalmente denominados dórios. É inteiramente impossível, todavia, localizar no tempo um movimento que se processou lentamente e ao longo dos séculos. Uma coisa, porém, parece indiscutível: o incêndio de Hatusa, capital do império hitita na Ásia Menor, com o consequente desmoronamento deste mesmo império; a ameaça que pesou sobre o Egito por parte dos povos do mar, contida com dificuldade por Ramsés III, bem como a destruição dos grandes centros da civilização micênica, seguida de uma completa ruptura e desagregação política, religiosa e cultural do mundo aqueu, devem-se à erupção violenta dos dórios. Partindo do Danúbio ou da Ilíria, esses “gregos” já conhecedores do ferro, aguerridos e violentos, penetraram em vagas sucessivas pelo Epiro e, através da Macedônia e da Tessália, lograram apossar-se, grosso modo, de toda a Grécia continental, bem como de várias ilhas, principalmente de Creta, chegando até Rodes. Dessa grande calamidade sobraram, ao que parece, as ilhas de Eubeia, Chipre e a Ática, com sua Atenas eterna, talvez deixada de lado pela pobreza de seu pequeno território. Ao apagar das luzes do século XI a.C., chegou ao fim a catástrofe que submergiu toda a civilização micênica. Exatamente como as invasões dórias, as migrações aqueias, jônicas e eólicas, fugindo ao vencedor, se fizeram paulatinamente, no tempo e no espaço, em direção à Ásia Menor. Essas migrações, é bom acentuar, que já haviam começado em plena época micênica, bem antes portanto das invasões dórias e que prosseguiram durante e por causa das mesmas, tiveram continuidade, por motivos outros, sobretudo de ordem política e econômica, até o século IX a.C. Assim, a época da provável “composição” da Ilíada (século IX a.C.), a Grécia da Ásia, reduzida a um esquema muito simples, apresentase seccionada em três zonas étnicas: ao norte, a Eólida, com as ilhas de Tênedos e Lesbos; ao centro, a Jônia, com as grandes cidades de Mileto, Cólofon, Foceia, Éfeso e as ilhas de Samos e Quios; ao sul, a Dórida, com as cidades de Halicarnasso, Cnido e as ilhas de Cós e Rodes. As invasões dórias, do ponto de vista mítico, coincidem com o chamado Retorno dos Heraclidas, isto é, lato sensu, todos os filhos e descendentes de Héracles até a geração mais remota, mas, no mito, denominam-se Heraclidas particularmente os filhos do herói com Dejanira e os descendentes destes que colonizaram o Peloponeso, conforme está resumido neste quadro genealógico: Héracles Dejanira Hilo, Ctesipo, Gleno, Hodites e Macária Cleodeu Aristômaco Têmeno Após a morte trágica de Héracles no monte Eta e sua gloriosa apoteose, os filhos fugiram do Peloponeso, temendo a cólera de seu primo Euristeu, que impusera ao herói os célebres Doze Trabalhos. Após uma curta permanência na corte do rei Cêix, em Traquine, refugiaram-se em Atenas, onde Teseu, sem recear a pressão e as ameaças de Euristeu, lhes deu hospitalidade. Este declarou guerra aos atenienses, mas na batalha perdeu os cinco filhos. Perseguido por Hilo, Euristeu foi morto junto dos Rochedos Cirônicos, no Istmo de Corinto. A vitória, de acordo com a previsão do oráculo, se deveu ao sacrifício de uma das filhas de Héracles, Macária, que se ofereceu voluntariamente para morrer pelo bom êxito de Atenas e dos Heraclidas contra o despotismo de Euristeu. Com o desaparecimento deste e dos filhos, Hilo com seus irmãos e descendentes apoderou-se do Peloponeso. Ao cabo de um ano, porém, uma peste se abateu sobre a região e o oráculo revelou que a mesma era consequência da cólera divina, porque os Heraclidas haviam retornado antes do tempo fixado pela Moîra. Obedientes, voltaram para a Ática, fixando-se na planície de Maratona. Desejoso, porém, de regressar à pátria, Hilo, a essa época, já casado com Íole, outrora concubina de seu pai, e ao qual os irmãos consideravam como o verdadeiro herdeiro da tradição paterna, voltou a consultar o oráculo de Delfos. A Pítia lhe respondeu que a aspiração dos Heraclidas só poderia ser alcançada “após a terceira colheita”. À frente dos seus, “após a terceira colheita”, Hilo avançou contra o Peloponeso, mas se chocou com as tropas de Équemo, rei de Tégea, cunhado dos Dioscuros, de Helena e Clitemnestra. Tendo-o desafiado para um combate singular, Hilo foi vencido e morto. Seu neto Aristômaco voltou a consultar a Pítia que lhe respondeu: “Os deuses te darão a vitória, se atacares pela via estreita”. Aristômaco interpretou que “a via estreita” era o Istmo de Corinto. Atacou novamente a Équemo, mas foi morto e, mais uma vez, os Heraclidas foram vencidos. Têmeno, filho de Aristômaco e bisneto de Hilo, fez mais uma tentativa junto a Apolo. Este se limitou a repetir e a renovar as respostas anteriores. Têmeno observou à Pítia que seu pai e bisavô, tendo seguido escrupulosamente as determinações do oráculo, foram vencidos e mortos. Replicou-lhe Apolo que a culpa havia sido deles, que não haviam sabido interpretar corretamente o oráculo: por “terceira colheita” se deveria entender “terceira geração” e, por “via estreita”, “a via do mar e os estreitos entre a costa da Grécia continental e a do Peloponeso”. Têmeno formava com seus irmãos a terceira geração após Hilo, e, tendo compreendido agora o oráculo, pôs-se a construir uma verdadeira frota em Naupacto, na costa da Lócrida, mas a morte do adivinho Carno por um dos Heraclidas fez que uma imensa tempestade dispersasse a frota e houve uma fome tão grande, que todos debandaram. Mais uma consulta a Apolo. O deus respondeu que as calamidades se deviam ao assassinato de Carno e que a vitória dependia do banimento do homicida por dez anos e de “um guia de três olhos”. O assassino foi expulso e, um dia, apareceu no acampamento dos descendentes de Héracles “um ser de três olhos”: um caolho montado num cavalo. Esse caolho era Óxilo, rei da Élida, de onde fora expulso por um ano, por causa de um homicídio involuntário. O rei se dispôs a guiá-los, desde que tivesse o apoio dos mesmos para recuperar o trono. Travada a batalha, a vitória, dessa feita, foi da “terceira geração”. O rei do Peloponeso, Tisâmeno, filho de Orestes, foi morto e suas tropas destroçadas. O Peloponeso foi, a partir de então, dividido em três reinos básicos: Argólida, Lacônia e Messênia. A Élida teve seu rei Óxilo de volta e a Arcádia permaneceu nas mãos de seus primitivos habitantes. Um século após a morte de Héracles, seus descendentes voltaram ao Peloponeso. O retorno dos Heraclidas reflete as lutas sangrentas travadas pelos invasores dórios contra os aqueus e o auxílio que àqueles foi prestado “por guias” e chefes de um clã aqueu no exílio. 3 Com as invasões dórias houve, já se disse, uma completa ruptura e desagregação política, social, religiosa e cultural do mundo aqueu. Durante séculos se afirmou que os dórios haviam “criado” na Hélade duas novidades de importância capital: a metalurgia do ferro e a cerâmica geométrica e que a conquista do Peloponeso se devera à superioridade das armas de ferro dórias sobre o armamento de bronze dos aqueus. Quanto ao ferro, não foi o mesmo “inventado” nem tampouco usado pela vez primeira pelos dórios. A metalurgia do ferro já se conhecia bem antes na Anatólia e seu monopólio pertencia aos hititas. Com a ruína do império centrado em Hatusa, o uso do ferro se difundiu pela Palestina e Creta, e depois pela Grécia, possivelmente, isto sim, através dos dórios. A cerâmica geométrica, que predominou na Hélade de ~ 1100 a 750 a.C., não é também uma criação dória: surgiu, na realidade, da arte micênica e, coincidentemente, alcançou seu maior esplendor em terras não dominadas pelos dórios: Atenas e a ilha de Chipre. As grandes “novidades” dórias foram no plano social e religioso. Fortemente organizados em torno de seus chefes militares, os invasores estavam ainda muito presos e ligados à primitiva e belicosa sociedade indo-europeia. Reinava entre eles uma patrilinhagem feroz, dada a superioridade do homem como guerreiro. Houve, nesse sentido, um retrocesso muito sério em relação aos reinos aqueus, onde a mulher, mercê da influência matrilinear cretense, gozava de uma liberdade, de uma estima e de um respeito, que nunca mais ela terá, ao menos na Grécia continental. Vivendo em comunidades, indissoluvelmente ligados pela camaradagem bélica, os homens prolongavam na vida diária essa convivência íntima, própria da guerra em que estavam de contínuo empenhados. Desse modus uiuendi originaram-se, certamente, dois hábitos, que se hão de perpetuar no helenismo: a nudez do atleta e a pederastia6. Estrabão (~ 63 a.C.-19 d.C.), misto de filósofo estoico, historiador e geógrafo, nos fala em sua Geografia, 10,483, de certos hábitos cretenses herdados dos dórios: o jovem, em plena adolescência, antes de ser admitido na classe dos adultos, era raptado por um mais velho e com este passava dois meses no campo. Ao retornar, recebia do amante uma armadura completa e tornava-se seu companheiro inseparável no combate. Só então, após esse “rito iniciático”, era o adolescente admitido no ἀνδρεῖον, (andreîon), isto é, no clube dos homens. No plano religioso, o retrocesso dório foi responsável também por algumas transformações bem acentuadas. O equilíbrio “patriomatrilinear” conquistado a duras penas pela civilização micênica, mercê da influência cretense, acentue-se mais uma vez, foi, no mundo dório, inteiramente rompido. As deusas, hipóstases da Grande Mãe, foram alijadas e instaurou-se uma sociedade divina de feição patrilinear, à imagem e semelhança da sociedade viril dória, uma vez que a mulher espartana, abandonando a dança e a música, tão cotadas na educação micênica, transformou-se em “atleta”. A graça e a feminilidade de outros tempos foram substituídos por uma concepção utilitarista e crua: a mulher tinha o dever sagrado, antes do mais, de se preparar para ser mãe fecunda de filhos robustos. Por outra: a mulher espartana tornou-se matriz sadia, uma espécie de laboratório eugênico, como aconteceu, guardadas as devidas proporções, com a juventude dos estados totalitários do tipo fascista, na Gioventù fascista, na Hitlerjugend e continua a acontecer nos milenarismos utópicos... Dodona e Olímpia, outrora possessão de deusas-mães, são solenemente ocupadas por Zeus. Delfos, outrora domínio de Geia e da serpente Píton, é, a sangue e fogo, ocupado por Apolo, que, não satisfeito, expulsa de Amiclas, cidade muito próxima de Esparta, a Jacinto, jovem herói pré-helênico da vegetação. Em síntese, ao equilíbrio entre patrilinhagem e matrilinhagem que caracterizava o sincretismo creto-micênico sucedeu o mais grosseirodomínio masculino. Sofreram igualmente transformações os hábitos funerários. A inumação, que era o processo universalmente praticado em toda a Hélade, foi substituída, a partir dos dórios, pela cremação. De qualquer forma, as invasões dórias foram um desastre. Nos inícios do século XII a.C., a civilização micênica foi varrida do solo helênico. Micenas, Tirinto, Tebas, Pilos foram destruídas e incendiadas. A escrita, embora de caráter administrativo, desapareceu ou deixou de ser usada. O contato e o comércio com o mundo exterior foram reduzidos a quase nada. A extraordinária arte micênica entrou em franca decadência. Durante pelo menos três séculos “a Grécia ficou isolada, empobrecida, paroquial”. Era a Idade de Ferro. Um caos cultural envolveu em trevas dórias a Grécia continental. Jônios, eólios, mas sobretudo os aqueus, tangidos pelos invasores, voltaram à Ásia Menor, não mais como conquistadores: eram agora suplicantes. Não formavam, certamente, grupos naturais, compactos e fortes; não eram portadores do fogo sagrado de seus lares, nem os guiavam seus deuses nacionais. O génos estava definitivamente rompido. Eram tão somente refugiados e indigentes, sem deuses, sem pátria, sem lar. A pouco e pouco, todavia, começaram a fundir-se com seus antigos e esquecidos irmãos de outrora. Multiplicam-se os casamentos. Até mesmo o poder político dividiu-se, muitas vezes, entre os plutocratas senhores da Ásia Menor grega e os imigrados. Bem mais rápido do que era de se esperar, os dinastas da Jônia vangloriavam-se de sua origem continental. Eis aí como se apresenta a situação da Jônia, à época em que nasceu a Ilíada, situação que deveria ter sido outra, cerca de quatro séculos antes. Aportaram à Ásia Menor como imigrantes, mas esta situação era contrabalançada por um grande orgulho: a lembrança do império aqueu, de sua opulência e de suas conquistas. O passado era sua riqueza: viviam em póthos, na doce lembrança da presença de uma ausência. Herdeiros da raça da idade dos heróis, tinham na lembrança que esta terra a que chegavam como suplicantes, seus ancestrais haviam-na pisado como conquistadores. A glória de uma de suas derradeiras façanhas, a destruição de Ílion, mantinha-lhes a coragem, quando forçados a combater para conquistar um lugar ao sol. Seus poetas e aedos, rememorando-lhes este passado, alimentavam-lhes o sentimento e o orgulho de serem descendentes de uma idade heroica7. 4 Falou-se de uma Ílion histórica, de uma guerra histórica, mas existe também uma Troia mítica, com sua guerra gigantesca de dez anos. Tudo começou com o rapto de Helena, mulher de Menelau, um dos filhos amaldiçoados de Atreu. Vamos mostrar o mito e suas consequências, desde os primórdios. Tétis (Thétis), que é preciso não confundir com a titânida Tétis (Tethýs), era a mais bela das nereidas, filha do Velho do Mar, Nereu, e de Dóris. Zeus e Posídon queriam conquistá-la, mas um oráculo de Têmis revelou que o filho nascido do enlace da nereida com um dos dois seria mais poderoso que o pai. De imediato os dois deuses desistiram de seu intento e, para afastar qualquer ameaça, apressaram-se em conseguir para ela um marido mortal. Outros mitógrafos atribuem o oráculo a Prometeu, que havia predito que o filho de Zeus e Tétis se tornaria o senhor do mundo, após destronar o pai. O centauro Quirão, sem perda de tempo, começou a orientar seu discípulo Peleu no sentido de conquistar a filha imortal de Nereu. Apesar de todos as sucessivas metamorfoses de Tétis, o que é próprio das divindades do mar, em fogo, água, vento, árvore, pássaro, tigre, leão, serpente e, por fim, em verga, Peleu, orientado por Quirão, a segurou firmemente e a deusa, embora contra a vontade, deu-se por vencida. Para as bodas solenes de Tétis e Peleu, no monte Pélion, compareceram todos os deuses. As Musas cantaram o epitalâmio e todos os imortais ofereceram lembranças aos noivos. Entre as mais apreciadas e notáveis destacam-se uma lança de carvalho, dádiva de Quirão, e o presente de Posídon, dois cavalos imortais, Bálio e Xanto, os mesmos que, na Guerra de Troia, serão atrelados ao carro do bravo Aquiles. O casamento do discípulo de Quirão com a filha de Nereu foi um desastre. Já haviam tido seis filhos, mas, na ânsia de imortalizá-los, Tétis sempre acabava por matá-los. Assim foi, até que Peleu lhe tomou das mãos o sétimo, o caçula Aquiles, no momento em que a nereida, na tentativa de imortalizá-lo, segurando-o pelo calcanhar direito, o temperava ao fogo. Outra versão assevera que Tétis, segurando-lhe o mesmo calcanhar, o mergulhava nas perigosas águas do rio infernal Estige, que tinham o dom de tornar invulnerável tudo que nelas fosse introduzido. Na realidade, Aquiles era invulnerável, menos no local por onde a mãe o segurou... Tétis, inconformada com a atitude do marido, a quem, aliás, não amava, o abandonou para sempre. Embora confiando ao pai o filho caçula, jamais deixou de ajudá-lo e protegê-lo por todos os meios a seu alcance, como se pode ver através de toda a Ilíada. A Moîra, porém, tem os seus desígnios e Aquiles perecerá muito jovem, exatamente pelo calcanhar não temperado pelo fogo ou não banhado pelas águas do Estige. De qualquer forma, foi durante as núpcias de Tétis e Peleu que Éris, a Discórdia, com certeza “convidada a não comparecer” ao monte Pélion, deixou cair entre os deuses a maçã de ouro, o Pomo da Discórdia, destinado à mais bela das três deusas ali presentes: Hera, Atená e Afrodite. In continenti se levantou uma grande disputa e altercação entre as três. Não se atrevendo nenhum dos deuses a assumir a responsabilidade da escolha, Zeus encarregou Hermes de conduzir as três imortais ao monte Ida, na Ásia Menor, onde seriam julgadas pelo “pastor” Páris ou Alexandre. Antes de se lhe conhecer a decisão, uma palavra sobre o extenso mito do pastor do monte Ida. Páris ou Alexandre era o filho caçula de Príamo, rei de Troia, e de sua esposa Hécuba. Esta, nos últimos dias de gravidez, sonhou que estava dando à luz uma tocha que incendiava a cidade. Príamo consultou a seu filho bastardo Ésaco e obteve como resposta que o nascituro seria a ruína de Ílion. O rei, por isso mesmo, mandou matar a criança, tão logo nasceu, mas Hécuba o entregou ao pastor Agesilau, para que o expusesse no monte Ida. O servo assim fez, mas, regressando cinco dias depois, encontrou uma ursa amamentando o menino. Impressionado, Agesilau o recolheu e criou ou, segundo uma variante, o entregou aos pastores do Ida, para que o fizessem. Páris cresceu forte e belo, tornando-se um pegureiro corajoso, que defendia o gado contra os ladrões e os animais selvagens, recebendo, por isso mesmo, o nome de Alexandre, isto é, “o protetor dos homens”, e, numa interpretação mais popular e mítica, “o que protege” o rebanho ou “o homem protegido”, por não ter perecido no monte Ida. Certo dia, os servidores de Príamo foram buscar no rebanho, que Alexandre guardava, um touro pelo qual o pastor tinha particular estima. Inconformado com o fato de que o animal seria o prêmio do vencedor nos Jogos Fúnebres em memória do filho de Príamo, quer dizer, em honra do próprio Páris, que os pais reputavam morto, o valente zagal seguiu os servidores do rei, resolvido a participar do certame e recuperar seu animal favorito. Alexandre participou das provas e venceu-as todas, competindo contra os próprios irmãos, que não sabiam quem era ele. Deífobo, um deles, irritado, quis matá-lo com a espada, mas o vencedor refugiou-se no altar de Zeus. Sua irmã, a profetisa Cassandra, o reconheceu e Príamo, feliz por ter reencontrado o filho, que julgava morto, acolheu-o e deu-lhe o lugar que lhe cabia no palácio real. Pois bem, foi a este Páris, quando ainda era pastor no monte Ida, que Zeus enviou Hermes com as três deusas que disputavam, com sua beleza, a maçã de ouro, a grande provocação de Éris, a Discórdia. Ao ver as divindades, o pastor teve medo e quis fugir, mas Hermes o persuadiu a funcionar como árbitro, em nome da vontade de Zeus. As imortais expuseram então seus argumentos e defenderam sua própria causa e candidatura, oferecendo-lhe cada uma sua proteção e dons particulares, se fosse por ele declarada vitoriosa. Hera prometeu-lhe, se vencedora, o império da Ásia; Atená, a sabedoria e a vitória em todos os combates; Afrodite assegurava-lhe tão somente o amor da mulher mais bela do mundo: Helena, mulher de Menelau, rainha de Esparta. Alexandre decidiu que a mais bela das três era Afrodite. Até o dia desse julgamento fatídico, que provocará a Guerra de Troia, Páris amava uma ninfa do Ida, chamada Enone. Conhecedora do futuro e hábil curandeira, ambos dons de Apolo, tudo fez para que Páris não a abandonasse. Ao ver que suas previsões e súplicas eram inúteis, disse-lhe, na despedida, que, se fosse ferido, voltasse, pois só ela poderia curá-lo. Da cidadela de Ílion, em companhia de Eneias, partiu Alexandre para Esparta, em busca de Helena. Heleno e Cassandra, filhos de Príamo, e ambos dotados de poder divinatório (manteía), previram o desfecho trágico da aventura, mas ninguém lhes deu ouvido. No Peloponeso, Páris e Eneias foram acolhidos pelos Dioscuros, Castor e Pólux, irmãos de Helena, que os conduziram ao palácio real. Menelau os recebeu dentro das normas da sagrada hospitalidade e lhes apresentou Helena. Dias depois, tendo sido chamado a Creta, para assistir aos funerais de seu padrasto Catreu, o rei entregou os hóspedes à solicitude da esposa. Bem mais rápido do que se esperava, a rainha foi conquistada por Páris: era jovem, belo, cercava-o o fausto oriental e tinha a ajuda indispensável de Afrodite. Helena, apaixonada, reuniu todos os tesouros que pôde e fugiu com Alexandre, levando várias escravas, inclusive a cativa Etra, mãe de Teseu, mas deixando em Esparta sua filha Hermíona, com apenas nove anos. Regressando a Troia, Páris foi bem acolhido por Príamo e toda a casa real, não obstante as terríveis profecias de Cassandra. Sabedor de sua desgraça por Íris, mensageira dos imortais, o monarca voltou apressadamente a Esparta e, para tentar resolver pacificamente o grave problema, Menelau e Ulisses foram como embaixadores a Ílion. Reclamaram Helena e os tesouros carregados pelo casal. Páris se recusou a devolver tanto Helena quanto os tesouros e ainda tentou convencer os troianos a matarem o rei de Esparta, que foi salvo por Antenor, companheiro e prudente conselheiro do velho Príamo. Com a recusa de Páris e sua traição a Menelau, a guerra se tornou inevitável. Reunidos todos os reis e heróis, que haviam prestado juramento de solidariedade a Tíndaro, por ocasião do casamento de Helena, de que já se falou, deu-se início aos preparativos da grande expedição contra Troia. Consultado o Oráculo de Delfos acerca da oportunidade de se iniciar uma expedição militar contra Ílion, aquele respondeu que se oferecesse a Atená Prónoia, Atená “Providência”, porque era preciso tê-la in bono animo, um colar que Afrodite outrora dera a Helena. Hera pôs-se, de imediato, ao lado de Menelau e tudo fez para reunir os heróis aqueus contra Páris, seu inimigo pessoal. É curioso, aliás, como os deuses se dividiram, militarmente, nessa refrega, tendo cada um, evidentemente, seus motivos e interesses pessoais. Se ao lado dos helenos se alinharam Atená, Hera, Tétis, Posídon e Hefesto, nas fileiras troianas pelejavam Afrodite, Ares, Apolo e Ártemis. Alguns deles foram até mesmo feridos em combate, como Ares e Afrodite. Tem-se, não raro, a impressão, na leitura da Ilíada, de que a Guerra de Troia, em determinados momentos, foi mais uma teomaquia, uma luta de deuses, do que uma andromaquia, um confronto de heróis. Zeus posicionou-se como árbitro, não de todo isento: dependia, por vezes, do tom da voz feminina que lhe chegasse aos ouvidos... Em todo caso, pesava os destinos, confundindo-se, muitas vezes, com a própria Moîra e, no fundo, sabedor de que a vitória final seria dos aqueus, soube retardá-la, para dar-lhe um brilho maior. Concluída a digressão, é mister voltar aos preparativos para a sangrenta seara de Ares. Não foi fácil convocar alguns dos chefes e heróis indispensáveis para a vitória dos gregos. É o caso, entre outros, de Aquiles, sem cuja presença, consoante a profecia de Calcas, Troia não poderia ser conquistada. É que o herói fora escondido pela própria mãe. Tendo ciência de que o fim de Troia coincidiria com a morte do filho, Tétis vestiu-o com hábitos femininos e o conduziu para a corte do rei Licomedes, na ilha de Ciros, onde o herói passou a viver disfarçado no meio das filhas do rei, com o nome de Pirra, isto é, ruiva, porque o herói tinha os cabelos louro-avermelhados. Sob esse disfarce feminino, Aquiles se uniu a uma das princesas, Deidamia, e deu-lhe um filho, Neoptólemo, o mesmo que, mais tarde, tomará o nome de Pirro. Tendo conhecimento do esconderijo do filho de Tétis, Calcas o revelou aos atridas, que enviaram Ulisses e Diomedes para buscá-lo. Mesmo assim o maior dos heróis aqueus teve uma oportunidade de escolha, pois Tétis preveniu o filho do destino que o aguardava: se fosse a Troia, teria uma fama retumbante, mas sua vida seria breve; se, ao contrário, ficasse, viveria por longo tempo, mas sem glória. Aquiles escolheu a vida breve e gloriosa. O historiador latino Caio Salústio Crispo (86-~35 a.C.), muitos séculos depois, ainda faria ecoar a opção de Aquiles: ...et quoniam uita ipsa, qua fruimur, breuis est, memoriam nostri quam maxume longam efficere... (De Coni. Cat., 1,3): “e, já que a vida que desfrutamos é breve, devemos fazer por deixar de nós a mais longa memória”. E Marco Túlio Cícero (106-40 a.C.) parece ter-lhe completado o sentido: Breue enim tempus aetatis, satis longum est ad bene honesteque uiuendum (De Sen., 19,70): “Curto, na verdade, é o tempo de nossa vida, mas é bastante longo para se viver bem e honradamente”. Congregados, por fim, os grandes heróis, Aquiles, Ulisses, Ájax, Filoctetes, Diomedes, Agamêmnon, Menelau, Nestor... os aqueus partiram para a Tróada. Apaziguada, como já se relatou, a cólera de Ártemis em Áulis, a gigantesca frota aqueia chegou a seu destino. Eram, ao todo, conforme o Catálogo das Naus, Il., II, 494-769, mil cento e noventa e três naus! Nos dois primeiros cantos da Ilíada o combate propriamente ainda não começara. No terceiro ainda existia uma possibilidade de se resolver a grave situação, sem grande derramamento de sangue: a proposta foi do próprio Páris, que sugeriu um combate singular entre o ofendido, Menelau, e o ofensor, ele, Páris. Com o vencedor ficariam Helena e os tesouros. Travou-se a luta entre os dois heróis e, quando Menelau estava prestes a liquidar a Páris, Afrodite interveio. Envolveu o troiano num manto de nuvens e o transportou para os braços de Helena, aliás o campo de batalha predileto de Alexandre, que, como herói e guerreiro, deixa muito a desejar! Agamêmnon reclamou a vitória de Menelau, mas nada conseguiu. Houve, a seguir, um pequeno intervalo de tréguas, que foram logo rompidas por um aliado dos troianos, o lício Pândaro, que atirou uma seta contra Menelau. A partir desse momento começou realmente a cruenta refrega pela posse de Ílion, que só foi tomada e destruída, após a morte de seu ínclito herói Heitor e, assim mesmo, graças a um genial estratagema inspirado por Atená, materializado por Epeu e que “um dia o divino Ulisses introduziu na cidadela, pejado de guerreiros, que saquearam Ílion”. Trata-se do Cavalo de Troia. A grande cilada grega já aparece no canto VIII da Odisseia pelos lábios do aedo Demódoco, e que foi magnificamente desenvolvida e enriquecida sete séculos depois no canto 2 da Eneida do mais inspirado poeta latino, Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.). Fingindo uma retirada, canta Homero na Odisseia (VIII, 500-520), pela voz de Demódoco, parte dos aqueus, após incendiar as tendas, embarcou em suas naus, enquanto outros sentavam-se silenciosos em torno de Ulisses, dentro do Cavalo, que os troianos haviam arrastado para dentro de Ílion. Grande era a querela dos vassalos de Príamo a respeito do que fazer com o gigantesco simulacro de madeira. Três eram as propostas: abrir-lhe o bojo com o bronze; arremessá-lo do cimo dos rochedos ou poupar o grande simulacro como oferta propiciatória aos deuses. A terceira foi a vencedora, “porque era destino da cidade que fosse arruinada, quando tivesse dentro o grande Cavalo de Madeira, onde se escondiam todos os mais valentes dos argivos, que levavam aos troianos carnificina e morte. E o aedo cantava como os filhos dos aqueus, após saírem do cavalo e deixarem o bojo do monstro, destruíram Troia”. Foram dez anos de ódio, de terror, de lágrimas, de vilania e de bravura indomável, de morte e de carnificina. No fim, tudo acabou. Ílion era um monte de cinzas e de pedras calcinadas. Milhares de heróis, bravos e destemidos, transformaram Troia num silencioso dormitório de mortos. Aquiles, cujo destino estava traçado, foi morto ingloriamente por uma flecha disparada por Páris, que, escondido atrás da estátua de Apolo, o alvejou. A flecha, guiada pelo deus, atingiu o herói na única parte vulnerável do corpo, o calcanhar direito. Mas também o raptor de Helena estava com seus momentos cronometrados pela Moîra: foi mortalmente ferido por uma flechada de Filoctetes. Procurou desesperadamente o auxílio de Enone, a ninfa que ele abandonara no monte Ida, pois somente ela poderia curá-lo. Enone, a princípio, se recusou a atendê-lo, ainda amargurada com a ingratidão e infidelidade de Páris. Quando, por fim, resolveu socorrê-lo, era tarde demais. Após a morte de Alexandre, Helena se casou com Deífobo, também filho de Príamo e Hécuba. Menelau, porém, foi ao encalço do casal e liquidou Deífobo. Quando levantou a espada para matar Helena, esta se lhe mostrou seminua e ressurgiram no rei de Esparta as chamas do antigo amor! Certamente, ao levantar a espada para descarregá-la na esposa infiel, Menelau estava irritado com o peso do capacete empenachado de crinas e outros enfeites que lhe cobriam a cabeça... O retorno do casal, agora reconciliado, foi uma odisseia. Tempestades, naufrágios, calmarias, fome e uma permanência forçada de cinco anos no Egito marcaram-lhe o difícil regresso. Finalmente, após oito anos de sofrimentos, abriram-se de novo para o rei Menelau e a rainha Helena as altas portas do palácio de Esparta, onde Telêmaco, filho de Ulisses, em suas peregrinações em busca do pai, irá encontrá-los felizes e sorridentes! Nestas alturas dos acontecimentos, os deuses já se haviam esquecido de Troia, perpetuando, no Olimpo, sua imortalidade com o néctar e a ambrosia, num sorriso interminável! Menelau, apesar de na Ilíada e mesmo nos Poemas Cíclicos8não ter sido nenhum modelo de heroísmo e de apresentar-se como personagem apagada, indecisa e sem personalidade, mereceu, já em idade avançada, ser transportado em vida para a Ilha dos BemAventurados. Um “prêmio” dos Imortais, talvez por ter sido genro de Zeus ou por sua rigorosa e pacífica fidelidade conjugal... Helena, por motivos que se dirão logo a seguir, teria ficado por aqui mesmo, em seus santuários, até mesmo porque, numa sociedade acentuadamente patrilinear, como a enfocada por Homero, uma mulher, embora filha de Zeus, dificilmente chegaria à Ilha de Avalon! Existe, porém, uma variante mais tardia, segundo a qual a linda Helena se teria casado com Aquiles (post mortem?) e o casal estaria vivendo no meio de festins na Ilha Branca, no mar Negro, na foz do rio Danúbio (v. Helena, o eterno feminino). Falou-se, neste capítulo, do rapto de Helena. Tal fato merece um ligeiro comentário. Helena não foi raptada apenas uma vez, mas duas. O mito da esposa de Menelau é deveras confuso e complexo. Inúmeras variantes posteriores a Homero parecem encobrir o sentido primitivo do mitologema. Filha de Zeus e de Leda, na epopeia homérica, seu pai “humano” era Tíndaro e seus irmãos os Dioscuros, Castor e Pólux, e uma irmã, Clitemnestra. Muito cedo, todavia, Helena tornou-se filha de Zeus e de Nêmesis. Esta, para fugir à tenaz perseguição de Zeus, símbolo da fecundação, percorreu o mundo inteiro, tomando todas as formas possíveis, até que, cansada, no outono, se metamorfoseou em gansa. O deus se transformou em cisne e a ela se uniu, em Ramnunte, perto de Maratona, na Ática. Em consequência dessa união, Nêmesis pôs um ovo que foi escondido num bosque sagrado, “a semente guardada no seio da terra”. O ovo, encontrado por um pastor, foi entregue a Leda. Esta o guardou num cesto e, no tempo devido, nasceu Helena, que Leda criou como sua própria filha. A tradição que faz de Leda mãe de Helena narra o fato de maneira análoga: para evitar que Leda lhe escapasse, certamente metamorfoseada também em gansa, Zeus, sob a mesma forma de cisne, fê-la pôr um ovo, de que nasceu Helena. Segundo outra versão, eram dois ovos: de um nasceram Helena e Pólux, que foram imortalizados pelo pai; do outro, Castor e Clitemnestra, ambos “mortais”. Pois bem, essa personagem mítica especial, Helena, foi raptada, uma primeira vez, pelo herói ateniense Teseu, que a conduziu a Afidna, na Ática, e a confiou à sua mãe Etra. Mas quando Teseu e seu amigo inseparável, Pirítoo, desceram ao Hades para raptar Perséfone, deusa essencialmente da vegetação, os Dioscuros atacaram Afidna, levando de volta sua irmã e como cativa a mãe de Teseu, Etra, que, como já se viu, foi conduzida para Troia por Helena, quando de seu segundo rapto por Páris. Ora, todos os fatos acima narrados acerca do nascimento da rainha de Esparta, sempre tendo, de um lado, por pai um deus da fecundação e por matriz um ovo, e, de outro, as fugas constantes de “suas mães”, Nêmesis e Leda e “seus raptos” por Teseu e Páris, parecem levar a uma só conclusão: Helena teria sido primitivamente uma deusa ctônia e, por conseguinte, uma deusa da vegetação, uma guardiã dos ovos, das sementes depositadas no seio da terra. Como tal, uma vítima destinada ao rapto. Com o tempo, “a deusa Helena”, suplantada por outras divindades da vegetação mais importantes, teria caído no esquecimento e passado à classe das heroínas, fato comum e bem atestado na mitologia. Na realidade, o rapto de deusas, Perséfone, “Helena”; de heroínas, caso de Europa, Leda ou das Sabinas... fazem parte integrante não somente de um ritual de iniciação, mas também de um rito da vegetação, como ainda se pode observar em culturas primitivas9. Normalmente, o rapto se consuma no outono, “quando os trabalhos agrícolas estão terminados”, os celeiros estão cheios e é, portanto, o momento de se pensar e preparar a próxima colheita. Na Grécia, no segundo ato do casamento, denominado pompé, “ação de conduzir”, a noiva, seguida de uma procissão alegre e festiva, é levada ou por arautos ou pelo marido, da casa paterna para seu novo lar. Não podendo penetrar com seus próprios pés na nova habitação, porque o fogo sagrado do lar ainda não fora aceso, a noiva simula uma fuga e começa a gritar, pedindo o auxílio das mulheres que a acompanham. O marido terá de raptá-la e com ela nos braços atravessa a porta com todo o cuidado, para que os pés da esposa não toquem na soleira. No casamento romano, muitíssimo semelhante ao grego, não por imitação ou sincretismo, mas pela origem comum indo-europeia dos dois povos, repete-se o mesmo ritual. A segunda parte, denominada deductio in domum, ação de conduzir ao lar, quando o cortejo para em frente à casa do marido, a noiva simula a fuga e, raptada pelo marido, transpõe nos braços do mesmo a soleira. O mundo moderno, embora tenha esquecido o valor iniciático e a sacralidade da fertilização do ritual do rapto da esposa, ainda, por vezes, sem o saber, o relembra. As noivas, ao menos as mais “dietéticas”, têm ou “tinham” o direito de ser transportadas nos braços “hercúleos” do marido para dentro do novo lar ou do quarto da primeira noite de núpcias! Na expressão de Joseph L. Henderson, “o casamento pode considerar-se um rito de iniciação em que o homem e a mulher têm que submeter-se mutuamente. Em algumas sociedades, todavia, o homem compensa sua submissão ‘raptando’ ritualmente a noiva, como fazem os dyaks da Malaia e Bornéu, Hoje em dia existe uma reminiscência dessa prática no fato de o noivo cruzar a soleira da porta com a noiva nos braços”. Na realidade, como acrescenta ainda o mesmo Joseph L. Henderson, “independentemente do medo neurótico de que mães ou pais invisíveis podem estar espreitando atrás do véu do matrimônio, até mesmo um jovem normal pode sentir-se apreensivo com o rito matrimonial. O casamento é essencialmente um rito de iniciação da mulher, em que o homem há de sentir-se tudo, menos um herói conquistador. Por isso mesmo, não surpreende que se encontrem em sociedades tribais ritos compensadores de semelhante temor como o rapto ou a violação da noiva”10. A respeito desse último tema, aliás, a violação da noiva, falaremos mais adiante. 1. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. Coimbra: Atlântida, 1965, p. 56s. 2. BLEGEN, W. Troy and the Trojans. London: Thames and Hudson, 1963. 3. PAGE, D.L. The Trojan War. In: Journal of Hellenic Studies, 84, 1964, p. 1-20. 4. BLEGEN, W. Op. cit., p. 6, faz uma distinção entre Ílion e Troia: a primeira designaria a fortaleza, a cidadela; a segunda, a região. Tal distinção parece não existir na Ilíada. 5. LÉVÊQUE, Pierre. Op. cit., p. 49. 6. MARROU, Henri-Irénée. Histoire de l’éducation dans l’Antiquité. Paris: Seuil, 1955, p. 55ss. 7. BRANDÃO, Junito de Souza. De Homero a Jean Cocteau. Rio de Janeiro: Bruno Buccini Editor, 1969, p. 14. 8. Denominam-se Cíclicos poemas épicos antigos, com exceção da Ilíada e da Odisseia. Os relativos à Guerra de Troia são basicamente os seguintes: Etiópida, de Arctino de Mileto (~ séc. VIII a.C.), é uma continuação da Ilíada, até o suicídio de Ajax. Destruição de Ílion, do mesmo autor. O assunto é a destruição de Troia. É a fonte capital do segundo canto da Eneida de Vergílio. Pequena Ilíada, de Lesques de Mitilene, na ilha de Lesbos (~ séc. VII a.C.), que também é uma continuação do poema homérico. Cantos Cíprios, em grego “Kypria”, subentendendo-se épe: acontecimentos anteriores à Ilíada: Zeus suscitou a Guerra de Troia para que houvesse um equilíbrio demográfico. A terra estava habitada por um excessivo número de homens. Nóstoi, Regressos, de Ágias ou Hágias de Trezene (séc. VII a.C.): retorno à pátria dos grandes heróis, afora Ulisses. Telegonia, de Êugamon de Cirene (séc. VI), mera continuação da Odisseia. 9. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 104ss [Tradução de Mariano Ferreira]. 10. JUNG, Carl Gustav et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 134. CAPÍTULO VII Homero e seus poemas: deuses, mitos e escatologia 1 Numa apresentação sumaríssima da epopeia homérica, já que o objetivo deste livro não é a literatura, mas o mito, é conveniente deixar claro um dado fundamental. A Odisseia, com os dez anos de peregrinação de Odysseús, o nosso Ulisses1, em seu regresso ao lar, em Ítaca, após a destruição de Troia, é bem diferente, do ponto de vista “histórico”, da Ilíada. Opinam alguns estudiosos de Homero2, no entanto, que essa diferença, quanto ao fundo histórico de ambos os poemas, não deve ser excessivamente exagerada. A base histórica da Odisseia seria a busca do estanho. Realmente o ferro era pouco e o estanho absolutamente inexistente na Hélade. Possuindo o cobre, mas necessitados e desejosos do bronze, os helenos dos “tempos heroicos” organizaram a rota do estanho. É bem verdade que a espada de ferro dos dórios havia triunfado do punhal de bronze dos aqueus, mas, até pelo menos o século VIII a.C., o bronze há de ser o metal nobre da nobre elite da pátria de Homero. Assim se poderia defender que a temática do périplo fantástico de Ulisses teria sido o mascaramento da busca do estanho ao norte da Etrúria, com o descobrimento das rotas marítimas do Ocidente. Tratar-se-ia, desse modo, de uma genial ficção, embora assentada em esparsos fundamentos históricos, porque, no fundo, a Odisseia é o conto do nóstos, do retorno do esposo, da grande nostalgia de Ulisses. Este seria o ancestral dos velhos marinheiros, que haviam, heroicamente, explorado o mar desconhecido, cujos mitos eram moeda corrente em todos os portos, do Oriente ao Ocidente: monstros, gigantes, ilhas flutuantes, ervas milagrosas, feiticeiras, ninfas, sereias e Ciclopes... A Ilíada, ao revés, descreve um fato histórico, se bem que revestido de um engalanado maravilhoso poético. Na expressão, talvez um pouco “realista”, de Page, o que o poema focaliza “são os próprios episódios do cerco de Ílion e ninguém pode lê-lo sem sentir que se trata, fundamentalmente, de um poema histórico. Os pormenores podem ser fictícios, mas a essência e as personagens, ao menos as principais, são reais. Os próprios gregos tinham isso como certo. Não punham em dúvida que houve uma Guerra de Troia e existiram, na verdade, pessoas como Príamo e Heitor, Aquiles e Ájax, que, de um modo ou de outro, fizeram o que Homero lhes atribui. A civilização material e o pano de fundo político-social, se bem que não se assemelhem a coisa alguma conhecida ou lembrada nos períodos históricos, eram considerados pelos gregos como um painel real da Grécia da época micênica, aproximadamente 1200 a.C., quando aconteceu o cerco de Troia”3. Um fato, porém, parece definitivo: uma realidade histórica está subjacente ao mito na epopeia homérica, se bem que, glorificada e transformada por vários séculos de tradição puramente oral que precederam à composição definitiva elaborada por Homero (séculos IX-VIII a.C.) e a fixação por escrito dos dois poemas (séc. VI a.C.). A dificuldade maior no estudo da epopeia homérica está em isolar o que realmente é micênico do que pertence a épocas posteriores, como à Idade do Ferro, à Idade do Caos dório e ao ambiente histórico em que viveu o próprio poeta. Sem dúvida, também sob o ângulo político, social e religioso, os poemas homéricos são uma colcha de retalhos com rótulos de civilizações diferentes no tempo e no espaço. Não obstante todas estas dificuldades, alguns elementos micênicos podem, com boa margem de segurança, ser detectados nos dois grandes poemas. Consoante Homero, o que parece autêntico, o mundo micênico era um entrelaçamento de reinos pequenos e grandes, mais ou menos independentes, centralizados em grandes palácios, como Esparta, Atenas, Pilos, Micenas, Tebas..., mas devendo fidelidade, ou talvez vassalagem, não se sabe muito bem por que, ao reino de Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste aspecto político, há outros a considerar. Maria Helena da Rocha Pereira alinha alguns elementos aqueus presentes na epopeia homérica: “Ora, os Poemas Homéricos descrevem, fundamentalmente, a civilização micênica, embora ignorem a sua forte burocratização e a abundância de escravatura, reveladas pelas tabuinhas de Pilos. Mas, entre os principais elementos micênicos, podemos apresentar: as figuras e seus epítetos; a riqueza de Micenas (“Micenas rica em ouro”); a raridade do ferro, a noção de que ánaks é mais do que basileús4; o fausto dos funerais de Pátroclo (embora seja cremado, como os gregos da época histórica, e não inumado, como os Micênicos); a arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron; objetos como o elmo de presas de javali, a taça de Nestor, e a espada de Heitor, com um aro de ouro”5. 2 Mas se comprovadamente existem elementos micênicos, de fundo e de forma, nos poemas homéricos, como pôde o bardo máximo da Hélade ter conhecimento, por vezes tão preciso, de um mundo que ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois? A escrita já existia, é verdade, e cinco séculos também antes do poeta, mas aquela, a Linear B, era usada, como se falou no capítulo IV, sobretudo em documentos administrativos e comerciais e não em textos de caráter literário. Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu julgavam indigno ou desnecessário que suas façanhas fossem gravadas em tabuinhas de argila. E realmente não era necessário, pela própria técnica poética da época. A poesia épica micênica é oral e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida de geração a geração. Uma poesia áulica, como quer Webster6, cheia de fórmulas de caráter religioso e militar e cuja sobrevivência se deveu aos aedos e rapsodos7. O já citado Page sintetiza, com maestria, como o maior de todos os vates pôde “compor” seus dois poemas épicos sem documento algum escrito sobre o passado: “Todos concordam [...] que Homero viveu centenas de anos depois dos fatos que descreveu e que não teve documentos escritos sobre o passado. O que devemos perguntar, portanto, não é ‘por que ele desconhece tanto sobre a Grécia micênica?’, mas ‘como pôde ele ter sabido o que sabia?’ A resposta é que a épica grega é uma poesia de tipo muito peculiar – é oral e tradicional. Entendo, por oral, que era composta na mente, sem a ajuda da escrita. E, por tradicional, entendo que era preservada pela memória e transmitida oralmente de geração a geração. Jamais era estática. Crescia e se modificava continuamente. AIlíadaé a última fase de um processo de crescimento e desenvolvimento que começou durante o sítio de Troia, ou pouco depois. Esse tipo de poesia (que ocorre na poesia épica de muitas línguas além do grego) só pode ser composto, só pode ser preservado, se o poeta tiver à sua disposição um estoque de frases tradicionais – metade de versos, versos inteiros e estrofes, já prontos para quase todas as finalidades concebíveis. O poeta compõe, enquanto recita; não pode parar para pensar como continuar; deve ter pronta toda a história, antes de começar, e deve ter na memória a totalidade – ou quase totalidade – das frases de que precisará para contá-la. Os poemas homéricos são, na verdade, compostos dessa forma – não em palavras, mas em sequências de frases feitas. Em 28.000 versos, há 25.000 frases repetidas, grandes ou pequenas”8. À sólida argumentação de Denys Page pode-se acrescentar ainda, como processo mnemônico, na transmissão dessa poesia oral, o uso dos epítetos, os famosos epítetos homéricos. As personagens mais importantes e as divindades maiores “têm, em média, dez epítetos que se repetem no poema todo centenas de vezes com alguma variedade”9. São, ao todo, nos dois poemas, em estatística feita pacientemente pelo saudoso amigo e mestre Marques Leite, 4.560 epítetos. Os poemas homéricos resultam, pois, de um longo, mas progressivo desenvolvimento da poesia oral, em que trabalharam muitas gerações. Usando significantes dos fins do século IX e meados do século VIII a.C., épocas em que foram, ao que parece, “compostas”, na Ásia Menor Grega, respectivamente a Ilíada e a Odisseia, o poeta nos transmite significados do século XIII ao século VIII a.C. O mérito extraordinário de Homero foi saber genialmente reunir esse acervo imenso em dois insuperáveis poemas que, até hoje, se constituem no arquétipo da épica ocidental. 3 Esta ligeira introdução tem por objetivo mostrar que também a religião homérica é uma colcha de retalhos, uma sequência de pequenas e grandes rupturas, de pequenos e grandes sincretismos, em que o Ocidente se fundiu com o Oriente. As escavações arqueológicas comprovaram que havia na época aqueia “uma religião dos mortos”, fato já bem salientado no capítulo V, 5. A esse respeito desejamos somente chamar a atenção para dois fatos. Os vastos túmulos encontrados particularmente em Micenas com luxuoso mobiliário fúnebre, como o célebre Tesouro do Atreu, em que o morto, “o rei Agamêmnon”, aparece com o rosto coberto por rica máscara de ouro10, atestam dois pontos importantes: primeiro, que o rei, chefe da tribo, do clã, do génos, da família enfim, torna-se, após a morte, o que ele foi em vida, “o senhor”, quer dizer, o “herói”, o protetor dos que lhe habitam o território, o reino; segundo, que, sendo o culto dos mortos uma reli gião da família e do grupo, havendo, por isso mesmo, necessidade de uma descendência para continuá-lo e transmiti-lo, esse culto é essencialmente local, indissoluvelmente ligado ao túmulo. Além da religião dos mortos, existia a religião dos deuses, em sua maioria, deuses da natureza, cujo arquétipo era o deus patrilinear indo-europeu do céu e da luz, Zeus. Com as invasões dóricas e as migrações para a Ásia Menor, a vida grega se dividiu entre as duas margens do Egeu. Entre a Europa e a Ásia, não raro com apoio nas ilhas, começou a se plasmar o embrião de uma nova e promissora cultura. Apagados os archotes da civilização micênica, os emigrantes acenderam-nos em outra pira. Distantes das vicissitudes da mãe-pátria, abriram-se a novas influências. Esse distanciamento, esse desenraizar-se, com todas as consequências que sempre lhe são inerentes, desenvolveram-lhes a independência e a liberdade de pensamento, bem como os emanciparam de velhas e arraigadas tradições. Livres das opressões e repressões das antigas crenças, prepararam-se com a mesma liberdade de espírito para arrostar novos problemas de ordem religiosa. A primeira grande consequência foi o enfraquecimento generalizado da religião dos mortos. Tratava-se de um culto, conforme se insistiu, essencialmente local e preso ao túmulo. Ora, o túmulo dos ancestrais agora estava longe demais, o culto interrompido, porque desvinculado da sepultura. Os ancestrais, os senhores, os “heróis” sobreviveram apenas no mito e a tradição religiosa não se renovou em torno dos novos senhores, mesmo porque, na Ásia Menor, se praticava a cremação: a alma do morto, separada para sempre do corpo, estava em definitivo excluída de seu domicílio e da vida de seus descendentes, não havendo, portanto, nada mais a temer nem a esperar da psiqué do falecido. De outro lado, como jáse sabe, as migrações helênicas para seu novo domicílio não se fizeram em bloco: as tribos deixaram a mãe-pátria completamente fragmentadas, de acordo com as circunstâncias ou a oportunidade. Estava, por isso mesmo, rompida a tribo, oclã, o génos, a família. Pois bem, esses elementos díspares, de origens tribais e até mesmo “dialetais” diversas, ao se encontrarem em seu novo “habitat” com povos etnicamente diferentes, com outros hábitos e outra língua, confraternizaram-se mais facilmente. Eram todos exilados e a maneira mais prática de refazerem a vida era congregar o que tinham em comum, deuses e o restante. E a nova repercussãoreligiosa de mudança de meio fez que a religião dos deuses prevalecesse inteiramente sobre a religião dos mortos, determinando assim a formação de um autêntico politeísmo. Outro fator, no entanto, deu sua contribuição valiosa a todas essas rupturas e agregações: o recente espírito de independência face à tradição criou um ambiente propício ao desenvolvimento da arte. E a arte que floresceu, no momento, entre os gregos da Ásia Menor foi a Epopeia. A arte épica deve ter tido considerável influência sobre a primeira elaboração do politeísmo e sobre o destino posterior da religião grega. É claro que o politeísmo já existia, mas embrionariamente, no nome de deuses ou nas formas míticas elementares vinculadas aos nomes divinos. O politeísmo é uma forma religiosa estreitamente ligada ao mito. Só existe, com a multiplicidade de deuses que o define, porque o mito criou esses deuses. Na realidade, o politeísmo surge na história unido ao sentimento e à noção do divino na natureza. Uma de suas grandes fontes é o mistério do mundo exterior em que estamos mergulhados; a outra, mais profunda, encontra-se num segundo mistério, que está em nós mesmos. A dar crédito a Sexto Empírico (século II d.C.), filósofo grego, sistematizador do estoicismo, Aristóteles teria esboçado uma teoria da religião fundamentada no naturalismo e no humanismo: “A noção humana da divindade decorre de dois princípios: dos fenômenos que se produzem na alma e dos fatos meteóricos”11, isto é, de fenômenos da natureza. O sentimento religioso naturalista se expressou, portanto, primeiramente pelo mito. Este, por sua vez, se manifestará na epopeia, que é poesia, arte e liberdade. O florescimento da epopeia na “diáspora” grega para a Ásia Menor, onde foi sepultada a repressão do tradicionalismo da mãe-pátria, coincidiu com o momento em que o mito, libertando-se da esfera do sagrado, se emancipou da ação sacramental, que o representava, e do hino divino, que o celebrava. O canto, à medida em que se despojava dos elementos emotivos, tornava-se objeto de narrativa12. Houve, assim, uma como que segunda criação dos deuses. Claro está que esses deuses continuaram a ser na Grécia da Europa e na Grécia da Ásia os deuses dos ancestrais, mas o sortilégio, que, até então, os ligava estreitamente a seu local de culto, estava para sempre rompido e a poesia acabou por transfigurar em seus ideais esses deuses já bastante dessacralizados. Seres ideais, tão vivos e verdadeiros, que, pela primeira vez, os homens com eles se confraternizaram. Gigantes que se locomoviam como raios entre o Olimpo e a terra, eram, todavia, humanos, compensando com sua humanidade o que haviam perdido em sacralidade. Esse “humanismo divino” foi a marca da poesia, o sinal mágico de uma obra através da qual o homem entalha e concebe os deuses à sua imagem e semelhança. Era o antropomorfismo. “O mundo grego com seus deuses é um mundo do homem”, sintetiza magistralmente Kerényi13. Eis aí os deuses de Homero, que é ele próprio o limite de uma evolução secular. Evolução religiosa, evolução linguística, com os dialetos jônico e eólio servindo-lhe de embasamento; evolução do verso, que, a princípio, cantado, se adaptou à recitação; evolução do mito divino e heroico, múltiplo e complexo, que acabará por se condensar num esquema homogêneo na saga troiana; evolução dos costumes, com o rito da cremação; evolução, enfim, da vida material, que assiste à substituição do bronze pelo ferro. Esse feixe de evoluções se concentra em Homero, assim como sua obra condensa três fases da religião: a que reinava na Grécia continental, quando os micênicos a deixaram; a que se desenvolveu na Ásia Menor, em condições bem diversas e, finalmente, aquela que desabrochou sob a inspiração da epopeia. Homero fundiu estes três momentos culturais, mas não existe na Ilíada e na Odisseia nem evocação escrupulosa do passado, nem descrição exata do presente, mas a visão de um mundo ideal, composto de um passado micênico da Europa e de um presente homérico e asiático, amalgamados numa harmonia, que é realidade sem ser realidade, quer dizer, poesia e nada mais. Com efeito, os dois poemas homéricos, recheados de elementos religiosos, não são um código de vida, nem um cânon de fé. Trata-se de um documento religioso incomparável, mas imperfeito, porque omite; e parcial, mercê da liberdade com que são tratados os deuses: Zeus, Hera, Apolo, Atená... não passam, muitas vezes, de vagas reminiscências daquilo que realmente foram14. Além do mais, os deuses que passeiam, lutam e se divertem nos poemas homéricos não são a totalidade dos deuses da Grécia e a religião, que deles se ocupa, não é toda a religião, o que está perfeitamente de acordo com o espírito da epopeia. Trata-se, com efeito, de uma poesia burguesa, destinada a “reis” e heróis, a homens de alto coturno, voltados para as armas e para o mar. Não há dúvida de que é para um mundo aristocrático que o poeta compõe sua obra. Fundindo o passado no presente, o período da realeza aqueia com a aristocracia de seu século, Homero fazia-se compreender perfeitamente por seu público, pois que o passado, vivendo na tradição, era presença constante nos lábios dos aedos e rapsodos. Por outro lado, o público de Homero era constituído, em síntese, por duas aristocracias: a aristocracia política e a aristocracia militar, mas ambas, as mais das vezes, de origem burguesa. Para elas o poeta canta, prazerosamente, as gestas guerreiras e as astúcias do homem no mar. Para elas celebra os jogos, onde o vigor se conjuga com a nobreza. O preito da força e da beleza física, símbolos do herói, contraiu, desde Homero, núpcias indissolúveis com as qualidades do espírito: o kalón, o belo, e o agathón, o bom, eis aí a síntese de uma visão humanística que remonta à Ilíada e à Odisseia. Pois bem, o mundo dos deuses é a projeção dessa sociedade heroica e aristocrática. À autoridade de Agamêmnon e, não raro, à sua prepotência correspondem a soberania e o despotismo de Zeus, assim como às revoltas dos heróis contra as arbitrariedades do “senhor” e rei de Micenas corre paralelo a manifestação de independência dos imortais contra a tirania do “senhor” e rei do Olimpo. De outro lado, se o povo está presente nos poemas homéricos apenas para servir, aplaudir e concordar nas assembleias, os deuses humildes da vegetação teriam que esperar cerca de três séculos para que, em Elêusis, se erguessem, repentinamente, em plena escuridão, milhares de archotes para saudar “a luz nova” e Dioniso, de tirso em punho, pudesse penetrar triunfalmente na pólis democrática de Atenas... Também a humanidade esperou séculos e séculos para que o grão de trigo, morrendo no seio da terra, produzisse frutos em abundância! De qualquer forma, alijando o localismo, a aristocrática epopeia, por mais paradoxal que possa parecer, tendo-se tornado, com a difusão pelos “mundos gregos”, um patrimônio comum, democratizou a religião e os deuses olímpicos passaram a ser deuses de todos. E se na Grécia continental, bem como em seus “pedaços” plantados na Ásia, na Europa e na África, jamais existiu unidade política, houve sempre, “em todas as Grécias”, graças à religião, uma consciência de unidade racial. Ou se era grego ou se era bárbaro. 4 Vamos nos ocupar agora da religião homérica propriamente dita. Não se falará sobre o mito de cada um dos deuses, a não ser de passagem, nem tampouco sobre cada um dos heróis, que formigam e dão vida às epopeias homéricas, porque cada um deles, ao menos os mais importantes, terão direito a um estudo particular nos dois volumes subsequentes e no Dicionário mítico-etimológico. Para se ter uma ideia do conjunto, far-se-á, de início, uma síntese dos cantos de que se compõem a Ilíada e a Odisseia. Comecemos pela Ilíada. Após uma breve proposição e invocação, o poema nos coloca ín medias res, no centro dos acontecimentos, já que a Ilíada celebra, como já se enfatizou, tão somente o nono ano da Guerra de Troia: a ira de Aquiles e suas consequências funestas. Canta, ó deusa, a ira funesta de Aquiles Pelida, ira que tantas desgraças trouxe aos aqueus e fez baixar ao Hades muitas almas de destemidos heróis, dando- os a eles mesmos em repasto aos cães e a todas as aves de rapina: cumpriu-se o desígnio de Zeus, em razão da contenda, que, desde o início, lançou em discórdia o atrida, príncipe dos guerreiros, e o divino Aquiles. (Il., I, 1-7) I – Crises, sacerdote de Apolo, avança até as naus dos aqueus, para resgatar sua filha Criseida, cativa de Agamêmnon. Todos os chefes desejam que assim se proceda, mas o atrida se recusa e insulta o sacerdote. Crises regressa, mas suplica a Apolo que castigue os aqueus. O deus envia uma peste, que dizima o exército. Aquiles pede que se reúna a assembleia, para saber do adivinho Calcas a causa de tão grande mal. Calcas responde ser necessário devolver Criseida para apaziguar a cólera de Apolo. Depois de violenta altercação com Aquiles, Agamêmnon devolve a filha de Crises, mas, em troca, manda buscar Briseida, presa do filho de Peleu. Aquiles, ferido em sua timé, em sua honra de herói, retira-se da luta e queixa-se à sua mãe Tétis, que lhe promete pedir a Zeus que o desagrave. Com a devolução de Criseida, cessa a peste. Zeus, a pedido de Tétis, consente em que os troianos saiam vitoriosos, até que se faça condigna reparação a Aquiles. Logo que a mãe do pelida se retira, trava-se no Olimpo séria discussão entre Zeus e Hera, que percebeu o pedido da deusa do mar e a promessa do esposo. O receoso Hefesto, filho de ambos, com habilidade, consegue contornar a grave situação. Os imortais, com um sorriso inextinguível, aproveitam para se divertir com a azáfama de Hefesto, que manquitolava pelos salões do Olimpo. E o dia terminou com um lauto banquete, ao som da cítara de Apolo e da voz cadenciada das Musas. Com muito néctar e muita ambrosia... II – Zeus, em cumprimento de sua promessa a Tétis, envia um ûlos Óneiros, um “Sonho funesto” e enganador a Agamêmnon para o empenhar na luta. Óneiros surge sob a forma de Nestor e repreende fingidamente o rei de Micenas, revelando-lhe que o próprio Zeus deseja ação imediata e os imortais todos querem a vitória aqueia e a ruína de Troia. Agamêmnon, enganado pelo Sonho, reúne então todos os aqueus e é neste ponto que se introduz o Catálogo das Naus, com os nomes dos “reinos”, que as enviaram, dos chefes e o número de naus que cada herói comanda. Nas 1.183 naus deveriam ter chegado a Ílion cerca de quarenta a sessenta mil homens, num cálculo feito pelo mestre Marques Leite15. III – Os troianos descem à planície. Os anciãos, bem como Príamo e Helena, contemplam do alto das muralhas de Troia o campo de batalha. Por proposta de Páris, ele próprio e Menelau decidirão em combate singular o destino de Helena e dos tesouros. Quando Alexandre está para ser vencido e morto, Afrodite o salva e transporta-o numa nuvem para os braços de Helena. IV – Um aliado dos troianos, Pândaro, fere Menelau com uma flechada: a luta recomeça. Ares e Apolo lutam pelos troianos. Atená pelos aqueus. V – É a primeira grande batalha. Combate encarniçado, em que Diomedes mata a Pândaro, fere Eneias e Afrodite, que vem retirar o filho do campo de combate. Grande carnificina, em que o próprio deus Ares é também ferido por Diomedes. VI – Heitor, o grande herói troiano, a conselho de seu irmão, o adivinho Heleno, dirige-se à cidadela de Ílion e ordena preces públicas a Atená para aplacá-la. Despedida de Heitor e Andrômaca, uma das páginas mais emocionantes do poema. VII – Continua a luta cruenta. Os gregos são sempre vencidos. Encontro encarniçado entre Heitor e Ájax, sem vencedor, porque a noite interrompeu o combate. Trégua para sepultar os mortos. VIII – Assembleia dos imortais. Zeus proíbe os deuses de intervirem nos combates. Segunda grande batalha. Nova derrota dos argivos. Hera e Atená tentam socorrê-los, mas Zeus, percebendo-lhes a intenção, envia sua mensageira Íris para afastá-las da luta e repreendê-las. IX – Agamêmnon reúne os chefes aqueus para lhes propor o levantamento do cerco. Nestor julga que se procure aplacar a ira de Aquiles. O rei de Micenas concorda em restituir Briseida e oferece ricos presentes ao herói. Uma embaixada, formada por Fênix, Ájax e Ulisses, dirige-se à tenda do filho de Tétis e busca demovê-lo. Este não cede. X – É o episódio conhecido como Dolonia. Expedição noturna de Ulisses e Diomedes, que surpreendem o troiano Dólon. Matam-no depois de terem sabido dele o lugar exato onde acampava Reso, rei da Trácia, que viera em socorro dos troianos. Liquidam Reso e roubam-lhe os cavalos. XI – Terceira grande batalha, em que os gregos novamente são vencidos, apesar dos feitos bélicos de Agamêmnon, que é ferido em combate. Nestor pede a Pátroclo que tente dobrar o ânimo de Aquiles ou que ele mesmo vista as armas do herói para aterrorizar os comandados de Heitor. XII – Os troianos atacam com êxito e chegam até o acampamento dos aqueus. XIII – Em luta sangrenta, Heitor tenta chegar até os navios gregos. XIV – É o dolo de Zeus, Diòs apáte. Hera atrai amorosamente a Zeus para os altos do monte Ida, onde o pai dos deuses e dos homens em profunda modorra adormece nos braços quentes da esposa. Disso se aproveita Posídon para socorrer os helenos. XV – Zeus desperta. Reverbera a astúcia feminina de Hera e declara que os troianos serão os vencedores. Heitor penetra na praia, onde estão os navios gregos, e está prestes a incendiá-los. Ájax sozinho, heroicamente, consegue detê-lo. XVI – É a Patroclia. Os troianos conseguem afinal incendiar um navio grego. Aquiles, vendo as chamas que se levantam da nau aqueia, permite que seu maior amigo, Pátroclo, se revista de suas armas, mas apenas para afastar os comandados de Heitor dos navios gregos. Feitos gloriosos e heroicos de Pátroclo, que, no entanto, tendo ultrapassado o métron, o “limite permissível”, é morto por Heitor, que lhe arrebata as armas de Aquiles. XVII – Combate sangrento em torno do corpo de Pátroclo. Apesar da vitória dos troianos, Menelau consegue trazer-lhe o cadáver até os navios. XVIII – A dor ingente de Aquiles. Tétis procura consolá-lo e, em seguida, dirige-se às forjas de Hefesto, a fim de que este faça para o inconsolável filho de Peleu uma armadura completa. Descrição do escudo de Aquiles. XIX – Após receber todas as satisfações de Agamêmnon e com sua timé recomposta, o filho de Tétis prepara-se para retornar ao combate. XX – Grande batalha, em que, com a anuência de Zeus, os deuses se misturam com os heróis. Hera, Atená, Posídon e Hefesto pelejam ao lado dos gregos; Ares, Apolo, Ártemis, Afrodite e o deus fluvial Xanto lutam pelos troianos. Aquiles faz prodígios de coragem, bravura e arrojo. XXI – O pelida, a partir daí, vai de vitória em vitória; limpa a planície da Tróada, empurrando os inimigos até as muralhas de Ílion. O rio Escamandro, transbordante de guerreiros mortos por Aquiles, inunda a planície e ameaça submergi-lo e só é dominado pelo sopro ígneo de Hefesto. XXII – Heitor aguarda Aquiles sob as muralhas de Troia, mau grado as súplicas de Príamo. À vista do herói aqueu, Heitor foge. O pelida o persegue três vezes em torno das muralhas de Troia. Zeus pesa os destinos dos dois heróis: o troiano tem de morrer. Heitor é morto por Aquiles, que lhe arrasta o cadáver, coberto de pó e de sangue, até os navios. A dor e o horror se apoderam do velho Príamo, de Hécuba e de Andrômaca. XXIII – Vingado Pátroclo, o herói aqueu presta-lhe as últimas homenagens. Levanta-se uma gigantesca pira e as chamas devoram o cadáver de Pátroclo juntamente com mais doze jovens troianos, que Aquiles aprisionara e reservara para esta homenagem ao maior dos amigos. Jogos fúnebres em honra de Pátroclo. XXIV – O filho de Tétis arrasta três vezes o cadáver de Heitor à volta do túmulo de Pátroclo. Príamo vem pedir o corpo de Heitor. O herói aqueu se enternece com as palavras do velho rei de Troia e devolve-lhe o cadáver do filho. Tréguas de doze dias. Funerais de Heitor, domador de cavalos... A Odisseia nos leva a outras paragens... Após dez anos da longa e sangrenta Guerra de Troia, Ulisses, saudoso de Ítaca, de seu filho Telêmaco e de Penélope, sua esposa fidelíssima, suspira pelo regresso à pátria. A Odisseia, Odýsseia, é, pois, o poema do regresso de Odysseús, o nosso Ulisses, e de seus sofrimentos em terra e no mar. Embora as personagens centrais estejam ligadas ao ciclo troiano, a temática do poema é bem outra. A Odisseia é o canto do nóstos, do regresso do esposo ao lar e da nostalgia da paz. “Embora a ação seja mais concentrada, temos dois fios condutores em vez de um: as aventuras de Telêmaco e as de Ulisses, que só se reconhecem no canto XVI. Também há duas cóleras divinas a perseguir Ulisses”16. Trata-se da ira de Posídon contra o herói, por lhe ter este cegado o filho, o Ciclope Polifemo, e a do deus Hélio, por lhe terem os companheiros de Ulisses devorado as vacas. A proposição do poema menciona a segunda e omite a primeira, se bem que esta apareça antes daquela na sequência da narrativa. Como a Ilíada, a Odisseia nos coloca in medias res: quando se inicia a narrativa, o esposo de Penélope, havia sete anos, era prisioneiro, na ilha de Ogígia, da paixão da ninfa Calipso. Logo após a proposição, o poema nos leva até o Olimpo e de lá à ilha de Ítaca. Musa, fala-me do varão astuto, que, após haver destruído a cidadela sagrada de Troia, viu as cidades de muitos povos e conheceu-lhes o espírito. No mar sofreu, em seu coração, aflições sem conta, no intento de salvar sua vida e conseguir o retorno dos companheiros. Mas, embora o desejasse, não os salvou; pereceram, os insensatos, por seu próprio desatino, eles que devoraram as vacas de Hélio Hiperíon, pelo que este não os deixou ver o dia do regresso. Conta-me, deusa, filha de Zeus, uma parte desses acontecimentos. (Odiss., I, 1-10) I – Os deuses reunidos em assembleia no Olimpo, na ausência de Posídon, decidem que Ulisses regresse a Ítaca. Atená, disfarçada em Mentes, vai animar o jovem filho de Ulisses, Telêmaco, em sua luta contra os pretendentes à mão de Penélope e aconselha-o a partir em busca de notícias do pai. II – O jovem príncipe convoca uma assembleia e solicita um navio para levá-lo a Pilos, corte de Nestor, e a Esparta, sede do reino de Menelau, a fim de buscar informações sobre o paradeiro de Ulisses. Disfarçada em Mentor, Atená promete ajudá-lo. III – Telêmaco chega a Pilos, mas nada consegue saber a respeito do pai. Nestor conta-lhe o fim trágico de Agamêmnon e aconselha-o a ir até Esparta, para o que lhe dá por companhia seu filho Pisístrato. IV – Telêmaco e Pisístrato são recebidos por Menelau, que lhes fala do fim de Troia e de seu tumultuado retorno a Esparta. Os pretendentes, em Ítaca, preparam uma emboscada contra Telêmaco. V – Nova assembleia dos deuses, em que se estabelece a volta imediata de Ulisses a Ítaca. A pedido de Atená, Zeus envia Hermes à ilha de Ogígia com ordem a Calipso para deixar partir o herói. Este constrói uma jangada e faz-se ao mar. Posídon, que está vigilante, levanta uma tempestade e a jangada se despedaça. O herói consegue salvar-se e se recolhe nu à ilha dos Feaces, onde adormece. VI – Atená aparece em sonho a Nausícaa, filha do rei dos Feaces, Alcínoo, para convencê-la a ir lavar suas roupas no rio. Depois de lavá-las, começa a jogar com suas companheiras. Ulisses, despertado pela algazarra, pede a Nausícaa que o ajude. Esta manda-lhe roupa e alimento e convida-o a ir até o palácio de seu pai, o rei Alcínoo. VII – Ulisses apresenta-se como suplicante à rainha Arete, esposa de Alcínoo. Narra brevemente o que lhe aconteceu após sua partida da ilha de Calipso, mas não se dá a conhecer. Alcínoo concede-lhe a hospitalidade e promete mandar levá-lo a Ítaca. VIII – Assembleia convocada para deliberar sobre os meios de reconduzir Ulisses à pátria. Grande banquete em honra do herói. Ao ouvir o aedo Demódoco cantar o seu passado glorioso, comove-se, o que leva Alcínoo a suspeitar de sua identidade. Jogos em sua honra: sai vencedor no lançamento do disco. Demódoco canta os amores de Ares e Afrodite e, depois, por solicitação de Ulisses, o estratagema do cavalo de Troia. O herói se emociona. Alcínoo pede-lhe que conte suas aventuras. IX – “Eu sou Ulisses”. É assim que se inicia o flashback do poema. Narra sua passagem pelo país dos Cícones, dos Lotófagos e dos Ciclopes. O Ciclope Polifemo devora seis de seus companheiros. Ulisses o embebeda e, aproveitando-se de seu sono, vaza-lhe o único olho. Em seguida escapa com seus nautas por baixo das gordas ovelhas do monstro, que pede a seu pai Posídon que o vingue. Daí a perseguição implacável do deus do mar contra o herói. X – Continua a narrativa: na ilha de Éolo de onde, por culpa de seus comandados, acaba sendo expulso como amaldiçoado dos deuses; no país dos Lestrigões antropófagos, onde perde grande número de companheiros; na ilha de Eeia, a ilha da feiticeira Circe, que lhe transforma vinte e dois companheiros em animais semelhantes a porcos. Ulisses escapa aos sortilégios da “deusa” e obriga-a a restituir a forma humana a seus nautas. XI – A conselho de Circe, Ulisses vai ao país dos Cimérios, às bordas do Hades, para consultar a alma do adivinho cego Tirésias acerca de seu regresso a Ítaca. Ulisses não desceu à outra vida. Abriu um fosso e fez em torno do mesmo três libações a todos os mortos com mel, vinho e água, espalhando por cima farinha de cevada. Após evocar as almas dos mortos, degolou em cima do fosso duas vítimas pretas: um carneiro e uma ovelha, dádivas de Circe. “O negro sangue correu e logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se ajuntaram”. Pôde assim Ulisses conversar com sua mãe, Anticleia, com Tirésias, Aquiles e com vários outros heróis e heroínas. XII – Ulisses retorna à ilha de Circe e, advertido por ela dos perigos que o ameaçam em seu trajeto, parte para novas aventuras. Vencida a “tentação” das Sereias, passa por Cila e Caribdes e atinge a ilha do deus Hélio Hiperíon. Contra a proibição do herói e quebrando seus próprios juramentos, os companheiros de Ulisses devoram as vacas do deus Hélio. A pedido deste, as naus gregas são fulminadas pelos raios de Zeus. Somente Ulisses escapa e chega sozinho à ilha da ninfa Calipso. XIII – Os marinheiros Feaces deixam o herói adormecido em Ítaca. O navio que o levou é, ao retornar, petrificado por castigo de Posídon. Atená disfarça o rei de Ítaca em mendigo. XIV – Chega à cabana de seu fiel e humilde servidor, o porcariço Eumeu, que não o reconhece. É informado de como andam as coisas em Ítaca. XV – Retorno de Telêmaco. Atená lhe aparece em sonhos e indicalhe o caminho a seguir para evitar a emboscada dos pretendentes. XVI – Chegada de Telêmaco à cabana de Eumeu. Enquanto este vai prevenir Penélope do regresso do filho, Ulisses e Telêmaco se reconhecem e preparam o extermínio dos pretendentes. XVII – Ulisses visita o palácio de “Ulisses”. No pátio, reconhece-o seu velho cão Argos e morre. O rei de Ítaca mendiga e é insultado pelo pretendente Antínoo. XVIII – O herói é obrigado a lutar com o mendigo Iro, para divertimento dos pretendentes. Arrasta-o para fora do palácio, mas sofre, em seguida, novos ultrajes. XIX – Ulisses, sempre desconhecido, conta a Penélope uma história que garante que o rei de Ítaca está prestes a retornar. Euricleia, a velha ama do herói, ao lavar-lhe os pés, reconhece-o por uma cicatriz na perna. Penélope, que tudo ignora, narra o ardil do véu sutil e imenso, mas anuncia seu plano para escolher um dos pretendentes. XX – Banquete dos pretendentes. Instam com Penélope. Ulisses é insultado e maltratado. XXI – Penélope traz o arco do esposo e promete desposar aquele que conseguir armá-lo e fazer passar a flecha pelos orifícios de doze machados em fila. Todos tentam, mas em vão. Graças à intervenção de Penélope e de Telêmaco, Ulisses consegue experimentar sua habilidade. Arma o arco sem dificuldade alguma e executa a tarefa imposta pela esposa. Terror dos pretendentes. XXII – O senhor de Ítaca depõe seus andrajos e se dá a conhecer. Com auxílio de Telêmaco, do porcariço Eumeu e do boieiro Filécio, os dois serviçais que lhe tinham ficado fiéis, massacram todos os pretendentes e maus servidores. Apenas são poupados o aedo e o arauto. XXIII – Penélope, após longa hesitação, reconhece finalmente Ulisses, quando este provou conhecer o segredo da construção do leito conjugal. XXIV – Ulisses e seu pai Laerte se reencontram. As almas dos pretendentes são arrastadas por Hermes para o Hades. Revolta das famílias dos pretendentes. Laerte, Ulisses e Telêmaco lutam contra os parentes dos mortos. Atená, no entanto, intervém e restabelece a paz entre os beligerantes. 5 Dada esta visão de conjunto, não é muito difícil caracterizar a cada um dos deuses antropomorfizados que agem nos poemas homéricos: deuses que amam, odeiam, protegem, perseguem, discutem, lutam, ferem e são feridos, aconselham, traem e mentem... Já se disse, com certa ironia, que em Homero há três classes de homens: povo, heróis e deuses. O que estaria bem próximo da verdade, se os deuses não fossem imortais. É bom repetir que se os olhos do poeta estão voltados tão somente para os grandes príncipes e heróis, é à imagem deles que o vate concebe o mundo dos deuses. Claro está que a religião dos poemas homéricos não é original do cantor de Aquiles. As afirmativas do poeta e filósofo Xenófanes (século VI a.C.) e do historiador Heródoto (484-408 a.C.) de que os deuses são uma invenção de Homero e Hesíodo carecem inteiramente de fundamento. A religião homérica resulta de um vasto sincretismo e de influências várias, no tempo e no espaço. De outro lado, se as histórias que Homero atribui a esses deuses são antigas ou representam um compromisso entre o passado e o presente é um assunto, por enquanto, difícil de ser resolvido. Talvez “o compromisso” fosse mais lógico. Seja como for, os deuses homéricos antropomorfizados, se bem que por vezes se nivelem até por baixo com os seres humanos, constituem um grande progresso para os séculos IX e VIII a.C. Tomando-se por base as epopeias homéricas, o que de saída se pode assegurar é que o poeta criou o “Estado dos deuses” subordinado à soberania de um deus maior, Zeus, já possuindo tanto aqueles quanto este algumas funções mais ou menos definidas. Zeus é o rei, os demais deuses são seus vassalos, eventualmente convocados para uma assembleia que se reúne numa utópica fortaleza real, o Olimpo. Os seus subordinados não raro são recalcitrantes, obstinados e procuram fazer prevalecer seus interesses pessoais, mas o pai dos deuses e dos homens os reduz à obediência com frases duras e ameaças terríveis, que, na realidade, quase nunca se cumprem. “A concepção de um Estado divino sob o governo de Zeus foi tão profundamente gravada pela autoridade de Homero, que pôde atravessar incólume a transformação política que em época antiga eliminou a realeza, substituindo-a pela aristocracia ou pela democracia: na terra vigorava a república, no céu, a monarquia”17. A primeira grande característica dessas divindades “reais” é “serem luminosas e antropomórficas”. Em vez de potências ctônias, assustadoras e terríveis, os deuses homéricos se apresentam inundados de luz (estamosnuma religião tipicamente patrilinear), os quais agem e se comportam como seres humanos, superlativados nas qualidades e nos defeitos. O teratomorfismo (concepção de um deus com forma animal) que, por vezes, aparece em Homero, certamente reminiscência de um antigo totem ou “influência oriental”, parece residir apenas em alguns epítetos, sem que esse zoomorfismo tenha outras consequências práticas. Atená é denominada glaukôpis, de “olhos de coruja”, que normalmente se traduz por “olhos garços” e é ainda a mesma deusa que aparece sob forma de pássaro, ave do mar, andorinha, águia marinha, e abutre; a deusa Hera é chamada boôpis, de “olhos de vaca”, que se pode interpretar como “olhos grandes”; Apolo Esminteu é o “destruidor de ratos” e o mesmo deus se metamorfoseia em “abutre”. Mas nem todos os deuses homéricos revestiram-se das formas humanas: há os que permaneceram como forças da natureza. Na Ilíada, o deus-rio Escamandro ou Xanto participa da grande batalha do canto XX e, irritado com os inúmeros cadáveres lançados por Aquiles em suas correntes, o deus-rio transborda e ameaça no canto XXI submergir o herói. Foi necessário o sopro ígneo de Hefesto (luta da água contra o fogo) para fazê-lo voltar a seu leito. Para que a pira, que deveria consumir o corpo de Pátroclo, se inflamasse, foi preciso que Aquiles, no canto XXIII do mesmo poema, prometesse aos deuses-ventos Bóreas e Zéfiro ricas oferendas... Outros exemplos poderiam ser aduzidos, mas bastam estes para mostrar que nem todos os deuses homéricos se cobriram com a grandeza e com as misérias humanas. Em geral, as divindades homéricas “distinguem-se por uma superlativação das qualidades humanas”: são majestosas, brilhantes, muito altas e fortes. Possuem areté (excelência) e timé (honra), sem temor de ir além dos limites, como os heróis que não podem ultrapassar o métron. Tendo princípio, mas não tendo fim, são imortais, mas não eternos. Ao que parece, a noção de eternidade só aparecerá bem depois na Grécia com Platão e Aristóteles. Digamos que os deuses gregos tenham eveternidade. A todo instante estão imiscuídos, sobretudo na Ilíada, com os heróis: combatem, protegem, aconselham, mas suas teofanias, suas manifestações divinas, se fazem sob forma hierofânica, sob disfarce, e não epifânica, isto é, como realmente são. No canto XX, 131, diz taxativamente a deusa Hera, temendo que Aquiles, ao ver Apolo, se assuste: É difícil suportar a vista de deuses que se manifestam em plena luz. Na Odisseia, embora os deuses sejam os mesmos, com as excelências e torpezas inerentes à sua concepção antropomórfica, tem-se a nítida impressão de que eles subiram alguns degraus em sua escala divina. Mantêm-se, com efeito, mais afastados dos homens e atuam mais à distância, sobretudo por meio de sonhos não enganadores, não mentirosos, como o “Sonho funesto:” de Agamêmnon, enviado por Zeus no canto II da Ilíada, mas como aquele em que Atená manifesta realmente seu desejo a Nausícaa, no canto VI da Odisseia. Mais ainda: a forma hierofânica na Odisseia está bem mais acentuada: Atená, sob a forma de Mentes no canto I ou de Mentor nos cantos II, III e em vários outros da Odisseia, torna-se realmente, no decorrer de todo o poema, a deusa tutelar, a bússola de Ulisses e Telêmaco. As assembleias dos deuses tornaram-se mais serenas e ordeiras. Talvez os deuses da Odisseia tenham envelhecido com o poeta: são mais calmos e tranquilos. O grande ódio de Posídon e a ira de Hélio Hiperíon parecem terminar, com certa surpresa para o leitor, no canto XIII, tão logo o herói toca o solo pátrio. A novidade maior da Odisseia, todavia, está no embrião da ideia de culpa e castigo, em que a hýbris, a violência, a insolência, a ultrapassagem do métron, que será a mola mestra da tragédia, começa a despontar. Na proposição do poema, I, 6-9, se diz logo que “os insensatos companheiros de Ulisses pereceram por seu próprio desatino, porque devoraram as vacas do deus Hélio: este, por isso mesmo, não os deixou ver o dia do regresso”. Mais claro ainda é uma fala de Zeus, embora muito discutida, no canto I da Odisseia, 26-43, em que o pai dos deuses e dos homens afirma que “os mortais culpam os deuses dos males que lhes sucedem, quando somente eles, os homens, por loucura própria e contra a vontade do destino, são os seus autores”. Eis aí a ponta do véu da díke, da justiça, que se levanta. Feitas estas ligeiras observações acerca dos deuses homéricos, tomados em bloco, vamos observar agora cada um deles separadamente, mas sem perder de vista o conjunto de que cada um faz parte. Zeus, sempre se começa por ele, é o deus indo-europeu, olímpico, patrilinear por excelência. Age ou deveria agir como árbitro sobretudo na Ilíada, mas sua atuação é um pêndulo: oscila entre o estatuído pela Moîra, com a qual, por vezes, parece confundir-se, e suas preferências pessoais. Os aqueus destruirão Troia, ele o sabe, mas retarda quanto pode a ruína da cidadela de Príamo, porque prometera a Tétis “a vitória” dos troianos, até que se dessem cabais satisfações à timé ofendida de Aquiles. Para cumprir seu desígnio é capaz de tudo: da mentira às ameaças mais contundentes. Na prova de força que dá no canto VIII, 11-27, quando proíbe os deuses de ajudarem no combate a gregos e troianos, ameaça lançar os recalcitrantes nas trevas eternas do Tártaro e afirma categoricamente que seu poder e força são maiores que a soma da força e do poder de todos os imortais reunidos! E desafia-os para uma competição... Todos se calam, porque perderam a voz, tal a violência do discurso de Zeus. Somente Atená, a filha do coração, após concordar com o poderio paterno e prestar-lhe total submissão (excelente psicóloga!), ousa pedir que os aqueus ao menos não pereçam em massa. E Zeus sorriu e disse-lhe que fosse em paz, sem temor: com “a filha querida” ele desejava ser indulgente! A personalidade de Zeus parece desenvolver-se em dois planos: como “preposto” da Moîra, na Ilíada, age como déspota; como chefe incontestável da família olímpica, busca quanto possível a conciliação. Hera é a esposa rabugenta de Zeus. A deusa que nunca sorriu! Penetrando nos desígnios do marido, vive a fazer-lhe exigências e irrita-se profundamente quando não atendida com presteza. Para ela os fins sempre justificam os meios. Para atingi-los usa de todos os estratagemas a seu alcance: alia-se a outros deuses, bajula, ameaça, mente. Chegou mesmo a arquitetar uma comédia de amor, para poder fugir à severa proibição do esposo e ajudar os helenos. Atraiu femininamente Zeus para os píncaros tranquilos do monte Ida e lá, num ato de amor mais violento e quente que as batalhas que se travavam nas planícies de Troia, prostrou o poderoso pai dos deuses e dos homens num sono profundo! É verdade que não raro Zeus manifesta por ela um profundo desprezo e surgem então as ameaças e afirmativas de domínio masculino, o que mais acentua a fraqueza e a insegurança do grande deus olímpico, porque tais ameaças nunca se cumprem. Conhecedor profundo do rancor, da irritabilidade e da insolência da esposa, Zeus procura evitar, quanto possível, as cenas de insubordinação e a linguagem crua e desabrida da filha de Crono. Esquiva-se ou busca harmonizar as coisas, dando a falsa impressão de que o destino dos mortais depende mais do humor de Hera do que da onipotência do esposo. Em relação aos demais deuses e aos heróis, a deusa não tem meios-termos: ama ou odeia e na consecução destes dois sentimentos vai até o fim. Tem-se visto no comportamento de Hera, a deusa dos amores legítimos, sobretudo na influência exercida sobre Zeus, o reflexo da poderosa deusa da fecundidade (e ela realmente o foi em Creta), a cujo lado o esposo divino desempenharia um papel muito secundário: apenas o de deus masculino fecundador. A cena de amor no monte Ida simbolizaria tão-somente uma hierogamia, isto é, uma união, um casamento sagrado, visando à fertilidade. Atená é o outro lado de Hera no coração de Zeus. Nascida sem mãe, das meninges do deus, é, já se mostrou, a filha querida, cujos desejos e rogos, mais cedo ou mais tarde, são sempre atendidos e cujas rebeldias sempre entristecem, “pois estas lhe são tanto mais penosas quanto mais querida é a filha”. O canto VIII da Ilíada está aí para mostrar quanto Atená, a deusa da inteligência, é a preferida e mimada pelo senhor do Olimpo. Ares, ferido no canto V, 856-861, pela lança de Diomedes, guiada por Atená, sobe ensanguentado ao Olimpo e vitupera duramente a proteção de Zeus à filha de olhos garços: Todos nós estamos revoltados contra ti. Geraste uma louca execrável, que só medita atrocidades. Todos os demais deuses que habitam o Olimpo te ouvem e cada um de nós te é submisso. A ela, todavia, jamais diriges uma palavra, um gesto de censura. Tu.lhe soltas as rédeas, porque sozinho deste à luz esta filha destruidora. (Il., V, 875-880) Apolo homérico é uma personagem divina em evolução. Ainda se está longe do deus da luz, do equilíbrio, do gnôthi s’autón, do conhece-te a ti mesmo, daquele que Platão denominou pátrios eksegetés, quer dizer, o exegeta nacional. O Apolo da Ilíada é um deus mais caseiro, um deus de santuário, uma divindade provinciana. Preso à sua cidade, comporta-se como um deus tipicamente asiático: é o deus de Troia e lá permanece. Raramente lhe ultrapassa os limites e é, por isso mesmo, pouco frequentador do Olimpo. A seus fiéis protege-os até o fim e, por isso mesmo, protesta com veemência na assembleia dos deuses contra os ultrajes de Aquiles ao cadáver de Heitor, seu favorito: Sois cruéis e malfeitores, deuses. Porventura, Heitor não queimou nunca em vossa honra gordas coxas de boi ou cabras sem mancha? Agora, que nada mais é que um cadáver, não tendes coragem de protegê-lo, a fim de que possam ainda vêlo sua mãe, seu filho, seu pai Príamo e seu povo. Eles já o teriam há muito tempo incinerado e há muito lhe teriam prestado as honras fúnebres! (Il., XXIV, 33-38) Posídon é um deus amadurecido pelas lutas que travou, e sempre as perdeu, com seus irmãos imortais e com o próprio Zeus. O deus do mar, na Ilíada, tem como característica fundamental a prudência. Sempre que discorda, comunica-se primeiro com o irmão todopoderoso e acata-lhe de imediato a decisão. Quando Hera planejou uma conjuração contra o esposo e convidou o deus do mar, este se irrita e responde-lhe que “Zeus é cem vezes mais forte do que todos os imortais”. Mas, numa ausência prolongada do Olímpico, Posídon aproxima-se, observa e, vendo-se em segurança, admoesta e encoraja os aqueus. Por fim, quando Hera adormece no Ida ao esposo, o deus entra diretamente na luta e se empenha tanto nos combates, que não percebe o despertar de Zeus. Foi necessário o envio de Íris para admoestá-lo. Posídon obedece in continenti e o Olímpico se felicita pela submissão do deus do tridente. Apesar de prudente e submisso a Zeus, é incrivelmente rancoroso com os mortais. Perseguiu Ulisses de modo implacável até a ilha de Ogígia, e se de lá o herói pôde partir, por decisão dos deuses, reunidos em assembleia, foi porque Posídon estava ausente, na Etiópia, e daquela não participou. Curioso é que até a ilha dos Feaces Atená pouco fez para ajudar seu protegido, contentando-se em agir indiretamente junto a Zeus. A partir da corte de Alcínoo é que a “filha predileta” intervém diretamente e assegura a salvação de Ulisses. Há, segundo se crê, uma divisão de zonas de influência de cada um dos deuses: um não interfere nos domínios do outro. A própria Atená, respondendo à reclamação de Ulisses de que fora por ela abandonado no vasto mar, afirma que não interveio antes para não entrar em litígio com o tio (Odiss., XIII, 341-343). Tétis é uma poderosa deusa marinha. Sua residência é uma gruta submarina, mas com todas as prerrogativas devidas a uma imortal tão importante. Seu poder é tão grande junto a Zeus, que, para vingar a timé de Aquiles, os aqueus serão derrotados até o canto XVII da Ilíada! Mãe acima de tudo, procurou evitar por todos os meios que o filho participasse da Guerra de Troia, porque lhe conhecia o destino. Com a morte de Pátroclo, após tentar maternalmente consolar o inconsolável Aquiles, dirige-se à forja divina de Hefesto e de sua esposa Cáris. Com que dignidade e humildade, aos pés do deus, segurando-lhe os joelhos, pede, a quem tanto lhe deve, que fabrique novas armas para o Pelida (Il., XVIII, 429-461). Talvez Tétis seja a mais humana das figuras divinas de Homero. Hefesto é o deus coxo. Por tentar socorrer sua mãe Hera, que brigava com Zeus, foi por este lançado do Olimpo no espaço vazio. O deus caiu na ilha de Lemnos e ficou aleijado. Foi Tétis quem o recolheu e levou para sua gruta submarina. Hefesto sofre as limitações de seu próprio físico e serve comumente de alvo e de chacota para seus irmãos imortais. Já o vimos, em meio às gargalhadas de seus pares, claudicando atarefado pelos salões do Olimpo. Infeliz no casamento com Afrodite, que o traía com Ares, soube vingar-se dos adúlteros, estendendo uma rede invisível em torno de seu próprio leito e apanhando de surpresa o casal. Os deuses, convidados a contemplar a cena, comemoram a artimanha do marido traído com seu eterno sorriso inextinguível. Sumamente elucidativa, porém, é a explicação dada por Hefesto para a infidelidade de Afrodite: Pai Zeus e todos os demais bem-aventurados deuses sempiternos! Vinde contemplar uma cena ridícula e intolerável. Afrodite, filha de Zeus, por ser eu coxo, me desonra continuamente prefere o pernicioso Ares, que é belo e tem membros sãos. Eu, porém, sou aleijado. A culpa, todavia, não é minha, mas de meus pais, que nunca me deveriam ter gerado. (Odiss., VIII, 306-312) Aí está o grande problema pessoal de Hefesto, que procura compensar sua deficiência física e infelicidade conjugal com excessiva serventia. É o mais prestativo e humilde dos Olímpicos, ao menos em Homero. Ares é o menos estimado dos deuses: pelos homens e pelos imortais. De deus da guerra, o amante de Afrodite torna-se nos poemas homéricos uma personagem de comédia. Falta-lhe ainda muito para ser o flagelo dos homens. Se na Odisseia fez o papel ridículo de sedutor punido, na Ilíada, após ser ferido por Diomedes, corre ao Olimpo, segundo se mostrou, para queixar-se a Zeus, de quem recebe ironias e insultos. Não me venhas, ó pateta, gemer a meus pés! És o mais odioso de todos os imortais que habitam o Olimpo. Teu único prazer são a rixa, a guerra, os combates. Herdaste a violência intolerável e a insensibilidade de tua mãe, Desta Hera que, a custo, consigo dominar com palavras. (Il., V, 889-893) Até mesmo Atená o derruba e zomba do deus da guerra! Afrodite é o amor. Apenas amor. Seu protegido é Páris. Para ele quer Helena sempre pronta e de braços abertos para recebê-lo, mesmo quando o poltrão, que não resistiu ao primeiro ataque de Menelau, no combate singular do canto III da Ilíada, é envolto numa nuvem e transportado para “o quarto perfumado” de Helena... A esposa de Menelau mostra muito mais dignidade que a deusa e seu protegido. Convidada por Afrodite a dirigir-se ao “quarto perfumado” onde o “herói” repousa e a espera, Helena a princípio se recusa e aconselha a deusa do amor a ir deitar-se com ele... Só mediante ameaças, sobretudo a de deixá-la entregue à própria sorte e à morte certa, é que a rainha de Esparta, embora com repugnância, foi para junto do amante, a quem não poupou injúrias e escárnios (Il., III, 383-436). V. Helena, o eterno feminino. Ingloriamente ferida no canto V por Diomedes, que a denomina “uma deusa sem forças”, sai dando gritos e deixa seu filho Eneias, que recebera uma pedrada do mesmo Diomedes, cair de seus braços... Na carruagem de Ares dirige-se gemendo para o Olimpo, onde Hera e Atená mordazmente inventam para Zeus uma história deveras hilariante. Atená diz ao pai que Afrodite deve ter passado a cortejar os aqueus e, acariciando um deles, rasgou a mão delicada em algum grampo de ouro... Riu-se muito o pai dos deuses e dos homens. Chamou Afrodite e deu-lhe um conselho salutar: Não foste feita, minha filha, para os trabalhos da guerra: consagra-te somente aos doces trabalhos do himeneu... (Il., V, 428-429) Aí estão sumariamente retratados por Homero os principais deuses da Ilíada e da Odisseia. Tragédia e comédia se entrelaçam: até nisto Homero é gênio. A ação e a reação dos deuses homéricos, sua conduta enfim, têm levado alguns a afirmar que a Ilíada é o mais irreligioso dos poemas18. Vai nisto um exagero. É preciso estabelecer em Homero uma dicotomia entre ética e religião. E na Ilíada ambas estão inteiramente desvinculadas. Dentro dos padrões da época, o poema de Aquiles é o primeiro grande esboço da religião helênica. De outro lado, é necessário levar em conta que os poetas, e Homero é o maior deles, são cantores, são “poetas” e não reformadores religiosos! 6 O estudo da escatologia (destino definitivo do indivíduo), que se encontra nos poemas homéricos, oferece dificuldades mais ou menos sérias. É que o poeta usa uma terminologia não muito precisa e, não raro, cambiante. Vamos, assim, fazer primeiro um levantamento dos termos, observando a maior incidência dos mesmos no seu respectivo campo semântico, depois se procurará estabelecer a doutrina, explicitando antes, se não o apego, ao menos a dignidade que os heróis atribuíam a esta vida. Mas, tanto os termos quanto a doutrina terão por limite a Homero, pois que, um pouco mais tarde, ambos sofrerão alterações profundas. De início, vamos nos defrontar com Moîra ou Aîsa, a grande condicionadora da vida. A palavra grega Moîra provém do verbo meíresthai, obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde Moîra é parte, lote, quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o destino. Associada a Moîra tem-se, como seu sinônimo, nos poemas homéricos, a voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados pela poeta, Aîsa. Note-se logo o gênero feminino de ambos os termos, o que remete à ideia de fiar, ocupação própria da mulher: o destino simbolicamente é “fiado” para cada um. De outro lado, Moîra e Aîsa aparecem no singular e só uma vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural. O destino jamais foi personificado e, em consequência, Moîra e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à categoria de divindades distintas. A Moîra, o destino, em tese, é fixo, imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no entanto, os que fazem sérias restrições a esta afirmação e caem no extremo oposto: “Aos olhos de Homero, Moîra confunde-se com a vontade dos deuses, sobretudo de Zeus”19. É bem verdade que em alguns passos dos poemas homéricos parece existir realmente uma interdependência, uma identificação da Moîra com Zeus, como nesta fala de Licáon a Aquiles: E a MOÎRA fatídica, mais uma vez, me colocou em tuas mãos: parece que sou odiado por ZEUS pai, que novamente me entregou a ti. (Il., XXI, 82-83) Zeus e Moîra nestes versos representam, sem dúvida, para o troiano Licáon o mesmo flagelo que o entregou nas mãos sanguinárias de Aquiles. Em outra passagem Zeus dá a impressão de que, se quisesse, poderia modificar aMoîra. Ao ver que seu filho Sarpédon corria grande perigo no combate e estava prestes a ser morto por Pátroclo, o Olímpico pergunta a Hera se não seria mais prudente retirá-lo da refrega. A deusa responde-lhe indignada em nome daMoîra: Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem mortal, há muito tempo marcado pela AÎSA e queres livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós, os outros deuses todos, não te aprovamos. (Il., XVI, 440-443) A inalterabilidade da Moîra, porém, está bem clara nestas palavras de Hera a respeito do destino de Aquiles: Todos nós descemos do Olimpo para participar desta batalha, a fim de que nada aconteça a Aquiles por parte dos troianos, hoje, ao menos: mais tarde, todavia, ele deverá sofrer tudo quanto Aîsa fiou para ele, desde o dia em que sua mãe o deu à luz. (Il., XX, 125-128) Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus com a Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total independência de Aîsa face a todos os imortais. O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma. Ainda como fator externo que, por vontade de Zeus, atua sobre o homem e lhe transtorna o juízo, encontramos em Homero a palavra Áte, que se poderia traduzir por cegueira da razão, “desvario involuntário”, de cujas consequências o herói depois se arrepende. O texto mais citado e que mereceu um excelente comentário de R.E. Dodds é a fala de Agamêmnon no canto XIX da Ilíada, em que o herói procura se desculpar, culpando Áte, das ofensas feitas a Aquiles na assembleia do canto I, 172ss: É ao filho de Peleu que desejo expressar o que penso. Examinai-o bem, argivos, e procurai compreender a minha intenção. Muitas vezes os aqueus me falaram a esse respeito e me censuraram. Eu não sou culpado, mas Zeus, a Moîra e a Erínia que caminha na sombra, quando na assembleia repentinamente me lançaram no espírito uma ÁTE louca, naquele dia em que eu próprio arrebatei o presente de honra de Aquiles. (Il., XIX, 83-89) Este comentário sobre Moîra, Aîsa e Áte é importante para que se possa avaliar depois a responsabilidade do homem face à “outra vida”. Em contraste com os dois conceitos anteriores, mas que concorrem para elucidar também o porquê da importância atribuída pelo herói a “esta vida”, estão a areté e sua natural dedução, a timé. Agathós em grego significa bom, notável, “hábil para qualquer fim superior”; o superlativo de agathós é áristos, o mais notável, o mais valente e o verbo daí formado é aristeúein, “comportar-se como o primeiro”. Pois bem, areté pertence à mesma família etimológica de áristos e aristeúein e significa, por conseguinte, a “excelência”, a “superioridade”, que se revelam particularmente no campo de batalha e nas assembleias, através da arte da palavra. A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma hýbris, uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e desejando igualar-se aos deuses. Uma coisa é o mundo dos homens, outra, o mundo dos deuses, são palavras de Apolo ao fogoso Diomedes (Il., V, 440-442). Consequência lógica da areté é a timé, a honra que se presta ao valor do herói, e que se constitui na mais alta compensação do guerreiro. Aquiles se afasta do combate no canto I exatamente porque Agamêmnon o despojou do público reconhecimento de sua superioridade, tomando-lhe Briseida. Tétis implora a Zeus que a timé de Aquiles lhe seja restituída (Il., I, 503-510). Neste sentido, como afirma P. Mazon, a Ilíada é “o primeiro ensaio de uma moral de honra”. Apesar das palavras terríveis de Zeus acerca do ser humano: Nada mais desgraçado que o homem entre todos os seres que respiram e se movem sobre a terra, (Il., XVII, 446-447) os gregos homéricos, sabedores de que o além que se lhes propunha eram as trevas e o nada, fizeram desta vida miserável a sua vida, buscando prolongá-la através da glória que a seguiria. “O amor à vida torna-se, por isso mesmo, o princípio e a razão do heroísmo: aprende-se a colocar a vida num plano muito alto para sacrificá-la à glória, que há de perpetuá-la. Aquiles é a imagem de uma humanidade condenada à morte e que apressa esta morte para engrandecer sua vida no presente e perpetuar-lhe a memória no futuro”20. Depois de discutirmos a noção e a ação da Moîra, de Áte e a dignidade da areté e da timé, vamos, finalmente, seguir com o herói para a outra vida. Teremos, novamente, que nos defrontar com uma terminologia assaz complicada. Tomaremos, por isso, por guia as obras formidáveis de Dodds21 e Snell22. A primeira peculiaridade na conceituação do homem nos poemas homéricos, consoante Dodds, é a carência de uma concepção unitária da personalidade. Falta a noção de vontade e, por isso, não existe obviamente livre-arbítrio, uma vez que este se origina daquela. Não se encontra ainda em Homero a distinção entre psíquico e somático, mas uma interpretação de ambos e, assim, “qualquer função intelectual é considerada um órgão”. Daí decorrem certos vocábulos que “tentam” explicar as ações e reações do ser humano e sobretudo seu destino após a morte. O primeiro deles é thymós, que designa o instinto, o apetite, o alento e poderia ser definido “grosseira e genericamente”, consoante Dodds, como o “órgão do sentir” (feeling). Goza de uma independência que a palavra “ órgão” não nos pode sugerir, “já que estamos habituados ao conceito de organismo e unidade orgânica”. O thymós pode levar o herói tanto à prática de façanhas gloriosas quanto a atos muito simples, como os de comer e beber. O guerreiro pode conversar com seu thymós, com “seu coração”, com “seu ventre”: tudo isto é thymós. Em síntese, para o homem homérico o thymós não é sentido como uma parte do “self”: trata-se de uma espécie de voz interna independente. Já o vocábulo nóos é mais preciso: designa o espírito, o entendimento. Quando Circe transformou em animais semelhantes a porcos os companheiros de Ulisses, eles, não obstante, conservaram o seu nóos: Eles verdadeiramente tinham as cabeças, a voz, corpo e pelos de porcos, mas conservavam como antes o “espírito” (NÓOS) perfeito. (Odiss., X, 239-240) Muito vizinho do campo semântico de nóos está o termo phrén, mais comumente no plural, phrénes, que se pode traduzir, ao menos as mais das vezes, por entendimento. Psykhé, psiqué, que se perpetuou com o sentido de alma nas línguas cultas e em tantos compostos, provém do verbo 2-psýkhein, soprar, respirar, donde psiqué, do ponto de vista etimológico, significa respiração, sopro vital, vida. Fato curioso é o que observa Dodds: “É sabido que Homero parece atribuir uma psykhé ao homem somente após sua morte ou quando está sendo ameaçado de morte, ou ao morrer ou ainda quando desmaia. A única função da psykhémencionada em relação ao homem vivo é a de abandonálo”23(V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Psiqué). É o caso entre muitos outros de Sarpédon, cuja psykhé o abandona sob a violência do golpe24ou como Andrômaca que exala sua psykhé, que “desmaia”, ao ver o cadáver de Heitor25. Mas, em ambos os casos, a psiqué retorna através das vias respiratórias. Quando sobrevém a morte, a psiqué então se afasta em definitivo, como na morte de Pátroclo: Ele diz: a morte, que tudo termina, o envolve. A psiqué deixa-lhe os membros e sai voando para o Hades, lamentando seu destino, ao deixar o vigor da juventude. (Il., XVI, 855-857) Com a morte do corpo, a psiqué torna-se um eídolon, uma imagem, um simulacro que reproduz, “como um corpo astral”, um corpo insubstancial, os traços exatos do falecido em seus derradeiros momentos. Eis aí o eídolon de Pátroclo, que aparece em sonhos a Aquiles: E eis que aparece a psiqué do infortunado Pátroclo, em tudo semelhante a ele: pela estatura, pelos belos olhos, pela voz; o corpo está coberto com a mesma indumentária. (Il., XXIII, 65-67) E o eídolon do herói pede a Aquiles que lhe sepulte o corpo, ou melhor, “as cinzas”, sem o que não poderá sua psiqué penetrar no Hades: Sepulta-me o mais rapidamente possível, para que eu cruze as portas do Hades. (Il., XXIII, 71) Mas, quando as chamas lhe consumirem o cadáver, sua psiqué jamais sairá lá debaixo. A reencarnação na Grécia viria bem mais tarde: Jamais sairei do Hades, quando as chamas me consumirem. (Il., XXIII, 75-76) Aquiles tenta abraçá-lo, mas o eídolon do amigo esvai-se como vapor e, com um pequeno grito, desaparece nas sombras. Ah! Sem dúvida existe nas mansões do Hades umaPsykhé, um EÍDOLON, que não tem, contudo, PHRÉN algum. (Il., XXIII, 103-104) Quer dizer, no Hades, a psiqué, o eídolon, é uma sombra, uma imagem pálida e inconsistente, abúlica, destituída de entendimento, sem prêmio nem castigo. É que com o corpo morreram o thymós e o phrén. Essa sombra abúlica e apática pode, no entanto, recuperar por instantes a razão, mediante aquele complicado ritual que se descreveu na síntese do canto XI da Odisseia. Neste mesmo canto, o eídolon de Aquiles, tendo recuperado “o entendimento”, pôde dialogar com Ulisses e transmitir-lhe uma opinião melancólica acerca da outra vida: o grande herói preferia ser agricultor na terra, que era uma das mais humildes funções, a ser rei no Hades. Aqui está o diálogo entre Ulisses e Aquiles: Mas tu, Aquiles, és o mais feliz dos homens do passado e do futuro, pois, enquanto vivias, nós, os argivos, te honrávamos como aos deuses, e agora, estando aqui, tens pleno poder sobre os mortos; desse modo não deves te afligir por ter morrido. Assim disse e ele prontamente me respondeu: Ilustre Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte! Eu preferia cultivar os campos a serviço de outro, de um homem pobre e de poucos recursos, a dominar sobre todos os mortos. (Odiss., XI, 482-491) É assim que se nos apresenta a religião homérica. Embora encurralado pela Moîra e ameaçado constantemente por Áte, o herói, nesta vida, de que ele fez a sua vida, tem a dignidade de defender, quanto lhe é possível, a sua timé. Carente de uma concepção unitária de personalidade, com o thymós, o phrén e o nóos morrendo com o corpo, que lhe sobra para a outra vida? Apenas a psykhé, uma sombra pálida e inconsciente, um eídolon trôpego e abúlico. Ignorando as noções de dever, de consciência, de mérito ou de falta, a outra vida ignora, ipso facto, prêmio ou punição para o homem. Aliás, como julgar, punir ou premiar um eídolon? Quando se levantar a cortina das trevas dórias que, durante três séculos, nos ocultaram, em parte, a face da Hélade, não mais estaremos com Homero na Ásia Menor, mas com Hesíodo na Grécia continental. O poeta da Beócia será o assunto do próximo capítulo. 1. Em grego, a par da forma clássica Odysseús, há uma dialetal, Ulíkses, donde o latim Ulixes, fonte do nosso Ulisses. 2. BONNARD, André. Civilisation grecque. 3 vols. Lausanne: Édit. Clairefontaine, s/d., p. 61ss. 3. PAGE, Denys. The Greeks. London: A.C. Watts, 1962, cap. I, p. 16s. 4. Ánaks é o “senhor”, o príncipe, talvez uma espécie de rei com poderes religiosos, e o basileús seria o rei com poderes políticos. 5. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 48s. 6. WEBSTER, T.B.L. From Homer to Mycenae. London: Methuen, 1958, cap. IV, passim. 7. Não é fácil distinguir entre estas duas categorias. Aedo é o grego aoidós e significa cantor. O aedo cantava ao som da cítara, improvisando, como Demódoco, no canto VIII da Odisseia. Rapsodo, rhapsoidós, de rháptein, “coser”, e oidé, canto, significa um ajustador de cantos. Talvez rapsodo não fosse poeta: apenas ligava versos uns aos outros e os recitava, sem cantálos. O aedo é diferente: é um inspirado dos deuses, conforme está na Odiss., VIII, 43-45. 8. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 20-21. 9. LEITE, José Marques. Homero. Rio de Janeiro: Gráfica Portinho Cavalcanti, 1976, p. 55s. 10. As máscaras de ouro simbolizam a heroização do morto, por isso que tinham como finalidade transformá-lo em um ser sobrenatural, de traços incorruptíveis, semelhantes às estátuas dos imortais. 11. Pròs dogmatikús (Contra os dogmáticos), III, 20. 12. PETTAZZONI, Raffaele. La religion dans la Grèce antique. Paris: Payot, 1953, p. 45s [Tradução de Jean Gouillard]. 13. KERÉNYI, Károly. Miti e misteri. Torino: Boringhieri, 1980, p. 275. 14. PETTAZZONI, Raffaele. Op. cit., p. 48s. 15. LEITE, José Marques. Op. cit., p. 37. 16. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 64. 17. NILSSON, Martin P. Greek Piety. London: Oxford P., 1948, p. 11. 18. MAZON, Paul. Introduction à l’Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1948, p. 294. 19. FREIRE, Antônio, S.J. Conceito de Moîra na tragédia grega. Braga: Livraria Cruz, 1969, p. 91. 20. MAZON, Paul. Op. cit., 299. 21. DODDS, E.R. The Greeks and the Irrational. Los Angeles: University of California Press, 1963, p. 15ss. 22. SNELL, Bruno. The Discovery of the Mind. New York: Harper Torchbooks, 1960, sobretudo o cap. I, “Homer’s View of man”, p. 8ss. 23. DODDS, E.R. Op. cit., p. 15. 24. HOMERO. Ilíada, V, 696. 25. HOMERO. Ilíada, XXII, 467. CAPÍTULO VIII Hesíodo, trabalho e justiça: Teogonia, Trabalhos e Dias 1 Hesíodo é um poeta dos fins do século VIII a.C. Em seu poema Trabalhos e Dias lê-se que seu pai, originário de Cime, na Eólida, premido pela pobreza, emigrou da Ásia Menor para a Beócia. Aí teria nascido Hesíodo, na povoação de Ascra, junto ao monte Hélicon, consagrado a Apolo e às Musas. Aí viveu a vida árdua e difícil de um camponês pobre em país pobre. Na divisão da herança paterna, entrou em litígio com o irmão Perses, que subornou os juízes, “os reis comedores de presentes”, e obteve a maior parte. Caído na miséria por causa de sua preguiça e inércia, teria recorrido a Hesíodo que, ameaçado pelo irmão de novo processo, o teria ajudado, oferecendolhe ainda como auxílio maior sua segunda obra, o poema Trabalhos e Dias, em que, como se verá, conjuga-se o trabalho com a justiça. Cronologicamente, a primeira produção do poeta-camponês denomina-se Teogonia. Antes de se apresentar uma análise e comentário de ambos, vamos ver como estava a Grécia no século VIII a.C. e o que lhe aconteceu até o século VI a.C. 2 Passada a fase negra das invasões dórias, quando novamente a cortina se levanta, tem-se a visão de uma Hélade bem diferente do ponto de vista político, social, religioso e econômico. Os reis haviam desaparecido em quase todas as partes e em lugar deles imperava uma sociedade aristocrática, caminhando também ela para sua própria decomposição. Em lugar do grande número de reinos, como vimos, de certa forma vassalos de Micenas, havia surgido um semnúmero de unidades políticas independentes, fechadas em si mesmas, sem vassalagem e sem dever fidelidade a ninguém: na realidade, uma cidade-Estado, a pólis, unidade política típica da Grécia clássica. É claro que, como acentua A. Andrews1, permaneceram em várias cidades gregas traços da velha monarquia, como o título de rei outorgado em plena democracia ateniense a um magistrado eleito anualmente, o Arconte-Rei, mas cuja função não era mais política e sim religiosa. Segundo parece, a transição da monarquia para a aristocracia se fez em geral naturalmente, sem grandes violências, o que não irá acontecer na passagem da aristocracia para a tirania. A transição da monarquia para a aristocracia, e mais precisamente para a oligarquia, teve também como ponto de apoio a religião. A explicação não é difícil. Cada clã, cada génos, cada família era um pequeno mundo com sua religião, seu patrimônio, seu chefe e mais ainda com sua árvore genealógica, pois que o génos remontava, em última análise, a um herói ou a um deus. A soma dos géne, dos clãs, vai gerar a phratría, a “irmandade”, e da junção das fratrias nascerá a phylé, isto é, a tribo. Tais associações não feriam a soberania de cada uma delas separadamente. A reunião dos géne, phratríai e phylaí (clãs, fratrias e tribos) resultaria na criação da pólis, que, na expressão de Glotz, se pode definir como um “agrupamento político, econômico e militar que tem por centro um altar”2. Desse modo, os gregos evoluíram de um regime patrilinear para um forte regime oligárquico, sintetizado na pólis aristocrática, que passa a ter também o seu herói, o herói epônimo, isto é, o que dá seu nome à cidade e a protege, em consequência. Ora, como as funções religiosas eram hereditárias em cada família e se partia do princípio de que as mesmas conferiam poderes políticos, a disputa pelo poder foi muitas vezes violenta e acirrada entre as famílias de maior tradição e prestígio dentro da pólis. De qualquer forma, sempre se salvavam as aparências: os magistrados eram escolhidos por um determinado período, mas sempre e apenas entre os Eupátridas, os nobres; às vezes se elegia um único magistrado por um longo mandato ou um colegiado por um ano somente. Tudo se fazia numa ekklesía, numa assembleia, a que o povo comparecia para “aceitar e aplaudir”, porque só os nobres tinham vez, voz e voto... Do ponto de vista religioso, foi pelos fins do século VIII a.C. queos santuários de Olímpia e Delfos começaram a projetar-se: no primeiro, sob a égide de Zeus, os nobres disputavam as competições atléticas e, no segundo, reinava Apolo, o guardião da aristocracia. Em síntese: como os deuses eram os donos do Olimpo, os Eupátridas eram os senhores da pólis. É que sendo a posse das terras uma das principais formas de riqueza e a tática militar predominante na época era o combate singular, o que exigia que o guerreiro fosse suficientemente rico para adquirir cavalos, carros de guerra e armamento, só os aristocratas podiam defender a cidade, tornandose, por isso mesmo, seus únicos proprietários e senhores. Donos da pólis, o eram igualmente das melhores terras, bem como do sacerdócio (que inclusive era hereditário em algumas famílias) e da justiça. Vamos passar em revista, se bem que sumariamente, os tópicos principais acima mencionados, para que se possa acompanhar-lhes a evolução até o século VI a.C. e as graves consequências que hão de culminar numa profunda metamorfose política, social, econômica e religiosa de algumas cidades gregas, principalmente Atenas. Nos inícios do século VII a.C. ocorreram no mundo grego sérias transformações que muito contribuíram para enfraquecer os Eupátridas. Com a criação do sistema monetário (foi certamente do Oriente que os gregos trouxeram o sistema de pesos e medidas e o uso das moedas de ferro e prata) e o consequente desenvolvimento do comércio, surgiu na Hélade uma nova classe social: a classe dos mercadores e dos artesãos, que rapidamente se enriqueceu, tornandose rival dos Eupátridas. A posse de terras deixa, assim, de ser a única forma de riquezas. O próprio Sólon, que, apesar de nobre, se dedicara ao comércio, coloca o ouro e a prata no mesmo nível da terra. As mudanças operadas na tática militar tiveram outrossim papel importante nas transformações sociais. As armas de guerra, espada, lança, escudo, diminuem de tamanho, tornando-se acessíveis à nova classe média. Surge, nessa época, o guerreiro típico da Grécia: o hoplita (soldado de infantaria pesadamente armado), que, pelas próprias condições de seu armamento, não podia lutar sozinho. Aparecem então as falanges. Os navios de guerra, uma vez que o comércio marítimo aperfeiçoara a construção das naus, adquirem grande importância, crescendo, com isso, o número de remeiros. Dependendo destes e dos hoplitas para proteger a pólis, os Eupátridas, pouco a pouco, perderam o monopólio de defendê-la. E como a defesa da cidade implicava no direito de dirigi-la, a “nova classe” passou a fazer reivindicações políticas. Não seria, talvez, fora de propósito acentuar a importância que teve nas origens da pólis o desaparecimento do herói, do guerreiro, como categoria social particular e como um homem dotado de uma areté e de uma timé específicas. “A transformação do guerreiro da epopeia em hoplita, combatente em formação cerrada, assinala não apenas uma revolução na técnica militar, mas traduz também no plano social, religioso e psicológico uma mutação decisiva”3. De outro lado estavam os camponeses endividados, cuja situação era degradante. Vigorava desde a época dos Eupátridas a hipoteca somática (hipoteca do próprio corpo, bem como dos membros da família), o que fatalmente conduzia à escravidão. É conveniente deixar claro que o problema da posse da terra e do direito grego não parece de todo resolvido. Levando-se em conta algumas metáforas elásticas da poesia de Sólon, é possível fazer uma ideia aproximada do que realmente se passava à época de Hesíodo até as reformas soloninas. Tudo indica que o pequeno proprietário tinha sua terra onerada de dívidas, seja porque o camponês, desde os tempos da insegurança geral do domínio dório, fosse obrigado ou forçado a pagar aos nobres um preço pela proteção que estes lhes davam à terra, seja porque os produtos da mesma eram taxados pelos Eupátridas. De qualquer forma, a inadimplência levava o trabalhador e sua família à escravidão. Qualquer que fosse a conjuntura e, embora não se tenham condições de ser muito preciso sobre a mesma, o fato é que a revolução era iminente, quando entrou em cena o grande reformador ateniense Sólon. Este afirma categoricamente em seus versos4que “libertou a terra e que trouxe de volta a Atenas muitos de seus filhos que haviam sido vendidos como escravos”. Vale a pena transcrever o fragmento 36 de um de seus Iambos, para se fazer um balanço do que se passava em Atenas e certamente em muitas cidades gregas e das providências corajosas tomadas por Sólon: Minha testemunha perante o tribunal da justiça há de ser a grande Mãe dos deuses olímpicos, a Terra negra. Dela arranquei os marcos plantados em todas as direções. Outrora escrava, agora é livre! Trouxe de volta a Atenas, a pátria fundada pelos deuses, muitos atenienses que haviam sido vendidos como escravos. Uns o foram ilegalmente, outros, consoante o direito vigente. De tanto errarem pelo mundo, arrastados pela miséria, alguns nem mais falavam a língua grega! Outros vegetavam em torpe escravidão, trêmulos diante de seus senhores. A todos eu os tornei livres. Eis o que realizei com minha autoridade, apoiando a força na justiça. [...] O poeta-legislador refere-se evidentemente à sua famosa seisákhtheia que significa, etimologicamente, “retirar o peso, tirar o fardo de...” Em termos político-sociais, foi o cancelamento efetuado pela reforma de Sólon das dívidas públicas e privadas e a proibição, para o futuro, de qualquer empréstimo com garantia da pessoa. Aboliu ainda todas as leis de Drácon, exceto as relativas ao homicídio, e fez a revisão da Constituição Ateniense, de tal sorte que ainda o mais pobre dos cidadãos tivesse alguma participação na administração pública. A reforma solonina pode denominar-se uma timocracia ou uma hierarquização de direito, segundo a riqueza de cada um. O direito de voto dos Tetes (cidadãos de baixa renda) na Assembleia (Ekklesía), no entanto, justifica que Sólon seja considerado como o iniciador da democracia ateniense. Deu-lhe, ao menos, uma moldura. Outro problema sério para o povo era o direito grego. Se pelo que se sabe, até o momento, da Linear B, não havia código algum escrito de direito no período micênico, durante toda a época dória os helenos se tornaram ainda mais ignorantes. Só entre os séculos IX e VIII a.C. é que apareceram no mundo grego vários alfabetos, que paulatinamente se unificaram, mas cuja origem é uma só: o alfabeto fenício. Pois bem, o direito grego oral, consuetudinário, estava nas mãos dos nobres, dos Eupátridas, que, por “conhecimento hereditário”, pretendiam interpretá-lo e aplicá-lo. Era o direito baseado na thémis, “têmis” (Thémis, “Têmis”, é a deusa da justiça), isto é, na justiça de caráter divino, uma espécie de ordálio, cujo depositário é o rei, o eupátrida, que decide em nome dos deuses. Não foi apenas Hesíodo que se queixou dos “reis comedores de presentes”, que não raro julgavam em seu próprio proveito... Foi exatamente com isto inclusive que Sólon tentou romper, substituindo a têmis pela díke, “dique”, isto é, pela justiça dos homens, baseada em leis escritas. Lamentavelmente, porém, enquanto as aristocracias não foram eliminadas, a administração da justiça continuou a ser manipulada por magistrados e conselhos aristocráticos. E a violência, que Sólon tanto se esforçou por evitar, foi inevitável. Suas reformas acabaram por desagradar a todos: aos Eupátridas, porque perderam seus privilégios e ao povo que preferia transformações radicais... Incapazes, portanto, de satisfazer sobretudo às aspirações populares, os legisladores foram substituídos pelos tiranos. Týrannos, tirano, palavra não grega, talvez provinda da Ásia Menor, significou, em princípio, “soberano, rei”, sem nenhuma conotação pejorativa, como no título da célebre tragédia de Sófocles, Oidípus Týrannos, Édipo Rei. O tirano é, as mais das vezes, um líder proveniente da aristocracia, que se une à classe média e ao povo para defendê-los contra os nobres. Os séculos VII e VI a.C. na Grécia são dominados pelos tiranos: Pisístrato, em Atenas; Cípselo, em Corinto; Polícrates, em Samos; Fálaris, em Agrigento; Gelão, em Siracusa... A julgar por Atenas, Corinto, Siracusa e Samos, a tirania incentivou a agricultura; despendeu grandes somas em construções públicas; apoiou os concursos competitivos e incentivou a formação musical e atlética do povo grego... Mas, exatamente por sua ilegitimidade e por não reconhecer limites constitucionais a seu poder, o Týrannos acabou por tornar-se “tirano”, um verdadeiro déspota esclarecido! Em Atenas, a bem da verdade, as coisas foram mais tranquilas: Pisístrato procurou manter as leis de Sólon e reinou a paz na Acrópole, pelo menos nos últimos dezenove anos de seu governo. “Governou, diz Aristóteles, com moderação e mais como bom cidadão do que como tirano”. Substituído pelos filhos, Hiparco e Hípias, a tirania, no entanto, não durou muito em Atenas. Mas quando, em 510 a.C., a mesma foi derrubada, o povo ateniense já estava bastante amadurecido para tomar o governo em suas mãos. Ia começar realmente a democracia com Clístenes... Eis aí, em linhas muito gerais, o mundo em que viveram os gregos, do século VII ao VI a.C. Se Hesíodo viveu e escreveu nos fins do século VIII a.C., também ele participou de uma parcela desse tumultuado período de transição por que passaram tantas cidades da Hélade. Vamos ver agora, através de seus dois poemas, o antídoto religioso que ele nos apresenta para os males de seu século, bem como seus sonhos e conselhos para os séculos futuros. Poder-se-ia pensar que o poeta de Ascra tem pouco a ver com os fatos que procuramos resumir. Não é assim. Quem procurou, na Teogonia, partir do Caos para a Justiça, cifrada em Zeus, e nos Trabalhos e Dias conjugar o trabalho com a justiça, está inteiro em seu século e nos séculos vindouros! 3 Far-se-á, primeiro, em esquema, uma divisão dos dois poemas e, em seguida, um comentário sobre ambos5. Teogonia, de theós, deus, e gígnesthai, nascer, significa nascimento ou origem dos deuses. Trata-se, portanto, de um poema de cunho didático, em que se procura estabelecer a genealogia dos Imortais. Hesíodo, todavia, vai além e, antes da teogonia, coloca os fundamentos da cosmogonia, quer dizer, as origens do mundo. Esquematicamente, apresentar-se assim: o primeiro estágio daTeogoniapode a) Invocação às Musas (versos 1-115), dividida em duas partes: uma narrativa (versos 1-34) e um hino (versos 35-115), em que o poeta celebra as Musas, deusas que deleitam o coração de Zeus e inspiram os poetas. b) Nascimento do Universo (versos: 116-132). É o estágio primordial (era panteística). No princípio era o Caos (vazio primordial, vale profundo, espaço incomensurável), matéria eterna, informe, rudimentar, mas dotada de energia prolífica; depois veio Geia (Terra), Tártaro (habitação profunda) e Eros (Amor), a força do desejo. O Caos deu origem a Érebo (escuridão profunda) e a Nix (Noite). Nix gerou Éter e Hemera (Dia). De Geia nasceram Úrano (Céu), Montes e Pontos (Mar). Resumindo (Primeira Fase do Universo) GEIA TÁRTARO CAOS Érebo Nix (Noite) EROS Úrano, Montes, Pontos (Mar) Éter, Hemera (Dia) Como se observa, na primeira fase há nítido predomínio do mundo ctônio, já que a cosmogonia hesiódica se desenvolve ciclicamente de baixo para cima, das trevas para a luz. c) Reinado de Úrano (versos 133-452). À fase da energia prolífica segue-se a primeira geração divina, em que Úrano (Céu) se une a Geia (Terra), donde numerosa descendência. Nasceram primeiro os Titãs e depois as Titânidas, sendo Crono o caçula, embora aqui figure apenas como o caçula dos irmãos. Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono. Titânidas: Teia, Reia, Mnemósina, Febe, Tétis. Após os Titãs e Titânidas, Úrano e Geia geraram os Ciclopes e os Hecatonquiros (Monstros de cem braços e de cinquenta cabeças). Por solicitação de Geia, Crono mutila a Úrano, cortando-lhe os testículos. Do sangue de Úrano que caiu sobre Geia nasceram, “no decurso dos anos”, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas dos Freixos, chamadas Mélias ou Melíades; da parte que caiu no mar e formou uma espumarada nasceu Afrodite. Sintetizando esta parte da Primeira Geração Divina Úrano Geia Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono, Teia, Reia, Têmis, Mnemósina, Febe, Tétis, Ciclopes (Arges, Estérope, Brontes), Hecatonquiros (Coto, Briaréu, Gias). Do sangue de Úrano nasceram: as Erínias (Aleto, Tisífone e Megera), Gigantes (Alcioneu, Efialtes, Porfírio, Encélado...), ninfas Mélias ou Melíades, Afrodite. Em seguida, Nix (Noite), ainda sozinha, deu à luz entre outros: Moro (Destino), Tânatos (Morte), Hipno (Sono), Momo (Sarcasmo), Hespérides, Moîras, Queres, Nêmesis, Gueras (Velhice), Éris (Discórdia)... Pontos (Mar) gerou sozinho a Nereu, o “velho do mar”, e, depois, unindo-se a Geia, teve como filhos: Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia. Nereu uniu-se a Dóris e nasceram as cinquenta Nereidas, de que destacamos as seguintes: Anfitrite, Tétis, Eunice, Galateia, Dinâmene, Psâmate... Taumas com Electra, filha de Oceano, teve Íris e as Harpias (Aelo, Ocípete, às quais mais tarde se acrescentou Celeno). Fórcis e Ceto tiveram as Greias, “as velhas” (Enio, Pefredo, Dino), bem como as Górgonas (Ésteno, Euríale e Medusa). Medusa foi decapitada por Perseu e do sangue do monstro nasceram Crisaor e Pégaso. Crisaor e Calírroe, filha de Oceano, geraram o gigante Gerião, de três cabeças, e o monstro metade mulher, metade serpente, Équidna. Équidna juntou-se a Tifão e dele gerou Ortro, o cão de Gerião, Cérbero, a Hidra de Lerna, Quimera, Fix (Esfinge) e o Leão de Nemeia. Resumindo esta descendência ainda da Primeira Geração Divina Nix (Noite) Moro, Tânatos, Hipno, Momo, Hespérides, Moîras, Queres, Nêmesis, Gueras, Éris Pontos (Mar) Nereu, “o velho do mar” Ponto Geia Taumas, Fórcis, Ceto, Euríbia Nereu Dóris Cinquenta Nereidas: Anfitrite, Tétis, Eunice, Galateia, Dinâmene, Psâmate... Taumas Electra Íris, Harpias (Aelo, Ocípete e depois Celeno) Fórcis Ceto Greias (Enio, Pefredo, Dino), Górgonas (Ésteno, Euríale, Medusa) Medusa, decapitada por Perseu: de seu sangue – Crisaor e Pégaso Crisaor Calírroe Gerião, Équidna Tifão Équidna Ortro, Cérbero, Hidra de Lerna, Quimera, Fix, Leão de Nemeia Oceano uniu-se a Tétis e esta deu à luz primeiramente os rios, entre estes: Nilo, Alfeu, Erídano, Estrímon, Istro, Fásis, Aqueloo, Símois, Escamandro... A seguir pôs no mundo as três mil Oceânidas, entre as quais Electra, Dóris, Clímene, Calírroe, Dione, Plutó, Europa, Métis, Eurínome, Calipso, Perseida, Ideia, Estige...6 Hiperíonamou Teia e deles nasceram Hélio (Sol), Selene (Lua), Eos (Aurora). Crio uniu-se a Euríbia e tiveram Astreu, Palante e Perses. Astreu e Eos tiveram como filhos os ventos Zéfiro, Bóreas e Noto. Palante uniu-se a Estige e geraram Zelo (Emulação, Ciume), Nique (Vitória), Bia (Força), Crato (Poder). Ceos conquistou Febe e nasceram Leto e Astéria. Perses com Astéria teve a poderosa Hécate, a quem Zeus concedeu grandes poderes. Em síntese: Oceano Tétis Nilo, Alfeu, Erídano, Estrímon, Istro, Fásis, Aqueloo, Símois, Escamandro... Oceânidas: Electra, Dóris, Clímene, Calírroe, Dione, Plutó, Europa, Métis, Calipso, Estige... Hiperíon Teia Hélio, Selene, Eos Crio Euríbia Astreu, Palante, Perses Astreu Eos Zéfiro, Bóreas, Noto Palante Estige Zelo, Nique, Bia, Crato Ceos Febe Leto, Astéria Perses Astéria Hécate d) Com a castração de Úrano, Crono assume o cetro, mas é destronado por Zeus: é a Segunda Geração Divina (versos 453-885), que marca a luta de Zeus pelo poder. Crono se casa com sua irmã Reia e nasceram Héstia, Deméter, Hera, Hades, Posídon e Zeus. Crono Reia Héstia, Deméter, Hera, Hades, Posídon, Zeus Graças a um estratagema de Reia, Crono engoliu uma pedra em vez de devorar o caçula Zeus, como fizera com todos os filhos anteriores. Zeus liberta os Ciclopes e destrona Crono, que vomita os filhos que havia engolido. Dentro da Segunda Geração Divina, o poeta intercala o casamento de Jápeto e Clímene e o mito de Prometeu, que é, de certa forma, repetido e completado na segunda obra do poeta, Trabalhos e Dias. Jápeto se uniu a Clímene e nasceram Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu. Jápeto Clímene Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu Epimeteu se une a Pandora, a mulher fatal, modelada por Hefesto. A partir de então se iniciam as lutas de Zeus pelo poder. Após arrancar do Tártaro os Ciclopes, que lhe deram o trovão, o raio e o relâmpago, Zeus libertou também os Hecatonquiros, pois todos eles haviam sido lançados nas trevas por Crono. Foram dez anos de combate, sem nenhum desfecho. Os Hecatonquiros, tendo recebido o néctar e a ambrosia, foram tomados de grande furor bélico. Então Zeus com eles, seus demais irmãos e aliados acabou levando de vencida os terríveis Titãs, que foram enclausurados nas profundezas do Tártaro, local tenebroso, aonde só vai, e assim mesmo raramente, a mensageira Íris, buscar o Horco, ou seja, a água do Estige para juramento dos deuses. Geia, unida a Tártaro, gerou o mais terrível dos monstros, Tifão ou Tifeu, que tem nas espáduas cem cabeças de serpente. Tifão investiu contra Zeus e, após terríveis combates, este o fulminou e lançou no Tártaro. Foi a última batalha. e) Terminada a longa refrega, Zeusconsolidou seu poder, tornandose o pai dos deuses e dos homens. Repartiu suas honras com os outros Imortais e iniciou seu reinado para sempre. Seus múltiplos casamentos refletem-lhe o poder de fecundação. Nova era se abre para Hesíodo: com Zeus está a Dique, a nova Justiça. É a Terceira e última Geração Divina: o estágio olímpico de Zeus (versos 886-964). Zeus tomou como primeira esposa a Métis (Sabedoria, Prudência), mas, grávida de Atená, o deus a engoliu, para que ela não tivesse um filho mais poderoso que o pai. Atená acabou nascendo da cabeça de Zeus. Zeus uniu-se a Têmis (Lei divina, Equidade) e nasceram as Horas: Eunômia, Dique e Irene, bem como as Moîras (Cloto, Láquesis e Átropos)7. Zeus com Eurínome gerou as Cárites (Graças): Aglaia, Eufrósina e Talia. Zeus e Deméter tiveram por filha a Perséfone. Zeus e Mnemósina foram pais das nove Musas. Zeus e Leto geraram Apolo e Ártemis. Zeus com sua “legítima” esposa Hera foi pai de Hebe, Ares e Ilítia. Zeus amou a filha de Atlas, Maia, e dela teve Hermes. Zeus com a mortal Sêmele foi pai de Dioniso. Zeus uniu-se por fim a Alcmena, que se tornou mãe de Héracles. Hera, “por cólera e desafio ao esposo”, gerou sozinha a Hefesto. Posídon e sua esposa Anfitrite foram pais de Tritão. Ares foi amante de Afrodite e tiveram Fobos (Medo), Deimos (Pavor) e Harmonia. Hefesto teve por esposa Aglaia, uma das Cárites. Dioniso amou a loura Ariadne, filha de Minos. Héracles, após tantos e sofridos trabalhos, desposou no Olimpo a Hebe. Hélio uniu-se a Perseida e dela teve Circe e o rei Eetes. Eetes casou-se com Idíia e teve Medeia. O poema se encerra (versos 965-1.022) com o Catálogo dos Heróis e o anúncio de um Catálogo de Mulheres, o qual não existe nos manuscritos. Vejamos então a heroogonia, a genealogia dos heróis, consoante Hesíodo. Iásion e Deméter foram pais de Pluto. Cadmo e Harmonia tiveram Ino, Sêmele, Agave, Autônoe e Polidoro. Crisaor e Calírroe geraram o cruel Gerião. Titono e Eos foram pais de Mêmnon e Emátion. Céfalo e a mesma Eos geraram Faetonte. Jasão e Medeia tiveram um filho, Medeio. Éaco uniu-se à nereida Psâmate, de que nasceu Foco. Peleu e Tétis geraram o grande Aquiles. Anquises e Afrodite foram os pais de Eneias. Ulisses e Circe geraram Ágrio, Latino e Telégono. Ulisses e Calipso tiveram Nausítoo e Nausínoo. “Estas”, diz o poeta, “são as imortais que entraram no leito de mortais e geraram filhos semelhantes aos deuses” (1019-1020). Aí estão, em sua quase totalidade, a cosmogonia, a teogonia e a heroogonia do poeta de Ascra. Este levantamento é de importância capital para nós, primeiro porque Homero, e sobretudo Hesíodo, serão o ponto de partida, já se disse, na elaboração do mito nos três volumes de Mitologia grega; segundo, porque nos pareceu necessário apresentar de uma vez por todas os nomes dos deuses e personagens míticas o mais possível corretamente transcritos ou adaptados em nossa língua. O leitor terá, agora, acreditamos, onde buscar os “nomes divinos” e sua genealogia nas fontes mais antigas, antes que os mesmos se tenham “enriquecido” com tantas variantes. 4 O escritor latino Marco Fábio Quintiliano (35-110 a.C.) fez um juízo severo acerca da Teogonia: raro assurgit Hesiodus magnaque pars eius in nominibus est occupata (Inst., 10,1,52): “raramente se nota em Hesíodo inspiração poética e grande parte de sua obra é uma catalogação de nomes”. A crítica, em parte, é injusta, porque, para os gregos, a obra do poeta da Beócia se constituía num verdadeiro encanto, por lhes recordar os tradicionais e sagrados mitos pátrios. E muito mais que tudo isso, Hesíodo, num trabalho ingente, enfeixou e ordenou em genealogias, de maneira impressionante, a desordem caótica em que vegetavam os velhos mitologemas nacionais. Fixando as gerações divinas e os mitos cosmogônicos, o poeta fincou as estacas da organização do cosmo e explicou-lhe a divisão em três níveis: celeste, ctônio e telúrico. A Teogonia é, sem dúvida, um dos principais, se não o mais importante documento para a história da religião grega e a obra mais antiga que expôs em conjunto o mito helênico. Além do mais, a Teogonia não é apenas uma listagem fria de deuses. O poeta grego, intencionalmente, extrapola. Vai muito além do que poderia parecer, aos olhos dos desavisados, de uma enumeração gélida de divindades. Em primeiro lugar, para Hesíodo, o poeta tem uma missão a cumprir, já que, como poeta, o poietés em grego (donde nos veio, através do latim poeta(m), o vocábulo poeta) não é tão somente um “fazedor”, um criador, mas antes um legislador em nome das Musas, as detentoras de todas as artes e é este o verdadeiro sentido de poietés, como atesta Platão. Como legislador, em nome das Musas, o poeta, o poietés, é um vidente, um mántis, um adivinho. Não é este, porventura, o significado em latim de uates, “poeta”, cujo sentido primeiro é profeta, adivinho, donde o latim uaticinium, “vaticínio”, previsão? Se o poeta sabe ser “fingidor”, sabe igualmente dizer a verdade, como ele próprio afirma, pelos lábios das Musas: Pastores que habitais os campos [...] sabemos relatar ficções muito semelhantes à realidade, mas, quando o queremos, sabemos também proclamar verdades. (Teog., 26-27) Em segundo lugar, já o mostramos, o século VIII a.C. é marcado pelo pesado fardo dos Eupátridas, que manipulavam, além de outros poderes, a justiça, concebida sob forma temística. Ora, não é precisamente a díke, “a justiça dos homens”, a projeção de todo o ideal de Hesíodo? Seu desejo é que a justiça, a paz e a disciplina reinem para sempre e que a Moîra não seja mais uma consequência do acaso, mas a vontade de Zeus. No plano estritamente religioso, o poema em apreço não é também um mero catálogo de deuses. Projetando o social no divino ou tentando modelar o social pelo divino, o poeta faz o deslocamento do Kháos (Caos), da rudis indigestaque moles, da massa informe e confusa, como diz Ovídio (Met., 1,7), para Zeus, isto é, das trevas para a luz. Trata-se, na realidade, consoante a tese brilhante de Bachofen8, da substituição de um tipo de religião por outro, em que o Caos é suplantado por Zeus, o teratomorfismo é substituído pelo antropomorfismo; as trevas são vencidas pela luz; os deuses ctônios pelos olímpicos; a matrilinhagem pela patrilinhagem; Eros, símbolo da promiscuidade sexual, é dominado pelo lógos, pela razão e pela ordem. E se a Teogonia foi denominada a “gesta de Zeus” é exatamente porque o grande deus olímpico não se apresenta, e nem poderia fazê-lo, como criador, mas como conquistador e ordenador. Observando-se com atenção as hierogamias, quer dizer, os casamentos sagrados de Zeus, nota-se que o grande deus “antropomorfizado”, após estabelecer com suas lutas e vitórias a justiça e a paz, tornou-se a síntese das qualidades divinas e humanas de um governante todo-poderoso, mas justo e civilizado. Engolindo a Métis, tornou-se o detentor da sabedoria e da prudência: o arquétipo é Atená, que lhe saiu das meninges. Com Têmis adquiriu não só a equidade, traduzida nas Horas, a disciplina, a justiça e a paz, mas também o poder sobre a vida e a morte, cifradas nas Moîras. Eurínome deu-lhe, com as Graças, o sentido da beleza e da alegria de viver. Deméter, a nutridora, assegurou-lhe a vida material e espiritual do império do mundo dos mortais. Mnemósina, com as nove Musas, abriu-lhe as portas para o domínio de todas as artes. Leto com Apolo e Ártemis, o sol e a lua, iluminou-lhe o percurso dia e noite. Com Hera celebrou a grande hierogamia, símbolo da perpetuidade da espécie. Maia deu-lhe Hermes, o conhecimento do visível e do invisível. A “mortal” Sêmele transmitiu-lhe com Dioniso o outro lado do “homem”: a explosão dos instintos. Finalmente, outra mortal, Alcmena, comunicou-lhe, com Héracles, a força e o destemor. Pode-se observar, assim, que o início com Métis, a sabedoria e a prudência, estampando o lado psíquico, se conjuga, no fim, com a força, projetando o físico: é a perfeita sizígia antropomórfica de Zeus. Uma observação importante se impõe, antes de encerrarmos este comentário ao primeiro poema hesiódico. Quando dividimos o poema em três gerações divinas visamos tão somente a dispor didaticamente “a bela desordem didático-poética” da Teogonia. Além do mais, concluímos que, realmente, estas em Hesíodo são três, representada cada uma pelo pai, que é o soberano no seio da família: Úrano, Crono e Zeus. Este último e os demais deuses da última geração são os imortais do Olimpo, que consagraram a vitória final da ordem olímpica sobre a pletora de divindades locais, representadas pelas duas primeiras gerações. Não se trata apenas, como afirma categoricamente Pettazzoni, de “uma insurreição contra formas tradicionais, em nome de um princípio novo promulgado por uma palavra de revelação”9, mas sobretudo da vitória da luz sobre as trevas. Pode-se, isto sim, afirmar que a vitória coube a uma religião mais plástica e mais bela, mas bem menos profunda que a anterior, ligada a potências essencialmente ctônias. Se em Homero e depois em Hesíodo houve nítida vitória da patrilinhagem sobre a matrilinhagem, a religião da época clássica buscará um consenso, um equilíbrio entre os dois princípios. O que Hesíodo deseja ressaltar, e isto é óbvio, é a “progressão do divino”, na busca da díke, da justiça. E na expressão abalizada de Lesky, na Teogonia “não se trata apenas de uma sucessão violenta de vários reis e soberanos dos céus, mas existe um caminho ascendente para a ordem estabelecida por Zeus, que é o triunfo da justiça”10. Seja como for, na Teogonia, Hesíodo simplesmente prolonga, completa e ordena os deuses homéricos. “Homero é o gérmen fecundo miraculosamente amadurecido no outro lado do Egeu, Hesíodo é a messe que germinou dessa mesma semente transplantada para a Grécia continental”. 5 O segundo poema de Hesíodo denomina-se Trabalhos e Dias. Nesta obra, como já se assinalou, o poeta tenta reconduzir ao bom caminho, com conselhos salutares sobre o trabalho e a justiça, a seu irmão Perses. Este, na divisão da herança paterna, subornou os “reis”, os juízes, e, ao que parece, obteve a maior parte da mesma. Caído, porém, na miséria, devido à sua desídia, recorreu ao irmão, que, vendo-se coagido e ameaçado, procurou orientá-lo através dos ensinamentos ministrados no poema. O próprio título da obra é indício de que se trata de um poema didático, cujo objetivo é ensinar os trabalhos da terra e determinar as épocas propícias em que se devem empreendê-los. Os conselhos que o poeta prodigaliza ao agricultor e, em parte, ao navegante, poderiam, todavia, dar uma ideia falsa de que Hesíodo visaria tão somente ao aspecto didático, mas, como na Teogonia, o autor vai muito além, introduzindo na obra um cunho nitidamente ético. Duas leis, neste poema, estão intimamente ligadas: a necessidade do trabalho e o dever de ser justo. Trabalho e justiça jamais poderão separar-se, porque a carência do primeiro gera a violência, isto é, a injustiça. A lei do trabalho é fundamentada numa razão metafísica, quer dizer, num mito: o mito de Pandora. Isto, porém, é uma longa história que se inicia com o castigo de Prometeu... Vamos esquematizar primeiramente o poema e, em seguida, após um breve comentário sobre o mesmo, entraremos diretamente no mito de Prometeu e Pandora e no mitologema das Cinco Idades. A Introdução do poema (versos 1-10) se compõe de uma invocação às Musas da Piéria e a Zeus, guardião da justiça, concluindo com a finalidade da obra: dizer a seu irmão Perses a verdade. a) Primeira parte (versos 11-382): Elogio do trabalho e da justiça. Existe uma força moral que empurra o homem para o trabalho: é a emulação; mas há uma outra, que o afasta do mesmo: é a inveja. Hesíodo apresenta estas duas tendências inevitáveis sob a forma alegórica de duas Lutas, cifradas na Éris, a Emulação, a Discórdia (versos 11-41). Ora, o trabalho é um preceito imposto pela vingança de Zeus. O mito de Prometeu e Pandora explica a origem dessa lei, assim como todas as desgraças que atormentam o homem (versos 42-105). A experiência histórica atesta que é “inteiramente impossível escapar aos desígnios de Zeus”. A necessidade da justiça é demonstrada pelo mito das Cinco Idades: a dedicação ao trabalho e à justiça assegura a prosperidade nesta vida e a recompensa na outra. Ao revés, os que se deixam dominar pela hýbris, pela “démesure”, pelo descomedimento, serão implacavelmente castigados nesta e no além. Pertencemos todos à Idade do Ferro, da hýbris (versos 106-201). A lei do descomedimento reina em Téspias onde reside o poeta, como patenteia o apólogo do gavião e do rouxinol. Elevando o tom, o autor traça um quadro das desgraças reservadas aos injustos e perjuros (versos 202-273). É necessário, pois, que Perses adquira riquezas e considerações, mas não pela violência e sim pelo trabalho e pela justiça. Numa série de preceitos exorta o irmão a conduzir-se com moderação e sabedoria perante os vizinhos, amigos e parentes (versos 274-382). b) Segunda parte (versos 383-694): Trabalhos, agricultura e navegação. O poeta expõe como a riqueza pode ser adquirida por meio da agricultura. Faz um painel dos diversos trabalhos agrícolas, com as datas e duração dos ciclos, indicações sobre o pessoal, utensílios usados na lavoura e conselhos técnicos (versos 383-447). Seguem-se as épocas do plantio e da colheita; as precauções no inverno; a vinha; a seara; o verão; a debulha e a vindima (versos 448-617). Filho de navegante, Hesíodo não se esquece de que existe para o camponês grego, tão próximo do mar, um meio de aumentar seus recursos: a perigosa arte da navegação e as estações mais propícias para sua prática (versos 618-694). c) Terceira parte (versos 695-828): Conselhos morais e religiosos. A justiça e o trabalho, desde que se sigam os conselhos apontados pelo poeta, são a alavanca da prosperidade, mas a primeira grande providência recai na escolha cuidadosa de uma boa esposa. A segunda condição é a observância das normas da justiça para com os deuses, consoante a prática transmitida pela tradição, enunciada sob a forma de uma série de máximas (versos 695-764). O poema finaliza com uma espécie de calendário, que indica os dias propícios e nefastos ao trabalho. Esse calendário teve uma ampla vigência astrológica que se lhe atribuiu posteriormente (versos 765-828). 6 Estamos agora num mundo inteiramente diferente da época dos heróis de Troia. Se em Homero o homem é metrado pelo ver, em Hesíodo o métron, a medida, é o ser, isto é, o homem dimensionado pelo trabalho e pela necessidade de ser justo. É aqui precisamente o abismo que separa Homero de Hesíodo. No primeiro, o anér, o uir, o “herói”, que vive à sombra do deus ex machina, com sua multiplicidade de epítetos (garantia de sua nobreza), o que o afasta do ser. Em Hesíodo, o ánthropos, o homo, isto é, o humus, o barro, a argila, o “descendente” de Epimeteu e Pandora, o que ganha a vida duramente com o suor de seu rosto. No primeiro, a hipertrofia do kállos, da beleza, do kósmos, da ordem, da areté, da excelência, da timé, da honra pessoal; no segundo, gué, a terra, érgon, o trabalho, sua dignidade e suas misérias. Em Homero, o herói se mede por sua areté, excelência, e timé, honra pessoal; em Hesíodo a areté e a timé se traduzem pelo trabalho e pela sede de justiça. O cenário agora é a natureza, a terra de Téspias, dura e cruel. É esse o teatro da luta diária e incessante do poeta. Natureza e terra que ele imortalizou, sonhando com a dignidade do trabalho, respaldado na justiça. Vamos tentar seguir-lhe os passos e as intenções através de Trabalhos e Dias. Não importa que o litígio de Hesíodo com seu irmão Perses tenha sido real, ou mero artifício literário, como alguns pensam. Importa sim que o poeta coloque como tema central de sua obra o valor e a dignidade do Trabalho e da Justiça: Trabalhar não é vileza, vergonhoso é não trabalhar. (Trab., 311) Poeta sumamente religioso, coloca a felicidade e a prosperidade no trabalho, porque assim o quer a lei divina e, por isso mesmo, é preciso não se deixar arrastar pelo comodismo e pela inércia, que levam à miséria: A miséria pode ser alcançada, tanto quanto se quer, e sem fadiga: a estrada é plana e ela se aloja muito perto de nós. Os deuses imortais, todavia, exigiram o suor para se conquistar o mérito. Longo, árduo e principalmente escarpado é o caminho para se chegar até lá, mas, quando se atinge o cume, ele se torna fácil, por mais penoso que tenha sido. (Trab., 287-292) A necessidade do trabalho é uma punição imposta ao homem por Zeus: o mito de Prometeu e o de Pandora explicam a origem do “desígnio do pai dos deuses e dos homens a que ninguém escapa” e a punição dos mortais. Prometeu, que, segundo a etimologia mais provável, provém de πρό (pró), “antes de” e μῆθος (*mêthos), saber, “ver”, significa exatamente o que o latim denomina prudens, de prouidens, o prudente, o “pre-vidente”, o que percebe de antemão. Filho do Titã Jápeto e da Oceânida Clímene, era irmão de Epimeteu, Atlas e Menécio. Prometeu passa por haver criado os homens do limo da terra, mas semelhante versão não é atestada em Hesíodo. O filho de Jápeto, bem antes da vitória final de Zeus, já era um benfeitor da humanidade. Essa filantropia, aliás, lhe custou muito caro. Foi pelos homens que Prometeu enganou a seu primo Zeus por duas vezes. Numa primeira, em Mecone (nome antigo de Sicione, cidade da Acaia), quando lá “se resolvia a querela dos deuses e dos homens mortais” (Teog., 535-536). Essa disputa certamente se devia à desconfiança dos deuses em relação aos homens, protegidos pelo filho de um dos Titãs, que acabavam de ser vencidos por Zeus. Pois bem, foi em Mecone que Prometeu, desejando enganar a Zeus em benefício dos mortais, dividiu um boi enorme em duas porções: a primeira continha as carnes e as entranhas, cobertas pelo couro do animal; a segunda, apenas os ossos, cobertos com a gordura branca do mesmo11. Zeus escolheria uma delas e a outra seria ofertada aos homens. O deus escolheu a segunda e, vendo-se enganado, “a cólera encheu sua alma, enquanto o ódio lhe subia ao coração”. O terrível castigo de Zeus não se fez esperar: privou o homem do fogo, quer dizer, simbolicamente dos nûs, da inteligência, tornando a humanidade anóetos, isto é, imbecilizou-a: Zeus te ocultou a vida no dia em que, com a alma em fúria, se viu ludibriado por Prometeu de pensamentos velhacos. Desde então ele preparou para os homens tristes cuidados, privando-os do fogo. (Trab., 47-50) Novamente o filho de Jápeto entrou em ação: roubou uma centelha do fogo celeste, privilégio de Zeus, ocultou-a na haste de uma fécula e a trouxe à terra, “reanimando” os homens. O Olímpico resolveu punir exemplarmente os homens e a seu benfeitor. Contra os primeiros imaginou perdê-los para sempre por meio de uma mulher, a irresistível Pandora, de que se falará mais abaixo, e contra o segundo a punição foi tremenda. Consoante a Teogonia (521-534), Prometeu foi acorrentado com grilhões inextricáveis no meio de uma coluna. Uma águia enviada por Zeus lhe devorava durante o dia o fígado12, que voltava a crescer à noite. Héracles, no entanto, matou a águia e libertou Prometeu13, com a anuência do próprio Zeus, que desejava se ampliasse por toda a terra a glória de seu filho, e, a despeito de seu ódio, Zeus renunciou ao ressentimento contra Prometeu, / que entrara em luta contra os desígnios do impetuoso filho de Crono (Teog., 533-534). Para perder o homem, Zeus ordenou a seu filho Hefesto que modelasse uma mulher ideal, fascinante, semelhante às deusas imortais. Pandora é, no mito hesiódico, a primeira mulher modelada em argila e animada por Hefesto, que, para torná-la irresistível, teve a cooperação preciosa de todos os imortais. Atená ensinou-lhe a arte da tecelagem, adornou-a com a mais bela indumentária e ofereceulhe seu próprio cinto; Afrodite deu-lhe a beleza e insuflou-lhe o desejo indomável que atormenta os membros e os sentidos; Hermes, o mensageiro, encheu-lhe o coração de artimanhas, impudência, astúcia, ardis, fingimento e cinismo; as Graças divinas e a augusta Persuasão embelezaram-na com lindíssimos colares de ouro e as Horas coroaram-na de flores primaveris... Por fim, o mensageiro dos deuses concedeu-lhe o dom da palavra e chamou-a Pandora14, porque são todos os habitantes do Olimpo que, com este presente, “presenteiam” os homens com a desgraça! Satisfeito com a cilada que armara contra os mortais, o pai dos deuses enviou Hermes com o “presente” a Epimeteu. Este se esquecera da recomendação de Prometeu de jamais receber um presente de Zeus, se desejasse livrar os homens de uma catástrofe. Epimeteu15, porém, aceitou-a, e, quando o infortúnio o atingiu, foi que ele compreendeu... (Trab., 6089). A raça humana vivia tranquila, ao abrigo do mal, da fadiga e das doenças, mas quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a jarra de larga tampa, que trouxera do Olimpo, como presente de núpcias a Epimeteu, dela evolaram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Só a esperança permaneceu presa junto às bordas da jarra, porque Pandora recolocara rapidamente a tampa, por desígnio de Zeus, detentor da égide, que amontoa as nuvens. É assim, que, silenciosamente, porque Zeus lhes negou o dom da palavra, as calamidades, dia e noite, visitam os mortais... Foi, pois, com Pandora16que se iniciou a degradação da humanidade. Para explicá-la, Hesíodo introduz o mito das Cinco Idades. Deste o poeta extraiu uma dupla lição: mostra a Perses, mais uma vez, a necessidade do trabalho e aos “reis”, aos juízes, como e por que suas sentenças deveriam estar em consonância com a justiça. Daí a fórmula hesiódica: Ouve a “díke”, a justiça, e não deixes crescer a “hýbris”, o descomedimento. (Trab., 213) No mito das Idades, as raças parecem suceder-se segundo uma ordem de decadência progressiva e regular. De início, a humanidade gozava de uma vida paradisíaca, muito próxima da dos deuses, mas se foi degenerando e decaindo até atingir a Idade do Ferro, em que o poeta lamenta viver, pois nesta tudo é maldade: até a Vergonha e a Justiça abandonaram a terra. Cada uma das Idades está “aparentada” com um metal, cujo nome toma e cuja hierarquia se ordena do mais ao menos precioso, do superior ao inferior: ouro, prata, bronze, ferro. O que surpreende é que em lugar das quatro Idades, cujo valor se afere pelos metais que lhe emprestam o nome, Hesíodo tenha intercalado entre as duas últimas mais uma: a Idade dos heróis, que não possui correspondente metálico algum. Há os que procuram explicar o fato por uma preocupação historicista, já que o poeta sabia que antes dele tinham vivido homens e heróis notáveis, que se imortalizaram em Troia e em Tebas. “Para os inserir nesta progressão, foi necessário interromper a linha de decadência. E o seu destino último, habitar a Ilha dos BemAventurados, tem muito de semelhante ao que premiou os seres da primeira Idade. Sendo fundamentalmente uma etiologia, o mito contém uma parte de reminiscências históricas que lhe conferem o especial interesse de ser o mais antigo texto em que elas surgem”17. Victor Goldschmidt vai bem mais longe e propõe para a intercalação da Idade dos Heróis uma explicação de ordem religiosa: “O destino das raças metálicas, após seu desaparecimento da vida terrestre, consiste numa promoção à categoria de potências divinas. Os homens da idade de ouro e prata se convertem, depois da morte, em daímones, ‘demônios’ (potências benéficas, intermediárias entre os deuses e os homens), e os da Idade de Bronze vão formar o mundo dos mortos, no Hades. Só os heróis podem beneficiar-se com uma transformação que não poderia dar-lhes o que eles já possuem: são heróis e continuam sendo heróis. Sua inserção no relato das Idades se explica, quando se observa que sua presença é indispensável para completar o quadro dos seres divinos que distingue, segundo a classificação tradicional, os theoí, os deuses propriamente ditos, dos quais não se fala no relato, das seguintes categorias: os ‘demônios’, os heróis e os mortos. Hesíodo havia, pois, elaborado seu relato mítico, unificando, adaptando duas tradições diversas, sem dúvida independentes em sua origem: de um lado, um mito genealógico das Idades em relação com o simbolismo dos metais, em que se descreve a decadência da humanidade; de outro, uma divisão estrutural do mundo divino, cuja explicação se procurava através da remodelação do esquema mítico primitivo, para que fosse possível o encaixe dos heróis”18. De cunho histórico ou religioso, o fato é que as Cinco Idades não traduzem apenas a decadência do homem, mercê do “crime” de Prometeu e do envio de Pandora, mas acima de tudo a necessidade do trabalho e o dever de ser justo. Jean-Pierre Vernant, numa exposição feita em Cerisy, em 1960, nos legou um estudo muito sério e profundo acerca das Cinco Idades19. Embora não se possa concordar in totum com o “forçado estruturalismo” do grande mestre francês, vale a pena sintetizar-lhe o longo artigo sobre a matéria em pauta, para que, antes da análise de cada uma das Idades, se possa ter uma ideia do conjunto. Na estrutura das quatro primeiras raças distinguem-se dois níveis diferentes: ouro e prata de um lado, bronze e heróis de outro. Cada um deles se divide em dois aspectos antitéticos, um positivo, outro negativo: são duas raças associadas, mas que se opõem, como a Díke (Justiça) contrasta com a hýbris (Violência). O que diferencia o nível das duas primeiras raças do plano das duas seguintes é que ambos se relacionam com funções distintas, que representam tipos de agentes humanos, formas de ação, hierarquias sociais e psicológicas opostas. Há, de saída, uma primeira dissimetria: no primeiro plano (ouro e prata), a Díke (Justiça) é o valor dominante e a hýbris (Violência) tem valor secundário; no segundo (bronze e heróis), sucede o contrário, a hýbris predomina. Isto explica, aliás, o destino diferente que aguarda, após a morte, as almas das duas primeiras raças daquelas pertencentes às duas seguintes. Os que nasceram sob a égide do ouro e da prata têm realmente uma promoção post mortem: convertem-se em daímones, “demônios” (intermediários benéficos entre os deuses e os homens). Esses daímones, todavia, agem diferentemente sobre os mortais, tanto quanto se diferenciaram na vida terrestre: os primeiros (da Idade de Ouro) são os daímones epictônios, quer dizer, continuam a viver e a agir na terra; os segundos (da Idade de Prata) são os daímones hipoctônios, isto é, vivem e agem sob a terra, na outra vida20. Ambos são objetos das “honras” que lhes tributam os mortais: “honras” maiores para os primeiros e inferiores para os segundos. Muito diferente é o destino póstumo daqueles que viveram as idades do Bronze e dos heróis. Como raça, nenhum deles tem direito a uma promoção. Os da Idade de Bronze, após perecerem na guerra, convertem-se no Hades em “mortos anônimos”, nónymoi. Somente alguns heróis privilegiados conservam, por desígnio de Zeus, um nome e uma existência individual no além: levados para a Ilha dos Bem-Aventurados, têm uma vida isenta de preocupações. Apesar desse prêmio, porém, esses heróis privilegiados não são objeto de veneração alguma, nem de culto, por parte dos homens. Contrariamente aos daímones, os heróis carecem de qualquer poder ou influência sobre os vivos, a não ser que tenham sido divinizados. A quinta e última, a Idade de Ferro, a época de Hesíodo, poderia dar a falsa impressão de, contrariamente às anteriores, não se poder desdobrar em dois aspectos antitéticos, mas de formar uma raça única. A leitura atenta do poema nos conduz, porém, a uma outra realidade. Dentro da Idade de Ferro, com efeito, existem dois tipos, rigorosamente opostos: um, voltado para a Díke (Justiça), e outro só conhece a hýbris (Violência). Com efeito, Hesíodo vive num mundo, numa “Idade”, em que o homem nasce jovem e, normalmente, morre velho; numa “Idade”, em que há leis naturais (o filho se parece com o pai) e morais (deve-se respeito ao hóspede, aos pais, aos juramentos); num mundo em que o bem e o mal, intimamente mesclados, se equilibram. Mas o poeta anuncia o advento de uma outra situação, de um outro aspecto de vida dentro da Idade de Ferro, inteiramente oposto à época em que vive Hesíodo: os homens nascerão velhos, com as têmporas já encanecidas; os filhos não mais se assemelharão a seus pais; não se conhecerão amigos, nem irmãos, nem parentes, nem juramentos. O único direito será a força. Nesse “período” entregue à desordem, à anarquia e à hýbris, nenhum bem compensará o homem por seus sofrimentos. Vê-se, pois, que a Idade de Ferro também se dicotomiza e pode, assim, articular-se com as Idades precedentes, igualmente bipartidas, para formar e completar a estrutura de conjunto do mitologema. Resumindo, pode-se dizer que Hesíodo apresentou o mitologema das Cinco Idades dentro de um esquema trifuncional: – no primeiro plano (ouro e prata) há nítido predomínio da Díke (Justiça); – no segundo (bronze e heróis) reina a hýbris (a Violência); – o terceiro (ferro) está vinculado a um mundo ambíguo, definido pela coexistência dos contrários: o bem se contrapõe ao mal; o homem opõe-se à mulher; o nascimento à morte; a abundância à penúria; a felicidade à desgraça. Díke e hýbris, Justiça e Violência, uma ao lado da outra, oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis entre as quais compete a ele escolher21. A esse mundo tão contrário o poeta acena com a perspectiva aterradora de uma vida humana em que triunfará a hýbris, restando ao homem tão somente a anarquia, a desordem e a infelicidade. Da Idade do Ouro, em que reinou a Díke, chegou-se, com degeneração da humanidade, à Idade do Ferro em que triunfou por fim a hýbris. Dada essa ideia de conjunto, tomando ainda por guias o supracitado estudo de Jean-Pierre Vernant, Paul Mazon22e, principalmente, os textos do próprio Hesíodo, tentaremos apresentar um ligeiro comentário a cada uma dasCinco Idades. a) Idade de Ouro. Os homens mortais da Idade de Ouro foram criados pelos próprios Imortais do Olimpo, durante o reinado de Crono. Viviam como deuses e como reis, tranquilos e em paz. O trabalho não existia, porque a terra espontaneamente produzia tudo para eles. Sua raça denomina-se de ouro, porque o ouro é o símbolo da realeza. Jamais envelheciam e sua morte assemelhava-se a um sono profundo. Após deixarem esta vida, recebiam o basíleion guéras, quer dizer, o privilégio real, tornando-se daímones epikhthónioi, intermediários aqui mesmo na terra entre os deuses e seus irmãos viventes. Esse basíleion guéras tem uma conotação toda especial, quando se leva em conta que os daímones epikhthónioi, esses grandes intermediários, assumem em “outra vida” as duas funções que, segundo a concepção mágico-religiosa da realeza, definem a virtude benéfica de um bom rei: como phýlakes, como guardiães dos homens, velam pela observância da justiça e, como plutodótai, como dispensadores de riquezas, favorecem a fecundidade do solo e dos rebanhos. Curioso é que Hesíodo emprega as mesmas expressões, que definem os “reis” da Idade de Ouro, para qualificar os “reis” justos do seu século. Os homens da Idade de Ouro vivem hós theoí, como deuses; os reis justos do tempo do poeta, quando avançam pela assembleia e, por meio de suas palavras mansas e sábias, fazem cessar a hýbris, o descomedimento, são saudados como theòs hós, como um deus. E assim como a terra, à época da Idade de Ouro, era fecunda e generosa, igualmente a cidade, sob o governo de um rei justo, floresce em prosperidade sem limites. Ao contrário, o rei que não respeita o que simboliza seu sképtron, o seu cetro, afastando-se pela hýbris do caminho que conduz à Díke, transforma a cidade em destruição, calamidade e fome. É que, por ordem de Zeus, trinta mil imortais invisíveis (que são os próprios daímones epikhthónioi) vigiam a piedade e a justiça dos reis. Nenhum deles, que se tenha desviado da Díke, deixará de ser castigado mais cedo ou mais tarde pela própria Díke. b) Idade de Prata. Foram mais uma vez os deuses os criadores da raça de prata23, que é também um metal precioso, mas inferior ao ouro. À soberania piedosa do rei da Idade de Ouro fundamentada na Díke opõe-se uma “hýbris louca”. Tal hýbris, porém, nada tem a ver com a hýbris guerreira: os homens da Idade de Prata mantêm-se afastados tanto da guerra quanto dos labores campestres. Essa hýbris, esse descomedimento, é uma asébeia, uma impiedade, uma adikía, uma injustiça de caráter puramente religioso e teológico, uma vez que os “reis” da raça de prata se negam a oferecer sacrifícios aos deuses e a reconhecer a soberania de Zeus, senhor da Díke. Exterminados por Zeus, os homens da raça de prata recebem, no entanto, após o castigo, honras menores é verdade, mas análogas às tributadas aos homens da Idade de Ouro: tornam-se daímones hypokhthónioi, intermediários entre os deuses e os homens, mas agindo de baixo para cima, na outra vida. Além do mais, os mortais da raça argêntea apresentam fortes analogias com os Titãs: o mesmo caráter, a mesma função, o mesmo destino. Orgulhosos e prepotentes, mutilam a seu pai Úrano e disputam com Zeus o poder sobre o universo. Reis, pois que Titán em grego, em etimologia popular, aproxima-se de Títaks, rei, e Titéne, rainha, os Titãs têm por vocação o poder. Face a Zeus, todavia, que representa para Hesíodo a soberania da ordem, da Díke, aqueles simbolizam o mando e a arrogância da desordem e da hýbris. De um lado, portanto, estão Zeus e os homens da Idade de Ouro, projeções do rei justo; de outro, os Titãs e os homens da Idade de Prata, símbolos de seu contrário. Na realidade, o que se encontra no relato das duas primeiras Idades é a estrutura mesma dos mitos hesiódicos da soberania. c) Idade de Bronze. Os homens da raça de bronze, consoante Hesíodo, foram criados por Zeus, mas sua matriz são os freixos, símbolo da guerra, como diz o poeta: Filha dos freixos, era terrível e poderosa, bem diferente da raça de prata: aspirava tão-só aos trabalhos de Ares, fontes de dor, e ao descomedimento. (Trab., 145-146) Trata-se aqui da hýbris militar, da violência bélica, que caracteriza o comportamento do homem na guerra. Assim, do plano religioso e jurídico se passou às manifestações da força bruta e do terror. Já não mais se cogita de justiça, do justo ou do injusto, ou de culto aos deuses. Os homens da Idade de Bronze pertencem a uma raça que não come pão, quer dizer, são de uma Idade que não se ocupa com o trabalho da terra. Não são aniquilados por Zeus, mas sucumbem na guerra, uns sob os golpes dos outros, domados “por seus próprios braços”, isto é, por sua própria força física. O próprio epíteto da Idade a que pertencem esses homens violentos tem um sentido simbólico. Ares, o deus da guerra, é chamado por Homero na Ilíada (VII, 146) de khálkeos, isto é, “de bronze”. No pensamento grego, o bronze, pelas virtudes que lhe são atribuídas, sobretudo por sua eficácia apotropaica, está vinculado ao poder que ocultam as armas defensivas: couraça, escudo e capacete. Se o brilho metálico do bronze reluzente infunde terror ao inimigo, o som do bronze entrechocado, essa phoné, essa voz, que revela a natureza de um metal animado e vivente, rechaça os sortilégios dos adversários. A par das armas defensivas, existe uma ofensiva também estreitamente ligada à índole e à origem dos guerreiros da Idade de Bronze. Trata-se da lança ou dardo confeccionado de madeira especial, amelía, isto é, o “freixo”. E não foi dofreixoque nasceram, segundo Hesíodo, os homens da Idade de Bronze? As ninfas Mélias ou Melíades, nascidas do sangue de Úrano, estão intimamente unidas a essas árvores “de guerra” que se erguem até o céu como lanças, além de se associarem no mito a seres sobrenaturais que encarnam a figura do guerreiro. Jean-Pierre Vernant24faz uma aproximação muito feliz do gigante Talos com os homens da raça de bronze. Esse Talos, guardião incansável da ilha de Creta, nascera de um freixo (melía) e tinha o corpo todo de bronze. Como Aquiles, era o gigante cretense dotado de uma invulnerabilidade condicional, que somente a magia de Medeia foi capaz de destruir25. Os Gigantes, “a cuja família” pertence Talos, representam uma confraria militar, dotada de uma invulnerabilidade condicional e em estreita relação com as ninfas Mélias ou Melíades. Na Teogonia (184-187) o poeta relata como Geia, recebendo o sangue de Úrano, castrado por Crono, “gerou os grandes Gigantes de armas faiscantes (porque eram de bronze), que têm em suas mãos compridas lanças (de freixo) e as ninfas que se chamam Mélias”. Assim, entre a lança, atributo militar, e o cetro, atributo real da justiça e da paz, há uma diferença grande de valor e de nível. A lança há que submeter-se ao cetro. Quando isto não acontece, quando essa hierarquia é quebrada, a lança confunde-se com a hýbris. Normalmente para o guerreiro, tributário da violência, a hýbris dele se apodera, por estar voltado inteiramente para a lança. É o caso típico, entre outros, de Ceneu26, o “lápita da lança”, dotado como Talos, Aquiles e os Gigantes27de uma invulnerabilidade condicional como todos os que passaram pela iniciação guerreira. Ceneu fincava sua lança sobre a praça pública, rendia-lhe um culto e obrigava a todos que por ali passassem a tributar-lhe honras divinas. Filhos da lança, indiferentes à Díke e aos deuses, os homens da raça de bronze, como os Gigantes, após a morte, foram lançados no Hades por Zeus, onde se dissiparam no anonimato da morte. d) Idade dos Heróis. A quarta Idade é a dos heróis, criados por Zeus, uma “raça mais justa e mais brava, raça divina dos heróis, que se denominam semideuses” (Trab., 158-160). Lendo-se, com atenção o que diz Hesíodo acerca dos heróis, nota-se logo que os mesmos formam dois escalões: os que, como os homens da Idade de Bronze, se deixaram embriagar pela hýbris, pela violência e pelo desprezo pelos deuses e os que, como guerreiros justos, reconhecendo seus limites, aceitaram submeter-se à ordem superior da Díke. Um exemplo bem claro desses dois escalões antitéticos é a tragédia de Ésquilo Os Sete contra Tebas: em cada uma das sete portas ergue-se um herói mordido pela hýbris, que, como um Gigante, profere contra os imortais e contra Zeus terríveis impropérios; a este se opõe outro herói, “mais justo e mais bravo”, que temperado pela sophros×ne, pela prudência, respeita tudo quanto representa um valor sagrado. O primeiro escalão, os heróis da hýbris, após a morte, são como os da Idade de Bronze, lançados no Hades, onde se tornam nónymoi, mortos anônimos; o segundo, os heróis da Díke, recebem como prêmio, já se frisou, a Ilha dos Bem-Aventurados, onde viverão para sempre como deuses imortais. Acontece, todavia, que no mito da soberania, com a implantação, após uma luta árdua e difícil, do reino de Zeus, existe uma categoria de seres sobrenaturais que muito se assemelham aos heróis bravos, mas justos: trata-se dos Hecatonquiros, que, num momento em que a vitória era incerta, ajudaram Zeus a derrotar os Titãs. O pai dos deuses e dos homens, aliás, antes do combate decisivo, os recompensou com a imortalidade, dando-lhes o néctar e a ambrosia, como premiara a sophros×ne e a Díke, a prudência e o respeito à justiça de um grupo de heróis, com a Ilha dos Bem-Aventurados. Claro que o gesto de Zeus para com os Hecatonquiros não deixa de ter uma intenção política, mas, a partir daí, recorrendo aos guerreiros, aos militares, o deus da Díke associa para sempre a função guerreira à soberania. A partir de então, o cetro terá que apoiar-se na lança. Sólon, no fragmento que transcrevemos na p. 159, deixa claro que realizou sua reforma “apoiando a força na justiça”. Mas, como Hesíodo é bem mais poietés, é uates, é adivinho, antecipou-se a Sólon de mais de um século! e) Idade de Ferro. Comecemos pelas próprias palavras do poeta: Oxalá não tivesse eu que viver entre os homens da quinta Idade: melhor teria sido morrer mais cedo ou ter nascido mais tarde, porque agora é a Idade de Ferro... (Trab., 174-176) Logo na introdução com a narrativa das duas lutas, a partir do verso 11, e no fecho do mito de Prometeu e Pandora, verso 106, Hesíodo nos dá um panorama da Idade de Ferro: doenças, a velhice e a morte; a ignorância do amanhã e as incertezas do futuro; a existência de Pandora, a mulher fatal, e a necessidade premente do trabalho. Uma junção de elementos tão díspares, mas que o poeta de Ascra distribui num quadro único. As duas Érides, as duas lutas, se constituem na essência da Idade de Ferro: Na verdade, não existe apenas uma espécie de luta: na terra existem duas. Uma será exaltada por quem a compreender, a outra é condenável. É que elas são contrárias entre si: uma, cruel, é causa de que se multipliquem as guerras e as discórdias funestas. Nenhum mortal a estima, mas, forçados pela vontade dos Imortais, os homens prestam um culto a esta luta perversa. A outra, mais velha, nasceu da Noite tenebrosa, e Zeus, em seu elevado trono no éter, colocou-a nas raízes do mundo e fê-la bem mais proveitosa para os homens. Esta arrasta para o trabalho até mesmo os indolentes, porque o ocioso, quando olha para um outro, que se tornou rico, rapidamente busca o trabalho, procura plantar e fazer prosperar seu patrimônio: o vizinho inveja o vizinho que se apressa em enriquecer. Esta luta é salutar aos mortais: o oleiro inveja ao oleiro, o carpinteiro ao carpinteiro; o pobre tem ciumes do pobre e o aedo do aedo. (Trab., 11-26) A causa de tudo foi, já se disse, o desafio a Zeus por parte de Prometeu e o envio de Pandora. Desse modo, o mito de Prometeu e Pandora forma as duas faces de uma só moeda: a miséria humana na Idade de Ferro. A necessidade de sofrer e batalhar na terra para obter o alimento é igualmente para o homem a necessidade de gerar através da mulher, nascer e morrer, suportar diariamente a angústia e a esperança de um amanhã incerto. É que a Idade de Ferro tem uma existência ambivalente e ambígua, em que o bem e o mal não estão somente amalgamados, mas ainda são solidários e indissolúveis. Eis aí por que o homem, rico de misérias nesta vida, não obstante se agarra a Pandora, “o mal amável”, que os deuses ironicamente lhe enviaram. Se este “mal tão belo” não houvesse retirado a tampa da jarra, em que estavam encerrados todos os males, os homens continuariam a viver como antes, “livres de sofrimento, do trabalho penoso e das enfermidades dolorosas que trazem a morte” (Trab., 9092). As desgraças, porém, despejaram-se pelo mundo; resta, todavia, a Esperança, pois afinal a vida não é apenas infortúnio: compete ao homem escolher entre o bem e o mal. Pandora é, pois, o símbolo dessa ambiguidade em que vivemos. Em seu duplo aspecto de mulher e de terra, Pandora expressa a função da fecundidade, tal qual se manifesta na Idade de Ferro na produção de alimentos e na reprodução da vida, já não existe mais a abundância espontânea da Idade de Ouro; de agora em diante é o homem quem deposita a sua semente (spérma) no seio da mulher, como o agricultor a introduz penosamente nas entranhas da terra. Toda riqueza adquirida tem, em contrapartida, o seu preço. Para a Idade de Ferro a terra e a mulher são simultaneamente princípios de fecundidade e potências de destruição: consomem a energia do homem, destruindo-lhe, em consequência, os esforços; “esgotam-no, por mais vigoroso que seja” (Trab., 704-705), entregando-o à velhice e à morte, “ao depositar no ventre de ambas” (Teog., 599) o fruto de sua fadiga. Mergulhado nesse universo ambíguo, o agricultor do século de Hesíodo terá fatalmente que escolher entre as duas Érides, as duas lutas: uma, que o incita ao trabalho e à Díke, fonte de muito esforço e fadiga, mas também de justiça e prosperidade; a outra, que o arrasta para a ociosidade e a hýbris, origem da pobreza, da violência, da mentira e da injustiça. A conclusão a que se pode chegar, após o estudo evolutivo das Cinco Idades, é a de que o poeta modelou a evolução humana de modo inverso daquele que presidiu à evolução divina. Se da Idade de Ouro a humanidade se degenerou até atingir o extremo quase insuportável da Idade de Ferro, em que reina a hýbris, a sociedade divina, ao revés, como veremos nos capítulos seguintes, partindo do Caos, elevou-se até Zeus, que para Hesíodo personifica a Díke, a Justiça. 7 Para concluir este capítulo sobre Hesíodo, vamos dizer uma palavra sobre a escatologia e a Díke nos Trabalhos e Dias. A escatologia, parece, já está definida no próprio estudo que se fez de cada uma das Cinco Idades. Vamos apenas recapitular e esquematizar os fatos. Nas Idades de Ouro e Prata, o destino final do homem é tornar-se respectivamente daímon epikhthónios ou hypokhthónios, isto é, a psiqué, sobre ou sob a terra, passa a funcionar como espírito intermediário entre os deuses e os homens. Trata-se, por conseguinte, de uma promoção. Exatamente o contrário sucede com os homens da Idade de Bronze e a maioria dos heróis da Idade que tem seu nome: após a morte, são lançados no Hades, onde, semelhantes à fumaça, se convertem em mortos anônimos, sem direito a honras ou a culto, por parte dos vivos. Hesíodo não fala em penas, em tormentos, mas só pelo fato de se transformarem em mortos anônimos, sem nenhum direito a culto, fica subentendido que “essas sombras” nada mais são que uma fumaça esquiva, o que se constitui, para o pensamento grego, no maior dos castigos, o deixar de ser. Os heróis, porém, amantes da Díke, terão como recompensa eterna a Ilha dos Bem-Aventurados. A respeito da quinta Idade, a de ferro, o poeta se cala a respeito do além. Tem-se a impressão, salvo engano, de que o paraíso e o inferno da Idade de Ferro, que será, além do mais, prolongada por criaturas ainda piores, estão aqui mesmo: os que se dedicam ao trabalho, à justiça e ao respeito aos deuses, terão seus celeiros cheios e uma vida farta e tranquila. Seu paraíso, sua Ilha dos Bem-Aventurados, é uma tríplice colheita anual. Os que se embriagarem da hýbris, do descomedimento, da injustiça e da ociosidade serão escravos da fome e da miséria28. Quanto à justiça, o assunto é bem mais sério. A Díke em Hesíodo e em seu universo religioso ocupa um lugar de destaque. Transformada em divindade poderosa, como filha de Zeus, é respeitada e venerada por todos os Imortais. A razão central dessa verdadeira entronização da justiça deve ser buscada nos graves fatos sociais, já sintetizados páginas atrás, que agitaram os séculos VIII e VII a.C., quando os “reis”, os Eupátridas, donos da pólis e das melhores glebas, porque só eles tinham meios de defendê-las, apossaram-se de todo o resto: religião, leis, sacerdócio... É contra esse estado de coisas que se levanta também a voz de Hesíodo, em nome da Díke, que é a vontade de Zeus. Desejando instruir e orientar seu irmão Perses, dominado pela hýbris, pelo descomedimento, pela violência e pela inércia, o poeta se volta ainda para admoestar os “reis”: deles não se exige trabalho, mas que solucionem com justiça as querelas e arbitrem corretamente os processos. E parece que essa justiça era tão rara, que, ao entrar na assembleia um “rei” justo, era saudado, segundo se mostrou, theòs hós, como um deus... Não foi em vão que, à época de Hesíodo, a Vergonha e a Justiça fugiram para o céu! Logo na Invocação do poema, como desejando mostrar a força de Zeus, senhor da Díke, canta o poeta, exaltando a justiça divina: Facilmente Zeus concede a força e facilmente destrói o forte, facilmente humilha o soberbo e exalta o humilde, facilmente corrige as almas torcidas e esmaga o orgulhoso, Zeus que troveja nas alturas e habita as sublimes mansões. Ouve minha voz, olha, escuta, que a justiça guie tuas decisões. De minha parte, quero dizer a Perses palavras verdadeiras. (Trab., 5-10) E, se Hesíodo quer dizer ao irmão a verdade, o melhor é começar pelo apelo à justiça e à prudência: Mas tu, Perses, ouve a justiça, não deixes crescer o descomedimento. O descomedimento é funesto para os pobres e até o poderoso tem dificuldade em suportá-lo e seu peso o esmaga, quando a desgraça se encontra em seu caminho. É preferível seguir outro rumo, que, passando do outro lado, conduz às obras da justiça. A justiça triunfa do descomedimento, quando é chegada sua hora: o tolo aprende, sofrendo. (Trab., 213-218) Mas Hesíodo não deseja que a justiça seja praticada apenas por Perses, mas também e sobretudo por aqueles que têm a função de aplicá-la. Estes, infelizmente, se deixam, não raro, subornar, a ponto de provocar a presença do Horco, o juramento, e de se ouvirem os clamores e os soluços da própria justiça: De imediato o juramento se apresenta em perseguição às sentenças torcidas, elevam-se os clamores da Justiça sobre o caminho por onde a arrastam os reis comedores de presentes, que fazem justiça à força de sentenças torcidas. Ela os segue chorando sobre a cidade e ás habitações dos homens, que a expulsaram e aplicaram sem critério. (Trab., 219-224) Ao contrário de Homero, em que uma personagem humilde e deformada como Tersites, pelo fato de ter criticado os grandes, foi surrado por Ulisses e ridicularizado pelo poeta, Hesíodo levanta corajosamente sua voz contra os prepotentes e corruptos do século VIII a.C., ameaçando-os em nome de Zeus: Reis, meditai também acerca desta justiça, porque Imortais estão aqui, perto de vós, misturados aos homens. Eles observam todos aqueles que, por suas sentenças torcidas, prejudicam ora um, ora outro, sem se preocupar com o temor dos deuses. São trinta mil Imortais, que sobre a terra nutridora, em nome de Zeus, guardam os mortais, vestidos de bruma, percorrendo a terra inteira, observando-lhes as sentenças e as más ações. (Trab., 248-255) E oito versos mais abaixo, Hesíodo, “o profeta do trabalho e da justiça”29, como apropriadamente lhe chamou Nilsson, apela aos “reis”, já agora em nome do povo injustiçado: Meditai sobre isto, reis comedores de presentes, sede justos em vossos julgamentos e renunciai para sempre às sentenças torcidas. (Trab., 263-264) É preciso que o povo pague pela loucura desses reis que, com tristes desígnios, falsificam seus decretos com fórmulas torcidas. (Trab., 260-262) No século do poeta, no entanto, o que lamentavelmente vigorava era a lei do mais forte. Para elucidá-la, Hesíodo conta o apólogo do “gavião” e do “rouxinol”. Não faz comentários sobre o mesmo e nem era necessário: o “rouxinol-cantor” é o próprio poeta e o “gavião”, ave de rapina, são os “reis comedores de presentes”: Agora, aos reis, embora sábios, contarei uma história. Eis o que o gavião disse ao rouxinol de pescoço pintado, enquanto o transportava lá no alto, no meio das nuvens, preso em suas garras. O rouxinol, traspassado lastimavelmente pelas garras aduncas, gemia, mas o gavião brutalmente lhe diz: “Miserável, por que gritas? Pertences ao mais forte que tu. Irás para onde eu te conduzir, por melhor cantor que sejas: de ti farei meu jantar, se assim o quiser, ou te deixarei em liberdade” [...] (Trab., 202-209) Face à opressão dos ricos contra os pobres, Hesíodo defende a dignidade da pessoa humana: Jamais injuries um homem amaldiçoado pela pobreza, que corrói a alma: a pobreza é um dom dos deuses imortais. (Trab., 717-718) Pacifista, o poeta é um verdadeiro arauto da não-violência: Ouve agora a justiça, esquece a violência para sempre. (Trab., 275) Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas o que se desejou ratificar e comprovar foi o estado lamentável da sociedade grega do século VIII a.C., em que a opressão dos Eupátridas, os “reis comedores de presentes”, transformara o povo em “rouxinóis”. De outro lado, o poeta-camponês quis mostrar o verdadeiro conceito da Díke, que, tanto para os “reis”, como para o agricultor, deve sempre se exercer em função da Éris, isto é, da emulação, que é boa ou má. A Díke real consiste em apaziguar com justiça as querelas, em arbitrar os conflitos provocados pela Éris má. A Díke do agricultor consiste em fazer da Éris virtude, deslocando a luta e a emulação da guerra para o trabalho do campo. Assim compreendida, a Éris, em lugar de destruir, constrói, em vez de semear ruínas, é portadora de fecunda abundância. É provável que, como “poeta e profeta”, Hesíodo tenha se antecipado a seu século. Seu sonho teria ou terá que esperar por muito tempo. Não importa. Hesíodo, como bem mais tarde Eurípides, talvez tenha sonhado com um mundo onde as injustiças, a opressão e a dor não se justificam mais. Sonho? Certamente, mas com certa confiança. Afinal, na jarra, bem junto à tampa, ficaram presos os dois olhinhos verdes de Pandora: a Esperança. 1. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 27ss. 2. GLOTZ, Gustave. Histoire grecque. Paris: Presses Universitaires de France, 1948, t. I, p. 126. 3. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 42. 4. O ateniense Sólon (séc. VII a.C.) foi um dos primeiros poetas líricos da Hélade. Ficaramnos dele fragmentos importantes de Elegias e Iambos, que se constituem num verdadeiro manifesto de suas ideias políticas, sociais e religiosas. 5. Não se tratará, neste capítulo, do mito dos deuses e demais divindades que povoam a Teogonia. Os principais dentre eles serão estudados nos capítulos a seguir, mesmo porque Hesíodo servirá de base a nosso livro. Para uma visão mais completa v. os Vol. II e III de Mitologia grega 6. Estige é uma Oceânida, uma divindade unida à água. Com os filhos ajudara Zeus na luta contra os Titãs e recebeu como privilégio que em seu nome jurassem solenemente os deuses. Como havia uma fonte na Arcádia com o mesmo nome e cujas águas tinham a propriedade de envenenar, o rio do Hades, que também se chamava Estige, e que por ela era formado, passou a ser aquele por cujas águas mágicas se faziam terríveis juramentos. 7. Quando Hesíodo enumera os filhos de Nix (Noite), v. 211-232, fala das Moîras; aqui o poeta as repete, mas de modo diferente, personificando-as. 8. BACHOFEN, Johann Jakob. Op. cit., p. 18ss. 9. PETTAZZONI, Raffaele. Op. cit., p. 57. 10. LESKY, Albin. Geschichte der Griechischen Literatur (História da literatura grega). Berna: Francke Verlag, 1963, p. 116. 11. O hábito de se oferecerem aos deuses os ossos de animais sacrificados, recobertos de gordura, é atestado em muitas culturas. Esses ossos eram queimados sobre os altares, a fim de que o animal pudesse chegar aos céus e ser recomposto. 12. O fígado era considerado em quase todas as culturas como sede da vida, conforme Pr 7,23, e como órgão especial para indicar a vontade dos deuses, conforme Ez 21,26. 13. Eis aí, com todos os “pormenores”, o mito canônico de Prometeu na apresentação de Hesíodo. Para se ter uma ideia concreta de como a arte enriquece, amplia, transfigura e, não raro, “desfigura” o mito, seria necessário a leitura da gigantesca tragédia esquiliana, Prometeu Acorrentado, em que o mitologema é apresentado de maneira bem mais ampla e poética. 14. Pandora provém, em grego, de pân, todo, e dóron, dom, presente, e significa “a detentora de todos os dons”, um presente de todos os deuses. Do ponto de vista religioso, Pandora é uma divindade da terra e da fecundidade. Como Anesidora, a que faz germinar, sair de baixo para cima, antigo epíteto de Deméter, é representada na arte figurativa “saindo da terra”, conforme o tema do ánodos, ação de sair de, própria das divindades ctônias e agrárias. 15. Epimeteu, de epí, sobre, depois, μη-θεύς (me-theús), ver, saber. Por oposição a Prometeu, que vê antes, Epimeteu vê depois. E viu! 16. É verdade que Hesíodo em algumas passagens de seus poemas não tem muita consideração pela mulher, mas não se pode objetivamente, como se tem feito, tachá-lo de misógino, isto é, de “odiar a mulher”. O que o poeta recomenda é o cuidado na escolha de uma boa esposa. Pandora, simbolizando todas as mulheres, é um mal tão belo, reverso de um bem. Flagelo terrível instalado no meio dos mortais, mas algo maravilhoso, revestido pelos deuses de atrativos e de graça. Raça maldita, mas imprescindível ao homem... (Teog., 585591). 17. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 109s. 18. GOLDSCHMIDT, Victor. Theologia. In: Revue des études grecques. Paris: Les Belles Lettres, 1950, t. LXIII, p. 33ss. 19. VERNANT, Jean-Pierre. Génesis y estructura en el mito hesiódico de las razas. In: Revue de l’histoire des religions. Paris: Les Belles Lettres, 1960, t. CLVII, p. 21ss. 20. O poeta emprega exatamente os dois qualificativos dos daímones: epikhthónioi (Trab., 123) e hypokhthónioi (Trab., 141). 21. Religiosamente, já estamos bem distantes de Homero. Em Hesíodo, embora Zeus cumpra seus desígnios, o homem tem possibilidade de escolher entre o bem (o trabalho, a Díke) e o mal (a inércia, a violência, a “hýbris”). 22. MAZON, Paul. Hésiode. Paris: Les Belles Lettres, 1947, passim. 23. Apesar de criados pelos Imortais do Olimpo, os homens da Idade de Prata são bem inferiores a seus predecessores. Durante cem anos permaneciam como crianças ao lado da mãe. Tão logo atingiam a adolescência, tinham poucos anos de vida e sofriam, por causa de seu descomedimento, “mil castigos” (Trab., 130-134). 24. VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit., p. 32s. 25. Talos é uma personagem do mito egeu, uma espécie de robô de bronze, encarregado por Minos ou Zeus de vigiar dia e noite a ilha de Creta. Era invulnerável, exceto na parte inferior da perna, onde se encontrava uma pequena veia, fechada por uma cavilha. Medeia, com seus sortilégios, conseguiu dilacerar a veia e Talos morreu. 26. Ceneu, o lápita da lança, primeiro foi mulher com o nome de Cênis e amada por Posídon, a quem pediu fosse transformada num homem invulnerável. O deus atendeu-lhe a ambos os pedidos, mas a invulnerabilidade era condicional. Sob sua nova forma, lutou contra os Centauros, que lhe descobriram o ponto vulnerável: esmagaram-no sob um monte de pedras. Acrescente-se que a iniciação guerreira implica real ou aparentemente em mudança de sexo, como aconteceu com Aquiles, Ceneu e igualmente Héracles, quando foi comprado pela rainha da Lídia, Ônfale. 27. Os Gigantes só eram invulneráveis quando não atacados simultaneamente por um deus e um mortal. Com a ajuda de Héracles e suas flechas, Zeus e outros imortais os liquidaram. Diga-se, de passagem, que entre os mortais e os imortais há o escalão dos makróbioi, dos que têm uma longa vida, como os Gigantes e as Ninfas, mas não são imortais. 28. Pode-se claramente observar a diferença entre a escatologia homérica e a hesiódica, mas ambas estão ainda muito distantes da verdadeira escatologia grega, que se iniciará com os Órficos (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Escatologia). 29. NILSSON, Martin P. Op. cit., p. 47. CAPÍTULO IX A primeira fase do Universo: do Caos a Pontos 1 Sem deixar de lado o épico com Homero e, bem mais tarde, com Apolônio de Rodes (século III a.C.) e seu importante poema de cunho mitológico, Argonáuticas; sem esquecer o lírico, sobretudo com Píndaro (século VI-V a.C.); sem omitir o dramático, com Ésquilo (século VI-V a.C.), Sófocles e Eurípídes (século V a.C.); sem menosprezar a arte figurada e a obra importante de Pausânias (século II d.C.), Descrição da Grécia, com suas inúmeras digressões míticas; sem preterir o poeta latino Ovídio (século I a.C.-I d.C.) e suas Metamorfoses, porque todos nos servirão de referencial, mercê da importância dos mesmos para um estudo do mito grego, vamos, no entanto, tomar como base e ponto de partida as duas obras didáticas de Hesíodo, Teogonia e Trabalhos e Dias. Se também desejamos ser didático e o mais claro possível (se é que se pode ser claro, escrevendo sobre mito!), tínhamos fatalmente, nessa tentativa de “ordenar” a mitografia grega, que começar por Hesíodo. Afinal, foi ele o primeiro a enfeixar e ordenar em genealogias a desordem caótica em que viviam os mitologemas da Hélade. Empreenderemos, pois, uma longa viagem com o poeta de Ascra. Iniciando com ele pelo Caos e pela Têmis, a justiça divina, tentaremos chegar, se não à Idade de Ouro, ao menos a Zeus, à Dique, à justiça dos homens. Do Caos à luz, da Têmis à Dique, eis o espaço que pretendemos preencher. A obra de Hesíodo, em seu conjunto, é, a nosso ver, um sonho também político: partindo da aristocracia opressora de seu tempo, desejou ver o triunfo de Zeus, símbolo da justiça dos homens. O ideal político do grande poeta beócio, que ele simbolizou com a evolução religiosa, foi uma aspiração por longo tempo adiada. Sólon, Efialtes, Clístenes e Péricles viriam bem depois, mas a luz da democracia deve pelo menos ao poeta o ter sonhado e lutado por ela. Comecemos, pois, pelo Caos. 2 CAOS – No princípio era o Caos. Caos, em grego Χάος (Kháos), do verbo χαίείν (khaíein), abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável1. Ovídio chamou-o rudis indigestaque moles (Met., 1,7), massa informe e confusa. Consoante Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o Caos é “a personificação do vazio primordial, anterior à criação, quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo”2. No Gênesis 1,2, diz o texto sagrado: A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. Trata-se do Caos primordial, antes da criação do mundo, realizada por Javé, a partir do nada. Na cosmogonia egípcia, o Caos é uma energia poderosa do mundo informe, que cinge a criação ordenada, como o oceano circula a terra. Existia antes da criação e coexiste com o mundo formal, envolvendo-o como uma imensa e inexaurível reserva de energias, nas quais se dissolverão as formas nos fins dos tempos. Na tradição chinesa, o Caos é o espaço homogêneo, anterior à divisão em quatro horizontes, que equivale à criação do mundo. Esta divisão marca a passagem ao diferenciado e a possibilidade de orientação, constituindo-se na base de toda a organização do cosmo. Estar desorientado é entrar no Caos, de onde não se pode sair, a não ser pela intervenção de um pensamento ativo, que atua energeticamente no elemento primordial. Do Caos grego, dotado de grande energia prolífica, saíram Geia, Tártaro e Eros. GEIA, em grego Γαία (Gaîa), cuja etimologia ainda se desconhece, é a Terra, concebida como elemento primordial e deusa cósmica, diferenciando-se assim, teoricamente, de Deméter, a terra cultivada. Geia se opõe, simbolicamente, como princípio passivo ao princípio ativo; como aspecto feminino ao masculino da manifestação; como obscuridade à luz; como Yin ao Yang; como anima ao animus; como densidade, fixação e condensação à natureza sutil e volátil, isto é, à dissolução. Geia suporta, enquanto Úrano, o Céu, a cobre. Dela nascem todos os seres, porque Geia é mulher e mãe. Suas virtudes básicas são a doçura, a submissão, a firmeza cordata e duradoura, não se podendo omitir a humildade, que, etimologicamente, prendese a humus, “terra”, de que o homo, “homem”, que igualmente provém de humus, foi modelado. Ela é a fêmea penetrada pela charrua e pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a semente do Céu. Como matriz, concebe todos os seres, as fontes, os minerais e os vegetais. Geia simboliza a função materna: é a Tellus Mater, a Mãe-Terra. Concede e retoma a vida. Prostrando-se ao solo, exclama Jó 1,21:Nu saí do ventre de minha mãe; nu para lá retornarei. Revertere ad locum tuum, volta a teu lugar, é um lembrete que alguns cemitérios gostam de estampar. “Rasteja para a terra, tua mãe” (Rig Veda, X, 18,10), diz o poeta védico ao morto. Assimilada à mãe, a Terra é símbolo de fecundidade e de regeneração, como escreveu Ésquilo nas Coéforas, 127-128: A própria Terra que, sozinha, gera todos os seres, alimenta-os e depois recebe deles novamente o gérmen fecundo. Consoante a Teogonia, 126s, a própria Geia gerou a Úrano, que a cobriu e deu nascimento aos deuses. Esta primeira hierogamia, quer dizer, casamento sagrado, foi imitada pelos deuses, pelos homens e pelos animais. Como origem e matriz da vida, Geia recebeu o nome de Magna Mater, a Grande Mãe. Guardiã da semente e da vida, em todas as culturas sempre houve “enterros” simbólicos, análogos às imersões batismais, seja com a finalidade de fortalecer as energias ou curar, seja como rito de iniciação. De toda forma, esse regressus ad uterum, essa descida ao útero da terra, tem sempre o mesmo significado religioso: a regeneração pelo contato com as energias telúricas; morrer para uma forma de vida, a fim de renascer para uma vida nova e fecunda. É por isso que nos Mistérios de Elêusis se efetuava uma κατάβασις εἰς ἄντρον (katábasis eis ántron), uma descida à caverna, onde se dava um novo nascimento. Para vencer o gigante Anteu, Héracles teve que segurá-lo no ar e sufocá-lo, já que o monstro readquiria todas as suas forças e energias, cada vez que tocava a Terra, sua mãe. Mater, mãe, tem a mesma raiz que materia, “madeira”: pois bem, quando se quer atrair a sorte ou afastar o azar, bate-se três vezes na materia, na madeira, isto é, na mater, na mãe, detentora das grandes energias e de um mana poderoso. TÁRTARO, em grego Τάρταρος (Tártaros), de etimologia desconhecida, até o momento, é o local mais profundo das entranhas da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades. A distância que separa o Hades do Tártaro é a mesma que existe entre Geia, a Terra, e Úrano, o Céu. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em três compartimentos, Campos Elísios, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham a purgar, Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a sofrer, o Tártaro se tornou o local de suplício permanente dos grandes criminosos, mortais e imortais. Na Ilíada, VIII, 13ss, porém, quando Zeus proíbe os Imortais de se imiscuírem nas batalhas entre aqueus e troianos, e ameaça lançar os recalcitrantes nas profundezas do Tártaro, observa-se que este é perfeito sinônimo de Hades, aonde iam ter, para todo o sempre, sem prêmio nem castigo, todas as almas. A divisão do Hades em compartimentos é pós-homérica. Em Hesíodo a ideia de permanência eterna na outra vida já parece também existir, pelo menos para alguns deuses e mortais: lá foram lançados os Titãs e as almas dos homens da Idade de Bronze. Os Ciclopes tiveram maissorte: duas vezes lançados no Tártaro, duas vezes de lá foram libertados, o que demonstra que para algumas divindades o Tártaro podia funcionar apenas como prisão temporária, ao menos até Hesíodo. Seja como for, é no Tártaro que as diferentes gerações divinas lançam sucessivamente seus inimigos, como os Ciclopes e depois os Titãs. EROS, em grego Ἔρως (Éros), significa desejo incoercível dos sentidos. Personificado, é o deus do amor. O mais belo entre os deuses imortais, segundo Hesíodo, Eros dilacera os membros e transtorna o juízo dos deuses e dos homens. Dotado, como não poderia deixar de ser, de uma natureza vária e mutável, o mito do deus do amor evoluiu muito, desde a era arcáica até a época alexandrina e romana, isto é, do século IX a.C. ao século VI d.C. Nas mais antigas teogonias, como se viu em Hesíodo, Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo em que Geia e Tártaro. Numa variante da cosmogonia órfica, o Caos e Nix (a Noite) estão na origem do mundo: Nix põe um ovo, de que nasce Eros, enquanto Úrano e Geia se formam das duas metades da casca partida. Eros, no entanto, apesar de suas múltiplas genealogias, permanecerá sempre, mesmo à época de seus disfarces e novas indumentárias da época alexandrina, a força fundamental do mundo. Garante não apenas a continuidade das espécies, mas a coesão interna do cosmo. Foi exatamente sobre este tema que se desenvolveram inúmeras especulações de poetas, filósofos e mitólogos. Para Platão, no Banquete, pelos lábios da sacerdotisa Diotima, Eros é um demônio3, quer dizer, um intermediário entre os deuses e os homens e, como o deus do Amor está a meia distância entre uns e outros, ele preenche o vazio, tornando-se, assim, o elo que une o Todo a si mesmo. Foi contra a tendência generalizada de considerar Eros como um grande deus que o filósofo da Academia lhe atribuiu nova genealogia. Consoante Diotima, Eros foi concebido da união de Póros (Expediente) e de Penía (Pobreza), no Jardim dos Deuses, após um grande banquete, em que se celebrava o nascimento de Afrodite. Em face desse parentesco tão díspar, Eros tem caracteres bem definidos e significativos: sempre em busca de seu objeto, como Pobreza e “carência”, sabe, todavia, arquitetar um plano, como Expediente, para atingir o objetivo, “a plenitude”. Assim, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros é uma força, uma ἐνέργεια (enérgueia), uma “energia”, perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma carência sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca do objeto. Com o tempo, surgiram várias outras genealogias: umas afirmam ser o deus do Amor filho de Hermes e Ártemis ctônia ou de Hermes e Afrodite urânia, a Afrodite dos amores etéreos; outras dão-lhe como pais Ares e Afrodite, enquanto filha de Zeus e Dione e, nesse caso, Eros se chamaria Ânteros, quer dizer, o Amor Contrário ou Recíproco. As duas genealogias, porém, que mais se impuseram, fazem de Eros ora filho de Afrodite Pandêmia, isto é, da Afrodite popular, a Afrodite dos desejos incontroláveis, e de Hermes, ora filho de Ártemis, enquanto filha de Zeus e Perséfone, e de Hermes. Este último Eros, que era alado, foi o preferido dos poetas e escultores. Aos poucos, todavia, sob a influência da poesia, Eros se fixou e tomou sua fisionomia tradicional. Passou a ser apresentado como um garotinho louro, normalmente com asas. Sob a máscara de um menino inocente e travesso, que jamais cresceu (afinal a idade da razão, o lógos, é incompatível com o amor), esconde-se um deus perigoso, sempre pronto a traspassar com suas flechas certeiras, envenenadas de amor e paixão, o fígado e o coração de suas vítimas... Uma das Odes atribuídas ao grande poeta lírico grego do século VI a.C., Anacreonte, nos dá um retrato de corpo inteiro desse incendiário de corações4. Vamos transcrevê-la, para que se tenha uma ideia da concepção tardia de Eros: Um dia, lá pela meia-noite, Quando a Ursa se deita nos braços do Boieiro, E a raça dos mortais, toda ela, jaz, domada pelo sono, Foi que Eros apareceu e bateu à minha porta. “Quem bate à minha porta, E rasga meus sonhos?” Respondeu Eros: “Abre”, ordenou ele; “Eu sou uma criancinha, não tenhas medo. Estou encharcado, errante Numa noite sem lua”. Ouvindo-o, tive pena. De imediato, acendendo o candeeiro, Abri a porta e vi um garotinho: Tinha um arco, asas e uma aljava. Coloquei-o junto ao fogo E suas mãos nas minhas aqueci-o, Espremendo a água úmida que lhe escorria dos cabelos. Eros, depois que se libertou do frio, “Vamos”, disse ele, “experimentemos este arco, Vejamos se a corda molhada não sofreu prejuízo”. Retesa o arco e fere-me no fígado, Bem no meio, como se fora um aguilhão. Depois, começa a saltar, às gargalhadas: “Hospedeiro”, acrescentou, “alegra-te, Meu arco está inteiro, teu coração, porém, ficará partido”. O fato de Eros ser uma criança simboliza, sem dúvida, a eterna juventude de um amor profundo, mas também uma certa irresponsabilidade. Em todas as culturas, a aljava, o arco, as flechas, a tocha, os olhos vendados significam que o Amor se diverte com as pessoas de que se apossa e domina, mesmo sem vê-las (o amor, não raro, é cego), ferindo-as e inflamando-lhes o coração. O globo que ele, por vezes, tem nas mãos, exprime sua universalidade e seu poder. Eros, de outro lado, traduz ainda a complexio oppositorum, a união dos opostos. O Amor é a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda existência a se realizar na ação. É ele que atualiza as virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato só se concretiza mediante o contato com o outro, através de uma série de trocas materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções. Eros procura superar esses antagonismos, assimilando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma unidade. Nessa acepção, ele é simbolizado pela cruz, síntese de correntes horizontais e verticais e pelos binômios animus-anima e Yang-Yin. Do ponto de vista cósmico, após a explosão do ser em múltiplos seres, o Amor é δύναμίς (dýnamis), a força, a alavanca que canaliza o retorno à unidade; é a reintegração do universo, marcada pela passagem da unidade inconsciente do Caos primitivo à unidade consciente da ordem definitiva. A libido então se ilumina na consciência, onde poderá tornar-se uma força espiritual de progresso moral e místico. O ego segue uma evolução análoga à do universo: o amor é a busca de um centro unificador, que permite a realização da síntese dinâmica de suas potencialidades. Dois seres que se dão e reciprocamente se entregam, encontram-se um no outro, desde que tenha havido uma elevação ao nível de ser superior e o dom tenha sido total, sem as costumeiras limitações ao nível de cada um, normalmente apenas sexual. O amor é uma fonte de progresso, na medida em que ele é efetivamente união e não apropriação. Pervertido, Eros, em vez de se tornar o centro unificador, converte-se em princípio de divisão e morte. Essa perversão consiste sobretudo em destruir o valor do outro, na tentativa de servir-se do mesmo egoisticamente, ao invés de enriquecer-se a si próprio e ao outro com uma entrega total, um dom recíproco e generoso, que fará com que cada um seja mais, ao mesmo tempo em que ambos se tornam eles mesmos5.O erro capital do amor se consuma quando uma das partes se considera o todo. O conflito entre a alma e o amor é simbolizado pelo mito de Eros e Psiqué, que analisamos no segundo volume desta obra. 3 ÉREBO, NIX; ÉTER, HEMERA. Caos gerou sozinho as trevas profundas, Érebo e Nix, enquanto de Nix nasceu a luz radiante, Éter e Hemera. Assim, a matéria informe, confusa e opaca, o Caos, gera primeiramente as trevas. É que para Hesíodo o cosmo se desenvolve ciclicamente, de baixo para cima, passando das trevas à luz. É natural, por isso mesmo, que a luz, Éter e Hemera, tenha sido gerada pelas trevas, Nix, a Noite. Observe-se ainda a conjugação dos opostos: Érebo e Nix, as trevas, se opõem à luz, mas é das trevas, Nix, que nascerá a luz, Éter e Hemera. Esses pares antitéticos unem-se e interferem, cada um triunfando sobre o outro, numa eterna transformação cíclica. Também em Gênesis 1,2-3 a luz existiu depois das trevas: A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: “Exista a luz”. E a luz existiu. ÉREBO, em grego Ἔρεβος (Érebos), designa as trevas infernais. Trata-se de uma concepção indo-europeia, cuja raiz é regwos, que aparece em sânscrito como rájas, espaço obscuro, no gótico riqiz, obscuridade, e no armênio erek, crepúsculo. Bem mais tarde, como já se disse, quando o Hades, o mundo infernal, foi “geograficamente” dividido em três compartimentos, Érebo ocupou o centro, à igual distância entre os Campos Elísios e o Tártaro. NIX, em grego Νύξ (Nýks), é a personificação e a deusa da noite, cuja raiz é o indo-europeu *nokwt – “escuridão”. Habita o extremo Oeste, além do país de Atlas. Enquanto Érebo personifica as trevas subterrâneas, inferiores, Nix personifica as trevas superiores, de cima. Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro puxado por quatro cavalos negros e sempre acompanhada das Queres. À Noite só se podem imolar ovelhas negras. Nix simboliza o tempo das gestações, das germinações e das conspirações, que vão surgir à luz do dia em manifestações de vida. É muito rica em todas as potencialidades de existência, mas entrar na noite é regressar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos, íncubos, súcubos e monstros. Símbolo do inconsciente, é no sono da noite que aquele se libera. ÉTER, em grego Αἰθήρ (Aithér), do verbo αἴθειν (aíthein), brilhar, iluminar, donde “o brilhante”. Éter é a camada superior do cosmo, posicionado entre Úrano (Céu) e o Ar e, por isso mesmo, personifica o céu superior, onde a luz é mais pura que na camada mais próxima da terra, dominada pelo Ar, que nada tem a ver com Éter. HEMERA, em grego Ἡμέρα (Heméra), cuja base é o indo-europeu âmôr, “claridade”. Hemera é a personificação do Dia, concebido como divindade feminina, formando com Éter um par, enquanto Érebo e Nix formam o outro. ÚRANO, MONTES, PONTOS. GEIA, sem concurso de nenhum deus, gerou Úrano (Céu), Montes e Pontos (Mar). Aliás, como Grande Mãe, uma das características de Geia é a partenogênese. ÚRANO, em grego Ουρανός (Uranós). Não mais se aceitando a aproximação com Varuna, talvez se pudesse cotejar o vocábulo grego com *Fορσανός (*worsanós), sânscrito varsa-, “chuva”, donde Úrano seria “o que chove”, fecundando Geia. É a personificação do Céu, enquanto elemento fecundador de Geia. Úrano (Céu) era concebido como um hemisfério, a abóbada celeste, que cobria a Terra, concebida como esférica, mas achatada: entre ambos se interpunham o Éter e o Ar e, nas profundezas de Geia, localizava-se o Tártaro, bem abaixo do próprio Hades, como já se mencionou. Mais adiante se falará da mutilação de Úrano por Crono. Do ponto de vista simbólico, o deus do Céu traduz uma proliferação criadora desmedida e indiferenciada, cuja abundância acaba por destruir o que foi gerado. Úrano caracteriza assim a fase inicial de qualquer ação, com alternância de exaltação e depressão, de impulso e queda, de vida e morte dos projetos. Deus celeste indo-europeu, símbolo da abundância, o deus do Céu é representado pelo touro. Sua fertilidade, todavia, é perigosa, além de inútil. A mutilação de Úrano por Crono põe cobro a uma odiosa e estéril fecundidade e faz surgir Afrodite, nascida do esperma ensanguentado do deus, a qual introduz no mundo a ordem e a fixação das espécies, impossibilitando qualquer procriação desordenada e nociva. André Virel, com base na mitologia grega, caracterizou as três fases da evolução criadora: Úrano (sem equivalente no mito latino) é a efervescência caótica e indiferenciada, chamada cosmogenia; Crono (Saturno) é o podador, corta e separa. Com um golpe de foice ceifa os órgãos de seu pai, pondo fim a secreções indefinidas. Ele é o tempo da paralisação. É o regulador que bloqueia qualquer criação no universo. É o tempo simétrico, o tempo da identidade. Sua fase denomina-se esquizogenia. O reino de Zeus (Júpiter) se caracteriza por uma nova partida, organizada e ordenada e não mais caótica e anárquica: a esta fase A. Virel chama autogenia6. Após a descontinuidade, a criação e a evolução retomam seu caminho. MONTES, MONTANHAS, no grego hesiódico Οὔρεα (Úrea), do verbo ὄρεσθαι (óresthai), “elevar-se”, personificados como filhos de Geia, são em Hesíodo a “agradável habitação das Ninfas”. Por sua altura e por ser um centro, a montanha tem um simbolismo preciso. Na medida em que ela é alta, vertical, aproximando-se do céu, é símbolo de transcendência; enquanto centro de hierofanias (manifestações do sagrado) e de teofanias (manifestações dos deuses), participa do simbolismo da manifestação. Como ponto de encontro entre o céu e a terra, é a residência dos deuses e o termo da ascensão humana. Expressão da estabilidade e da imutabilidade, a montanha, segundo os sumérios, é a massa primordial não diferenciada, o Ovo do mundo. Residência dos deuses, escalar a montanha sagrada é caminhar em direção ao Céu, como meio de se entrar em contato com o divino, e uma espécie de retorno ao Princípio. Todas as culturas têm sua montanha sagrada. Moisés recebeu as Tábuas da Lei no Monte Sinai; Garizim foi e continua a ser um cume sagrado nas montanhas de Efraim; o sacrifício de Isaac foi sobre a montanha; Elias obtém o milagre da chuva nos píncaros do monte Carmelo (1Rs 18,45); uma das mais belas pregações de Cristo foi o Sermão da Montanha (Mt 5,lss); a transfiguração de Jesus foi sobre uma alta montanha (Mc 9,2) e sua ascensão, sobre o monte das Oliveiras (Lc 24,50; At 1,12)... Os exemplos poderiam multiplicar-se. Acrescentemos, apenas, que o monte Olimpoera a morada dos deuses gregos; Dioniso foi criado no monte Nisa e Zeus o foi no monte Ida. Montesalvat do Graal está situado no meio deilhas inacessíveis. Na realidade, Deus está sempre mais perto, quando se escala a montanha. PONTOS, em grego Πόντος (Póntos), talvez da raiz *pent, ação de caminhar, o sânscrito tem pánthâh, caminho, e o latim pons, ponte, passarela. Pontos é, pois, a marcha, o caminho, “os caminhos do mar”. Personificado, passou a figurar como representação masculina do mar. Não possuindo um mito próprio, aparece apenas nas genealogias teogônicas e cosmogônicas. O mar simboliza a dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele retorna, tornando-se o mesmo o lugar de nascimentos, transformações e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possíveis realidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida e da indecisão, que se pode concluir bem ou mal. Daí ser o mar simultaneamente a imagem da vida e da morte. Cretenses, gregos e romanos sacrificavam ao mar cavalos e touros, ambos símbolos de fecundidade. Símbolo também de hostilidade ao divino, o mar acabou por ser vencido e dominado por um deus. Segundo as cosmogonias babilônicas, Tiamat (O Mar), após contribuir para dar nascimento aos deuses, foi por um deles vencido. Javé tinha domínio total sobre o mar e seus monstros, como diz Jó 7,12: Acaso sou eu o mar ou baleia, para me teres encerrado como num cárcere? Criação de Deus (Gn 1,9-10), o mar tem que lhe estar sujeito (Jr 31,35). Cristo dá ordens aos ventos e ao mar, e as tempestades se transformam em bonança (Mt 8,24-27). João (Ap 21,1) canta o mundo novo, em que o mar não mais existirá. 1. FRISK, Hjalmar. Op. cit., verbete. 2. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 206s. 3. Demônio, em grego δαίμονας (daimónion), significa deus, divindade, deus de categoriainferior, destino, como por vezes aparece em Homero; gênio tutelar, intermediário entre os deuses e os mortais, como as almas dos homens da Idade de Ouro; voz interior que fala ao homem, guia-o, aconselha-o, como o demônio que inspirava Sócrates. Em princípio, portanto, demônio não tem conotação alguma pejorativa, como o “diabo”. Com o sentido de Satanás, demônio não é documentado no Antigo Testamento. Ao que parece, com a acepção que hodiernamente se lhe atribui, o “demônio” surgiu a partir dos Septuaginta (séc. III e II a.C.), generalizando-se depois no Novo Testamento. 4. Das Odes, Elegias e Iambos de Anacreonte só nos chegaram fragmentos. As chamadas Anacreônticas, sessenta pequenos poemas conservados na Antologia Palatina, e atribuídos ao poeta, foram, na realidade, compostos em época bem posterior. É quase certo que nenhum deles pertence ao poeta do amor, do vinho e da mulher. 5. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 35s. 6. VIREL, André. Citado por CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 715s. CAPÍTULO X A Primeira Geração Divina: de Úrano a Crono 1 À primeira fase do Cosmo segue-se o que se poderia chamar estágio intermediário, em que Úrano (Céu) se une a Geia (Terra), de que procede numerosa descendência: Titãs, Titânidas, Ciclopes, Hecatonquiros, além dos que nasceram do sangue de Úrano e de todos os filhos destes e daqueles, como se pode ver no capítulo VIII, p. 162ss. A união de Úrano e Geia é o que se denomina uma hierogamia, um casamento sagrado, cujo objetivo precípuo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra. É que, na expressão de Mircea Eliade, o ίερός γάμος (hieròs gámos), o casamento sagrado, “atualiza a comunhão entre os deuses e os homens; comunhão, por certo passageira, mas com significativas consequências. Pois a energia divina convergia diretamente sobre a cidade – em outras palavras, sobre a ‘Terra’ – santificava-a e lhe garantia a prosperidade e a felicidade para o ano que começava”1. Essas hierogamías se encontram em quase todas as tradições religiosas. Simbolizam não apenas as possibilidades de união do homem com os deuses, mas também uniões de princípios divinos que provocam certas hipóstases. Uma das mais célebres dessas uniões é a de Zeus (o poder, a autoridade) e Têmis (a justiça, a ordem eterna) que deu nascimento a Eunômia (a disciplina), Irene (a paz) e Dique (a justiça). Curioso é que o casamento, instituição que preside à transmissão da vida, aparece muitas vezes aureolado de um culto que exalta e exige a virgindade, simbolizando, assim, a origem divina da vida, de que as uniões do homem e da mulher são apenas projeções, receptáculos, instrumentos e canais transitórios. No Egito havia as esposas de Amon, deus da fecundidade. Eram normalmente princesas consagradas ao deus e que dedicavam sua virgindade a essa teogamia. Em Roma, as Vestais, sacerdotisas de Vesta, deusa da lareira doméstica, depois deusa da Terra, a Deusa Mãe, se caracterizavam por uma extrema exigência de pureza. Retornando à primeira geração divina, temos, inicialmente, o seguinte quadro: Úrano Geia Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono Titânidas: Teia, Reia, Têmis, Mnemósina, Febe, Tétis Ciclopes: Arges, Estérope, Brontes Hecatonquiros: Coto, Briaréu, Gias 2 TITÃ, em grego Τιτάν (Titán), é aproximado, em etimologia popular, Τιτανίς(títaks), rei, τι τήνη (titéne), rainha, termos possivelmente de procedência oriental: nesse caso, Titã significaria “soberano, rei”. Carnoy2prefere admitir que os Titãs tenham sido primitivamente deuses solares e seu nome se explicaria pelo “pelásgico” tita, brilho, luz. A primeira hipótese parece mais clara e adequada às funções dos violentos Titãs no mito grego. Os Titãs simbolizam, consoante Paul Diel, “as forças brutas da Terra e, por conseguinte, os desejos terrestres em atitude de revolta contra o espírito”3, isto é, contra Zeus. Juntamente com os Ciclopes, os Gigantes e os Hecatonquiros representam eles as manifestações elementares, as forças selvagens e insubmissão da natureza nascente, prefigurando a primeira etapa da gestação evolutiva. Ambiciosos, revoltados e indomáveis, adversários tenazes do espírito consciente, patenteado em Zeus, não simbolizamapenas as forças brutas da natureza, mas, lutando contra o espírito, exprimem a oposição à espiritualização harmonizante. Sua meta é a dominação, o despotismo. OCEANO, em grego Ωκεανός (Okeanós), sem etimologia ainda bem definida. É possível que se trate de palavra oriental com o sentido de “circular, envolver”. Parece que Oceano era concebido, a princípio, como um rio-serpente, que cercava e envolvia a terra. Pelo menos esta é a ideia que do mesmo faziam os sumérios, segundo os quais a Terra estava sentada sobre o Oceano, o rio-serpente. No mito grego, Oceano é a personificação da água que rodeia o mundo: é representado como um rio, o Rio Oceano, que corre em torno da esfera achatada da terra, como diz Ésquilo em Prometeu Acorrentado, 138s: Oceano, cujo curso, sem jamais dormir, gira ao redor da Terra imensa. Quando, mais tarde, os conhecimentos geográficos se tornaram mais precisos, Oceano passou a designar o Oceano Atlântico, o limite ocidental do mundo antigo. Representa o poder masculino, assim como Tétis, sua irmã e esposa, simboliza o poder e a fecundidade feminina do mar. Como deus, Oceano é o pai de todos os rios, que, segundo a Teogonia, são mais de três mil, bem como das quarenta e uma Oceânidas, que personificam os riachos, as fontes e as nascentes. Unidas a deuses e, por vezes, a simples mortais, são responsáveis por numerosa descendência. O Oceano, em razão mesmo de sua vastidão, aparentemente sem limites, é a imagem da indistinção e da indeterminação primordial. De outro lado, o simbolismo do Oceano se une ao da água, considerada como origem da vida. Na mitologia egípcia, o nascimento da Terra e da vida era concebido como uma emergência do Oceano, à imagem e semelhança dos montículos lodosos que cobrem o Nilo, quando de sua baixa. Assim, a criação, inclusive a dos deuses, emergiu das águas primordiais. O deus primevo era chamado a Terra que emerge. Afinal, as águas, na expressão de Mircea Eliade, “simbolizam a soma de todas as virtualidades: são a fonte, a origem e o reservatório de todas as possibilidades de existência. Precedem a todas as formas e suportam toda a criação”4. Oceano e suas filhas, as Oceânidas, surgem na literatura grega como personagens da gigantesca tragédia de Ésquilo Prometeu Acorrentado. Oceano, apesar de personagem secundária na peça, um mero tritagonista, é finamente marcado por Ésquilo: tímido, medroso e conciliador, está sempre disposto a ceder diante do poderio e da arrogância de Zeus. Com o caráter fraco de seu pai contrastam as Oceânidas, que formam o Coro da peça: preferem ser sepultadas com Prometeu a sujeitar-se à prepotência do pai dos deuses e dos homens. Mesmo quando os Titãs, após a mutilação de Úrano, se apossaram do mundo, Oceano resolveu não participar das lutas que se seguiram, permanecendo sempre à parte como observador atento dos fatos... Dada a pouca ou nenhuma importância dos Titãs Ceos, Crio e Hiperíon no mito grego, a não ser por seus casamentos, filhos e descendentes, vamos diretamente a Crono. CRONO, em grego Kρόνος (Krónos), sem etimologia certa até o momento. Por um simples jogo de palavras, por uma espécie de homonímia forçada, Crono foi identificado muitas vezes com o Tempo personificado, já que, em grego, Χρόνος (Khrónos) é o tempo. Se, na realidade, Krónos, Crono, nada tem a ver etimologicamente com Khrónos, o Tempo, semanticamente a identificação, de certa forma, é válida: Crono devora, ao mesmo tempo que gera; mutilando a Úrano, estanca as fontes da vida, mas torna-se ele próprio uma fonte, fecundando Reia. O fato é que Úrano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao seio materno, temendo certamente ser destronado por um deles. Geia então resolveu libertá-los e pediu aos filhos que a vingassem e libertassem do esposo. Todos se recusaram, exceto o caçula, Crono, que odiava o pai. Entregou-lhe Geia uma foice (instrumento sagrado que corta as sementes) e quando Úrano, “ávido de amor”, se deitou, à noite, sobre a esposa, Crono cortou-lhe os testículos. O sangue do ferimento de Úrano, no entanto, caiu todo sobre Geia, concebendo esta, por isso mesmo, tempos depois, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas Mélias ou Melíades. Os testículos, lançados ao mar, formaram, com a espuma, que saía do membro divino, uma “espumarada”, de que nasceu Afrodite. Com isto, o caçula dos Titãs vingou a mãe e libertou os irmãos. Após os Hecatonquiros, falaremos de todos estes filhos do sangue e dos testículos de Úrano. Com a façanha de Crono, Úrano (Céu) separou-se de Geia (Terra). O Titã, após expulsar o pai, tomou seu lugar, casando-se com Reia. Dois pontos básicos devem ser ressaltados no episódio de Crono e Úrano: a castração do rei e, em consequência, sua separação da rainha. A castração de Úrano põe fim a uma longa e ininterrupta procriação, de resto inútil, uma vez que o pai devolvia os recémnascidos ao ventre materno. É possível que Hesíodo, cuja Teogonia está centrada nos conflitos entre gerações divinas e a luta pela soberania universal, tivesse conhecimento de certas teogonias orientais, uma vez que “a mutilação de um deus cosmocrata por seu filho, que se torna assim seu sucessor, constitui o tema dominante das teogonias hurrita, hitita e cananeia”5. No mito hurrita-hitita, o deus soberano era Alalu. De sua união com Bruth nasceram Anu e Gê. Estes dois últimos tiveram quatro filhos, sendo El o primogênito. Depois de uma violenta discussão com sua esposa Bruth, Alalu tenta destruir os filhos, mas El forja uma serra ou lança e expulsa o pai, castrando-o trinta e dois anos depois. Por fim, Teshup, que representa a quarta geração e corresponde a Zeus, assume, sem lutas, o poder supremo. Mas, se a castração leva obviamente à impotência, o soberano terá fatalmente que ser afastado do poder. A função precípua do rei é a de fecundar. Da fecundação da rainha depende a fertilidade de todas as mulheres, da terra e do rebanho. Assim, na medida em que o rei, por força da idade, da doença ou porque se tornou sexualmente impotente, ou perdeu seu poder mágico, é alijado do trono e substituído. Na sociedade matrilinear, seu sucessor é o filho caçula, que, sendo o mais jovem, corre menos risco de interromper a fecundação. Outro dado importante no mito de Úrano é a sua separação de Geia, com a interposição entre ambos do Éter e do Ar. O tema cosmogônico da separação do Céu e da Terra, após um hieròs gámos, casamento sagrado, é muito difundido em diferentes níveis de cultura. No mito sumério, An (Céu) e Ki (Terra), após seu hieròs gámos, estavam profundamente unidos, mas seu filho En-lil, deus da atmosfera, separou seus pais, carregou consigo a Terra e se interpôs entre ambos. Na mitologia egípcia, mais precisamente no sistema heliopolitano, a deusa Céu Nut estava estreitamente abraçada a Geb, o deus Terra, mas Shu, personificação da atmosfera, infiltrou-se entre ambos e os separou. No mito nagô, Orun, o “mundo sobrenatural”, aproximadamente o Céu, e Aiê, “o mundo físico concreto”, o que equivaleria mais ou menos à Terra, estavam, a princípio, unidos, mas algo de grave aconteceu e para sempre os separou. É que um casal de camponeses, que não tinha filhos, conseguiu, afinal, gerar um menino, graças às preces da mulher a Oxalá, o deus da criação dos homens. Havia apenas uma condição: que a criança jamais ultrapassasse os limites da Terra. Crescido o rapaz, enganando o pai, ultrapassou os limites proibidos e ainda aos gritos desafiou os deuses. Oxalá, irritado, jogou seu cajado que, ao cravar-se em Aiê, separou-a para sempre de Orun. “O hálito de Olorum, o deus supremo, preencheu o espaço vazio, formando a atmosfera. É portanto o sopro de Deus que une os dois mundos”6. Voltemos a Úrano. Mutilado e impotente, o deus do céu caiu na otiositas, na ociosidade, o que é, segundo Mircea Eliade, uma tendência dos deuses criadores. Concluída sua obra cosmogônica, retiram-se para o céu e tornam-se di otiosi, deuses ociosos. Quanto a Crono, depois que se apossou do governo do mundo, converteu-se num déspota pior que o pai. Temendo os Ciclopes, que ele havia libertado do Tártaro a pedido de Geia, lançou-os novamente nas trevas, bem como aos Hecatonquiros. Como Úrano e Geia, depositários da mântica, quer dizer, do conhecimento do futuro, lhe houvessem predito que seria destronado por um dos filhos, que teria de Reia, passou a engoli-los, à medida em que iam nascendo: Héstia, Deméter, Hera, Hades ou Plutão e Posídon. Escapou tão somente Zeus. Grávida deste último, Reia fugiu para a ilha de Creta e lá, secretamente, no monte Dicta, deu à luz o caçula. Envolvendo em panos de linho uma pedra, deu-a ao marido, como se fosse a criança, e o deus, de imediato, a engoliu. A respeito das terríveis lutas de Zeus para destronar a seu pai, de seu simbolismo, de suas consequências e do destino de Crono falaremos nos capítulos seguintes. TEIA, em grego Θεία (Theía), é um adjetivo substantivado, da mesma família etimológica que Θεός (Theós), deus, e significa a divina. É a primeira das Titânidas. Não tem um mito próprio, mas a importância de Teia é que, casada com Hiperíon, foi mãe de Hélio (Sol), Eos (Aurora) e Selene (Lua), divindades de muita relevância na mitologia, particularmente Hélio e Selene, como veremos nos capítulos subsequentes. REIA, em grego Ῥέα (Rhéa), talvez seu nome seja um epíteto da terra: ampla, larga, cheia, da raiz *wreîa, com o mesmo sentido. Trata-se, em todo caso, de uma divindade minoica, de uma Grande Mãe cretense, que, no sincretismo creto-micênico, decaiu de posto, tornando-se, como já se falou no capítulo IV, p. 61, nota 8, não apenas esposa de Crono, mas sobretudo “atriz de um drama mitológico”, cuja encenação já se começou a ver com a fuga da deusa para a ilha de Creta e o estratagema da pedra. Na época romana, Reia, antiga divindade da Terra, acabou fundindo-se com Cibele. Reia simboliza a energia escondida no seio da Terra. Gerou os deuses dos quatro elementos. É a fonte primordial ctônia de toda a fecundidade. TÊMIS, em grego Θέμις (Thémis), do verbo τιθέναι (tithénaí), “estabelecer como norma”, donde o que é estabelecido como a regra, a lei divina ou moral, a justiça, a lei, o direito (em latim fas), por oposição νόμος (nómos), lei humana (em latim lexou ius) e a δίκη (díke), maneira de ser ou de agir, donde o hábito, o costume, a regra, a lei, o direito, a justiça (em latim consuetudo). Têmis é a deusa das leis eternas, da justiça emanada dos deuses. Deusa da justiça divina, figura como segunda esposa de Zeus, logo após Métis. Com o pai dos deuses e dos homens, Têmis foi mãe das Horas e das Moîras personificadas, como veremos no capítulo XI. Uma variante, que se encontra apenas em Ésquilo, faz da deusa da justiça divina mãe de Prometeu. Personificação da justiça ou da Lei Eterna, é tida como conselheira de Zeus. Foi ela quem o aconselhou a cobrir com a pele da Cabra Amalteia o escudo, denominado, por isso mesmo, Égide, na luta contra os Gigantes. Atribuía-se também a ela a ideia da Guerra de Troia, para se equilibrar a densidade demográfica da Terra. Apesar de ser uma Titânida, foi admitida entre os Imortais. Era honrada não só por sua ligação com Zeus, mas ainda pelos inestimáveis serviços prestados a todos os deuses, no que se refere a oráculos, ritos e leis. O deus Apolo deve-lhe o conhecimento e os processos da mântica. Consta ainda que foi Têmis quem revelou a Zeus e a Posídon que não se unissem à Nereida Tétis, porque, se isso acontecesse, esta teria um filho mais poderoso que o pai. Na Teogonia (901-905), de Zeus e Têmis nasceram somente as Horas e as Moîras, mas uma variante bem mais recente, que se encontra, entre outros, em Arato (século III a.C.), Higino (século I a.C.), Ast. Poet., 2,25, e em Ovídio, Met., 1, 150, 159 e 534, faz também de Zeus e Têmis pais da Virgem Astreia. Como se trata de personagem mítica de certa importância, vamos fazer a respeito desta última um ligeiro comentário. ASTREIA, em grego Αστραία (Astraía), prende-se etimologicamente a ἀστήρ (astér), astro, estrela. Astreia é o nome da Virgem (a constelação) e viveu neste mundo à época da Idade de Ouro, difundindo entre os homens os sentimentos de paz, justiça e bondade. Mas, tendo os mortais se degenerado, Astreia deixou a Terra e subiu ao Céu, onde foi transformada na Constelação da Virgem. Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.), na Écloga IV, sonha com o retorno da Idade de Ouro, com o regresso de Saturno, cujo reinado na Ausônia (Itália) teria coincidido com essa idade paradisíaca. Pois bem, esse retorno de Saturno seria precedido pela Virgem Astreia: Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Ec., 4,6). – Eis que retorna também a Virgem; está de volta o reino de Saturno. A Virgem Astreia, a mulher, será a anunciadora dessa idade feliz, uma vez que ela, na sua fertilidade, é uma hipóstase da abundância da Terra, característica básica da Idade de Ouro, como deixa claro Ovídio: Ipsa quoque immunis rastroque intacta, nec ullis saucia uomeribus per se dabat omnia tellus (Met., 1,101-102): – A própria terra, sem ter sido tocada pela enxada nem rasgada pelo arado, espontaneamente produzia tudo. MNEMÓSINA, em grego Μνημοσύνη (Mnemosýne), prende-se ao verbo μιμνήκειν (mimnéskein), “lembrar-se de”, donde Mnemósina é a personificação da Memória. Amada por Zeus, foi mãe das nove Musas. MUSA, em grego Μοῦσα (Mûsa), talvez se relacione com *men, “fixar o espírito sobre uma ideia, uma arte”, e, neste caso, o vocábulo poderia ser cotejado com o verbo μανθάνειν (manthánein), aprender. A mesma família etimológica de Musa pertencem música (o que concerne às Musas) e museu (templo das Musas, local onde elas residem ou onde alguém se adestra nas artes). Após a derrota dos Titãs, os deuses pediram a Zeus que criasse divindades capazes de cantar condignamente a grande vitória dos Olímpicos. Zeus partilhou o leito de Mnemósina durante nove noites consecutivas e, no tempo devido, nasceram as nove Musas. Há outras tradições e variantes que fazem delas filhas de Harmonia ou de Úrano e Geia, mas essas genealogias remetem direta ou indiretamente a concepções filosóficas sobre a primazia da Música no Universo. As Musas são apenas as cantoras divinas, cujos coros e hinos alegram o coração de Zeus e de todos os Imortais, já que sua função principal era presidir ao Pensamento sob todas as suas formas: sabedoria, eloquência, persuasão, história, matemática, astronomia. Para Hesíodo (Teog., 80-103) são as Musas que acompanham os reis e ditam-lhes palavras de persuasão, capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. Do mesmo modo, acrescenta o poeta de Ascra, é suficiente que um cantor, um servidor das Musas celebre as façanhas dos homens do passado ou os deuses felizes, para que se esqueçam as inquietações e ninguém mais se lembre de seus sofrimentos. Havia dois grupos principais de Musas: as da Trácia e as da Beócia. As primeiras, vizinhas do monte Olimpo, são as Piérides7; as segundas, as da Beócia, habitam o Hélicon e estão mais ligadas a Apolo, que lhes dirige os cantos em torno da fonte de Hipocrene, cujas águas favoreciam a inspiração poética. Embora em Hesíodo já apareçam as nove Musas, esse número variava muito, até que na época clássica seu número, nomes e funções se fixaram: Calíope preside à poesia épica; Clio, à história; Polímnia, à retórica; Euterpe, à música; Terpsícore, à dança; Érato, à lírica coral; Melpômene, à tragédia; Talia, à comédia; Urânia, à astronomia. Já que Febe, a Brilhante, mãe de Leto e Ceos, não tem grande importância no mito, vamos abordar a última das Titânidas, Tétis. É preciso, de início, todavia, desfazer uma confusão provocada em nossa língua pela simplificação ortográfica: uma coisa é Tétis, a “urânia”, em grego Têthýs , outra é Tétis, a “nereida”, em grego Thétis. TÉTIS, em grego Τηθύς (Têth×s), talvez relacionada com o indoeuropeu tétî, “mãe”, já que a água em geral é concebida como a “mãe universal”. Casada com Oceano, Tétis é o símbolo do poder e da fecundidade feminina do mar. Foi mãe, como já se mencionou, de três mil rios, bem como das quarenta e uma Oceânidas, personificação dos riachos, fontes e nascentes. Criou a deusa Hera que lhe havia sido confiada por Reia, quando das lutas entre Zeus e Crono. Em testemunho de gratidão, a esposa de Zeus, mais tarde, reconciliou Oceano e Tétis que se haviam desentendido. A residência de Tétis ficava nas extremidades do Ocidente, além do país das Hespérides, onde, cada tarde, o sol se deita. CICLOPE, em grego Κύκλωψ (K×klops), “olho redondo”, pois os Ciclopes eram concebidos como seres monstruosos com um olho só no meio da fronte. Demônios das tempestades, os três mais antigos são chamados, por isso mesmo, Brontes, o trovão, Estéropes, o relâmpago, e Arges, o raio. Os mitógrafos distinguem três espécies de Ciclopes: os Urânios (filhos de Úrano e Geia), os Sicilianos, companheiros de Polifemo, como aparece na Odisseia de Homero, canto IX, 106-542, e os Construtores. Os primeiros, Brontes, Estéropes e Arges são os urânios. Encadeados pelo pai, foram, a pedido de Geia, libertados por Crono, mas por pouco tempo. Temendo-os, este os lançou novamente no Tártaro, até que, advertido por um oráculo de Geia de que não poderia vencer os Titãs sem o concurso dos Ciclopes, Zeus os libertou definitivamente. Estes, agradecidos, deram-lhe o trovão, o relâmpago e o raio. A Plutão ou Hades ofereceram um capacete que podia tornálo invisível e a Posídon, o tridente. Foi assim, como se verá, que os Olímpicos conseguiram derrotar os Titãs. A partir de então tornaram-se eles os artífices dos raios de Zeus. Como o médico Asclépio, filho de Apolo, fizesse tais progressos em sua arte, que chegou mesmo a ressuscitar vários mortos, Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, fulminou-o. Apolo, não podendo vingar-se de Zeus, matou os Ciclopes, fabricantes do raio, que eliminara o deus da medicina. O segundo grupo de Ciclopes, impropriamente denominados sicilianos, tendem a confundir-se com aqueles de que fala Homero na Odisseia. Estes eram selvagens, gigantescos, dotados de uma força descomunal e antropófagos. Viviam perto de Nápoles, nos chamados campos de Flegra. Moravam em cavernas e os únicos bens que possuíam eram seus rebanhos de carneiros. Dentre esses Ciclopes destaca-se Polifemo, imortalizado pelo cantor de Ulisses e depois, na época clássica, pelo drama satírico de Eurípides, o Ciclope, o único que chegou completo até nós, de que nos ocupamos em longa introdução e tradução, que esperamos reeditar em breve. Na época alexandrina, os Ciclopes “homéricos” transformaram-se em demônios subalternos, ferreiros e artífices de todas as armas dos deuses, mas sempre sob a direção de Hefesto, o deus por excelência das forjas. Habitavam a Sicília, onde possuíam uma oficina subterrânea. De antropófagos se transmutaram na erudita poesia alexandrina em frágeis seres humanos, mordidos por Eros! Polifemo, no Idílio VI de Teócrito, extravasa sua paixão incontida pela branca Galateia. O rude Gigante Adamastor camoneano, perdido de amor por Tétis, é uma volta às raízes... A terceira leva de Ciclopes proviria da Lícia. A eles era atribuída a construção de grandes monumentos da época pré-histórica, formados de gigantescos blocos de pedra, cujo transporte desafiava as forças humanas. Ciclopes pacíficos, esses Gigantes se colocaram a serviço de heróis lendários, como Preto, na fortificação de Tirinto, e Perseu, na construção da fortaleza de Micenas. POLIFEMO, por ter sido imortalizado por Homero e Eurípides, merece um comentário à parte. Etimologicamente, πολύφημος (Polýphemos) quer dizer “o de que se fala muito; o grandemente famoso”. Trata-se, ao que parece, de um eufemismo. Consoante o mito, Polifemo é filho do deus Posídon e da ninfa Toosa. A narrativa homérica apresenta-o como um gigante com um olho só no meio da testa, monstruoso e antropófago. Ulisses, com doze de seus companheiros, quando descansava numa gruta, cheia de cestos de queijo e de ovelhas, e aguardava o morador, para receber as dádivas da hospitalidade, foi aprisionado pelo Ciclope. Este já havia devorado seis de seus marinheiros, quando o herói, usando, como sempre, de astúcia, serviu por três vezes ao monstro um vinho delicioso. Durante a noite, enquanto Polifemo, sob o efeito da bebida, dormia profundamente, Ulisses e seus companheiros incandesceram um pedaço de um tronco de oliveira, já de antemão aguçado, e cravaram-no no olho único do monstro. Sem poder contar com o socorro de seus irmãos, que o consideraram louco, por gritar que Ninguém o havia cegado (este foi realmente o nome com que o solerte Ulisses se apresentara ao Ciclope), o gigante, louco de dor e ódio, postou-se à saída da gruta, para que nenhum dos gregos pudesse escapar. Pela manhã, quando o rebanho do Ciclope se dirigia às pastagens, o sagaz Ulisses engendrou novo estratagema: amarrou seus companheiros sob o ventre dos lanosos carneiros e ele próprio escondeu-se embaixo do maior e mais belo deles e assim conseguiu burlar a vigilância de Polifemo e escapar do terrível filho de Posídon. Livre do perigo, o herói lhe revela seu verdadeiro nome e Polifemo se recorda de uma profecia, segundo a qual ele seria cegado por Ulisses. Por duas vezes, o Ciclope arrancando blocos de pedra, lançou-os contra os navios gregos, mas certamente Atená, a deusa de olhos garços, protegeu o filho de Laerte. Os Ciclopes tinham um só olho no meio da fronte. Eram senhores do relâmpago, do raio e do trovão, semelhantes por sua violência súbita às erupções vulcânicas, símbolos da força brutal a serviço de Zeus. Tendo provocado a cólera de Apolo, deus da luz, da sabedoria, com a morte de Asclépio, foram eliminados pelo filho de Leto. Dois olhos correspondem para o homem a um estado normal, três a uma clarividência extraordinária, um só revela um estado primitivo e sumário de capacidade intelectual. O olho único no meio da fronte trai uma recessão da inteligência e a carência de certas dimensões. O demônio, na tradição cristã, é muitas vezes representado com um olho só, o que traduz o domínio das forças obscuras, instintivas e passionais, que, entregues a si mesmas e não assimiladas pelo espírito, exercem um papel destruidor no universo e no homem. O Ciclope da tradição grega é uma força primitiva, regressiva, de natureza vulcânica, que somente pode ser vencida por um deus solar, Apolo. HECATONQUIRO, em grego Έχατόγχειρος (Hekatónkheiros), “de cem mãos, de cem braços”. Os Hecatonquiros eram gigantes fortíssimos e monstruosos, com cem braços e cinquenta cabeças. Chamavam-se Coto, Briaréu ou Egéon e Gias (Gies) ou Giges. Lançados no Tártaro por Crono, foram, por força de um oráculo de Úrano e Geia, libertados por Zeus, de quem se tornaram aliados na luta contra os Titãs. Imortalizados por este com o néctar e a ambrosia, os Hecatonquiros criaram uma nova enérgueia, centuplicaram suas forças e tornaram-se um fator definitivo para a vitória de Zeus. O sangue de Úrano, como se mostrou, caiu sobre Geia e a fecundou, tendo nascido, no tempo devido, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas Mélias ou Melíades; da espumarada do membro divino, lançado ao mar, surgiu Afrodite. Passaremos, agora, a um estudo dos filhos do sangue do Céu. ERÍNIA, em grego Έρινύς (Erinýs). Já se tentou aproximar Erínia do ὀρίνειν (orínein), “perseguir com furor”, ἐρινύειν (erinýein), “estar furioso”, mas tal etimologia é fantasiosa. As Erínias eram deusas violentas, com as quais os Romanos identificavam as Fúrias. Titulares muito antigas do panteão helênico, encarnam forças primitivas, que não reconhecem os deuses da nova geração, como se observa na trilogia de Ésquilo, Oréstia, particularmente nas duas últimas tragédias, Coéforas e Eumênides8. A princípio não havia um número certo de Erínias e nem se lhes conheciam os nomes, mas, depois de Hesíodo, fixaram-se em três e cada uma recebeu uma denominação: Aleto, Tisífone e Megera. Aleto, em grego Αληκτώ (Alektó) significa “a que não para, a incessante, a implacável”; Tisífone é o grego Τισιφόνη (Tisiphóne), “a que avalia o homicídio, a vingadora do crime”; Megera, do grego Μέγαίρα (Mégaira), “a que inveja, a que tem aversão por”, significados todos de cunho popular. Apresentam-se como verdadeiros monstros alados, com os cabelos entremeados de serpentes, com chicotes e tochas acesas nas mãos. De início eram as guardiãs das leis da natureza e da ordem das coisas, no sentido físico e moral, o que as levava a punir todos os que ultrapassavam seus direitos em prejuízo dos outros, tanto entre os deuses quanto entre os homens. Só mais tarde é que elas se tornaram especificamente as vingadoras do crime, particularmente do sangue parental derramado. Para que se possa compreender bem a função das Erínias como vingadoras do sangue derramado, talvez fosse oportuno relembrar, se bem que sumariamente, o conceito de γένος (guénos). Guénos pode ser definido em termos de religião e de direito grego como personae sanguine coniunctae, isto é, pessoas ligadas por laços de sangue. Assim, qualquer crime, qualquer hamartía cometidos por um guénos contra o outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente vingados. Se a falta é dentro do próprio guénos, o parente mais próximo está igualmente obrigado a vingar o seu “sanguine coniunctus”. Afinal, no sangue derramado está uma parcela do sangue e, por conseguinte, da alma do guénos inteiro. Foi assim que, historicamente falando, até a reforma jurídica de Drácon ou de Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Hélade. É mister, isto sim, distinguir dois tipos de vingança, quando a falta é cometida dentro de um mesmo guénos: a ordinária, que se efetua entre os membros, cujo parentesco é apenas em profano, mas ligados entre si por vínculos de obediência aos gennh~~tai, “guennêtai”, aos chefes gentílicos, e a extraordinária, quando a falta cometida implica em parentesco sagrado, erínico, de fé – é a falta cometida entre pais, filhos, netos, por linha troncal, e entre irmãos, por linha colateral. Esposos, cunhados, sobrinhos e tios não são parentes “em sagrado”, mas “em profano”, ou ante os homens. No primeiro caso a vingança é executada pelo parente mais próximo da vítima e no segundo pelas Erínias. A essa ideia do direito do guénos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida por um membro do guénos recai sobre o guénos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes “em sagrado” ou “em profano”. Esta crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos homens, pois que a encontramos desde a Antiguidade até os tempos modernos, sob aspectos e nomes diversos, como nos ensina Michel Berveiller9. Seria preciso ver nisso a transposição para o plano espiritual e moral dessa lei da hereditariedade, que se pode constatar no mundo físico, dessa transmissão de uma geração para outra das características biológicas e especialmente das doenças, das taras – coisa já por si tão misteriosa e tão própria para nos dar a ideia de uma injustiça metafísica? De outro lado, é bom lembrar que o que distingue o homem de lá do homem de cá é o viver coletivo do viver individual. O fato é que já encontramos tal crença no Rig Veda, o livro sagrado da Índia antiga, onde se lê esta oração: “Afasta de nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos”. A mesma ideia era plenamente aceita pelos judeus, como demonstram várias passagens do Antigo Testamento. Êxodo 20,5: “Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam”. Levítico 26,39: “Os que sobreviverem, consumir-se-ão, por causa das suas iniquidades, na terra de seus inimigos e serão também consumidos por causa das iniquidades de seus pais, que levarão sobre si”. Gênesis 9,6: “Todo aquele que derramar o sangue humano terá o seu próprio sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o homem à sua imagem”. Protetoras da ordem social, punem todos os crimes suscetíveis de perturbá-la, bem como a ὕβρις (hýbris), a “démesure”, o descomedimento, através do qual o homem se esquece de que é humus, terra, argila, um simples mortal. Eis por que as Erínias não permitem que os adivinhos revelem com precisão o futuro, a fim de que o homem, permanecendo na incerteza, não se torne por demais semelhante aos deuses. A função essencial dessas temíveis divindades, no entanto, é a punição não só do homicídio voluntário, mas do homicídio, porque o assassínio é um μίασμα (míasma), um miasma, uma terrível mancha religiosa que põe em perigo todo o grupo social em cujo seio é praticado. De modo geral, o assassino é banido da pólis e erra de cidade em cidade até que alguém se disponha a purificá-lo. Orestes, o assassino da própria mãe, com o voto de Atená, o célebre voto de Minerva, foi absolvido da pena, mas não da culpa. Para se libertar de suas Erínias, foi necessário que Apolo o purificasse. De resto, quem derrama o sangue parental é acometido de loucura, como Orestes e Alcméon. De outro lado, como divindades ctônias, cuja residência se localiza nas trevas do Érebo, e portanto ligadas profundamente à Terra-Mãe, não podem permitir que esta seja impunemente manchada. É que, sendo a Terra a mãe universal, o sangue parental derramado é o sangue da própria Terra-Mãe, que clama por vingança. O Corifeu das Coéforas, a segunda tragédia da trilogia esquiliana, é muito explícito a esse respeito: É uma lei que as gotas do sangue derramado na Terra exigem outro sangue, pois o assassínio clama pela Erínia, para que, em nome das primeiras vítimas, ela traga nova vingança sobre a vingança. (Coéf., 400-404) Na sua perseguição implacável aos culpados, as Erínias são comparadas a cadelas que não deixam em paz as suas vítimas. Orestes teve uma visão destes monstros, que residem nos subterrâneos da Terra e nas profundezas da psiqué: Não são fantasmas que me atormentam. Está claro: são elas, as cadelas furiosas de minha mãe. (Coéf., 10531054) Depois que se estabeleceu uma crença mais firme na outra vida e que esta foi dividida em compartimentos, dois impermanentes (Érebo e Campos Elísios) e um permanente, para os condenados a suplícios eternos (Tártaro), as Erínias foram concebidas como divindades da expiação e do remorso, encarregadas de punir, no Tártaro, todos os grandes criminosos. Esta função das filhas do sangue de Úrano já aparece com bastante nitidez a partir de Ésquilo, mas só se firmou, em definitivo, na Eneida de Vergílio. No canto 6,625-627, a Sibila de Cumas, em cuja companhia Eneias descera oniricamenteà outra vida, pinta para o herói troiano um quadro assustador dos tormentos infligidos aos réprobos pelas Erínias. A Sibila, todavia, tem pressa de chegar aos Campos Elísios, e diz ao filho de Afrodite que, se tivesse cem bocas, cem línguas e uma voz de ferro, tudo isto não lhe bastaria para narrar os crimes dos supliciados e as espécies de castigos a que são submetidos: Non, mihi si linguae centum sint oraque centum, ferrea uox, omnis scelerum comprendere formas, omnia poenarum percurrere nomina possim (En., 6,625-627). – Se eu tivesse cem bocas, cem línguas e voz de ferro, nem assim poderia relatar todos os gêneros de culpas e todas as espécies de castigos. Uma visão mais popular dessas Vingadoras atribuía a cada uma determinada função específica. Tisífone açoita os culpados; Aleto, bem de acordo com sua etimologia, os persegue ininterruptamente com fachos acesos; e Megera grita-lhes, dia e noite, no ouvido, as falhas cometidas. Aliás, Megera acabou permanecendo entre nós para designar certos tipos desogra, o que certamente é de todo injusto... As Erínias são os instrumentos da vingança divina em função da hýbris, o descomedimento dos homens, que elas punem, semeando o pavor em seu coração. Já na Antiguidade clássica eram identificadas com “a consciência”. Interiorizadas, simbolizam o remorso, o sentimento de culpabilidade, a autodestruição de todo aquele que se entrega ao sentimento de uma falta considerada inexpiável. De qualquer forma, podem transformar-se em Eumênides, isto é, em Benevolentes, Benfazejas, como na terceira tragédia da Oréstia de Ésquilo, quando a razão, simbolizada por Atená, reconduz a “consciência mórbida” tranquilizada a uma apreciação mais equilibrada dos atos humanos. GIGANTE, em grego Γίγας (Guígas), de etimologia desconhecida. Se bem que de origem divina, os Gigantes são mortais, quer dizer, podem ser mortos, desde que sejam atacados simultaneamente por um deus e por um mortal. Existia, além do mais, uma erva mágica, produzida por Geia, que podia curá-los de golpes mortais. Zeus, todavia, proibiu a Hélio, Selene e Eos de brilharem, a fim de que ninguém encontrasse a planta antes que ele próprio dela se apoderasse. Os Gigantes foram gerados por Geia para vingar os Titãs, que Zeus havia lançado no Tártaro. Eram seres imensos, prodigiosamente fortes, de espessa cabeleira e barba hirsuta, o corpo horrendo, cujas pernas tinham a forma de serpente. Tão logo nasceram, começaram a jogar para o céu árvores inflamadas e rochedos imensos. Os deuses prepararam-se para o combate. A princípio lutavam somente Zeus e Palas Atená, armados com a égide, o raio e a lança. Já que os Gigantes só podiam ser mortos por um deus com o auxílio de um mortal, Héracles passou a tomar parte no combate. Apareceu também Dioniso, armado com um tirso e tochas, e secundado pelos Sátiros. Aos poucos o mito se enriqueceu e surgiram outros deuses que vieram em socorro de Zeus. Os mitógrafos destacam nessa luta treze Gigantes, embora seu número tenha sido muito maior.Alcioneu foi morto por Héracles, auxiliado por Atená, que aconselhou o herói arrastá-lo para longe de Palene, sua cidade natal, porque, cada vez que o Gigante caía, recobrava as forças, por tocar a terra, de onde havia saído. Porfírio atacou a Héracles e Hera, mas Zeus inspirou-lhe um desejo ardente por esta e enquanto o monstro tentava arrancar-lhe as vestes, Zeus o fulminou com um raio e Héracles acabou com ele a flechadas. Efialtes foi morto por uma flecha de Apolo no olho esquerdo e por uma outra de Héracles no direito. Êurito foi eliminado por Dioniso, com um golpe de tirso; Hécate acabou com Clício a golpes de tocha; Mimas foi liquidado por Hefesto, com ferro em brasa. Encélado fugiu, mas Atená jogou em cima dele a ilha de Sicília; a mesma Atená escorchou a Palas e se serviu da pele do mesmo, como uma couraça, até o fim da luta. Polibotes foi perseguido por Posídon através das ondas do mar até a ilha de Cós. O deus, enfurecido, quebrou um pedaço da ilha de Nisiro e lançou-o sobre o Gigante, esmagando-o. Hermes, usando o capacete de Hades, que o tornava invisível, matou Hipólito, enquanto Ártemis liquidava Grátion. As Moîras mataram Ágrio e Toas. Zeus, com seus raios, fulminou os restantes e Héracles acabou de liquidá-los a flechadas. A Gigantomaquia, quer dizer, a luta dos Gigantes, foi travada na Trácia, segundo uns, segundo outros, na Arcádia, às margens do rio Alfeu. Seres ctônios, os Gigantes simbolizam o predomínio das forças nascidas da Terra, por seu gigantismo material e indigência espiritual. Imagens da hýbris, do descomedimento, em proveito dos instintos físicos e brutais, renovam a luta dos Titãs. Não podiam ser vencidos, como se viu, a não ser pela conjugação de forças de um deus e de um mortal. O próprio Zeus necessita de Héracles, ainda não imortalizado, para liquidar Porfírio; Efialtes foi morto por Apolo e Héracles. Todos os Olímpicos, adversários dos Titãs, Atená, Hera, Dioniso, Posídon... deixam sempre ao mortal a tarefa de acabar com o monstro. A ideia parece clara: na luta contra a “bestialidade terrestre”, Deus tem necessidade do homem tanto quanto este precisa de Deus. A evolução da vida para uma espiritualização crescente e progressiva é o verdadeiro combate dos gigantes. Esta evidência implica, todavia, num esforço próprio do homem, que não pode contar apenas com as forças do alto, para triunfar das tendências involutivas e regressivas que lhe são imanentes. O mito dos Gigantes é, pois, um apelo ao heroísmo humano. O Gigante representa tudo quanto o homem terá que vencer para liberar e fazer desabrochar sua personalidade. NINFA, em grego Νύμφη (Nýmphe), parece significar “a que está coberta com um véu”, “noiva”, donde paraninfo, “o que está ao lado de, o que conduz os nubentes”. Em latim, com a mesma raiz, ter-se-ia o verbo nubere, “casar”, em se tratando da mulher, e sua vasta família: núbil, nubente, núpcias... A origem primeira é o indoeuropeu *sneubh, “cobrir-se”, mas trata-se de mera hipótese. Antes de abordarmos as Ninfas Mélias ou Melíades, vamos dar uma ideia das Ninfas em geral. Com o nome genérico de Ninfas são chamadas as divindades (já que são cultuadas) femininas secundárias da mitologia, ou seja, divindades que não habitavam o Olimpo. Essencialmente ligadas à terra e à água, simbolizam a própria força geradora daquela. Levando-se em consideração a teoria de Bachofen, as Ninfas seriam resquícios da era matrilinear, cuja divindade primordial era a TerraMãe e a mulher a figura religiosa central. Nesse caso, essas divindades secundárias poderiam ser consideradas uma extensão da própria energia telúrica, a saber, divindades menores que representam Geia, a grande Terra-Mãe em sua união com a água, elemento úmido e fecundante. Tudo leva a crer que sim, pois, da união desses dois elementos, terra e água, surge a força geradora que preside à reprodução e à fecundidade da natureza tanto animal quanto vegetal. Assim concebidas, as Ninfas são a própria Geia em suas múltiplas facetas, enquanto origem de todos os seres e coisas, enquanto grande deusa, cujas energias nunca se esgotam. Por tudo isso só podiam ser divindades femininas de eterna juventude. E se é verdade que as Ninfas não são imortais, vivem contudo tanto quanto uma palmeira, ou seja, cerca de dez mil anos e jamais envelhecem! Decodificando, teremos a própria natureza, que não é imortal, uma vez que perece e renasce, num eterno ressurgir, portanto uma força canalizada para uma perpétua renovação. A eterna juventude das Ninfas traduz, assim, a perenidade de Geia, a Terra-Mãe. Enquanto hipóstases desta, as Ninfas eram divindades benfazejas e tudo propiciavam aos homens e à natureza em si. Tinham o dom de profetizar, de curar e de nutrir. Como representantes da Terra-Mãe, não se limitavam apenas aos mares e rios, mas abrangiam a terra como um todo, com seus vales, montanhas e grutas. Todas, em última análise, descendem de Geia, conforme os quadros genealógicos que já estampamos e os demais que ainda apresentaremos. Da união de Oceano e Tétis nasceram as Oceânidas, ninfas dos mares; Nereu (o velho do mar) uniu-se a Dóris e nasceram as Nereidas, também ninfas marítimas; os Rios, unidos a elementos vários, geraram outras ninfas, como as Potâmidas, ninfas dos rios; Náiades, ninfas dos ribeiros e riachos; Creneias e Pegeias, ninfas das fontes e nascentes; e as Limneidas, ninfas dos lagos e lagoas. Estas eram as Ninfas que habitavam o elemento aquático e faziam parte frequentemente do cortejo de Hera e Ártemis. As ninfas da terra propriamente dita são as Napeias, que habitam vales e selvas; as Oréadas, ninfas das montanhas e colinas; as Dríadas e Hamadríadas, ninfas das árvores em geral e especificamente do carvalho (árvore consagrada a Zeus). Há uma distinção entre Dríadas, em grego δρυάς (dryás), “carvalho” e Hamadríadas, em grego ἄμα (háma), “ao mesmo tempo”, δρυάς, “carvalho”, isto é, estão incorporadas a esta árvore, já nascem com ela. Em síntese, temos os seguintes tipos de Ninfas: Oceânidas, ninfas do alto-mar. Nereidas, ninfas dos mares internos. Potâmidas, ninfas dos rios. Náiades, ninfas dos ribeiros e riachos. Creneias, ninfas das fontes. Pegeias, ninfas das nascentes. Limneidas, ninfas dos lagos e lagoas. Napeias, ninfas dos vales e selvas. Oréadas, ninfas das montanhas e colinas. Dríadas, ninfas das árvores e particularmente dos carvalhos. Hamadríadas, ninfas dos carvalhos. Um tipo especial de ninfa são as Mélias ou Melíades, que nasceram do sangue de Úrano. MELÍADES, em grego Μελιάδες (Melíades), de μελία (melía), freixo. Trata-se, pois, das Ninfas dos freixos. Em memória de seu nascimento sangrento, o cabo das lanças era confeccionado de freixo, “que se levanta para o céu como lanças”. Hesíodo chama-as de Μελίαι (Melíai). A raça da Idade de Bronze, violenta e sanguinária, nasceu, como se falou no capítulo VIII, dessa árvore de guerra. Para os gregos, o freixo é o símbolo de poderosa solidez. No mito escandinavo é o símbolo da imortalidade e o traço-de-união entre os três níveis cósmicos. Por isso mesmo o freixo Yggdrasil é a árvore da vida: o universo se desdobra à sombra de seus galhos imensos e os animais aí se abrigam. Yggdrasil está sempre verde, porque é alimentada pelas águas da fonte Urd, guardada dia e noite por uma das Nornas. A árvore sagrada possui três raízes: uma, na fonte Urd; outra, na terra dos gelos, Niflheim, para alcançar a fonte Hvergelmir, origem das águas que circulam em todos os rios do mundo; a terceira, no país dos Gigantes, onde canta a fonte da Sabedoria, Mimir. Assim como os deuses gregos se reuniam nos píncaros do monte Olimpo, os deuses germânicos se congregavam aos pés de Yggdrasil. Quando das grandes catástrofes cósmicas, em que um mundo se destruía para que surgisse um outro, a árvore sagrada permanecia de pé, imóvel, impávida, invencível. Nem as chamas, nem as geleiras, nem as trevas poderiam destruí-la. A árvore da vida era o último refúgio dos que escaparam ao cataclismo e aqui permaneceram, para repovoar o mundo novo. Yggdrasil é o símbolo da perenidade da vida, que nada poderá destruir. Na Antiguidade clássica, o freixo possuía um grande poder mágico, além de funcionar como poderoso antídoto contra todos os venenos, desde que se misturassem suas folhas ao vinho. Nereidas, Oceânidas, Náiades... divindades das águas claras, das fontes e das nascentes, geram e criam grandes heróis. Vivem nas cavernas, nas grutas, lugares úmidos, o que lhes empresta um certo aspecto ctônio, apavorante, por isso que todo nascimento se relaciona com a morte e vice-versa. Além do mais, grutas e cavernas são locais próprios para iniciação, em que se morre, para se renascer para uma vida nova. No desenvolvimento da personalidade, as Ninfas representam uma expressão de aspectos femininos do inconsciente. Divindades do nascimento, suscitam a veneração, de mistura com um certo temor: roubam crianças e podem perturbar o espírito de quem as vê. Sua hora perigosa é o meio-dia, momento de sua hierofania. Quem as vir, tornar-se-á presa de um entusiasmo ninfoléptico. É aconselhável, por isso, não se aproximar, ao meio-dia, de fontes, nascentes e da sombra de determinadas árvores... AFRODITE, em grego Αφροδίτη (Aphrodíte), de etimologia desconhecida. O grego ἀφρός (aphrós), “espuma”, teve evidentemente influência na criação do mito da deusa nascida das “espumas” do mar. Do ponto de vista etimológico, no entanto, Afrodite nenhuma relação possui com aphrós. Trata-se de uma divindade obviamente importada do Oriente. Afrodite é a forma grega da deusa semítica da fecundidade e das águas fertilizantes, Astarté. Na Ilíada, a deusa é filha de Zeus e Dione, daí seu epíteto de Dioneia. Existe, todavia, uma Afrodite muito mais antiga, cujo nascimento é descrito na Teogonia, 188-198, consoante o tema de procedência oriental da mutilação de Úrano. Com o epíteto de Anadiômene, a saber, “a que surge” das ondas do mar, de um famoso quadro do grande pintor grego Apeles (século IV a.C.), tão logo nasceu, a deusa foi levada pelas ondas ou pelo vento Zéfiro para Citera e, em seguida, para Chipre, daí seus dois outros epítetos de Citereia e Cípris. Esta origem dupla da deusa do amor não é estranha à diferenciação que se estabeleceu entre Afrodite Urânia e Pandêmia, significando esta última, etimologicamente, “a venerada por todo o povo”, Πάνδημος (Pándemos), e, posteriormente, com discriminação filosófica e moral, “a popular, a vulgar”. Platão, no Banquete, 180s, estabelece uma distinção rígida entre a Pandêmia, a inspiradora dos amores comuns, vulgares, carnais, e a Urânia, a deusa que não tem mãe, ἀμήτωρ (amétor) e que, sendo Urânia, é, ipso facto, a Celeste, a inspiradora de um amor etéreo, superior, imaterial, através do qual se atinge o amor supremo, como Diotima revelou a Sócrates. Este “amor urânico”, desligando-se da beleza do corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é partícipe do eterno. Voltemos aos primeiros passos de Afrodite. Em Chipre, a deusa foi acolhida pelas Horas, vestida e ornamentada e, em seguida, conduzida à mansão dos Olímpicos. Apesar dos esforços dos mitógrafos, no sentido de helenizar Afrodite, esta sempre traiu sua procedência asiática. Com efeito, Hesíodo não é o único que estampa as origens orientais da deusa. Já na Ilíada a coisa é bem perceptível. Sua proteção e predileção pelos troianos e particularmente por Eneias, fruto de seus amores como Anquises (Il., V, 311s), denotam claramente que Afrodite é o menos grega possível. No Hino Homérico a Afrodite (I, 68s) o caráter asiático da deusa é mais claro: apaixonada pelo herói troiano Anquises, avança em direção a Troia, em demanda do nome Ida, acompanhada de ursos, leões e panteras. Pois bem, sua hierofania voluptuosa transtorna até os animais, que se recolhem à sombra dos vales, para se unirem no amor que transborda de Afrodite. Essa marcha amorosa da grande deusa em direção a Ílion mostra nitidamente que ela é uma Grande Mãe do monte Ida. Entre os troianos, seu grande protegido é Páris (Il., I, 373ss; X, 1012) e os Cantos Cíprios relatam como a deusa, para recompensá-lo por lhe ter ele outorgado o título de a mais bela das deusas, o auxiliou na viagem marítima a Esparta e no rapto de Helena. Seu amante divino Adônis nos leva igualmente à Ásia, uma vez que Adônis é mera transposição do babilônico Tamuz, o favorito de Ištar-Astarté, de que os gregos modelaram sua Afrodite. Veremos mais adiante que seus filhos Eneias, Hermafrodito e Priapo “nasceram” também no Oriente. Como se pode observar, desde seu nascimento até suas características e mitos mais importantes, Afrodite nos aponta para a Ásia. Deusa tipicamente oriental, nunca se encaixou bem no mito grego: parece uma estranha no ninho! Em torno da mãe de Eneias se amalgamaram mitos de origens diversas e que, por isso mesmo, não formam um relato coerente, mas episódios por vezes bem desconexos. O grande casamento “grego” da deusa do amor foi com Hefesto, o deus dos nós, o deus ferreiro e coxo da ilha de Lemnos. Vimos no capítulo VII, p. 145ss, a breve narrativa homérica acerca do desastre desse enlace. Vamos completá-la com alguns pormenores e variantes posteriores, uma vez que Hesíodo, na Teogonia, só faz breve alusão ao fato. Ares, nas prolongadas ausências de Hefesto, que instalara suas forjas no monte Etna, na Sicília, partilhava constantemente o leito de Afrodite. Fazia-o tranquilo, porque sempre deixava à porta dos aposentos da deusa uma sentinela, um jovem chamado Aléctrion, que deveria avisá-lo da aproximação da luz do dia, isto é, do nascimento do Sol, conhecedor profundo de todas as mazelas deste mundo... Um dia, o incansável vigia dormiu e Hélio, o Sol, que tudo vê e que não perde a hora, surpreendeu os amantes e avisou Hefesto. Este, deus que sabe atar e desatar, preparou uma rede mágica e prendeu o casal ao leito. Convocou os deuses para testemunharem o adultério e estes se divertiram tanto com a picante situação, que a abóbada celeste reboava com as suas gargalhadas. Após insistentes pedidos de Posídon, o deus coxo consentiu em retirar a rede. Envergonhada, Afrodite fugiu para Chipre e Ares para a Trácia. Desses amores nasceram Fobos (o medo), Deimos (o terror) e Harmonia, que foi mais tarde mulher de Cadmo, rei de Tebas. No que tange à preferência da deusa do amor pelo deus da guerra, o que trai uma complexio oppositorum, uma conjugação dos opostos, Hefesto sempre a atribuiu ao fato de ser aleijado e Ares ser belo e de membros perfeitos, como se viu no capítulo VII. Claro está que o deus das forjas não poderia compreender que Afrodite é antes de tudo uma deusa da vegetação, que precisa ser fecundada, seja qual for a origem da semente e a identidade do fecundador. Além do mais, casamento por compensação sói fracassar! Quanto ao jovem Aléctrion, sofreu exemplar punição: por haver permitido, com seu sono, que Hélio denunciasse a Hefesto tão flagrante adultério, foi metamorfoseado em galo (alektryón em grego é galo) e obrigado a cantar toda madrugada, antes do nascimento do Sol... Ares não foi, no entanto, o único amor extraconjugal de Afrodite. Sua paixão por Adônis ficou famosa. O mito, todavia, começa bem mais longe. Teias, rei da Síria, tinha uma filha, Mirra ou Esmirna, que, desejando competir em beleza com a deusa do amor, foi por esta terrivelmente castigada, concebendo uma paixão incestuosa pelo próprio pai. Com auxílio de sua aia, Hipólita, conseguiu enganar Teias, unindo-se a ele durante doze noites consecutivas. Na derradeira noite, o rei percebeu o engodo e perseguiu a filha com a intenção de matá-la. Mirra colocou-se sob a proteção dos deuses, que a transformaram na árvore que tem seu nome. Meses depois, a casca da “mirra” começou a inchar e no décimo mês se abriu, nascendo Adônis. Tocada pela beleza da criança, Afrodite recolheu-a e a confiou secretamente a Perséfone. Esta, encantada com o menino, negou-se a devolvê-lo à esposa de Hefesto. A luta entre a duas deusas foi arbitrada por Zeus e ficou estipulado que Adônis passaria um terço de um ano com Perséfone, outro com Afrodite e os restantes quatro meses onde quisesse. Mas, na verdade, o lindíssimo filho de Mirra sempre passou oito meses do ano com a deusa do amor... Mais tarde, não se sabe bem o motivo, a colérica Ártemis lançou contra Adônis adolescente a fúria de um javali, que, no decurso de uma caçada, o matou. A pedido de Afrodite, foi o seu grande amor transformado por Zeus em anêmona, flor da primavera, e o mesmo Zeus consentiu que o belo jovem ressurgisse quatro meses por ano e vivesse ao lado da amante. Efetivamente, passados os quatro meses primaveris, a flor anêmona fenece e morre. O mito, evidentemente, prende-se aos ritos simbólicos da vegetação, como demonstra a luta pela criança entre Afrodite (a “vida” da planta) e Perséfone (a “morte” da mesma nas entranhas da terra), bem como o sentido ritual dos Jardins de Adônis, de que se falará mais abaixo. Há uma variante do mito que faz de Adônis filho não de Teias, mas do rei de Chipre, o qual era de origem fenícia, Cíniras, casado com Cencreia. Esta ofendera gravemente Afrodite, dizendo que sua filha Mirra era mais bela que a deusa, que despertou na rival uma paixão violenta pelo pai. Apavorada com o caráter incestuoso de sua paixão, Mirra quis enforcar-se, mas a aia Hipólita interveio e facilitou a satisfação do amor criminoso. Consumado o incesto, a filha e amante de Cíniras refugiu-se na floresta, mas Afrodite, compadecida com o sofrimento da jovem princesa, metamorfoseou-a na árvore da mirra. Foi o próprio rei quem abriu a casca da árvore para de lá retirar o filho e neto ou, segundo outros, teria sido um javali que, com seus dentes poderosos, despedaçara a mirra, para fazer nascer a criança. Nesta variante há duas causas para a morte do lindíssimo Adônis: ou a cólera do deus Ares, enciumado com a predileção de Afrodite pelo jovem oriental, ou a vingança de Apolo contra a deusa, que lhe teria cegado o filho Erimanto, por tê-la visto nua, enquanto se banhava. De qualquer forma, a morte de Adônis, deus oriental da vegetação, do ciclo da semente, que morre e ressuscita, daí sua katábasis para junto de Perséfone e a consequente anábasis em busca de Afrodite, era solenemente comemorada no Ocidente e no Oriente. Na Grécia da época helenística deitava-se Adônis morto num leito de prata, coberto de púrpura. As oferendas sagradas eram frutas, rosas anêmonas, perfumes e folhagens, apresentados em cestas de prata. Gritavam, soluçavam e descabelavam-se as mulheres. No dia seguinte atiravam-no ao mar com todas as oferendas. Ecoavam, dessa feita, cantos alegres, uma vez que Adônis, com as chuvas da próxima estação, deveria ressuscitar. O mitologema da morte prematura de Adônis, quer se deva a Ártemis, Apolo ou Ares, está sempre ligado ao nascimento e à cor de determinadas flores. A anêmona prende-se, como se viu, à metamorfose do deus naquela flor; a rosa, de início branca, tornou-se vermelha, porque Afrodite, no afã de salvar o amante das presas do javali, pisou num espinho e seu sangue deu à rosa um novo colorido. O poeta grego da época alexandrina, Bíon (fins do século IV a.C.), relata que de cada gota de sangue de Adônis nascia uma anêmona, de cada lágrima de Afrodite, uma rosa. Pois bem, foi exatamente para perpetuar a memória de seu grande amor oriental que Afrodite instituiu na Síria uma festa fúnebre, que as mulheres celebravam anualmente, na entrada da primavera. Para simbolizar o “tão pouco” que viveu Adônis, plantavam-se mudas de roseiras em vasos e caixotes e regavam-nas com água morna, para que crescessem mais depressa. Tal artifício fazia que as roseiras rapidamente se desenvolvessem e dessem flores, as quais, no entanto, rapidamente feneciam. Eram os célebres Jardins de Adônis, cuja desventura era solenemente celebrada com grandes procissões e lamentações rituais pelas mulheres da Síria. Muitos séculos depois, Ricardo Reis, o gigantesco Fernando Pessoa, perseguido pela brevidade da vida e pela lembrança do puluis et umbra sumus (somos pó e sombra) de Horácio, recordou os Jardins de Adônis10: As rosas amo dos jardins de Adônis, Essas volucres amo, Lídia, rosas, que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem. A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido já o sol, e acabam Antes que Apolo deixe O seu curso visível. Assim façamos nossa vida um dia, Inscientes, Lídia, voluntariamente Que há noite antes e após O pouco que duramos. Os amores de Afrodite não terminam em Adônis. Disfarçada na filha de Otreu, rei da Frígia, amou apaixonadamente o herói troiano, Anquises, quando este pastoreava seus rebanhos no monte Ida de Tróada. Desse enlace nasceu Eneias, que a deusa tanto protegeu durante o cerco de Ílion pelos gregos, como nos atesta a Ilíada. Bem mais tarde, do primeiro ao décimo segundo canto da Eneida de Vergílio, Eneias a teve novamente por escudo e por bússola. É desse Eneias, diga-se de passagem, que, através de Iulus, filho do herói troiano, pretendia descender a gens iulia, a família dos Júlios, como César e Otaviano, o futuro imperador Augusto. Falsas aproximações etimológicas geraram muitos deuses, heróis e imperadores... De sua união com Hermes nasceu Hermafrodito, etimologicamente (filho) de Hermes e Afrodite. Criado pelas Ninfas do monte Ida, o jovem era de extraordinária beleza. Tão grande como a de Narciso. Aos quinze anos, Hermafrodito resolveu percorrer o mundo. Passando pela Cária, deteve-se junto a uma fonte, habitada pela Ninfa Sálmacis, que por ele se perdeu de amores. Repelida pelo jovem, fingiu conformar-se, mas, quando este se despiu e se lançou às águas da fonte, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu aos deuses que jamais os separassem. Os dois corpos fundiram-se num só e surgiu um novo ser, de dupla natureza. Também um pedido de Hermafrodito foi atendido pelos Imortais: suplicou ele que todo aquele que se banhasse nas águas límpidas da fonte perdesse a virilidade. Com sua eternamente insatisfeita “enérgueia” erótica, Afrodite amou ainda o deus do êxtase e do entusiasmo. De sua união com Dioniso nasceu a grande divindade da cidade asiática de Lâmpsaco, Priapo. Trata-se de um deus itifálico, guardião das videiras e dos jardins. Seu atributo essencial era “desviar” o mau-olhado e proteger as colheitas contra os sortilégios dos que desejavam destruí-las. Deus de poderes apotropaicos, sempre foi considerado como um excelente exemplo de magia simpática, tanto “homeopática”, pela lei da similaridade, quanto pela de “contágio”, pela lei do contato, em defesa dos vinhedos, pomares e jardins, em cuja entrada figurava sua estátua. Como deus da fecundidade, era presença obrigatória no cortejo de Dioniso, quando não por sua semelhança com os Sátiros e Silenos. Existe aliás uma variante importante acerca da filiação e da deformidade do deus de Lâmpsaco. Tão logo Afrodite nasceu, Zeus por ela se apaixonou e a possuiu numa longa noite de amor. Hera, enciumada com a gravidez da deusa oriental, e temendo que, se da mesma nascesse um filho com a beleza da mãe e o poder do pai, ele certamente poria em perigo a estabilidade dos Imortais, deu um soco no ventre de Afrodite. O resultado foi que Priapo nasceu com um membro viril descomunal, embora fosse impotente. Com medo de que seu filho e ela própria fossem ridicularizados pelos deuses, abandonou-o numa alta montanha, onde foi encontrado e criado pelos pastores, o que explicaria o caráter rústico de Priapo. Ficaram também célebres na mitologia as explosões de ódio e as maldições de Afrodite. Quando se tratava de satisfazer a seus caprichos ou vingar-se de uma ofensa, fazia do amor uma arma e um veneno mortal. Pelo simples fato de Eos ter-se enamorado de Ares, a deusa fê-la apaixonar-se violentamente pelo gigante Oríon, a ponto de arrebatá-lo e escondê-lo, com grande desgosto dos deuses, uma vez que o gigante, como Héracles, limpava os campos e as cidades de feras e monstros. O jovem Hipólito, que lhe desprezava o culto, por ter-se dedicado a Ártemis, foi terrivelmente castigado. Inspirou a Fedra, sua madrasta, uma paixão incontrolável pelo enteado. Repelida por este, Fedra se matou, mas deixou uma mensagem mentirosa a Teseu, seu marido, e pai de Hipólito, acusando a este último de tentar violentá-la, o que lhe explicava o suicídio. Desconhecendo a inocência do filho, Teseu expulsou-o de casa e invocou contra o mesmo a cólera de Posídon. O deus enviou contra Hipólito um monstro marinho que lhe espantou os cavalos da veloz carruagem e o jovem, tendo caído, foi arrastado e morreu despedaçado. Querendo proteger a Jasão na conquista do velocino de ouro, fez que Medeia o amasse loucamente. Esta, conhecedora de certos processos mágicos, como um bálsamo que tornava quem o usasse insensível ao fogo e invulnerável, por um dia, deu-o a Jasão, que venceu todas as provas a que foi submetido por Eetes, rei da Cólquida e pai de Medeia. Mas Jasão, que tudo devia à esposa, abandonou-a, para se casar com Creúsa ou Glauce, filha de Creonte, rei de Corinto. Inconformada, porque, graças a Afrodite, ainda era apaixonada pelo esposo, Medeia, num acesso de loucura, matou a Creonte, Glauce e os dois filhos que tivera de Jasão. Tanto as desventuras de Hipólito quanto as de Medeia foram maravilhosamente bem retratadas por Eurípides, em duas tragédias imortais, Hipólito Porta-Coroa e Medeia. Puniu severamente todas as mulheres da ilha de Lemnos, porque se negaram a prestar-lhe culto. Castigou-as com um odor tão insuportável, que os esposos as abandonaram pelas escravas da Trácia. Para se vingar, mataram todos os maridos e fundaram uma verdadeira república de mulheres, que durou até o dia em que os Argonautas, comandados por Jasão, passaram pela ilha e lhes deram filhos. A própria Helena, que, por artimanhas da deusa e para premiar Páris, fugiu com ele para Troia, deplorava (Od., IV, 261) como se fora uma ἄτη (áte), uma loucura, uma cegueira da razão, o amor que lhe infundira Afrodite e a fizera abandonar a pátria e os deuses. Poder-se-iam multiplicar os exemplos das vítimas da cólera ou da proteção da deusa do amor, sobretudo através da tragédia grega. A esta divindade do prazer pelo prazer, do amor universal, que circula nas veias de todas as criaturas, porque, antes de tudo, Afrodite é a deusa das “sementes”, da vegetação, estavam ligadas, à maneira oriental, as célebres hierodulas, as impropriamente denominadas prostitutas sagradas. Essas verdadeiras sacerdotisas entregavam-se nos templos da deusa aos visitantes, com o fito, primeiro de promover e provocar a vegetação e, depois, para arrecadar dinheiro para os próprios templos. No riquíssimo (graças às hierodulas) santuário de Afrodite no monte Érix, na Sicília, e, em Corinto, nos bosques de ciprestes de um famoso Ginásio, chamado Craníon, a deusa era cercada por mais de mil hierodulas, que, à custa dos visitantes, lhe enriqueciam o santuário. Personagens principais das famosas Afrodísias de Corinto, todas as noites elas saíam às ruas em alegres cortejos e procissões rituais. Embora alguns poetas cômicos, como Aléxis e Eubulo, ambos do século IV a.C., tivessem escrito a esse respeito alguns versos maliciosos, nos momentos sérios e graves, como nas invasões persas de Dario (490 a.C.) e Xerxes (480 a.C.), se pedia às hierodulas que dirigissem preces públicas a Afrodite. Píndaro, talvez o mais religioso dos poetas gregos, celebrou com um σκόλιον (skólion), isto é, com uma canção convival, um grande número de jovens hierodulas que Xenofonte de Corinto ofertou a Afrodite, em agradecimento por uma dupla vitória nos jogos Olímpicos. Em Atenas, um dos epítetos da deusa era Έταίρα (Hetaíra), hetera, “companheira, amante, cortesã, concubina”, abstração feita de qualquer conotação de prostituta. Tal epíteto certamente se deve a um outro de Afrodite, a Pandêmia. Voltaremos a tratar das hierodulas quando falarmos a respeito de Ártemis, a dea luna triformis. Afrodite é o símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade, não propriamente em seus frutos, mas em função do desejo ardente que essas mesmas forças irresistíveis ateiam nas entranhas de todas as criaturas. Eis aí o motivo por que a deusa é frequentemente representada entre animais ferozes, que a escoltam, como no hino homérico a que já aludimos. Nesse hino, a deusa do amor mostra todo o seu poderio e força não apenas sobre os animais, mas até mesmo sobre o próprio Zeus: Ela transforma até mesmo o juízo de Zeus, o deus dos raios, o mais poderoso de todos os Imortais; e embora seja tão sábio, a deusa faz dele o que quer... Quando escala o Ida de mil fontes, seguem-na, acariciando-a, lobos cinzentos, fulvos leões, ursos, velozes panteras, ávidas de procriar. Ao vê-los, a deusa se enche de alegria e lhes instila o desejo no peito. Então dirigem-se todos, para se acasalar à sombra dos vales. (Hh. a Afrodite, 36-38 e 68-74). Eis aí o amor única e exclusivamente sob forma física, traduzido no desejo e no prazer dos sentidos. Ainda não é o amor elevado a um nível especificamente humano. A esse respeito Paul Diel faz o seguinte comentário: “Num plano mais elevado do psiquismo humano, onde o amor se completa no elo com a alma, cujo símbolo é a esposa de Zeus, Hera, o símbolo Afrodite exprimirá a perversão sexual, porque o ato de fecundação é buscado apenas em função da primazia do prazer outorgado pela natureza. A necessidade natural se exerce, portanto, perversamente”11. Os autores do Dicionário dos símbolos perguntam se a interpretação deste símbolo não evoluirá, após as pesquisas modernas acerca dos valores propriamente humanos da sexualidade. É que nos meios religiosos, acrescentam eles, de um moralismo exigente, a questão em estudo é saber se o fim único da sexualidade é a fecundidade ou se não seria possível humanizar o ato sexual independentemente da procriação12. O mito da deusa do amor poderia, assim, permanecer por um longo tempo ainda a imagem de uma perversão, a perversão da alegria de viver e das forças vitais, não mais porque o desejo de transmitir a vida estivesse alijado do ato de amor, mas porque o amor em si mesmo não seria humanizado. Permaneceria apenas como satisfação dos instintos, digno de animais ferozes que formavam o cortejo da deusa. Ao término de tal evolução, no entanto, Afrodite poderia reaparecer como a deusa que sublima o amor selvagem, integrando-o numa vida realmente humana. 1. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, t. I, v. 1, p. 83 [Tradução de Roberto Cortes de Lacerda]. 2. CARNOY, Albert. Dictionnaire étymologique de la mythologie gréco-romaine. Louvain: Universitas, 1976, verbete. 3. DIEL, Paul. Le Symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1952, p. 149ss. 4. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 199. 5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 78. 6. AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 57. 7. Piérides são as nove filhas de Píero, rei da Emácia. Hábeis cantoras, subiram ao monte Hélicon e desafiaram as Musas. Vencidas, foram transformadas em pássaros, mais precisamente, segundo Ovídio (Met., 5,302), em pegas. Em memória do triunfo sobre as filhas de Píero, as Musas da Trácia passaram a ser chamadas Piérides, sobretudo pelos poetas latinos. 8. Veja-se nossa análise da trilogia em Teatro grego: Tragédia e comédia.Petrópolis: Vozes, 1990, p. 22ss. 9. BERVEILLER, Michel. A tradição religiosa na tragédia grega. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935, p. 95s. 10. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977, p. 259. 11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 166. 12. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 55. CAPÍTULO XI Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (De Nix ao Leão de Nemeia) 1 A primeira geração divina se fecha com Afrodite, mas, além de Nix, que continuou a gerar, temos das principais divindades, nascidas de Úrano e Geia ou do sangue e esperma do deus Céu, uma longa e importante descendência, que passaremos a estudar. NIX, velha divindade, nascida do Caos na primeira fase do Universo, e que dera à luz Éter e Hemera, tornou-se extremamente fértil na primeira progênie divina. Gerou, por partenogênese, as seguintes abstrações: Moro, Tânatos, Hipno, Momo, Hespérides, Queres, Moîras, Nêmesis, Gueras e Éris. Como Moro é da mesma família etimológica que Moîra e a ela está associado, de direito e de fato, falaremos a seu respeito mais adiante. Tânatos, em grego Θάνατος (Thánatos), tem como raiz o indoeuropeu *dhwen, “dissipar-se, extinguir-se”. O sentido de “morrer”, ao que parece, é uma inovação do grego. O morrer, no caso, significa ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Grécia o morto tornava-se eídolon, um como que retrato em sombras, um “corpo insubstancial”. Tânatos, que tinha coração de ferro e entranhas de bronze, é o gênio masculino alado que personifica a Morte, mas não é agente da mesma. Na tragédia grega, surgiu como personagem pela primeira vez na obra de Frínico (século VI a.C.), mas, na realidade, só se afirmou a partir da tragédia de Eurípides Alceste. Tânatos não tem um mito propriamente seu. O combate que ele trava com Héracles na Alceste e sua desventura com o embusteiro Sísifo, apesar de serem extrapolações de cunho popular, muito contribuíram para fazer do deus da morte uma personagem dramática. Sísifo, o mais solerte e audacioso dos mortais, conseguiu por duas vezes livrar-se da Morte. Quando Zeus raptou Egina, filha do rio Asopo, foi visto por Sísifo, que, em troca de uma fonte concedida pelo deus-rio, contou-lhe que o raptor da filha fora o Olímpico. Este, imediatamente, enviou-lhe Tânatos, mas o astuto Sísifo enleou-o de tal maneira, que conseguiu encadeá-lo. Como não morresse mais ninguém, e o rico e sombrio reino do Hades estivesse se empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou Tânatos, cuja primeira vítima foi Sísifo. O solerte rei de Corinto, no entanto, antes de morrer, pediu à mulher que não lhe prestasse as devidas honras fúnebres. Chegando ao Hades sem o “revestimento” habitual, isto é, sem ser um eídolon, Plutão perguntou-lhe o motivo de tamanho sacrilégio. O esperto filho de Éolo mentirosamente culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu permissão para voltar rapidamente à terra, a fim de castigar severamente a companheira. Uma vez em seu reino, o rei de Corinto não mais se preocupou em cumprir a palavra empenhada com Plutão e deixou-se ficar, vivendo até avançada idade. Um dia, porém, Tânatos veio buscá-lo em definitivo e os deuses o castigaram impiedosamente, condenando-o a rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal chegado ao cume, o bloco rola montanha abaixo, puxado por seu próprio peso. Sísifo recomeça a tarefa, que há de durar para sempre. A luta com Héracles foi mais simples. Quando Alceste morreu, o herói, por gratidão ao rei Admeto, que, num momento de tão grande dor, lhe dera hospitalidade, dirigiu-se apressadamente ao túmulo da rainha e lá travou gigantesca batalha com Tânatos, arrebatando-lhe Alceste. Vencida a Morte, a rainha de Feres foi devolvida ao hospitaleiro Admeto mais jovem e mais bela que nunca. Do ponto de vista simbólico, Tânatos é o aspecto perecível e destruidor da vida. Como índice do que desaparece na evolução fatal das coisas, a Morte prende-se à simbólica da Terra. Divindade que introduz as almas nos mundos desconhecidos das trevas dos Infernos ou nas luzes do Paraíso, patenteia sua ambivalência, como a Terra, relacionando-se, de alguma forma, com os ritos de passagem. Revelação e Introdução, toda e qualquer iniciação passa por uma fase de morte, antes que as portas se abram para uma vida nova. Neste sentido, Tânatos contém um valor psicológico: extirpa as forças negativas e regressivas, ao mesmo tempo em que libera e desperta as energias espirituais. Filho da Noite e irmão de Hipno, o Sono, possui como sua mãe e irmã o poder de regenerar. Quando se abate sobre um ser, se este orientou sua vida apenas num sentido material, animalesco, a Morte o lançará nas trevas; se, pelo contrário, deixou-se guiar pela bússola do espírito, ela mesma lhe abrirá as cortinas que conduzem aos campos da luz. Não há dúvida de que em todos os níveis da vida humana coexistem a morte e a vida, ou seja, uma tensão entre forças contrárias, mas Tânatos pode ser a condição de ultrapassagem de um nível para um outro nível superior. Libertadora dos sofrimentos e preocupações, a Morte não é um fim em si; ela pode abrir as portas para o reino do espírito, para a vida verdadeira: mors ianua uitae, a morte é a porta da vida. Em sentido esotérico, Tânatos simboliza a transformação profunda que experimenta o homem pelo efeito da iniciação: “O profano deve morrer, a fim de renascer para uma vida superior que lhe confere a iniciação. Se não se morre para o estado de imperfeição, não há como progredir na iniciação”. Na iconografia antiga, Tânatos é representado por um túmulo, uma personagem armada com uma foice, um gênio alado, dois jovens, um preto, outro branco, um esqueleto, um cavaleiro, uma dança macabra, uma serpente, um animal psicopompo, como o cavalo, o cão... O simbolismo geral da Morte aparece ainda no décimo terceiro arcano maior do Tarô, arcano que não tem nome, como se o treze já lhe conferisse identidade definitiva ou se se temesse nomeá-lo. Na Antiguidade, realmente, o número treze possuía uma conotação maléfica, perigosa, simbolizando “o curso cíclico da atividade humana... a passagem a um outro estado, quer dizer, a Morte”. Para o lúcido Mircea Eliade a Morte é, muitas vezes, o resultado trágico de nossa indiferença diante da imortalidade. Há de chegar, porém, o dia, em que, com nosso corpo mortal, revestido da imortalidade, poderemos olhar a morte de frente e perguntar-lhe triunfantes: Ubi est, mors, uictoria tual (1Cor 15,55): “Onde está, ó morte, a tua vitória?” HIPNO, em grego Ὕπνος (Hýpnos), da raiz indo-europeia *swep, “aquietar-se, dormir”, donde o latim somnus. Irmão gêmeo de Tânatos, conforme os mitógrafos, o Sono habita nos poemas homéricas a ilha de Lemnos; consoante Vergílio, os Infernos; ou ainda o país dos Cimérios, como quer Ovídio. Alado, percorre rapidamente o mundo e adormece todos os seres. Conta-se que, apaixonado pelo lindíssimo pastor Endímion, concedeu-lhe o dom de dormir com os olhos abertos, para poder olhar, dormindo, nos olhos do amante. MOMO, em grego Μώμος (Mômos), de etimologia ainda não bem definida: talvez se relacione com o verbo mokân, mokâ-sthai, “ridicularizar, chasquear, zombar”. Momo é a personificação do Sarcasmo, sob forma feminina. Sendo excessivo o peso que a Terra suportava, pela rápida multiplicação dos homens, Zeus desencadeou. a guerra de Tebas. Como se julgasse insuficiente essa providência, o pai dos deuses e dos homens pensou em fulminá-los ou afogar a maioria. Foi então que Momo lhe aconselhou um meio mais prático: dar Tétis em casamento a um mortal, de que nasceria Aquiles, e Zeus engendraria uma filha, Helena, que suscitaria a discórdia entre a Ásia e a Europa, provocando a Guerra de Troia. Tantos seriam os mortos em dez anos de luta, que haveria o necessário equilíbrio demográfico. Em nossa língua, lá pelos fins do século XVI, “momo” se documenta com o sentido de farsa satírica: “...na qual noite, e outros dias seguintes, ouve em Sevilha muyto grandes, e sumptuosas festas de momos, e justas reaes...”1Daí, para se passar a Rei Momo, o rei da folia carnavalesca, em que a sátira, a farsa e o sarcasmo imperam, não deve ter sido muito difícil. HESPÉRIDES, em grego Ἑσπερίδες (Hesperídes), de ἑσπερα᾿, (hespéra), “tarde, ocidente”; da mesma família é o latim uesper, com o mesmo sentido. Em português temos Vésper, a estrela da tarde, vesperal, vespertino... As Hespérides eram as “Ninfas do Poente”. Se em Hesíodo são filhas da Noite, mais tarde, sobretudo na época clássica, tornaram-se filhas sucessivamente de Zeus e Têmis, de Fórcis e Ceto e, por fim, de Atlas. Não existe também acordo total entre os autores acerca de seu número, embora, as mais das vezes, sejam três e se chamem Egle, Ericia e Hesperaretusa, quer dizer, respectivamente, “a brilhante, a vermelha, a do poente”, designando, assim, o princípio, o meio e o fim do percurso final do sol. Esta última, todavia, costuma ser desdobrada em duas: Hespéria e Aretusa, aumentando-lhes o número para quatro. As Hespérides habitavam o extremo ocidente, não longe da Ilha dos Bem-Aventurados, bem junto ao Oceano. Quando os conhecimentos do mundo ocidental se acentuaram, o país das “Ninfas do Poente” foi localizado nas faldas do monte Atlas. Sua função precípua era vigiar, com auxílio de um dragão, filho de Fórcis e Ceto ou de Tifão e Équidna, as maçãs de ouro, presente de núpcias, que Geia deu a Hera por ocasião de seu casamento com Zeus. Em seu jardim maravilhoso elas cantam em coro, junto a fontes, cujos repuxos têm o perfume da ambrosia... As Hespérides estão ligadas ao ciclo dos Doze Trabalhos de Héracles, como se há de ver. Buscando junto a elas as maçãs de ouro, os frutos da imortalidade, o herói já estava muito próximo de sua apoteose. QUERES, em grego Κῆρες (Kêres, com e aberto), é aproximado por alguns da raiz, *ker, que significa genericamente “devastar”. Os verbos κηραίνειν (keraínein) κεραίζειν (keraídzein), “destruir, arruinar”, talvez não sejam estranhos à mesma família etimológica. O latim tem caries, caruncho, podridão, cárie, “que destrói” o dente. É muito difícil determinar com exatidão o conceito de Queres no mito grego. De Homero a Platão, se de um lado esse conceito evoluiu, de outro, essas filhas da Noite, desde a Ilíada, já tinham uma tendência a confundir-se ora com a Moîra, o Destino Cego, ora com as Erínias, as Vingadoras do sangue derramado. Verdadeiros monstros, são representadas como gênios alados, vestidas de preto, com longas unhas aduncas. Despedaçam os cadáveres e bebem o sangue dos mortos e feridos. Aparecem normalmente, por isso mesmo, nas cenas de batalhas e nos momentos de grande violência. Sua função, todavia, não se restringe apenas ao papel de Valquírias dos campos de batalha. já na Ilíada surgem como aglutinadas, “destinadas” a cada ser humano, personificando-lhe não só o gênero de morte, mas também o gênero de vida que a cada um é predeterminado. Assim, Aquiles “pôde” escolher entre duas Queres: uma lhe proporcionaria na pátria uma vida longa e tranquila, mas inglória; outra, a que ele escolheu, lhe daria um renome imperecível, mas cujo preço era a morte prematura. São igualmente as Queres de Aquiles e de Heitor que Zeus, na presença de todos os deuses, pesa na balança, para saber qual dos dois deveria perecer no combate final diante das muralhas de Ílion. Como o prato da balança de Heitor se inclinasse em direção ao Hades, Apolo, de imediato, abandonou seu preferido ao destino que lhe coubera. Hesíodo, na Teogonia, ora fala de uma Quere, irmã de Tânatos e de Moro, ora de várias Queres, irmãs das Moîras. O fato se explica ou por interpolação ou, o que é mais provável, pelo caráter popular e vago da concepçãode Quere, que tanto se apresenta como divindade única, quanto como um poder imanente ao indivíduo. É assim que, na Ilíada, uma Quere é atribuída aos aqueus, outra aos troianos. O que se pode concluir é que a noção de Quere podia ter um valor coletivo. Na época clássica as Queres tornaram-se tão somente reminiscências literárias e foram confundidas com as Moîras e as Erínias, com as quais se parecem por seu caráter ctônio e selvagem. Platão considerava-as como gênios malévolos, semelhantes às Harpias, que poluem tudo aquilo em que tocam. Por fim, a tradição popular acabou por identificá-las com as almas maléficas dos mortos, que se devem apaziguar com determinados sacrifícios, como acontecia no terceiro e último dia dos solenes festejos dionisíacos das Antestérias. MOÎRA, em grego Μοῖρα (Moîra). Sobre a Moîra, sua etimologia e função, já se falou no capítulo VII, 6, p. 147s mas como se restringiu o estudo desta abstração a Homero, vamos aqui, se bem que sumariamente, completá-lo. As Moîras são a personificação do destino individual, da “parcela” que toca a cada um neste mundo. Originariamente, cada ser humano tinha a sua Moîra, a saber, “sua parte, seu quinhão” de vida, de felicidade, de desgraça. Personificada, Moîra se tornou uma divindade muito semelhante às Queres, sem, no entanto, participar do caráter violento, demoníaco e sanguinário que estas possuíam. Impessoal e inflexível, a Moîra é a projeção de uma lei que nem mesmo os deuses podem transgredir, sem colocar em perigo a ordem universal. É a Moîra, por exemplo, que impede um deus de prestar socorro a um herói no campo de batalha ou de tentar salvá-lo, quando chegou sua hora de morrer. Linhas atrás, ao falar das Queres, fizemos menção de Apolo, que abandonou Heitor, seu herói favorito, quando o prato da balança do baluarte de Troia se inclinou para o Hades. Num simples e doloroso hemistíquio, Homero nos mostra como os deuses, no caso Apolo, que tantas vezes salvou Heitor da morte certa, obedecem, sem hesitar, à vontade da Moîra: λίπεν δέ ἑ Φοῖβος Απόλλων (lípen dè he Phoîbos Appóllon): então Febo Apolo o abandonou. (Il., XXII, 213). A pouco e pouco se desenvolveu a ideia de uma Moîra universal, senhora inconteste do destino de todos os homens. Essa Moîra, sobretudo após as epopeias homéricas, se projetou em três Moîras: Cloto, Láquesis e Átropos, tendo cada uma função específica, de acordo com sua etimologia: CLOTO, em grego Κλοθῶ (Klothô, com o aberto), do verbo κλώθειν (klóthein), fiar, significando, pois, Cloto, a que fia, a fiandeira. Na realidade, Cloto segura o fuso e vai puxando o fio da vida. LÁQUESIS, em grego Λάχεσις (Lákhesis), do verbo λαγχάνειν (lankhánein), em sentido lato, sortear, a sorteadora: a tarefa de Láquesis é enrolar o fio da vida e sortear o nome de quem deve morrer. ÁTROPOS, em grego Ἄτροπος (Átropos) de α (a, “alfa privativo”), não, e o verbo τρέπειν (trépein), voltar, quer dizer, Átropos é a que não volta atrás, a inflexível. Sua função é cortar o fio da vida. Como se observa, a ideia da vida e da morte é inerente à função de fiar. Nos dois poemas homéricos o fio da vida simboliza o destino humano. Aquiles, como todos os mortais, está sujeito ao sorteio macabro de Láquesis, isto é, o filho de Tétis e Peleu “deverá sofrer tudo aquilo que Aîsa fiou para ele”, como traduzimos e mostramos no capítulo VII, 6, p. 148. O astuto Ulisses, que tantas vezes “enganou” a morte, não escapará: Depois, quando lá (a Ítaca) chegar, sofrerá o que o destino e as graves “fiandeiras” lhe “fiaram” em seu nascimento, quando a mãe o deu à luz. (Odiss., VII, 196198) No Antigo Testamento são inúmeros os exemplos de associação do fio com a morte. Citar-se-á tão somente o exemplo que nos parece mais expressivo: Os “laços” da mansão dos mortos me cingiram todo, os “fios” da morte me apanharam de surpresa (2Sm 22,6). As três fiandeiras são filhas da Noite, em Hesíodo, mas, uma vez personificadas, tornaram-se para o mesmo poeta filhas de Zeus e Têmis, como já frisamos no capítulo VIII, 3, p. 166. Frequentemente se encontram as Moîras formando um mesmo grupo com Ilítia, o que facilmente se explica pelo fato de tanto aquelas quanto esta serem deusas também do nascimento. A junção com Τύχη (Týkhe), Tique, a Sorte, o Acaso, configura apenas uma “noção vizinha”. Em Roma, as Parcas foram, a pouco e pouco, identificadas com as Moîras, tendo assimilado todos os atributos das divindades gregas da morte. Na origem, todavia, as coisas eram, possivelmente, diferentes: as Parcas, ao que parece, presidiam sobretudo aos nascimentos, conforme, aliás, a etimologia da palavra. Com efeito, Parca provém do verbo parere, “parir, dar à luz”. Como no mito grego, eram três: chamavam-se Nona, Décima e Morta. A primeira presidia ao nascimento; a segunda, ao casamento; e a terceira, à morte. Diga-se, de passagem, que Morta tem a mesma raiz que Moîra, possivelmente com influência de mors, morte. Tão grande foi, porém, a influência das Moîras sobre as Parcas, que estas acabaram no mito latino tomando de empréstimo os três nomes gregos, com suas respectivas funções. Nona, Décima e Morta passaram a ser apenas “nomes particulares”. NÊMESIS, em grego Νέμεσις (Némesis), do verbo νέμειν (némein), “distribuir”, donde Nêmesis é a “justiça distributiva”, daí a “indignação pela injustiça praticada, a punição divina”. A função essencial desta divindade é, pois, restabelecer o equilíbrio, quando a justiça deixa de ser equânime, em consequência da ύβρις (hýbris), de um “excesso”, de uma “insolência” praticada. Como já se falou de Nêmesis no capítulo VI, 4, p. 118s, apenas se complementou aqui o estudo da deusa punidora da démesure com a parte etimológica. Gueras, a Velhice, não tem um mito próprio. Éris, em grego Ἔρις (Éris). Para alguns, Éris, a “Discórdia”, se relacionaria com o indo-europeu *erei, “perseguir, acossar” e, neste caso, seria da mesma família etimológica que Erínia. Com efeito, éris na literatura significa “luta, combate, querela que se resolve por um combate, contestação, rivalidade, emulação”. No capítulo VIII, 5, p. 172s, fizemos alusão à Discórdia. Vamos, agora, completar-lhe didaticamente o mito. Personificação da Discórdia, Éris é mais comumente, após o poeta de Ascra, considerada como irmã e companheira de Ares. A Teogonia, no entanto, coloca-a, como vimos, entre as forças primordiais, na geração da Noite, dando-lhe como filhos Pónos (Fadiga), Léthe (Esquecimento), Limós (Fome), Álgos (Dor) e Hórkos (Juramento). Nos Trabalhos e Dias, Hesíodo distingue duas Discórdias: uma, perniciosa, filha de Nix; outra, útil, salutar, que desperta o espírito de emulação e que Zeus colocou no mundo como inspiradora da competição entre os homens. Éris é normalmente representada como um gênio feminino alado, muito semelhante às Erínias e a Íris. Foi Éris, como já foi mencionado, quem lançou o “pomo da discórdia” destinado à mais bela das deusas e que irá provocar, por causa do julgamento de Páris, a Guerra de Troia. 2 Terminada a geração de Nix, passaremos agora a estudar a longa descendência dos filhos de Úrano e Geia. Pontos (Mar) gerou sozinho a Nereu e, depois, unindo-se a Geia, foi pai de Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia. NEREU, em grego Νηρέςύ (Nereús). Etimologicamente talvez signifique “o que vive nas águas do mar”, desde que se admita uma aproximação com o lituano nérti, “mergulhar”. “Velho do Mar” por excelência, mais “idoso” que Posídon, pois antecedeu à geração dos Olímpicos, o antigo deus marinho está entre as forças elementares do mundo. Como a maioria das divindades do mar, tem o poder de metamorfosear-se em animais e nos mais estranhos seres. Essa capacidade de transformação ajudou-o durante algum tempo, quando Héracles quis forçá-lo a dizer-lhe como chegar ao país das Hespérides. Trata-se de uma divindade pacífica e benfazeja. É representado com longas barbas brancas, cavalgando um tritão e armado de tridente. Dos filhos de Pontos e Geia, Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia, nenhum possui um mito próprio e sua importância, como se verá, reside em seus descendentes. Nereu, unindo-se à oceânida Dóris, foi pai das cinquenta Nereidas, dentre as quais têm realmente um destaque importante na mitologia apenas Anfitrite, Tétis e, em parte, Psâmate. ANFITRITE, em grego Αμφιτρίτη (Amphitríte). Consoante Hesíquio, o que é um arranjo popular, a palavra é formada de ἀμφί (amphí), “em torno de, em volta de”, e um elemento τρίτώ (tritó), “corrente”, donde Anfitrite significaria a que circula a Terra. E, de fato, Anfitrite é a Rainha e a personificação feminina do Mar, aquela que, sendo ela própria a água, rodeia o mundo. Quando, na ilha de Naxos, conduzia o coro das Nereidas, suas irmãs, foi vista e raptada por Posídon. O rei dos mares a amava, há muito tempo, mas a Nereida, por excessivo pudor, se escondia nas profundezas do oceano, além das Colunas de Héracles. Encontrada pelos Delfins, foi pelos mesmos conduzida a Posídon, que a desposou. Desde então a Rainha do Mar senta-se ao lado do marido, no carro divino. Não raro tem nas mãos o tridente, símbolo de sua soberania. Seu séquito é formado pelas Nereidas de seios nus, por Nereu, Proteu, Hipocampos, Ninfas, Golfinhos e Delfins. De sua união com Posídon, nasceu, segundo algumas fontes, Tritão, o benfazejo deus marinho, metade homem, metade peixe, que sempre está disposto a serenar as vagas. TÉTIS, em grego Θέτις (Thétis), talvez do indo-europeu *tétî, “mãe”. Já se falou de Tétis nos capítulos VI, 4, p. 110s e VII, 5, p. 145. PSÂMATE, em grego Ψaμάθη (Psamáthe), etimologicamente a “arenosa”, já que o nome desta Nereida é formado do substantivo psámmos, areia. Neste caso, a filha de Nereu teria sido inicialmente o epônimo de uma fonte de fundo arenoso na Beócia. Unida a Éaco, foi mãe de Foco. Como a princípio não desejasse submeter-se aos desejos do pretendente, metamorfoseou-se, como toda divindade marinha, em vários seres. Sua derradeira transformação foi em foca, mas nada impediu que o mais piedoso dos gregos e futuro juiz do Hades dela se apoderasse. Como os dois filhos do primeiro matrimônio de Éaco, Télamon e Peleu, por inveja de Foco, que os excedia nos jogos atléticos, o tivessem assassinado, Psâmate enviou contra seus rebanhos um lobo monstruoso. Mais tarde abandonou Éaco e se uniu a Proteu. Taumas, filho de Ponto e Geia, uniu-se à Oceânida Electra e nasceram Íris e as Harpias. ÍRIS, em grego Ἶρις (Îris) personificação do arco-íris. Possivelmente a raiz de Íris é o indo-europeu *wi, “dobrar”, donde o latim uiriae, “bracelete”. Íris é a ponte, o traço-de-união entre o Céu e a Terra, entre os deuses e os homens. Comumente é representada com asas e coberta com um véu ligeiro que, ao contato com os raios do sol, toma as cores do arco-íris. Íris é, como Hermes, a mensageira dos deuses, mas particularmente de Hera e Zeus. O arco-íris é um símbolo universal do caminho e da mediação entre este mundo e o outro; a ponte de que deuses e heróis se utilizam no seu constante vai-vém entre o Céu e a Terra. Na Escandinávia é a ponte Byfrost; no Japão, a ponte flutuante do Céu; a escada de sete cores por onde Buda torna a descer do alto. A mesma ideia se encontra do Irã à África, das Américas à China. No Tibete, o arco-íris não é propriamente a ponte, mas a alma dos soberanos que sobe ao céu. As fitas usadas por determinados Xamãs simbolizam a ascensão dos mesmos à outra vida. Na China a união das “cinco cores” do arco-íris é a mesma união do yin e do yang, o sinal de harmonia do universo e o símbolo da fecundidade. Se o arco de Çiva é semelhante ao arco-íris, o de Indra é o seu sinal distintivo, uma vez que Indra dispensa à Terra a chuva e o raio, que são os símbolos da atividade celeste. As sete cores do arcoíris no esoterismo islâmico simbolizam a imagem das qualidades divinas refletidas no universo, já que o arco-íris é a imagem inversa do sol sobre um véu inconsistente de chuva. Consoante o budismo tibetano, nuvens e arco-íris configuram o Sambhoga-Kâya (corpo de arrebatamento espiritual) e sua dissolução em chuva, o NirmânaKâya (corpo de transformação). A complexio oppositorum, a reunião dos contrários, é também a reunião das metades separadas, uma resolução. O arco-íris que surge sobre a Arca de Noé reúne as águas inferiores e superiores, metades do ovo do mundo, como sinal da restauração da ordem cósmica e da gestação de um novo ciclo. No Gênesis 9,12-17 encontra-se explicitamente a materialização de uma grande aliança por meio do arco-íris: E Deus disse: Eis o sinal de aliança, que faço entre mim e vós, e com todos os animais viventes, que estão convosco, por todas as gerações futuras: porei o meu arco nas nuvens, e ele será o sinal da aliança entre mim e a terra. E, quando eu tiver coberto o céu de nuvens, o meu arco aparecerá nas nuvens e me lembrarei da minha aliança convosco e com toda a alma vivente que anima a carne; e não voltarão as águas do dilúvio a exterminar toda a carne. E o arco estará nas nuvens, e eu o verei, e me lembrarei da aliança eterna que foi feita entre Deus e todas as almas viventes de toda a carne que existe sobre a terra. E Deus disse a Noé: Este será o sinal da aliança que eu constituí entre mim e toda a carne sobre a terra. A associação Chuva-Arco-íris fez que em muitas culturas este evocasse a imagem de uma serpente mítica, como Naga, na Ásia oriental. Este simbolismo se encontra também na África e, possivelmente, até mesmo na Grécia, porque o arco, que figura na couraça de Agamêmnon, está representado por três serpentes. Pois bem, tal simbolismo está em conexão com as correntes cósmicas que se desdobram entre o céu e a terra. HARPIA, em grego Ἃρπυία (Hárpyia). O “parentesco” com o verbo ἁρπάζειν (harpádzein), “arrebatar”, parece bem possível, bem como com o latim rapere, “arrebatar, tomar à força”. As Harpias significam, pois, literalmente, “as arrebatadoras”. Gênios alados, eram apenas duas inicialmente: Aelo e Ocípete, às quais se acrescentou posteriormente uma terceira, Celeno. Seus nomes traduzem bem sua natureza. Significam respectivamente: a Borrasca, a Rápida no Voo e a Obscuridade. Eram monstros horríveis: tinham o rosto de mulher velha, corpo de abutre, garras aduncas, seios pendentes. Pousavam nas iguarias dos banquetes e espalhavam um cheiro tão infecto, que ninguém mais podia comer. Dizia-se que habitavam nas ilhas Estrófades, no mar Egeu. Vergílio, no canto 6,289, da Eneida, coloca-as no vestíbulo do Inferno, com outros monstros. Arrebatadoras de crianças e de almas, as imagens desses monstros eram muitas vezes colocadas sobre os túmulos, transportando a alma do morto em suas garras. O principal mito das Harpias está relacionado com Fineu, o mântico, rei da Trácia. Sobre Fineu pesava terrível maldição. Tudo que se colocava diante dele as Harpias o arrebatavam, principalmente se se tratasse de iguarias: o que não podiam carregar poluíam-no com seus excrementos. Quando pela Trácia passaram os Argonautas, o rei pediu-lhes que o libertassem das terríveis Harpias. Zetes e Cálais, filhos do Vento Bóreas, perseguiram-nas, obrigandoas a levantar voo. O destino, no entanto, determinara que as Harpias só morreriam se fossem agarradas pelos filhos de Bóreas, mas, de outro lado, estes perderiam a vida se não as alcançassem. Perseguida sem tréguas por Zetes e Cálais, a primeira Harpia, Aelo, caiu num riacho do Peloponeso, que, por isso mesmo, passou a chamar-se Hárpis. A segunda, Ocípete, conseguiu chegar às ilhas Equínades, que, desde então, se denominaram Estrófades, isto é, ilhas do Retorno. Íris, outros dizem que Hermes, se postou diante dos perseguidores e proibiu-lhes matar as Harpias, porque eram “servidoras de Zeus”. Em troca da vida, elas prometeram não mais atormentar Fineu, refugiando-se numa caverna da ilha de Creta. Segundo algumas fontes, uniram-se depois ao Vento Zéfiro e geraram os dois cavalos divinos de Aquiles, Xanto e Bálio, “mais rápidos que o vento”, bem como os dois ardentes corcéis dos Dioscuros, Flógeo e Hárpago. As Harpias são parcelas diabólicas das energias cósmicas, as abastecedoras do Hades com mortes súbitas. Simbolizam as paixões desregradas; as torturas obsedantes, carreadas pelos desejos e o remorso que se segue à satisfação das mesmas. Diferem das Erínias, na medida em que estas representam a punição e aquelas figuram o agenciamento dos vícios e as provocações da maldade. O único vento que poderá afugentá-las é o sopro do espírito. Fórcis, filho de Pontos, uniu-se à sua irmã Ceto e foi pai das Greias e das Górgonas. GREIA, em grego Γραῖα (Graîa). Trata-se de um adjetivo substantivado, provindo de Γραῦς (Graûs), a “mulher velha”. As Greias são, por conseguinte, as Velhas, por excelência, porque, na realidade, já nasceram velhas. Irmãs mais “velhas” das Górgonas, a princípio eram duas: Enio e Pefredo, a que depois se acrescentou uma terceira, Dino. Tinham apenas um olho e um dente e de ambos se serviam alternadamente. Viviam no extremo Ocidente, no país da Noite, onde jamais chegava o sol. O único mito em que as Greias desempenham um papel de certa relevância é no de Perseu. Como o herói será assunto de um capítulo do volume III, deixaremos para falar amplamente do mesmo no lugar apropriado. Aqui apenas se dirá o necessário para se compreender o mito das Greias e das Górgonas. A grande missão do herói argivo era chegar ao esconderijo das Górgonas e cortar a cabeça de Medusa. Para tanto, tinha obrigatoriamente que passar pelas Greias, que barravam o caminho a quantos buscassem surpreender suas irmãs. Como as Velhas tivessem em comum apenas um olho, a guarda era feita em turnos: uma vigiava e as outras duas dormiam. Perseu conseguiu subtrair-lhes o olho único e, lançando as três em sono profundo, chegou ao esconderijo das Górgonas. Uma outra versão do mito conta que as Greias eram depositárias de um oráculo, segundo o qual só conseguiria cortar a cabeça de Medusa aquele que obtivesse um par de sandálias aladas, um alforje, chamado kíbisis, e o capacete de Hades que deixava invisível quem o usasse. Todos esses objetos estavam em poder de determinadas Ninfas, cujo paradeiro só as Velhas conheciam. Instruído por Atená e Hermes, Perseu arrebatou o “olho e o dente” das Greias e obrigou-as a revelar onde se encontravam as Ninfas misteriosas. Estas, cordatamente, lhe fizeram entrega dos objetos mágicos, o que lhe permitiu chegar ao esconderijo das Górgonas. Uma palavra sobre a primeira das Greias, já que as duas outras não possuem interesse algum particular para o mito. ENIO, em grego Ἐνυώ (Enyó) é possivelmente um hipocorístico feminino de Ἐνυάλιος (Enyálios), deus das lutas armadas, muitas vezes associado ao grito de guerra. Trata-se, talvez, de divindade préhelênica. Enio seria “a que faz penetrar, a que fura”. Em todo caso, Enio é uma deusa da guerra, que faz parte do sangrento cortejo de Ares. Em Roma, foi identificada com a deusa da guerra Belona, como está na Eneida, 8,703. GÓRGONA, em grego Γοργόνα (Gorgóna), acusativo de Γοργών (Gorgón), cuja forma mais antiga é Γοργώ (Gorgó). De qualquer modo, a fonte é o adjetivo γοργός (gorgós), que significa “impetuoso, terrível, apavorante”. Em tese, apenas Medusa é Górgona. As duas outras, Ésteno e Euríale, somente lato sensu é que podem ser assim denominadas. Das três só Medusa era mortal. Habitava, como suas irmãs, o extremo Ocidente, junto ao país das Hespérides. Estes monstros tinham a cabeça enrolada de serpentes, presas pontiagudas como as do javali, mãos de bronze e asas de ouro, que lhes permitiam voar. Seus olhos eram flamejantes e o olhar tão penetrante, que transformava em pedra quem as fixasse. Eram espantosas e temidas não só pelos homens, mas também pelos deuses. Apenas Posídon ousou aproximar-se delas e ainda engravidou Medusa. Foi então que Perseu partiu do Ocidente para matar a Górgona, o que fez, como se narrou, utilizando determinados objetos mágicos e sobretudo seu escudo polido de bronze. O filho de Dânae pairou acima dos três monstros, graças às sandálias aladas. As Górgonas dormiam. Perseu, sem poder olhar diretamente para Medusa, refletiu-lhe a cabeça no escudo e, com a espada que lhe dera Hermes, decapitou-a. Do pescoço ensanguentado da Górgona saíram os dois seres engendrados por Posídon, o cavalo Pégaso e o gigante Crisaor. A cabeça de Medusa foi colocada por Atená em seu escudo ou no centro da égide. Assim, os inimigos da deusa eram transformados em pedra, se olhassem para ela. O sangue que escorreu do pescoço do monstro foi recolhido pelo herói, uma vez que este sangue tinha propriedades mágicas: o que correu da veia esquerda era um veneno mortal, instantâneo; o da veia direita era um remédio salutar, capaz de ressuscitar os mortos. Além do mais, uma só mecha da outrora lindíssima cabeleira da Górgona apresentada a um exército invasor era bastante para pô-lo em fuga. O mitologema de Medusa evoluiu muito desde suas origens até a época helenística. De início, a Górgona, apesar de monstro, é uma das divindades primordiais, pertencente à geração pré-olímpica. Depois, foi tida como vítima de uma metamorfose. Conta-se que Medusa era uma jovem lindíssima e muito orgulhosa de sua cabeleira. Tendo, porém, ousado competir em beleza com Atená, esta eriçou-lhe a cabeça de serpentes e transformou-a em Górgona. Há uma variante: a deusa da inteligência puniu a Medusa, porque Posídon, tendo-a raptado, violou-a dentro de um templo da própria Atená. Três irmãs, três monstros, a cabeça aureolada de serpentes venenosas, presas de javalis, mãos de bronze, asas de ouro: Medusa, Ésteno, Euríale. São os símbolos do inimigo que se tem que combater. As deformações monstruosas da psiqué, consoante Chevalier e Gheerbrant2, se devem às forças pervertidas de três pulsões: sociabilidade, sexualidade, espiritualidade. Euríale seria a perversão sexual, Ésteno, a perversão social, e Medusa a principal dessas pulsões, a pulsão espiritual e evolutiva, mas pervertida em frívola estagnação. Só se pode combater a culpabilidade oriunda da exaltação frívola dos desejos pelo esforço em realizar a justa medida, a harmonia. É isto, aliás, o que simboliza, face à perseguição, a busca de refúgio no templo de Apolo, em Delfos, onde reinam o equilíbrio e a harmonia, cifrados no γνῶθι σαὐτόν (gnôthi s’autón), “conhece-te a ti mesmo”. Quem olha para a cabeça de Medusa se petrifica. Não seria por que ela reflete a imagem de uma culpabilidade pessoal? O reconhecimento da falta, porém, baseado num justo conhecimento de si mesmo, pode se perverter em exasperação doentia, em consciência escrupulosa e paralisante. Em resumo, Medusa simboliza a imagem deformada, que petrifica pelo horror, em lugar de esclarecer com equidade. PÉGASO, em grego Πήγασος (Pégasos). A etimologia que deriva Pégaso de πηγή (pegué), fonte, pelo fato de o cavalo divino, com uma patada, ter feito brotar Hipocrene (fonte do cavalo), é de cunho popular. Talvez o vocábulo origine-se de πηγός (pegós), forte, sólido. Nasceu este cavalo alado das “fontes do Oceano”, como se dizia, isto é, no extremo Ocidente, quando da morte da Górgona por Perseu. O mito ora o apresenta como oriundo do pescoço de Medusa, ora como gerado pela Terra, fecundada com o sangue do monstro. Assim que nasceu, voou para o Olimpo, onde se colocou a serviço de Zeus. A respeito da maneira como o cavalo voador se pôs à disposição de Belerofonte, as tradições variam: Atená ou Posídon o teriam levado ao grande herói ou o próprio Belerofonte o encontrara junto à fonte de Pirene. Foi graças a Pégaso que o herói pôde executar duas grandes tarefas que lhe impusera o rei Ióbates: matar Quimera e derrotar as Amazonas. Após a marte do herói, Pégaso retornou para junto dos deuses. No grande concurso de cantos entre as Piérides e as Musas, o monte Hélicon se envaideceu e se enfunou tanto de prazer, que ameaçou atingir o Olimpo. Posídon ordenou a Pégaso que desse uma patada no monte, a fim de que ele voltasse às dimensões normais e guardasse “seus limites”. Hélicon obedeceu, mas, no local atingido por Pégaso, brotou uma fonte, Hipocrene, a Fonte do Cavalo, imortalizada em nossa língua pelo gênio de Camões: E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mi um novo engenho ardente, Se sempre, em verso humilde, celebrado Foi de mi vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente, Por que de vossas águas Febo ordene Que não tenham enveja às de Hipocrene. (Lus., I, 4) Após muitos trabalhos prestados aos deuses e aos heróis, Pégaso foi transformado em constelação. Pégaso, cavalo alado, está sempre relacionado com a água. Filho de Posídon e da Górgona, seu nome provém, em etimologia popular, πηγή (pegué), fonte. Teria nascido junto às fontes do Oceano. Belerofonte o encontrou bebendo na fonte de Pirene. Com uma só patada fez brotar Hipocrene, a fonte do cavalo. Está, de outro lado, ligado às tempestades, por isso que é “o portador do trovão e do raio por conta do prudente Zeus”. Pégaso é, por conseguinte, uma fonte alada: fecundidade e elevação. O simples cavalo é figurado tradicionalmente como a impetuosidade dos desejos. Quando o ser humano faz corpo com o cavalo, torna-se um monstro, o Centauro, identificando-se com os instintos animalescos. O cavalo alado, muito pelo contrário, simboliza a imaginação criadora sublimada e sua elevação real. Com efeito, foi cavalgando Pégaso que Belerofonte matou a Quimera. Temos aí, pois, os dois sentidos da fonte e das asas: a fecundidade e a criatividade espiritual. Não é em vão que Pégaso se tornou o símbolo da inspiração poética. O gigante Crisaor uniu-se a Calírroe e foi pai do gigante Gerião, de três cabeças e do monstro Équidna. GERIÃO, em grego Γηρυών (Gueryón), cuja fonte é o verbog γηρύειν (guerýein) “fazer ressoar, gritar”, ou por ter sido Gerião um pastor ou porque o nome designava primitivamente o cão que lhe guardava os rebanhos. Talvez se trate de etimologia popular. Gerião era um monstro de três cabeças e de torso tríplice. Habitava a ilha de Ericia, “a vermelha”, situada nas brumas do Ocidente, além do imenso Oceano. Seus rebanhos eram guardados pelo pastor Eurítion e pelo cão Ortro, não longe do local onde Menetes pastoreava os rebanhos de Plutão. Um dos trabalhos de Héracles consistia em roubar os bois de Gerião. O herói enfrentou primeiro o cão Ortro e o liquidou; eliminou, em seguida, o pastor Eurítion e, por fim, lutou com o gigante e o matou a flechadas ou a golpes de clava. A ilha de Ericia estava localizada possivelmente na Espanha, nos arredores de Cádis. O epônimo Ericia designaria uma das Hespérides, cujo “Jardim” estava próximo da ilha homônima. O próprio nome do local, País Vermelho, designa uma terra situada a Oeste, o País do Sol Poente. ÉQUIDNA, em grego Ἔχιδνα (Ékhidna), do mesmo grupo etimológico que Ἔχις (Ékhis), “víbora”. Monstro com um corpo de mulher e cauda de serpente, que lhe substituía as pernas. Vivia, consoante Hesíodo (Teog., 300ss), nas profundezas da terra, numa caverna, distante dos deuses e dos homens. Outras tradições a colocam no Peloponeso, onde foi morta por Argos-de-Cem-Olhos, porque estava habituada a devorar os transeuntes. Équidna é de alma violenta, diz Hesíodo. Seu corpo é metade de jovem mulher, de lindas faces e olhos cintilantes, metade, uma enorme serpente, malhada, cruel... Unida a Tifão, como se verá, em seguida, gerou tão somente monstros: Ortro, Cérbero, Quimera, Leão de Nemeia, Hidra de Lerna... C.G. Jung fez de Équidna, na perspectiva analítica do incesto, uma imagem da mãe: “Bela e jovem mulher até a cintura, mas, a partir daí, uma serpente horrenda. Este ser duplo corresponde à imagem da mãe: na parte superior, a metade humana, bela e sedutora; na inferior a metade animal, medonha, que a defesa incestuosa transforma em animal angustiante. Seus filhos são monstros, como Ortro, o cão de Gerião, que Héracles matou. Foi com este Cão, seu filho, que, em união incestuosa, Équidna gerou a Esfinge. Esse material é suficiente para caracterizar a soma de libido que produziu o símbolo da Esfínge”3. Équidna é um símbolo da prostituta apocalíptica, da libido que queima a carne e a devora. Mãe do abutre, que rói as entranhas de Prometeu, é ainda o fogo do Inferno, o desejo excitado e sempre insaciável. É a Sereia, de cujas seduções Ulisses soube fugir. Tifão e Équidna foram pais de Ortro, Cérbero, Hidra de Lerna, Quimera, Fix e Leão de Nemeia. CÉRBERO, em grego Κέρβερος (Kérberos). A identidade com o sânscrito karbará-, šarvará-, “pintado”, é, hodiernamente, duvidosa. Cérbero é o cão do Hades, um dos monstros que guardavam o império dos mortos e lhe interditava a entrada aos vivos, mas, acima de tudo, se entrassem, impedia-lhes a saída. Segundo Hesíodo, o guardião infernal tinha cinquenta cabeças e voz de bronze. A imagem clássica, porém, o apresenta como dotado de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes. Um dos trabalhos impostos por Euristeu a Héracles foi o de descer ao Hades e de lá trazer o monstro. Após iniciar-se nos Mistérios de Elêusis, o herói desceu à outra vida. Plutão permitiu-lhe cumprir a tarefa, desde que dominasse a Cérbero sem usar de armas. Numa luta corpo a corpo, o filho de Alcmena o venceu e o trouxe meio sufocado até o palácio de Euristeu, que, apavorado, ordenou a Héracles que o levasse de volta ao Hades O Cão do Hades representa o terror da morte; simboliza os próprios Infernos e o inferno interior de cada um. É de se observar que Héracles o levou de vencida, usando tão somente a força de seus braços e que Orfeu, “por uma ação espiritual”, com os sons irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por instantes. Estes dois índices militam em favor da interpretação dos neoplatônicos que viam em Cérbero o próprio gênio do demônio interior, o espírito do mal. O monstruoso guardião do Hades só pode ser dominado sobre a terra, quer dizer, por uma violenta mudança de nível e pelas forças pessoais de natureza espiritual. Para vencê-lo, cada um só pode contar consigo mesmo. HIDRA, em grego Ύδρα (Hýdra), é um derivado de ὕδωρ (hýdor), água. O sânscrito tem udrá-, “animal aquático”, o alemão Otter, “víbora, lontra”, latim lutra ou lytra, lontra. A Hidra de Lerna é um monstro horripilante, gerado pela deusa Hera, para “provar” o grande Héracles. Criada sobre um plátano, junto da fonte Amimone, perto do pântano de Lerna, na Argólida, a Hidra é figurada como uma serpente descomunal, de muitas cabeças, variando estas, segundo os autores, de cinco ou seis, até cem, e cujo hálito pestilento a tudo destruía: homens, colheitas e rebanhos. Para conseguir exterminar mais esse monstro, o herói contou com a ajuda preciosa de seu sobrinho Iolau, porque, à medida em que Héracles ia cortando as cabeças da Hidra, onde houvera uma, renasciam duas. Iolau pôs fogo a uma floresta vizinha, e com grandes tições ia cauterizando as feridas, impedindo, assim, o renascimento das cabeças cortadas. A cabeça do meio era imortal, mas o filho de Alcmena a decepou assim mesmo: enterrou-a e colocou-lhe por cima um enorme rochedo. Antes de partir, Héracles embebeu suas flechas no veneno ou, segundo outros, no sangue da Hidra, envenenando-as. A interpretação evemerista do mito é de que se trata de um rito aquático. A hidra, com as cabeças, que renasciam, seria, na realidade, o pântano de Lerna, drenado pelo herói. As cabeças seriam as nascentes, que, enquanto não fossem estancadas, tornariam inútil qualquer drenagem. A venenosa serpente aquática, dotada de muitas cabeças, é frequentemente comparada com os deltas dos rios, com seus inúmeros braços, cheias e baixas. Consoante Paul Diel4, a Hidra simboliza os vícios múltiplos, “tanto sob forma de aspiração imaginativamente exaltada, como de ambição banalmente ativa. Vivendo no pântano, a Hidra é mais especificamente caracterizada como símbolo dos vícios banais. Enquanto o monstro vive, enquanto a vaidade não é dominada, as cabeças, configuração dos vícios, renascem, mesmo que, por uma vitória passageira, se consiga cortar uma ou outra”. O sangue da Hidra é um veneno e nele o herói mergulhou suas flechas. Quando a peçonha se mistura às águas dos rios, os peixes não podem ser consumidos, o que confirma a interpretação simbólica: tudo quanto tem contato com os vícios, ou deles procede, se corrompe e corrompe. QUIMERA, em grego Χίμαιρα (Khímaira), significa “cabritinha”. Monstro híbrido, com a cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente; conforme outros, de três cabeças: uma de leão, a segunda de cabra e a terceira de serpente e que lançava chamas pelas narinas. Criada por Amisódaro, rei da Cária, vivia em Patera. O rei da Lícia, Ióbates, ordenou ao herói Belerofonte que a matasse, uma vez que aquela lhe devastava o país. Cavalgando Pégaso, o herói aproximouse do monstro, mas teve o cuidado de guarnecer de chumbo a ponta da lança. Com o calor das chamas lançadas por Quimera, o chumbo se derreteu e a matou. Quimera tem um simbolismo complexo de “criações imaginárias”, nascidas nas profundezas do inconsciente, configurando, possivelmente, desejos exasperados pela frustração, os quais acabam por transformar-se em fonte de sofrimentos. O monstro seduz e destrói a quem a ele se entrega. Não se podendo combatê-la de frente, é necessário persegui-la com ardor e surpreendê-la em seus refúgios mais profundos. Sociólogos e poetas viram-na apenas como a imagem das torrentes, “caprichosas como as cabras, devastadoras como os leões e sinuosas como as serpentes”, que não se podem deter com diques, mas que é preciso secar pela astúcia, estancando as nascentes, desviando-lhes o curso. A Quimera poderia, de outro lado, ser interpretada como uma deformação psíquica, caracterizada por uma imaginação fértil e incontrolada. A cauda de serpente ou dragão corresponderia à perversão espiritual da vaidade; o corpo de cabra à sexualidade perversa e caprichosa; a cabeça de leão a uma tendência dominadora, que corrompe todo e qualquer relacionamento social. FIX seria a forma beócia de Esfinge, em grego Σϕιγξ (Sphínks), que provém, por etimologia popular, do verbo σϕίγγειν (sphínguein), “envolver, apertar, comprimir, sufocar”. Monstro feminino, com o rosto e, por vezes, seios de mulher, peito, patas e cauda de leão e dotado de asas. A Esfinge figura sobretudo no mito de Édipo e no ciclo tebano. Este monstro fora enviado por Hera, a protetora dos amores legítimos, contra Tebas, para punir a cidade do crime de Laio, que raptara Crisipo, filho de Pélops, introduzindo na Hélade a pederastia. Postada no monte Fíquion, próximo da cidade, devastava o país, devorando a quantos lhe passassem ao alcance. Normalmente propunha um só e mesmo enigma aos transeuntes, e já havia exterminado a muitos, porque ninguém ainda o decifrara. Foi então que surgiu Édipo e a “cruel cantora” (a Esfinge propunha o enigma cantando) lhe fez a clássica pergunta: “Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem maior número de membros?” Édipo respondeu de pronto: “É o homem, porque, quando pequeno, engatinha sobre os quatro membros; quando adulto, usa as duas pernas; e, na velhice, caminha apoiado a um bastão”. Vencida, a Esfinge precipitou-se do alto de um rochedo e morreu. Claude Lévi-Strauss5 enfocou o mito de Édipo e obviamente tentou dar, senão uma interpretação, ao menos uma definição da “cruel cantora” de Tebas. Reunindo as frases e conceitos do excepcional estudioso francês, talvez se possa chegar antropologicamente a uma definição de Esfinge: “Monstro-fêmea ctônio, com sinal invertido, símbolo da autoctonia do homem, monstro que violava os jovens, caso não lhe decifrassem o enigma, mas que, uma vez vencido e destruído, mostra que o ser humano não nasceu apenas da fêmea, mas do concurso desta com o macho”. Donde, a decifração do enigma, representaria a vitória da patrilinhagem sobre a matrilinhagem. Na realidade, tanto o dragão quanto a Esfinge simbolizam a autoctonia do homem. Vencidos pelo homem, atestam a negação dessa autoctonia. Marie Delcourt, em sua obra clássica e bastante polêmica sobre Édipo, tem um capítulo luminoso e copiosamente documentado sobre a “cruel cantora”6. Vamos apontar, por agora, somente algumas reflexões da Autora sobre a Esfinge, o quanto possível desvinculada de Édipo, porque acerca do enigma, da vitória deste sobre aquela e suas consequências, há de se falar depois, quando abordarmos o mito do filho de Laio e Jocasta no volume III. Para Delcourt, o ser mítico, que os gregos denominaram Esfinge, foi por eles criado com base em duas determinações superpostas: a realidade fisiológica, isto é, o pesadelo opressor e o espírito religioso, quer dizer, a crença nas almas dos mortos representadas com asas. Estas duas concepções acabaram por fundir-se, uma vez que possuíam e ainda possuem certos aspectos comuns, principalmente o caráter erótico e a ideia de que, quando se dominam os pesadelos e os fantasmas, o vencedor recebe, como dádiva dos mesmos, tesouros, talismãs e reinos. A Esfinge é, pois, a junção de dois aspectos: pesadelo opressor e o terror infundido pelas almas dos mortos. Na realidade, a Esfinge pertence simultaneamente a duas categorias de seres, que correspondem a dois enfoques diferentes: irmã de Efialtes7, o monstro é um pesadelo, um demônio opressor; irmã das Sereias, a “cruel cantora” é uma alma penada. Com efeito, Sereias, Queres, Erínias, Harpias, as Aves do Lago de Estinfalo... são, em princípio, almas dos mortos. Assim como existem várias Sereias, teria havido várias Esfinges. O mito de Édipo, no entanto, privilegiou de tal forma uma delas, que as demais caíram no esquecimento. E, por isso mesmo, graças à literatura, todas as imagens mais ou menos diferentes, relativas à Esfinge, cristalizaram-se em torno da mulherleão alada, que a arte grega recebeu do sul do Mediterrâneo. Pois bem, todos esses seres possuem um traço comum: são ávidos de sangue e de prazer erótico. Vimos como na Odisseia, para evocar as almas dos mortos, os eídola, Ulisses, além de fazer três libações sobre um fosso, com mel, vinho e água, degolou sobre o mesmo duas vítimas negras: um carneiro e uma ovelha. O resultado foi imediato: O negro sangue correu. E logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se ajuntaram. (Odiss., XI, 36-37) Isto quer dizer que as almas, por efeito do sangue, recuperaram, ao menos por instantes, sua consciência. Determinados líquidos, como mel, vinho, água, mas sobretudo o sangue e o esperma (spérma em grego é semente), porque em ambos “está a vida”, são vitais para as “almas”, a fim de que possam reanimar seu vigor sempre languescente. Na chamada ânfora de Berlim, de n. 684, do século VI a.C., vê-se um homem deixando cair sua “semente” sobre uma borboleta, que simboliza uma alma, e esta, diga-se de passagem, parece ser a mais antiga representação que se conhece na Grécia da alma-borboleta. Uma passagem de Filóstrato8(sofista e biógrafo dos inícios do século III d.C.), falando das Empusas, Lâmias e Mormólices, “irmãs” das Esfinges e Sereias, afirma que elas amam o prazer erótico e mais ainda a carne humana, e, por isso mesmo, seduzem os jovens que desejam devorar. Os povos do Mediterrâneo viam geralmente a alma sob a forma de um pássaro, o que faz que as Sereias e a Esfinge sejam “músicas”, como todas as suas irmãs que cantam e “encantam” perigosamente. No canto XII, 184ss, da Odisseia, Ulisses consegue escapar à sedução das Sereias, cuja voz irresistível “encantava” suas vítimas para devorá-las. Como sentiam o “desejo”, mas não podiam realizá-lo, por serem peixes, frias, portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue dos que atraíam com seu canto. Era, claro está, a substituição de um “líquido” por outro. Um dístico da Ars Amatoria (Arte de Amar), 2,123-124, de Ovídio, talvez, lato sensu, pudesse ser aplicado a esses vampiros, embora as deusas marinhas, de que fala o poeta, sejam Calipso e Circe, esta última uma grande devoradora: Non formosus erat, sed erat facundus Ulixes, Et tamen aequoreas torsit amore deas: – Ulisses não era bonito, mas era eloquente, isto bastou para que duas divindades marinhas sofressem por ele os tormentos do amor. Também a Esfinge era cantora, “a cruel cantora”, não propriamente porque o enigma fosse proposto em verso hexâmetro (que nunca foi muito apto para o canto), mas porque, sendo “almapássaro” e, portanto, ávida de atrair para destruir, cantava para encantar. Não é por efeitos artísticos que esses monstruosos devoradores aparecem nos monumentos funerários com instrumentos musicais em suas mãos9. É que se tornaram poetas, aedos, inspiradoras, permanecendo sempre, todavia, como temíveis sedutoras dos jovens. Quando se fala ou se escreve sobre o tipo leonino da Esfinge, pensa-se, de imediato, nas Esfinges egípcias, que, aliás, são sem asas e “machos” e, segundo se mostrará, muito diferentes da Esfinge grega, que é feminina e com asas, como aparecem no vale do Eufrates. Foi com esta configuração que a Esfinge, tendo passado por Creta e Micenas, se perpetuou na Europa. A Esfinge cretense e micênica apresenta-se agachada, colada ao solo, e esta última tem as asas abertas, muito semelhantes às das Sereias. Por causa das asas, os gregos viram-na como representação de uma alma e, em função do nome, identificaram-na com a Fix tebana e esta identificação possivelmente contribuiu para fazer da mesma um ser único e não uma pluralidade, uma vez que sua origem “psíquica” teria levado a pensar não em uma pessoa, mas numa espécie. De outro lado, é preciso levar em conta que a Esfinge cretense e a micênica não devem ser, como se tem escrito, puramente ornamentais, mas possivelmente elementos apotropaicos. A Esfinge, porém, é algo mais que uma Seelenvogel, mais que uma simples alma-pássaro. A “cruel cantora” é também um cauchemar, desde que se dê a este hibridismo seu sentido etimológico10de demônio esmagador, opressor, “pesadelo”. A Esfinge é “alma penada”, a dama opressora, ou, mais precisamente, íncubo. Normalmente o monstro surge em meio a um turbilhão. Propõe determinadas perguntas que devem ser prontamente respondidas sob pena de morte ou de paralisia. Com muita facilidade transforma-se frequentemente em seres vários: numa linda mulher, numa princesa, fada, neste ou naquele animal11. Sua atitude, todavia, é aterradora: abraça com violência, aperta, sufoca. Exige amor, mas dificilmente o consegue, pois sua aparência é assustadora e, não raro, hedionda, sórdida. Os que conseguirem responder-lhe às questões propostas, decifrar-lhe os enigmas ou suportar seu peso esmagador, receberão em troca, como vencedores, tesouros, talismãs, conhecimento de determinados segredos e até mesmo um reino e uma rainha. Curioso é que, no mito cristão, o homem que conseguir vencer o íncubo, libertando-se dos sufocantes amplexos do monstro, este, graças ao vencedor, libertar-se-á também de sua condição infernal. Assim, o ser humano, que vitoriosamente foi capaz de suportar a prova, consegue, as mais das vezes, libertar-se do íncubo e revertê-lo à sua primitiva condição humana. Neste caso, o homem quase sempre se casa com a “dama” e o mito se fecha com um romance, em que as reminiscências e influência cristãs são óbvias. Acontece, porém, que o conto se desdobra e o nascimento dos filhos patenteia aos cônjuges a desigualdade de suas origens. Tais desdobramentos, no entanto, não possuem um interesse direto para o estudo da Esfinge helênica. O mito grego não se preocupou com o tema de cunho moral da libertação e reabilitação do íncubo. É bem verdade que Circe, ao unir-se a Ulisses, no canto X da Odisseia, interrompeu seus sortilégios e retomou a forma humana, mas isto ela o fez temporariamente. Após a partida do herói, Circe voltou a ser o que sempre foi, uma bruxa. De qualquer forma, alguns traços do “cauchemar” são constantes no tempo e no espaço. Trata-se de um ser misterioso, sobrenatural, caracterizado como as almas por suas exigências eróticas. Chamando-o Inuus12, isto é, “o que faz sinal com a cabeça para atrair sexualmente”, os latinos compreenderam-lhe bem as intenções. Santo Agostinho mostra com muita nitidez o perigo que os Silvanos e os Pãs representam para a castidade feminina13. Se para o autor de As Confissões o povo chama aos Silvanos e Pãs de íncubos, fica bem explícito que nos fins do século IV d.C. esses monstros eram designados por sua função dominante e não por seu nome mitológico. Para Santo Tomás de Aquino14 tanto o íncubo quanto o súcubo15nada mais possuem de mitológico: são formas por que se manifesta o demônio, que, assim metamorfoseado, pode conseguir apossar-se sexualmente de suas vítimas. Duas observações importantes se tornam necessárias: a primeira é que para os latinos os íncubos são seres masculinos que atormentam as mulheres e para os gregos são monstros-fêmeas que torturam os homens. A segunda é que íncubos e súcubos parecem resultar de duas determinações convergentes: trata-se de espectros, pesadelos, que agem durante o sono diurno ou noturno. A isto se acresce o caráter sagrado que divide em dois o dia ou a noite, momento crítico, uma vez que ele marca uma passagem. “Meio-dia é uma hora sexual”, diz laconicamente Caillois16. Meia-noite talvez o seja ainda mais. Meridiano ou noturno, o íncubo é erótico. Dada a etimologia de íncubo e súcubo, talvez não fosse fora de propósito acentuar que os latinos viram nesses monstros opressores e sufocantes seres machos que atormentavam as mulheres. Os gregos, pelo contrário, personificavam como figuras femininas os cauchemars e as almas penadas que torturavam os homens, porque a afinidade entre as duas noções é muito estreita, quando se analisa o problema de perto, sobretudo quando se trata das Sereias, das Empusas e da Esfinge. É verdade que asErínias, nas obras literárias que chegaram até nós, perderam toda e qualquer característica sexual e tornaram-se apenas as “justiceiras” e o fato de as mesmas não perseguirem Clitemnestra, que matara o esposo Agamêmnon, se baseia numa razão doguénos: Clitemnestra não era do mesmo sangue do marido. Seria, aliás, o caso de se perguntar se primitivamente a paciência das Erínias para com as mulheres culpadas não teve outras razões menos confessáveis... Seja como for, o cauchemar é representado como uma velha de seios caídos. Ambroise Paré, o grande cirurgião francês do século XVI, diz que “Os médicos opinam ser o Íncubo um mal em que as pessoas julgam que estão sendo oprimidas ou sufocadas por um fardo pesado que, principalmente à noite, lhes comprime o corpo. O povo acha que esse peso opressor é uma velha”. Por isso mesmo, no Languedoc, pesadelo se diz chaouche-vielio, velha opressora17. Os trágicos gregos jamais atribuíram à Esfinge tebana esse erotismo ligado aos maus sonhos, mas nós o encontramos alhures, como se verá, pois o íncubo é essencialmente um monstro fêmea que se aproxima do homem para deitar-se sobre ele. O latim conhecia, e já o mencionamos, apenas o incubus masculino; succuba feminino não era um ser demoníaco, mas simplesmente uma mulier adultera, uma subnuba, isto é, uma amante, uma concubina. A ausência de um termo feminino correspondente a incubus está bem de acordo com a mentalidade romana, que jamais poderia conceber uma “íncuba” deitando-se sobre um homem! Não foi em vão que Ambroise Paré aplicou um masculino latino (incubus) à “velha” do pesadelo. Existe ainda, como já se disse, uma grande semelhança entre os monstros opressores e as almas penadas. É que os “sonhadores” interpretam seus visitantes meridianos ou noturnos como “almas do outro mundo”, como espectros. Alguns destes, todavia, se prendem mais a um grupo (monstros opressores) que a outro (almas penadas). Desse modo, as Sereias são essencialmente seres “psíquicos”. Outros se encontram no ponto de tangência entre essas duas ordens de ideias: é o caso de Pã, Empusa e Esfinge. A ambiguidade desta última se deve, possivelmente, a seu nome (a que aperta, sufoca) e à maneira como se apresenta. Suas asas a predestinavam a encarnar uma alma penada, ávida de sangue e de amor, mas também uma sedutora e cantora. Seu corpo de leoa, seu nome de Sufocante predispunham-na a ser um pesadelo opressor. Vampiro ligeiro, por suas asas, perseguia os jovens; vampiro volumoso, por seu corpo, esmagava-os com seu peso. A Sereia revela-se íncubo nos textos literários e particularmente em textos tardios e não através de monumentos, exceto através de um só, de resto muito belo, mas que pertence à época alexandrina, em que a Sereia está prestes a se unir a um camponês adormecido. Com a Esfinge as coisas se passam diferentemente: a literatura transmutou-a num bicho-papão e numa inquiridora. Seu caráter sexual nos textos literários é propriamente nulo, mas, em compensação, a arte figurada nos mostra uma Esfinge sumamente erótica. Marie Delcourt18reuniu e comentou vários monumentos da arte figurada grega, do século VII ao V a.C. (lécitos, isto é, desenhos gravados em vasos; escaravelhos; terracotas; ânforas...), de que se destacam dois lécitos de Atenas, respectivamente dos séculos VI e V a.C., o escaravelho de Corfu, do século VI a.C., e a belíssima Esfinge de Éfeso, embora reconstituída, de data ainda não determinada. Pois bem, nestes últimos quatro monumentos (e a cena não é privativa deles) a Esfinge está a ponto de possuir um jovem. Mas, para não se ficar apenas na arte figurada, citemos o único fragmento da Edipodia, poema atribuído a Cinéton da Lacedemônia e que narrava as aventuras de Laio e Édipo. Por este fragmento se deduz que Hêmon, que era mais belo e mais apetecível que os outros, isto é, que as vítimas anteriores,fora raptado pela Esfinge: Mas aquele que ainda era o mais belo e o mais desejável, o filho querido do irrepreensível Creonte, Hêmon, o divino. Nos monumentos mais recentes, a “cruel cantora” aparece sempre associada a Édipo. Foi sob a influência da literatura que a Esfinge acabou por perder seu caráter de íncubo. No tocante à Esfinge egípcia e sua possível influência sobre a grega, é necessário esclarecer alguns pontos importantes. Do ponto de vista etimológico, o gregos σφίγξ, σφίγγός (sphínks, sphingós) nada tem a ver com o egípcio Shesepuankh, nome por que se designava a Esfinge dos Faraós. Também sob o aspecto iconográfico e sobretudo funcional, a diferença entre ambas é muito grande. Shesepuankh19 significa estátua viva ou estátua da vida, pelo fato de a Esfinge estar voltada para o “nascente” e receber os primeiros raios de Ra-Herakheti, isto é, do Sol vivo. Iconograficamente, Shesepuankh se apresenta invariavelmente com um corpo de leão e cabeça, as mais das vezes, humana, coberta por uma peruca ou nemes, também denominada kleft, de uma palavra copta, que significa capuz: trata-se, na realidade, de uma touca cerimonial, que representa a juba do leão. Eventualmente a nemes pode ser encimada pela coroa do Sul e do Norte, simbolizando, nesse caso, o rei, e é denominada tecnicamente Androesfinge. Aparece ainda com a cabeça de “Carneiro”, é a Crioesfinge, representando Amon-Ra, ou com a cabeça de Falcão, é a Hieracoesfinge, figurando Horus, Ra ou Menthu. Como se observa, trata-se da unívoca presença do Sol. A Esfinge egípcia não é alada, salvo talvez, mas o assunto é discutido, as possíveis exceções da tumba de Tutankhamon e de uma estatueta de Amenhetep III, onde Shesepuankh está coberta no dorso por um manto aparentemente emplumado. Consagrada a Ra-Horus-no-Horizonte, quer dizer, Harmakhis, a Esfinge é um símbolo solar e essencialmente masculino. Não representa propriamente o deus, mas o rei identificado com aquele. Mesmo estampando a cabeça de Hatshepsut, e, note-se, com barbas, Shesepuankh continua a ser masculina, uma vez que essa mulher extraordinária não pode ser considerada politicamente como rainha. Símbolo benfazejo e guardião, atestava o poder real identificado com o Sol da Manhã. O corpo do leão simboliza a força e a irredutibilidade, a capacidade de eliminar os inimigos do rei e guardar a necrópole, as entradas dos templos e o próprio Egito. A cabeça humana “iluminada representa a inteligência. Se na Grécia se notabilizou a Esfinge de Tebas, no Egito a mais célebre e, quiçá, a mais antiga, é a de Giseh. Faz parte do complexo funerário de Khafra (Quéfren). Esculpida numa ponta de calcário da antiga pedreira das Pirâmides, é orientada na direção leste-oeste. Originariamente o monumento representaria Khufu, mas foi terminada por Khafra, embora a cabeça seja daquele. Sua localização no centro da necrópole de Giseh faz da mesma a guardiã do cemitério real da quarta dinastia. É famosa não apenas por suas dimensões gigantescas, mas sobretudo porque evoca Ra-Herakheti vivo, encarnado na imagem real, que se ilumina no nascente, abençoando a necrópole com a luz da evolução universal. Na Grécia, a Esfinge era uma leoa alada com cabeça humana, enigmática e cruel, tipo de monstro terrível, em que se pode ver o símbolo da feminilidade pervertida. A Esfinge de Tebas que propunha enigmas aos transeuntes e devorava os que a eles não respondessem, figuraria a intemperança e a dominação perversa e, como flagelo que devasta o país, simbolizaria as sequências destrutivas do reino de um rei perverso. Todos os atributos da Esfinge são índices da banalização: o monstro só pode ser vencido pelo intelecto, pela sagacidade, antídoto do embrutecimento banal. Presa à terra, está como que cravada na mesma, símbolo da ausência de elevação. Possui asas, mas estas, como as de Ícaro, não podem levála muito longe. O destino da “cruel cantora” é ser tragada pelo abismo. No Egito, um corpo de leão acocorado com uma cabeça humana, de olhar enigmático, emergindo da juba felina. A mais célebre, já se mencionou, se encontra no prolongamento da pirâmide de Quéfren, junto ao Templo do Vale, nas proximidades das mastabas e pirâmides de Giseh, que prolongam sua sombra sobre a imensidão do deserto. A Esfinge vela noite e dia pelas necrópoles gigantes; seu rosto pintado de vermelho contempla o único ângulo do horizonte onde o sol se ergue. Guardiã dos umbrais interditos e das múmias reais, somente ela ouve o cantar cadenciado dos planetas. Vigiando, dia e noite, as entradas da eternidade e atenta a tudo o que foi e a tudo o que será, somente ela contempla o rolar manso dos Nilos celestes e o vaivém das barcas solares. Sua cabeça é a cabeça real, símbolo de um poder soberano, terrível com os rebeldes, benfazeja e protetora dos bons. Sua face barbuda é a própria majestade do Faraó, o deus solar, detentor dos atributos mesmos do leão. Como felino, é irresistível nos combates. Sem vestígio algum de angústia e desespero, invenção exaltada do lirismo romântico, os traços e a posição solidamente acocorada da Esfinge exprimem a serenidade de uma certeza. Nenhuma inquietude, nenhum traço de terror e agonia, como nas máscaras trágicas dos gregos. Seus olhos não se fixam sobre um enigma, cuja grandeza fatal acaba por destruí-la, mas, contemplando o nascer do sol, chegam à grande verdade interior, cuja plenitude recompõe e aquieta. LEÃO DE NEMEIA, em grego Λέων Νέμειος (Léon Némeios). Não se conhece, até o momento, a etimologia de léon: parece tratar-se de palavra não indo-europeia. Νεμέα (Neméa) não é da mesma família etimológica que o verbo νέμειν (némein), “distribuir”, “repartir”, donde atribuir a um rebanho a parte da pastagem para onde o conduz o pastor, daí fazer pastar, conduzir ao pastoreio, mas se trata de um derivado do substantivo νέμος (némos), “bosque”, conforme esclarece Pierre Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, p. 742. O latim tem nemus, “bosque sagrado”, cujo sentido inicial deve ter sido clareira, onde se celebrava um culto. Talvez se pudesse fazer uma aproximação com o sânscrito námah, “inclinação, homenagem”. Pois bem, em Nemeia, cidade da Argólida, havia um bosque, onde Héracles matou o terrível leão. Também o Leão de Nemeia teria sido criado pela vingativa Hera ou à mesma emprestado pela deusa-Lua Selene, com a finalidade de impor a Héracles mais uma tarefa árdua e penosa. Escondido num bosque, nas proximidades de Nemeia, o monstro devastava toda a região, devorando-lhe os habitantes e os rebanhos. Como o animal se entocasse numa caverna com duas saídas, era difícil aproximar-se dele. O herói atacou-o a flechadas, mas inutilmente, pois seu couro era invulnerável. Fechando uma das saídas, o filho de Zeus o tonteou com um golpe de clava e, agarrando-o com seus braços possantes, o sufocou. Arrancou-lhe a pele, com ela cobriu os ombros, tornando-os também invulneráveis. Da cabeça da fera Héracles fez um capacete. Foi durante a caçada ao Leão de Nemeia que se intercala o episódio de Molorco, um pobre camponês que vivia perto de Nemeia e cujo filho único havia sido vítima do Leão. Quando Héracles passou pelo local para combatê-lo, o camponês o acolheu com tal hospitalidade (talvez já o reconhecesse como um deus), que desejou sacrificar-lhe o único bem material que possuía, um carneiro. O herói o impediu e disse-lhe para aguardar trinta dias. Se, nesse prazo, não regressasse da perigosa missão, poderia considerá-lo morto e fosse então o animal sacrificado à sua memória. Se, pelo contrário, o visse retornar vitorioso, que o carneiro fosse oferecido como oblação a Zeus Salvador. Passados os trinta dias, e não tendo o herói aparecido, o camponês o julgou morto e se apressou em fazer os preparativos para o sacrifício. Mas, antes que o mesmo fosse consumado, o filho de Alcmena apareceu revestido com a pele do Leão. O carneiro foi oferecido a Zeus Salvador e, no mesmo local do sacrifício, Héracles instituiu em honra de seu pai Zeus os Jogos Nemeios, que se realizavam, como os Olímpicos, de quatro em quatro anos. Héracles levou o corpo esfolado do Leão para Micenas e Euristeu ficou tão assustado com a bravura e coragem do herói, capaz de liquidar um monstro tão horrendo, que lhe proibiu, doravante, a entrada na cidade. Os “espólios” resultantes dos Trabalhos do herói tinham que ser depositados junto às portas de Micenas. Para perpetuar a façanha de Héracles, Zeus transformou o Leão de Nemeia em constelação. Poderoso e soberano, símbolo solar e extremamente luminoso, o rei dos animais possui em alto grau as qualidades e os defeitos inerentes à sua espécie. Encarnação do Poder, da Sabedoria e da justiça, deixa-se arrastar, em contrapartida, pelo excesso de orgulho e segurança, que lhe conferem uma imagem de Pai, Senhor, Soberano. Ofuscado por seu próprio poder, cego pela própria luz, torna-se um tirano, acreditando-se um protetor. Pode ser maravilhoso, tanto quanto insuportável: nessa polaridade oscilam suas múltiplas acepções simbólicas. Krishna é o leão entre os animais; Buda é o leão dos Shakya; Cristo é o Leão de Judá; Ali, genro de Maomé, exaltado pelos Xiitas, é o leão de Alá. O Pseudo-Dionísio Areopagita procura explicar por que a teologia atribui a certos anjos o aspecto leonino: a forma de leão traduz a autoridade e a força invencível das santas inteligências; o esforço soberano, veemente e indomável para imitar a majestade divina e a capacidade celeste, que é confiada aos anjos, de disfarçar o mistério de Deus numa augusta obscuridade, escondendo de olhos indiscretos os sinais de seu relacionamento com a divindade, como o leão, que, segundo se conta, apaga os vestígios de seus passos, quando perseguido pelo caçador. No Apocalipse 5,5, Cristo é o Leão de Judá, que venceu de tal maneira, que pôde abrir o livro e desatar os sete selos. Em Ezequiel 1,4-15, o carro de Javé aparece com quatro animais, semelhantes a carvões ardentes, tendo cada um quatro faces, sendo uma de leão. Símbolo da justiça, o Leão é a garantia do poder material ou espiritual. É, desse modo, que serve de trono ou montaria a numerosas divindades, assim como adorna o trono de Salomão, dos reis da França ou dos bispos medievais. Símbolo do Cristo-Juiz e do Cristo-Doutor, transporta-lhe o livro sagrado. É nesta mesma perspectiva que figura como emblema do evangelista São Marcos. Símbolo, por outro lado, da soberba e da arrogância, da impetuosidade e do apetite incontrolável, figura uma pulsão social pervertida: a tendência à dominação despótica, cuja tônica é a imposição brutal do autoritarismo e da força. O rugido profundo do leão e sua goela aberta conduzem, no entanto, a um outro simbolismo, não mais solar e luminoso, mas sombrio e ctônio. Com esta visão inquietante, o leão se assemelha a outras divindades infernais que tragam o dia no crepúsculo e o expelem na aurora. No Egito, leões eram representados com frequência em duplas, dorso a dorso: cada um deles olhava o horizonte oposto, um a leste, outro a oeste. Figuravam, assim, os dois horizontes e o curso do sol, de uma extremidade à outra da terra. Vigiando, desse modo, o transcurso do dia, representavam o ontem e o amanhã. Destarte, a viagem infernal do sol o conduzia da goela do Leão do Ocidente para a do Leão do Oriente, de que renascia cada manhã, tornando-se os dois leões os agentes fundamentais do rejuvenescimento do astro. E, de uma forma mais ampla, configuravam a renovação da força e do vigor que assegura a alternância do dia e da noite, do esforço e do repouso. Como se pode observar, expelindo a cada manhã o sol, a visão ctônia do Leão foi exorcizada e a imagem da morte tornou-se penhor de vida. É exatamente isto que se observa em outras culturas, em que o leão, devorando periodicamente o touro, expressa a dualidade antagônica fundamental do dia e da noite, do verão e do inverno. Em síntese, traduzindo não apenas o retorno do sol e o rejuvenescimento das energias cósmicas e biológicas, o leão tornouse o símbolo da ressurreição, merecendo, com isso, figurar nos túmulos cristãos. 1. RESENDE, Garcia de. Crônica de D. João II. Cap. 114, p. 151-152, ed. de 1798. 2. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 482. 3. JUNG, C.G. Métamorphoses et tendances de la libido. Paris, 1927, p. 174-205. 4. DIEL, Paul. Op. cit., p. 208. 5. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural Um. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 233ss. 6. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 104ss. 7. Irmã de Efialtes, irmã das Sereias, porque, nas mais antigas concepções míticas, rodos os monstros (Sereias, Erínias, Gigantes... e Efialtes é um deles) nasciam nas “profundezas” do seio de Geia, ou, mais claramente, do inconsciente. Só mais tarde, quando se organizaram as genealogias, é que se lhes atribuíram pai e mãe, nos moldes das gerações humanas. 8. Vida de Apolodoro, 4,25. 9. DELATTE, A. La musique au tombeau. In: Rev. Archéol. Paris, 1912, t. XXI, p. 318-322. 10. O primeiro elemento de “cauchemar” provém do verbo latino calcare, calcar com os pés, pisar e o segundo é a raiz germânica mar (o alemão moderno tem Mahr), fantasma noturno, vampiro; cf. o inglês nightmare, com o mesmo sentido. 11. Na comédia aristofânica As Rãs, v. 289-294, o cauchemar Empusa transforma-se sucessivamente em burro, em linda mulher e em cão. 12. Inuus, Ino, é um deus, como se pode ver na Eneida, 6,775, identificado com Pã e Fauno, e sinônimo de Incubus, mas cuja origem e nome são, até o momento, inexplicáveis. Sérvio Mauro Honorato, gramático latino dos fins do século IV d.C., comentando a passagem supracitada do poema épico de Vergílio, tentou explicar o “sentido” da palavra: Inuus ab ineundo passim cum omnibus animalibus, unde et incubus dicitur (Ad Aen., 6,755): “Chamase ‘Ino’, porque se une indistintamente a todos os animais, daí seu nome de íncubo”. 13. Creberrima fama est multique se expertos uel ab eis qui experti essent, de quorum fide dubitandum non essent, audisse confirmant Siluamos et Panes, quos uulgo incubos uocant, ímprobos saepe exstitisse mulieribus et earum appetisse ac peregisse concubitum (De Civ. Dei, 15,23): “Conta-se, com muita insistência e muitos atestam tê-lo experimentado ou ouvido de testemunhas, de cuja fidelidade não se poderia duvidar, a afirmação de que também elas tiveram a mesma experiência de que Silvanos e Pãs, vulgarmente denominados íncubos, se terem apresentado com más intenções a mulheres e com elas terem consumado a união carnal”. 14. Summa Theol. I, LI, art. 6, n. 3. 15. Etimologicamente, íncubo provém do acusativo singular incubu, de incubus, e este do verbo incubare, “estar deitado sobre”; súcubo é formado à base do verbo succubare, “estar deitado sob, por baixo”. Donde, do ponto de vista mítico, íncubo é, stricto sensu, um ser feminino, que se deita sobre o homem para usufruir dos prazeres do amor e osúcubo, o ser também feminino, que se deitasobo homem com a mesma finalidade. Lato sensu, no entanto, e “popularmente” falando, o íncubo seria uma espécie de demônio que se reveste de um corpo masculino para usufruir dos prazeres do amor com uma mulher adormecida ou transportada para a assembleia das bruxas, e súcubo, o demônio que toma a forma de mulher para, deitando-se por baixo do homem, gozar dos mesmos prazeres. 16. CAILLOIS, R. Les démons de midi. In: Revue d’histoire des religions. Paris, 1937, t. 115 e 116. 17. Ao menos no interior do Estado do Rio de Janeiro era obrigatória, entre o povo, a seguinte “oração”, antes de se dormir: Pesadeira da mão furada, do dedo escarrapachado, nesta casa tem quatro canto, cada canto tem um santo. Por Nossa Senhora, Pesadeira, desta casa vai embora. 18. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 119ss. 19. As informações sobre a Esfinge egípcia me foram transmitidas, em boa parte, pelo egiptólogo e amigo, Prof. Francisco José Neves, a quem agradecemos. CAPÍTULO XII Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (Do Rio Nilo a Hécate) Da união de Oceano e Tétis nasceram não só os rios, de que vamos destacar o Nilo, Alfeu, Aqueloo e Escamandro, mas também “as três mil Oceânidas”, dentre as quais falaremos de Métis, Eurínome e Calipso; as demais, ou possuem muito pouca importância no mito, ou das mesmas já se deu uma ideia ou se falará mais adiante. NILO, em grego Νεῖλος (Neîlos). Guérios1dá-lhe como etimologia o egípcio Nîl, “(rio) azul”; remete ao sânscrito nila, “azul”, e chama a atenção para o português anil, do árabe anîl, com o mesmo sentido. Na tradição helênica, Nilo é o deus do Nîl, o grande rio egípcio. Muito cedo, porém, Nîl passou a fazer parte do mitologema de Io, a jovem sacerdotisa de Argos, consagrada a Hera, eque Zeus amou, fazendo-a mãe de Épafo. É a esta mesma Io, que, apesar de metamorfoseada em vaca, a colérica deusa Hera perseguiu implacavelmente, lançando contra a mesma um tavão, que só a deixou em paz, quando Io atravessou o Bósforo (travessia da vaca) e ganhou o Egito. Lá, tocada por Zeus, deu à luz a Épafo. Este desposou Mênfis, filha do rio Nilo. Dessa união nasceu Líbia, mãe da raça de Agenor e Belo. Os gregos representavam o Nilo como um deus que havia fertilizado o Egito. ALFEU, em grego Αλφειός (Alpheiós), que provém de alphós, “branco, alvo, claro”, em latim albus, com o mesmo significado, é o deus do rio homônimo, que corre no Peloponeso, entre a Élida e a Arcádia. Diversos mitos relatam as tentativas do deus-rio para conquistar Ártemis e Aretusa, uma das ninfas que fazia parte do cortejo da deusa. Como esta lhe resistisse às investidas amorosas, Alfeu decidiu conquistá-la à força. Um dia em que a irmã de Apolo e suas ninfas celebravam uma festa junto à foz do rio, este tentou aproximar-se dela, mas a deusa enlameou o rosto e o deus não conseguiu reconhecê-la. Uma outra versão conta que Alfeu a perseguiu até a ilha de Ortígia, que se encontra junto ao porto de Siracusa. Como também dessa feita nada conseguisse, passou a acossar uma das ninfas caçadoras de Ártemis, Aretusa. Para segui-la, tornou-se também caçador, como a ninfa, que fugiu para Siracusa, refugiando-se em Ortígia. Perseguida mesmo assim pelo impetuoso “caçador”, foi metamorfoseada em fonte. Por amor, Alfeu misturou suas águas às da fonte de Aretusa. AQUELOO, em grego Αχελῷος (Akhelôos), cuja fonte etimológica, o que é pouco provável, seria o radical *âqwâ, “água”. Rio da Etólia e da Acarnânia era o mais célebre e o mais venerado de toda a Grécia. Foi personificado como deus-rio e considerado o mais velho dos “três mil” filhos de Oceano e Tétis. A princípio, segundo se narra, o rio chamava-se Forbas, que era, na realidade, um herói tessálio, da raça dos lápitas, mas um jovem, Aqueloo, ao atravessá-lo, foi ferido por uma flecha, caindo no rio, que recebeu seu nome. Aqueloo teve muitosamores: com Melpômene foi pai das Sereias e, depois, de outros amores seus nasceram várias fontes, como Pirene em Corinto, Castália em Delfos, Dirce em Tebas... O deus-rio da Etólia está ligado também ao ciclo de Héracles. Vizinho de Eneu, rei de Cálidon, pediulhe a mão da filha Dejanira. Mas, como deus-rio, Aqueloo podia metamorfosear-se sobretudo em dragão e touro, o que assustou a princesa, que preferiu Héracles, que também a desejava por esposa. O deus-rio não quis abrir mão da jovem, tendo-se, pois, travado um combate terrível entre os dois pretendentes. Usando de seus poderes, Aqueloo transformou-se em touro, mas Héracles quebrou-lhe um dos chifres. O deus-rio deu-se por vencido e cedeu ao herói o direito sobre a filha de Eneu, mas quis o chifre de volta. Foi-lhe então oferecido o corno da cabra Amalteia, que despejava em abundância flores e frutos. Aqueloo, como todo e qualquer deus, era vingativo. Certa feita, quatro ninfas sacrificavam aos deuses em suas margens e se esqueceram de colocá-lo entre as divindades invocadas. Aqueloo inflou suas águas, transbordou e arrastou as quatro ingratas para o mar, transformando-as nas ilhas Equínades. A quinta ilha do grupo, Perimele, era uma jovem que o deus-rio havia amado e que do mesmo estava grávida. Irritado com Perimele, seu pai Hipódamas, já prestes a nascer o filho de Aqueloo, lançou-a no rio. Este pediu a Posídon para transformá-la em ilha, surgindo a quinta Equínade. No momento em que Héracles lhe quebrou um dos chifres, Aqueloo, perdendo grande parte de sua força e vigor, deu-se por vencido. O chifre, o corno, tem o sentido de grandeza, de superioridade, de elevação. Simboliza, por isso mesmo, o poder, a autoridade, características básicas de quem o possui, como os deuses Dioniso, Apolo Carnio2 e o rei Alexandre Magno, que tomou o emblema de Amon, o deus-carneiro, chamado, no Livro dos mortos, o Senhor dos dois cornos. Reis e guerreiros de culturas diversas, nomeadamente os gauleses, tinham chifres em seus capacetes. É mister levar em conta, no entanto, que o poder atribuído aos cornos não é apenas de ordem temporal. Os chifres do carneiro são de caráter solar e os do touro, de caráter lunar, dado o poder de fecundar do astro e do satélite, e de ambos os animais que os representam. A associação da lua e do touro é bem atestada entre os sumérios e os hindus. A lua é designada no Camboja como um corno perfeito, em sua fase crescente. O Mahâbhârata fala do corno de Çiva, já que este se identifica com sua montaria, o touro Nandim. Os chifres dos bovinos são atributo da Grande Mãe divina. Onde quer que apareçam, seja nas culturas neolíticas, na iconografia ou ornamentando os ídolos de forma divina, os cornos marcam a presença da Grande Deusa da fertilidade. Evocam os sortilégios da força vital, da criação periódica, da vida inexaurível e da fecundidade, vindo assim a simbolizar, analogicamente, a majestade e os obséquios do poder real. A exemplo de Dioniso, os chifres de Alexandre Magno retratam-lhe a autoridade e o gênio, que são de origem divina, e que deverão assegurar a prosperidade de seu império. Se o chifre, as mais das vezes, é um símbolo lunar e portanto feminino, como o é o do touro, pode tornarse também um emblema solar, masculino, como o chifre do carneiro. Este último aspecto explica, aliás, que o chifre é um símbolo de virilidade. O grego Κέρας (kéras), o sânscrito linga e o latim cornu não significam apenas chifre, mas também força, coragem, potência3. É assim que, por sua força e função natural, o chifre retrata o pênis. Mas, na medida em que o chifre designa o poder, a este se conjuga a agressividade. Agni possui cornos imperecíveis, aguçados pelo próprio Brahma e o chifre acabou por traduzir um poder agressivo do bem ou do mal. Nesta relação de cornos dos animais com chefe político ou religioso existe uma intenção clara de apropriação mágica dos objetos simbólicos. O chifre, o troféu traduzem a exaltação e a posse da força. O soldado romano, após uma grande vitória, ornamentava o capacete com um corniculum, isto é, com um chifrinho. Na tradição judaico-cristã o chifre simboliza a força e tem o sentido de raio de luz, de clarão, de relâmpago. Quando Moisés desceu do Sinai, seu rosto lançava raios, que a Vulgata traduz em seu sentido próprio por cornos (Ex 34,29-30.35). Este é o motivo por que Michelangelo Buonarroti, por exemplo, representou Moisés com chifres, com aspecto de crescente lunar. Os quatro cornos do altar dos holocaustos colocados no Templo designavam as quatro direções do espaço, isto é, a extensão ilimitada do poder de Deus. Nos Salmos o corno simboliza a força de Deus, que é a mais poderosa defesa daqueles que o invocam: Eu me abrigo nele, meu rochedo, meu escudo e meu corno de salvação (Sl 17,2-3). Pode simbolizar igualmente a força altaneira e agressiva dos arrogantes, cuja pretensão é extirpada por Javé: Não levanteis o chifre, não ergais muito alto vosso chifre, não faleis, esticando a espinha (Sl 74,6). Aos justos, pelo contrário, Javé dará força: Ali farei germinar um chifre para Davi (Sl 131,17). No que se refere à expressão quebrar os cornos a ou de alguém, que, sem nenhuma conotação sexual, se popularizou, já se encontra no Antigo Testamento (Jr 48,25; Lm 2,3; Sl 75,11... ) com o sentido preciso de destruir o poder, esmagar a soberba, exatamente como na acepção popular de “abater a insolência, humilhar a arrogância”. E já que o corno é o símbolo de “força e poder”, por uma simples associação foi transformado em poderoso elemento apotropaico: erguendo-se um chifre ou o esqueleto inteiro da cabeça bovina no alto de uma vara, dominando a plantação, tem-se um excelente amuleto contra a esterilidade e forças invisíveis e inimigas. O chifre é altamente benéfico à lavoura, afasta as pragas, é portador de chuva e protege contra o mau-olhado. Daí o uso de amuletos, imitando chifres, como defesa contra o mau-olhado. “Um dos amuletos mais poderosos é uma variante da figa, a chamada mão cornuda, os dedos indicador e mínimo estendidos paralelamente, simulando chifres, e os demais dobrados sobre a palma. É de uso imemorial e os modelos, em ouro e prata, reaparecem como alfinetes de gravata, barretes, berloques, com refinamentos de lavor artístico”4. No que diz respeito à Cornucópia ou Corno da Abundância, é a mesma, na tradição greco-latina, o símbolo da fecundidade e da felicidade. Cheia de grãos e de frutos, aberta em cima e não embaixo, como na arte moderna, é o emblema de Baco, Ceres, Rios, Abundância, Constância e Fortuna. Zeus, brincando, quebrou o chifre da cabra Amalteia, que o aleitava, mas, para compensá-la, prometeu-lhe que este corno se encheria de todos os frutos, quando ela o desejasse. A Cornucópia é, pois, o símbolo da profusão gratuita dos dons divinos. Uma variante, já exposta linhas atrás, faz da Cornucópia o corno da mesma cabra Amalteia, mas ofertado por Héracles a Aqueloo, cujo chifre fora quebrado pelo herói, na luta pela posse de Dejanira. Com o correr do tempo, a Cornucópia tornou-se, mais que o símbolo, um atributo de felicidade pública, da diligência e da prudência, que são a fonte da abundância, da esperança e da equidade. Numa visão contemporânea, os cornos podem ser considerados também como uma imagem de divergência, simbolizando, assim, a ambivalência e forças regressivas: o demônio é apresentado com chifres e cascos bifurcados. Em contraposição, todavia, podem representar abertura e iniciação, como no mito do carneiro de velo de ouro. Jung, com a perspicácia que lhe é peculiar, percebeu uma outra ambivalência no simbolismo dos cornos: representam, de um lado, um princípio ativo e masculino, por sua forma e força de penetração; de outro, um princípio passivo e feminino, por sua abertura, em forma de receptáculo. Reunindo os dois na formação da personalidade, o ser humano se assume integralmente, chegando à maturidade e à harmonia interior, o que não deixa de ter certa relação com a polaridade Sol-Lua, há pouco citada. ESCAMANDRO, em grego Σκάμανδρος (Skámandros), talvez se relacione com o indo-europeu (*s)qamb, “ondular, curvar-se”, e, nesse caso, seria “sinônimo etimológico” do também deus-rio e seu aliado, Símois, em grego Σιμόεις (Simóeis), da raiz indo-europeia *suîmo“sinuoso, contornado”, mas trata-se de mera hipótese. Escamandro é o mais importante deus-rio da planície troiana. Seu epíteto de Xanto, “louro, avermelhado” é devido à cor de suas águas, ou, segundo uma variante, ao fato de as mesmas tingirem de vermelho o velo das ovelhas que nelas se banhavam. Conta-se ainda que Afrodite, antes de submeter-se ao julgamento de Páris, mergulhou seus cabelos no rio; para dar-lhes reflexos dourados. O nome e a origem do rio Escamandro são popularmente explicados da seguinte maneira: Héracles, estando em Troia, teve sede e pediu a seu pai Zeus que lhe indicasse uma fonte. O pai dos deuses e dos homens fez brotar da terra uma pequena corrente, mas o herói achou-a insuficiente para mitigar-lhe a sede e, por isso mesmo, cavou a terra (em grego σκάπτειν, skáptein, é cavar) e encontrou um lençol de água, que se chamou a fonte de Escamandro. Na Ilíada, já se comentou (e a repetição visa tão somente a dar unidade ao mito), farto de receber tantos cadáveres em suas águas, o deus-rio quis lutar com Aquiles. Transbordou e ameaçou seriamente afogar o filho de Tétis. Foi necessário a intervenção de Hefesto que, com seu sopro ígneo, obrigou-o a voltar a seu leito. Tomados em bloco, os rios têm uma simbologia muito precisa e significativa. O símbolo do rio, do escoamento das águas, é, simultaneamente, o da possibilidade universal e do escoamento das formas, da fertilidade, da morte e da renovação. A corrente figura a vida e a morte. O rolar das águas para o mar, sua cheia ou a travessia de um rio para outro confluem, no fundo, para uma bacia comum. A descida para o Oceano é o reencontro das águas, o retorno à indiferenciação, o acesso ao Nirvana; a cheia é o retorno à fonte divina, ao Princípio; a travessia é a luta contra os obstáculos que separam dois princípios: o mundo fenomenal e o estado incondicionado, o mundo sensível e o estado de desapego. O rio que vem do alto da tradição judaica é o das bênçãos e das influências celestiais. Este rio do alto desce verticalmente, de acordo com o eixo do mundo, o axis mundi; espraia-se depois, horizontalmente, a partir do centro, seguindo as quatro direções cardeais, até as extremidades do mundo: trata-se dos quatro rios do Paraíso terrestre. O rio que desce do alto é também o Ganges, o rio que purifica e catarsiza, porque escorre da cabeleira de Çiva. Símbolo das águas superiores, o Ganges é ainda, enquanto rio purificador, instrumento de liberação. Na iconografia, o Ganges e o Iamuna são atributos de Varuna, como senhor das águas. A corrente do rio sagrado hindu é tão axial, que se denomina a corrente que circula por um tríplice caminho, percorrendo os três níveis, o celestial, o telúrico e o ctônio. Para os gregos os rios, filhos de Oceano e, por sua vez, pais das Ninfas, eram semidivinizados e, por isso mesmo, objetos de culto. Ofereciam-se-lhes sacrifícios, lançando-se em sua correnteza touros e cavalos vivos. Dotados de uma grande energia sexual, os rios legaram ao mito uma enciclopédia de amor e uma constelação de filhos. Como qualquer potência fertilizante, cujas decisões e atos são misteriosos, podiam submergir, irrigar, fecundar e inundar; conduzir a barca em seu bojo macio ou fazê-la soçobrar. O piedoso Hesíodo, por isso que os rios inspiravam veneração e medo, aconselhava não atravessá-los, senão após uma prece fervorosa e determinados ritos de purificação: Não atravessem teus pés as magníficas correntes dos rios eternos; antes, com os olhos cravados em seu curso, faze uma prece e lava tuas mãos nas águas frescas e límpidas. Quem atravessa um rio antes de purificar as mãos e lavar a consciência, atrai sobre si a cólera dos deuses, que, em seguida, o castigarão. (Trab., 737-741) Os próprios nomes, alguns em etimologia popular, diga-se de passagem, por que são designados os rios do Hades, expressam simbolicamente os tormentos que aguardam os condenados: Aqueronte o rio das dores; Cocito, o rio dos gemidos e das lamentações; Estige, o gélido rio dos horrores; Piriflegetonte, o rio das chamas inextinguíveis; e Lete, o rio do esquecimento (V. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega). Em quase todas as culturas sempre existiram rios que simbolizavam e ainda simbolizam o grande rio cósmico, como o Ganges na Índia; o Nilo, no Egito; o Severn, na Inglaterra; o Jordão, na Palestina; o Tibre, na Itália... Descendo das montanhas, serpeando através das planícies e perdendo-se nos mares, os rios configuram a existência humana no seu fluir, na sucessão de ânsias, desejos, sentimentos, paixões e a multiplicidade de seus desvios. A esse respeito é significativo o pensamento de Heráclito: Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles... Dispersam-se e... reúnemse... vêm junto e junto fluem... aproximam-se e afastam-se (Fr. 12, Diels)5. Platão interpreta este fragmento de Heráclito como “a absoluta continuidade da mudança em cada uma das coisas”: Heráclito diz algures que tudo está em mudança e nada permanece parado e, comparando o que existe à corrente de um rio, diz que não se poderia penetrar duas vezes no mesmo rio (Crátilo, 402a)6. Penetrar num rio é para a alma entrar num corpo. A alma seca é aspirada pelo fogo, a alma úmida é sepultada no corpo. Possuindo uma existência precária, o corpo flui como a água e cada alma possui seu corpo particular, esta parte efêmera de sua existência, o seu rio. Transpostos os rios, vejamos agora as Oceânidas. MÉTIS, em grego Μῆτις (Mêtis), palavra que é da mesma família que μέτρον (métron), “medida”. Métis é a “sabedoria, a prudência”. O sânscrito tem mâti , e o latim, metiri, “medir”, no sentido físico e moral. Foi a primeira esposa ou amante de Zeus e foi ela quem lhe deu uma droga, graças à qual Crono devolveu todos os filhos que havia engolido. Tendo ficado grávida, Úrano e Geia revelaram a Zeus que Métis teria uma filha e mais tarde um filho, que o destronaria, como ele próprio fizera com o pai Crono. A conselho de Geia ou da própria esposa, Zeus a engoliu e no tempo devido nasceu Atená, das meninges do deus. EURÍNOME, em grego Εὐρυνόμη (Eurynóme), Εὐρύς (eurýs), largo, amplo, como o verbo Εὐρύνειν (eurýnein), ampliar, dilatar, νόμος (nómos), lei, direito, donde Eurínome significa “a que tem ou gere amplos direitos”, a que comanda amplamente. Anteriormente a Crono, reinava com Ofíon (uma espécie de monstro-serpente) sobre os Titãs nas encostas do monte Olimpo. Tendo assumido o poder, Crono lançou o casal no Tártaro ou, conforme uma tradição talvez mais antiga, Ofíon e a esposa se refugiaram no mar, onde, com Tétis, Eurínome ajudou a acolher Hefesto, que havia sido precipitado do céu. Amada por Zeus, foi mãe das Cárites: Aglaia, Eufrósina e Talia. Eurínome possuía um templo muito antigo e famoso nos arredores de Figalia, na Arcádia. O santuário ficava no meio de um bosque de ciprestes e a estátua que representava Eurínome estampava a figura de mulher até as cadeiras, mas daí para baixo terminava em peixe. CÁRITES, em grego Χάριτες (Khárites), cujo singular é χάρις (kháris), e o sentido é “que brilha, que alegra”, do verbo χαίρειν (khaírein), “alegrar-se”, daí o significado de cada uma delas: Aglaia, brilho, beleza; Eufrósina, alegria, prazer; Talia, propriamente rebento, renovo, abundância. Em princípio, as Cárites são divindades da beleza, da alegria de viver e é bem possível que, originariamente, tenham sido deusas da vegetação. São representadas quase sempre nuas ou cobertas apenas com leves tecidos ou véus flutuantes. São jovens, lindas, esbeltas e seguram-se normalmente pelos ombros: duas olham numa direção, mas a do meio olha na direção oposta. Sua função principal é alegrar a vida, os homens e os deuses. Habitam o Olimpo, em companhia das Musas e com estas formam, frequentemente, coros. Fazem parte do cortejo de Afrodite, Eros e Dioniso. Exercem influência benéfica sobre os trabalhos intelectuais e as obras de arte e, por isso mesmo, acompanham a deusa Atená, protetora inconteste dos trabalhos femininos e da atividade intelectual. Os latinos chamam-nas Gratiae, as Graças. Já que se falou em latinos, é bom lembrar que o grego Χάρις (kháris) nada tem a ver, nem etimológica nem semanticamente, com o latim caritas,-tatis, de cujo acusativo caritate nos veio caridade. Caritas (a grafia charitas é simplesmente absurda) significa “preço alto, carestia”. Na medida em que caritas traduziu o grego αγάπη (agápe), afeição, estima, é que, na linguagem cristã, passou a significar “afeto, estima, ternura, caridade”. CALIPSO, em grego Καλυψώ (Kalypsó), do verbo Καλύπτειν (kalýptein) , “cobrir, esconder”, donde “a que esconde”. Há duas personagens míticas com este nome: a Oceânida Calipso, de que fala Hesíodo, Teog., 359, e que a denomina ἱμερόεσσα(himeróessa), isto é, “a que desperta o desejo”, e a Ninfa Calipso, “a que esconde”, no caso a Ulisses, e que mereceu ser cantada pelo gênio de Homero, Odiss., VII, 254-266. Se a Oceânida não tem um mito próprio, a Ninfa Calipso o possui. Já que se está com a mão na massa, vamos aproveitar a ocasião para relatá-lo. Calipso é, pois, uma ninfa, segundo uns, filha de Atlas e de Plêione; segundo outros, de Hélio e de Perseida, o que a faria irmã de Eetes e de Circe. Vivia na ilha de Ogígia que os mitógrafos localizam no Mediterrâneo ocidental, em frente a Gibraltar. A lindíssima ninfa acolheu o náufrago Ulisses e por ele se apaixonou. Habitava uma gruta profunda com amplos salões, que se abriam para jardins naturais, um bosque sagrado com grandes árvores e fontes que serpeavam por entre a relva. Em todas as dependências e em plena natureza, ninfas, que lhe faziam companhia e a ajudavam na arte de fiar e tecer, trabalhavam cantando. A Odisseia conta o quanto Calipso amava a Ulisses. Reteve-o durante sete longos anos oferecendo-lhe em vão a imortalidade. O herói, desejoso de ver ao menos o fumo que se erguia de sua terra natal, não se deixou seduzir. Ítaca, sua pátria, Telêmaco, seu filho, Penélope, sua esposa, e Ulisses media na saudade a saudade de quanto lhes queria... Dadas as súplicas de Atená em favor de seu protegido, Zeus enviou Hermes à ilha com ordens a Calipso para que libertasse Ulisses e o deixasse partir7. Como derradeira homenagem, a ninfa lhe deu madeira para fabricar uma jangada, provisões para a viagem indicou-lhe os astros que o guiariam. Tradições posteriores dão a Ulisses e Calipso um filho chamado Latino, ou ainda Áuson, epônimo de Ausônia, nome antigo e poético da Itália. Outras atribuem-lhes não um, mas dois filhos: Nausítoo e Nausínoo, o que, evidentemente, lembra ναῦς (naûs), navio, barco. Uma vez que Hiperíon e Teia muito pouco representam para o mito e que seus filhos Hélio e Selene serão estudados bem mais adiante, resta-nos Eos, que será focalizada a seguir, uma vez que também Crio e Euríbia e bem assim seus filhos Astreu, Palante e Perses nenhuma importância possuem na mitologia. De Astreu e Eos nasceram os ventos Zéfiro, Bóreas e Noto. EOS, em grego Ἠώς (Eós) é a Aurora personificada, adorada por todos os povos indo-europeus. Etimologicamente se prende à raiz *awes, “brilhar”, sânscrito uÓas, “aurora”, dórico ἀώς (aós), latim aurôra, alemão Ost, “leste”, onde nasce a luz. Aurora é representada como a deusa de dedos cor-de-rosa, como lhe chama Homero, ῤοδοδάκτυλος ἠώς (rhododáktylos eós), a aurora de dedos cor-de-rosa. Como tal, sua principal função é abrir as portas do céu ao carro do Sol, descerrando as pálpebras do dia. Todo o seu mito é um tecido de amores. A princípio, unida a Ares, provocou os ciumes de Afrodite, que se vingou, inspirando-lhe uma paixão louca e eternamente insatisfeita por heróis e simples mortais. O primeiro desses grandes amores foi o filho de Posídon, o gigante Oríon, por ela raptado e levado para a ilha de Delos, aliás com grande desgosto dos deuses. Tendo o filho de Posídon tentado violentar Ártemis, esta enviou contra ele um escorpião que o picou no calcanhar, causando-lhe morte instantânea. Pelo serviço prestado a Ártemis, o escorpião foi transformado em constelação, tendo aliás Oríon sorte análoga. Raptou, em seguida, Céfalo, filho de Dêion ou de Hermes, e levou-o para a Síria. Como Céfalo não lhe correspondesse ao amor e a tivesse abandonado, Eos inspirou-lhe dúvidas cruéis acerca da fidelidade da esposa Prócris, ciumes que, por sinal, se tornaram recíprocos e levaram a linda Prócris a terminar seus dias tragicamente. Seu terceiro amor foi Titono, filho de Ilo e Plácia ou Leucipe, mas, em todo caso, de raça troiana. Titono foi levado para a Etiópia, o país do Sol, nos velhos mitos. Deu-lhe dois filhos, Emátion e Mêmnon. Este último, seu filho preferido, reinou sobre os Etíopes, mas acabou sendo morto por Aquiles, na Guerra de Troia. Eos havia pedido e obtido de Zeus a imortalidade para Titono. Ao formular o pedido, porém, se esqueceu de solicitar para o mesmo a juventude eterna e a beleza. Com o tempo, o outrora belo e vigoroso Titono chegou à mais lamentável decrepitude. A deusa, aborrecida, trancou-o em seu palácio, onde o “imortal” ancião levava uma vida miserável. À força de envelhecer, Titono perdeu seu aspecto humano e foi metamorfoseado em uma cigarra inteiramente dessecada. De Eos e Astreu, como se viu, nasceram os ventos Zéfiro, Bóreas e Noto. Para o mito, o único importante é o segundo. BÓREAS, em grego Βορέας (Boréas). É possível que Bóreas signifique “vento da montanha”, em indo-europeu *gworeiâs, sânscrito giri, “montanha”, já que o mesmo sopra dos montes da Tessália e dos Bálcãs. Personificado, Bóreas é o deus do Vento do Norte. Seu habitat é a Trácia, país frio por excelência. É representado ordinariamente como um demônio alado, barbudo, de grande vigor físico. Aparece coberto com uma túnica muito curta e plissada. Da raça dos Titãs, personifica as forças elementares da natureza. Entre muitos de seus atos violentos, aponta-se o rapto de Oritia, filha do rei de Atenas, Erecteu, quando se divertia com suas amigas às margens do rio Ilisso. Levou-a para a Trácia, onde a fez mãe dos boréadas, nome por que são conhecidos sobretudo os dois filhos gêmeos de Bóreas, Cálais e Zetes. Alados e impetuosos, desempenharam papel importante na expedição dos Argonautas, como se viu, perseguindo as Harpias, que não deixavam em paz o rei Fineu. Sob a forma de cavalo, Bóreas engendrou com as éguas do rei de Atenas, Erictônio, doze potros. Bóreas e seus filhos eram tão ligeiros, que, correndo sobre um campo de trigo, nem mesmo se curvavam as espigas sob seu peso e, quando percorriam em alta velocidade a superfície do mar, as águas não se agitavam. Com uma Erínia e, posteriormente, com uma das Harpias, Bóreas foi pai de outros cavalos velocíssimos. O simbolismo do vento é complexo e se reveste de múltiplas facetas. De um lado, por sua própria agitação, figura a instabilidade, a inconstância, a vaidade. Tratando-se de uma força elementar, o vento é cego e violento. De outro lado, é sinônimo de sopro, do espírito, do influxo espiritual de origem divina. Em Gn 1,2, o Espírito de Deus que se movia sobre as águas primordiais é denominado vento, em gregoπνεῦμα (pnêuma), “sopro”, “sopro do vento”, em hebraico rûa , em latim spiritus, com o mesmo sentido. Nos Salmos, os ventos são muitas vezes considerados como mensageiros divinos, equivalentes dos anjos. O vento dá até mesmo seu nome ao divino Espírito Santo. Foi um vento, que, soprando com ímpeto, trouxe aos Apóstolos, sob a forma de língua de fogo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade (At 2,2-3). Em textos mais poéticos, o vento não raro é apresentado como o sopro da boca de Javé (Os 13,15; Is 11,15; Jó 37,10... ). Foi o sopro de Deus quem ordenou o tohu wa bohu (a desordem e o vazio) primitivo e animou o primeiro homem. Como instrumentos do poder divino, os ventos vivificam, punem, ensinam. Como manifestação do divino, traduzem-lhe as emoções, das mais ternas à ira mais violenta e impetuosa. É bom, aliás, não esquecer que alma em grego é ψυχή (psykhé), “sopro”. Na simbólica hindu o vento Vâyu é o sopro cósmico e o verbo, o soberano do domínio sutil, o intermediário entre o Céu e a Terra. Vâyu penetra, quebra e purifica. Nas tradições cosmogônicas hindus das Leis de Manu o vento nasceu do espírito e criou a luz. Nas tradições avésticas da Pérsia antiga, o vento é o suporte do mundo e o elemento regulador do equilíbrio cósmico e moral: a primeira de todas as criaturas foi uma gota de água; Ormazd criou, em seguida, o fogo flamejante e conferiu-lhe um brilho que provém das luzes infinitas. Produziu, finalmente, o vento sob a forma de um jovem de quinze anos, que sustenta a água, as plantas, o rebanho e todos os seres. Para os gregos os ventos eram divindades inquietas e turbulentas, a custo guardados em cavernas profundas nas ilhas Eólias. Além do rei e deus dos mesmos, Éolo, distinguiam-se quatro tipos de ventos: os do Norte (Aquilão e Bóreas); vento do Sul (Austro); vento da manhã e do Leste (Euro) e o da tarde e Oeste (Zéfiro). O denominado vento druídico simboliza um aspecto do poder dos próprios druidas sobre os elementos e é tido como um veículo mágico, um sopro. Nos sonhos o vento anuncia um acontecimento que pode ser de grande importância: deverá surgir uma transformação. As energias espirituais são simbolizadas por uma grande luz e, o que menos se sabe, pelo vento. Quando se aproxima uma grande tempestade é possível diagnosticar um importante movimento de espíritos. A divindade tanto pode se manifestar no doce murmúrio dos ventos quanto nas borrascas e nas tempestades. Os orientais compreendem bem a significação do espaço vazio, onde sopra o vento, que é para eles, paradoxalmente, um poderoso símbolo de energia. Palante uniu-se a Estige e nasceram Zelo (Ciume), Nique (Vitória), Bia (Força) e Crato (Poder). Para complementar a explicação dada no capítulo VIII, nota 109, vamos expor o mito de Estige. ESTIGE, em grego Στύξ (Stýks), relacionado com o verbo στυμεῖν (stygueîn), odiar, ter horror, detestar. Na Teogonia, Estige é a mais velha das filhas de Oceano e Tétis, uma Oceânida, por conseguinte. Quando da luta de Zeus contra os Gigantes, o pai dos deuses e dos homens pediu o auxílio de todos os imortais e a primeira a chegar foi Estige que, com seus filhos, muito contribuiu para a vitória final do Olímpico. Para recompensá-la, Zeus concedeu que ela fosse a garantia dos juramentos solenes pronunciados pelos deuses. Dava-se o nome de Estige a uma fonte da Arcádia, a qual nascia num alto rochedo e perdia-se nas entranhas da terra. Suas águas, dizia-se, tinham propriedades mágicas: eram um veneno mortal para homens e animais; corroíam e destruíam tudo que nelas fosse lançado: ferro, metais e louça. As águas do rio infernal Estige, formado pelas águas da fonte do mesmo nome, tinham igualmente propriedades extraordinárias. Foi ali que Tétis mergulhou Aquiles para torná-lo invulnerável. E era sobretudo por essas águas que os deuses faziam seus juramentos. Quando um dos imortais queria se ligar por um juramento solene, Zeus enviava ao Hades a mensageira Íris, que trazia uma porção da água fatídica, para que servisse de testemunha ao juramento. O perjúrio, no caso, era considerado como falta muito grave e séria e a punição era terrível: durante um ano o deus criminoso era privado de sopro, de ar, de espírito e lhe eram negados o néctar e a ambrosia. Mas não era apenas este o castigo: nos nove anos subsequentes o culpado permanecia afastado do convívio dos Imortais e não podia participar de suas assembleias e banquetes. Só se reintegrava na posse de suas prerrogativas no décimo ano. Essa água terrível, ao que parece, era considerada como o décimo braço do Oceano, o rio original: os nove restantes formam as nove espirais com que o rio infernal cerca o disco terrestre. Vergílio, descrevendo o Estige, fala das nove espirais que circundam o reino dos mortos. Das quatro abstrações, que nasceram de Estige e Palante, Bia, a Força, a Violência, é a mais atuante: na Gigantomaquia encontramola lutando ao lado do Olímpico e, no encadeamento de Prometeu, novamente ela surge juntamente com Crato, o Poder. As quatro fazem parte constante do cortejo de Zeus. De Ceos e Febe nasceram Leto e Astéria. FEBE, em grego Φοίβη (Phoíbe), etimologicamente, a “brilhante”, como feminino de Φοῖβος (Phoîbos), o “brilhante”, Febo, como epíteto de Apolo, não apenas por ser este o sol, mas sobretudo porque “purifica”, uma vez que, tanto Phoîbos como Phoíbe relacionam-se com o verbo φοιβάζειν (phoibádzein), “purificar, limpar”. Atribuise, por vezes, a Febe a fundação do Oráculo de Delfos, enquanto companheira de Têmis, o qual ela teria dado de presente a seu neto Apolo. Como de Leto se falará no mitologema de Apolo, seu filho, passemos diretamente a Astéria. ASTÉRIA, em grego Αστερία (Astería), que se prende etimologicamente a ἀστήρ (astér), “estrela, estrela, cadente, meteoro”, em latim stella, com igual sentido. Amada por Zeus, transformou-se em codorniz. Perseguida mesmo assim pelo pai dos deuses e dos homens, lançou-se ao mar, onde se tornou uma ilha, com o nome de Ortígia, a ilha das Codornizes, uma vez que, em grego, ὄρτυξ (órtyks) é codorniz, tanto quanto o sânscrito vartakah. Mais tarde a ilha se chamou Delos, que se prende a δήλος (dêlos), “claro, brilhante”, porque lá nasceram o Sol (Apolo) e a Lua (Ártemis). Finalmente, da união de Perses com Astéria nasceu Hécate. HÉCATE, em grego Ἑκάτη (Hekáte), que é o feminino ἔκατος (hékatos), isto é, que “fere à distância”, que “age como lhe apraz”, qualidade específica da grande deusa, sobre que se apoia especialmente Hesíodo na Teogonia, 425-435. Deusa aparentada a Ártemis, não possui um mito próprio. Profundamente misteriosa, age mais em função de seus atributos. Embora descenda dos Titãs e seja portanto independente dos deuses olímpicos, Zeus, todavia, lhe conservou os antigos privilégios e até mesmo os aumentou. Em princípio, uma deusa benéfica, que derrama sobre os homens os seus favores, concedendo-lhes a prosperidade material, o dom da eloquência nas assembleias, a vitória nas batalhas e nos jogos, a abundância de peixes aos pescadores. Faz prosperar o rebanho ou o aniquila, a seu bel-prazer. É a deusa nutriz da juventude, em pé de igualdade com Apolo e Ártemis. Eis aí um retrato de Hécate na época mais antiga. Aos poucos, todavia, Hécate foi adquirindo características, atributos e especialização bem diferentes. Deusa ctônia, passou a ser considerada como divindade que preside à magia e aos encantamentos. Ligada ao mundo das sombras, aparece aos feiticeiros e às bruxas com uma tocha em cada mão ou ainda em forma de diferentes animais, como égua, loba, cadela. Tida e havida como a inventora da magia, o mito acabou por fazê-la penetrar na família da bruxaria por excelência: Eetes, Circe e Medeia. É assim que tradições tardias fizeram-na mãe de Circe e, por conseguinte, tia de Medeia. Como mágica, Hécate preside às encruzilhadas, local consagrado aos sortilégios. Não raro suas estátuas representam-na sob a forma de mulher com três corpos e três cabeças. Hécate é a deusa dos mortos, não como Perséfone, mas como divindade que preside às aparições de fantasmas e senhora dos malefícios. Empunhando duas tochas e seguida de éguas, lobas e cadelas é a senhora todo-poderosa invocada pelas bruxas. Seu poder terrível manifesta-se particularmente à noite, à luz bruxuleante da Lua, com a qual se identifica. Deusa lunar e ctônia, está ligada aos ritos da fertilidade. Sua polaridade, no entanto, já foi acentuada: divindade benfazeja, preside à germinação e ao parto, protege a navegação, prodigaliza prosperidade, concede a eloquência, a vitória e guia para os caminhos órficos da purificação; em contrapartida, possui um aspecto terrível e infernal: é a deusa dos espectros e dos terrores noturnos, dos fantasmas e dos monstros apavorantes. Mágica por excelência, é a senhora da bruxaria. Só se pode esconjurála por meio de encantamentos, filtros de amor ou de morte. Sua representação com três corpos e três cabeças presta-se a interpretações simbólicas de diferentes níveis. Deusa da Lua pode representar-lhe três fases da evolução: crescente, minguante e lua nova, em correlação com as três fases da evolução vital. Deusa ctônia, ela reúne os três níveis: o infernal, o telúrico e o celeste e, por isso mesmo, é cultuada nas encruzilhadas, porque cada decisão a se tomar num trívio postula não apenas uma direção horizontal na superfície da terra, mas antes e especialmente uma direção vertical para um ou para outro dos níveis de vida escolhidos. A grande mágica das manifestações noturnas simbolizaria ainda o inconsciente, onde se agitam monstros, espectros e fantasmas. De um lado, o inferno vivo do psiquismo, de outro uma imensa reserva de energias que se devem ordenar, como o caos se ordenou em cosmo pela força do espírito. 1. GUÉRIOS, Mansur. Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. Curitiba: Indústria Gráfica Cruzeiro, 1949, verbete. 2. Carnio, em grego Καρνεῖος (Karneîos), é um epíteto de Apolo, enquanto deus dos rebanhos e das colheitas, particularmente entre os povos dórios. 3. No tocante a corno, como epíteto de marido enganado pela mulher (pôr cornos, pôr chifres, cornear, chifrar), que Luís da Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro, p. 204, verbete Cornos) acha inexplicável, talvez se pudesse esclarecer como uma antífrase, uma lítotes, uma afirmação por meio da negação do contrário: já que o chifre é símbolo de potência, “pôr chifres” é negar, de certa forma, à vítima tal virtude. De qualquer modo, o epíteto é de uso muito antigo. Na Grécia Κέρατα ποεῖν τινι (kérata poieîn tini), “fazer chifres em alguém”, pôr chifres no marido, já era empregado, como em Artemidoro (séc. II d.C.), Onirocriticon libri V (Cinco livros sobre a interpretação dos sonhos), 2,11. A coisa depois se generalizou. Informa o mesmo Luís da Câmara Cascudo (op. cit., p. 204s) que “nos meados do séc. XIV, quando o rei Fernando de Portugal arrebatou dona Leonor Teles ao marido, este, João Lourenço da Cunha, fugiu para Espanha e por lá viveu, ostentando no chapéu um corno dourado, singular identificação do símbolo...” No séc. XVIII, D. José, rei de Portugal, pela lei de 15 de março de 1751, mandava abrir rigoroso inquérito pelo hábito ridículo de se colocarem chifres às portas das pessoas casadas. 4. CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 204s. 5. KIRK, G.S. & RAVEN, J.E. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, 2. ed., p. 198 [Tradução de C.A. Louro Fonseca]. 6. lbid., p. 199. 7. François de Salignac de La Mothe-Fénelon, em suas Les Aventures de Télémaque, lhe recolheu os suspiros vinte e cinco séculos depois: “Calypso ne pouvait se consoler du départ d’Ulysse. Dans sa douleur, elle se trouvait malheureuse d’être immortelle”. CAPÍTULO XIII A Segunda Geração Divina: Crono e sua descendência 1 Consumada a mutilação de Úrano e seu afastamento do governo do mundo, Crono, tendo lançado no Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, apoderou-se do poder, casando-se com sua Irmã Reia. Desse enlace nasceram Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon e Zeus. Crono Reia Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon, [Zeus Como já se falou de Crono, ao menos em parte, e de Reia no capítulo X, abordaremos agora seus filhos, seis grandes deuses olímpicos. HÉSTIA, em grego Ἑστία (Hestía), deusa da lareira. Da mesma família etimológica que o latim Vesta (Vesta), cuja fonte é o indoeuropeu *wes, “queimar”, em grego εὔειν (heúein), “passar pelo fogo, consumir”. Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou, mais precisamente, é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto pré-helênico do lar. Se bem que muito cortejada por Apolo e Posídon, obteve de Zeus a prerrogativa de guardar para sempre a virgindade. Foi ininterruptamente cumulada de honras excepcionais, não só por parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades, tornando-se a única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo. Assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos deuses. Essa imobilidade, todavia, fez que a deusa da lareira não desempenhasse papel algum no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um princípio abstrato, a Ideia da Lareira, do que como uma divindade pessoal, o que explica não ser a grande deusa necessariamente representada por imagem, uma vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la. Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de qualquer ato ou acontecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida nutriente, sem ser ela própria fecundante. É preciso observar, além do mais, que toda realização, toda prosperidade, toda vitória são colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia, como Vesta e suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeandolhes êxito e proteção. Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de seu simbolismo está sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as “chamas” do nível telúrico, do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto do próprio Agni. Consoante o I Ching, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões, particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento intuitivo. A significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito divino: Brahma é idêntico ao fogo (Gîtâ, 4,25). O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na noite de Páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro, destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado como instrumento de punição e juízo de Deus (Sl 50,3; Mc 9,49; Tg 5,3; Ap 8,9). Cristo fala de um fogo que não se apagará (Mt 5,32; 18,8; 25,41). Deus será como um fogo, distinguindo o bom do menos bom (Sl 17,3; 1Cor 3,15). Sua força, que tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de agir como fogo (Mt 3,11). Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do condicionamento humano, uma verdadeira apoteose, como a de Héracles, que, para se despir do invólucro mortal, subiu a uma fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmos taoístas, entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica, fogo este que é simbolizado pela Salamandra1. O fogo sacrifical do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro carnal. O aspecto destruidor do fogo comporta igualmente uma relação negativa e o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a forja: seu fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de demiurgo e de demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, “o que leva a luz celeste”, precipitado nas fornalhas do inferno: um fogo que brilha sem consumir, mas exclui para sempre toda e qualquer possibilidade de regeneração. Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação, as mais das vezes, ritos de passagem, são característicos de culturas agrárias. Configuram certamente os incêndios dos campos, que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de epidemias. O grande político e excepcional escritor Caio Júlio César (100-44 a.C.) nos fala, no B. Gal., 6,16,9, de gigantescos manequins, confeccionados de vime, que os mesmos druidas enchiam de homens e animais e transformavam em fogueira. O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a seu princípio contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh do mito maia, após sua incineração, renascem de um rio, onde suas cinzas foram lançadas2. Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, MaiaQuiché, efetuando uma nova diferenciação dos princípios antagônicos, fogo e água, que lhes presidiram à morte e ao renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é complementar da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de dilúvios, grandes secas ou incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre, ctônio, representa a força profunda que permite a complexio oppositorum, a união dos contrários, a ascensão, a sublimação da água em nuvens, isto é, a transformação da água terrestre, água impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o motor, o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o fogo ctônio configura a sabedoria humana e o urânico, a sabedoria divina. Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela está intimamente ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo pela fricção, pelo atrito, pelo vaivém, imagem do ato sexual, enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à aquisição do mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a “progenitura” de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma, o caráter ambivalente do fogo: pode ser tanto de origem divina quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas. Para Gastou Bachelard o “amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo e antes de ser o mesmo filho da madeira, é filho do homem... O método de fricção surge naturalmente. É espontâneo, porque o homem tem acesso a ele por sua própria natureza. Na verdade, o fogo foi surpreendido em nós, antes de ser arrancado do céu...”3Há, consoante o mesmo Bachelard, duas direções ou duas constelações psíquicas na simbologia do fogo, segundo é obtido por percussão ou por atrito. No primeiro caso, está intimamente ligado ao relâmpago e à flecha e possui um valor de purificação e iluminação, convertendo-se no prolongamento ígneo da luz. Diga-se, de caminho, que puro e fogo em sânscrito se designam pela mesma palavra: agnih, que é, aliás, um empréstimo do hitita Agnis, em latim ignis, fogo. A esse fogo espiritualizante se prendem os ritos de iniciação, o sol, os fogos de elevação e sublimação, em síntese, todo e qualquer fogo que visa à purificação e à luz. Opõe-se, nesse sentido, ao fogo sexual, obtido por fricção, como a chama purificadora se contrapõe ao centro genital da lareira matrilinear, como a exaltação da luz celeste se distingue do ritual de fecundidade agrária. Assim orientado, o simbolismo do fogo dimensiona a etapa mais importante da intelectualização do cosmo e afasta mais e mais o homem de sua condição animal. Prolongando ainda o símbolo nessa mesma direção, o fogo seria o deus vivo e pensante, que nas religiões arianas da Ásia recebeu o nome de Agni e Ator. Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de purificação e regeneração, mas o é igualmente de destruição. Temos aí nova inversão do símbolo. Purificadora e regeneradora a água também o é. Mas o fogo se distingue da água na medida em que ele configura a purificação pela compreensão, até sua forma mais espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do desejo até sua forma mais sublime, a bondade. Já falamos acerca de Hera, no capítulo V, como deusa minoica, associada a Zeus, e como deusa da fertilidade, após o sincretismo creto-micênico. No capítulo VII voltamos a enfocá-la, desta feita já como a rabujenta, irritadiça e vingativa esposa de Zeus, mas tudo dentro de uma perspectiva do poeta da Ilíada. Vamos, agora, completar-lhe, em parte, o mito, porque voltaremos a ela, quando se analisar o longo mitologema de Zeus. 2 HERA, em grego Ἥρα (Héra), nome de etimologia controvertida. Talvez seja da mesma família etimológica que Ἔρως (Héros), herói, como designativo dos mortos divinizados e protetores e, nesse caso, Hera significaria a protetora, a guardiã. A base seria o indo-europeu *serua, da raiz *ser-, “guardar”, donde o latim seruare, “conservar, velar sobre”. Como todas as suas irmãs e irmãos, exceto Zeus, foi engolida por Crono, mas salva pelo embuste de Métis e os combates vitoriosos de seu futuro esposo. Durante todo o tempo em que Zeus lutava contra os Titãs, Reia entregou-a aos cuidados de Oceano e Tétis, que a criaram nas extremidades do mundo, o que irá provocar para sempre a gratidão da filha de Crono. Existem outras tradições que lhe atribuem a educação às Horas, ao herói Têmeno, filho de Pelasgo, ou ainda às filhas de Astérion, rei de Creta. Após seu triunfo definitivo, Zeus a desposou, em núpcias soleníssimas. Era, na expressão de Hesíodo, a terceira esposa (a primeira foi Métis e a segunda, Têmis), à qual o deus se uniu em “justas núpcias”. Conta-se, todavia, que Zeus e Hera se amavam há muito tempo e que se haviam unido secretamente, quando o deus Crono ainda reinava sobre os Titãs. O local, onde se realizaram essas “justas núpcias” varia muito, consoante as tradições. A mais antiga e a mais “canônica” dessas variantes coloca-as no Jardim das Hespérides, que é, em si mesmo, o símbolo mítico da fecundidade, no seio de uma eterna primavera. Os mitógrafos sempre acentuaram, aliás, que os pomos de ouro do Jardim das Hespérides foram o presente de núpcias que Geia ofereceu a Hera e esta os achou tão belos, que os plantou em “seu Jardim”, nas extremidades do Oceano. Homero, na Ilíada, desloca o casamento divino do Jardim das Hespérides para os píncaros do monte Ida, na Frígia. Outras tradições fazem-no realizar-se na Eubeia, por onde o casal passou, quando veio de Creta. Em diversas regiões da Grécia, além disso, celebravam-se festas para comemorar as bodas sagradas do par divino do Olimpo. Ornamentava-se a estátua da deusa com a indumentária de uma jovem noiva e conduziam-na em procissão pela cidade até um santuário, onde era preparado um leito nupcial. O idealizador de tal cerimônia teria sido o herói beócio Alalcômenes4. Como legítima esposa do pai dos deuses e dos homens, Hera é a protetora das esposas, do amor legítimo. A deusa, no entanto, sempre foi retratada como ciumenta, vingativa e violenta. Continuamente irritada contra o marido, por suas infidelidades, moveu perseguição tenaz contra suas amantes e filhos adulterinos. Héracles foi uma de suas vítimas prediletas. Foi ela a responsável pela imposição ao herói dos célebres Doze Trabalhos. Perseguiu-o, sem tréguas, até a apoteose final do filho de Alcmena. Por causa de Héracles, aliás, Zeus, certa vez a puniu exemplarmente. Quando o herói regressava de Troia, após tomá-la, Hera suscitou contra seu navio uma violenta tempestade. Irritado, Zeus suspendeu-a de uma nuvem, de cabeça para baixo, amarrada com uma corrente de ouro e uma bigorna em cada pé. Foi por tentar libertar a mãe de tão incômoda posição que Hefesto foi lançado no vazio pelo pai. Perseguiu implacavelmente Io, mesmo metamorfoseada em vaca, lançando contra ela um moscardo, que a deixava como louca. Mandou que os Curetes, demônios do cortejo de Zeus, fizessem desaparecer Épafo, filho de sua rival Io. Provocou a morte trágica de Sêmele, que estava grávida de Zeus. Tentou quanto pôde impedir o nascimento de Apolo e Ártemis, filhos de seu esposo com Leto. Enlouqueceu Átamas e Ino, por terem criado a Dioniso, filho de Sêmele. Aconselhou Ártemis a matar a ninfa Calisto, que Zeus seduzira, disfarçando-se na própria Ártemis ou em Apolo, segundo outros, porque a ninfa, por ser do cortejo de Ártemis, tinha que guardar a todo custo sua virgindade. Zeus, depois, a transformou na constelação da Ursa Maior, porque, conforme algumas fontes, Ártemis, ao vê-la grávida, a metamorfoseou em ursa e a liquidou a flechadas. Outros afirmam que tal metamorfose se deveu à cólera de Hera ou a uma precaução do próprio Zeus, para subtraí-la à vingança da esposa. Para escapar da vigilância atenta de Hera, Zeus não só se transformava de todas as maneiras, em cisne, em touro, em chuva de ouro, no marido da mulher amada, mas ainda disfarçava, a quem desejava poupar da ira da mulher: Io o foi em vaca; Dioniso, em touro ou bode... De resto, o relacionamento entre os esposos celestes jamais foi muito normal e a cólera e vingança da filha de Crono se apoiavam em outros motivos. Certa vez, como se há de ver no mitologema de Narciso, Hera discutia com o marido para saber quem conseguia usufruir de maior prazer no amor, se o homem ou a mulher. Como não conseguissem chegar a uma conclusão, porque Zeus dizia ser a mulher a favorecida, enquanto Hera achava que era o homem, resolveram consultar Tirésias, que tivera sucessivamente a experiência dos dois sexos. Este respondeu que o prazer da mulher estava na proporção de dez para um relativamente ao do homem. Furiosa com a verdade, Hera prontamente o cegou. Tomou parte, como se sabe, no célebre concurso de beleza e teve por rivais a Atená e Afrodite, e cujo juiz era o troiano Páris. Tentou, para vencer, subornar o filho de Príamo, oferecendo-lhe riquezas e a realeza universal. Como Páris houvesse outorgado a maçã de ouro a Afrodite, que lhe ofereceu amor, Hera fez pesar sua cólera contra Ílion, tendo tomado decisivamente o partido dos gregos. Seu ódio, por sinal, se manifestou desde o rapto de Helena por Páris. Quando da fuga do casal, de Esparta para Troia, a magoada esposa de Zeus suscitou contra os amantes uma grande borrasca, que os lançou em Sídon, nas costas da Síria. Tornou-se, além do mais, a protetora natural do herói grego Aquiles, cuja mãe Tétis fora por ela criada. Conta-se, além do mais, que era grata a Tétis, porque esta sempre repeliu as investidas amorosas de Zeus. Mais tarde, estendeu sua proteção a Menelau, tornando-o imortal. Participou, como já mostramos, da luta contra os Gigantes, tendo repelido as pretensões pouco decorosas de Porfírio. Ixíon, rei dos Lápitas, tentou seduzi-la, mas acabou envolvendo em seus braços uma nuvem, que Zeus confeccionara à semelhança da esposa. Dessa “união” nasceram os Centauros. Para castigá-lo, Zeus fê-lo alimentar-se de ambrosia, o manjar da imortalidade, e depois lançou-o no Tártaro. Lá está ele girando para sempre numa roda de fogo. Protegeu o navio Argo, fazendo-o transpor as perigosas Rochas Ciâneas, as Rochas Azuis, e guiou-o no estreito fatídico entre Cila e Caribdes. Sua ave predileta era o pavão, cuja plumagem passava por ter os cem olhos com que o vigilante Argos5 guardava sua rival, a “vaca” Io. Eram-lhe também consagrados o lírio e a romã: o primeiro, além de símbolo da pureza, o é também da fecundidade, como a romã. Pelo fato de ser esposa de Zeus, Hera possui alguns atributos soberanos, que a distinguem das outras imortais, suas irmãs. Como seu divino esposo, exerce uma ação poderosa sobre os fenômenos celestes. Honrada como ele nas alturas, onde se formam as borrascas e se amontoam as nuvens, que derramam as chuvas benfazejas, ela pode desencadear as tempestades e comandar os astros que adornam a abóbada celeste. A união de Zeus e Hera é como símbolo da natureza inteira. É por intermédio de ambos, do calor dos raios do sol e das chuvas, que penetram o solo, que a terra é fecundada e se reveste de luxuriante vegetação. Ainda como Zeus, Hera personifica certos atributos morais, como o poder, a justiça, a bondade. Protetora inconteste dos amores legítimos, é o símbolo da fidelidade conjugal. Associada à soberania do pai dos deuses e dos homens, é respeitada pelo Olimpo inteiro, que a saúda como sua rainha e senhora. É verdade que, por vezes, uma rainha irascível e altiva, mas que jamais deixou de ser, em seus rompantes ou em sua majestade serena, a grande divindade feminina do Olimpo grego, cujo grande deus masculino é Zeus. 3 DEMÉTER, em grego Δημήτηρ (Deméter), cuja etimologia é muito discutida. Deusa e mãe da terra cultivada foi compreendida pelos antigos como um equivalente de γῆ μήτηρ (guê méter), “mãe-terra”, em γῆ (guê), terra, teria por correspondente o dório dâ>dê, donde Δαμάτηρ (Damáter) >Δημήτηρ (Deméter). Mera hipótese. Como se trata de uma deusa, cujo culto era levado muito a sério por todos os helenos, da Grécia continental à Magna Grécia e desta à Grécia asiática, vamos dividir-lhe o estudo em três grandes partes: em primeiro lugar focalizaremos mais profundamente a história desse culto; depois exporemos, de maneira mais simples e didática, o mito de Deméter, insistindo particularmente no rapto de Perséfone; e, por fim, abordaremos os Mistérios de Elêusis, complementados por um estudo da parte simbólica, uma pequena síntese acerca do poder de fixação dos alimentos e o esboço de uma pesquisa sobre alimentação e sexualidade. Consoante o historiador Heródoto (484-408 a.C.), Hist., 2,171, os cultos mais antigos de Deméter foram afogados pelas invasões dórias, a partir do século XII a.C. Ficaram, no entanto, alguns vestígios dessa fase antiga, particularmente na Arcádia, onde a deusa estava associada ao primitivo Posídon, o Posídon-Cavalo, bem como em Elêusis, segundo se verá em seguida. Nos arredores de Telpusa, querendo escapar do deus, que a perseguia, disfarçou-se em égua, mas Posídon, tomando a forma de um garanhão, fê-la mãe do cavalo Aríon e de uma filha, cujo nome só os Iniciados conheciam. O povo chamava-a simplesmente Devspoina (Déspoina), a Senhora. Foi por causa da cólera, provocada por essa violência de Posídon, que a mãe de Aríon passou a ser denominada também Deméter-Erínis. Recebeu, igualmente, o epíteto de Lúsia (a que se banha), pelo fato de ter-se purificado dos contatos do deus-cavalo no rio Ládon. Perto da Figalia, ainda na Tessália, chamavam-na Μέλαινα (Mélaina), a Negra, porque, em seu ressentimento, cobriu-se com véus pretos e retirou-se para o fundo de uma caverna, onde sua estátua era encimada por uma cabeça de cavalo. Em Fêneo ainda havia traços de mistérios primitivos, celebrados num antro rochoso, onde o sacerdote tirava de um esconderijo uma máscara de Deméter, ditaKidavria (Kidária), cobrindo o rosto e ferindo o solo com um bastão, rito destinado a provocar a fertilidade e evocar as forças ctônias. O termo gregokivdarir (kídaris) designa uma espécie de turbante e o sobrenome Kidária poderia derivar de máscara, mas kídaris significa outrossim uma dança da Arcádia e a arte figurada deixa entrever que um coro bárbaro de sobrevivência zoomórfica não era estranho a esse culto primitivo. Ainda na Arcádia, as duas deusas, a dupla Deméter-Senhora, tinham características acentuadas de Povtnia qhrw~~n (Pótnia therôn), “Senhora das feras”, associadas ao mundo animal e à fertilidade dos campos. Na região de Licúria (a montanha dos lobos) sua companheira era uma Ártemis arcaica. À dupla se ofereciam frutos diversos e animais não degolados, mas despedaçados vivos. Em certos locais da Arcádia, Ártemis passava por filha de Deméter e um templo, consoante Pausânias, 8,25,4; 42,1s, lhes era dedicado em comum. Um mito cretense, recolhido por Hesíodo, Teog., 969ss, atesta que a grande deusa se uniu a Iásion sobre um terreno lavrado três vezes e que dessa ligação nasceu Πλοῦτος (Plûtos). Existem algumas reminiscências de uma hierogamia à época das semeaduras e a ideia desse tipo de união rústica se encontra talvez na Deméter de Olímpia, denominada Camineia, isto é, “que está na terra”. Sob esse epíteto se viu uma divindade oracular, mas que acabou sendo relacionada com o antigo hábito, segundo o qual o camponês e sua esposa dormiam sobre a terra que deveria ser cultivada, a fim de provocar a vegetação. Homero, na Odisseia, V, 125, sem mencionar Pluto, refere-se à mesma tradição, ao dizer que o herói Iásion foi fulminado por Zeus, cujo mito olímpico, mais tarde codificado pelo mesmo Hesíodo, Teog., 912ss, faz de Zeus esposo de Deméter, que dele teria tido Κόρη (Kóre), Core, a Jovem, ou Perséfone. Os sofrimentos por que passou a deusa, quando sua filha, com o consentimento e ajuda do pai, foi raptada por Hades, são relatados no importantíssimo Hino homérico a Deméter, composto lá pelos fins do século VII a.C. e que, salvo um ou outro pormenor, pode e deve ser considerado como ἰερὸς λόγος (hieròs lógos), o “discurso sagrado” do Santuário de Elêusis. Nele a deusa augusta da terra é proclamada a maior fonte de riqueza e alegria. Com efeito, quando Deméter recuperou, por dois terços do ano, a companhia de Perséfone, a deusa devolveu Καρπόν φερέσβιον (karpòn pherésbion), o grão de vida, que ela própria, em sua cólera dolorosa, havia escondido. Confiou-o, em seguida, a Triptólemo, que o Hino menciona apenas acidentalmente entre os chefes de Elêusis. Mais tarde este herói se tornará filho de Metanira e Céleo, rei de Elêusis. Triptólemo recebeu a missão sagrada de levar o grão de vida a todos os povos e ensinarlhes a prática do trabalho. A esses dons a deusa de Elêusis acrescentou uma recompensa suprema: no templo que Céleo lhe mandou construir, exatamente no local em que se asilou, Deméter instituiu para sempre ὄργια καλά, σεμνά (órguia kalá, semná), belos e augustos ritos, penhor de felicidade na vida e para além da morte. Além do mais, as “duas deusas”, mãe e filha, a todos os homens piedosos, que as cultuam, enviam-lhes Pluto, o deus da riqueza agrária. Deméter é, pois, a Terra-Mãe, a matriz universal e mais especificamente a mãe do grão, e sua filha Core o grão mesmo de trigo, alimento e semente, que, escondida por certo tempo no seio da Terra, dela novamente brota em novos rebentos, o que, em Elêusis, fará da espiga o símbolo da imortalidade. Pluto é a projeção dessa semente. Se verdadeiramente o deus da riqueza agrária ficou eclipsado no Hino a Deméter pela evocação patética de Core perdida e depois “reencontrada”, uma estreita relação sempre existiu, desde tempos imemoriais, entre os cultos agrários e a religião dos mortos, e é assim que o Rico em trigo, Pluto, acabou por confundir-se com outro rico, o Rico em hóspedes, πολυδέγμων (polydégmon), que se comprimem no palácio infernal. Pois bem, esse rico em trigo, com uma desinência inédita, se transmutou, sob o vocábulo Πλούτων (Plúton), Plutão, num duplo eufemístico e cultural de Ἅιδης (Háides). Fundamentalmente agrário, o culto de Deméter está vinculado ao ritmo das estações e ao ciclo da semeadura e colheita para produção do mais precioso dos cereais, o trigo. Bem antes da fusão com Atenas e comparativamente ao que representavam para a pólis de Péricles as Αθήναια (Athénaia), Ateneias (festas em honra de Atená), sem dúvida as festas mais antigas de Deméter celebravam-se em Elêusis com o nome de Ελευσίνια (Eleusínia), Eleusínias. Tratava-se de um ato de reconhecimento pelo “fruto de Deméter”, δια τόν καρπόν (dià tòn karpón) “por causa do fruto”, diz laconicamente Aristóteles, acrescentando, ademais disso, que os ἀγῶνες (agônes), as disputas atléticas, realizadas na ocasião, eram os mais antigos jogos da Grécia. Enquanto os vencedores nas Panateneias eram recompensados com óleo das oliveiras sagradas de Atená, os atletas campeões nas Eleusínias recebiam como prêmio medidas de trigo sagrado, colhido nas planícies de Raros, perto de Elêusis, onde, pela primeira vez, Triptólemo plantou a semente sagrada. Vinculadas à cultura do trigo e aos trabalhospor ela requeridos, as festas da deusa de Elêusis se realizavam em datas apropriadas às condições climáticas da Hélade. As Eleusínias, por sua finalidade mesma, se comemoravam pelos fins da primavera. Os outros ritos, bem mais conhecidos, se escalonavam em três etapas: o trabalho de preparação da terra; a semeadura e a colheita. O rito sagrado da lavra, ἄροτος ἰερός (árotos hierós), relembrava o trabalho inicial de Triptólemo, cujo nome significa popularmente o que revolve a terra três vezes, como τρί-πολος (trí-polos), “terra trabalhada três vezes”. Esse rito é mencionado em Esquíron, nos confins ático-eleusínios e nas planícies de Raros, onde residia a família dos Βουζύγαι (Budzýgai), “os que atrelam os bois”, que possuía o privilégio de levar a bom termo esse rito sagrado, arando a terra ou mimando simplesmente a lavra e, além do mais, tinha a incumbência de manter os bois sagrados destinados a tal finalidade. De igual natureza eram as Proerósias, “sacrifícios antes da lavra”, festas instituídas posteriormente por Atenas, para atender a uma resposta do Oráculo de Delfos, quando de uma fome geral. Não havia, ao que parece, nas Proerósias, mímica da lavra, mas oferendas propiciatórias anuais em Elêusis, em nome de todos os gregos. O rapto e a ausência, a descida, o κάθοδος (káthodos) de Perséfone não se processaram no inverno, como agudamente fez ver Nilsson, mas no verão, quando os campos da Grécia se desnudam pelo calor; o retorno, a presença, a subida, oa!nodor (ánodos) ocupavam as duas outras partes do ano. A grande deusa iniciava seu esperado retorno após a aradura, no mês Pianépsion (segunda metade de outubro), com as Tesmofórias, a festa das semeaduras, e era “presença total”, realmente, à época da festa das Cloias, quer dizer, do “verde”, no mês Posídeon (dezembro), quando, após as chuvas do outono, o trigo e a cevada de DeméterCloe cobriam os campos com um manto “verde”, e aqui permanecia até a colheita da última primavera, nos últimos dias do mês de Targélion (fins de maio) e início do mês Esquirofórion (junho). A coincidência desta heortologia (calendário de festas) com o clima mediterrâneo atesta que se está em presença de elementos indígenas anteriores à chegada dos gregos na Península. Além do mais, se os nomes Deméter e Core são gregos, Perséfone, que designa Core, após o rapto dessa última, não tem etimologia indo-europeia. Até mesmo certas variantes do vocábulo, Perephóneia, Periphóna, Pherséphassa, Pherréphatta, Phersephóna mostram a dificuldade que os gregos tiveram para adaptá-lo em sua língua. Trata-se, ao que tudo indica, de palavra de origem mediterrânea. Difundidas por todas as regiões do mundo helênico, as mais antigas festas de Deméter são as Θεσμοφόρια (Thesmophória), Tesmofórias, palavra que se compõe deqesmovr (thesmós), “instituição sagrada, lei”, e o verboϕevrein (phérein), “levar, produzir” e, em sentido figurado, “estatuir, estabelecer”. Deméter thesmophóros é portanto a “legisladora”, porque, tendo ensinado os homens a cultivar os campos, instituiu o casamento, fundando, assim, a sociedade civil. As Tesmofórias são, por conseguinte, a festa da “legisladora”, em que se agradece a Deméter pelas últimas colheitas. Atribuídas por Heródoto às filhas de Dânao, as Danaides, as Tesmofórias eram reservadas às mulheres casadas, pela analogia óbvia entre a fecundidade do seio materno e a fertilidade da terra, que as mulheres estão muito mais aptas a promover. Isto explica provavelmente a preeminência da mulher no sacerdócio de Elêusis, tanto mais quanto na cidade santa dos Mistérios a sacerdotisa de Deméter sempre teve as honras da Eponímia. As Tesmofórias, que duravam três dias, eram celebradas no mês de Pianépsion, segunda metade de outubro, quando os “poceiros” retiravam das fossas os restos dos leitões que aí haviam sido lançados, segundo a prática, cuja causa foi a desventura do porcariço Eubuleu. Jogavam-se leitões em fossas profundas, contava-se, como recordação da manada de porcos de Eubuleu, quase toda tragada, quando a terra se abriu no momento do rapto de Core. Recolhiam-se, em seguida, os restos, que eram misturados a grãos e sementes diversas: tal mistura era colocada sobre os altares e depois espalhada pelos campos. Tratava-se, claro está, de um rito de adubagem sagrada. O segundo dia festivo das Tesmofórias denominava-se Νηστεἰα (Nesteía), quer dizer, o “dia do jejum”, estomacal e sexual. Em Atenas, as mulheres formavam uma grande procissão e dirigiam-se para o Pnix, a oeste da Acrópole, e passavam o dia todo em cabanas feitas de ramos, sentadas sobre folhas de loureiro, cujas virtudes fecundantes eram muito exaltadas pelos antigos. O jejum e a atitude dessas mulheres eram uma evocação de Deméter, prostrada de dor pelo desaparecimento da filha. Esse dia era considerado nefasto. As comemorações do terceiro dia das Tesmofórias denominavamse Καλλιγένεια (Kalliguéneia), literalmente, “belas gerações”, ou seja, abundantes colheitas. Oferecia-se à deusa uma panspermia, como nas Antestérias dionisíacas, uma espécie de sopa com uma mistura de todas as espécies de sementes, uma vez que pân é todo, total e spérma é semente. As Kalliguéneia transcorriam numa atmosfera de grande alegria e as mulheres casadas, de todas as idades, se entregavam a uma liberdade de gestos e de linguagem que fariam corar Aristófanes! Essa mesma quebra de interditos e “desrepressão” se verificam nas Haloas, como se mostrará. Também as Kalliguéneia tinham por objetivo provocar a fertilidade do ser humano e dos campos. Um pouco mais tarde, após as chuvas do outono, sem dúvida do mês Posídeon, em dezembro, quando o trigo e a cevada cobriam a terra de verde, celebravam-se as festas denominadas Xλoῖa (Khloîa), em honra ainda de Deméter, chamada Xλόη (Khlóe), Cloe, a “verdejante”, em Elêusis e Atenas, epíteto que, por vezes, aparece acompanhado de um outro também muito expressivo, *Ioulwv (Iuló), quer dizer, paveia de trigo. Nos fins de maio, inícios de junho, isto é, nos meses Targélion e Esquirofórion, realizavam-se as Θαλύσία (Thalýsia), do verbo Θάλλειν (thállein), “florir, cobrir-se de folhas, flores e frutos”. Nas Talísias ofereciam-se à divindade as primícias da colheita, hábito já registrado em Homero, Ilíada, IX, 934, mas a propósito de Eneu, rei de Cálidon, terrivelmente castigado, porque se esqueceu de Ártemis, quando ofereceu as primícias aos outros deuses. Na época clássica, as Talísias eram propriamente uma festa da eira, em honra de Deméter, quando a ela se ofereciam os primeiros grãos da colheita. Teócrito, o grande poeta grego da época alexandrina, no Idílio VII, cujo título é exatamente Talísias, se inspira poeticamente da festa e diz que “Deméter está coroada de espigas e de papoulas vermelhas”. A derradeira festa de Deméter denomina-se Αλῷα (Halôa), Haloas, ou seja, em princípio, uma festividade da deusa “guardiã dos celeiros”, mas essas comemorações celebravam também a outro grande deus da vegetação, Dioniso, que, sob muitos aspectos, está ligado à mãe de Perséfone, como se há de ver, quando focalizarmos o mito do deus do êxtase e do entusiasmo, no volume II. As Haloas se desdobravam, portanto, numa festa da uva, quando se realizava a segunda cava às vinhas, o adubamento das cepas e a degustação do vinho novo, cuja primeira fermentação já havia terminado. Como se tratava de uma festa de Deméter, embora extensiva a Dioniso, a presença da mulher, ao menos em algumas partes da festividade, conferia-lhe um regozijo especial e uma atmosfera de luxúria báquica. Boas apreciadoras também do néctar dionisíaco, as mulheres, mais que nas Kalliguéneia, entregavam-se σἰσχρολογία (aiskhrologuía) e τωθασμός (tothasmós), isto é, a gracejos licenciosos e a gestos ousados, que a lei admitia e de que fala Aristóteles na Política, 7,1336b17, como assunto superado, por seu caráter ritual6. Afinal, não foi mais ou menos isso, como se verá a seguir, que fez a criada de Metanira, Iambe, para arrancar um sorriso de Deméter, inconsolável com o rapto de Core? Seria inútil enumerar os locais, onde se celebrava o culto de Deméter: trata-se de um culto pan-helênico, tendo, isto sim, por centros Elêusis e Atenas. Eis, em síntese, a primeira parte da história do culto da grande deusa de Elêusis. A segunda, e bem mais importante, são os Mistérios de Elêusis, mas para se chegar lá é mais prático e didático expor primeiramente o mito de Deméter e Perséfone. O mitologema das duas deusas é resultante de uma longa elaboração: de Homero a Pausânias multiplicaram-se as variantes. Vamos tentar reuni-las e desenvolver o mito de maneira bem simples e direta. Deusa maternal da Terra, sua personalidade é simultaneamente religiosa e mítica, bem diferente, já se salientou, da deusa Geia, concebida como elemento cosmogônico. Divindade da terra cultivada, a filha de Crono e Reia é essencialmente a deusa do trigo, tendo ensinado aos homens a arte de semeá-lo, colhê-lo e fabricar o pão. Tanto no mito quanto no culto, Deméter está indissoluvelmente ligada à sua filha Core, depois Perséfone, formando uma dupla quase sempre denominada simplesmente As Deusas. As aventuras e os sofrimentos das Deusas constituem o mito central, cuja significação profunda somente era revelada aos Iniciados nos Mistérios de Elêusis. Core crescia tranquila e feliz entre as ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o auxílio de Zeus. O local varia muito, segundo as tradições: o mais correto seria a pradaria de Ena, na Sicília, mas o Hino homérico a Deméter fala vagamente da planície de Misa, nome de cunho mítico, inteiramente desprovido de sentido geográfico. Outras variantes colocam-no ora em Elêusis, às margens do rio Cefiso, ora na Arcádia, no sopé do monte Cilene, onde se mostrava uma gruta, que dava acesso ao Hades, ora em Creta, bem perto de Cnossos. Core colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a Terra se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo ctônio. Desde então começou para a deusa a dolorosa tarefa de procurar a filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, com um archote aceso em cada uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada para o abismo, Core deu um grito agudo e Deméter acorreu, mas não conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido. Simplesmente a filha desaparecera. Durante nove dias e nove noites, sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a jovem estava sendo arrastada para algum lugar, mas não lhe foi possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as sombras da noite. Somente Hélio, que tudo vê, e que já, certa feita, denunciara os amores secretos de Ares e Afrodite, cientificou-a da verdade. Irritada contra Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na Terra, abdicando de suas funções divinas, até que lhe devolvessem a filha. Sob o aspecto de uma velha, dirigiu-se a Elêusis7e primeiro sentouse sobre uma pedra, que passou, desde então, a chamar-se Pedra sem Alegria. Interrogada pelas filhas do rei local, Céleo, declarou chamar-se Doso e que escapara, há pouco, das mãos de piratas que a levaram, à força, da ilha de Creta. Convidada para cuidar de Demofonte, filho recém-nascido da rainha Metanira, a deusa aceitou a incumbência. Ao penetrar no palácio, todavia, sentou-se num tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, com o rosto coberto por um véu, até que uma criada, Iambe, fê-la rir, com seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Deméter não aceitou o vinho que lhe ofereceu Metanira, mas pediu que lhe preparassem uma bebida com sêmola de cevada, água e poejo, denominada κυκεών (kykeón)8, cuja fonte é o verbo κυκᾶν (kykân), “agitar de modo a misturar, perturbar agitando”, donde cíceon, além de “mistura”, significa também “agitação, perturbação”. Trata-se, ao que parece, de uma bebida mágica cujos efeitos não se conhecem bem. Encarregada da educação do caçula Demofonte, “o que brilha entre o povo”, a deusa não lhe dava leite, mas, após esfregá-lo com ambrosia, o escondia, durante a noite, no fogo, “como se fora um tição”. A cada dia, o menino se tornava mais belo e parecido com um deus. Deméter realmente desejava torná-lo imortal e eternamente jovem. Uma noite, porém, Metanira descobriu o filho entre as chamas e começou a gritar desesperada. A deusa interrompeu o grande rito iniciático e exclamou pesarosa: “Homens ignorantes, insensatos, que não sabeis discernir o que há de bom ou de mal em vosso destino. Eis que tua loucura te levou à mais grave das faltas! Juro pela água implacável do Estige, pela qual juram também os deuses: eu teria feito de teu filho um ser eternamente jovem e isento da morte, outorgando-lhe um privilégio imorredouro. A partir de agora, no entanto, ele não poderá escapar do destino da morte” (Hh. D., 256-262). Surgindo em todo seu esplendor, com uma luz ofuscante a emanar-lhe do corpo, solicitou, antes de deixar o palácio, que se lhe erguesse um grande templo, com um altar, onde ela pessoalmente ensinaria seus ritos aos seres humanos. Encarregou, em seguida, Triptólemo, irmão mais velho de Demofonte, de difundir pelo mundo inteiro a cultura do trigo. Construído o santuário, Deméter recolheu-se ao interior do mesmo, consumida pela saudade de Perséfone. Provocada por ela, uma seca terrível se abateu sobre a terra. Em vão Zeus lhe mandou mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e nem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone. O rei dos Infernos curvou-se à vontade soberana do irmão, mas habilmente fez que a esposa colocasse na boca uma semente de romã (cujo simbolismo se comentará depois) e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar a outra vida. Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe. Reencontrada a filha, Deméter retornou ao Olimpo e a terra cobriu-se, instantaneamente, de verde. Antes de seu regresso, porém, a grande deusa ensinou todos os seus mistérios ao rei Céleo, a seu filho Triptólemo, a Díocles e a Eumolpo “os belos ritos, os ritos augustos que é impossível transgredir, penetrar ou divulgar: o respeito pelas deusas é tão forte, que embarga a voz” (Hh. D., 476479). A instituição dos Mistérios de Elêusis explica-se, pois, pelo reencontro das duas deusas e como consequência do fracasso da imortalização de Demofonte. A esse respeito, comenta agudamente Mircea Eliade: “Pode-se comparar a história de Demofonte com os velhos ricos que relatam o trágico erro que, em certo momento da história primordial, anulou a possibilidade de imortalização do homem. Mas, nesse caso, não se trata do erro ou do ‘pecado’ de um antepassado mítico que perde para si e para seus descendentes a condição primeira de imortal. Demofonte não era uma personagem primordial; era o filho caçula de um rei. E pode-se interpretar a decisão de Deméter de imortalizá-lo como o desejo de ‘adotar’ um filho (que a consolaria da perda de Perséfone) e, ao mesmo tempo, como uma vingança contra Zeus e os Olímpicos. Deméter estava transformando um homem em deus. As deusas possuíam esse poder de outorgar a imortalidade aos humanos, e o fogo ou a cocção do neófito figuravam entre os meios mais reputados. Surpreendida por Metanira, Deméter não escondeu sua decepção diante da estupidez dos homens. Mas o hino não faz qualquer referência à eventual generalização dessa técnica de imortalização, isto é, a fundação de uma instituição suscetível de transformar os homens em deuses por intermédio do fogo”9. Na realidade, Deméter só se identificou e pediu que se lhe erguesse um templo após o fracasso da imortalização de Demofonte, mas somente transmitiu seus ritos secretos depois de seu reencontro com a filha. Não existe, pois, objetivamente, nenhuma relação entre a iniciação nos Mistérios e a cocção de Demofonte, interrompida por Metanira. O iniciado nos Mistérios não conseguia e nem pretendia a imortalidade. É bem verdade que, ao fim das cerimônias nos Mistérios, o templo inteiro era iluminado por milhares de archotes, mas esse clarão, “esse fogo”, simbolizava, tudo leva a crer, a iluminação interior dos iniciados e a certeza das luzes da outra vida. O pouco que se conhece das cerimônias secretas deixa claro que o mistério central envolvia a presença das duas deusas e que sua fundamentação era a morte simbólica, a descida de Perséfone e seu retorno triunfante, como a semente que morre no seio da terra e se transmuta em novos rebentos. E se através da iniciação a condição humana era modificada, isso se fazia num sentido bem diferente do da fracassada imortalização de Demofonte. O que os Mistérios prometiam era a bem-aventurança após a morte. Os textos a esse respeito são muito escassos, mas expressivos. O próprio Hino a Deméter promete a felicidade para os Iniciados e indiretamente o castigo para aqueles que ignoraram os Mistérios: Feliz aquele que possui, entre os homens da terra, a visão destes Mistérios. Ao contrário, aquele que não foi iniciado e aquele que não participou dos santos ritos não terão, após a morte, nas trevas úmidas, a mesma felicidade do iniciado. (Hh. D., 480-482) Em um de seus Trenos, fr. 6 (e não 10, como erradamente costa em Mircea Eliade) exclama o maior dos líricos da Hélade: Feliz aquele que, antes de baixar à terra, contemplou este espetáculo. Ele conhece qual é o fim da vida e também o começo, outorgado por Zeus. Sófocles, fr. 753, o trágico maior, trouxe também a sua contribuição: Bem-aventurados os mortais que, após terem contemplado os Mistérios, vão descer à outra vida. Ali, somente eles viverão; os outros só terão sofrimentos. Na comédia de Aristófanes As rãs, 154-159, Héracles, ensinando a Baco o caminho que levava ao Hades, fala de um pequeno encontro de Dioniso com a alegria dos Iniciados na outra vida: Héracles – Prosseguindo, envolver-te-á um sopro de flautas. Divisarás uma esfuziante claridade, como aqui; encontrarás bosques de mirto, grupos bem-aventurados de homens e mulheres e um estrepitoso bater de palmas. Baco – Quem são estes? Héracles – Os Iniciados10. Seja como for, como diz Mircea Eliade, o rapto, quer dizer, a “morte” simbólica de Perséfone, trouxe para os homens benefícios incalculáveis. Uma deusa olímpica, que passa a habitar apenas uma terça parte do ano o mundo dos mortos, encurta a distância entre os dois reinos: o Hades e o Olimpo. Como ponte entre os dois “mundos divinos”, podia intervir no destino dos homens mortais. Os Mistérios de Elêusis vão ter exatamente por essência essa morte simbólica, projetada na morte e na ressurreição da semente. Acerca dos Mistérios de Elêusis o que se sabe é tão somente o exterior e, mesmo assim, fragmentariamente. Os documentos literários e a arte figurada aludem particularmente à preparação das etapas da iniciação, o que, é claro, não exigia segredo. Assim mesmo Ésquilo, segundo Aristóteles, teria revelado, sem o querer, certos aspectos secretos relativos aos Mistérios11. Temos, ainda, as informações transmitidas pelos padres antigos, pelos apologistas cristãos, alguns deles ex-iniciados, as quais são muito mais importantes do que parecem, porque, escrevendo muitas vezes para e contra Iniciados, na ânsia de combater os Mistérios e converter-lhes os adeptos, se não dissessem o que realmente acontecia, correriam o risco de ser desmentidos. Essas informações, porém, têm que ser analisadas com muita prudência, porque, se de um lado são muito incompletas e reticentes, sem penetrar no âmago da questão, e a prudência assim o aconselhava, de outro, baseiam-se, não raro, em “mistérios tardios”, da época helenística. Em dois mil anos de funcionamento em Elêusis, é muito provável que os Mistérios tenham sofrido influências de outras correntes religiosas e que certas cerimônias se tenham modificado com o correr dos anos. No tocante às informações dos “pagãos”, também elas, e com muito mais razão, pecam pela base, como veremos: abordam tão-só aspectos externos, quando não se baseiam em épocas tardias, e, pior ainda, quando não confundem Mistérios de Elêusis com Orfismo... O que, aliás, em parte, seria inevitável, como se verá. Feitas estas ligeiras observações, passemos aos Mistérios. MISTÉRIO, em grego μυστήριον (mystérion) significa, etimologicamente, “coisa secreta”, “ação de calar a boca”, uma vez que μυστήριον (mystérion) provém do verbo μύειν (mýein), “fechar, se fechar, calar a boca”, daí μύστης (mýstes), “o que se fecha, o que guarda segredo, o iniciado”, μυστικός (mystikós), “que concerne aos mistérios, que penetra os mistérios, místico” e μυσταγωγός (mystagogós), de μύστης (mýstes), “iniciado”, e o verbo ἄγειν (águein), “conduzir, sacerdote encarregado de iniciar nos mistérios, mistagogo”. Os Mistérios de Elêusis não foram os únicos a existir na Hélade. Mas Deméter era a mais venerada e a mais popular das deusas gregas, diz com razão Mircea Eliade, e a mais antiga também. De certa forma, a deusa de Elêusis prolonga o culto das Grandes Mães do neolítico, e, por isso mesmo, outros grandes mistérios lhe eram consagrados, como os da Arcádia e da Messênia, sem excluir sua participação nos de Flia, na Ática. Além destes, dedicados à Grande Mãe de Elêusis, havia os famosos Mistérios dos Cabiros na Samotrácia e, em Atenas, a partir do século V a.C., os Mistérios do deus tracofrígio Sabázio12, considerado como o primeiro culto de origem oriental a penetrar e ter bastante aceitação no Ocidente. Dentre todos esses mistérios, todavia, os universalmente famosos foram os Mistérios de Elêusis e isso, em boa parte, se deve ao apoio decisivo que lhes deu Atenas. Um apoio, por certo, muito inteligente e bem de acordo com a atmosfera política que a cidade de Atená sempre defendeu. Na medida em que os Mistérios de Elêusis não formavam uma seita, nem tampouco uma associação secreta, como os Mistérios da época helenística, os Iniciados, ao retornarem a seus lares, continuavam tranquilamente a participar, e até com mais empenho e desenvoltura religiosa, dos cultos públicos. Só após a morte é que eles passavam novamente (como durante as cerimônias em Elêusis) a formar um grupo à parte, inteiramente separados dos não-iniciados, como nos mostra, entre outros, Aristófanes na comédia As rãs. É claro que Dioniso e Deméter, por motivos de ordem política e social, conforme explicamos no capítulo VIII e voltaremos a fazê-lo, quando falarmos de Dioniso, ficaram por longos séculos confinados no campo, mas, a partir de Pisístrato e logo depois, com a democracia, os Mistérios de Elêusis podem ser considerados como uma complementação da religião olímpica e dos cultos públicos, sem nenhuma oposição às instituições religiosas da pólis. E foi certamente a atmosfera política de Atenas que deu aos Mistérios de Elêusis um caráter incrivelmente democrático para a época. Do governante ao escravo, da mãe-de-família à prostituta, do ancião à criança, todos podiam ser Iniciados, desde que falassem grego, para que pudessem compreender e repetir certas fórmulas secretas; não tivessem as mãos manchadas por crime de sangue e nem fossem réus de impureza sacrílega. A isto acrescentava-se, bem de acordo com o valor ritualístico que se atribuía à palavra, o interdito φωνὴν ἀσύντοι (phonèn asýnetoi), “os deficientes de linguagem”, quer dizer, os que, por qualquer problema, não conseguissem pronunciar corretamente as fórmulas rituais. Mas já é tempo de tentarmos também penetrar um pouco no augusto Santuário de Elêusis. Consoante a tradição, os primeiros habitantes e colonizadores de Elêusis, localidade que fica a pouco mais de vinte quilômetros do centro de Atenas, foram trácios. Recentes escavações arqueológicas permitem afirmar que Elêusis deve ter sido colonizada entre 1580 e 1500 a.C., mas o primeiro santuário, composto de uma câmara com duas colunas internas que sustentavam o teto, foi construído no século XV a.C. e, nesse mesmo século, se inauguraram os Mistérios. Foram vinte séculos de glória. Nos fins do século IV d.C., Teodósio, o Grande (346-395 d.C.), fechou por decreto e destruiu a picareta os templos pagãos. Era o fim do paganismo, no papel, porque, sobre as ruínas de seus templos, Zeus, Deméter e Dioniso ainda reinaram por muito tempo. Foi, sem dúvida, a união política de Elêusis com Atenas, no último quartel do século VII a.C., que proporcionou a seu culto todo o esplendor e majestade, que perduraram por dois mil anos. Os Mistérios se tornaram, desde então, uma festa religiosa oficial do Estado ateniense, que lhe confiou a organização e a direção ao Arconte-Rei e a um colega seu, um epimelétes, isto é, um intendente especialmente designado para esse mister. A esses se juntavam mais dois delegados, eleitos pelo povo. Os verdadeiros dignitários e oficiantes do culto, porém, pertenciam a três antiquíssimas famílias sacerdotais de Elêusis: os eumólpidas, os querices e os filidas. Os eumólpidas tinham a preeminência, porque pretendiam descender de Eumolpo13, já por nós citado, e que, etimologicamente, significa “o que canta bem e harmoniosamente”, o que modula corretamente as palavras rituais e as encantações. Dos eumólpidas saía, escolhido pela sorte, mas cujo cargo era vitalício, o sacerdote principal dos Mistérios, o Hierofante, etimologicamente “o que mostra, o que patenteia o sagrado”. Em termos religiosos, era o sacerdote que explicava os mistérios sagrados e conferia o grau iniciático. Designado entre os querices pelo mesmo método que o Hierofante, o Daduco, que significa “o portador de tocha”, o segundo em dignidade, tinha a função sagrada de carregar os dois fachos de Deméter. Também da mesma família e escolhido de maneira semelhante, o Hieroquérix, o Arauto Sagrado, anunciava os Mistérios. Na família dos filidas era escolhida vitaliciamente a Sacerdotisa de Deméter, igual ou ainda maior em dignidade que o Hierofante e que com o mesmo celebrava o rito do hieròs gámos, o casamento sagrado. As grandes cerimônias de Elêusis tinham como prólogo os Pequenos Mistérios, que se realizavam uma vez por ano, de 19 a 21 do mês Antestérion (fins de fevereiro e começo de março), em Agra, subúrbio de Atenas, localizado na margem esquerda do rio Ilisso. Os ritos dos Pequenos Mistérios, que se celebravam no templo de Deméter e Core, compreendiam, segundo se crê, jejuns, purificações e sacrifícios, orientados pelo mistagogo. Acredita-se que nessa mýesis, uma espécie de pré-iniciação, alguns aspectos do mitologema de Deméter e Perséfone fossem mimados, reatualizados e ritualizados. Seis meses depois, no mês Boedrômion (mais ou menos 15 de setembro a 15 de outubro), realizavam-se os prelúdios em Atenas e a parte principal em Elêusis, os Grandes Mistérios, para os que houvessem cumprido em Agra os ritos preliminares. Somente no Santuário de Elêusis é que se podia obter a iniciação em primeiro e segundo graus. O primeiro grau denominava-se τελετή (teleté), vocábulo cuja origem é o verbo τελεῖν (teleîn), “executar, realizar, cumprir”, donde teleté vem a ser “cumprimento, realização”. A maioria, acredita-se, parava no primeiro grau. O segundo, o grau completo, supremo, acessível tão somente aos já iniciados há um ano, chamava-se ἐποπτεία (epopteía), do verbo ἐποπτεύειν (epopteúein), “observar, contemplar”, donde epopteía seria a visão suprema, a revelação completa. Poucos conseguiram atingir esse grau. O prelúdio dos Grandes Mistérios ainda se passava no Eleusínion, o templo de Deméter e Core em Atenas. No dia 13 de Boedrômion, os Efebos (jovens de 16 a 18 anos) partiam para Elêusis e de lá traziam, no dia 14, sobre um carro, cuidadosamente guardados em pequenos cestos, os hierá, os objetos sagrados, que a sacerdotisa de Atená recolhia e guardava temporariamente no Eleusínion. No dia 15, os Iniciados se reuniam e, após as instruções do mistagogo, o hieroquérix, o arauto sagrado, relembrava as interdições que impediam a iniciação. O dia 16 era consagrado à lustração geral: ao grito repetido do mistagogo, ἄλαδε, μύσται (hálade, mýstai), “ao mar, os iniciados”, todos corriam a purificar-se nas águas salgadas de Posídon. Cada um mergulhava, segurando um leitão que era, logo após, imolado às duas deusas como oferenda propiciatória. É importante lembrar que tal sacrifício visava, antes do mais, à fecundidade, porquanto a palavra grega χοῖρος (khoîros) significa tanto porco quanto órgão genital feminino. Nos dias 17 e 18 havia uma interrupção nos ritos preliminares, pelo menos desde o século V a.C., porque, nessas datas, se celebrava a grande festa de Asclépio. O dia 19 assinalava o término das cerimônias públicas: ao alvorecer, uma enorme procissão partia de Atenas. Iniciados, neófitos e um grande público acompanhavam as sacerdotisas que reconduziam a Elêusis os hierá, os objetos sagrados, trazidos pelos efebos no dia 14. Encabeçando a alegre e barulhenta procissão, ia um carro com a estátua de Iaco, com seu respectivo sacerdote, entre exclamações entusiastas de Ἴακχη, ὦ Ἴακχη (Íakkhe, ó Íakkhe), “Iaco, ó Iaco!”14Personificando misticamente a Baco, Iaco é o avatar eleusínio de Dioniso, aquele que, em As rãs15, os iniciados convidam a dirigir seus coros, o companheiro e o guia que conduz até Deméter, aquele que perfaz e ajuda a perfazer a longa caminhada de aproximadamente vinte quilômetros. Estrabão (66 a.C.-24 d.C.) chama-o o daímon da deusa e o cabeça dos Mistérios. Ao cair da tarde, a procissão atravessava uma ponte, γέφυρα (guéphyra), sobre o rio Cefiso, e alguns mascarados diziam os piores insultos contra as autoridades, contra pessoas importantes de Atenas e contra os próprios Iniciados. Tais injúrias na ponte denominavam-se γεφυρισγοί (guephyrismoí)16. Já, à noite, empunhando archotes, os m×stai atingiam Elêusis. É bem possível que consumissem uma parte da noite dançando e cantando em homenagem às duas deusas. O dia 20 era consagrado a rigoroso jejum e a sacrifícios, mas o que se passava no interior do recinto sagrado e no τελεστήριον (telestérion), local do santuário, onde se consumavam os mistérios, quase nada se conhece. Sabe-se, apenas, que a teleté, a iniciação em primeiro grau, que ocupava o dia 21, comportava possivelmente três elementos: δρώμενα (drómena), λεγόμενα (legómena) e δεικνύμενα (deiknýmena). O primeiro, drómena, era uma ação, talvez uma encenação do mitologema das deusas: de archotes em punho, os Iniciados mimavam a busca de Core por Deméter. Há uma passagem muito significativa conservada por Estobeu (450-500 d.C.), na qual se diz que as experiências por que passam as almas, logo após a morte, se comparam às provações dos Iniciados nos Grandes Mistérios. De princípio, a alma erra nas trevas e é presa de inúmeros terrores. Repentinamente, porém, é atingida pelo impacto de uma luz extraordinariamente bela e descortina sítios maravilhosos, ouve vozes melodiosas e assiste a danças cadenciadas, como nos versos há pouco citados de As rãs. Aliás, tudo bem parecido com o Bardo Thödol... O Iniciado com uma coroa sobre a fronte junta-se aos homens puros e justos e contempla os não iniciados mergulhados na lama e nas trevas, apegados às próprias misérias pelo medo da morte e suspeita da felicidade que os aguarda na outra vida! Nos drómena, na ação mimética da busca desesperada da filha do Deméter, os Iniciados, segundo se crê, tinham igualmente uma caminhada pelas trevas com encontro de fantasmas aterradores e monstros, mas subitamente descia sobre eles um facho de luz e vastas campinas se abriam ante seus olhos. Comentando esse fato, o grande conhecedor da história das religiões antigas, Mircea Eliade, argumenta que esse “iluminismo” e essas planícies inundadas de luz são reflexos tardios de “concepções órficas” e reforça seu ponto de vista, citando o Fédon, 69c, onde Platão afirma que as punições dos culpados no Hades e a imagem da campina procedem de Orfeu, “que se inspirara nos costumes funerários egípcios”. Vai mais longe o Autor de Mito e realidade, mostrando que, se nas escavações que se fizeram no Santuário de Deméter e no Telestérion não se encontraram câmaras subterrâneas, é sinal de que os Iniciados não desciam ritualmente ao Hades. Na nota de rodapé, no entanto, como que em dúvida, o Autor explica que “isso não exclui a presença do simbolismo infernal”, porque, se não havia “câmaras subterrâneas, existia o Plutónion, isto é, uma gruta de Plutão, que assinalava a entrada para o outro mundo”17. Dada a autoridade do romeno Mircea Eliade, esperamos que o juízo por ele emitido não seja definitivo. É que, se a citação conservada por Estobeu, que, em última análise, procede de Temístio (século IV d.C.), é realmente tardia, embora Platão (430-348 a.C.) já fale da “campina de Orfeu”, é bom deixar claro que os Mistérios de Elêusis não se mantiveram imunes a influências, no decurso de dois mil anos, e que a presença do Órfico-Dionisismo é fato consumado no Santuário de Deméter, ao menos a partir do século VI a.C., o que não é tão tardio assim! De outro lado, para se descer à outra vida e da mesma retornar não há necessidade, em iniciação, de câmaras subterrâneas materiais. Afinal, a escada de Jacó estava armada apenas com degraus oníricos ... E havia o Plutónion! O segundo aspecto diz respeito aos legómena, a saber, determinadas fórmulas litúrgicas e palavras reservadas aos Iniciados, fórmulas e palavras que eles certamente repetiriam, daí a necessidade de saber grego. Não se pode e nem se deve interpretar legómena como um ensinamento catequético, doutrinal, mas antes como o despertar de certos sentimentos e a criação de um certo estado anímico. A este respeito, Aristóteles nos deixou um fragmento precioso (Rose, fr. 15): τούς τελουμένους οὐ μαθεῖν τι δεῖ, ἀλλὰ παθεῖν καὶ διατεθῆναὶ (tús teluménus u matheîn ti deî, allà patheîn kaì diatethênai): “não é necessário que aqueles que se iniciam aprendam algo, mas que experimentem e criem certas disposições internas”. O terceiro e último componente da teleté são os deiknýmena, vocábulo que só se pode traduzir por “ação de mostrar ou o que é mostrado”. Trata-se, segundo se crê, de uma contemplação por parte dos Iniciados, dos hierá, dos objetos sagrados. O Hierofante penetrava no Telestérion e de lá trazia os hierá, envoltos num nimbo de luz e que eram mostrados aos mýstai. Dentre esses objetos sagrados destacava-se, conforme se relata, um ksóanon, uma pequena estátua de Deméter, confeccionada de madeira, e ricamente ornamentada. Mas existe ainda uma passagem muito discutida de São Clemente de Alexandria (século III d.C.), que possivelmente se referia aos deiknýmena. Eis o texto, que está em Protréptico, II, 21,2: “Fiz jejum, bebi o cíceon, tomei o cesto e, depois de havê-lo manuseado, coloquei-o dentro do cestinho; em seguida, pegando novamente o cestinho, recoloquei-o no cesto”. Esta referência de São Clemente de Alexandria tem recebido inúmeras interpretações. Vamos sintetizálas e reduzi-las a seis. O cestinho conteria a réplica de uma kteís, de uma vulva: tocando-a, o Iniciado acreditava renascer como filho de Deméter. Esse tirar do cesto para o cestinho e vice-versa simbolizariam a união sexual do Iniciado com a deusa: o mýstes uniase a Deméter, tocando o kteís com seu órgão sexual. O objeto sagrado guardado na cesta seria um falo: apertando-o contra o peito, o mýstes unia-se à deusa e se tornava seu filho. Para outros, o cestinho conteria um falo e o cesto uma vulva: ao manuseá-los, o Iniciado consumava sua união com as deusas. Tanto o cesto quanto o cestinho guardariam uma serpente, uma romã e bolos em forma de falo e vulva, como representações supremas da fecundidade. Manuseandoos, provocava-se a fertilidade. Qual a correta? Talvez a melhor resposta seria dizer que se trata de uma excelente exegese históricoreligiosa, digna das tertúlias dos frades de Bizâncio! Uma interpretação mais moderna, independentemente dos hierá tão cuidadosamente guardados nos cestos, é que eles seriam objeto de uma apresentação, de mostra (deiknýmena) e não de manipulação. Finalmente, o dia 22 era consagrado à epopteía, à visão suprema, à consumação dos Mistérios. A grande cerimônia se iniciava com o hieròs gámos, o casamento sagrado, material ou simbolicamente consumado pelo hierofante e a sacerdotisa de Deméter. Astério, bispo que viveu no século V d.C., nos deixou uma informação valiosa a esse respeito. Astério volta a falar de uma câmara subterrânea mergulhada nas trevas, onde, após se apagarem as tochas, se consumava o hieròs gámos entre o hierofante e a sacerdotisa e acrescenta que “uma enorme multidão acreditava que sua salvação dependia daquilo que os dois faziam nas trevas”. É claro que, sendo os Mistérios de Elêusis solidários de uma mística agrícola, a sacralidade da atividade sexual simbolizava a fecundidade. Seria após esse hieròs gámosque os Iniciados, olhando para o céu, diziam em altas vozes: “chova” e, olhando para a terra, exclamavam: “conceba”. A mensagem da fertilidade é tão clara, que dispensa comentários. Seria ainda como extensão e consequência do consórcio sagrado, que, consoante Santo Hipólito (século II-III d.C.), em sua obra monumental Philosophúmena ou Omnium haereseum refutatio (V, 38-41), “durante a noite, no meio de um clarão deslumbrante, que comemora os solenes e inefáveis Mistérios, o hierofante gritava: a venerável Brimo gerou Brimos, o menino sagrado: a Poderosa gerou o Poderoso”. Embora Brimo e Brimos sejam certamente vocábulos de origem trácia, Brimo, no caso em pauta, designaria Perséfone, e Brimos, o Iniciado. Kerényi opina que a proclamação do hierofante significa que a deusa da morte gerou um filho no fogo18. Esse filho “nascido” ou “renascido” em meio às chamas dos archotes, que iluminavam o Telestérion, seria o mýstes, após sua morte iniciática. Fechando os Grandes Mistérios, em meio a um mar de luz de milhares de archotes, que davam ao Santuário de Deméter uma imagem antecipada das campinas celestes, se efetuava a epopteía propriamente dita, a grande visão. O hierofante apresentava à multidão como que embevecida e extática, mergulhada em profundo silêncio, uma espiga de trigo. Este talvez seja o símbolo da grande mensagem eleusínia, símbolo que se fundamenta no liame entre o seio materno e as entranhas profundas da Terra-Mãe. A significação religiosa da espiga de trigo reside certamente no sentimento natural de uma harmonia entre a existência humana e a vida vegetal, ambas submetidas a vicissitudes semelhantes: a terra que sozinha tudo gera, nutre e novamente tudo recebe de volta, diz Ésquilo na Oréstia, 127s. Morrendo no seio da terra, os grãos de trigo, por sua própria dissolução, configuram uma promessa de novas espigas. O trigo, como qualquer cereal, tem uma morte fértil, como diz Kerényi. Talvez se pudesse fazer um cotejo com as palavras de Cristo a respeito desse mesmo grão de trigo: Amen, amen dico uobis, nisi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum manet: si autem mortuum fuerit, multum fructum adfert (Jo 12,24): “Em verdade, em verdade, vos digo que, se o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto”. A mesma ideia é repetida por São Paulo em 1Cor 15,36. Ao terminar uma síntese como esta sobre os Mistérios de Elêusis, fica-se, melancolicamente, num grande vazio. Muita história; mitologia abundante; uma pletora de nomes e de etimologias; citações e mais citações; hipóteses e só hipóteses. Sobre o rito, nem uma palavra. Os Mistérios de Elêusis foram, realmente, um grande mistério. O verbo mýein, fonte de mystérion, significa “calar a boca” e também “fechar os olhos”: o grande segredo foi certamente sepultado no silêncio e nas trevas de cada Iniciado. Talvez a razão esteja com Plutarco: “O segredo por si só aumenta o valor daquilo que se aprende”. Por seu relacionamento com a filha Perséfone, deusa ctônia, e com Triptólemo, o mensageiro da cultura do trigo, Deméter se revela a grande deusa das alternâncias da vida e da morte, que regularizam o ciclo da vegetação e de toda a existência. A deusa de Elêusis simboliza uma fase capital na organização da terra: a passagem da natureza bruta à cultura, da selvageria à civilização. Os símbolos sexuais que intervêm no curso da iniciação evocam não só a fecundidade da união sexual, mas sobretudo uma garantia para o mýstes de uma regeneração numa outra vida de luz e de felicidade. Para Paul Diel, Perséfone seria o símbolo supremo da repressão e o sentido secreto dos Mistérios de Elêusis consistiria na descida ao inconsciente, com o propósito de liberar o desejo reprimido e procurar a verdade com vistas a si mesmo, o que pode ser a mais bela das conquistas. Deméter, que deu aos homens o pão, símbolo do alimento espiritual, lhes dará igualmente o sentido verdadeiro da vida: a liberação com respeito a toda exaltação, bem como a qualquer repressão. A deusa se afirmaria, desse modo, como símbolo dos desejos terrestres justificados, encontrando satisfação graças ao esforço engenhoso do intelecto-servidor, o qual, cultivando a terra, permanece acessível ao apelo do espírito19. De qualquer forma, o nume tutelar de Elêusis, matriz espiritual e material, é bem diferente de Hera, esposa de Zeus. Deméter não é a luz, mas o caminho para a luz, o archote que ilumina o caminho. Perséfone é o grão que morre, para renascer mais jovem, forte e belo e, por isso mesmo, ela é Core, a Jovem. Poderia simbolizar o próprio neófito, que morre na iniciação, para renascer para uma vida que não terá fim. A permanência de Perséfone no Hades, que seria para sempre, foi reduzida para quatro meses, por concessão especial de Plutão. É que a jovem esposa, embora a contragosto e forçada, comera lá embaixo uma semente de romã. Vamos ouvi-la: Hades colocou dissimuladamente em minha mão Um alimento doce e açucarado, uma semente de romã, e, contra a minha vontade, usando de força, ele me obrigou a comê-la. (Hh. D., 411-413) O simbolismo da romã se insere em outro de caráter mais geral, o dos frutos com muitas sementes, como a laranja, abóbora e cidra... Trata-se, essencialmente, de um símbolo de fecundidade, de posteridade numerosa. Na Grécia, a romã era um atributo da deusa Hera e de Afrodite e, em Roma, o penteado das mulheres casadas era feito com entrelaçamento de ramos tenros de romãzeira. Na Ásia, a imagem de uma semente aberta de romã expressa o desejo, quando não a própria vulva. Daí o dizer-se por lá que a semente se abre e deixa vir cem filhos. Na Índia, as mulheres bebiam o suco de sementes de romã para combater a esterilidade. Perséfone foi coagida a comer a semente doce da romã, que Hades astutamente lhe colocara na mão: é que esta semente, consagrando quem a come aos deuses infernais, é símbolo de uma doçura maléfica. Tendo-a comido, Perséfone passará, e assim mesmo por “generosa anuência” de Zeus e de Plutão, um terço do ano nas trevas brumosas do Hades e os outros dois em companhia dos Imortais. No contexto do mito, a semente de romã poderia significar que Perséfone deixou-se sucumbir pela sedução e mereceu o castigo de passar quatro meses nas trevas. De outro lado, comendo a semente da romã, ela quebrou o jejum, que era a grande lei do Hades. Quem ali comesse fosse o que fosse não mais poderia regressar ao mundo dos vivos. Os sacerdotes e sacerdotisas de Deméter, em Elêusis, se coroavam com ramos de romãzeira, mas nenhum Iniciado podia, em hipótese alguma, comer-lhe o fruto, porque, símbolo da fecundidade, possui a faculdade de fazer com que as almas mergulhem no cárcere do corpo. A semente de romã, que condenou Perséfone às trevas, por uma contradição aparente do símbolo, condenou-a também à esterilidade. Paradoxo realmente aparente, porque a lei permanente do Hades prevalece sobre o prazer efêmero de haver ela saboreado uma doce semente de romã. Dois pontos se devem destacar nessa desdita de Perséfone, que comeu, e à força, uma semente de romã. O primeiro é o poder de fixação que possuem, em muitas culturas, determinados alimentos e o segundo, a repressão exercida pelo homem sobre a mulher, através da alimentação. É conhecida a força mística do alimento como fixação ou retorno obrigatório a determinado lugar. Câmara Cascudo diz que o ato de comer desliga de um país para outro, “como documento de naturalização indiscutido”, e acrescenta que a iguaria tem uma potência mágica detentora. “Quem come e bebe certos alimentos ou líquidos não pode esquecer ou deixar de regressar aos lugares onde os consumiu”20. O folclore universal, incluindo o brasileiro, nos fornece uma lista deveras extensa de alimentos e bebidas com alto poder de retenção. Entre estes se alinham o cabrito assado do Cáucaso, o “puchero” da Argentina, a “olla podrida” da Espanha, o “porridge” da Escócia, o iogurte da Bulgária, o pato de Rouen, o “Coq au vin du Languedoc”, o vatapá e o caruru da Bahia... A água da fonte Trevi em Roma é um convite a que se retorne à Cidade Eterna. O assaí de Belém do Pará retém por lá a quem dele bebeu: Quem vai ao Pará, parou. Bebeu assaí, ficou. Francisco A. Pereira da Costa assinala com muita precisão o liame estabelecido pelo alimento entre esta e a outra vida: “O recémnascido que não foi amamentado e morre batizado, não participando, portanto, de coisa alguma deste mundo, é um serafim, anjo da primeira hierarquia celestial, e vai imediatamente para as suas regiões ocupar um lugar entre seus iguais; o que receber amamentação e as águas do batismo é simplesmente um anjo, porém antes de entrar no céu passa pelo purgatório para purificar-se dos vestígios da sua efêmera passagem pela terra, expelindo o leite com que se amamentou”21. Nas cerimônias religiosas do casamento na Grécia e em Roma, a fixação do casal no novo lar dependia, entre outros ritos, da degustação do bolo nupcial. O fecho da cerimônia, τὸ τέλος (tò télos), “término, fim”, simbolizava a mudança de lar e a fixação da noiva em seu novo domicílio, mas o ato representativo dessa transferência era comer com o noivo um pedaço de um bolo especial feito de gergelim e mel, bem como um marmelo ou tâmara, símbolos estes últimos da fecundidade. Na velha Roma, após as duas primeiras partes da cerimônia, que se denominavam, respectivamente, traditio, que é a entrega da noiva ao marido, e deductio in domum mariti, ida da noiva para a casa do esposo, seguia-se, a confarreatio, que os dicionários traduzem por “forma solene de casamento romano”, mas que, por extensão, se constituía na cerimônia básica do mesmo: consistia em se comer um bolo de farinha de trigo (far, farris) em comum, como símbolo de permanência. É claro que os bolos de casamento ainda continuam como símbolo do primeiro ato da vida em comum e doméstica da noiva, que, doravante, passaria a mostrar suas aptidões também culinárias... Os banquetes fúnebres, falamos sobretudo de Roma, possuíam, igualmente, entre outros, esse aspecto de fixação e permanência do morto no seio da família, uma vez que este se transformava em deus Lar. Os di lares, ou simplesmente Lares, eram espíritos tutelares, as almas dos mortos, encarregados de proteger a casa, donde sua permanência na mesma era absolutamente indispensável. A refeição fúnebre, para que a fixação fosse realmente efetiva, se repetia no nono dia, no trigésimo e, ao que parece, um ano após o óbito. Na Idade Média havia um costume, pelo menos em Florença, extremamente curioso e que atesta o poder do alimento como vínculo social. Se o assassino conseguisse tomar uma sopa de pão e vinho sobre o túmulo de sua vítima no decorrer dos nove primeiros dias após o crime, a família do morto não poderia mais exercer o direito da clássica vendetta, segundo a alusão de Dante22: Sappi che’l vaso che’l serpente ruppe fu e non è; ma chi n’ ha colpa creda che vendetta di Dio non teme suppe: “Principia por saber que o carro profanado há pouco pelo dragão já não está como foi, e se convença o malfeitor de que à justiça divina nenhuma sopa se antepõe”. Perséfone foi obrigada a comer a semente de romã e, com isso, sendo esta símbolo da fertilidade, a jovem ficou presa ao marido. Fizemos um esboço de pesquisa sobre alimentação e sexualidade e não julgamos fora de propósito aproveitá-la aqui, uma vez que a semente de romã, como alimento e como símbolo, está estreitamente ligada à sexualidade e à repressão, no caso em tela, de Plutão sobre Perséfone. Deve existir uma ligação biológica e real entre alimentação e sexualidade. Logo de saída, o ser, durante os nove meses de gestação, vive no seio materno, alimentando-se de sua substância e, uma vez nascido, nutre-se do leite materno. A analogia da mama com o ato sexual parece clara: “Trata-se, em ambos os casos, de um fenômeno de tumescência”; e, como acentua Havelock Ellis: “A mama inchada corresponde ao pênis em ereção; a boca ávida e úmida da criança corresponde à vagina palpitante e úmida; o leite, vital e albuminoso, representa o sêmen, igualmente vital e albuminoso. A satisfação mútua, completa, física e psíquica da mãe e da criança, pela passagem de um para o outro de um líquido orgânico e precioso, é uma analogia fisiológica verdadeira com a relação entre um homem e uma mulher no ponto culminante do ato sexual”23. “A semelhança de conformação entre as extremidades orais e vaginais, como observa Roger Caillois, numa parte do mundo animal, é um fato devidamente estudado”24. Eis por que, muitas vezes, o desejo sexual é encarado como um aspecto da necessidade de alimentação. O próprio comportamento normal do ser humano atesta uma característica que representa o liame entre alimentação e sexualidade: “a dentada de amor”, por parte da mulher, no momento do coito. Refere-se o fato, ao que tudo indica, a um comportamento instintivo, sem nenhum caráter sádico. Tratar-se-ia, apenas, e inconscientemente, de um ato simbólico de devorar o macho. Essa ligação biológica, primária, entre alimentação e sexualidade explica, num certo número de espécies animais, o fato de o macho ser devorado pela fêmea, como o louva-a-deus e a borboleta, por exemplo, logo após o coito. No ser humano subsistem traços acentuados dessa convergência de instintos. No fundo, o homem receia ser devorado pela mulher. É o interior da vagina dentada, identificada com a boca, suscetível, por isso mesmo, de cortar o membro viril, no momento da penetração. O desenho da coletânea de poemas de Charles Baudelaire, Les fleurs du mal, que estampa uma mulher com a epígrafe Quaerens quem devoret, “buscando a quem devorar”, é muito sugestivo a esse respeito. Trata-se, ao que parece, do complexo de castração. E é tal esse temor, que, na primeira noite de núpcias, nas culturas primitivas, o noivo era ou ainda é substituído por um estrangeiro, um prisioneiro de guerra ou por uma personagem importante, como o sacerdote ou o rei. As duas primeiras classes eram escolhidas em função de seu pouco ou nenhum apreço e as duas últimas pelo fato de o sacerdote e o rei serem portadores da aura sagrada, não correndo, por isso mesmo, nenhum risco. Explica-se, desse modo, o hábito que perdurou na França, até o século XIII, do célebre Le Droit de cuissage du Seigneur, ou seja, o direito da coxa do senhor, em que o rei, deflorando a noiva, dizia-se, prodigalizava às mulheres a fertilidade, bem como contribuía poderosamente para a prosperidade do rebanho e para colheitas abundantes. Como se vê, sexualidade ligada à alimentação. Aliás, o verbo comer em nossa língua tem, além de seu sentido normal, uma conotação chula. Os maridos romanos, no ato do defloramento, invocavam aos gritos a deusa protetora Pertunda (nome proveniente de pertundere, varar de um lado a outro), conforme atesta, entre outros, Santo Agostinho, De Ciuitate Dei, 6,9,325. Por que tanta precaução e medo? Primeiramente, o claro temor do fracasso, o complexo de castração, daí a presença de tantos “ajudantes”, e depois o perigo que representava o sangue do hímen, que era tido como perigoso e nefasto. O Rig Veda, X, 85,28,34, considera corno venenosa qualquer peça ensanguentada da noite de núpcias. O sangue do hímen é identificado com o catamênio, que afasta a mulher menstruada do convívio social, tornando-se a mesma tabu. Sempre presente o complexo de castração. No mito são muitas, já o vimos, as figuras femininas devoradoras, cuja projeção é a Giftmädchen, quer dizer, a donzela venenosa: Lâmia, as Harpias, Empusa, Esfinge, as Danaides, as Sereias... E não é este também, em última análise, o sentido do mito de Pandora, que trouxe como presente de núpcias a Prometeu uma jarra ou uma caixinha, que, aberta, deu origem a todas as desgraças que pesam sobre os homens? Ora, caixa, caixinha, em grego, diz-se pyksís, pyksídos que o latim clássico simplesmente transcreveu por pyxis,-idis. Do acusativo singular do latim popular buxida, de buxis, simples alteração de pysis,-idis, temos o francês boiste e depois boîte, caixa, cofre pequeno e trabalhado e também cavidade de um osso, bem como o português arcaico boeta e o clássico boceta, caixinha redonda, oval ou oblonga que, na linguagem chula, passou a ter também o sentido de vulva. Para ficarmos apenas na Grécia, poder-se-ia ainda citar o nascimento do segundo Dioniso: Sêmele ficou grávida “de Zeus”, porque devorou o coração de Zagreu, o primeiro Dioniso, consoante o mito órfico. Parece realmente que o mito da fêmea devoradora é um mecanismo de defesa arquitetado pelo homem. É a “liquidação de um complexo por um mecanismo semelhante”: similia similibus curantur, os semelhantes curam-se com os semelhantes. Trata-se de uma autodefesa do macho. Talvez a atividade sexual da mulher castre o homem. “O medo de ser enfraquecido pela mulher e sua estratégia sexual”, a lassidão e uma certa fadiga que se seguem após o coito impediriam a realização de atos viris e até mesmo o sucesso nos empreendimentos e negócios a que se dedica o homem. Luís da Câmara Cascudo colheu nos sertões nordestinos dois tabus muito apropriados ao que vimos expondo: “cangaceiro andou com mulher, abriu o corpo”26, quer dizer, perdeu sua proteção mágica, enfraqueceu-se. E o segundo: “visita de mulher em manhã de segunda-feira dá liliu”, ou seja, dá azar, “provoca desastres”...27 Otto Rank sintetizou bem o problema: “O desprezo que o homem afeta pela mulher é um sentimento que tem sua fonte na consciência, mas, no inconsciente, o homem teme a mulher”28. “O sistema patriarcal tende então a ‘eliminar a mulher’, transformando em tabu qualquer tipo de aproximação. Nesse sentido, a nutrição é ligada inconscientemente à mãe”29. Afinal, a mulher é hipóstase da Terra-Mãe, matriz dos alimentos e é da “carne e sangue” da mulher que se nutre o feto durante nove longos meses. Tudo isso explicaria as restrições alimentares que incidem como tabu sobre a mesma, principalmente quando gestante, de resguardo ou menstruada. “Um levantamento realizado no Espírito Santo, de 1957 a 1962, mostra que a gestante não deve comer: carne-seca com polenta, fígado de boi ou vaca, feijão com arroz, ‘papa’ de polenta, aipim, inhame, pimenta, repolho, abacaxi, jaca, melancia, manga quente do sol, além do mais, não pode comer fora de hora”30. Ovo é expressamente proibido à mulher de resguardo: a alimentação ideal, nestas circunstâncias, é carne de galinha, com pouco tempero. Queijo é perigoso: faz que a mãe ou a criança, ainda em período de mama, fique “esquecida”... No fundo, a patrilinhagem “vinga-se” do complexo de castração. Uma simples semente de romã torna-se, destarte, um símbolo bastante sugestivo. 4 HADES, em grego Ἅιδης (Háides). Os antigos interpretavam este vocábulo com base na etimologia popular, sem nenhum cunho científico, e Hades erradamente era traduzido por “invisível, tenebroso”, o que teria a vantagem, e há os que o fazem até hoje, de aproximá-lo do alemão Hölle e do inglês hell, “mundo subterrâneo, inferno”. Modernamente se prefere aproximar Ἄιδης de αἰανής (aianés), por σαFανής (saiwanés), “terrível”, latim saeuus, “cruel, terrível, violento”, mas trata-se de simples hipótese. Após a vitória sobre os Titãs, o Universo foi dividido em três grandes impérios, cabendo a Zeus o Olimpo, a Posídon o Mar e a Hades o imenso império localizado no “seio das trevas brumosas”, nas entranhas da Terra, e, por isso mesmo, denominado “etimologicamente” Inferno, como se explicará depois. Na luta contra os Titãs, os Ciclopes armaram Hades com um capacete que o tornava Invisível, daí a falsa etimologia que lhe deram os Gregos, ἀ (a) “não” e ιδεῖν (ideîn) “ver”. Esse capacete, por sinal, muito semelhante ao de Siegfried na mitologia germânica, foi usado por outras divindades como Atená e até por heróis, como Perseu, fato já mencionado no mito da Górgona. Por “significar” Invisível, o nome Hades (que também lhe designa o reino), é raramente proferido: Hades era tão temido, que não o nomeavam por medo de lhe excitar a cólera. Normalmente é invocado por meio de eufemismos, sendo o mais comum Plutão, o “rico”, como referência não apenas a “seus hóspedes inumeráveis”, mas também às riquezas inexauríveis das entranhas da terra, sendo estas mesmas a fonte profunda de toda produção vegetal. Isso explica o corno de abundância com que é muitas vezes representado. Violento e poderoso, receia tão somente que Posídon, o “sacudidor da terra”, faça o solo se abrir e “franqueie aos olhos de todos, mortais e Imortais, sua morada horripilante, esse local odiado, cheio de bolor e de podridão”, como lhe chama Homero na Ilíada, XX, 61-65. Geralmente tranquilo em sua majestade de “Zeus subterrâneo”, permanece confinado no sombrio Érebo, de onde saiu apenas duas vezes, uma delas para raptar Core. Exceto essa temerosa aventura, Hades ocupa sua eveternidade em castigar ou repelir os intrusos que teimam em não lhe respeitar os domínios, como o audacioso Pirítoo, que, acompanhado de Teseu, penetrou no Hades na louca esperança de raptar Perséfone. Pirítoo lá está, por astúcia de Plutão, sentado numa cadeira, por toda a eternidade, como se há de ver no mito de Teseu. Lutou ainda contra Héracles, que desceu aos Infernos, para capturar o cão Cérbero. Foi no decurso deste combate que o herói o feriu no ombro direito com uma flechada. Tão grande era a dor, que o Senhor dos mortos teve que subir ao Olimpo e solicitar os bons serviços de Peéon (epíteto de Apolo), o deus curandeiro, que lhe aplicou sobre o ferimento um bálsamo maravilhoso. É tão estreitamente ligado a Zeus ctônio, que Hesíodo prescreve ao camponês de invocá-lo associado a Deméter, antes de meter mãos à charrua. Derivado de Pluto, tão benéfico no Hino homérico a Deméter, Plutão possuía, como se mostrou, um valor puramente eufemístico, permitindo, assim, que se encobrisse o verdadeiro caráter de Hades, o cruel, o implacável, o inflexível, que odiado de todos (Il., IX, 158), não poderia, com esse nome, receber as honras devidas a um deus. As inscrições mostram que mesmo assim Plutão era muito pouco cultuado na Terra, possuindo, com certeza, apenas um templo em Elêusis e outro menor em Élis, que era aberto somente uma vez por ano e por um único sacerdote. Já que estamos no Hades, vamos dar uma ideia da concepção popular grega da outra vida, que é, a bem da verdade, resultante de vastos sincretismos, que se estendem de Homero aos derradeiros neoplatônicos (século III d.C.), passando luminosamente pela Eneida de Vergílio, composta, já se sabe, no século I a.C. Tomada em bloco, a religião grega, que jamais teve um livro sagrado, também não comportava dogmas, porque nunca possuiu um sacerdócio (exceto, em parte, nos Mistérios e no Oráculo de Delfos), que a preservasse de erros e transmitisse a doutrina e a crença a seus adeptos, fortalecendo-lhes a fé. A ausência de uma classe sacerdotal há de trazer à religião helênica consequências sérias. Não havendo quem consagrasse sua vida ao serviço dos deuses, de seus templos e de seus bens, os assim chamados sacerdotes não passavam de cidadãos comuns, eleitos para a função por tempo determinado, verdadeiros sacerdotes sem “vocação” e despreparados, as mais das vezes. Eram homens que, junto à sua ocupação normal na vida da cidade, tinham a missão temporária de cuidar do culto de um deus e guardar-lhe o templo. Enquanto no Oriente a atividade literária, como bem acentuou Nilsson31, a conservação da tradição, a especulação e tudo quanto houvesse de ciência estavam nas mãos dos sacerdotes, tudo isto, na Grécia, desde a época mais antiga, era assunto de leigos, de poetas e de pensadores. Quando se tratava de assuntos mais graves atinentes à religião, os mesmos eram resolvidos pela ἐκκλησία(ekklesía), pela assembleia do povo, embora se reconhecesse o poder dos deuses, solicitando-lhes o consentimento através do Oráculo de Delfos, se se tratasse sobretudo de modificar cultos antigos ou introduzir outros novos. É grande e séria a transcendência dessa circunstância, pois constitui nada menos que a base para a liberdade de pensamento, bem como para o nascimento da filosofia e da ciência. Pois bem, foi exatamente essa liberdade de pensamento, somada aos vastos sincretismos, que acabou por moldar “uma crença”, que fez da religião grega uma colcha de retalhos. É verdade que os deuses tinham seus templos, seus nomes, suas múltiplas funções, mas cada um podia interpretá-los como bem o desejasse. Assim sendo, não se pode falar de uma escatologia grega, mas houve na Hélade tantas escatologias quantas as fases e momentos histórico-sócio-culturais por que passou a Hélade. Houve tantas escatologias quantas as correntes literárias e filosóficas que medraram na pátria de Homero e de Sócrates. Já se falou de “escatologias” em Homero e Hesíodo: ambas muito diferentes... Poderíamos falar de outras: nos Órficos, nos Pitagóricos, em Platão e nos Neoplatônicos, nos Estoicos e até na ausência de escatologia no Epicurismo (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Escatologia). Vamos nos ater, porém, para o momento, apenas na visão popular do além32, não nos esquecendo, vamos repetir, que se trata de um vasto sincretismo. O reino ctônio de Plutão chamava-se mais comumente Hades, mas havia outros nomes pelos quais podia ser designado, na Grécia e em Roma, muitas vezes tomando-se a parte pelo todo, como Érebo, Tártaro, Orco, Inferno, estes dois últimos provenientes do latim. Discutida a etimologia de Hades, tentaremos estabelecer as das outras denominações, quando existirem. ÉREBO, do grego Ἔρεβος (Érebos), designa as trevas que cercam o mundo. Trata-se de uma concepção indo-europeia, *reqwos, “cobrir de trevas”, que aparece no sânscrito como rájas, “espaço escuro”, no gótico riqiz, “escuridão”, e no armênio erek, “tarde”, como se mostrou no capítulo IX. TÁRTARO, é o grego Τάρταρος (Tártaros), “abismo subterrâneo, local de suplícios”. É possivelmente um empréstimo oriental. Orco é o latim Orcus, “morada subterrânea dos mortos, os infernos”. A etimologia do vocábulo é desconhecida. A proveniência do indo-europeu *areq ou areg é atualmente considerada como fantasiosa, quando não absurda. Inferno ou “Os Infernos” é palavra latina infernus. Etimologicamente infernus é uma forma segunda de inferus, “que se encontra embaixo”, por oposição a superus, “que se encontra em cima”, donde a oposição Di Inferi, deuses do Inferno, do Hades, e Di Superi, deuses do Olimpo. Observe-se, ainda, em latim, os comparativos inferior, que está mais embaixo, “inferior”, por oposição a superior, que está mais acima, “superior”. Substantivado, o neutro plural inferna,-orum, significa as habitações dos deuses de baixo e também dos mortos, quer dizer, o Inferno, abstração feita, em princípio, de local de sofrimento ou de castigo, já que todos na Grécia e em Roma iam para o “Inferno”, como parece ter sido no Antigo Testamento, o sentido de Sheol, onde é documentado sessenta e cinco vezes, como por exemplo em Jó 17,16: in profundissimum infernum descendent omnia mea: “todas as minhas coisas descerão ao mais profundo dos infernos”. E era, precisamente, com esta acepção que ainda se rezava, no Credo, não faz muito tempo, (que Jesus Cristo) desceu aos infernos, expressão que, para evitar equívoco, foi substituída por desceu à mansão dos mortos. É a partir do Novo Testamento, todavia, que o Inferno é identificado com a Geena, local de sofrimento eterno e a parte mais profunda do Sheol, como está em Lc 16,22-23: Factum est autem ut moreretur mendicus et portaretur ab angelis in sinum Abrahae. Mortuus est autem et dives et sepultus est in inferno: “Ora sucedeu morrer o mendigo e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão, e morreu também o rico, e foi sepultado no inferno”. A sequência da parábola diz que Lázaro, o mendigo, estava lá em cima e o rico, lá embaixo, havendo entre ambos um abismo intransponível. Na Grécia, ao que tudo indica, somente a partir do Orfismo, lá pelo século VII-VI a.C., é que o Hades, o Além, foi dividido em três compartimentos: Tártaro, Érebo e Campos Elísios. O fato facilmente se explica, conforme se há de falar no mito de Orfeu e Eurídice: é que o Orfismo rompeu com a secular tradição da chamada maldição familiar, segundo a qual não havia culpa individual, mas cada membro do guénos era corresponsável e herdeiro das faltas de cada um de seus membros, e tudo se quitava por aqui mesmo. Para os Órficos a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se paga aqui; e quem não se purgar nesta vida, pagará na outra ou nas outras. Havendo uma retribuição, forçosamente terá que existir, no além, um prêmio para os bons e um castigo para os maus e, em consequência, local de prêmio e de punição. Veremos um pouco mais adiante que, desses três compartimentos, somente um era permanente, na concepção popular. Quanto à localização, o Hades era um abismo encravado nas entranhas da Terra, e cuja entrada se situava no Cabo Tênaro (sul do Peloponeso) ou numa caverna existente perto de Cumas, na Magna Grécia (sul da Itália). Também na literatura babilônia, na epopeia de Gilgamex, nos mitos de Nergal e Ereskigal, na descida de Ištar para os Infernos, estes são um lugar debaixo da Terra, além do oceano cósmico. Há dois caminhos para se chegar lá: descendo na terra ou viajando para o extremo ocidente; mas, antes de atingir o Além, é necessário transpor o rio dos mortos, “as águas da morte”. Também as concepções ugarítica e bíblica localizam o Inferno nas profundezas da Terra (Sl 63,10). Abrindo-se esta, Coré, o levita, que se opôs a Moisés, bem como Datã e Abirão, com os seus, desceram vivos para os Infernos (Nm 16,30-33). Jó, que os considera como o lugar mais baixo da criação (11,8), imagina os acessos à outra vida no fundo do oceano primordial, em que a terra boia (Jó 38,16ss; 26,5). O universo, por conseguinte, é dividido em três partes: “acima da terra, na terra e debaixo da terra” ou céu, terra e inferno (Ex 20,4; Fl 2,10). Para que se possa compreender o destino da alma no Hades, vamos acompanhá-la em sua longa viagem, do túmulo ao reino de Plutão. A obrigação mais grave de um grego é o que concerne ao sepultamento de seus mortos: os filhos, ou, na carência destes, os parentes mais próximos devem sepultar seus pais segundo os ritos, sob pena de lhes deixar a alma volitando no ar por cem anos (o cômputo é puramente fictício), sem direito a julgamento, e, por conseguinte, à paz do Além. Lembremo-nos do já citado verso da Ilíada (XXIII, 71) no capítulo VII, em que a psiqué de Pátroclo pede angustiadamente a Aquiles que lhe sepulte o corpo, ou as cinzas, após a cremação, não importa: Sepulta-me o mais depressa possível, para que eu cruze as portas do Hades. O sepultamento, todavia, depende de certos ritos preliminares: o cadáver, após ser ritualmente lavado, é perfumado com essências e vestido normalmente de branco, para simbolizar-lhe a pureza. Em seguida, é envolvido com faixas e colocado numa mortalha, mas com o rosto descoberto, para que a alma possa ver o caminho que leva à outra vida. Certos objetos de valor são enterrados com o morto: colares, braceletes, anéis, punhais... Os arqueólogos, escavando túmulos, encontraram grande quantidade desses objetos. Em certas épocas se colocava na boca do morto uma moeda, óbolo destinado a pagar ao barqueiro Caronte, para atravessar a alma pelos quatro rios infernais. Essa ideia de pagamento da passagem, diga-se logo, não é um simples mecanismo da imaginação popular. Toda moeda é um símbolo: representa o valor pelo qual o objeto é trocado. Mas, além de seu valor próprio de dinheiro, de símbolo de troca, as moedas, consoante Cirlot, “desde a Antiguidade tiveram certo sentido talismânico”33, uma vez que nelas a conjunção do quadrado e do círculo não é incomum. Além do mais, a moeda, em grego nómisma, é o símbolo da imagem da alma, porque esta traz impressa a marca de Deus, como a moeda o traz do soberano, segundo opina Angelus Silesius. A moeda chinesa, denominada “sapeca”, é um círculo com um furo quadrado no centro; vê-se aí claramente a coniunctio oppositorum: a conjunção do Céu (redondo) e da Terra (quadrada), o animus e a anima, formando uma totalidade. Por vezes se colocava junto ao morto um bolo de mel, que lhe permitia agradar o cão Cérbero, guardião da porta única de entrada e saída do Hades. O cadáver é exposto sobre um leito, durante um ou dois dias, no vestíbulo da casa, com os pés voltados para a porta, ao contrário de como entrou na vida. A cabeça do morto, coroada de flores, repousa sobre uma pequena almofada. Todo e qualquer homem podia velar o morto, acompanhar-lhe o féretro e assistir-lhe ao sepultamento ou à cremação, mas a lei era extremamente rígida com a mulher: na ilha de Ceos só podiam entrar na casa, onde houvesse um morto, aquelas que estivessem “manchadas” (a morte sempre contamina) pela proximidade de parentesco com o mesmo, a saber, a mãe, a esposa, as irmãs, as filhas e mais cinco mulheres casadas e duas jovens solteiras, cujo grau de parentesco fosse no mínimo de primas em segundo grau. Em Atenas, igualmente, a legislação de Sólon era severa a esse respeito: só podiam entrar na casa do morto e acompanhar-lhe o enterro aquelas que fossem parentes até o grau de primas. Os presentes vestiam-se de luto, cuja cor podia ser preta, cinza e, por vezes, branca, e cortavam o cabelo em sinal de dor. Carpideiras acompanhavam o féretro para cantar o treno. Diante da porta da casa se colocava um vaso (ardánion) cheio de uma água lustral, que se pedia ao vizinho, porque a da casa estava contaminada pela morte. Todos que se retiravam, se aspergiam com essa água, com o fito de se purificar. O enterro se realizava na manhã seguinte à exposição do corpo. A lei de Sólon prescrevia que todo enterro se deveria realizar pela manhã, antes do nascimento do sol. Desse modo, os enterros em Atenas se faziam pela madrugada e por um motivo religioso: até os raios de sol se manchavam com a morte! No cemitério, sempre fora dos muros da cidade, o corpo era inumado ou cremado sobre uma fogueira: neste último caso, as cinzas e os ossos eram cuidadosamente recolhidos e colocados numa urna, que era sepultada. Após se fazerem libações ao morto, voltava-se para casa e se iniciava o minucioso trabalho de purificação da mesma, porque, para os gregos, o maior dos “miasmas” era o contato com a morte. Após um banho de cunho rigorosamente catártico, normalmente com água do mar, os parentes do morto participavam de um banquete fúnebre; este se renovava, em Atenas, ao menos, no terceiro, nono e trigésimo dia e na data natalícia do falecido. Sepultado ou cremado o corpo, a psiqué era conduzida por Hermes, deus psicopompo, até a barca de Caronte34. Recebido o óbolo, o robusto demônio da morte permitia a entrada da alma em sua barca, que a transportava para além dos quatro temíveis rios infernais, Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte, já por nós explicados no capítulo XII. Já do outro lado, após passar pelo cão Cérbero, o que não oferecia grandes dificuldades, pois o que o monstro de três cabeças realmente vigiava era a saída, a psiqué enfrentava o julgamento. O tribunal era formado por três juízes integérrimos: Éaco, Radamanto e Minos. Esse tribunal, no entanto, é bem recente. Homero só conhece como juiz dos mortos a Radamanto. Éaco aparece pela primeira vez em Platão. Radamanto julgava os asiáticos e africanos; Éaco, os europeus. Em caso de dúvida, Minos intervinha e seu veredicto era inapelável. Infelizmente quase nada se sabe acerca do conteúdo desse julgamento e a maneira como era conduzido, embora na Eneida, 6,566-569, Vergílio nos fale, de passagem, que Radamanto supliciava as almas, obrigando-as a confessar seus crimes ocultos. Julgada, a alma passava a ocupar um dos três compartimentos: Campos Elísios, Érebo ou Tártaro. Neste último eram lançados os grandes criminosos, mortais e imortais. Era o único local permanente do Hades: lá, como se viu nos capítulos IX e X, supliciados pelas Erínias, ficavam para sempre os condenados, os irrecuperáveis. O mesmo Vergílio, ainda no canto 6,595-627, nos dá uma visão dantesca dos suplícios a que eram submetidos os réprobos e a natureza dos crimes por eles perpetrados. O grande poeta, todavia, no que se refere às faltas graves cometidas, mistura habilmente “aos que espancaram os pais, aos avarentos, aos adúlteros, aos incestuosos, aos que desprezam os deuses”, os condenados por crimes políticos... Estão no Tártaro os que “fizeram guerras civis, os desleais, os traidores, os que venderam a pátria por ouro e impuseram-lhe um senhor despótico...” É bom não perder de vista que, a par de ser um poema tardio (século I a.C.), a Eneida é também uma obra assumidamente engajada e comprometida com a ideologia política do imperador Augusto, cuja pessoa, cuja família, que era de origem divina35, cujo governo e cujas reformas o poeta canta, exalta e defende. No Tártaro vergiliano, os assassinos principais de César, Cássio e Bruto, e seus grandes inimigos políticos, como Marco Antônio e a egípcia Cleópatra, entre muitos outros, sem omitir os heróis gregos, inimigos do troiano Pai Eneias, fundador da raça latina, certamente formariam um inferninho à parte, com suplícios adequados... Talvez mais violentos do que os do inferno político da Divina Comédia de Dante! Mas a Sibila de Cumas, que acompanhara Eneias à outra vida, dizlhe que, embora tivesse cem bocas, seria impossível nomear todas as sortes de crimes e relatar as espécies de castigos. O Érebo e os Campos Elísios são impermanentes: trata-se mais de compartimentos de prova do que de purgação. As provações aí realizadas servem de parâmetro de regressão ou de evolução e aperfeiçoamento, cuja natureza nos escapa. Quer dizer, a descida definitiva ao Tártaro ou a próxima ἐνσωμάτωσις (ensomátosis), “reencarnação”, ou ainda a próxima μετεμψύχωσις (metempsýkhosis), “metempsicose”, que são coisas muito diferentes36, dependeriam intrinsecamente do “comportamento” da psiqué durante sua permanência no Érebo ou nos Campos Elísios. No Érebo estão aqueles que cometeram certas “faltas”. Seria conveniente deixar claro que alguns habitantes temporários do Érebo, que Vergílio denomina lugentes campi, Campos das Lágrimas, não têm suas faltas especificadas e outros lá estão sem que possamos compreender o motivo. Recorrendo mais uma vez à Eneida, 6,426-450, vamos ver que nos Campos das Lágrimas estão criancinhas que morreram prematuramente; as vítimas de falso julgamento; as suicidas (o poema só fala em mulheres) por amor, como Fedra, Prócris, Evadne, Dido... Alguns heróis troianos (mirabile dictu!) também lá estão e heróis gregos igualmente. O poeta latino, no entanto, deixa bem claro que essas almas não estão no Érebo por acaso, “sem o aresto de juízes, uma vez que Minos indagou de sua vida e de seus crimes”. Donde se conclui que cometeram “faltas”. Do Érebo, que é temporário, elas ou mergulharão no Tártaro, porque se pode regredir, ou subirão para outra impermanência, os Campos Elísios, único local de onde poderiam partir os candidatos à reencarnação ou à metempsicose. Em se tratando do último nível ctônio, em que estão os poucos que lá conseguiram chegar, os Campos Elísios, em grego Ηγύσια πεδία (Elýsia pedía) são descritos, ao menos na Eneida, 6,637ss, como um paraíso terrestre em plena idade de ouro. Lá residem os melhores em opulentos banquetes nos gramados, cantando em coro alegres canções, nos perfumados bosques de loureiro. Lá estão os que já passaram por uma série de provas e purgações. Mas, decorridos mil anos, após se libertarem totalmente das “impurezas materiais”, as almas serão levadas por um deus às águas do rio Lete37e, esquecidas do passado, voltarão para reencarnar-se. Em nove versos, o grande poeta latino sintetiza toda a doutrina da reencarnação emanada da doutrina órfico-pitagórica: quisque suos patimur manis; exinde per amplum mittimur Elysium et pauci laeta arua tenemus, donec longa dies perfecto temporis orbe concretam exemit labem, purumque relinquit aetherium sensum atque aurai simplicis ignem. Has omnis, ubi mille rotam uoluere per annos, Lethaeum ad fluuium deus euocat agmine magno, scilicet immemores supera ut conuexa reuisant rursus, et incipiant in corpora uelle reuerti. (En., 6,743-751) – Todos sofremos em nossos manes os merecidos castigos. Em seguida somos enviados para o vasto Elísio e são poucos os que ocupam estes prados alegres, enquanto o escoar dos anos destrói a impureza material, deixando puro o etéreo espírito, no estado primeiro de fulgor ígneo. Um deus então, decorridos mil anos, leva às águas do Lete as almas purificadas, para que, esquecidas do passado, tornem a ver a face da terra e queiram voltar a novos corpos. Poderia causar estranheza aos menos avisados o fato de nos termos apoiado, em alguns pontos, num poema latino, para explicar a escatologia popular grega. A explicação é fácil: toda a parte doutrinária do 6ocanto da Eneida é órfico-pitagórico-platônica. Boyancé fez um estudo extraordinário da religião vergiliana e no capítulo VII, intitulado Inferi (Os Infernos), sintetizou não apenas quanto o poeta latino deve à Grécia no 6° canto, mas quanto também Vergílio é original no mesmo canto sexto, que é considerado, com justas razões, como o termômetro da Eneida. “Observando-se as concepções religiosas (do canto 6o), tudo é grego, quer se trate de mitos infernais ou de doutrinas filosóficas. Mas que o Pai (Anquises) seja o hierofante e que Eneias, por sua pietas, tenha sido conduzido a ele, que o cívico e o cósmico estejam estreitamente associados, tudo isto faz que o espírito, que dá vida às concepções, aos mitos e à doutrina, se torne profundamente romano”. Eis aí uma visão da escatologia grega popular em suas linhas gerais, mas poder-se-ia perguntar: a quantas reencarnações se tinha direito? E depois de totalmente purificada das misérias do cárcere do corpo, qual o destino final da psiqué? A primeira pergunta talvez se pudesse responder evasivamente que o número de reencarnações se mediria pela paciência dos deuses (que certamente não era muito grande!); e à segunda, dizendo-se que, via de regra, o céu grego era platonicamente a Via Láctea. Ao menos, que se saiba, a cabeleira de Berenice e os imperadores romanos, que morriam benquistos do povo, eram transformados em astros... 5 POSÍDON, em grego Ποσειδῶν (Poseidôn). Partindo-se da variante gráfica Ποτειδάῶν (Poteidáon), é possível, segundo Kretschmer, Glotta, 1, 1909, 27ss, 382ss, analisar o teônimo como justaposição do vocativo *Ποτει (*Pótei), v. πόσις (pósis), “senhor, esposo”, e de Δᾶς (Dâs), nome antigo da “terra”, δᾶ (dâ) e Δημήτηρ (Deméter), donde Posídon seria “o mestre, o senhor, o esposo da terra” conforme assinala Pierre Chantraine, DELG., p. 931. Carnoy, DEMG, p. 170, com base no dórico, decompõe o vocábulo Ποτειδᾶν (Poteidân) em πόσις (pósis), “senhor”, e δᾶν (dân), “água”, e Posídon significaria “o senhor das águas”, o que é pouco provável. De qualquer forma, Posídon é o deus das águas, mas a princípio, e antes do mais, das águas subterrâneas. Veremos o motivo histórico desse fato linhas abaixo. Quando o Universo, após a vitória de Zeus sobre os Titãs, foi dividido em três grandes reinos, como se mostrou, ao falarmos de Hades, Posídon obteve, por sorte, mas para sempre, o domínio do branco mar (Il., XV, 187s). Embora tenha lutado valentemente contra os Titãs e “fechado sobre eles as portas de bronze do Tártaro”, o deus do mar nem sempre foi muito dócil à superioridade e à autoridade de seu irmão Zeus. Tal independência explica o ter participado com Hera e Atená de uma conspiração para destronar o pai dos deuses e dos homens. A intentona teria surtido efeito, não fora a pronta intervenção do Hecatonquiro Briaréu, chamado às pressas por Tétis. Bastou a presença do monstro, para que os conjurados desistissem de seu intento. Como castigo, Posídon foi obrigado a servir durante um ano ao rei de Troia, Laomedonte. Ali, juntamente com Apolo e o mortal Éaco, participou da construção da sólida muralha da fortaleza de Heitor. Ao término da fatigante tarefa, Laomedonte se recusou a pagar o salário combinado. Posídon suscitou contra a região da Tróada um terrível monstro marinho e na Guerra de Troia, apesar de sua prudência e temor de Zeus, colocou-se ao lado dos aqueus, exceção feita a certas vinganças pessoais contra Ájax da Lócrida e Ulisses. Disfarçado em Calcas, o deus encoraja os dois Ájax, exorta Teucro e Idomeneu e acaba tomando parte pessoalmente no combate, mas se retirou da refrega, sem discutir, quando Zeus assim o decidiu. Se salvou Eneias de morte certa nas mãos de Aquiles, talvez tal atitude se explique porque o herói troiano não estava ligado à família de Laomedonte, mas a Trós, através de Anquises, Cápis e Assáraco ou ainda porque desejasse angariar um sorriso de Afrodite. Como Zeus, o deus do mar também está ligado ao cavalo, ao touro, a Deméter, como divindade de fecundação. Casou-se com Anfitrite, que foi mãe do “imenso Tritão, divindade terrível e de grandes forças, que habita com sua mãe e seu ilustre pai um palácio de ouro nas profundezas das águas marinhas” (Teog., 930-933). Reina em seu império líquido, à maneira de um “Zeus marinho”, tendo por cetro e por arma o tridente, que os poetas dizem ser tão terrível quanto o raio. Seu palácio “faiscante de ouro e indestrutível” (Il., XIII, 22) ficava nas profundezas de Egas, cidade na costa norte da Acaia, onde estava localizado um de seus principais santuários. Percorria as ondas sobre uma carruagem tirada por seres monstruosos, meio cavalos, meio serpentes. Seu cortejo era formado por peixes e delfins e criaturas marinhas de todas as espécies, desde Nereidas até gênios diversos, como Proteu e Glauco. Eis as facetas mais conhecidas do grande deus do mar, desde Homero. Subsistem, porém, na própria epopeia, vestígios de um Posídon mais antigo e bem diferente, revelado por epítetos frequentes e significativos e curiosamente sinônimos, como ένοσίχθων (enosíkhthon), σεισίχθων (seisíkhthon) e έννσίμασίς (ennosígaios), quer dizer, o “sacudidor da terra”, o que corresponde a uma ação de baixo para cima, isto é, a uma atividade exercida do seio da terra por uma divindade subterrânea. Posídon, com efeito, foi um antigo deus ctônio, muito antes de tornar-se um deus do luar. Em suma, estes três epítetos mostram que originariamente o deus foi uma divindade ativa que fazia a terra oscilar, quer se tratasse da seiva vital e de abalos sísmicos, quer se tratasse de todas as águas que escapavam do seio da Terra-mãe. Com os epítetos de Φυτάλμιος (Phytálmios) e Φύκιος (Phýkios), isto é, que faz nascer, que produz algas”, Posídon aparece igualmente como o promotor da vegetação marinha e terrestre, sendo esta última alimentada pelas águas doces tidas como emanação do deus. Como Phytálmios, diga-se de passagem, o “sacudidor da terra” estava associado nas Haloas a Dioniso e Deméter e no velho mito da Arcádia era considerado como esposo de Deméter-Geia. Essencialmente ctônio, o que não significa infernal, eis aí o Posídon dos primeiros invasores gregos, que, não conhecendo e não tendo um vocábulo seu para designar mar38, não poderiam ter trazido consigo um deus do mar. Trouxeram, realmente, um “outro deus”, o Posídon ctônio, senhor das águas subterrâneas, depois das águas “terrestres”, nascentes, fontes e lagos, e, só depois, deus do mar. Meillet, cujas conclusões acabamos de citar, resume o problema do desconhecimento do mar por parte dos gregos e portanto da inexistência, a princípio, de um deus “das águas salgadas” com as seguintes palavras: “O mar não possui em grego uma denominação antiga e não existe para mar outro nome indo-europeu a não ser no grupo supracitado, do latim mare...”39Devem ter sido os emigrantes gregos que povoaram as ilhas e as regiões costeiras da Ásia Menor, esses “navegadores convertidos”, que estenderam ao império das ondas o poder do deus que até então reinava apenas sobre as águas terrestres e ctônias. Desse modo, Posídon, o “sacudidor da terra”, se tornou também o “sacudidor do mar” e recebeu o duplo privilégio de domador de cavalos e salvador de navios. Bem mais que “às crinas das ondas”, as espumas das vagas, e ao galope do cavalo, é à natureza primitivamente ctônia de Posídon que se devem atribuir no mito e no culto seus vínculos frequentes com o cavalo, que, como o touro, que lhe é igualmente associado, é um símbolo das forças subterrâneas, além de ser, por sua clarividência e familiaridade com as trevas, um guia seguro, um excelente psicopompo. O nome do cavalo, em grego ἵππος (híppos), está ligado ao de algumas fontes, como Aganipe, Hipocrene. Numa versão tessália o deus foi pai de Esquífio, o primeiro cavalo, que ele teve de Geia, e no folclore da Arcádia foi pai de Aríon, o cavalo de crinas azuis, que ele gerou, como vimos, após transformar-se em garanhão, para conquistar Deméter, metamorfoseada em égua. Há um mito relatado por Pausânias (8,8,2), segundo o qual Posídon se salvara da fúria devoradora de Crono, metamorfoseando-se em potro. Segundo uma variante, na disputa com Atená pelo domínio da Ática, o deus teria feito sair da terra um cavalo e não uma fonte. Posídon é o presenteador, por excelência, de cavalos alados e até dotados de palavra e de inteligência: Pégaso, o cavalo alado, foi dado a Belerofonte; os “inteligentes” Xanto e Bálio foram presenteados a Peleu. Alguns heróis, que passam por filhos seus, Hipótoon, Neleu e Pélias, foram amamentados por éguas. A ligação entre Posídon e o cavalo é tão estreita, que o animal pode substituir o próprio deus. Na Ilíada, XXIII, 584, Menelau, desconfiado de que a vitória de Antíloco fora fraudulenta, convida-o a jurar por Posídon, estendendo a mão sobre seus cavalos e o carro. No culto, o deus é, muitas vezes, chamado Híppios, “gerador de cavalos”, particularmente em Olímpia, onde a disputa entre Pélops e Enômao se converteu num protótipo de concursos hípicos que se encontram, por vezes, em suas festas. Não menor é a ligação do deus com o touro, sua vítima predileta, que lhe era sacrificado no altar ou precipitada viva no mar (Il., XI, 728; XX, 403; Odiss., I, 25 e III, 178). Na tragédia de Eurípides, Hipólito Porta-Coroa, o touro surge, dessa feita, sob um aspecto monstruoso, para destruir o inocente Hipólito, a pedido de Teseu, o filho de Posídon-Egeu. Foi igualmente Posídon o responsável pela paixão de Pasífae pelo lindíssimo touro de Creta, para punir o rei Minos, que não cumprira a promessa de sacrificar-lhe o animal. O deus do mar teve, além da esposa legítima Anfitrite, muitos amores, todos fecundos. Mas, enquanto os filhos de Zeus eram heróis benfeitores da humanidade, os filhos de Posídon, em sua maioria, eram gigantes terríveis e violentos, como, em parte, já se viu. Com Toosa gerou o monstruoso ciclope Polifemo; com Medusa, o gigante Crisaor e o cavalo Pégaso; com Amimone, uma das cinquenta filhas de Dânao, teve Náuplio; com Ifimedia, os alóadas, isto é, os gigantes Oto e Efialtes. Além destes foram filhos seus, Cércion e Cirão, grandes salteadores, ambos mortos por Teseu; o rei dos lestrigões, Lamo, e o caçador maldito, Oríon; com Hália foi pai de seis filhos e de uma filha chamada Rodos, que deu seu nome à ilha de Rodes. Os filhos homens de Posídon com Hália eram tão violentos e cometeram tantos excessos, que Afrodite os enlouqueceu. Como tentassem violentar a própria mãe, para não serem massacrados, Posídon os escondeu no fundo da terra. Desesperada, Hália precipitou-se no mar. Os habitantes de Rodes instituíram-lhe um culto, como a uma divindade, sob o nome de Leucoteia. O mês ático Posídeon, que lhe era consagrado, e correspondia mais ou menos a dezembro, era o mês das tempestades de inverno, pois que Posídon é antes o deus do mar encapelado que da bonança. É invocado, por isso mesmo, como salvador dos navios e protetor dos passageiros. Talvez uma certa selvageria em seu caráter e modo de agir, e bem assim a violência da maioria de seus filhos configurem o aspecto sinistro dos elementos. Quando os homens se organizaram em cidades, os deuses decidiram escolher uma ou várias delas, onde seriam particularmente honrados. Acontecia, frequentemente, no entanto, que duas ou três divindades escolhiam a mesma, o que provocava sérios conflitos, que eram submetidos à arbitragem de seus pares ou ao juízo de simples mortais. Nesses julgamentos Posídon quase sempre teve suas pretensões vencidas. Assim é que perdeu para Hélio a cidade de Corinto, por decisão de Briaréu. Desejou reinar em Egina, mas foi suplantado por Zeus. Em Naxos foi derrotado por Dioniso; em Delfos, por Apolo; em Trezena, por Atená. A disputa maior, todavia, foi pela posse de Atenas e de Argos. Desejando ardentemente Atenas, foi logo se apossando da cidade. Para mostrar sua força, fez brotar da terra, com um golpe de tridente, um mar, outros dizem que foi um cavalo. Atená, tendo convocado o rei de Atenas, Cécrops, tomou-o por testemunha de sua ação: plantou simplesmente um pé de oliveira, símbolo da paz e da fecundidade. A magna querela foi arbitrada, segundo uns, por Cécrops e Crânao, também rei de Atenas, consoante outros pelos próprios deuses. Tendo Cécrops testemunhado que Atená plantara primeiro o pé de oliveira, foi-lhe dada a vitória. Irritado, o deus inundou a planície de Elêusis, fertilíssima em oliveiras. Em Argos, disputada também pela deusa Hera, o árbitro foi Foroneu, o primeiro a reunir os homens em cidades. Lá igualmente se decidiu em favor da deusa. Posídon, em sua cólera, amaldiçoou a Argólida e secou-lhe todas as nascentes. Pouco depois, chegou à região Dânao com suas cinquenta filhas e não encontrou água para beber. Posídon, que se apaixonara por Amimone, levantou a maldição e os mananciais reapareceram. Talvez, por compensação, foi-lhe outorgada sem disputa uma ilha longínqua, mas paradisíaca: a Atlântida, sobre que faremos algumas digressões. Atlântida, em grego Ἀτλαντίς (Atlantís), prende-se a Atlas, em grego Ἀτλας (Átlas), “que sustém a abóbada celeste”, vocábulo formado,ao que tudo indica, de um prefixo intensivo a-e detlâ, que aparece no grego τλῆναι (tlênai), “suportar”. Em dois de seus diálogos, Timeu e Crítias, conta Platão que Sólon, quando de sua viagem ao Egito, interrogara alguns sacerdotes e um deles, que vivia em Saís, no Delta do Nilo, lhe relatou tradições muito antigas relativas a uma guerra entre Atenas e os habitantes da Atlântida. Esse relato do filósofo ateniense se inicia no Timeu e é retomado e ampliado num fragmento que nos chegou do Crítias. Os atlantes, segundo o sacerdote de Saís, habitavam uma ilha, que se estendia diante das Colunas de Héracles, quando se deixa o Mediterrâneo e se penetra no Oceano. Quando da disputa, já conhecida por nós, entre Atená e Posídon pelo domínio de Atenas, o deus do mar, tendo-a perdido, recebeu como prêmio de consolação a Atlântida. Lá vivia Clito, uma jovem de extrema beleza, que havia perdido os pais, chamados, respectivamente, Evenor e Leucipe. Por ela, que habitava uma montanha central da ilha, se apaixonou o deus, que, de imediato, lhe cercou a residência com altas muralhas e fossos cheios de água. Dos amores de Posídon com Clito nasceram cinco vezes gêmeos. O mais velho deles chamava-se Atlas. A ele o deus concedeu a supremacia, tornando-se o mesmo o rei suserano, uma vez que a ilha fora dividida em dez pequenos reinos, cujo centro era ocupado por Atlas. A Atlântida era riquíssima por sua flora, fauna e por seus inesgotáveis tesouros minerais: ouro, cobre, ferro e sobretudo oricalco, um metal que brilhava como fogo. A ilha foi embelezada com cidades magníficas, cheias de pontes, canais, passagens subterrâneas e verdadeiros labirintos, tudo com o objetivo de lhe facilitar a defesa e incrementar o comércio. Anualmente, os dez reis se reuniam e o primeiro ato que praticavam em comum era a caçada ritual ao touro. Essa perseguição e a captura do animal sagrado se faziam no próprio témenos do deus, isto é, porção de território com um altar ou templo consagrado à divindade. Após garrotearem o animal, decapitavam-no, o que faz lembrar o tauróbolo da Creta minoica, cerimônia em que a perseguição precede à oblação final da vítima. O sangue do touro era cuidadosamente recolhido e com ele os dez reis se aspergiam, porque o animal é identificado com a divindade (Plat., Crít., 119d-120c). Após esse rito inicial, os reis, revestidos de uma túnica azul-escuro, sentavam-se sobre as cinzas ainda quentes do sacrifício e davam início à segunda parte da reunião sagrada. Apagados todos os archotes, mergulhados em trevas profundas, os monarcas faziam sua autocrítica e julgavam-se reciprocamente durante uma noite inteira. Aqui, infelizmente, termina o relato do filósofo. Sabe-se ainda que tentando subjugar o mundo, os atlantes foram vencidos pelos atenienses, e isto nove mil anos antes de Platão. Os atlantes e sua ilha, consoante ainda o autor de Crítias, desapareceram completamente, tragados por um cataclismo. Existe, no entanto, uma variante muito significativa de Diodoro Sículo (século I a.C.), acerca da Atlântida e seus habitantes. Segundo o Autor da Biblioteca histórica, a Amazona Mirina declarou guerra aos atlantes que habitavam um país vizinho da Líbia, à beira do Oceano, onde os deuses, dizia-se, haviam nascido. À frente de uma cavalaria de vinte mil Amazonas e de uma infantaria de três mil, conquistou primeiro o território de um dos dez reinos da Atlântida, cuja capital se chamava Cerne. Em seguida, avançou sobre a capital, destruiu-a e passou todos os homens válidos a fio de espada, levando em cativeiro as mulheres e as crianças. Os outros nove reinos da Atlântida, apavorados, capitularam imediatamente. Mirina os tratou generosamente e fez aliança com eles. Construiu uma cidade, a que deu o nome de Mirina, em lugar da que havia destruído, e franqueou-a a todos os prisioneiros e a quantos desejassem habitá-la. Os atlantes pediram então à denodada Amazona que os ajudasse na luta contra as Górgonas. Depois de sangrenta batalha, Mirina conseguiu brilhante vitória, mas muitas das inimigas conseguiram escapar. Certa noite, porém, as Górgonas prisioneiras no acampamento das vencedoras lograram apoderar-se das armas das sentinelas e mataram grande número de Amazonas. Recompondo-se logo, as comandadas de Mirina massacraram as rebeldes. Às mortas foram prestadas honras de heroínas e, para perpetuar-lhes a memória, foi erguido um túmulo suntuoso, que, à época histórica, ainda era conhecido com o nome de Túmulo das Amazonas. As gestas atribuídas a Mirina, todavia, não se esgotam com estas duas guerras. Mais tarde, após conquistar, talvez com auxílio dos atlantes, grande parte da Líbia, dirigiu-se para o Egito, onde reinava Hórus, filho de Ísis, e com ele concluiu um tratado de paz. Organizou, em seguida, uma gigantesca expedição contra a Arábia; devastou a Síria e, subindo para o norte, encontrou uma delegação de cilícios, que, voluntariamente, se renderam. Atravessou, sempre lutando, o maciço do Tauro e atingiu a região do Caíque, término de sua longa expedição. Já bem mais idosa, Mirina foi assassinada pelo rei Mopso, um trácio expulso de sua pátria pelo rei Licurgo. A lenda desta Amazona é mais uma “construção histórica” e não constitui propriamente um mito, mas uma interpretação de elementos míticos combinados de modo a formar uma narrativa mais ou menos coerente, nos moldes das interpretações “racionalistas” dos mitógrafos evemeristas. Mirina, rainha das Amazonas, é seu nome da Ilíada, mas este é seu nome “junto aos deuses”; entre os homens ela é chamada Batiia. A Atlântida, o continente submerso, seja qual for a origem do mito, permanece no espírito de todos, à luz dos textos inspirados a Platão pelos sacerdotes egípcios, como o símbolo de uma espécie de paraíso perdido ou de cidade ideal. Domínio de Posídon, aí instalou ele os dez filhos que tivera de uma simples mortal. O próprio deus organizou e adornou sua ilha, fazendo dela um reino de sonhos: “Seus habitantes se enriqueciam de tal maneira, que jamais se ouviu dizer que um palácio real possuísse ou viesse algum dia a possuir tantos bens. Tinham duas colheitas por ano: no inverno utilizavam as águas do céu; no verão, aquelas que lhes dava a terra, com a técnica da irrigação” (Crít., 114d, 118e). Quer se trate de reminiscências de antigas tradições, quer a narrativa platônica não passe de uma utopia, o fato é que, tudo leva a crer, Platão projetou na Atlântida seus sonhos de uma perfeita organização político-social: “Quando as trevas desciam e as chamas dos sacrifícios se extinguiam, os reis, cobertos com lindas indumentárias de um azul-cinza, sentavam-se por terra, nas cinzas do holocausto sacramental. Então, em plena escuridão da noite, apagados todos os archotes em torno do santuário, os soberanos julgam e são julgados, se houver sido cometida por qualquer deles alguma falta. Terminado o julgamento, as sentenças são gravadas, já em pleno dia, sobre uma mesa de ouro, que era consagrada como recordação do feito” (Crít., 120bc). Mas quando neles se “enfraquecia o elemento divino e o humano passava a dominar”, eram alvo do castigo de Zeus. A Atlântida reúne, assim, o tema do Paraíso e da Idade de Ouro, que se encontra em todas as culturas, seja no início da humanidade, seja no seu término. A originalidade simbólica da Atlântida está na ideia de que o Paraíso reside na predominância em cada um de nós de um elemento divino. Acerca do destronamento de Crono e de sua magna consequência, que foi a vitória de Zeus, fundador da terceira e última geração divina, há de se falar longamente no capítulo seguinte. 1. Salamandra, em grego Σαλαμάνδρα (Salamándra), talvez de origem mediterrânea. Tratase de uma espécie de tritão que os povos antigos julgavam poder viver no fogo, sem ser consumido. Foi, por isso mesmo, identificada com o próprio fogo, de que era uma manifestação viva. Atribuía-se também à Salamandra o poder de extinguir as chamas, por sua excepcional frialdade. No Egito, a Salamandra era o hieróglifo de homem morto de frio. Na iconografia medieval, representava o justo que não perde a paz de sua alma e a confiança em Deus em meio às tribulações e sofrimentos. Para os alquimistas é a pedra fixada no vermelho. Deram-lhe o nome ao enxofre incombustível. A Salamandra, que se alimenta do fogo, e a Fênix, que renasce das próprias cinzas, são os dois símbolos mais comuns do enxofre. 2. LONS, Veronica. The World’s Mythology. London: Hamlyn, 1974, p. 248ss. 3. BACHELARD, Gaston. La Psychanalyse du feu. Paris: Gallimard, 1965, p. 58. 4. Alalcômenes é um herói da Beócia, fundador da cidade do mesmo nome. Atribui-se a ele a invenção das hierogamias de Zeus e Hera, isto é, de cerimônias religiosas em que se reatualizava o casamento dos dois. Conta-se que Hera. constantemente enganada por Zeus e cansada das infidelidades do esposo, veio até Alalcômenes queixar-se do marido. O herói aconselhou-a a que mandasse executar uma estátua dela mesma, mas confeccionada de carvalho (árvore consagrada a Zeus), e fizesse transportá-la solene e ricamente paramentada, seguida de grande cortejo, como se fosse uma verdadeira procissão nupcial. A deusa assim o fez, instituindo uma festa denominada Festas Dedáleas. Segundo a crença popular, esse rito re-atualizava, rejuvenescia a união divina e conferia-lhe eficácia por magia simpática, pondo um freio, ao menos temporário, às infidelidades do marido... 5. Argos é personagem secundária no mito. Como existem quatro Argos na mitologia, é bom lembrar que este, de que estamos tratando, é o Argos, filho de Arestor e longínquo descendente de Zeus e Níobe. Tinha, segundo uns, apenas um olho; segundo outros, quatro: dois voltados para a frente e dois para trás. A tradição mais seguida, porém, é a de que Argos era dotado de cem olhos. Hera o encarregou de vigiar a vaca Io, de quem estava enciumada. Argos amarrou-a numa oliveira de um bosque sagrado de Micenas. Graças a seus cem olhos, podia vigiá-la com grande eficiência, pois, quando dormia, fechava apenas cinquenta. Hermes, todavia, recebeu ordem expressa de Zeus de libertar Io. A maneira cromo o fez varia muito no mito. O filho de Maia teria liquidado Argos com uma pedra, lançada de longe. Tê-lo-ia adormecido, tocando a flauta mágica de Pã. Uma vez mergulhado em sono profundo, Hermes o matou. Para imortalizá-lo, Hera lhe tirou os cem olhos e os colocou na cauda do pavão. 6. Em nosso livro Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: TAB, 1980, p. 77, ao tratar da “Origem da Comédia”, chamamos a atenção para Aiskhrología e as Haloas, como elementos dos Kômoi. 7. Ἐγευσίς (Eleusís), do verbo ”erχesθai (érkhesthai), “vir, chegar”, é a vinda, a chegada. Talvez o ponto de encontro. No Novo Testamento, Ap 7,52, sob forma proparoxítona, ἔλευσις (éleusis), significa a “vinda” de Jesus Cristo. 8. O cíceon é uma bebida composta, que pode ser preparada de diferentes maneiras: na Ilíada, XI, 624-641, seus ingredientes são a farinha de cevada, queijo ralado e vinho; na Odisseia, X, 234, às substâncias citadas Circe ainda adiciona mel e drogas mágicas. 9. ELIADE, Mircea. Op. cit., t. I, v. II, p. 127. 10. ARISTÓFANES. As rãs. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1987 [Tradução de Junito de Souza Brandão]. 11. Ética a Nicômaco, 3,1,17. A indiscrição do poeta teria ocorrido em tragédias infelizmente perdidas, como As sacerdotisas, Sísifo, Ifigênia... Ameaçado de morte, conta-se, foi absolvido pelo Areópago por causa de sua coragem na luta contra os persas, em Maratona. 12. Sabázio, em grego Σαβάζιος (Sabádzios). Trata-se de um nome frígio e talvez signifique, por eufemismo, o poderoso. Sabázio é, pois, um deus oriental cujo culto possuía, como Baco, um caráter orgiástico. É comumente assimilado a Dioniso no mundo grego e considerado como um Dioniso mais velho, filho de Zeus e Perséfone. Atribuía-se-lhe a iniciativa de domesticar os bois e era assim que se explicavam os cornos que lhe adornavam as estátuas. Zeus se teria unido a Perséfone sob a forma de serpente, que era, por isso mesmo, o animal sagrado do deus e desempenhava, tudo leva a crer, um papel importante em seus mistérios. Não pertencendo ao panteão helênico propriamente dito, Sabázio não possui um ciclo mítico pessoal, pelo menos exotérico. É bem possível que, nos mistérios, que se celebravam em sua honra, seu mito fosse revelado. 13. Eumolpo é, segundo as melhores tradições, filho de Posídon e Quíone. Com medo da reação do pai, que lhe desconhecia a gravidez, tão logo nasceu Eumolpo, Quíone o lançou no mar. Posídon o recolheu e levou-o para a Etiópia, entregando-o à filha, que uma variante atesta que tivera com Anfitrite, chamada Bentesícima. Eumolpo se casou com uma filha de sua mãe de criação, mas, como houvesse tentado violar uma das cunhadas, foi banido. Com o filho Ísmaro refugiou-se na Trácia, na corte do rei Tegírio, que deu a Ísmaro uma de suas filhas em casamento. Tendo participado de uma conspiração contra o rei, foi expulso da Trácia, refugiando-se em Elêusis. Com a morte de Ísmaro, Eumolpo se reconciliou com Tegírio, que lhe deixou o reino em testamento. Foi durante seu reinado na Trácia que eclodiu a guerra entre Atenas, conduzida por seu rei Erecteu, e Elêusis. Eumolpo lutou bravamente com suas tropas em favor dessa última, mas foi morto em combate. Para vingálo, Posídon conseguiu de Zeus que fulminasse Erecteu. Diferentes tradições atribuem-lhe a instituição dos Mistérios e seu filho Quérix, palavra que significa arauto, após a morte do pai, exerceu função importante nos Mistérios. É ele o ancestral mítico dos querices. 14. Iaco é o nome místico de Baco nos Mistérios de Elêusis: trata-se, parece, do grito ritual dos Iniciados: Iaco, ó Iaco, e este grito acabou por tornar-se um deus. Talvez Iaco seja um daímon, um intermediário entre Dioniso e Deméter. Veja-se o cap. IV do volume II. 15. Nesta comédia, v. 314-414, Aristófanes faz uma belíssima paródia, de cunho religiosopolítico, do Coro dos Iniciados na grandiosa procissão que se dirigia para Elêusis. 16. Tem-se discutido muito o sentido desses ultrajes grosseiros. Parece tratar-se de um rito apotropaico: também através dos insultos se afastariam os malefícios. 17. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 131s. 18. KERÉNYI, Ch. Introduction à l’essence de la mythologie, Paris: Payot, 1953, p. 142s. 19. DIEL, Paul. Op. cit., p. 197. 20. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1951, p. 42s. 21. 21 PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Folclore Pernambucano. In: Revista do Instituto Histórico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1908, t. LXX, p. 84. 22. ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Purgatorio, XXXIII, 34-36. Firenze: “La Nuova Ita-lia” Editrice, 1980. 23. ELLIS, H. L’impulsion sexuelle. In: Études de psychologie sexuelle. Paris, 1911, t. III, p. 199. 24. CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme. Paris: Gallimard, 1938, p. 45. 25. O grande bispo de Hipona, na passagem citada, critica violentamente a atitude dos maridos romanos que, na primeira noite de núpcias, temendo um fracasso, enchiam a alcova de deuses e deusas, para que os ajudassem na “ingente tarefa”: Virginiense, Súbigo, Prema, Pertunda, Vênus, Priapo são divindades obrigatoriamente presentes! O autor da Cidade de Deus ironiza perguntando se não bastaria um deles e conclui indignado: Et certe si adest Virginiensis dea, ut uirgini zona soluatur; si adest deus Subigus ut uiro subigatur; si adest Prema, ut subacta, ne se commoueat, comprimatur; dea Pertunda ibi quid facit? Erubescat, eat foras: agat aliquid et maritus. Valde inhonestum est, ut quod uocatur illa, impleat quisquam nisi ille: “Se, com efeito, está presente a deusa Virginiense, para soltar o cinto da donzela; se está presente o deus Súbigo, para submetê-la ao marido; se está presente a deusa Prema, para que, submetida, a noiva se deixe deflorar, que faz lá a deusa Pertunda? Que ela se cubra de vergonha e vá embora, permitindo que o marido faça também alguma coisa. É sumamente vergonhoso que outro faça pelo marido o que significa etimologicamente Pertunda... 26. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954, p. 595. 27. Ibid., p. 595. 28. RANK, Otto. O traumatismo do nascimento. Rio de Janeiro: Marisa Editora, 1934, p. 125. 29. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 99. 30. TEIXEIRA, F. Tabus Alimentares. In: Revista Brasileira de Folclore. T. XI, n. 30, 1971, p. 101-208, citado por Monique AUGRAS, op. cit., p. 98. 31. NILSSON, Martin P. Op. cit., p. 12s. 32. Em princípio, Além ou Mundo do Além não se confunde com Outro Mundo. O Além é o domínio misterioso para onde se encaminham todos os homens após a morte. É diferente do Outro Mundo, que não é um Além, mas um duplo de nosso mundo, na medida em que seus habitantes podem dele sair ou entrar, quando assim o desejarem. Podem até mesmo convidar simples mortais (Ganimedes, Tirésias, Sísifo) para visitá-lo ou lá permanecerem por algum tempo. Do Além, a não ser em circunstâncias especiais (reencarnação, Teseu, Orfeu, Eneias... ) ninguém sai. O Outro Mundo é, por definição, o mundo dos deuses, em oposição ao mundo dos homens, vivos ou mortos, indo estes últimos para o Além. O Outro Mundo escapa às contingências do tempo e da dimensão. Seus habitantes são imortais e podem se encontrar, não importa o lugar ou o momento. Num impera a luz; no outro, as trevas. 33. CIRLOT, J.E. Diccionario de símbolos. Madri: Labor, 1969, verbete. 34. Caronte, em grego Χάρων (Kháron), cuja etimologia é controvertida. Popularmente e nome é tido come eufemismo; Kháron proviria do verbo χαίρειν (khaírein), “alegrar-se”, donde Caronte seria o “amável” ou o “brilhante”. Trata-se, no mito, de um gênio de mundo infernal, cuja função era transportar as almas para além dos rios do Hades, pelo pagamento de um óbolo. Em vida ninguém penetrava em sua barca, a não ser que levasse, como Eneias, um ramo de ouro, colhido na árvore sagrada de Core. Héracles, quando desceu ao Hades, forçou-o, à base de bordoadas, a deixá-lo passar. Como castigo, por “haver deixado” um vivo atravessar os rios, o barqueiro do Hades passou um ano inteiro encadeado. Parece que Caronte apenas dirige a barca, mas não rema. São as almas que o fazem. Representam-no como um velho feio, magro, mas extremamente vigoroso, de barba hirsuta e grisalha, coberto com um manto sujo, e roto, e um chapéu redondo. Nas pinturas tumulares etruscas, Caronte aparece como um demônio alado, a cabeleira eriçada de serpentes, segurando um martelo. Isto dá a entender que o Caronte etrusco é um “demônio da morte”, aquele que “mata” o moribundo e o arrasta para o Hades. Para a etimologia v. Dicionário míticoetimológico. 35. Astutamente, Caius Iulius Caesar, aproveitando-se de uma lenda, segundo a qual o herói troiano Eneias, filho de Anquises e da deusa Vênus, e pai de Iulus, teria fundado a raça latina, o político romano fez uma falsa aproximação etimológica de Iulius com Iulus e candidatou-se também a ter sangue divino, como parente de Vênus. Ora, sendo Augusto sobrinho de César, o sangue de Vênus corria também em suas veias... Com o respaldo de uma deusa, o Imperador haveria de realizar suas grandes reformas. E o melhor é que, historicamente, as realizou... 36. Ensomátosis, “reencarnação”, é a transmigração de uma alma de um corpo humano para outro também humano; metempsicose é a reencarnação da alma humana sucessivamente em corpos múltiplos, humanos, animais ou até vegetais. Voltaremos a falar a esse respeito no volume II e mais amplamente no Dicionário mítico-etimológico. 37. Lete, em grego λήθη (Léthe), significa “esquecimento”. Era o único rio que se atravessava no retorno a esta vida. 38. Como muitas línguas indo-europeias (exceto um vasto grupo, que se estende do ítalocéltico ao eslavo e que jamais perdeu o contato com o mar, e possuía um nome comum para designá-lo: latim mare; irlandês muir; gótico marei; velho eslavo morje... ), o grego não tinha uma palavra própria para designar mar. O grego Πόντος (póntos) “mar” teria significado, de início, caminho e estaria aparentado com o latim pons e com o sânscrito pánthâh, “caminho”; πέλαγος (pélagos) “mar”, cuja etimologia não se conhece com segurança, lembra o latim planus e parece, como o mesmo latim aequor, designar “uma vasta superfície” e θάλαττα (thálatta), “mar”, é certamente um empréstimo mediterrâneo. 39. MEILLET, Antoine. Aperçu d’une histoire de la langue grecque. Paris: Hachette, 1935, p. 12. CAPÍTULO XIV A Terceira Geração Divina: Zeus e suas lutas pelo poder 1 Zeus, em grego Ζεύς (Dzeús), divindade suprema da maioria dos povos indo-europeus. Seu nome significa o que ele sempre foi antes de tudo: “o deus luminoso do céu”. A flexão Ζεύς (Dzeús), Διός (Diós) pressupõe dois radicais: *dy-eu, *dy-êu, fonte de Ζεύς (Dzeús) e do ac. Ζῆν (Dzên), que se origina de *dyê(u)m a que corresponde o sânscrito dyau ; o segundo radical é deiw > deiuos > *dei(u)os > deus e com alternância *diw-, como se vê no gen.ΔιFός (Diwós). Em latim IOU, de *dyew, com a junção de piter (pater), gerou Iuppiter, “pai do céu luminoso”, que possui o mesmo significado que Dyâus pitar. No a.a. alemão Tiu>Ziu se tornou o deus da guerra, aparecendo o mesmo nome igualmente em inglês, sob a forma Tuesday, “o dia de Zeus”. Em francês, “o dia de Júpiter” surgiu primeiramente com a formajuesdi, depoisjeudi, que é o latimiouis dies, “dia de Júpiter”. Aliás, os inúmeros epítetos gregos de Zeus atestam ser ele um deus tipicamente da atmosfera: ómbrios, hyétios (chuvoso); úrios (o que envia ventos favoráveis); astrápios ou astrapaîos (o que lança raios); brontaîos (o que troveja). Nesse sentido, diz Teócrito que Zeus ora está sereno, ora desce sob a forma de chuva. Num só verso (Il., XV, 192), Homero sintetiza o caráter celeste do grande deus indoeuropeu: Zeus obteve por sorte o vasto céu, com sua claridade e suas nuvens. Antes de penetrarmos no mito de Zeus e sua conquista definitiva do Olimpo, voltemos brevemente a Crono, para que se possa colocar uma certa ordem didática no assunto. Como se mostrou no capítulo X, depois que se tornou senhor do mundo, Crono converteu-se num tirano pior que seu pai Úrano. Não se contentou em lançar no Tártaro a seus irmãos, os Ciclopes e os Hecatonquiros, porque os temia, mas, após a admoestação de Úrano e Geia de que seria destronado por um dos filhos, passou a engoli-los, tão logo nasciam. Escapou tão-somente o caçula, Zeus: grávida deste último, Reia refugiou-se na ilha de Creta, no monte Dicta ou Ida, segundo outros, e lá, secretamente, deu à luz o futuro pai dos deuses e dos homens, que foi, logo depois, escondido por Geia nas profundezas de um antro inacessível, nos flancos do monte Egéon. Em seguida, envolvendo em panos de linho uma pedra, ofereceu-a ao marido e este, de imediato, a engoliu. No antro do monte Egéon, Zeus foi entregue aos cuidados dos Curetes1e das Ninfas. Sua ama de leite foi “a ninfa”, ou, mais canonicamente, “a cabra” Amalteia2. Quando, mais tarde, a cabra morreu, o jovem deus a colocou no número das constelações. De sua pele, que era invulnerável, Zeus fez a égide3, cujos efeitos extraordinários experimentou na luta contra os Titãs. Atingida a idade adulta, o futuro senhor do Olimpo iniciou uma longa e terrível refrega contra seu pai. Tendo-se aconselhado com Métis, a Prudência, esta lhe deu uma droga maravilhosa, graças à qual Crono foi obrigado a vomitar os filhos que havia engolido. Apoiando-se nos irmãos e irmãs, devolvidos à luz pelo astuto Crono, Zeus, para se apossar do governo do mundo, iniciou um duro combate contra o pai e seus tios, os Titãs. Antes, porém, de entrarmos na descrição da gigantesca peleja divina, voltemos um pouco ao nascimento e à infância do filho de Reia. Zeus veio ao mundo na matrilinear ilha de Creta e, de imediato, foi levado por Geia para um antro profundo e inacessível. Trata-se, claro está, em primeiro lugar, de uma encenação mítico-ritual cretense, centrada no menino divino, que se torna filho e amante de uma Grande Deusa. Depois, seu esconderijo temporário numa gruta e o culto minoico de Zeùs Idaîos, celebrado numa caverna do monte Ida, têm características muito nítidas de uma iniciação nos Mistérios. Não é em vão, além do mais, que se localizou, mais tarde, o túmulo do pai dos deuses e dos homens na ilha de Creta, fato que mostra a assimilação iniciática de Zeus aos deuses dos Mistérios, que morrem e ressuscitam. Conta-se ainda que o entrechocar das armas de bronze dos Curetes abafava o choro do recém-nascido, o que traduz uma projeção mítica de grupos iniciáticos de jovens que celebravam a dança armada, uma das formas da dokimasía grega. A dança desses demônios, e Zeus é cognominado “o maior dos Curetes”, é um conhecido rito da fertilidade. A maior e a mais significativa das experiências de Zeus foi ter sido amamentado pela cabra Amalteia e, como o simbolismo da cabra é muito rico, vamos aproveitar a ocasião para fazer um ligeiro comentário a respeito do mesmo. Na Índia, já que a palavra que a designa significa igualmente não nascido, a cabra é símbolo da substância primordial não manifestada. Ela é a mãe do mundo, é Prakriti e as três cores, que lhe são atribuídas, o vermelho, o branco e o negro, correspondem aos três guna, isto é, às três qualidades primordiais, respectivamente sattva, rajas e tamas. Em algumas partes da China, a cabra está intimamente ligada ao deus do raio e a cabeça do animal sacrificado lhe servia de martelo, figurando, pois, a cabra um elemento da atividade celeste em benefício da terra e, mais precisamente, da agricultura. Na mitologia germânica a cabra Heidrun pasta as folhas do freixo Yggdrasil e seu leite alimenta os guerreiros de Odin. Entre os gregos, a cabra simboliza o raio. A estrela da Cabra na constelação do cocheiro anuncia a tempestade e a chuva, assim como a cabra Amalteia, nutriz de Zeus. Aliás, a associação da cabra com a hierofania, com a manifestação de um deus, é muito antiga. Segundo Diodoro Sículo, foram cabras, quando pastavam no monte Parnaso, que despertaram a atenção para uns vapores, que, saindo das entranhas da terra, punham as mesmas num verdadeiro estado de vertigem. Os habitantes do local compreenderam logo que esses vapores eram uma manifestação do divino e ali instituíram o Oráculo de Delfos. Javé se manifestou a Moisés no monte Sinai em meio a raios e trovões. Como recordação dessa hierofania, a cobertura do tabernáculo era confeccionada com fios entrelaçados de pelos de cabra. Romanos e sírios, quando invocavam seus deuses, para testemunhar sua união com o divino, usavam, por vezes, uma indumentária denominada cilicium, cilício em português, confeccionada de pelos de cabra. Para os cristãos, o uso do cilício tem, no fundo, o mesmo sentido: a mortificação da carne pela penitência e a liberação da alma que se entrega inteiramente a Deus. Os Órficos comparavam a alma iniciada a um cabritinho caído no leite, isto é, que vive da alimentação dos neófitos para ter acesso à imortalidade. O bode designa muitas vezes Dioniso em transe místico, símbolo de um recém-nascido para uma vida divina. Nas “orgias” dionisíacas, as Bacantes cobriam-se com peles de cabritos degolados. Em todas as tradições, a cabra aparece como símbolo da nutriz e da “iniciadora”, tanto em sentido físico quanto místico dos termos. O fato é que o deus dos raios e dos trovões se preparou iniciaticamente para assumir o governo do mundo. 2 A luta de Zeus e seus irmãos contra os Titãs, comandados por Crono, durou dez anos. Por fim, venceu o futuro grande deus olímpico e os Titãs foram expulsos do Céu e lançados no Tártaro. Para obter tão retumbante vitória, Zeus, a conselho de Geia, libertou do Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, que lá haviam sido lançados por Crono. Agradecidos, os Ciclopes deram a Zeus o raio e o trovão; a Hades ofereceram um capacete mágico, que tornava invisível a quem o usasse e a Posídon presentearam-no com o tridente, capaz de abalar a terra e o mar. Terminada a refrega, os três grandes deuses receberam por sorteio seus respectivos domínios: Zeus obteve o Céu; Posídon, o mar; Hades Plutão, o mundo subterrâneo ou Hades, ficando, porém, Zeus com a supremacia no Universo. Geia, todavia, ficou profundamente irritada contra os Olímpicos por lhe terem lançado os filhos, os Titãs, no Tártaro, e excitou contra os vencedores os terríveis Gigantes, nascidos do sangue de Úrano, como se mostrou no capítulo X. Vencidos os formidáveis Gigantes, segundo se mostrou também no capítulo há pouco citado, uma derradeira prova, a mais terrível de todas, aguardava a Zeus, a seus irmãos e aliados. Geia, num derradeiro esforço, uniu-se a Tártaro, e gerou o mais horrendo e terrível dos monstros, Tifão ou Tifeu. TIFÃO, em grego Τυφῶν (Typhôn), cuja raiz, em etimologia popular, seria o indo-europeu dheubh-, “gerar obscuridade, nevoeiro e fumaça”. Não seria absurdo, assim, aproximá-lo semanticamente do grego τυφλός (typhlós), “cego”, que aparece no antigo irlandês dub, “negro”, e no alemão taub, “surdo”, uma vez que Tifão é uma espécie de síntese da violência, cegueira e surdez de todas as forças primordiais. Tifão, ao que parece, é divindade pré-helênica. Deixando de lado certas variantes, que fazem do monstro filho de Hera e Crono ou apenas de Hera, fiquemos com a hesiódica acima citada, que lhe dá como pais a Tártaro e Geia. Tifão era um meio-termo entre um ser humano e uma fera terrível e medonha. Em altura e força excedia a todos os outros filhos e descendentes de Geia. Era mais alto que as montanhas e sua cabeça tocava as estrelas. Quando abria os braços, uma das mãos tocava o Oriente e a outra o Ocidente e em lugar de dedos possuía cem cabeças de dragões. Hesíodo (Teog., 824ss) ainda é mais preciso: De suas espáduas emergiam cem cabeças de serpentes, de um pavoroso dragão, dardejando línguas enegrecidas; de seus olhos, sob as sobrancelhas, se desprendiam clarões de fogo... Da cintura para baixo tinha o corpo recamado de víboras. Era alado e seus olhos lançavam línguas de fogo. Quando os deuses viram tão horrenda criatura encaminhar-se para o Olimpo, fugiram espavoridos para o Egito, escondendo-se no deserto, tendo cada um tomado uma forma animal: Apolo metamorfoseou-se em milhafre; Hera, em vaca; Hermes, em íbis; Ares, em peixe; Dioniso, em bode; Hefesto, em boi. Zeus e sua filha Atená foram os únicos a resistir ao monstro. O vencedor de Crono lançou contra Tifão um raio, o perseguiu e feriu com uma foice de sílex. O gigantesco filho de Geia e Tártaro fugiu para o monte Cásio, nos confins do Egito com a Arábia Petreia, onde se travou um combate corpo a corpo. Facilmente Tifão desarmou a Zeus e com a foice cortou-lhe os tendões dos braços e dos pés e, colocando-o inerme e indefeso sobre os ombros, levou-o para a Cilícia e o aprisionou na gruta Corícia. Escondeu os tendões do deus numa pele de urso e os pôs sob a guarda do dragão-fêmea Delfine. Mas o deus Pã, com seus gritos que causavam pânico, e Hermes, com sua astúcia costumeira, assustaram Delfine e apossaram-se dos tendões do pai dos deuses e dos homens. Este recuperou, de imediato, suas forças, e, escalando o Céu num carro tirado por cavalos alados, recomeçou a luta, lançando contra o inimigo uma chuva de raios. O gigante refugiou-se no monte Nisa, onde as Moîras lhe ofereceram “frutos efêmeros”, prometendo-lhe que aqueles lhe fariam recuperar as forças: na realidade, elas o estavam condenando a uma morte próxima. Tifão atingiu o monte Hêmon, na Trácia, e, agarrando montanhas, lançava-as contra o deus. Este, interpondo-lhes seus raios, as atirava contra o adversário, ferindo-o profundamente. As torrentes de sangue que corriam do corpo de Tifão deram nome ao monte Hêmon, uma vez que, em grego, sangue se diz αϊμα (haîma). O filho de Geia fugiu para a Sicília, mas Zeus o esmagou, arremessando sobre ele o monte Etna, que até hoje vomita suas chamas, traindo lá embaixo a presença do monstro: essas chamas provêm dos raios com que o novo soberano do Olimpo o abateu. 3 Já se acentuou o caráter de dokimasía e de iniciação de Zeus infante, colocado num antro profundo, cercado pelos Curetes e amamentado pela cabra Amalteia. Até aqui Zeus se “preparava” para as grandes lutas que iria travar. Depois vieram as provas definitivas nos embates contra os Titãs e os Gigantes. Também estas Zeus as superou. Faltava a última. A mais difícil e penosa de todas: levar de vencida o gigantesco Tifão, derradeira tentativa de uma divindade primordial, Geia, para impedir a consecução da obra cosmogônica e a instauração de uma nova ordem. Tendo esmagado o derradeiro inimigo, Zeus estava “preparado” para pôr cobro às violentas sucessões das dinastias divinas e assumir, em definitivo, o governo do Universo. É precisamente a respeito essa última vitória que se deseja dizer uma palavra. Como se viu, Tifão mutilou a Zeus e o conduziu para a gruta Corícia. Se a caverna, já o sabemos, figura os mitos de origem, de renascimento e iniciação, como um real regressus ad uterum, um simbólico morrer para se renascer outro, a mutilação de Zeus tem uma conotação mais profunda. Para se compreender bem a mutilação é mister fazer uma dicotomia, uma distinção entre mutilação de ordem social e mutilação ritual. Se entre os celtas o rei Nuada não mais pôde reinar por ter perdido um braço na batalha e o deus Mider é ameaçado de perder o reino, porque acidentalmente ficou cego de um olho, trata-se, em ambos os casos, de um aspecto apenas social do problema. O sentido ritual da mutilação é bem outro. Para se penetrar nesse símbolo é bom relembrar que a ordem da “cidade” é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é Um, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o provérbio, mas an odd number significa também em inglês um “tipo estranho, um tipo incomum”, e a expressão francesa il a commis un impair significa que alguém “cometeu uma inconveniência”, “fez asneira”, transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O criminoso “comete uma terrível inconveniência”, transgredindo gravemente a ordem social; o herói se “singulariza perigosamente”. Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem, pois, dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum, possuindo, assim, valor iniciático e contrainiciático. No Egito, visando-se a uma intenção mágica de defesa, os animais perigosos, como leões, crocodilos, escorpiões e serpentes eram muitas vezes representados sobre os muros dos templos por hieróglifos mutilados. Os animais apareciam cortados em dois, amputados, desfigurados, de modo a serem reduzidos à impotência. A mutilação de Zeus é partícipe do “sagrado-direito”: visa, em última análise, a prepará-lo para ser Um, para ser o rei, para ser ímpar, para ser o soberano, para ser o senhor. Van Gennep, no capítulo VI de Os ritos de passagem4, tem páginas luminosas sobre o rito da mutilação, cuja finalidade maior não é apenas a purificação, mas uma transformação visível para todos da personalidade de um indivíduo. “Com estas práticas retira-se o indivíduo mutilado da humanidade comum mediante um rito de separação, que, automaticamente, o agrega a um grupo determinado”. Zeus, que vai ser rei, o senhor, o pai dos deuses e dos homens, purifica-se na gruta e, mutilado, separa-se em definitivo de seu meio, para colocar-se acima dele. As lutas de Zeus contra os Titãs (Titanomaquia), contra os Gigantes.(Gigantomaquia), episódio, aliás, desconhecido por Homero e Hesíodo, mas abonado por Píndaro (Nemeias, 1,67), e contra o horrendo Tifão, essas lutas, repetimos, contra forças primordiais desmedidas, cegas e violentas, simbolizam também uma espécie de reorganização do Universo, cabendo a Zeus o papel de um “recriador” do mundo. E apesar de jamais ter sido um deus criador, mas sim conquistador, o grande deus olímpico torna-se, com suas vitórias, o chefe inconteste dos deuses e dos homens, e o senhor absoluto do Universo. Seus inúmeros templos e santuários atestam seu poder e seu caráter pan-helênico. O deus indo-europeu da luz, vencendo o Caos, as trevas, a violência e a irracionalidade, vai além de um deus do céu imenso, convertendo-se, na feliz expressão de Homero (Il., I, 544) em πατὴρ ἀνδρῶντε θεῶντε (patèr andrônte theônte), o pai dos deuses e dos homens. E foi com este título que o novo senhor do Universo, tendo reunido os imortais nos píncaros do Olimpo, ordenou-lhes de não participarem dos combates que se travavam em Ílion entre aqueus e troianos. O teor do discurso é forte e duro, como convém a um deus consciente de seu poder e que fala a deuses insubordinados e recalcitrantes. Após ameaçá-los de espancamento, ou, pior ainda, de lançá-los no Tártaro brumoso, conclui em tom desafiante (Il., VIII, 19-27): Suspendei até o céu uma corrente de ouro, e, em seguida, todos, deuses e deusas, pendurai-vos à outra extremidade: não podereis arrastar do céu à terra a Zeus, o senhor supremo, por mais que vos esforceis. Se eu, porém, de minha parte, desejasse puxar ao mesmo tempo a terra inteira e o mar, eu os traria, bem como a vós, para junto de mim. Depois, ataria a corrente a um pico do Olimpo, e tudo ficaria flutuando no ar. E assim saberíeis até que ponto sou mais forte do que os deuses e os homens. O religiosíssimo Ésquilo, num fragmento de uma de suas muitas tragédias perdidas, vai além de Homero na proclamação da soberania de Zeus: Zeus é o éter, Zeus é a terra, Zeus é o céu. Sim, Zeus é tudo quanto está acima de tudo. (Fr. 70, Nauck) E era realmente assim que os gregos o compreendiam: um grande deus de quem dependiam o céu, a terra, a pólis, a família e até a mântica. Alguns outros de seus epítetos comprovam sua grandeza e soberania: senhor dos fenômenos atmosféricos, dele depende a fertilidade do solo, daí seu epíteto de khthónios; protetor do lar e símbolo da abundância, ele é ktésios; defensor da pólis, da família e da lei, é invocado como polieús; deus também da purificação, denomina-se kathársios e deus ainda da mântica, em Dodona, no Epiro, onde seu oráculo funcionava à base do farfalhar dos ramos de um carvalho gigante, árvore que lhe era consagrada. É conveniente, no entanto, deixar claro que o triunfo de Zeus, embora patenteie a vitória da ordem sobre o Caos, como pensava Hesíodo, não redundou na eliminação pura e simples das divindades primordiais. Algumas delas, se bem que desempenhando papel secundário, permaneceram integradas no novo governo do mundo e cada uma, a seu modo, continuou a contribuir para a economia e a ordem do Universo. Até mesmo a manutenção de Zeus no poder, ele a deve, em parte, à admoestação de Geia e Úrano, que lhe predisseram o nascimento de um filho que o destronaria. Foi necessário, para tanto, que engolisse sua primeira esposa, Métis. Nix, a Noite, uma das mais primordiais das divindades, continuou a ser particularmente respeitada e o próprio Zeus evitava irritá-la. A ela Zeus ficou devendo seus primeiros rudimentos de cosmologia, quando perguntou à deusa das trevas como firmar seu “soberbo império sobre os imortais” e como organizar o Cosmo, de modo a que “se tivesse um só todo com partes distintas”. As Erínias continuaram a desempenhar seu papel de vingadoras do sangue parental derramado; Pontos, o mar infecundo, permaneceu rolando suas ondas em torno da terra; Estige, que ajudou a Zeus na luta contra os Titãs, foi transformada não apenas em rio do Hades, mas na “água sagrada” pela qual juravam os deuses; Hécate, a deusa dos sortilégios, teve seus privilégios ampliados por Zeus, como se mostrou no capítulo XII, e Oceano há de tornar-se uma divindade importante e um aliado incondicional de Zeus. Em síntese, o novo senhor, alijados os inimigos irrecuperáveis, ao menos temporariamente, buscou harmonizar o Cosmo, pondo um fim definitivo à violenta sucessão das dinastias divinas. Até mesmo as divindades pré-helênicas, através de um vasto sincretismo, conforme se procurou apontar no capítulo V, tiveram funções e algumas muito importantes na nova ordem do mundo. O exemplo começou pelo próprio Zeus, que, apesar de ser um deus indo-europeu, “nasceu” em Creta; lá teve seus primeiros ritos iniciáticos e lá “morreu”! A marca minoica permaneceu inclusive na época clássica: a arte figurada nos mostra a estátua de um Zeus jovem e imberbe, o jovem deus dos mistérios do monte Ira, o deus da fertilidade, o Zeus ctônio. Atená, a importantíssima Atená, deusa da vegetação, transmutou-se na filha querida das meninges de Zeus. Perséfone tornou-se, além de filha da Grande Mãe Deméter, sua companheira inseparável nos Mistérios de Elêusis. Poder-se-ia ampliar a lista, mas o que se deseja ressaltar é que uma sábia política religiosa, em que certamente teve papel de relevância o dedo de Delfos com sua moderação e indiscutível patrilinhagem, fez que deusas locais pré-helênicas, algumas divindades primordiais e certos cultos arcaicos se integrassem no novo sistema religioso olímpico, dando à religião grega seu caráter específico e sua extensão panhelênica sob a égide de Zeus. Tão logo o pai dos deuses e dos homens sentiu consolidados o seu poder e domínio sobre o Universo, libertou seu pai Crono da prisão subterrânea onde o trancafiara e fê-lo rei da Ilha dos Bem-Aventurados, nos confins do Ocidente. Ali ele reinou sobre muitos heróis que, mercê de Zeus, não conheceram a morte. Esse destino privilegiado é, de certa forma, uma escatologia: os heróis não morrem, mas passam a viver paradisiacamente na Ilha dos Bem- Aventurados. Trata-se de uma espécie de recuperação da Idade de Ouro, sob o reinado de Crono. Os Latinos compreenderam bem o sentido dessa aetas aurea (Idade de Ouro), pois fizeram-na coincidir com o reino de Saturno na Itália. Vejamos brevemente a “história” desse deus itálico e de suas célebres festas, denominadas Saturnalia, as Saturnais. Saturnus, antigo deus itálico, anterior à chegada dos indo-europeus à terra de Rômulo, competiu vantajosamente com Liber, deus tipicamente latino, como divindade da vegetação. Enquanto Liber acabou fundindo-se com Bacchus, de procedência grega, Saturnus continuou a ser o grande deus da semeadura e da vegetação, donde um deus ctônio. Por etimologia popular, Saturnus proviria de satus, do verbo serere, “semear, plantar”; a aproximação com saturâre, “saciar, fartar”, é falsa, mas bem de acordo com sua função: um deus da abundância. Segundo o mito, quando Zeus destronou a Crono, este refugiou-se na Ausônia, onde recebeu o nome de Saturno. À sua chegada, a Itália (outrora denominada poeticamente Ausônia) teve sua aetas aurea, a Idade de Ouro, quando a terra tudo produzia abundantemente, sem trabalho, como atesta o poeta latino Públio Ovídio Nasão, em suas Metamorfoses, 89ss. Reinavam a paz, a concórdia, a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Saturno é, pois, o herói civilizador, o que ensina a cultura da terra, a paz e a justiça. O poeta maior da latinidade, Públio Vergílio Marão, sonhou com o retorno, no século de Augusto, dessa paz e dessa justiça: Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Écloga 4,6): – Eis que a justiça está de volta; retorna o reino de Saturno. Pois bem, para comemorar esse antigo estado paradisíaco e obter as boas graças e a proteção do deus sobre a vegetação e as sementes lançadas no seio da terra, celebravam-se, anualmente, as Saturnalia. Iniciavam-se ao término de um ano e inícios do outro, ou seja, no dia 17 de dezembro. Duravam, a princípio, um só dia, depois dois e, em seguida, três. À época imperial, Augusto introduziu um quarto dia e Calígula um quinto. Coincidentemente, por ocasião das Saturnalia, realizavam-se também as Paganalia (de pagus,-i, aldeia) e as Compitalia (de compita,-ôrum, encruzilhadas). As primeiras eram festas rurais e as segundas tinham por cenário as encruzilhadas de Roma, mas ambas visavam à fertilidade dos animais e dos campos e, como os khýtroi das Antestérias gregas, estavam estreitamente ligadas ao culto dos mortos. Estes, afinal, comandam as sementes guardadas no seio da terra. Se na Hélade os kh×troi eram consagrados às Queres e às Erínias, na Itália, o eram aos deuses Lares, Manes ou Penates, meros eufemismos de Lêmures, isto é, os gênios, os espíritos tutelares, as almas dos mortos, encarregados de proteger o lar, a cidade, os campos e, por isso mesmo, denominados Lares Praestites, Lares Protetores, sentinelas sempre prontas a proteger e a servir. As Saturnalia seriam, em última análise, uma reminiscência da aetas aurea, quer dizer, da abundância, da igualdade, da liberdade. Começavam, em Roma, pela manhã. Após se retirar a faixa de lã que cobria, durante o ano todo, o pedestal da estátua de Saturno, realizava-se, um pouco mais tarde, um banquete público, cujo término era marcado pelo grito da distensão: Io Saturnalia! Viva as Saturnais. Tudo parava: o senado, os tribunais, as escolas, o trabalho. Reinavam a alegria, a orgia e a liberdade. Eliminavam-se interditos de toda ordem. Quebrava-se a hierarquização da orgulhosa sociedade romana: os escravos, temporariamente em liberdade total, eram servidos pelos senhores, aos quais, não raro, insultavam, lançandolhes em rosto os vícios, as torpezas e a crueldade. Se as Saturnais, com toda a sua liberação, talvez possam ser interpretadas, segundo o fizemos, como reminiscência da Idade de Ouro, não poderiam simbolizar também, como no complexo de Édipo, a supressão do deus, dopai e do chefe? Se Crono destronou a seu pai Úrano, mutilando-o e se, por sua vez, foi destronado pelo filho Zeus, o povo e sobretudo os escravos, durante o breve período das Saturnais, faziam que seus chefes e senhores prepotentes recebessem “a retribuição” do que haviam feito a seus próprios pais, à imitação do ato de Crono para com Úrano e de Zeus em relação a Crono. Assim talvez se explique por que se elegia, anualmente, nas Saturnalia, um Saturnalicius Princeps, o rei das Saturnais, como, entre nós, o Rei Momo. Em épocas recuadas, esse rei, após presidir aos banquetes, às festas e orgias, era, no final das mesmas, sacrificado a Saturno. 4 Acerca dos casamentos e das ligações amorosas de Zeus é necessário proceder com cautela e método. Vai-se, primeiramente, dar uma ideia do simbolismo desses “amores”; em seguida far-se-á menção dos principais casamentos e ligações do deus, deixando-se para outros capítulos os mitos relativos a cada união do Vol. II. Zeus é, antes do mais, um deus da “fertilidade”, é ómbrios e hyétios, é chuvoso. É deus dos fenômenos atmosféricos, como já se disse, por isso que dele depende a fecundidade da terra, enquanto khthónios. É o protetor da família e da pólis, daí seu epíteto de polieús. Essa característica primeira de Zeus explica várias de suas ligações com deusas de estrutura ctônia, como Europa, Sêmele, Deméter e outras. Trata-se de uniões que refletem claramente hierogamias de um deus, senhor dos fenômenos celestes, com divindades telúricas. De outro lado, é necessário levar em conta que a significação profunda de “tantos casamentos e aventuras amorosas” obedece antes do mais a um critério religioso (a fertilização da terra por um deus celeste, e, depois, a um sentido político: unindo-se a certas deusas locais préhelênicas, Zeus consuma a unificação e o sincretismo que hão de fazer da religião grega um calidoscópio de crenças, cujo chefe e guardião é o próprio Zeus. Já enumeramos no capítulo VIII, 3, os casamentos e as uniões de Zeus com deusas e “mortais”. Essas hierogamias são as catalogadas por Hesíodo (Teog., 886-944). A lista, no entanto, foi bastante ampliada após o poeta da Beócia. Vamos, pois, repetir o quadro com os necessários acréscimos, sobretudo com aqueles que têm maior interesse para o mito: Zeus e Métis foram pais de Atená. Zeus e Têmis geraram as Horas e as Moîras. Zeus e Eurínome geraram as Cárites. Zeus e Deméter geraram Core ou Perséfone. Zeus e Mnemósina geraram as Musas. Zeus e Leto geraram Apolo e Ártemis. Zeuscomsua“legítima”esposaHeragerouHebe,Ares,Ilí tia(eHefesto?). Zeus e Maia geraram Hermes. Zeus e Sêmele geraram Dioniso. Zeus e Alcmena geraram Heracles. Zeus e Dânae geraram Perseu. Zeus e Europa geraram Minos, Sarpédon e Radamanto. Zeus e Io geraram Épafo. Zeus e Leda geraram Pólux e Helena, Castor e Clitemnestra. Eis aí os principais amores do senhor do Olimpo. Observe-se que as “sete” primeiras ligações de Zeus o foram com deusas e as “sete” outras são consideradas como simples uniões ou amores passageiros com mortais. O que na realidade acontece é que a maioria dessas mortais eram antigas imortais, que, por um motivo ou outro, sobretudo em razão de sincretismos, tiveram seus cultos absorvidos por deusas mais importantes e foram rebaixadas ao posto de heroínas, de princesas ou de simples mortais, como se verá. A relação da “força fecundante” do filho caçula de Crono poderia ser bem ampliada, porque a maioria absoluta das regiões gregas se vangloriava de ter possuído um herói epônimo nascido dos amores do grande deus. O mesmo se diga das grandes famílias lendárias que sempre apontavam um seu ancestral como filho de Zeus. Mas, que representa, afinal, esse deus tão importante para os gregos, dentro de um enfoque atual? Após o governo de Úrano e Crono, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior. Dele depende a regularidade das leis físicas, sociais e morais. Consoante Mircea Eliade, Zeus é o arquétipo do chefe de família patriarcal. Deus da luz, do céu luminoso, é o pai dos deuses e dos homens. Enquanto deus do relâmpago configura o espírito, a inteligência iluminada, a intuição outorgada pelo divino, a fonte da verdade. Como deus do raio, simbolizou a cólera celeste, a punição, o castigo, a autoridade ultrajada, a fonte de justiça. A figura de Zeus, após ultrapassar a imagem de um deus olímpico autoritário e fecundador, sempre às voltas com amantes mortais e imortais, até tornar-se um deus único e universal, percorreu um longo caminho, iluminado pela crítica filosófica e pela evolução lenta, mas constante, da purificação do sentimento religioso. A concepção de Zeus como Providência única só atingiu seu ápice com os Estoicos, entre os séculos IV e III a.C., quando então o filho de Crono surge como símbolo de um “deus único”, encarnando o Cosmo, concebido como um vasto organismo animado por uma força única. É indispensável, todavia, deixar bem patente que os Estoicos concebiam o mundo como um vasto organismo, animado por uma força única e exclusiva, Deus, também denominado Fogo, Pneuma, Razão, Alma do Mundo... Mas, entre Deus e a matéria a diferença é meramente acidental, como de substância menos sutil a mais sutil. A evolução desse Teocosmo, desse deus-mundo, é necessariamente fatalista, pois que obedece a um rigoroso determinismo. Desse modo, aos imprevistos do acaso e ao governo da Providência divina se substitui a mais absoluta fatalidade. As teorias cosmológicas dos Estoicos estão, na realidade, fundamentadas no panteísmo, fatalismo e materialismo. O belíssimo Hino a Zeus, do filósofo estoico Cleantes (século III a.C.), marca o ponto culminante da ascensão do deus olímpico no espírito dos gregos de sua época e estampa bem claramente o que se acabou de dizer. Os “modernos”, todavia, denunciaram em determinadas atitudes do poderoso pai dos deuses e dos homens o que se convencionou chamar de Complexo de Zeus. Trata-se de uma tendência a monopolizar a autoridade e a destruir nos outros toda e qualquer manifestação de autonomia, por mais racional e promissora que seja. Descobrem-se nesses complexos as raízes de um manifesto sentimento de inferioridade intelectual e moral, com evidente necessidade de uma compensação social, através de exibições de autoritarismo. O temor de que sua autocracia, sua dignidade e seus direitos não fossem devidamente acatados e respeitados tornaram Zeus extremamente sensível e sujeito a explosões coléricas, não raro calculadas. Para Hesíodo, no entanto, Zeus simboliza o termo de um ciclo de trevas e o início de uma era de luz. Partindo do Caos, da desordem primordial, para a justiça, cifrada em Zeus, o poeta sonha com um mundo novo, onde haveriam de reinar a disciplina, a justiça e a paz. 1. Os Curetes eram, em síntese, demônios do cortejo de Zeus. Para que os gritos do deus infante não revelassem sua existência e presença a Crono, a ninfa Amalteia solicitou-lhes que dançassem em torno do menino, entrechocando suas lanças e escudos de bronze. 2. Amalteia nos mitos mais antigos é a cabra miraculosa que aleitou Zeus. Outros consideram-na como uma ninfa, que, para esconder o menino de Crono, o suspendeu a uma árvore, para que o pai não o encontrasse, nem no céu, nem na terra, nem no mar. De qualquer forma, ninfa ou cabra, Amalteia era de aspecto tão medonho, que os Titãs, temendo-a, pediram a Geia que a escondesse numa caverna de Creta. 3. Égide, em grego αἰγίς, ίδος (aiguís, -idos), furacão, tempestade, “pele de cabra”, escudo coberto com uma pele de cabra e particularmente o escudo de Zeus, coberto com o couro da cabra Amalteia, que lhe servia de arma ofensiva e defensiva. Com esse escudo, eriçado de pelos como um tosão, guarnecido de franjas, debruado de serpentes e com a cabeça da Górgona no meio, Zeus espalha o terror, agitando-o nas trevas, no fulgor dos relâmpagos e no ribombar dos trovões. Etimologicamente, no entanto, αἰγίς (aiguís), égide, nada tem a ver com αἴξ, αἰγός (aíks, aigós), cabra. A aproximação é meramente fantasiosa e mítica. 4. GENNEP, Arnold van. Op. cit., cap. VI, p. 74ss. APÊNDICE Deuses gregos e latinos A listagem dos principais deuses gregos com seus respectivos correspondentes latinos tem por objetivo contribuir para se evitarem confusões entre uns e outros. Uma coisa é um deus grego e outra, muito diferente, um deus latino, mesmo resultante de um sincretismo, como foi o caso específico de Roma que, após dominar o sul da Itália, com a queda de Tarento, em 272 a.C., acabou por se apossar, ou melhor, de ser possuída pela cultura grega: literatura, artes e deuses... Seria o momento de recordar, mais uma vez, que Roma, com o ímpeto e a bravura de suas legiões, subjugando pelas armas a Grécia, foi por ela intelectualmente derrotada, como diz o já citado poeta latino Quinto Horácio Flaco, Epist., 2,1,157: Graecia capta, ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio. – A Grécia vencida venceu o feroz vencedor e introduziu as artes no Lácio inculto. Com as artes vieram igualmente os deuses da Hélade e fundiramse com as divindades latinas; mas aqueles, como via de regra acontece em qualquer sincretismo, jamais perderam seu Χαρακτήρ (kharaktér), sua “marca” indelével de dei otiosi, de deuses ociosos e poéticos. Transplantados para a Itália, tornaram-se dei laboriosi, isto é, deuses com múltiplos afazeres. Deuses que “batiam ponto” e permaneciam na Urbs o dia todo, ajudando e trabalhando... Se o Zeus helênico se fez o ditador inconteste do Olimpo, o Júpiter, ao descer para Roma, tornou-se Stator, Iuppiter Stator, quer dizer, o “Júpiter Estator”, que está de pé, firme como uma “estátua”, em defesa não apenas dos interesses de sua cidade, mas também do Império Romano, como o invocou Marco Túlio Cícero nas Catilinárias, Cat., 1,11. Se Hera olímpica é a protetora dos amores legítimos (exceto das paixões do próprio marido!), em Roma, com o nome de Iuno Lucina, Juno Lucina, “a que faz vir à luz”, a rainha dos deuses passou efetivamente a presidir aos partos. E em cada um dos “adaptados” se poderia estabelecer um distanciamento cada vez mais acentuado, do abstrato para o concreto. Trata-se, realmente, de duas mentalidades, que estão bem gravadas em tudo quanto realizaram esses dois povos extraordinários: o grego bem mais voltado (Esparta, por motivos históricos, é um caso à parte) para a poíesis, o romano para a prâksis. Definindo esse ângulo do espírito romano impresso em seus deuses, afirmava um “outro escritor latino”, o erudito Plínio, o Velho: omnium uirtutum et utilitatum rapacissimi (Nat. Hist., 25,2) – os romanos eram avidíssimos por tudo quanto representasse valor e utilidade. Herdeira da Grécia, Roma possuía, no entanto, sua missão. Seu poeta maior, Públio Vergílio Marão, soube destacá-la, colocando lado a lado, mas em polos divergentes, dois universos do pensamento, o grego e o romano. E foram esses dois mundos bem díspares que acabaram por lhes moldar os deuses, muito semelhantes quanto aos significantes e bem distantes no que tange aos significados, mesmo aqueles que têm procedência comum do mundo indo-europeu. Eis o texto do poeta de Mântua: Excudent alii spirantia mollius aera, credo equidem; uiuos ducent de marmore uultus; orabunt causas melius, caelique meatus describent radio et surgentia sidera dicent: tu regere imperio populos, Romane, memento, hae tibi erunt artes, pacisque imponere morem, parcere subiectis et debellare superbos. (En., 6,847-853) – Outros saberão com mais arte dar vida ao bronze, assim o creio; farão surgir do mármore figuras vivas; saberão pleitear mais eloquentemente as causas, calcularão os movimentos do céu e o curso dos astros: tu, Romano, lembra-te de que nasceste para governar o mundo. Eis aí as tuas artes: impor as condições da paz, poupar os vencidos e esmagar os soberbos. Voltando ainda um pouco ao “empréstimo” religioso que a Grécia fez a Roma, convém enfatizar que os romanos não assimilaram simplesmente os deuses gregos, mas os traduziram e, portanto, os transformaram. Citando Heidegger, diz Angelo Ricci que o filósofo alemão “tem uma observação radical com referência já ao uso, em língua latina, de termos gregos, a qual é válida para explicar o processo inteiro do encontro dos dois universos de pensamento”1. “É pois verídico”, pondera judiciosamente Heidegger, “que essa tradução de termos gregos para o latim não é, em hipótese alguma, algo tão inofensivo, como se pensa até hoje. Essa tradução, aparentemente literal (e, por isso mesmo, aparentemente salvaguardante), é, na realidade, uma tra-dução (de trans-ducere, transpor para além), uma transferência da experiência grega para um outro universo do pensamento. O pensamento romano retoma as palavras gregas sem a apreensão original correspondente ao que elas dizem, sem a parole grega”2. Feitas estas observações, vamos estampar tão somente os grandes deuses gregos transpostos para o latim, observando-se que, nessa transferência, algumas divindades helênicas foram simplesmente transliteradas. Ao lado dos deuses gregos colocamos entre parênteses alguns epítetos mais usados e nos latinos mantivemos, ao lado do nome em grego ou em latim, os nomes ou epítetos gregos, desde que efetivamente usados pelos escritores latinos. Afrodite (Citereia, Cípria, Cípris) Apolo (Hélio, Febo, Lóxias, Pítio) Ares Ártemis (Hécate, Selene) Atená (Palas) Crono Deméter Vênus (Citereia, Cípria) Apolo (Febo, Lóxias, Pítio) Marte Diana (Hécate) Minerva (Palas) Saturno Ceres Eros Cupido Geia Terra Hades Plutão Hebe Dite (Plutão) Juventas (Hebe) Hefesto Vulcano Hera Juno, Lucina Héracles, Alcides Hércules (Alcides) Hermes Mercúrio Héstia Vesta Leto Latona Moira Fado, Parcas Prosérpina (Perséfone) Perséfone, Core Posídon Netuno Reia Cibele (Reia) Tânatos Morte Úrano Céu Zeus Júpiter Aleto * Erínias Tisífone Aleto Fúrias Megera Megera Cloto * Queres Láquesis Átropos Tisífone Nona Parcas Décima Morta Cloto e Láquesis Átropos 1. RICCI, A. O teatro de Sêneca. Porto Alegre: Centro de Arte Dramática, 1967, p. 11. 2. HEIDEGGER, Martin. Holzwege. Paris: Gallimard, 1962, p. 16 (O título da tradução francesa é Chemins qui ne mènent nulle part). BIBLIOGRAFIA ADRADOS, R. et al. Introducción a Homero. Madri: Ediciones Guadarrama, 1963. 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Museu Nacional de Atenas. Nascimento de Afrodite(?). Parte central do tríptico Ludovisi. Mármore. Cerca de 470-460 a.C. Museu Nacional de Roma. Atená “refletindo”. Baixo-relevo. Mármore. Cerca de 460 a.C. Museu da Acrópole, Atenas. Nióbia ferida. Cópia romana de um bronze grego de 440 a.C. Mármore. Museu Nacional de Roma. Mênade. Cópia romana de um original grego dos fins do séc. V a.C. Mármore. Palácio dos Conservadores, Roma. Hermes. Original de Praxíteles. Cerca de 340 a.C. Museu de Olímpia. Suplício de Mársias. Cópia de um original da época helenística; séc. III a.C. Museu Arqueológico, Istambul. Carneiro. Bronze. Siracusa. Época helenística. Museu Arqueológico, Palermo. Ceneu e os Centauros. Vaso grego, 440 a.C. Museu Real de Arte e de História, Bruxelas. As Amazonas em guerra. Perugia. Museu Britânico, Londres. Hermes e o pastor Páris. Museu Metropolitano de Artes, Nova Iorque. Junito de Souza Brandão ,falecido em 15/05/96, aos 71 anos, foi professor titular de Língua e Literatura Grega e de Língua e Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa Úrsula e na Universidade Gama Filho. Era Licenciado em Letras Clássicas, tinha Doutorado e livre-docência em Literatura Grega. Ministrava, além de suas aulas normais nas universidades supracitadas, cursos regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica da mesma cidade. Mapa do Mundo Helênico © 1987, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki W elder Lancieri Marchini Conselheiros Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann V olney J. Berkenbrock Secretário executivo João Batista Kreuch Diagramação: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Juliana Teresa Hannickel Conversão para eBook: SCALT Soluções Editoriais ISBN 9786557131114 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brandão, Junito de Souza, 1926-1995. Mitologia grega, vol. II / Junito de Souza Brandão. - 23. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2015. Bibliografia. 1. Mitologia grega - História 1. Título. 08-11709 CDD-292.0809 Índices para catálogo sistemático: 1. Mitologia grega : História 292.0809 Editado conforme o novo acordo ortográfico. Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda. SUMÁRIO Nota à 5ª Edição Prefácio Breve introdução I. Casamentos e uniões de Zeus II. O mito de Leto: nascimento de Ártemis e Apolo III. O mito de Apolo: Epidauro e o Oráculo de Delfos IV. Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e do entusiasmo V. Orfeu, Eurídice e o Orfismo VI. O mito de Narciso VII. Hermes Trismegisto VIII. Eros e Psiqué Apêndice - Deuses olímpicos e arquétipos masculinos Complementação bibliográfica do Volume I NOTA À 5ª EDIÇÃO Como na sétima edição do Vol. I, esta 5ª do Vol. II assinala várias alterações de não menos importância. Não apenas procuramos corrigir os erros tipográficos e emendar alguns verbetes, aprimorando a redação, mas sobretudo se deu grande atenção à parte etimológica. Tomando como ponto de partida nossos Dois Volumes do Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega (Petrópolis: Vozes, 1991), foi possível melhorar e retocar vários étimos. A novidade maior, todavia, está no Apêndice. Como já o fizéramos no Vol. III de Mitologia grega, em que procuramos estudar os arquétipos do sexo feminino, estampamos neste Vol. II as funções arquetípicas dos homens, encaixando-os em um ou mais deuses da Grécia antiga. Esperamos, assim, que o Volume II de nossa Mitologia grega, agora ampliado, possa continuar a merecer a atenção e carinho com que vem sendo acolhido por tantos estudiosos. Rio de Janeiro, 10 de abril de 1992. Junito Brandão PREFÁCIO Se estudarmos as religiões universais desde os primórdios dos tempos históricos, veremos que todas elas, como o hinduísmo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, estiveram intimamente relacionadas com os sistemas econômicos em que se inseriram. A conclusão poderia se estender à religião dos gregos. Mas antes de abordar o mito grego, examinemos um dos ângulos do cristianismo. Quando, na Renascença, Lutero se volta contra Roma, isto acontece na época em que os métodos de produção estavam passando por uma profunda transformação. A divergência teológica entre Lutero e Roma, fundamentalmente, consistia em que a fé bastava, por si só, para a salvação. As obras não importavam. No inconsciente coletivo do mundo anglo-saxão, que estava na vanguarda daquelas transformações, esse mandamento aparece de forma mais explícita: “basta seres eficiente, não importa de que maneira, para te salvares”, ou melhor, não importam os meios, basta a eficiência. Esta concepção permeou todo o sistema de produção de riqueza, que se instalou na Europa e que veio a ser adotado pelas grandes democracias do Ocidente. No caso do hinduísmo, vemos uma religião milenar, um sistema de castas hierarquizadas, no qual, ao homem das castas menos elevadas se acena com a recompensa de renascer em casta superior, se em vida tiver meditado e cumprido os preceitos que lhe são prescritos, até chegar à união com a totalidade, o Brahman. O caso do islamismo é assemelhado. Numa sociedade em que a poliginia é lei, o casamento consistia em um privilégio. Dispõe o Corão que um homem poderá ter tantas esposas quantas puder sustentar. Daí resulta um grande excedente de homens não poder sustentar mulher alguma; e a lei islâmica lhes promete belas huris na outra vida, se nesta se sacrificarem à Jihad, isto é, à Guerra Santa. E o islamismo se espraiou pelo mundo, num vasto e duradouro império. Quando nos detemos sobre o mito grego, diversas analogias se tornam evidentes. O mito de início serviu aos eupátridas. A composição do mundo dos deuses é hierarquizada, favorece aos deuses em detrimento das deusas e se apoia em um sistema de valores. Zeus todo-poderoso tem o direito de vida e morte sobre tudo e sobre todos. Sua mulher Hera, reprimida, busca sempre compensar-se pela infindável série de transgressões conjugais que se permitem ao marido cosmocrata e onipotente. A distância entre o homem e os deuses, quando transposta, é punida com severidade. No mito de Prometeu iremos ver o herói condenado a ter o fígado diariamente devorado por um abutre, e diariamente renascido para perpetuação do suplício, por haver ousado favorecer os mortais com seu arrojo. Assim se mantiveram estruturadas, por longo tempo, a religião e a sociedade grega. Em todas as épocas, porém, houve movimentos contrários aos sistemas estratificados das religiões tradicionais, e a Grécia também assistiu a tais reações. O orfismo e o dionisismo, os Mistérios de Elêusis, constituem bons exemplos. Tais correntes ofereciam a todos, igualitariamente – até aos deserdados – a comunhão com o divino. Mas não nos deteremos em seus lineamentos, tão magnificamente analisados por Junito Brandão nos capítulos que dedica a Orfeu e Dioniso, porque, como aponta o autor, eles acabaram sendo cooptados pela religião oficial. Foi notável o que ocorreu com o culto de Dioniso, que terminou “apolinizado”, pois a vivência do êxtase ameaçava a sociedade racional. Mas os Mistérios de Elêusis não chegaram a ser completamente assimilados. Elêusis distava apenas vinte quilômetros de Atenas, mas Deméter e sua filha Perséfone levaram séculos para chegar até a Pólis, onde imperavam os eupátridas e o legalismo de Apolo. Quando mais não fosse, tratava-se de um culto desestabilizador e suspeito, que exaltava a figura da mulher em contraposição ao domínio do homem. Os Mistérios abriam-se democraticamente a todos, até mesmo aos escravos, desde que falassem grego, pudessem entender e repetir as palavras sagradas e não estivessem condenados por homicídio. O Estado terminou por tolerar as práticas dos Mistérios, pois Deméter e Perséfone, afinal, eram responsáveis pelas sementes, e destas dependiam os frutos e o bem-estar da coletividade. Não haverá exagero em afirmar-se que os Mistérios de Elêusis foram um reflexo, no campo religioso, da democracia que então ensaiava os seus primeiros passos. E esta, de par com o emergente pensamento filosófico e científico – outra contribuição dos helenos para o aprimoramento do homem – viria a constituir um dos pilares em que se fundamenta a sociedade contemporânea. Rose Marie Muraro Breve introdução Havíamos, inicialmente, planejado Mitologia grega em dois volumes. O primeiro, após uma visão, embora sumária, da batalha que o mito travou na Hélade questionadora para sobreviver; de uma tentativa de conceituar Mito, Rito e Religião; de um panorama histórico-social grego (nosso objetivo foi sempre partir deste para o religioso) e de uma abordagem dos poemas homéricos, prosseguiria com a Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo, até a consolidação do poder nas mãos de Zeus. O segundo se iniciaria com as hierogamias do pai dos deuses e dos homens e se fecharia no mito da nostalgia, vale dizer, do retorno de Ulisses aos braços quentes e saudosos de Penélope. A meta, no entanto, parece que não foi bem contornada e os competidores ultrapassaram-na, sem que o auriga pudesse conter sua biga... Desse modo, face sobretudo à “pressão compulsiva” de um grande número de Psiquiatras, Analistas e alunos meus, quer de São Paulo, onde meus cursos foram ampliados, no magnífico Anfiteatro de Convenções da USP para o Instituto de Psiquiatria da UNICAMP, quer do Rio de Janeiro, onde voltei a ministrar aulas em dupla com psiquiatras e analistas junguianos, particularmente com o Dr. Walter Boechat, o Volume II acabou por se ampliar demasiadamente. A ultrapassagem do métron neste Volume se deveu, de modo especial, a uma tentativa de ir além do mito e mostrar-lhe os contornos simbólicos. O mito, felizmente, ao menos e de modo oficial, desde os fins do século XIX, com Bachofen, Freud, Jung, Kerényi, Neumann, M.L. Von Franz, e isto só para citar alguns dos pioneiros, esqueceu Evêmero e as “carochinhas”, para tornar-se algo de muito sério. Remitizado e, de certa forma, ressacralizado, passou a ser analisado como um arquétipo. “O inconsciente coletivo é constituído pela soma dos instintos e dos seus correlatos, os arquétipos. Assim como cada indivíduo possui instintos, possui também um conjunto de imagens primordiais”*. Assim, tem-se o mito como exteriorização de conteúdos do inconsciente coletivo. Recolocado em suas verdadeiras funções, dele se ocuparam e se ocupam psicólogos, teólogos, filósofos, antropólogos, folcloristas e historiadores das religiões. Para não fazer um catálogo de sábios e estudiosos, que se debruçaram sobre Édipo, Narciso e Hermes, é bastante lembrar alguns nomes que, desvencilhando-se do mos maiorum, deram aos mitos o sentido e a importância que sempre tiveram. Entre centenas deles, poder-se-ia destacar Hugo Rahner, S.J., C. Moeller, A.J. Festugière, R. Otto, Martin Nilsson, O. Rank, J. Campbell, J.P. Vernant, G. Dumézil, Lévi-Strauss, Marie Delcourt, A. Brelich, Mircea Eliade, Bachelard, H. Jeanmaire, L.C. Cascudo, Alceu Maynard Araújo e tantos e tantos outros... Quando se ouve um filósofo do porte do Dr. Arcângelo Buzzi harmonizar lovgor (lógos) e mu~qor (mythos), ao mostrar que “o discurso linguístico enuncia intensamente esse espetáculo de solidariedade dos opostos, procurando aproximá-los e integrá-los pacífica e conflitualmente, então o discurso, mesmo que use palavras-de-ciência, é mítico e consequentemente literário”**, é que se vê quanto o mito se libertou de tabus e preconceitos e como é importante para os que realmente o compreendem. Tem-se até mesmo um prazer especial em repetir a citação de Arcângelo Buzzi, quando retoma as palavras de Orígenes, que dizia “haver Platão hospedado a filosofia na casa dos mitos”... Mas estamos novamente perdendo a meta! O que realmente queríamos é justificar o tratamento mais profundo que se deu a alguns mitologemas, considerados muito significativos. Com isto, tornou-se inviável reunir todo o material, longa e pacientemente pesquisado, no Volume II. Com anuência da Editora Vozes, resolvemos elaborar um terceiro Volume só com o rico e indispensável Mito dos heróis. Dessa maneira, o Volume II se compõe de oito extensos capítulos, que têm como ponto de partida os Casamentos e uniões de Zeus e têm como remate o mito lindíssimo de Eros e Psiqué. Este Volume II deve muito a muita gente. Enumerá-los a todos seria impossível, mas deixar de citar alguns seria ingratidão. Novamente contei com as Professoras Lea Bentes Cardozo, Míriam Suter Medeiros e o Professor Fred Marcos Tallmann na difícil e exaustiva tarefa de, por vezes, adivinhar e datilografar meus terríveis rascunhos! Muito importante também foi a colaboração de Cléa Paula Braga, que organizou o Índice onomástico deste Volume II. A Doutoranda e competente Professora Dina Maria Machado Andréa Martins Ferreira se incumbiu da revisão da parte datilografada e se portou como as formiguinhas laboriosas do Mito de Eros e Psiqué, que tinham a ciência de separar os grãos por espécie! Cooperação preciosa foi, sem dúvida, a de Augusto Ângelo Zanatta, do Departamento Editorial da Editora Vozes. Não apenas sugeriu que se acrescentassem à Mitologia grega alguns quadros genealógicos “divinos e heroicos” e a enriquecesse com ilustrações iconográficas, mas ainda, e sobretudo, se encarregou do paciente e penoso trabalho de elaborar o Índice analítico deste Volume II. Ao competente Augusto Ângelo Zanatta meus sinceros agradecimentos. Aos meus incansáveis incentivadores, particularmente psiquiatras, analistas, psicólogos e estudiosos do mito, de São Paulo e do Rio de Janeiro, um especial muito obrigado. Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1986. Junito de Souza Brandão * JUNG, C.G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 73. ** BUZZI, Arcângelo. Literatura e Mito. Conferência pronunciada no II Congresso de Literatura da UGF, em outubro de 1985, p. 4. As famílias divinas CAPÍTULO I Casamentos e uniões de Zeus 1 Vamos dedicar alguns capítulos às ligações amorosas de Zeus. No Vol. I de nosso Mitologia grega, p. 281, tratou-se, em parte, do casamento de Zeus e Métis, mas ter-se-á que completá-lo, para que se possa discorrer sobre o mito de Atená. A união de Zeus com Têmis foi apenas esboçada no Vol. I, p. 211-212. Voltaremos a ela, mas tão somente no que concerne às três filhas do casal divino, porque das funções da deusa das “leis eternas” se falou no capítulo supracitado. Acerca de Zeus e Eurínome já se disse o necessário no Vol. I, p. 281. Tratou-se igualmente da união de ZeusCisne com Leda e do nascimento extraordinário de Helena e Pólux e de Clitemnestra e Castor, no Vol. I, p. 90-91. Do mito de Deméter e de seu hieròsgámos com Zeus se fez uma longa exposição no Vol. I, p. 300-329. Zeus e Mnemósina foram estudados no Vol. I, p. 213. O mito do rapto de Europa será também abordado, uma vez que só se falou de seus filhos, Minos, Sarpédon e Radamanto, no Vol. I, p. 64. Como também se enfocaram as “justas núpcias”, o impropriamente denominado “casamento legítimo” do deus dos raios com sua irmã Hera, mas nada se comentou especificamente a respeito de seus filhos, ter-se-á que fazê-lo agora. Em síntese, neste capítulo serão estudados os seguintes tópicos: o mito de Atená, as Horas, o rapto de Europa e os filhos de Zeus com Hera. As demais ligações do pai dos deuses e dos homens serão analisadas nos capítulos subsequentes, ficando tão somente os mitos de Héracles e Perseu para os capítulos especiais sobre os heróis, no Vol. III. 2 Foi a conselho de Úrano e Geia que Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa, que dele estava grávida, pois, segundo o primeiro casal primordial, se Métis tivesse uma filha e depois um filho, este arrebataria do pai o supremo poder. Completada a gestação normal de Atená, Zeus começou a ter uma dor de cabeça que por pouco não o enlouquecia. Não sabendo de que se tratava, ordenou a Hefesto, o deus das forjas, que lhe abrisse o crânio com um machado. Executada a operação, saltou da cabeça do deus, vestida e armada com uma lança e a égide, dançando a pírrica (dança de guerra, por excelência), a grande deusa Atená. ATENÁ, em grego 'Αθηνᾶ (Athenâ), cuja etimologia ainda é desconhecida, sobretudo por tratar-se de uma divindade “importada” do mundo mediterrâneo ou, mais precisamente, da civilização minoica. Talvez se pudesse, segundo Carnoy, quanto ao primeiro elemento de seu nome, Ath-, fazer uma aproximação com o indoeuropeu *attâ, “mãe”, epíteto que caberia bem a uma deusa da vegetação da ilha de Creta, a uma Grande Mãe, que recebeu dos próprios gregos o qualificativo de *awaiâ, “mãe”, na forma 'Αθηναίη (Athenaíe), depois reduzida a 'Αθηνάα (Athenáa), fonte da forma ática 'Αθηνᾶ (Athenâ), que já aparece em inscrições do século VI a.C. 1 O local de nascimento da deusa foi às margens do Lago Tritônio, na Líbia, o que explicaria um dos múltiplos epítetos da filha querida de Zeus: Τριτογέιγεα (Tritoguéneia) que é interpretado modernamente como nascida no mar ou na água. Tão logo saiu da cabeça do pai, soltou um grito de guerra e se engajou ao lado do mesmo na luta contra os Gigantes, matando a Palas e Encélado. O primeiro foi por ela escorchado e da pele do mesmo foi feita uma couraça; quanto ao segundo, a deusa o esmagou, lançando-lhe em cima a ilha de Sicília, como está em Mitologia grega, Vol. I, p. 222-223. O epíteto ritual, Palas (Atená), não se deve ao nome do Gigante, mas a uma jovem amiga da deusa, sua companheira na juventude e que foi morta acidentalmente pela mesma. Daí por diante, Atená adotou o epíteto de Palas e fabricou, consoante uma variante tardia, em nome da morta, o Paládio, cujo mito é deveras complicado, porque se enriqueceu com elementos diversos, desde as Epopeias Cíclicas até a época romana. Homero o desconhece. Na Ilíada só se faz menção de uma estátua cultual da deusa, honrada em Troia, mas sentada, enquanto o Paládio é uma pequena estátua, mas de pé, com a rigidez de um ksóanon, isto é, de um ídolo arcaico de madeira. Seja como for, o importante é que se saiba ser o Paládio grandemente apotropaico, pois tinha a virtude de garantir a integridade da cidade que o possuísse e que lhe prestasse um culto. Desse modo, toda e qualquer pólis se vangloriava de possuir um Paládio, sobre cuja origem miraculosa se teciam as mais variadas e incríveis narrativas. O de Troia, conta-se, caíra do céu e era tão poderoso que, durante dez anos, defendeu a cidadela contra as investidas dos gregos. Foi preciso que Ulisses e Diomedes o subtraíssem, com a cumplicidade do silêncio de Helena, que os vira penetrar na fortaleza. Troia, sem sua defesa mágica, foi facilmente vencida e destruída. O mais famoso e sacrossanto dos Paládios, porém, era o de Atenas, que, noite e dia, lá do alto da Acrópole, o lar de Atená, vigiava Atenas, a cidade querida da “deusa de olhos garços”. Preterida por Páris no célebre concurso de beleza no monte Ida, pôs-se inteira, na Guerra de Troia, ao lado dos aqueus, entre os quais seus favoritos foram Aquiles, Diomedes e Ulisses. Na Odisseia, digase de passagem, a deusa augusta se transformará na bússola do nóstos, do retorno de Ulisses a Ítaca, e, quando o herói finalmente chegou à pátria, Palas Atená esteve a seu lado até o massacre total dos pretendentes e a decretação da paz, por inspiração sua, no seio das famílias da ilha de Ítaca. Sua valentia e coragem comparam-se às de Ares, mas a filha de Zeus detestava a sede de sangue e a volúpia de carnificina de seu irmão, ao qual, aliás, enfrentou vitoriosamente (Il., XXI, 391s.). Sua bravura, como a de Ulisses, é calma e refletida: Atená é, antes de tudo, a guardiã das Acrópoles das cidades, onde ela reina e cujo espaço físico defende, merecendo ser chamada Poliás, a “Protetora”, como ilustra o mito do Paládio. É sobretudo por essa proteção que é ainda cognominada Níke, a vitoriosa. Uma tabuinha da Linear B, datando de mais ou menos 1500 a.C., faz menção de uma A-ta-napoti-ni-ja, antecipando-se, assim, de sete séculos à πότνια Αθηεναίη (pótnia Athenaíe) de Homero e demonstrando que a “Atená Soberana” era realmente a senhora das cidades, em cuja Acrópole figurasse o seu Paládio. Sem se esquecer de suas antigas funções de Grande Mãe, deixando inteiramente de lado seu denodo bélico, Atená Apatúria, além de presidir nas Apatúrias2 à inscrição das crianças atenienses em sua respectiva fratria, favorecia, enquanto 'Υγίεια (Hyguíeia), Higiia, enquanto deusa das “boas condições de saúde”, a fertilidade dos campos, em benefício de uma população a princípio sobretudo agrícoa. É com esse epíteto que a protetora de Atenas se associava a Deméter e a Core numa festa denominada Προκαριστήρια (Prokharistéria), que se poderia traduzir por “agradecimentos antecipados”, porque tais solenidades se celebravam nos fins do inverno, quando recomeçavam a brotar os grãos de trigo. Estava também ligada a Dioniso nas Όσχοφόπια (Oskhophória), quando solenemente se levavam a Atená ramos de videira carregados de uvas. Uma longa procissão dirigia-se, cantando, de um antigo santuário do deus do vinho, em Atenas, até Falero (nome de um porto da cidade), onde havia um nicho da deusa. Dois jovens, com longas vestes femininas, o que trai um rito de passagem, encabeçavam a procissão, transportando um ramo de videira com as melhores uvas da safra. É bom não esquecer ainda que na disputa com Posídon pelo domínio da Ática e, particularmente, de Atenas, Atená fez brotar da terra a oliveira, sendo, por isso mesmo, considerada como a inventora do “óleo sagrado da azeitona”. Deusa guerreira, na medida em que defende “suas Acrópoles”, deusa da fertilidade do solo, enquanto Grande Mãe, Atená é antes do mais a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside às artes, à literatura e à filosofia de modo particular, à música e a toda e qualquer atividade do espírito. Deusa da paz, é a boa conselheira do povo e de seus dirigentes e, como Têmis, é a garante da justiça, tendo-lhe sido mesmo atribuída a instituição do Areópago. Mentora do Estado, ela é também no domínio das atividades práticas a guia das artes e da vida especulativa. E é como deusa dessas atividades, com o título de Έργάνη (Ergáne), “Obreira”, que ela preside aos trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado. E foi precisamente a arte da tecelagem e do bordado que pôs a perder uma vaidosa rival de Atená. Filha de Ídmon, um rico tintureiro de Cólofon, Aracne era uma bela jovem da Lídia, onde o pai exercia sua profissão. Bordava e tecia com tal perfeição, que até as ninfas dos bosques vizinhos vinham contemplar e admirar-lhe a arte. A perícia de Aracne valeu-lhe a reputação de discípula de Atená, mas entre os dotes da fiandeira não se contava a modéstia, a ponto de desafiar a deusa para uma competição pública. Atená aceitou a provocação, mas apareceu-lhe sob a forma de uma anciã, aconselhando-a a que depusesse sua h×bris, sua démesure, seu descomedimento, que não ultrapassasse o métron, que fosse mais comedida, porque os deuses não admitiam competição por parte dos mortais. A jovem, em resposta, insultou a anciã. Indignada, Atená se manifestou em toda a sua imponência de imortal e declarou aceitar o desafio. Depuseram-se as linhas e deu-se início ao magno concurso. Atená representou em lindos coloridos, sobre uma tapeçaria, os doze deuses do Olimpo em toda a sua majestade. Aracne, maliciosamente, desenhou certas histórias pouco decorosas dos amores dos imortais, principalmente as aventuras de Zeus. Atená examinou atentamente o trabalho da jovem lídia. Nenhum deslize. Nenhuma irregularidade. Estava uma perfeição. Vendo-se vencida ou ao menos igualada em sua arte por uma simples mortal e irritada com as cenas criadas por Aracne, a deusa fez em pedaços o lindíssimo trabalho de sua competidora e ainda a feriu com a naveta. Insultada e humilhada, Aracne tentou enforcarse, mas Atená não o permitiu, sustentando-a no ar. Em seguida, transformou-a em aranha, para que tecesse pelo resto da vida. Esse labor incessante de Aracne-Aranha, no entanto, configura uma terrível punição. A Bíblia e o Corão acentuam a fragilidade da teia de Aracne: Construiu sua casa como a da aranha e, como guarda, fez sua choupana. Rico, ele se deita pela última vez; quando abrir os olhos, nada encontrará. (Jó 27,18-19) Mas a habitação da aranha é a mais frágil das habitações. (Corão, 29,40) Semelhante fragilidade evoca uma realidade de aparências fictícias e efêmeras. A aranha torna-se, nesse enfoque, uma artífice de teias de ilusões. Ainda como Έργάνη (Ergáne), “Obreira”, a grande deusa presidia aos trabalhos das mulheres na confecção de sua própria indumentária, pois que ela própria dera o exemplo, tecendo sua túnica flexível e bordada (Il., V, 734). E na festa das Χαλκεῖα (Khalkeîa), festas dos “trabalhodores em metais”, duas ou quatro meninas, denominadas Arréforas3 com auxílio das “Obreiras” de Atená, iniciavam a confecção do peplo sagrado, que, nove meses depois, nas Panateneias, deveria cobrir a estátua da deusa, substituindo o do ano anterior. Associada ainda a Hefesto e Prometeu, no Ceramico de Atenas, ainda por ocasião das Χαλκεῖα (Khalkeîa), era invocada como a protetora dos artesãos. Foi seu espírito inventivo que ideou o carro de guerra e a quadriga, bem como a construção do navio Argo, em que velejaram os heróis em busca do Velocino de Ouro. 3 A maior e a mais solene das festas de Atená eram as Panateneias, em grego Παναθήναια (Panathénaia), solenidade de que participava Atenas inteira, e cuja instituição se fazia remontar a um dos três maiores heróis míticos de Atenas: Erictônio, Erecteu ou Teseu, este último realizador mítico do sinecismo. A comemoração era primitivamente anual, mas, a partir de 566-565 a.C., as Panateneias tornaram-se um festival pentetérico, a saber, que se realizava de cinco em cinco anos e que congregava a cidade inteira. Um banquete público, que “reunia” e unia todos os membros da pólis, dava início à grande festa. Seguiam-se jogos agonísticos, cujos vencedores recebiam como prêmio ânforas cheias de azeite, proveniente das oliveiras sagradas de Atená. Havia ainda corrida de quadrigas e um grande concurso de pírricas, danças guerreiras, cuja introdução em Atenas passava por ter sido da filha querida de Zeus. Precedendo a solenidade maior, realizava-se a Λαμπαδηδπομία (Lampadedromía), “corrida com fachos acesos”, uma verdadeira course aux flambeaux, quando se transportava o fogo sagrado de Atená, dos jardins de Academo até um altar na Acrópole. As dez tribos atenienses participavam com seus atletas. O episódio capital das Panateneias, no entanto, era a πομπή (pompé), a gigantesca procissão, imortalizada por Fídias no friso do Partenon. A cidade toda participava dessa solenidade, inclusive homens com suas armas de guerra e, à época de Fídias, a cavalaria, que acabava de ser reorganizada. A monumental procissão saía das ruas centrais da cidade e chegava à Acrópole, onde se faziam múltiplos sacrifícios sobre os vários altares da deusa ali existentes: Atená Higiia, Nique, Poliás... O rito final era a entrega solene, no interior do santuário, do novo peplo, que representava a vitória dos deuses olímpicos sobre os filhos da Terra. A deusa, durante toda essa solenidade, cercada de uma guarda de honra, figurava sobre seu carro de triunfo, uma vez que fora ela, juntamente com seu pai Zeus, a principal artífice da magna vitória que marcou a instituição de uma ordem definitiva e a supremacia da pólis dos homens sobre o Caos primordial. Atená é a deusa virgem de Atenas e é, por isso mesmo, que seu templo gigantesco da Acrópole se denomina até hoje Παρθενών (Parthenón), o Partenon, já que, em grego, virgem se diz παρθένος (parthénos). É bem verdade que a deusa chamava a Erictônio, o filho da Terra, de seu filho, mas a concepção desse “filho da Terra” foi muito estranha. Tendo Atená se dirigido à forja de Hefesto, para lhe encomendar armas, o deus, que havia sido abandonado por Afrodite, se inflamou de desejo pela deusa virgem e tentou prendê-la em seus braços. Esta fugiu, mas, embora coxo, Hefesto a alcançou. A filha de Zeus se defendeu, mas, na luta, o sêmen do deus lhe caiu numa das pernas. Atená retirou-o com um floco de algodão, que foi lançado na terra, que, fecundada, deu à luz um menino que aquela recolheu, chamando-o Erictônio, quer dizer, “filho da Terra”. Sem que os deuses o soubessem, a deusa fechou-o num cofre e o confiou secretamente às filhas de Cécrops, antigo rei mítico da Ática e fundador de Atenas. Apesar da proibição de Palas, as jovens princesas, Aglauro, Herse e Pândroso, abriram o cofre, mas fugiram apavoradas, porque dentro do mesmo havia uma criança, que, da cintura para baixo, era uma serpente, como normalmente acontece com os seres nascidos da Terra. Uma outra versão relata que ao lado de Erictônio rastejava medonha serpente. Diz-se que, como punição, as três princesas enlouqueceram e precipitaram-se do alto do rochedo da Acrópole. A partir de então, Atená se encarregou de educar seu filho no recinto sagrado de seu templo na Acrópole. Quando Erictônio atingiu a maioridade, Cécrops entregou-lhe o poder. Casado com uma ninfa náiade, Praxítea, foi pai de Pandíon, que o sucedeu no poder. Ao rei Erictônio se atribui a introdução na Ática do uso do dinheiro e a organização das Panateneias. Algumas de suas inovações são igualmente atribuídas a seu neto Erecteu. Além de haver dirigido os trabalhos de seus colegas, Ictino e Calícrates, na construção do Partenon, Fídias (séc. V a.C.), o gênio da escultura ateniense, foi o autor das duas mais célebres estátuas da deusa da inteligência, a Parthénos Criselefantina no interior do Partenon e, ao ar livre, o bronze colossal de Atená Prómakhos. A ave predileta da deusa nascida do crânio de Zeus era a coruja, símbolo da reflexão que domina as trevas; sua árvore favorita, a oliveira. Alta, de traços calmos, mais solene e majestosa que bela, Atená era a deusa de olhos garços... Palas Atená, Atená Poliás, era a defensora e a garante de Atenas. Lá de cima da Acrópole, contemplando sua Cidade, transmitiu-lhe, pelos lábios de Ésquilo, seu discurso de paz, de liberdade, de justiça e de democracia. Era o fecho do julgamento de Orestes, perseguido pelas Erínias. Vencendo-as, Atená, mais uma vez, dessa feita com o escudo da razão, restabeleceu o domínio da ordem sobre o Caos, da luz sobre as trevas, do primado do ius fori (do direito do homem) sobre o ius poli (o direito das trevas). Eis a mensagem de Atená a seus cidadãos: Ouvi agora o que estabeleço, cidadãos de Atenas, que julgais a primeira causa de sangue. Doravante o povo de Egeu conservará este Conselho de Juízes, sempre renovado, nesta Colina de Ares. Nem anarquia, nem despotismo, esta é a norma que a meus cidadãos aconselho observarem com respeito. ........................................................................ Se respeitardes, como convém, esta augusta Instituição, tereis nela baluarte para o país, salvação para a Cidade. Incorruptível, venerável, inflexível, tal é o Tribunal, que aqui instituo para vigiar, sempre acordado, sobre a Cidade que dorme. (Eum., 681-706) 4 O perfil de Atená, como o de Zeus e o de Apolo, evoluiu consideravelmente no mito, de maneira constante e progressiva, no sentido de uma espiritualização. Dois de seus atributos configuram os termos dessa evolução, a serpente e a ave (a coruja). Antiga Grande Mãe minoica, proveniente de cultos ctônios, domínios da serpente, elevou-se, com o sincretismo creto-micênico, a uma posição dominante nos cultos urânios e olímpicos, domínios da ave, como deusa da fecundidade e da sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira, inspiradora das artes e da paz. Seu nascimento foi como um jorro de luz sobre o cosmo, aurora de um mundo novo, atmosfera luminosa, semelhante à hierofania de uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua aparição marca um transtorno na história do mundo e da humanidade. Uma chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento: neve e ouro, pureza e riqueza, tombando do céu com a dupla função de fecundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E é, por isso mesmo, que em certas festas de Atená se ofereciam bolos em forma de serpente e de falo, símbolos da fertilidade e da fecundidade. Para relembrar o nascimento de Erictônio, o instituidor das Panateneias, e que Atená escondera num cofre em companhia e sob a proteção de uma serpente, se oferecia aos recém-nascidos atenienses um amuleto representando uma pequena serpente, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora. Como “Palas Atená”, ela é defensora, no sentido físico e espiritual, das alturas, das Acrópoles, em que se estabelece. A cabeça de Medusa colocada no centro de seu escudo é como um espelho da verdade, para combater seus adversários, petrificando-os de horror, ao contemplarem sua própria imagem. Foi graças a tal escudo que Perseu levou de vencida a terrível Górgona, mostrando assim que Atená é a deusa vitoriosa pela sabedoria, pelo engenho e pela verdade. Sua lança é uma arma de luz: separa, corta e fere, como o relâmpago rasga as nuvens. A proteção concedida a heróis como Aquiles, Héracles, Perseu e Ulisses simboliza a injeção do espírito na força bruta, com a consequente transformação da personalidade do herói. Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria, Atená simboliza mais que tudo a criação psíquica, a síntese por reflexão, a inteligência socializada. A coruja, em grego γλαύvx (glaúks), etimologicamente, “brilhante, cintilante”, porque enxerga nas trevas; em latim noctua, “ave da noite”, era, como se viu, consagrada a Atená. Ave noturna, relacionada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol, opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduzse, daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do conhecimento racional com a percepção da luz lunar por reflexo, opondo-se, destarte, ao conhecimento intuitivo com a percepção direta da luz solar. Explica-se talvez, assim, o fato de ser a coruja um atributo tradicional dos mânteis, dos adivinhos, simbolizando-lhes o dom da clarividência, mas através de sinais que os mesmos interpretam. Noctua, ave das trevas, ctônia portanto, a coruja é uma excelente conhecedora dos segredos da noite. Enquanto os homens dormem, ela fica de olhos abertos, bebendo os raios da lua, sua inspiradora. Vigiando os cemitérios ou atenta aos cochichos da noite, essa núncia das trevas sabe tudo o que se passa, tendo-se tornado em muitas culturas uma poderosa auxiliar da manteía, da mântica, da arte de adivinhar. Daí a tradição segundo a qual quem come carne de coruja participa de seus poderes divinatórios, de seus dons de previsão e presciência. Eis aí por que, no Antigo Testamento, Javé, certamente com o fito de banir a superstição, proibia comer carne de mocho: e (não comais) todo o gênero de corvos, e o avestruz, e a coruja... (Dt 14,14-15). No mito grego a coruja é representada por Ascálafo, que, tendo denunciado a Perséfone, foi transformado em mocho4. Para os astecas, a coruja configura o deus dos infernos, representada como a guardiã da morada obscura das entranhas da terra. Associada às potências ctônias, é um avatar da chuva, das tempestades e da noite. No rico material funerário descoberto no Peru, nas tumbas da civilização pré-incaica Chimu, se encontra, com frequência, a representação de um cutelo de sacrifício, em forma de meia-lua, encimado por uma divindade semi-humana e semipássaro, indubitavelmente uma coruja. Este ícone, ligado à ideia de sacrifício e de morte, está adornado com colares de pérolas e de conchas marinhas, o peito colorido de vermelho e cercado, não raro, por dois cães, cuja significação psicopompa é bem conhecida. Até hoje, aliás, o mocho é uma divindade da morte e guardião de cemitérios em numerosas culturas índio-americanas. Mas já que os mortos governam as sementes, que alimentam os vivos, a coruja é um símbolo digno de uma deusa também da vegetação. 5 Do segundo casamento de Zeus com Têmis, deusa da justiça divina, nasceram as Horas, Eunômia, Irene e Dique, bem como as Moiras personificadas, Cloto, Láquesis e Átropos e a virgem Astreia. Como já se discorreu sobre as Moiras personificadas, no Vol. I, p. 242244, e acerca da virgem Astreia, no mesmo Volume, p. 212, resta enfocar as Horas. HORAS, em grego Ὤραι (Hórai), plural de ὥραι (hóra), “divisão do tempo”, período de tempo, estação. Hóra em grego está por *yôrâ, variante do indo-europeu *iêrâ, alemão Jahr, “ano”. Como se mostrou, de Zeus e Têmis nasceram as Horas, as estações. Foi por um abuso de tradução do latim Horae que as estações se tornaram horas. Só muito tardiamente é que as Horas passaram a personificar as horas do dia. Eram três as Horas: Eunômia, a Disciplina; Dique, a Justiça, e Irene, a Paz. Os atenienses, não obstante, chamavam-nas respectivamente de Talo, a que faz brotar, Auxo, a que faz crescer e Carpo, a que faz frutificar. No mito, elas se apresentam sob duplo aspecto: como divindades da natureza, presidem ao ciclo da vegetação, como divindades da ordem, asseguram o equilíbrio da vida em sociedade. No Olimpo, sua função específica é guardar as portas de entrada na mansão dos deuses, além de servirem a Hera e a Apolo. Acompanham frequentemente Afrodite e fazem ainda parte do cortejo de Dioniso. Iconograficamente são representadas como três jovens graciosas, com uma flor ou uma planta nas mãos. Dado seu caráter abstrato, as Horas não desempenham papel importante no mito. 6 EUROPA, em grego Εὐρώπη (Európe), em etimologia popular, porque a verdadeira ainda se desconhece, proviria de εὐπύς (eur×s), largo, amplo e εὥψ (óps), rosto, face, aspecto, donde Europa é a que possuiria um “rosto largo”, um “aspecto amplo”. Há, pelo menos, quatro heroínas com este nome, sendo a mais célebre a filha de Agenor e Telefassa, que foi raptada por Zeus. O pai dos deuses e dos homens a viu, quando se divertia com suas companheiras perto de Sídon ou de Tiro, onde reinava seu pai. Inflamado pela beleza da jovem princesa, o deus se metamorfoseou num touro de cintilante brancura e de cornos semelhantes ao crescente lunar. Sob essa forma, deitou-se aos pés da jovem fenícia. Foi um susto rápido. Recompondo-se, a filha de Agenor começou a acariciar o touro e sentou-se sobre seu dorso. De imediato, o animal se levantou e se lançou com ela no mar. Apesar do susto e dos gritos aterrorizados de Europa, que mal conseguiu equilibrar-se, segurando-lhe os chifres, o touro penetrou nas ondas e se afastou da terra. Tendo chegado à ilha de Creta, uniram-se junto a uma fonte, em Gortina, sob plátanos, que, em memória desses amores, tiveram o privilégio de jamais perder as folhas. Europa deu três filhos a Zeus: Minos, Sarpédon e Radamanto. Em “troca”, o deus ofereceu a ela três presentes: um cão, que não deixava escapar presa alguma, um venábulo, que jamais errava o alvo, e Talos, “o robô de bronze”, o infatigável vigilante e guardião da ilha de Minos. Mais tarde, fez que Europa se casasse com o rei de Creta, Astérion, que, não tendo filhos, adotou os de Zeus. Após sua morte, Europa recebeu honras divinas e o Touro, em que Zeus se transformou, tornou-se uma constelação e foi colocado entre os signos do Zodíaco. O rapto de Europa não ficou no esquecimento. Tão logo Agenor5, que descendia de Zeus através de Io e do filho desta, Épafo, soube do desaparecimento da princesa, enviou os filhos à procura da mesma, com ordem expressa de não retornarem sem ela. Os três jovens partiram, mas quando perceberam que sua tarefa era inútil e como não podiam regressar à pátria, começaram a fundar colônias, onde se estabeleceram: na Cilícia, em Tebas e em Bastos, na Trácia... Todos esses mitos de fundações fantásticas são tradições locais que relembram colônias fenícias, cuja expansão esses mesmos mitos procuram demarcar. Uma vez que no Vol. I, p. 113 e 118-120 se discutiu o sentido do rapto de deusas e de heroínas e, no mesmo Vol. I, p. 274-278, se discorreu sobre o simbolismo doschifres, mas não se tocou ainda no simbolismo dotouro, há que se fazê-lo agora. O touro configura o poder e o arrebatamento irresistível. É o macho impetuoso, como o terrível Minotauro, guardião do Labirinto. É o Rudra feroz e mugidor do Rig Veda, cuja semente abundante fertiliza a terra. É o Enlil celeste do mito babilônico. Símbolo da força criadora, o touro representou o deus El, sob a forma de uma estatueta de bronze, que se fixava na extremidade de um bastão ou de uma haste. Conservam-se protótipos desses emblemas religiosos, que remontam ao terceiro milenário antes de Cristo. O culto de El, praticado pelos patriarcas hebraicos, imigrados na Palestina, foram rigorosamente prescritos por Moisés. Na tradição grega os touros indomáveis e ferozes, como os que Jasão atrelou, simbolizam o ímpeto desenfreado da violência. Tratase de animais consagrados a Posídon, deus dos Oceanos e das tempestades, e a Dioniso, deus da virilidade fecunda e inesgotável. São igualmente símbolos dos deuses celestes nas várias religiões indo-europeias, por força de sua fecundidade infatigável e anárquica como a de Úrano. Na Índia, o touro Indra é a força ardente e opulenta, porque se prende ao complexo simbólico da fertilidade: corno, céu, água, raio, chuva. Emblema de Indra, ele o é também de Çiva. Como tal, é branco, nobre e seu toutiço evoca a montanha nevosa. Configura a energia sexual, mas cavalgar o touro como o faz Çiva é dominar e carregar essa energia com vistas à sua utilização iogue e espiritualizante. O touro de Çiva, Nandî, simboliza a justiça e a força, bem como o Dharma, a ordem cósmica. O touro védico, Vrishabha, é o suporte do mundo manifestado, aquele que, do centro imóvel, movimenta a roda cósmica. Em virtude dessa analogia, o mito búdico reivindicará para seu herói o lugar ocupado pelo touro védico. O touro, conta-se, retira um de seus cascos da terra no fim de cada uma das quatro idades: quando ele retirar os quatro, os suportes do mundo serão destruídos. Entre os povos altaicos e nas tradições islâmicas, o touro, como a tartaruga, está ligado ao ciclo dos símbolos-suportes da criação, símbolos estes chamadoscosmóforos(que sustêm o cosmo). São os suportes superpostos de baixo para cima: a tartaruga sustém o rochedo, o rochedo ao touro, o touro ao cosmo. No Templo de Salomão (1Rs 7,26), doze touros suportam o “mar de bronze” destinado a conter a água lustral: E firmava-se sobre doze touros, três dos quais olhavam para o norte, três olhavam para oeste, três olhavam para o sul e três olhavam para leste: o mar se elevava acima deles e todas as partes posteriores dos mesmos estavam voltadas para a parte de dentro. Encarnação de forças ctônias, o touro em muitas culturas suporta o peso da terra sobre seu dorso ou sobre seus cornos. O simbolismo do touro está ligado ao da tempestade, da chuva e da lua. O touro e o raio, desde o terceiro milênio a.C., eram o símbolo conjugado de divindades atmosféricas. O mugido do animal era assimilado, nas culturas arcaicas, à borrasca e ao trovão, uma vez que ambos eram a hierofania da força fecundante. O complexo raio-furacão-chuva era considerado entre os esquimós e nas civilizações pré-incaicas, para citar apenas dois exemplos, como uma hierofania da lua. As divindades lunares mediterrâneo-orientais eram representadas sob a forma de touro e investidas de tributos taurinos. O deus da lua em Ur era chamado de “o poderoso, jovem touro do céu de cornos robustos”. No Egito, o mesmo deus lunar era o “touro das Estrelas”. Osíris, deus lunar, foi representado por um touro. Sin, deus lunar da Mesopotâmia, tinha igualmente forma taurina. Afrodite (Vênus) tem seu domicílio noturno no signo do Touro e a Lua exerce, nessa fase, sua maior influência. No persa antigo a lua era chamada Gaocithra, conservadora da semente do touro, porque, consoante um velho mito, o touro primordial depositara seu sêmen no astro da noite. Em hebraico, a primeira letra do alfabeto, ’aleph, que designa touro, é o símbolo da lua em sua primeira semana e, ao mesmo tempo, o nome do signo zodiacal, por onde se inicia a série das casas lunares. Muitas letras, hieróglifos e sinais têm relação simultânea com as fases da lua e com os cornos do touro, não raro, comparados ao crescente lunar. Um rito de iniciação asiático, introduzido na Itália, lá pelo século II d.C., enriqueceu o culto de Cibele com uma cerimônia até então desconhecida em Roma, o tauróbolo, o sacrifício de um touro. Tratava-se de uma iniciação por um batismo de sangue. O neófito descia a uma cova, aberta para essa finalidade, recoberta com um teto cheio de buracos. Sobre o fosso degolava-se um touro e o sangue quente do animal, fluindo pelos orifícios da cobertura, caía sobre o corpo inteiro do iniciado. Aquele que se submetia a essa aspersão sangrenta se tornava renatus in aeternum, um renascido para sempre para uma vida nova. É que o sangue do touro comunicavalhe não apenas o poder biológico do animal, mas sobretudo a aquisição de uma vida espiritual e imortal. O culto de Mitra, de origem iraniana, comportava igualmente o sacrifício de um touro, mas num contexto ritual bastante diferente do acima descrito. As tropas romanas difundiram o culto desse grande deus asiático por todo o Império. No dia 25 de dezembro, após o solstício do inverno, quando os dias recomeçam a crescer, celebrava-se o renascimento do Sol, o Natalis Solis, quer dizer, o nascimento de Mitra, deus salvador, vencedor invencível, nascido de um rochedo.6 O ato fundamental da vida de Mitra foi o sacrifício do touro primitivo, o primeiro ser vivo criado por Ahura-Mazda. Após dominá-lo e conduzi-lo para seu antro, Mitra o degolou por ordem do Sol. De seu sangue e de sua medula nasceram os animais e os vegetais, mau grado os esforços da serpente e do escorpião, agentes e enviados de Ahriman, o que simboliza a luta do poder do bem contra as forças do mal. Nessa batalha deverão empenhar-se também todos os seguidores de Mitra: se assim o fizerem, o invencível lhes garantirá o acesso à mansão da luz eterna. Todas as ambivalências, todas as ambiguidades existem no touro. Água e fogo: o touro é lunar, na medida em que se associa aos ritos da fecundidade; solar, pelo “fogo” de seu sangue e irradiação de seu sêmen. Sobre a tumba real de Ur se ergue um touro de cabeça de ouro (sol e fogo), mas com a mandíbula de lápis-lazúli (lua e água). Donde se conclui que ele é urânio e ctônio, mas é através da cor que seu símbolo mais se destaca e se precisa. Assim, o touro cinza configura uma hierofania da terra-fêmea, face ao cavalo branco, que encarna a força celeste macho, na representação da sizígia Terra-Céu. Consoante a interpretação ético-biológica de Paul Diel, os touros representam com sua força bruta o domínio perverso. Seu sopro é a chama devastadora. O atributo de bronze acrescentado ao “símbolo pé”, que é uma imagem frequente no mito grego, caracteriza um estado da alma. Aplicados aos touros, os pés de bronze configuram o traço marcante da tendência dominadora, a ferocidade e o endurecimento do espírito. Hefesto forjou dois touros de pés de bronze, ferozes e violentos, aparentemente indomáveis, que lançavam chamas pelas narinas. Uma das provas que o rei Eetes impôs a Jasão, para que ele obtivesse o velocino de ouro, era colocar o jugo nesses animais. Tal condição significava que o herói teria primeiro que dominar o ímpeto de suas próprias paixões, antes de tentar a conquista desse símbolo da perfeição espiritual, isto é, Jasão deveria primeiro sublimar seus desejos instintivos e desordenados. Na simbólica analítica de Jung o sacrifício do touro representa o desejo de uma vida espiritual, que permitiria ao homem triunfar de suas paixões animais primitivas e que, após uma cerimônia de iniciação, lhe daria a paz. O touro é a força descontrolada sobre a qual uma pessoa evoluída tende a exercer seu domínio. O entusiasmo e a paixão pelas touradas talvez se explicariam pelo desejo secreto de matar a besta interior, mas tudo se passaria como se se fizesse uma substituição: o animal sacrificado publicamente dispensaria o sacrifício interior ou daria a ilusão, pela mediação do toureiro, de uma vitória pessoal do espectador. Há, contudo, os que interpretam as touradas, com a consequente morte do animal, como uma reminiscência do culto mitraico: a vitória de Ormadz, o bem, o “sol”, simbolizado pelo toureiro com seu “traje brilhante”, contra Ahriman, o mal, “as trevas”, o touro negro. Touro (21 de abril – 20 de maio) é o segundo signo do Zodíaco e símbolo de uma grande capacidade de trabalho e de uma projeção de todos os instintos, sobretudo o instinto de conservação e de sensualidade, bem como de uma propensão exagerada pelos prazeres. Este signo é governado por (Afrodite) “Vênus”, a saber, esta parte do céu se encontra em perfeita e íntima harmonia com a natureza desse planeta. Ao signo de Touro está associado a simbólica da matéria-primeira, da substância inicial, assimilada à Terraelemento, à Mãe-Terra. Se a Áries é destinada a cinética do fogo original, encarnado por um animal seco, hiperviril, dominado por uma massa craniana projetada para o alto e para a frente, ao Touro cabe a estática de uma massa portadora de vida, com predominância horizontal e ventral, onde reina o espírito de lentidão, de densidade, de estabilidade, de solidez, de firmeza, de constância... A este signo se vincula o valor de um sentido plenamente terrestre na linha de uma sinfonia de pradaria verde. No concerto zodiacal, a partitura do Touro se assimila a um canto báquico à glória de (Afrodite) Vênus, Venus Genetrix, de Vênus Mãe, toda de carne palpitante e de sangue vermelho, carregada e vibrante de emanações telúricas; canto de plenitude lunar na exaltação da mãe-natureza. O Touro proporciona uma natureza animal, de compleição instintiva, particularmente rica em sensibilidade: viver neste mundo, para um taurino, é sentir, sorver, apalpar, ver, compreender, saber... É abandonar-se à sofreguidão dos alimentos terrestres, é entregar-se à embriaguez dos encantamentos dionisíacos. A sede de viver está enraizada num temperamento generoso, de vitalidade sólida e têmpera robusta. Toda essa vitalidade pode, no entanto, estancar-se numa vida de prazeres, dominada pelas paixões tanto quanto submeter-se ao jugo do trabalho para satisfazer aos apetites da ganância. 7 Das núpcias legítimas de Zeus e Hera nasceram Hebe, Ilítia e Ares. O nascimento de Hefesto será tratado à parte, logo após se falar de Ares. HEBE, em grego Ἥβη (Hébe), personificação da juventude.Estava encarregada, no Olimpo, da mansão dos deuses: servia o néctar aos imortais, antes do rapto de Ganimedes, preparava o banho de Ares e ajudava Hera a atrelar seu carro divino. Divertia-se dançando com as Musas e as Horas, ao som da lira de Apolo. Quando da apoteose de Héracles e da sua reconciliação com Hera, Hebe se casou com o herói, simbolizando assim o acesso do filho de Alcmena à juventude eterna. ILÍTIA, em grego Εἰλείθια (Eileíthyia), “que corre em socorro das parturientes”. Εἰλείθια é forma dissimilada de Εἰλεύθια (Eleúthyia), “a que acode, a que intervém”. Ilítia é o gênio feminino que preside aos partos. Fiel servidora de sua mãe Hera, de quem é mera hipóstase, cumpria-lhe cegamente as ordens, perseguindo implacavelmente as “amantes” de Zeus, impedindo-as de dar à luz os filhos, como aconteceu com Leto e Alcmena, segundo se verá. ARES, em grego Ἂrhς (Áres), certamente está relacionado com ἀρή (aré), “desgraça, violência, destruição”. Veja-se o sânscrito irasyati, “ele entra em furor”. Desde a época homérica, Ares surge, como o deus da guerra por excelência. Dotado de coragem cega e brutal, é o espírito da batalha, que se rejubila com a carnificina e o sangue. O próprio Zeus, seu pai, como já se mostrou no Vol. I, p. 146, o chama de o mais odioso de todos os imortais que habitam o Olimpo (Il., V, 890). O “flagelo dos homens, o bebedor de sangue”, como lhe chama Sófocles (Áj., 254), nem mesmo entre seus pares encontra simpatia. Hera se irrita com ele e Atená o odeia e o qualifica de μαινόμενος (mainómenos), “louco”, e “encarnação do mal”. Na Ilíada, V, 35, 830ss, a deusa da inteligência dirigiu contra ele a lança de Diomedes e mais tarde (Il., XXI, 403) ela própria o feriu com uma enorme pedra. Somente Afrodite, et pour cause o chama de “bom irmão” (Il., V, 359)... Na Guerra de Troia, pôs-se ao lado dos troianos, o que não importa muito, uma vez que Ares não está preocupado com a justiça da causa que defende. Seu prazer, seja de que lado combata, é participar da violência e do sangue. De altura gigantesca, coberto com pesada armadura, com um capacete coruscante, armado de lança e escudo, combatia normalmente a pé, lançando gritos medonhos. Seus acólitos nos sangrentos campos de batalha eram: Éris, a Discórdia, insaciável na sua fúria; Quere, com a vestimenta cheia de sangue; os dois filhos, que tivera com Afrodite, cruéis e sanguinários, Deîmos, o Terror, e Phóbos, o Medo, e a poderosa Enio, “a devastadora”. Esta última era certamente uma divindade guerreira anterior a Ares e que por ele foi suplantada; a ela deve o deus das lágrimas, como lhe chama Ésquilo (Supl., 681), o epíteto de Ἐνυάλιος (Enyálios), “o belicoso”, nome que parece estar atestado na Linear B, sob a forma Enu-wa-ri-jo. Mais tarde, todavia, Enio se tornou sua filha. Seus demais filhos foram quase todos violentos ou ímpios devotados a uma sorte funesta, como Flégias, que tivera com Dótis. Este Flégias era pai de Ixíon e Corônis, a mãe de Asclépio. Amante de Apolo, Corônis o traiu, embora grávida do deus da medicina. Como Apolo a tivesse matado, Flégias tentou incendiar-lhe o templo de Delfos. O deus o liquidou a flechadas e lançou-lhe a psiqué no Tártaro. Com Pirene foi pai de três filhos: Cicno, Diomedes Trácio e Licáon. O primeiro, violento e sanguinário, era salteador. Geralmente se postava na estrada que conduzia a Delfos e assaltava os peregrinos que se dirigiam ao Oráculo. Apolo, encolerizado, instigou contra ele Héracles. Cicno foi morto e Ares avançou para vingar o filho. Atená desviou a lança e Héracles atingiu-o na coxa, forçando-o a fugir para o Olimpo. Diomedes Trácio, que alimentava suas éguas com carne humana, foi também liquidado pelo filho de Alcmena. Licáon, rei dos crestônios, povo da Macedônia, quis barrar o caminho a Héracles, quando este se dirigia ao país das Hespérides, aonde ia buscar os Pomos de Ouro. Interpelado e depois atacado por Licáon, o herói o matou. Tereu foi um outro de seus rebentos e seu mito prende-se às filhas de Pandíon, Procne e Filomela. Tendo havido guerra, por questões de fronteira, entre Atenas e Tebas, comandada por Lábdaco, Pandíon solicitou o auxílio do trácio Tereu, graças a cujos préstimos obteve retumbante vitória. O rei ateniense deu a seu aliado a filha Procne em casamento e logo o casal teve um filho, Ítis. Mas o trácio se apaixonou pela cunhada Filomela e a estuprou. Para que ela não pudesse dizer o que lhe acontecera, cortou-lhe a língua. A jovem, todavia, bordando numa tapeçaria o próprio infortúnio, conseguiu transmitir à irmã a violência de que fora vítima. Procne resolveu castigar o marido: matou o próprio filho Ítis e serviu-lhe as carnes ao pai. Em seguida, fugiu com a irmã. Inteirado do crime, Tereu, armado com um machado, saiu em perseguição às duas irmãs, tendo-as alcançado em Dáulis, na Fócida. As jovens imploraram o auxílio dos deuses e estes, apiedados, transformaram Procne em rouxinol e Filomela em andorinha. Tereu foi metamorfoseado em mocho. Com a filha de Cécrops, Aglauro, o deus da guerra teve Alcipe. Tendo Ares assassinado o filho de Posídon, Halirrótio, que lhe tentara violentar a filha, foi arrastado por Posídon a um tribunal formado por doze grandes deuses, que se reuniram numa colina, junto à qual o homicídio fora cometido, situada em frente à Acrópole de Atenas. Foi absolvido, mas a colina, a partir de então, passou a chamar-se Ἂρειος πάγος (Áreios págos), isto é, Areópago, “colina de Ares ou colina do homicídio”, uma vez que esse histórico tribunal ateniense tinha a seu encargo julgar crimes de sangue (V. Oréstia, de Ésquilo). Movido por fortes ciúmes, Ares assassinou Adônis, seu rival na preferência de Afrodite. Os Alóadas, quer dizer, os dois gigantescos e temíveis filhos de Posídon, Oto e Efialtes, para vingar Adônis encerraram o deus da guerra num pote de bronze, depois de o terem amarrado. Ali o deixaram durante treze meses, até que o astucioso Hermes conseguiu libertá-lo num estado de extrema fraqueza. Atribuem-se a Ares muitas aventuras amorosas, dentre as quais a mais séria e célebre foi a que teve com Afrodite, narrada no Vol. I, p. 228-229. Seu habitat preferido era a Trácia, país selvagem, de clima rude, rico em cavalos e percorrido frequentemente por populações violentas e guerreiras. A Trácia era também uma das habitações das terríveis Amazonas, que passavam igualmente por filhas do amante de Afrodite. Seu culto, relativamente pobre em relação aos demais deuses, era sobretudo parcimonioso em Atenas. Além da Beócia, de que se falará mais abaixo, foi no Peloponeso, por força do militarismo espartano, que Ares teve mais simpatizantes. Na Lacônia, os Efebos sacrificavam a Eniálio, havendo em Esparta um templo que lhe era consagrado. Em Atenas, era venerado num pequeno e modesto santuário, ao qual estava associada Afrodite. Possuía templos ainda em Trezena e na ilha de Salamina, consoante Plutarco (Sól., 9). Na capital da Beócia, Tebas, o “belicoso” possuía realmente um culto particular, uma vez que era tido como ancestral dos descendentes de Cadmo. É que este, filho de Agenor e Teléfassa, como se viu há pouco, à p. 135s., após o rapto da irmã, se estabeleceu na Trácia com a mãe. Morta esta, Cadmo consultou o oráculo, que lhe ordenou abandonasse a procura de Europa e fundasse uma cidade. Para escolher o local, deveria seguir uma vaca até onde ela caísse de cansaço. Cadmo pôs-se a caminho e, tendo atravessado a Fócida, viu uma vaca, que possuía nos flancos um disco branco, sinal da Lua. Seguiu-a por toda a Beócia e, quando o animal se deitou, compreendeu que o oráculo se cumprira. Mandou os companheiros a uma fonte vizinha, consagrada a Ares, em busca de água, mas um Dragão, filho do deus, que guardava a fonte, os matou. Cadmo conseguiu liquidar o monstro e, a conselho de Atená, semeou-lhes os dentes. Logo surgiram da terra homens armados e ameaçadores, a que se deu o nome de Σπαρτοί (Spartoí), “Os Semeados”. Cadmo atirou pedras no meio deles e “Os Semeados”, ignorando quem os provocara, acusaram-se mutuamente e se mataram. Sobreviveram apenas cinco: Equíon (que se casou com Agave, filha de Cadmo), Udeu, Ctônio, Hiperenor e Peloro. A morte do Dragão teve que ser espiada e, durante oito anos, Cadmo serviu ao deus como escravo. Terminado o “rito iniciático”, Zeus lhe deu como esposa Harmonia, filha de Ares e Afrodite. Cadmo reinou longos anos em Tebas. De seu casamento com Harmonia nasceram Ino (Leucoteia), Agave, Sêmele e Polidoro. Já idosos, Cadmo e a esposa abandonaram Tebas em condições misteriosas. Deixaram o trono ao neto Penteu, filho de Agave e Equíon, e foram para a Ilíria. Conta-se que um oráculo prometera a vitória aos ilírios contra inimigos internos, se fossem comandados por Cadmo. O oráculo cumpriu-se e o antigo rei de Tebas reinou ainda sobre os ilírios e teve com a esposa um último filho, Ilírio. Por fim, Cadmo e Harmonia foram transformados em serpentes e levados para os Campos Elísios. Três coisas nos chamam a atenção no mito de Ares: o pouquíssimo apreço em que era tido por parte de seus irmãos olímpicos; a pobreza de seu culto na Hélade e, apesar de ser um deus da guerra, suas constantes derrotas para imortais, heróis e até para simples mortais. Pública e solenemente desprezado pelos próprios pais, era ridicularizado por seus pares e até pelos poetas, que se regozijavam em chamá-lo, entre outros epítetos deprimentes, de louco, impetuoso, bebedor de sangue, flagelo dos homens, deus das lágrimas... Epítetos, aliás, que não condizem muito com as atitudes bélicas de Ares, deus da guerra: derrotado constantemente por Atená; vencido várias vezes por Héracles; ferido por Diomedes; aprisionado pelos Alóadas... Era, por fim, um deus cujos templos na Grécia eram muito poucos, seu culto muito escasso. Um deus olímpico, com tais características, convida a uma reflexão. Há os que solucionam o problema de maneira muito simples: os gregos, desde a época homérica, se compraziam em mostrar a força cega e bruta de Ares debelada e burlada pelo vigor mais inteligente de Héracles e sobretudo pela coragem lúcida, viril e refletida de Atená. A vitória da inteligência sobre a força bruta refletiria a essência do pensamento grego, e tudo estaria resolvido. É verdade que tudo isto está correto, mas não satisfaz inteiramente. Talvez se pudesse defender a hipótese de que Ares seja não um deus, mas um demônio popular, que se encaixou na epopeia, mesmo assim, ou por isso mesmo, desprezado pelos outros deuses. Talvez se trate, como querem outros, de um herdeiro pouco afortunado de alguma divindade pré-helênica, como já se pensou de sua companheira inseparável, Enio. Sua afinidade com a Trácia e suas ausências constantes do Olimpo, para atender a seus “trácios fiéis”, nos inclinariam a ver no deus da guerra um estranho mal adaptado à religião grega, em cujo seio seu caráter sangrento e funesto lhe valeu um sério descrédito. Assim como a Erínia, a “devastadora”, foi qualificada por Ésquilo (Set., 721) de deusa tão pouco semelhante aos deuses, igualmente Ares, por força de total ausência, em sua personalidade, de uma característica essencial a um deus, a virtude da beneficência, foi cognominado pelo escoliasta de Édipo Rei, 185ss., de θεὸς ἄθεος (theòs átheos), de um deus que não é um verdadeiro deus. Seja como for, Ares jamais se adaptou ao espírito grego, tornandose um antípoda do equilíbrio apolíneo. Realmente um estranho no ninho. HEFESTO, em grego Ἥφαιστος (Héphaistos), cuja etimologia é muito discutida. Talvez se pudesse, partindo da forma eólia Ἄφαιστος (Áphaistos), decompor-lhe o nome em *ap > *aph, “água” e *aidh > *aistos, “acender, pôr fogo em”. Coxo, mutilado como o relâmpago, precipitado como ele do céu para a terra ou para a água, Hefesto é o fogo nascido nas águas celestes, como Agni, o deus do fogo na Índia, que tem quase o mesmo nome que o deus grego: apâm napât, “filho das águas”, mas trata-se de mera hipótese. Filho de Zeus e de Hera, consoante Homero (Il., I, 573ss.; Odiss., VIII, 312) ou vindo ao mundo sem união de amor, conforme Hesíodo (Teog., 927), o deus das forjas teve um nascimento bastante complicado. Hera, continua Hesíodo, por cólera e desafio lançado ao esposo (Teog., 928), gerou sozinha o filho. A cólera da deusa e o desafio ao esposo se deveram ao nascimento de Atená, que saiu da cabeça de Zeus, sem o concurso de Hera. Para o defeito físico de Hefesto há duas versões. A primeira está na Ilíada, I, 590ss.: Hera discutia violentamente com o marido a propósito de Héracles e Hefesto ousou tomar a defesa da mãe. Zeus, enfurecido, agarrou-o por um dos pés e o lançou para fora do Olimpo. Hefesto rolou pelo espaço o dia todo e somente ao pôr-dosol caiu na ilha de Lemnos, onde foi recolhido pelos síntios, considerados os primeiros habitantes da ilha. Com o tombo, o deus ficou aleijado e manquitolava de ambas as pernas, o que sempre lhe trouxe muitos problemas de ordem psíquica, segundo se tentou mostrar no Vol. I, p. 131 e 145-146. A segunda versão está ainda na Ilíada, XVIII, 394ss. e Hh. Ap., I, 316: Hefesto já teria nascido coxo e deformado. Humilhada com a fealdade e a deformação do filho, Hera o lançou do alto do Olimpo. Após rolar pelo vazio durante um dia inteiro, o infeliz caiu no mar, onde foi recolhido por Tétis e Eurínome, que o “guardaram” durante nove anos numa gruta submarina, o que mostra com clareza o longo período iniciático do deus coxo. Foi nesta gruta que Hefesto fez sua longa aprendizagem: trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se “o mais engenhoso de todos os filhos do céu”. Em sua longa carreira de ferreiro e ourives divino, Hefesto multiplicou suas criações, forjando e confeccionando os mais preciosos, belos e “surpreendentes” objetos de arte que já se viram. Para vingar-se da mãe, fabricou e enviou-lhe um presente magnífico: um trono de ouro, delicado e artisticamente cinzelado. Ao recebê-lo, Hera ficou estupefacta: jamais vira coisa tão rica e tão bela, mas, ao sentar-se nele, ficou presa, sem que nenhum dos deuses pudesse libertá-la, porque só o ourives divino conhecia o segredo do atar e desatar, segundo se comentará mais abaixo. Foi necessário enviar Dioniso, para levá-lo de volta ao Olimpo. O deus do êxtase e do entusiasmo embriagou Hefesto e, assim, foi possível guiálo, montado num burro, até a mansão divina. Para Tétis, a quem era imensamente grato, fabricou joias preciosíssimas e forjou, a pedido desta, novas armas para Aquiles (Il., XVIII, 468ss.). Já se viu no mito de Afrodite, Mitologia grega, Vol. I, p. 228, como o engenhoso filho de Hera, tendo envolvido seu próprio leito numa rede invisível, surpreendeu sua esposa Afrodite em flagrante adultério com Ares (Odiss., VIII, 266ss.). A obra-prima do coxo genial, porém, foi a “criação” da primeira mulher. Por solicitação de Zeus, Hefesto modelou em argila uma mulher ideal, fascinante, a irresistível Pandora. Não a modelou apenas, foi além do artista: animou-a com um sopro divino. Se Pandora, de um lado, patenteia a genialidade e o poder de que estava investido o deus dos nós, de outro, demonstra que os gregos tinham noção perfeita de que o limo da terra, o homo-humus é animado por uma centelha de eternidade, isto é, por uma alma imortal. Hefesto, fisicamente an odd number, um mutilado, só teve por mulheres a grandes belezas. Já na Ilíada, XVIII, 382, está unido a Cáris, a Graça por excelência; Hesíodo, Teog., 945s., lhe atribui Aglaia, a mais jovem das Cárites; Zeus, por fim, para “compensar tudo”, deulhe em casamento a própria beleza, a deusa do amor, Afrodite. Para alguns intérpretes, essa ânsia de beleza por parte de Hefesto traduziria menos o sentimento de um doloroso contraste físico do que a ideia profunda que o incomparável artista possuía da suprema beleza. É bem possível que essa visão “com olhos da alma” preencha o ângulo estético do problema, mas, ao que parece, há outras causas, que estamparemos no fecho deste capítulo. A mutilação de Hefesto, todavia, não o impedia de ser valente, destemido e de tomar parte ativa nos combates. Senhor do elemento ígneo na Gigantomaquia, luta bravamente com o gigante Clício e o mata, golpeando-o com barras de ferro em brasa. Em Troia toma o partido dos aqueus (Il., XX, 36) e combate agitando labaredas. Quando o rio Escamandro ameaçou submergir Aquiles, o deus coxo, por solicitação de Hera, avançou com suas chamas e seu sopro ígneo sobre as águas do rio e o obrigou a retornar a seu leito. Nessa luta de elementos, maravilhosamente descrita por Homero (Il., XXI, 324ss.), a água é vencida pelo fogo: καίετο δ'ἲ ποταμοῖο (kaíeto d’ìs potamoîo), a força do rio está em chamas, diz significativamente o cantor de Aquiles (Il., XXI, 356). Afinal a etimologia proposta para Hefesto, o que incendeia a água, parece, ao menos semanticamente, não andar muito longe da verdade. Os antigos já reconheciam no coxear do deus o movimento vacilante da chama ou o ziguezague do raio, pois que o ourives divino personifica o fogo, não o celeste, mas o telúrico, cujo principal centro estava localizado na ilha de Lemnos: trata-se do histórico Vulcão de Lemnos, de que fala Sófocles na tragédia Filoctetes, 800, 986, que se manteve muito ativo até a época de Alexandre Magno. Acreditava-se que foi perto desse vulcão que o deus caiu, quando tombou do céu, no sopé do Mosiclo, onde se ergueu, mais tarde, seu templo. Nas profundezas da ilha se localizavam primitivamente suas forjas e bigornas, antes de serem as mesmas transferidas para o monte Etna e para o Olimpo... Na costa norte de Lemnos estava a cidade de Hefestia, epônimo do deus, onde se celebrava em sua honra, exatamente como nas Hefestias de Atenas, “a corrida com fachos acesos”, a mesma Lampadedromía, com que se homenageava também Atená. Diga-se logo que essas “corridas dos fachos” têm sua origem num rito muito antigo da renovação do fogo. A Campânia do sul, mais precisamente as ilhas Lípari, bem como a região do Etna foram outros dois grandes centros de seu culto: ali o deus tinha respectivamente os epítetos de Liparaîos e Aitnaîos, Lipareu e Etneu. É que no Etna foram localizadas mais tarde suas forjas, onde o deus trabalhava com o auxílio dos Ciclopes, segundo um tema característico da poesia alexandrina. E é bom não esquecer que é sob a massa fumegante do Etna que Tífon, “demônio dos vulcões”, expia, no calor insuportável e no barulho infernal das bigornas de Hefesto, sua revolta contra Zeus. O mito de Erictônio une estreitamente Hefesto a Atená e à Ática, onde Hefestiás foi o nome de uma das quatro tribos primitivas. No Hino Homérico, onde é exaltado por sua “engenhosa habilidade”, o deus coxo está associado à deusa da inteligência como inspirador de “nobres trabalhos”, fonte da civilização e da cultura humana. Seu altar no Erékhtheion, Erecteu (templo de Atená Poliás na Acrópole) e a estátua de Atená no templo do deus, na Ágora, demonstram que suas núpcias intelectuais e artísticas eram para sempre. Platão se aproveitou dessa sizígia e num passo do Protágoras (321d-e) coloca o “casal” num mesmo ateliê e, depois, mais especificamente no Crítias (109c-d), faz que Atená e Hefesto partilhem o domínio, a suserania de uma Atenas utópica, que seria seu quinhão comum e único. O filósofo ateniense insiste na identidade natural das duas divindades e de seu amor comum pela ciência e pela arte, pois que ambos conjugam φιλοσοφια (philosophía) e φιλοτεχνία (philotekhnía), um duplo amor que caracteriza igualmente a cidade entregue à sua vigilância e a seu desvelo. Foi sobretudo sua philotekhnía, seu amor à arte, que fez de ambos os protetores incontestes dos artesãos. No bairro de Ceramico, berço principal das Χαλκεῖα (Khalkeîa), “Calquias”, da grande festa dos “metalúrgicos”, Atená e Hefesto reinavam soberanos. Nas Ἡφαίστεια (Hephaísteia), “Hefestias”, festividades em honra de Hefesto, quando se realiza uma Lampadedromía, nos mesmos moldes daquelas das Panateneias, a convidada de honra era Atená. Nas Προμήθεια (Prométheia), “Prometias”, solenidades em honra de Prometeu, “espécie de deus irmão”, em quem Ésquilo vê também um promotor de todas as artes, lá estavam, ladeando o homenageado, Hefesto e Atená. Tem-se a impressão de que a sensibilidade, a cultura e o espírito artístico ateniense se alicerçavam no triângulo Atená-Hefesto-Prometeu. Um derradeiro encontro com Hefesto se fazia nas Apatúrias, sempre com a presença do fogo, mas do fogo numa acepção menos material. Nessa festa, tão importante para a comunidade ateniense, Hefesto era homenageado com Atená Fratria e Zeus Frátrio, uma comunhão fraterna, em que o deus do fogo era aclamado como protetor da lareira e da família. A tradição atribui a Hefesto vários filhos: o argonauta Palêmon, o escultor Árdalo, o famoso salteador Perifetes, que foi morto por Teseu, e Erictônio, nascido de um desejo do deus das forjas por Atená. O sentido simbólico da mutilação, e Hefesto foi o grande mutilado a ponto de tornar-se o mais perito e astuto xamã do Olimpo, já se comentou no Vol. I, p. 355-358. Há, não obstante, uma faceta muito importante do deus que merece algumas ponderações. Trata-se de seu poder de atar e desatar. É o xamã dos nós, o deusenfaixador. E graças a seus trabalhos artísticos e mágicos, como tronos, redes, correntes, é capaz não só de atar deuses e deusas e até o Titã Prometeu, como está no Prometeu Acorrentado de Ésquilo, mas ainda sabe, quando solicitado, desatar com maestria, conforme demonstrou, assistindo Zeus como parteiro, por ocasião do nascimento de Atená, e libertando sua mãe do trono e sua esposa e o amante Ares da corrente invisível. “Em parte alguma, aliás, a equivalência da magia e da perfeição tecnológica é mais bem valorizada do que na mitologia de Hefesto [...]. Os nós, as redes, os cordões, as cordas, os barbantes alinham-se entre as expressões ilustradas da força mágico-religiosa indispensável para poder comandar, governar, punir, paralisar, ferir mortalmente; em suma, expressões ‘sutis’, paradoxalmente delicadas, de um poder terrível, desmedido, sobrenatural”7, diz Mircea Eliade. E todo esse poder maravilhoso e terrível, construtivo e destrutivo, Hefesto o deve ao domínio do fogo, apanágio dos xamãs e dos mágicos, antes de se tornar um grande segredo dos ferreiros, metalúrgicos e oleiros. Como demonstrou Dumézil8, completado e ampliado com mais riqueza de informações por M. Eliade9, a soberania de um deus está no seu saber e poder ligar e desligar, mas todo esse poder lhe é comunicado pela magia. É assim que deuses mágicos como Varuna, Úrano, Zeus, Odin, Rômulo (Quirino), Hefesto... têm em suas mãos uma arma fatal, a magia, cuja manifestação exterior são os nós, os laços, as cordas, as redes, os anéis, as cadeias... sob forma material ou figurada. Um poder assim extraordinário lhes permite governar, administrar e equilibrar o mundo. São normalmente deuses que, antes ou excepcionalmente após a conquista do poder, não mais participaram de guerras ou combates. Manipulando a magia, esses imortais soberanos dispõem de outros meios mais eficazes: o dom da ubiquidade ou, quando não, do transporte imediato, a arte e a astúcia de metamorfoses ilimitadas, a capacidade de cegar, ensurdecer, paralisar os adversários e arrebatar toda e qualquer eficácia de suas armas. Daí a oposição entre deuses soberanos e deuses guerreiros: Varuna se opõe ao guerreiro Indra; Zeus, desde as epopeias homéricas, opõe-se a Ares; Júpiter a Marte... A tão comentada passividade dos deuses soberanos do céu corresponde a seu poder mágico: esses entes supremos agem sem agir, fisicamente, porque operam diretamente com a potência do espírito. A exteriorização desse poder mágico, segundo se disse, são as cordas, as redes, os anéis, os laços, os nós... Vejamos, na prática, alguns exemplos. Varuna, o que liga, é apresentado com uma corda nas mãos; o uso do anel era privativo dos sacerdotes e de determinados dignitários, porque somente eles estavam ligados ao divino e tinham, por conseguinte, o poder de ligar e desligar. Quando falece o Papa, quebra-se-lhe o Anel de Pescador, porque seu liame com o poder, que lhe outorgara Cristo, foi rompido pela morte. Prometeu, libertado por Héracles, com anuência de Zeus, foi obrigado a usar um anel, confeccionado com fragmentos das correntes que o prendiam, como símbolo de vassalagem e obediência ao deus soberano. É necessário esclarecer de uma vez que ligar e desligar agem positiva ou negativamente. Trata-se de algo phármakon, como diriam os gregos: uma droga salutar ou venenosa. É assim que Varuna punia, ligando pela doença, pela impotência, pela morte os que transgrediam as leis. No domínio do mito germânico, alguns ritos são elucidativos a respeito do poder e do simbolismo dos nós. O severo historiador latino C. Cornélio Tácito (séc. I-II d.C.) em sua obra Germania, 39, informa que na festa religiosa anual dos sêmnones, todos os participantes compareciam atados: nemo nisi uinculo ligatus ingreditur, ninguém entra a não ser atado. O mesmo historiador, no Cap. 31 da obra supracitada, acrescenta que os catos, um outro povo germânico, usavam um anel de ferro, “como se fora uma cadeia”, até matarem o primeiro adversário. Tanto o nó como o anel demonstram que nesses ritos estava impressa a marca da vassalagem, em que o homem se apresenta face ao deus soberano como cativo ou escravo, tendo certamente, no caso dos catos, estabelecido um pacto com o divino até eliminarem o primeiro inimigo. Para um soldado romano, a suprema humilhação era fazê-lo passar sob o jugo10 sub iugum mittere, o que significava um desprezo total pelo soldado ou sua sujeição absoluta ao vencedor. Eliade classifica a “função” dos nós e dos liames, em geral, na magia prática, em duas categorias: laços mágicos contra os adversários humanos (na guerra, na bruxaria), com a operação inversa do “corte dos nós”, e nós e laços benéficos, como meio poderoso de defesa contra animais selvagens, doenças, sortilégios, a morte e os demônios. Laços mágicos contra inimigos ou adversários são de uso em todas as culturas: sobre o caminho, por onde deveriam passar as tropas inimigas, jogavam-se cordas com nós; enterrar uma corda perto da casa de um adversário é imobilizá-lo; esconder a corda na embarcação de um opositor é fazê-lo soçobrar. O corte do nó é um meio de defesa preventiva: em determinados períodos críticos (casamento, parto, morte...), todos os nós (se é que existem) devem ser desatados, nas vítimas e nos circunstantes... Ilítia, a deusa dos partos (voltaremos a encontrá-la no nascimento de Apolo e Ártemis, bem como no de Héracles), cruzando a perna esquerda sobre a direita, fechava qualquer caminho, e o nascimento era impossível! Aliás, cruzar pernas, cruzar braços, eram considerados em muitas culturas como “atitudes” perigosas, porque tal cruzamento fecha o caminho do “mana” (palavra sobre que se falará no capítulo seguinte): é que a energia universal, não podendo circular livremente, acumula-se na pessoa, pondo-a em perigo. Eis por que os Rosa-Cruzes proíbem que se cruzem os braços, a não ser em oração, porque, neste caso, pode-se e deve-se acumular energia divina, uma vez que a pessoa está protegida pela prece. Na segunda categoria alinham-se todas as práticas que atribuem aos laços e nós uma função de cura, de defesa contra os demônios ou de conservação da força mágico-vital. Amarrar a parte afetada por uma doença, com o fito de curá-la, é prática universalmente conhecida. Mais difundido ainda é o uso de nós, cordões, barbantes, fitas, como defesa mágica contra as doenças e os demônios, daí o hábito de se atarem e enfaixarem os cadáveres e as múmias. Observe-se, todavia, que esse emprego mágico-religioso de nós, fitas e laços tem caráter ambivalente. Os nós provocam as doenças e igualmente as afastam ou curam o enfermo; os laços, as fitas e os nós embruxam e enfeitiçam, mas também protegem contra a bruxaria; ajudam os partos e os impedem; podem trazer a morte ou repeli-la. Em síntese, o essencial no rito mágico é a orientação que se imprime à energia latente num laço, numa fita, num nó... Essa orientação obviamente pode ser positiva ou negativa, benéfica ou maléfica, pode ser de defesa ou ataque. É verdade que as crenças e ritos sobre a ação de ligar e desligar nos remetem ao domínio da mentalidade mágica, mas é preciso que não nos enganemos: o simbolismo geral da ação de atar e desatar não é uma criação exclusiva dessa mentalidade. Há farta documentação sobre nós, liames, cordas, redes, fitas... que exprimem não apenas uma autêntica experiência religiosa, mas também uma concepção geral do homem e do mundo, uma concepção verdadeiramente religiosa e não mágica11. Como se vai apresentar uma série de exemplos concernentes à ação de ligar e desligar, uns de cunho tipicamente religioso, outros de feição claramente mágica, talvez não fosse de todo fora de propósito fazer uma distinção entre magia e religião. Fica estabelecido, de saída, que, na ação mágica dos nós, o poder de atuar positiva ou negativamente está inerente à própria energia do nó ou do objeto que se usa, enquanto, do ponto de vista religioso, os nós ou os objetos não possuem mana ou energia alguma, mas atuam como símbolos da manifestação do poder de um deus soberano. Isto posto, vamos à definição de religião e de magia, definição que, por si só, estabelece a diferença entre ambas. Repetindo o que já se disse no Vol. I, p. 41-42, religião pode ser definida como “o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem manifesta sua dependência em relação a potências invisíveis consideradas sobrenaturais”12. Magia, em grego Μαγεία (magueía) que, consoante Van den Born13, “significa originariamente a atividade ou a arte do mago, depois também a arte ou a atividade ocultas do feiticeiro, geralmente em sentido pejorativo. Por magia (feitiço) entendemos ideias e práticas que se baseiam na crença de que certas pessoas, objetos ou ritos seriam capazes de causar um efeito anormal, fatal, infalível, através de determinados meios que não estão em nenhuma proporção com o fim desejado. Característico da magia é que esses magos, aplicando meios poderosos por eles mesmos inventados, se sentem independentes da soberania divina e da lei moral”. A claríssima Monique Augras faz uma distinção, a nosso ver, muito importante, entre a magia de culturas primitivas e a que hodiernamente conhecemos: “A magia, com efeito, é por assim dizer o animismo14 utilizado no sentido instrumental. Agindo sobre os símbolos, atua-se sobre o mundo. Devemos distinguir entre a magia dos povos ditos ‘primitivos’, que é o aspecto de aplicação do sistema animista, e a magia tal como a conhecemos hoje, que se apresenta como um conjunto de práticas. Nesse último caso, não é mais o universo todo que é símbolo do mundo real, mas alguns objetos desse mundo. Há seleção como na religião e, em muitos casos, tudo aquilo que a religião rejeitou passa a alimentar as práticas mágicas [...]. O fundamento da magia é que o homem é homólogo do universo. O microcosmo contém o macrocosmo [...]. Se o mundo maior é homólogo do mundo menor e vice-versa, a magia pode deter-se em dois tipos principais de ação: prever os acontecimentos terrenos pelo estudo das modificações celestes, e modificar o cosmo pela modificação dos símbolos terrestres”15. A adivinhação é a forma mais passiva, mais contemplativa da magia. Como exemplo de magia passiva, com finalidade divinatória, a autora cita as combinações dos naipes do Tarô, “que refletem a posição do universo em torno da pessoa que os distribuiu” e a astrologia, que, baseando-se no estudo dos movimentos das esferas celestes, em relação a determinado indivíduo ou a certo acontecimento, deduz todas as informações possíveis a respeito de seu passado, presente e, de modo particular, de seu futuro. Nesta linha de raciocínio, se distingue, segundo Monique, magia passiva, cujo instrumento mais atuante é a mântica, e magia ativa, aquela, cujo escopo é recriar o cosmo. Dos exemplos citados por ela a respeito desta última, dois são, a nosso ver, extremamente significativos. O troglodita, que nas paredes de seu habitat desenha a caça correndo, em seguida ferida e, por fim, morta, visa a propiciar “sucesso e êxito ao caçador”. O curandeiro (embora o curandeirismo e a feitiçaria sejam “aspectos menores da magia”) que fabrica uma boneca contendo “substâncias do inimigo” (fragmentos de roupa, de unhas, de cabelos), isto é, que lhe capta uma parte da energia, do mana e a espanca e tortura, deseja que o inimigo sofra tudo quanto se efetua com o símbolo. A vítima terá morte certa, “se o curandeiro apunhalar a boneca”. “Por isso”, argumenta Monique, “a magia pode ser considerada pela religião cristã como particularmente demoníaca, pois que o seu propósito é exatamente esse: recriar o mundo. Para a religião não pode haver outro universo possível senão o presente”. Diga-se, para encerrar esta digressão, que nem sempre é fácil estabelecer a distinção entre magia passiva e ativa e, por isso, “os mágicos se apoiam no conhecimento do cosmo e do destino”. Inúmeros são os exemplos que se poderiam apontar a respeito da força deatar e desatar, quer quando tomados como símbolos, quer quando empregados na dinâmica de seu próprio mana, mas vamos restringi-los ao mínimo necessário. Religião e magia surgirão com toda a sua força. Com um pouco de reflexão é possível estabelecer um divisor de águas entre ambas. Os nós, os fios, os laços, as redes se acotovelam, em sentido simbólico, pelo AntigoeNovo Testamento: por trás dos mesmos está a força, a providência de Deus: Dores de inferno me cercaram; surpreenderam-me laços de morte. Na minha tubulação invoquei o Senhor, e clamei ao meu Deus. (Sl 18(17),6-7b) O poderoso senhor dos laços no Antigo Testamento é Javé em pessoa e os profetas mostram-no com redes nas mãos pronto para punir os culpados: Mas, depois que tiverem ido, eu estenderei sobre eles a minha rede, e os farei cair como uma ave do céu. (Os 7,12) E estenderei sobre ele a minha rede, e ele será tomado na minha nassa, e levá-lo-ei a Babilônia, à terra dos caldeus; e ele não a verá, e lá morrerá. (Ez 12,13) Jó, na sua profunda e autêntica experiência religiosa, emprega imagem idêntica para exprimir a onipotência do Senhor: Sabei ao menos agora que foi Deus quem me afligiu e que estendeu suas redes em torno de mim. (Jó 19,6) Para os gregos o fio da vida simboliza o destino humano. Mostramos no Vol. I, p. 148-149 e p. 241-243, que nem o poderoso Aquiles e o solerte Ulisses escaparão dos fios que as terríveis Queres lhes teceram, quando suas mães lhes deram a luz. A iniciação labiríntica em grutas e cavernas nas diversas religiões sempre teve por alvo purificar e libertar o homem dos laços da existência. No mito da caverna platônica, os homens estão presos por cadeias que os impedem de se movimentar e até mesmo de voltar a cabeça (Rep., VII a, s.). É que a psykhé está “amarrada” ao sôma, ao corpo. Plotino, egípcio de língua grega (séc. III d.C.), o grande neoplatônico, em suas Enéadas, IV, 8,4, é muito claro a respeito dos liames que prendem a alma à matéria: “após sua queda, a alma foi capturada, ela está agrilhoada... Está, como se diz, num túmulo e numa caverna, mas voltando-se para a reflexão, ela se liberta de seus liames”. Ainda no Canto IV, 8,l, afirma o filósofo: “a marcha para a inteligência é, para a alma, a libertação de seus nós”. Já mostramos no Vol. I, p. 41, como Tito Lucrécio Caro, compreendendo bem a etimologia de religio, -onis, “religião”, possivelmente do verbo religare, “prender, atar”, se esforça, segundo confessa, por libertar seus contemporâneos dos nós das superstições... No Novo Testamento, Cristo, para se fazer compreender, usa a linguagem corrente e as imagens tradicionais. O atar e o desatar estão presentes. Quando quis dar a Pedro o poder supremo na Igreja, disse o Mestre: Et ego dico tibi quia tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam, et portae inferi non praeualebunt aduersus eam. Et tibi dabo claues regni caelorum. Et quodcumque ligaueris super terram, erit ligatum et in caelis, et quodcumque solueris super terram, erit solutum et in caelis. – E eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus e tudo o que ligares sobre a terra, será ligado também nos céus e tudo o que desatares sobre a terra, será desatado também nos céus (Mt 16,18-19). No domínio linguístico, as palavras que designam atar e desatar normalmente expressam também uma ideia mágica, um encantamento. O verbo grego καταδείν (katadeîn), “ligar solidamente”, exprime outrossim a ação de ligar por um sortilégio, através de um nó. Desse modo, seu derivado κατάδεσμος (katádesmos), “liame, ligação”, é também um laço mágico, que se faz com um nó. Em latim, fascinus ou fascinum, “quebranto, sortilégio, malefício”, é da mesma família etimológica que fascia, “faixa, atadura” e que fascis, “feixe, reunião de objetos atados” e é, por isso, que os lictores, litores, palavra que os latinos jamais desvincularam de ligare, “ligar”, acompanhavam os magistrados, tendo ao ombro fasces, isto é, feixes de varas fortemente atadas, com uma machadinha no meio, não apenas para simbolizar o poder que tinham esses magistrados de condenar à morte, mas ainda para “protegê-los”. A proteção, evidentemente, tinha um caráter mágico e não efetivo. É claro, além do mais, que o nosso fascínio, mau-olhado, quebranto, sortilégio, formado no português à base do verbo fascinar, de fascinare, “encantar, enfeitiçar”, pertence à mesma linhagem do sortilégio dos nós... É digna de nota, por fim, a palavra yoga, ioga, “freio, laço, jugo”, cuja etimologia é a mesma que a do grego ζυγόν (dzygón) e do latim iugum, pois os três remontam ao indo-europeu yeug-yug, “unir, prender”, uma vez que a finalidade última da ioga é o disciplinamento das kleças, quer dizer, das forças instintivas, caóticas e destruidoras da alma que impedem a dhyâna, a saber, a concentração. Eis, em linhas gerais, a força extraordinária de Hefesto e de todos os deuses e xamãs que têm o poder de atar e desatar. Como símbolo, Hefesto parece traduzir uma personagem descompensada. Coxo, deformado, desprezado pelo pai e pela mãe, desposou Afrodite, a mais bela das deusas, que o traiu com Ares e vários outros deuses e até com mortais. Uniu-se a Cáris, a mais linda das Graças e amou Aglaia, a mais jovem das Cárites. Mestre consumado nas artes do fogo, governou soberano o mundo das forjas e dos ourives. Artista incomparável, modelou e fabricou as armas dos deuses e dos heróis. Para as deusas e as mais belas mulheres, o ourives do Olimpo confeccionou as mais lindas e preciosas joias: broches, braceletes, colares, fechaduras secretas, tripés rolantes, autômatos... Na comunidade divina dos imortais, Hefesto era o senhor e o mestre do elemento ígneo e dos metais. Combatia com chamas, com metais em fusão e com barras incandescentes. Deus da metalurgia, foi o rei dos vulcões, onde se localizavam suas forjas. Três mitos de épocas diversas caracterizam bem o papel atribuído ao maior dos artistas: abriu a cabeça de Zeus, a fim de que nascesse Atená; por ordem do pai dos deuses e dos homens encadeou Prometeu e, por fim, modelou Pandora do limo da terra. Estes traços talvez permitam demarcar alguns contornos e aspectos no simbolismo do mitologema do filho de Hera. Consoante Chevalier e Gheerbrant16, Hefesto, porque era deformado e coxo, revela uma dupla fraqueza espiritual. A perfeição técnica de suas obras lhe basta, deixando-o indiferente o valor e a utilização moral das mesmas: acorrenta Prometeu, ridiculariza Ares e Afrodite e prende a própria mãe num trono de ouro. De outro lado, suas obras inimitáveis não refletem apenas o belo, mas são impregnadas de um tal poder mágico, que com elas ele domina inteiramente a quem as possui ou usa. Nesse sentido, o artífice abusa de seu poder, para impor sua vontade. Foi exatamente com a magia de sua arte incomparável e perigosa que o deus coxo e deformado foi capaz de dominar as mais belas mortais e imortais. Na realidade, todo o esforço, toda a habilidade e ânsia de perfeição de Hefesto visaram à busca de uma compensação. Se sua mutilação lhe outorgou a capacidade incomparável de sua genialidade artística e o privilégio de atar e desatar, o deus soube se vingar dessa deformidade física com o êxito de sua arte e com suas conquistas amorosas. Se lhe foi possível, na planície de Troia, assegurar a vitória do fogo sobre a água, o grande artista foi, no entanto, incapaz de garantir a harmonia dos elementos. Trata-se, na feliz expressão dos supracitados Chevalier e Gheerbrant, de um “demiurgo amoral transformado num apóstolo inspirado”. Dissemos linhas acima que o grande malogro amoroso de Hefesto foi exatamente com a deusa do amor e que o coxo divino viveu sempre perseguindo uma compensação. Tal fato poderia talvez ser interpretado como a busca de uma complementariedade. O coxo e deformado tenta completar-se na beleza de Afrodite e esta, vazia por dentro, procura a genialidade do artista. Cada um busca no outro aquilo que lhe falta, o que, em matéria de casamento, pode ser um índice de fracasso. 1. FRISK, Hjalmar. Op. cit., verbete. 2. Ἁπατούρια (Apatúria), neutro plural, talvez signifique “do mesmo pai”. As Apatúrias eram uma festa ateniense celebrada anualmente, no mês de outubro, durante três dias. Nos dois primeiros faziam-se sacrifícios e banquetes e no terceiro, os pais de família apresentavam aos membros de sua phratría (fratria) seus filhos legítimos, nascidos durante o ano, para que fossem regularmente inscritos na mesma. Compreende-se por fratria uma agremiação de cidadãos ligados por sacrifícios e repastos religiosos comuns. Tratava-se de uma divisão política em Atenas. Após Sólon, havia três fratrias numa tribo e trinta famílias numa fratria. A etimologia de Apatúria, “do mesmo pai”, talvez se justifique porque após esse “registro religioso e civil” é que a criança passava política e religiosamente a ter um genitor, isto é, “tais e tais crianças eram filhos de um mesmo pai”. 3. Ἁρρηφόροι (Arrephóroi), Arréforas, eram duas ou quatro meninas atenienses, de sete a onze anos, escolhidas pelo Arconte-Rei entre as famílias nobres, para conduzirem procissionalmente a indumentária e os objetos sagrados de Atená. 4. Ascálafo era filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte. Estava presente no Jardim do Hades, quando, coagida por Plutão, Perséfone comeu um grão de romã, cortando-lhe toda e qualquer esperança de retorno ao mundo da luz. Como Ascálafo presenciara a quebra de jejum por parte de Perséfone, denunciou-a. Em sua cólera, Deméter o transformou em coruja. Ver o mito de Deméter e Perséfone, Vol. I, p. 300-329. 5. Épafo, filho de Io e de Zeus, tinha uma filha, Líbia (que deu seu nome à região vizinha do Egito), que, unida a Posídon, foi mãe dos gêmeos Agenor e Belo. Este reinou no Egito, e Agenor em Tiro ou Sídon. Tendo-se casado com Telefassa, Agenor teve uma filha, Europa, e três filhos, cujos nomes variam muito, de Eurípides, passando por Heródoto e Pausânias, até Diodoro Sículo. A lista, possivelmente mais canônica, aponta Fênix, Cílix e Cadmo, o ancestral de Édipo. 6. O Natalis Domini, o Natal de Cristo, foi colocado no dia 25 de dezembro exatamente para substituir e vencer (e o venceu para sempre) o “renascimento” do invencível Mitra. Na realidade, Cristo, personagem histórica, nasceu antes da morte de Herodes, o Grande (Mt 2,1; Lc 1,5) que faleceu no ano 4 a.C., donde concluem os exegetas que o Senhor nasceu entre os anos 7-6 antes da era cristã. O mês e o dia hão de se saber na eternidade... 7. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 98s. 8. DUMÉZIL, Georges. Op.cit., p. 21s., 27s 9. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 120ss. 10. Iugum, “o jugo”, do verbo iungere, “atrelar, unir”, era formado por três lanças: duas fincadas na terra em posição vertical, encimadas por uma terceira em sentido horizontal. Sob o jugo, que simboliza a sujeição ou a escravidão, passavam os vencidos. 11. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 147ss. 12. LAGENEST, J.P. Barruel de. Op. cit., p. 15. 13. VANDEN BORN, A. et al. Dicionário Enciclopédico da Bíblia.Petrópolis: Vozes, 1971, verbete. 14. VANDEN BORN, A. et al. Dicionário Enciclopédico da Bíblia.Petrópolis: Vozes, 1971, verbete. 15. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 25ss. 16. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 496. CAPÍTULO II O mito de Leto: nascimento de Ártemis e Apolo 1 Neste capítulo se fará apenas um estudo do mito de Ártemis, de sua conjugação com a deusa Lua e das consequências daí oriundas. Da união de Zeus com Leto nasceram os gêmeos Ártemis e Apolo. Foi uma gravidez penosa e um parto muito difícil. LETO, em grego Λητώ (Letó), não possui ainda etimologia segura. Como uma variante do mito da deusa atesta que a mesma não conseguiria dar à luz os filhos onde brilhasse o Sol, tem-se aventado a hipótese de que a forma dórica Λατώ (Lató) seria um desdobramento de Λήδα (Léda), personificando como esta a noite, que teria dado nascimento a dois deuses associados com a Lua (Ártemis) e com o Sol (Apolo). Em favor deste étimo tem-se o testemunho de Hesíodo, que apresenta Leto envolta em véus sombrios, indumentária característica de uma deusa da noite. Além do mais, a mãe de Ártemis e Apolo é filha de Febe, a “Lua” e de Ceos, que talvez signifique Céu luminoso, ou seja, o próprio Sol. Tais hipóteses têm sido abandonadas em favor de uma outra: sendo Leto provavelmente uma Grande Mãe da Lícia, seu nome proviria de lada, que em lício significa “esposa, mãe”. Conta-se que, grávida de Zeus, e sentindo estar próxima a hora do nascimento dos filhos, Leto percorreu o mundo inteiro em busca de um local onde eles pudessem vir à luz. Hera, porém, enciumada com este novo amor de Zeus, proibiu a Terra de acolher a parturiente. Temendo a cólera da rainha dos deuses, nenhuma região ousou recebê-la. Foi então que a estéril e flutuante ilha de Ortígia, por não estar fixada em parte alguma, não pertencia à Terra e, portanto, não tendo o que temer da parte de Hera, abrigou a amante de Zeus. Agradecido e comovido, Apolo mais tarde a fixou no Centro do mundo grego, mudando-lhe o nome para Delos, a Luminosa, a Brilhante. Foi em Delos que, abraçada a uma palmeira, Leto, contorcendo-se em dores, esperou nove dias e nove noites pelo nascimento dos gêmeos. É que Hera, mordida de ciúmes, retivera no Olimpo a Ilítia, a deusa dos partos. Esta, tendo cruzado a perna esquerda sobre a direita, fechara o caminho da parturiente. Todas as demais deusas, tendo à frente Atená, puseram-se ao lado de Leto, mas nada podiam fazer, sem o consentimento da esposa de Zeus e a presença de Ilítia. Assim, decidiram enviar Íris, mensageira sobretudo das deusas, ao Olimpo com um presente “irrecusável” para Hera, outros dizem que para Ilítia: um colar de fios de ouro entrelaçados e de âmbar com mais de três metros de comprimento. “Comovida”, a rainha dos deuses consentiu que Ilítia descesse até a ilha de Delos. De joelhos, junto à palmeira, Leto deu à luz primeiro a Ártemis e depois, com a ajuda desta, a Apolo. Vendo os sofrimentos por que passara sua mãe, Ártemis jurou jamais casar-se. Narra-se também que, para escapar à ira da esposa de Zeus, Leto se transformara em Loba e refugiou-se no país dos Hiperbóreos, onde habitualmente residia, e lá teriam nascido os gêmeos. Tal fato explicaria um dos epítetos de Apolo, Licógenes, “nascido da Loba”. Hera, que ainda não perdoara à rival, lançou contra ela a monstruosa serpente Píton. Apertando nos braços os filhos, Leto fugiu para a Lícia, igualmente “terra dos lobos” e lá parou junto a um lago ou fonte, para lavar os recém-nascidos. Alguns camponeses, contudo, que lá estavam ocupados em arrancar uns caniços, não o permitiram e expulsaram-na brutalmente. A deusa, possuída de grande cólera, os transformou em rãs. Leto sempre foi muito querida pelos filhos, que jamais pouparam esforços em defendê-la e vingar-lhe as injúrias sofridas. Foi por ela que mataram os filhos de Níobe, que se vangloriou de ter uma prole muito mais numerosa que Leto, conforme se mostrou no Vol. I, p. 85. Mataram igualmente o gigante Títio, que tentara violentá-la1. E foi ainda para vingar a mãe, conforme se verá, que Apolo matou Píton. Alguns fatos do mito da amante de Zeus merecem um ligeiro esclarecimento. Vimos que Apolo fixou a ilha de Delos no Centro do mundo grego. O simbolismo do centro é muito rico. Vamos tentar sintetizá-lo. É pelo Centro, local sagrado, que o divino se manifesta, por hierofania, isto é, camuflado, disfarçado, metamorfoseado, ou por epifania, quer dizer, de forma direta. Esse Centro do mundo é, as mais das vezes, figurado por uma elevação: montanha, colina, pilar, pedra, árvore, omphalós (umbigo). Observe-se, porém, que se trata de um centro mítico e não geográfico; se ele é único no céu, é múltiplo na terra. Cada nação, cada cidade, cada povo, cada casa, cada família e até mesmo cada homem tem o seu centro do mundo, seu “ponto de vista”, seu ponto imantado, que é concebido como o ponto de junção entre o desejo coletivo ou individual do homem e o poder sobrenatural de satisfazer a esse desejo, quer se trate de um desejo de saber ou de um desejo de amar e agir. Lá onde se congregam esse desejo e esse poder, lá é o centro do mundo. Esta noção de centro está vinculada à ideia de canal de comunicação e é, por isso mesmo, que o centro é marcado por um pilar, uma árvore cósmica, uma pedra... Nas culturas que distinguem três níveis cósmicos, Céu, Terra, Inferno, o centro constitui o ponto de interseção desses três níveis. Assim sendo, só pelo centro se atinge o divino, porque se torna possível uma ruptura de nível e uma consequente comunicação entre as três regiões. O Templo de Jerusalém estava construído sobre o tehôm, isto é, sobre as águas primordiais do Caos, antes da criação. Em Roma, o mundus, por significar “o limpo, o puro”, era o grande centro através do qual era possível comunicar-se com as almas dos mortos no Inferno. Em geral, cidades e locais importantes nas culturas antigas estavam localizados no centro do mundo, demarcado, como já se assinalou, por uma pedra, pilar, montanha, árvore... Na Índia, o grande centro era o Monte Meru; entre os germanos, o Hemingbjör e o freixo gigantesco Yggdrasil, cuja copada tocava o Céu e cujas raízes desciam até os Infernos; na Palestina, o Tabor (que talvez signifique tabbur, isto é, “umbigo”); o monte Garizim é expressamente chamado “umbigo da terra”; o Gólgota, para os cristãos, é o verdadeiro centro do mundo: lá se focalizaria o Éden, onde Adão foi criado e pecou, e depois redimido pelo sangue de Cristo. E exatamente pelo fato de o território, a cidade, o templo, o palácio real se encontrarem no Centro do Mundo, a saber, no píncaro da Montanha Cósmica, que eram considerados como os pontos mais elevados do Cosmo e, por isso, não foram submergidos pelo dilúvio. “A terra de Israel não foi inundada pelo dilúvio”, reza um texto rabínico. E, segundo uma tradição islâmica, o local mais elevado da terra é a Ka’aba, porque “a estrela polar testemunha que a mesma se encontra voltada para o centro do Céu”. O cume da Montanha Cósmica não é apenas o local mais elevado do mundo, mas também se notabiliza sobretudo por ser o ὀμφαλὸς τῆς γῆς (omphalòs tês guês), “o umbigo da terra”, porque o muito santo criou o cosmo como se fora um embrião, e este cresce a partir do umbigo e depois se desenvolve e se espalha. Em determinadas estatuetas africanas a dimensão dada ao umbigo é bem mais importante que a atribuída ao membro viril, porque é do centro que provém a vida. Na Grécia o centro do mundo era marcado pelo omphalós de Delfos, como se verá no capítulo seguinte, ao se falar de Apolo. Mas, já que os deuses, em função das culpas e erros dos homens se retiraram mais e mais para alturas inacessíveis, o único meio de atingi-los é através do Centro, e o instrumento mágico que nos conduz até eles é a escada, símbolo da ascensão para se chegar ao divino. A escada, vista em sonhos por Jacó, tocava os céus e por ela desciam os Anjos: e viu em sonhos uma escada posta sobre a terra, e a sua parte mais alta tocava no céu: e viu também os anjos de Deus subindo e descendo por ela. E o Senhor firmado na escada, que lhe dizia: Eu sou o Senhor Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaac (Gn 28,12s). Diga-se, de passagem, que a subida pela escada até a residência do sagrado fazia parte, possivelmente, de um rito iniciático órfico. De qualquer forma essa ascensão era um dos componentes do rito mitraico. Nos mistérios de Mitra, a escada possuía sete degraus, cada qual confeccionado com metal diferente. O primeiro era de chumbo e correspondia “ao céu” do planeta Saturno; o segundo, de estanho, correspondia a Vênus; o terceiro, de bronze, era de Júpiter; o quarto, de ferro, consagrado a Mercúrio; o quinto, de uma liga de metais, correspondia “ao céu” de Marte; o sexto, de prata, consagrado à Lua e o sétimo de ouro, era o do Sol. Subindo essa escada cerimonial, o iniciado percorria efetivamente os sete céus, elevando-se, desta forma, até o Empíreo sagrado. A escada é vista, assim, como o caminho para a realidade absoluta, representando um rompimento de nível ontológico. Nos textos funerários egípcios conservou-se a expressão asket pet, em que asket, “marcha”, indica a escada de que dispõe Ra, uma escada real, que liga a Terra ao Céu. No Livro dos mortos, as expressões consagradas “Uma escada me foi instalada para ver os deuses” e “Os deuses lhe dão uma escada, para que, ser-vindo-se dela, ele suba ao Céu”, patenteiam o simbolismo da escada como ponte entre a terra e o céu; uma figura plástica que marca a ruptura de nível e torna possível a passagem de um modo de ser a outro. Além do simbolismo do Centro, há dois outros, no mito do nascimento de Apolo e Ártemis que merecem atenção. Trata-se da atitude de Ilítia em não permitir que Leto desse à luz os gêmeos e dopresenteque dobrou a obstinação de Hera. A postura de Ilítia, cruzando a perna esquerda sobre a direita e impedindo, destarte, o parto de Leto, nos encaminha diretamente à crença tão difundida em todas as culturas do poder do mana. Mana é uma palavra melanésia e corresponde mais ou menos ao que os gregos denominavam ἐνέργεια (enérgueia), uma “força em ação”. Pode-se conceituar mana como uma energia, uma força impessoal cósmica circulante e suscetível de ser captada e utilizada pelo homem. Deve-se levar em conta, no entanto, que desse poder oculto (é este o significado etimológico do vocábulo) dispõem cada indivíduo e cada objeto. Um ser humano é tanto mais forte e um objeto é tanto mais energético quanto maior for sua carga demana.Monique Augras2, desejando mostrar que a finalidade básica do canibalismo é “absorver o mana do inimigo, com o objetivo de lhe assimilar as forças, os dotes e as virtudes guerreiras”, cita uma observação deveras interessante de Montaigne3 a respeito dos hábitos dos índios do Rio de Janeiro. Diz o autor dos Ensaios que esses indígenas “assavam e comiam em comum as carnes do inimigo, enviando pedaços do mesmo aos amigos ausentes”. E acrescenta Montaigne que não se tratava, “como se pensa, de alimentação”. Ou seja: tratavase de uma “função mágica e não alimentar do festim canibal”. Donde se conclui que, para esses selvagens, devorar os inimigos era apossarse de seu mana, de suas energias. Essa energia, porém, como agudamente observa Monique, não é apenas física, mas tem ainda um caráter essencialmente anímico. Desse modo, o mana se manifesta tanto sob forma física quanto sob forma anímica, “já que no sistema animista o mundo físico é parte e símbolo do mundo espiritual”. A arquitetura dos templos egípcios é um dos exemplos escolhidos por Monique para patentear o poder e o perigo que oferece o mana. Com efeito, esses templos obedecem a uma disposição arquitetônica tal, que o contato com o ícone do deus, a quem o templo estava consagrado, somente podia ser feito pelos sacerdotes: há primeiro um pátio ou galeria exterior para o povo; segue-se uma espécie de antessala para os dignitários e, por último, uma sequência de salas cada vez mais escuras até que se atinge o santuário, onde ficava a estátua esculpida do deus, encerrada num tabernáculo. O acesso ao santuário, ao santo dos santos, era privativo dos sacerdotes, porque somente eles estavam preparados para o contato direto com a divindade. Quando Medeia, enloquecida pelo cinismo, ingratidão e infidelidade de Jasão, quis destruir sua rival Glauce ou Creúsa, filha do rei de Corinto, Creonte, enviou-lhe como “presente de núpcias” um manto; outras versões dizem ter sido um véu e uma coroa, impregnados de um “mana tão venenoso”, que bastou Creúsa colocálos sobre o corpo para transformar-se numa tocha humana. No Antigo Testamento há o relato de um episódio que mostra com muita clareza a força e o perigo do mana de determinados objetos, quando consagrados a uma divindade. Por ocasião da transladação da Arca da Aliança, da casa de Abinadab para Jerusalém, os bois, que a conduziam sobre um carro novo, escoiceavam e a fizeram pender. Com receio de que o precioso fardo caísse, Oza, que, era guarda da Arca, tocou-a e a susteve. Por este gesto imprudente, o Senhor o feriu e Oza caiu morto. Eis o texto: Mas, logo que chegaram à eira de Nacon, lançou Oza a mão à arca de Deus e a susteve, porque os bois escoicearam e a tinham feito pender. E o Senhor se indignou grandemente contra Oza e o feriu pela sua temeridade e caiu morto ali mesmo, junto à arca de Deus. (2Sm 6,6-7) Se todos os objetos do mundo físico possuem, em grau maior ou menor, sua parcela de mana, certas pessoas privilegiadas e sobretudo algumas divindades o detêm em grau superlativo. Conhecedores da força de seu mana, os deuses apareciam aos homens em sonhos ou mais normalmente em forma hierofânica, disfarçando-se de todas as maneiras. Sêmele, a mãe de Dioniso, caiu fulminada e pereceu carbonizada, porque fez que seu amante, Zeus, preso por um juramento, se lhe apresentasse em forma epifânica, isto é, em toda sua majestade de deus dos raios e dos trovões. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas bastam os citados, para mostrar que, fechado o mana por Ilítia, o parto de Leto seria impossível... Para encerrar o mito de Leto e as dificuldades inerentes ao nascimento de Apolo e Ártemis, é preciso dizer uma palavra acerca do “presente” que as deusas enviaram a Hera, com o fito de dobrarlhe não a ira, porque a perseguição a Leto iria continuar, mas a resistência em liberar Ilítia ou, mais precisamente, o mana, para que o parto fosse possível. Foi enviado à rainha dos deuses, detentora de um mana poderoso, um colar de fios de ouro entrelaçados e de âmbar... A deusa, tendo aceito e colocado o colar em seu divino pescoço, ligou-se a Leto e liberou todas as energias represadas: Ilítia descruzou as pernas e liberou o parto. Diógenes Laércio (séc. II-III d.C.) em sua obra Vidas e doutrinas dos filósofos, l,24, afirma, com base em Aristóteles e Hípias, que Tales de Mileto (séc. VII-VI a.C.) “atribuiu alma até aos objetos inanimados, servindo-se da pedra de Magnésia (pedra magnética) e do âmbar como indícios desse fato”. Tales de Mileto teria, pois, descoberto, já no século VII a.C., as propriedades de atração do âmbar. Diga-se logo que o âmbar amarelo em grego se diz ἤλεκτρον (élektron), donde eletricidade. Desse modo, os terços e os amuletos de âmbar eram considerados como excepcionais condensadores de corrente. Pelo fato de se autocarregarem, descarregam de seus próprios excessos aqueles que os usam ou fazem passar suas contas por entre os dedos. O âmbar simboliza, destarte, o fio psíquico que religa a energia individual à energia cósmica, a alma individual à psiqué universal. Os heróis e os santos têm, não raro, uma fisionomia de âmbar como símbolo de um reflexo do céu em seu rosto e sua força de atração. Quando de seu exílio, embora temporário no país dos Hiperbóreos, como punição por ter eliminado os Ciclopes, Apolo, conta-se, derramou lágrimas de âmbar, ao sair do Olimpo. Essas lágrimas simbolizavam sua nostalgia do Paraíso e o laço sutil que o prendia à mansão dos deuses. O Pseudo-Dionísio Areopagita explica que o âmbar participa das essências celestes, porque, concentrando em si o ouro e a prata, simboliza simultaneamente a pureza incorruptível, inesgotável, imperecível e intangível do ouro, e o esplendor luminoso, brilhante e celestial da prata. Consoante a crença popular, o uso constante pelo homem de um objeto de âmbar mantém-lhe indefectível a virilidade. 2 Passemos, agora, aos mitos de Ártemis e de seu desdobramento em Selene e Hécate. ÁRTEMIS, em grego Ἄρτεμις (Ártemis), de etimologia muito controvertida. Uns viram-na como uma “deusa-ursa” e, nesse caso, seu nome proviria do ilírio artos, urso, em grego ἄρκτος (árktos). Outros consideram-na como procedente do grego ἄρταμος (ártamos), “a sanguinária”, por causa de suas flechas certeiras. Tais hipóteses são indubitavelmente de cunho popular. Pierre Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, p. 116117, julga que se trata de um teônimo de procedência ilíria ou lídia, que talvez provenha ou tenha dado origem a ἀρτεμή (artemés), “são e salvo”, dada a proteção oferecida pela deusa a seus adeptos. Neste caso, Ártemis significa “a protetora?” Ártemis, tendo nascido antes do irmão e ajudado a mãe nos trabalhos de parto, ficou tão horrorizada com o que sofreu Leto, que pediu ao pai o privilégio de permanecer para sempre virgem. É representada com vestes curtas, pregueadas, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. Como seu irmão, a quem está muitas vezes associada no mito e no culto, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e certeiras. Como Apolo, sua irmã gêmea aprecia muito o país dos Hiperbóreos, cujas virgens mensageiras, as quais fazem parte de seu séquito, ela conduz até Delos. Ao lado do irmão participou do massacre dos filhos de Níobe e o assistiu na luta e extermínio da serpente Píton, na morte de Títio e da ninfa Corônis. Na Gigantomaquia, lutou bravamente como Apolo, ao lado de Zeus, e matou, com auxílio de Héracles, o gigante Grátion; no cerco de Ílion, combateu em companhia do irmão pelos troianos. Arqueira como o arqueiro Apolo, a “Sagitária de arco de ouro” usa das mesmas armas que ele para competir ou castigar, mas “leoa para com as mulheres” (Il., XXI, 483), causa-lhes mortes súbitas, sem dores e, não raro, rouba-lhes a vida no momento do parto. Mas nem sempre a jovem arqueira conta em suas vinganças com o auxílio de Apolo. Foi sozinha que puniu a negligência de Eneu de Cálidon e a impiedade de Agamêmnon, exigindo-lhe o sacrifício de sua primogênita Ifigênia, episódio já por nós comentado no Vol. I, p. 9192. Quanto à negligência de Eneu de Cálidon, a vingança da deusa foi terrível. Este rei, pai de Meléagro, Tireu e Dejanira, era casado com Alteia. Relata o mito que, após a boa colheita do ano, Eneu ofereceu um sacrifício a todos os deuses, mas se esqueceu inteiramente de Ártemis. Sentindo-se ultrajada, a deusa enviou contra a região um javali de grande porte e ferocíssimo, que devastou todo o reino. Para liquidá-lo, Meléagro, jovem e destemido príncipe, convocou os melhores caçadores da Etólia, região onde ficava Cálidon, conseguindo matar o monstro. Ártemis, todavia, suscitou uma grave querela entre os caçadores etólios e os Curetes, que haviam também participado da caçada, a respeito da posse da pele e da cabeça do javali. Enquanto o príncipe lutou ao lado dos etólios, a vitória lhes sorriu, mas tendo havido uma séria dissensão entre Meléagro e seus tios, irmãos de Alteia, pela posse dos mesmos preciosos despojos, o jovem caçador assassinou os tios. Alteia, inconformada com o fato, com as mais violentas imprecações invocou contra o filho as divindades infernais. Este, então, se retirou do combate e Cálidon foi sitiada e queimada. Atendendo às súplicas dos sacerdotes, dos pais, irmãs e dos amigos mais chegados, o herói pegou em armas outra vez e rapidamente levou os seus à vitória, mas pereceu em combate. O mito do herói de Cálidon, no entanto, se enriqueceu mais tarde com vários incidentes dramáticos, em que a guerra contra os Curetes perdeu quase toda a importância, avultando na imaginação do povo a caça ao javali. Uma dentre as muitas variantes conta que, tão logo nasceu Meléagro, as Moiras predisseram a Alteia que a sorte do menino estava vinculada a um tição, que ardia na lareira. Se este se consumisse inteiramente, a criança morreria. A mãe aflita, de imediato, retirou de entre as brasas o tição já meio consumido, apagou-o e o escondeu num cofre. Após a caçada vitoriosa ao javali de Cálidon, e quando Meléagro matou os tios, que se opunham obstinadamente à sua vontade de ofertar a pele do animal a Atalante, sua namorada e protegida de Ártemis, a mãe indignada, num gesto impensado, atirou ao fogo o tição ciosamente guardado e Meléagro morreu. Antes de voltarmos à feroz Ártemis, uma palavra sobre o javali e seus preciosos despojos, que, afinal, vão custar a vida do extraordinário caçador de Cálidon. O simbolismo do javali é de origem antiquíssima e cobre quase todo o mundo indo-europeu, chegando até mesmo a ultrapassá-lo. O mito do javali faz parte da tradição hiperbórea, onde o animal figura como símbolo da autoridade espiritual. É bem possível que tal fato se relacione com o retiro solitário do druida na floresta ou do brâmane ou ainda com o hábito do javali de desenterrar a túbera que os antigos acreditavam ser um misterioso produto do raio e de se alimentar das glandes do carvalho, árvore sagrada. Ao javali opõe-se o urso, emblema do poder temporal. Na Gália e na Grécia, a caça ao javali configura o poder espiritual encurralado pelo temporal ou mais precisamente trata-se de um simbolismo de ordem cíclica, pela substituição de um reino por outro, de um kalpa por outro. O caráter hiperbóreo do animal confere-lhe, ipso facto, um cunho primordial. É assim que ele é o avatar sob que Vishnu reconduziu a terra até a superfície das águas e a organizou. O javali é o próprio Vishnu mergulhando nas entranhas da terra, para atingir a base da “coluna de fogo”, que não é outra coisa senão o linga de Çiva, enquanto hamsa-Brahma busca o topo da coluna no céu. A terra surge, desse modo, como atributo de Vishnu, e, sobre seus braços ou sob sua proteção, ela aparece como a terra santa primitiva. No que toca aos despojos, a luta contra os Curetes e, depois, internamente, a querela entre Meléagro e seus tios giraram em torno da posse do couro e da cabeça do javali. O couro de determinados animais, já se sabe, tem um extraordinário poder de proteção, mercê do mana que possui. Essa energia é transmitida a quem se cobre com a pele mágica, tornando o portador, não raro, invulnerável. O couro da cabra Amalteia, segundo se viu, cobria o escudo de Zeus. Héracles, cobrindo-se com o couro do Leão de Nemeia, fez de seu corpo uma muralha infrangível. Quanto à disputa pela cabeça do javali, a coisa é ainda mais séria, sobretudo levando-se em conta que este é o símbolo do poder espiritual, mas a respeito do crânio e de sua rica simbologia há de se falar no mito de Orfeu. Tão rebelde quanto Héstia e Atená às leis de Afrodite, Ártemis sempre foi a virgem indomável, que punia à altura os atentados à sua pessoa, como fez com Oríon, segundo se mostrou no Vol. I, p. 284, e com Oto, um dos Alóadas. O imprudente caçador Actéon foi outra de suas vítimas. Viu-a o jovem caçador numa noite de estio, nas encostas do monte Citerão e, tendo-a seguido, surpreendeu-a banhando-se nas águas frescas de uma fonte. A deusa atirou-lhe um punhado de água no rosto e Actéon foi metamorfoseado em veado e despedaçado pelos próprios cães, que não o reconheceram. Castigou com a morte a ninfa Calisto, que não guardava a virgindade, segundo prometera, conforme está no Vol. I, p. 297. Ao contrário, como se há de ver no mito de Teseu, premiou com sua amizade a pureza de Hipólito e de Britomártis-Dictina, que é, aliás, mera hipóstase de uma antiga Ártemis cretense. Sempre distante da vida e das coisas da cidade, Ártemis foi definida como uma “divindade do exterior”, que vive a natureza, percorrendo campos e florestas, no meio dos animais que neles habitam. Era tida como protetora das Amazonas, também guerreiras e caçadoras, e independentes do jugo do homem. Era a única dentre os deuses, exceto Dioniso, que sempre foi acompanhada por um cortejo alvoroçado e buliçoso. Com este séquito de ninfas, às quais ela ultrapassa de muito em altura e beleza, percorre bosques e florestas, excitando os cães em busca da presa. A Ilíada denomina-a πότνια θηρῶν (pótnia therôn), “senhora das feras”, o que lhe atesta o caráter de uma Grande Mãe asiática e sublinha sua afinidade com a natureza e com o mundo animal. Afinidade, aliás, de um duplo aspecto: de um lado, como se mostrou, a Caçadora e, de outro, a Ἐλαφηβόλος (Elaphebólos), a que massacra veados e corças, daí seu epíteto de Elafieia em Élis e Olímpia, bem como o grande festival das Elafebólias (caça ao veado), que se celebrava em Atenas no mês Elafebólion (março). Embora a corça seja o seu animal predileto e sempre a acompanhe, porque a deusa lhe protege o crescimento e depois as crias, bem como as dos outros animais (Xen., Cyn., 6,13), isto não impedia que, no culto, os animais, indistintamente, lhe fossem sacrificados. Basta lembrar que, após a vitória de Maratona sobre os persas, em 490 a.C., lhe foram sacrificadas quinhentas cabras, como atesta o mesmo Xenofonte (An., 3,2,12). É que a Sagitária era, além de caçadora, uma guerreira ardente e ousada. Em Hiâmpolis, na Fócida, e em Patras, se lhe sacrificavam animais vivos, selvagens e domésticos, que eram lançados sobre um braseiro. Semelhante crueldade trai o “caráter oriental” de uma Grande Mãe, bem como sua inconteste ligação com o rito do diasparagmós (o despedaçamento da vítima viva ou ainda palpitante) e da omophaguía (a consumação imediata da carne crua e do sangue do animal). Acrescente-se que, sob um simbolismo alusivo, eram meninas de cinco a sete anos, chamadasursinhas, que cercavam e serviam a Ártemis no Santuário de Bráuron, na Ática. Lembremo-nos de que a ninfa Calisto, antes de ser morta pela deusa, foi metamorfoseada em ursa; Actéon o foi em veado, e logo devorado pelos próprios cães; Ifigênia foi exigida como vítima e transformada em corça. Em Esparta, junto ao altar de Ártemis Órtia, efebos passavam pela prova de “resistência”, a desumana διαμαστίγωσις (diamastígosis), isto é, literalmente, “flagelação prolongada”, em que, não raro, morriam, em holocausto a Ártemis... Consoante uma variante do mito de Ifigênia, que Eurípides retrata em duas de suas tragédias (Ifigênia em Áulis e Ifigênia em Táuris), a desditosa filha de Agamêmnon, no momento de ser imolada em Áulis, foi substituída por uma corça e transportada para Táuris, na Crimeia, onde se tornou sacerdotisa da deusa, com a função de sacrificar todos os estrangeiros que naufragassem junto à costa. Do que se acabou de expor, pode-se concluir que houve, na realidade, duas Ártemis: uma asiática, cruel, bárbara, sanguinária, bem dentro dos padrões da mentalidade religiosa de uma Grande Mãe oriental; outra europeia, cretense, ocidental, voltada, como se há de ver em seguida, para a fertilidade do solo e da fecundidade humana, o que denuncia uma Grande Mãe cretomicênica, quer dizer, minoica e helênica, por efeito de sincretismo. A Ártemis ocidental estava, pois, estreitamente vinculada ao mundo vegetal e à fertilidade da terra. Se a deusa lançou contra o reino de Eneu um javali monstruoso e devastador, foi exatamente porque o rei se esqueceu de dedicar-lhe uma oferenda das primícias do ano, de que ela era também responsável, como deusa da vegetação. O piedoso Xenofonte, durante seu exílio em Ciunte, perto de Olímpia, instituiu-lhe um culto tipicamente rural, como ele próprio nos informa em sua Anábase, 5,3,7s. Foi, aliás, sobretudo no Peloponeso que Ártemis aparece com todas as suas antigas características de deusa da vegetação. Na Arcádia, denominava-se “Senhora da árvore” e, com a designação de Kedreâtis, a “senhora do cedro”. Nos confins da Lacônia e da Arcádia, em Kárias, a Καρυᾶτις (Karyâtis), a “senhora da nogueira”, era celebrada com danças muito animadas pelas Cariátides4. O ato bárbaro de flagelação, por que passavam os efebos, em Esparta, junto ao altar de Ártemis Órtia, como se mostrou, é interpretado por alguns não apenas como símbolo de antigos sacrifícios, mas ainda como um rito purificador e de incorporação nos efebos da substância sagrada da árvore. Num dos concursos das festas de Ártemis Órtia, o prêmio conferido ao vencedor era uma foice de bronze, o que mostra ser ela uma deusa da fertilidade e das colheitas. Protetora dos mananciais e dos córregos, denominava-se Potâmia. Sua influência estendia-se igualmente sobre o mar: protegia particularmente os pescadores e suas redes, com o nome de Dictina, isto é, a “Caçadora com redes”. No mês de abril, por ocasião da Lua Cheia, que, segundo Plutarco (Mor., 350a), ajudara os atenienses na Batalha de Salamina (480 a.C.), celebrava-se no Pireu a festa de Ártemis Muníquia. O caráter virginal da deusa não a impedia de valer também sobre a fecundidade feminina. Deusa dos partos, eram-lhe consagradas, em Bráuron, as vestes das que faleciam ao dar à luz. Com o título de παιδοτρόφος (paidotróphos), “a que alimenta, a que educa a criança”, acompanhava particularmente as meninas em sua fase de crescimento. As noivas, à véspera de seu casamento, ofereciam-lhe uma mecha de cabelo e uma peça do enxoval, para implorar-lhe proteção e fertilidade. Por estar ligada ao matrimônio, Ártemis é, por isso mesmo, uma portadora das tochas, atributo duplamente seu, porque a deusa será identificada com Hécate, com o epíteto de phosphóros, “a que transporta a luz”, tornando-se como aquela uma divindade infernal. Com o título de selasphóros, “que leva a luz”, será igualmente identificada com Σελήνη (Seléne), a Lua, a Φοιβη (Phoíbe), Febe, “a brilhante”, como seu irmão Apolo é Φοῖβος (Phoîbos), Febo, “o brilhante”. Ártemis era cultuada em todo o mundo grego, de Atenas a Éfeso. Na Grécia, a deusa da natureza, a senhora dos animais era venerada não só nas cidades, mas também e sobretudo nas regiões selvagens e montanhosas, na Arcádia, em Esparta, na Lacônia, nas montanhas do Taígeto e na Élida. O mais célebre e grandioso de seus santuários era o de Éfeso, onde o culto de Ártemis-Diana se confundia com o de uma antiga deusa asiática da fecundidade. Seus animais prediletos eram a corça, o javali, o urso e o cão e, entre as plantas preferidas, estavam o loureiro, o mirto, o cedro e a oliveira. Grande Mãe, de caráter mais feroz e cruel na Ásia; Grande Mãe, de feição bem mais humana e protetora na civilização minoica, a Ártemis grega resulta, e já se mencionou o fato, de um sincretismo creto-oriental. Calímaco de Cirene (fins do séc. IV a.C.), gramático, historiador e poeta, em seu Hino a Ártemis, 174, congratula-se com a deusa pelo fato de a mesma, pisando solo grego, ter deixado para trás seus hábitos bárbaros e cruéis, o que não parece ser de todo verídico: a prática do templo de Halas Arafênides, vizinho do Santuário de Bráuron, na Ática, onde se picava até o sangue o pescoço de um escravo, talvez seja índice de assassinatos rituais nos mais antigos cultos de Ártemis na Hélade. 3 Ártemis estava estreitamente ligada a Hécate e a Selene, personificação antiga da Lua, cujo culto a filha de Leto suplantou inteiramente, tanto quanto Apolo fez esquecer a Hélio, a personificação do Sol. Pois bem, desde muito cedo, Ártemis foi identificada com a Lua e, dado o caráter ambivalente de nosso satélite, mercê de suas fases, segundo se verá mais abaixo, a LuaÁrtemis surge na mitologia com um tríplice desdobramento, o que se poderia denominar a dea triformis, deusa triforme. De início, ao menos na Grécia, a Lua era representada por Σελήνη (Seléne)5, “Lua”. Mas, dada a índole pouco determinada de Selene e as fases diversas da lua, foi a deusa-Lua desdobrada em Selene, que corresponderia mais ou menos à Lua Cheia; Ártemis, ao Quarto Crescente; e Hécate6, ao Quarto Minguante e à Lua Nova, ou seja, àLua Negra.Cada uma age de acordo com as circunstâncias, favorável ou desfavoravelmente. Assim, a Lua, por seu próprio cunho cambiante, é dispensadora, à noite, de fertilidade e de energia vital, mas, ao mesmo tempo, é senhora de poderes terríveis e destruidores. Percorrendo várias fases, manifesta as qualidades próprias de cada uma delas. No Quarto Crescente e Lua Cheia é normalmente boa, dadivosa e propícia; no Quarto Minguante e Lua Nova é cruel, destruidora e malévola. Plutarco nos lembra que a Lua “no Quarto Crescente é cheia de boas intenções, mas no Minguante traz a doença e a morte”. Dada a extensão do assunto, vamos sintetizá-lo, abordando primeiramente a Lua, seus poderes e efeitos, em geral, e depois focalizaremos brevemente a Lua Negra, Hécate. Os raios da Lua, a qual sempre se identificou com a mulher, via de regra foram tidos como elementos grandemente fertilizantes e fecundantes. Em muitas culturas primitivas, o papel do homem, por isso mesmo, era secundário: quem trabalhava o campo era a mulher, mercê da proteção da Lua sobre ela e as sementes. O homem apenas arroteava, preparava o terreno: plantar, cultivar e colher eram tarefas femininas. Nós sabemos que o gérmen da vida se encontra na semente e que o papel do sol é tão somente fazê-la desenvolver-se. Para os primitivos, todavia, as coisas eram bem diferentes: a semente não passava de massa inerte, absolutamente desprovida do poder de germinar. Esse poder lhe era con- ferido por uma potência fertilizante, isto é, por uma divindade da fecundação, que era sempre a Lua, como descreve Briffault em sua obra monumental sobre o mito de Selene7. Somente as mulheres podiam fazer prosperar as colheitas, porque somente elas estavam sob a proteção direta da Lua, que lhes delegava a faculdade de fazer crescer e amadurecer. Os povos primitivos acreditavam que as mulheres eram dotadas de uma natureza semelhante à da Lua, não apenas porque elas “incham” como esta, mas porque têm um ciclo mensal com a mesma duração que o do astro noturno. O fato de que o ciclo mensal feminino depende da Lua era para os antigos prova evidente de sua semelhança com o corpo celeste. A palavra menstruação e a palavra lua são semelhantes ou, por vezes, estreitamente aparentadas em várias línguas. Em grego, só para citar uma delas, μήν, μηνός (mén, menós) é mês e ἔμμηνον (émmenon) é “o que volta todos os meses”, cujo plural ἔμμηνα (émmena) significa particularmente menstruação, ao passo que μήνη (méne) e μηνάς (menás) designam a Lua, como astro e como divindade. Ao que ficou dito poder-se-ia acrescentar o grego καταμήνια (kataménia), que, em Hipócrates e Aristóteles, tem o mesmo sentido que possui catamênio em português, isto é, mênstruo. Diga-se, de passagem, que em nossa linguagem popular mênstruo se diz também lua. Os camponeses alemães chamam simplesmente o período menstrual de der Mond, “a lua”, e, em francês, é comum denominá-lo le moment de la lune, “o período da lua”. O sol, fonte constante de calor e luz, brilha enquanto dura o trabalho: é o macho, o homem; a lua, inconstante e mutável, é fonte de umidade e brilha à noite; sua luz é doce e terna; é a fêmea, a mulher. O sol, princípio masculino, reina sobre o dia, a luz; a lua, princípio feminino, reina sobre a noite, as trevas. O sol é lógos, a razão; a lua é éros, o amor. E só o amor faz germinar! Não foi em vão que Deus criou duas luzes: a mais forte, para preponderar durante o dia, a mais frágil e terna, para governar a noite: Fez Deus, pois, dois grandes luzeiros, um maior, que presidisse ao dia, outro menor, que presidisse à noite. (Gn 1,16) E mais uma vez ouçamos Plutarco: “A lua, por sua luz úmida e geradora, é favorável à propagação dos animais e das plantas”. No Antigo Testamento, as lúnulas (pequenas luas) faziam parte dos enfeites femininos (Is 3,18) ou eram penduradas no pescoço dos animais (Jz 8,21): em ambos os casos configuravam a fertilidade. A lua, aliás, sempre teve um poder especial de umedecer, por isso era chamada a dispensadora da água. Tal epíteto honroso não lhe cabe apenas porque ela exerce controle sobre as chuvas, mas ainda porque o nosso satélite “provoca” o orvalho. Este era símbolo da fertilidade e na alta Idade Média prescrevia-se um banho de orvalho como “magia amorosa”. A lua estava de tal modo ligada à mulher, e, portanto, à fertilidade, que, em muitas culturas primitivas, se acreditava piamente que o homem não desempenhava papel algum na reprodução. A função do homem era tão somente romper o hímen, para que os raios da lua pudessem penetrar, uma vez que ela era o único agente fertilizante. Os meninos gerados pela lua estavam, além do mais, destinados a ser reis ou a desempenhar uma função de grande relevância, como convém a um rebento divino. Ora, como os “raios da lua” tinham o poder de fecundar, a própria Lua, não raro, era considerada como um “homem”, o homem-lua, que, por vezes, se encarnava, sobre a terra, num rei muito poderoso. Partindo dessa crença os reis de certas linhagens ou dinastias foram considerados como encarnações desse homem-lua. Muitos desses reis e soberanos antigos tinham uma cabeleira ornamentada com chifres, emblema da luna comuta (lua cornuda), no quarto crescente, e, por uma transição natural, o rei portador de semelhante adorno tornava-se não somente a lua, mas também o touro, uma vez que os animais corníferos, como o touro e a vaca, estão entre aqueles associados à lua. Em determinadas cerimônias, por isso mesmo, reis celtas, egípcios e assírios usavam cornos, uma vez que seus súditos os tinham na conta de encarnações de uma divindade lunar. Mais tarde se passou a dizer que o rei não era a lua, mas um seu representante ou certamente um ilustre descendente. Gengis-Khan, o poderoso imperador mongol, em pleno século XIII de nossa era, fazia remontar seus ancestrais a um rei, cuja mãe havia sido fecundada por um raio da lua... Os raios da lua eram tão poderosos, que bastava a mulher se deitar sob os raios da mesma no quarto crescente para ficar grávida. A criança, no tempo devido, seria trazida pelo pássaro-lua. A nossa cegonha tem raízes milenares... Ao contrário, aquela que não desejava ser fecundada, era bastante não olhar para a lua e friccionar o ventre com saliva, poderoso elemento apotropaico, e certamente o primeiro anticoncepcional que o homem conheceu. A lua, que está sempre em mutação, assemelha-se ao que se passa na terra com os seres humanos. Desse modo, teve ela também direito a uma antropomorfização. Assim, no quarto crescente e no minguante, a lua se torna, por antropomorfismo, o homem-lua, uma espécie de herói que vive na lua e é a própria lua. Esse homem-lua inicia suas atividades no crescente, em luta contra o demônio das trevas, uma espécie de dragão, que devorou seu pai, a lua velha, isto é, a lua nova. O homem-lua vence o dragão na lua cheia e reina, triunfante, sobre a terra. Trata-se de um rei sábio e justo. Traz a paz e a ordem para as tribos e organiza a agricultura. Mas o reinado do herói dura pouco: o velho inimigo, terminado o plenilúnio, volta ao combate. Vencido no novilúnio, o homem-lua é tragado pelo dragão. A lua se apaga e julga-se que o herói morreu de maneira estranha: despedaçado, como a lua que veio decrescendo até desaparecer. Esse mesmo tema pode ser observado no mito de Osíris, o deus-lua egípcio, que, como a Lua, pereceu despedaçado, para logo ser recomposto. O homem-lua, que desceu às trevas do inferno, lá permanece durante o novilúnio e depois a luta recomeça... O herói consegue nova vitória e a lua cheia descansa, porque, nessa fase, ela não cresce nem decresce. Parece ter sido essa a origem do sábado e sobretudo dos tabus que incidiam sobre o mesmo. É que em culturas primitivas e até “avançadas” como na hindu antiga e na babilônica, para não citar outras, se fazia estreita analogia entre a menstruação e a lua cheia. Na Índia antiga via-se no catamênio uma prova de que a mulher estava particularmente sob a influência da lua e mesmo possuída pela divindade lunar. Diz um texto védico: “O sangue da mulher é uma das formas de Agni, portanto não deve ser o mesmo desprezado”. Tem-se aí uma relação entre menstruação e fogo, já que Agni, deus do fogo, está inteiramente vinculado à luz da lua. Na Babilônia acreditava-se de modo idêntico que Ištar, a deusa lua, ficava indisposta durante o plenilúnio, quando então se observava o sabattu, ou melhor, sapattu, donde o hebraico šabbat, que se poderia interpretar, ao menos poeticamente, como “repouso do coração”8. Durante a “indisposição” de Ištar, no período da lua cheia, guardavase, pois o sábado, que era, nesse caso, mensal, tornando-se depois semanal, de acordo com as quatro fases da lua. Esse dia era considerado nefasto, não se podendo executar qualquer trabalho, viajar ou comer alimentos cozidos. Ora, nesses mesmos interditos, incorriam as mulheres menstruadas. No dia da menstruação da lua, todos, homens e mulheres, estavam sujeitos a idênticas restrições, porque o tabu da mulher indisposta pesava sobre todos. No judaísmo, šabbat era normalmente o nome do sétimo dia da semana, embora pudesse ser aplicado a festas que não caíam necessariamente no sétimo dia da mesma, como o dia da expiação (Lv 16,31; 23,32), a festa das trombetas (23,24) e o primeiro e oitavo dias da festa dos tabernáculos (23,39). De qualquer forma, o sábado judaico, que na Bíblia é usado para indicar somente uma obrigação religiosa e social, estava também cercado de tabus, cuja origem talvez remonte à época em que “os semitas ainda eram pastores nômades, cujas andanças eram determinadas pelas fases da lua. Esses dados parecem justificar a conclusão de que o sábado, como modo concreto de satisfazer à necessidade humana de descanso periódico, deve sua origem ao fato de que se começou a dar um valor absoluto ao caráter periódico da celebração das quatro fases da lua, à custa da coincidência do dia da celebração com as fases da mesma. Ao se sedentarizarem, as tribos semitas de nômades estenderam os seus tabus, originariamente ligados à celebração das fases da lua, às suas novas ocupações agrícolas”9. Entre esses tabus “herdados” certamente se devem inserir aqueles que cercam como impura a mulher menstruada (Gn 31,35; 2Sm 11,4; Lv 20,18 e certas determinações em Lv 15,19-24; 25-30)10. 4 Voltando a Selene, Ártemis e Hécate, ou melhor, à deusa triforme, vamos ver mais de perto o seu androginismo, cifrado nos raios fecundantes da lua e no homem-lua, que é a própria lua. A lua é, portanto, andrógina. Plutarco está novamente conosco: “Chama-se a Lua (Ártemis) a mãe do universo cósmico; ela possui uma natureza andrógina”. Na Babilônia, o deus-Lua Sin é andrógino e quando foi substituído por Ištar, esta conservou seu caráter de androginismo. Igualmente no Egito, Ísis é denominada Ísis-Neit, enquanto andrógina. Pelo fato mesmo de a lua ser andrógina, o homem-lua, cujo representante na terra era o rei ou o chefe tribal, passava a primeira noite de núpcias com a noiva, a fim de provocar a fertilização dela, da tribo e da terra. Tal hábito, como já se assinalou, permaneceu na França até a Idade Média com o nome de Le Droit de cuissage du Seigneur. O fato de todos dependerem dos préstimos da lua para a propagação da espécie, da fertilização dos animais e das plantas, enfim, da boa colheita anual, em todos os sentidos, é que provocou, desde a mais remota antiguidade, um tipo especial de hieròsgámos, de casamento sagrado, uma união sagrada, de caráter impessoal. Trata-se das chamadas hierodulas, literalmente, “escravas sagradas”, porque adjudicadas, em princípio, a um templo, ou ainda denominadas “prostitutas sagradas”, mas sem nenhum sentido pejorativo. Em determinadas épocas do ano, sacerdotisas e mulheres de todas as classes sociais11 uniam-se sexualmente a reis, sacerdotes ou a estranhos, todos simbolizando o homem-lua, com o único fito de provocar a fertilização das mulheres e da terra, bem como de angariar bens materiais para o templo da deusa (Lua) a que serviam. Tudo isso parece muito estranho para nossa mentalidade ou para nossa ignorância das religiões antigas. Vamos, assim, pela “delicadeza” do assunto, restringi-lo ao mínimo necessário. Puta, em latim, era uma deusa muito antiga e muito importante. Provém do verbo putare, “podar”, cortar os ramos de uma árvore, pôr em ordem, “pensar”, contar, calcular, julgar, donde Puta era a deusa que presidia à podadura. Com o sentido de cortar, calcular, julgar, ordenar, pensar, discutir, muitos são os derivados de putare em nossa língua, como deputado, amputar, putativo, computar, computador, reputação. O sentido pejorativo, ao que parece, surgiu pela primeira vez num texto escrito entre 1180-1230 de nossa era. Não é difícil explicar a deturpação do vocábulo. É que do verbo latino mereri, receber em pagamento, merecer uma quantia, proveio meretrix, “a que recebe seu soldo”, de cujo acusativo meretrice nos veio meretriz, que também, a princípio, não tinha sentido erótico. Mas, como putas e meretrizes, que se tornaram sinônimos, se entregavam não só para obter a fecundação da tribo, da terra, das plantas e dos animais, mas também recebiam dinheiro para o templo, ambas as palavras, muito mais tarde, tomaram o sentido que hoje possuem. Não eram, todavia, apenas mulheres que “trabalhavam” para a deusa-lua. Homens igualmente, embora fosse mais raro, após se emascularem, entregavam-se ao serviço da deusa. Na Índia, segundo W.H. Keating, os homens de Winnipeck consideram o sol como propício ao homem, mas julgam que a lua lhes é hostil e se alegra quando pode armar ciladas contra o sexo masculino. Desse modo, os homens de Winnipeck, se sonhassem com a lua, sentiam-se no dever de tornar-se cinaedi, quer dizer, homossexuais. Vestiam-se imediatamente de mulher e colocavam-se ao serviço da lua. Em 2Reis 23,7, Josias mandou derrubar os aposentos dos efeminados, consagrados a Astarté. Cibele era a grande deusa frígia, trazida solenemente para Roma entre 205 e 204 a.C., durante a segunda Guerra Púnica. Identificada com a lua, protetora inconteste da mulher, seus sacerdotes, chamados Coribantes, Curetes ou Galos e muitos de seus adoradores, durante as festas orgiásticas da Bona Mater, Boa Mãe, como era chamada em Roma, se emasculavam e cobriam-se com indumentária feminina e passavam a servir à deusa-lua Cibele. No Egito e na Mesopotâmia as deusas-lua Ísis e Ištar sempre tiveram um grande número de hierodulas, que, para obter a fertilidade da terra e dinheiro para os templos, para elas trabalhavam infatigavelmente. No judaísmo, as hierodulas causaram problemas sérios. Para Astarté, deusa-Lua semítica da vegetação e do amor (a Afrodite do Oriente), as hierodulas, sobretudo em Canaã, operavam, quer ao longo das estradas (Gn 38,15-21; Jr 3,2), quer nos próprios santuários (Os 4,14) da deusa. O dinheiro arrecadado, a que se dava o nome de “salário de meretriz” ou “de cachorro”, era entregue aos santuários. Sob a influência cananeia, o abuso penetrou também no culto israelítico (Nm 25,1-16), embora a Lei se opusesse energicamente a isso e proibisse que o dinheiro fosse aceito pelo Templo (Dt 23,18). Sob Manassés e Amon (séc. VII a.C.), as prostitutas sagradas instalaram-se no próprio Templo de Jerusalém. Foi necessário que Josias mandasse demolir suas habitações. Mais tarde, à época da desordem total, até pagãos as procuravam no Templo da Cidade Santa (2Mc 8). Na Grécia, à época histórica, em lugar de oferecer seu corpo e sua virgindade em honra da deusa-lua, as mulheres ofereciam sua cabeleira. 5 Ainda uma palavra sobre a Lua, suas servidoras e seus préstimos. Em todas as culturas primitivas eram as mulheres que serviam à Lua, pois tinham a incumbência de assegurar, entre outras coisas, o abastecimento de água à tribo, à cidade e ao campo velando, ao mesmo tempo, sobre a chama sagrada, que representava a luz da Lua e que jamais poderia extinguir-se. Além do mais, essas mulheres, essas sacerdotisas deviam receber em sua própria pessoa a “energia fertilizante” da Lua, em seu e em benefício de todos. Na civilização inca, no Peru, as sacerdotisas de Mana-Quillas e, na Roma antiga, as Virgens Vestais não tinham somente o dever de manter acesa a chama sagrada da deusa Lua-Vesta, mas ainda de prover ao abastecimento de água. Nos idos de março, por ocasião da Lua Cheia, realizavam-se sacrifícios ad pendendam pluuiam, sendo lançados pelas Vestais no rio Tibre vinte e quatro manequins, substitutos de antigos sacrifícios humanos, para provocar a chuva. A deusa-lua Ártemis, divindade dos bosques, onde ficavam muitos de seus santuários, via de regra os tinha junto a uma nascente ou gruta, onde a água brotasse de uma pedra. No Egito, um copo de água era levado em procissão diante de um falo de Osíris. Por magia simpática, em grandes secas, derramava-se água sobre a terra seca para provocar chuva. A deusa Cibele, de que se falou linhas atrás, levada para Roma, entre 205-204 a.C., era apenas uma pedra negra, simulacro da Bona Dea, Boa Deusa. Essa pedra era banhada nas águas do Tibre, quando havia estiagem prolongada. No dia quinze de agosto, em Roma, para homenagear a grande deusa-lua, celebrava-se a Festa das Tochas, que a Igreja substituiu pela Assunção de Maria. Desmitificando e dessacralizando o mito, a Igreja o sublimou, revestindo-o com nova indumentária. O conselho é do Papa Inocêncio III: “É para a Lua que deve olhar todo aquele que se acha enterrado na sombra do pecado e da iniquidade. Tendo perdido a graça divina, o dia desaparece. Não há mais sol. Que se dirija a Maria: sob sua influência, milhares encontram diariamente seu caminho para Deus”. A simbologia é perfeita: Cristo é o sol; Maria, a lua. É comum, aliás, ver-se a estátua da Mãe de Deus sobre um crescente lunar. Curioso é que para os antigos gregos o real poder da Lua não estava na Lua Cheia, na Lua Brilhante, no seu aspecto positivo, que para nós surge como o mais importante, mas na Lua Nova, a Lua Negra, isto é, na poderosa deusa-Lua Hécate.Aparentada com Ártemis, não tem, conforme se mostrou no Vol. I, p. 288, um mito propriamente dito. Independente dos deuses olímpicos, foi de princípio uma deusa benévola e dadivosa, mas, à medida que se tornou hipóstase da Lua Negra, tornou-se a deusa da magia e dos sortilégios. Com semelhantes atributos, Hécate passou a simbolizar igualmente, com seu cortejo de cães, amigos dos cemitérios, a cadela, a mãe perversa, devoradora e fálica, e, através da mesma, o inconsciente devorador. Essa polaridade de Hécate explica-se pela própria ambivalência da Lua. Deusa da prosperidade e da abundância no mundo exterior, no mundo interior, a Lua, se é dispensadora da magia, da inspiração e da clarividência, o é igualmente do terror e até da loucura. É bom lembrar que desde o século III a.C., como atesta o historiador e poeta didático egípcio de língua grega Mâneton, 4,81 (cerca de 263 a.C.), o verbo σεληνιάζειν (seleniádzein), derivado de Σελήνη (Seléne), Lua, significa “ser epiléptico”, donde “ser adivinho ou feiticeiro”, uma vez que a epilepsia era considerada morbus sacer, uma “doença sagrada”: é que as convulsões do epiléptico se assemelhavam às agitações e “distúrbios” por que eram tomados os que entravam em êxtase e entusiasmo, isto é, “na posse do divino”, sobretudo nos ritos dionisíacos. No Novo Testamento, Mt 17,15, um pai aflito procurou Jesus, para que lhe curasse o filho. A doença era lunar: Domine, miserere filio meo, quia lunaticus est. “Senhor, tem compaixão de meu filho, porque é lunático.” Para encerrar este capítulo sobre Ártemis, a dea triformis, cabe relembrar que Apolo e Ártemis eram gêmeos. Sobre estes necessário se torna fazer um ligeiro comentário. Todas as mitologias e culturas primitivas sempre revelaram um interesse muito grande pelo fenômeno dos gêmeos. Pouco importa a forma por que são imaginados: quer se apresentem sob moldes perfeitamente simétricos, quer se manifestem inteiramente diferentes, um escuro, outro luminoso, um voltado para o céu, outro para a terra, um negro, outro branco, um com cabeça de touro, outro com cabeça de escorpião, eles exprimem simultaneamente uma intervenção do além e a dualidade de todo ser ou o dualismo de suas tendências, espirituais e materiais, diurnas e noturnas. Sintetizam, assim, o dia e a noite, os aspectos celeste e terrestre do cosmo e do homem. Quando simbolizam as oposições internas do homem e a luta que o mesmo deverá empreender para superá-las, traduzem uma acepção sacrifical: necessidade de abnegação, de destruição, de submissão e de renúncia de uma parte de si mesmo, com vistas ao triunfo da outra. Cabe às forças espirituais da evolução progressiva assegurar a supremacia sobre as tendências involutivas e regressivas. Acontece, todavia, que os gêmeos podem ser absolutamente iguais, duplas ou cópias um do outro; nesse caso, eles exprimem tão só a unidade de uma dualidade equilibrada. Simbolizam a harmonia interior obtida pela redução do múltiplo ao um. Transposto o dualismo, a duplicidade torna-se apenas um efeito de espelho, o efeito da manifestação. Os gêmeos configuram, de outro lado, o estado de ambivalência do universo mítico. Para as culturas primitivas, surgem quase sempre carregados de uma força poderosa, protetora ou perigosa. Adorados, mas igualmente temidos, os gêmeos estão sempre carregados de um valor intenso: na África ocidental são mágicos, mas entre os bantus eram sacrificados. Em todas as tradições, os gêmeos, deuses ou heróis, lutam entre si, altercam, mas se auxiliam, denunciando, dessa maneira, a ambivalência de sua situação, símbolo da própria contingência de cada ser humano dividido em si mesmo, ou seja, a tensão interna de um estado permanente. O medo e a angústia do primitivo diante do aparecimento de gêmeos configuram o temor da divisão exterior de sua ambivalência, o receio da objetivação das analogias e das diferenças, a apreensão de uma tomada de consciência individuante, o medo da ruptura da indiferenciação coletiva. No fundo, os gêmeos configuram uma contradição não resolvida. A polaridade dos gêmeos é que ela mantém em si mesma “a promessa da descoberta, da compreensão de si mesmo, tanto quanto a ameaça da alienação e da desagregação”12. Se para Otto Rank os gêmeos configuram a temática da oposição entre Narciso e o espelho, o ser e o não ser, a vida e a morte, para Bachelard o homem tem igualmente no espelho “a revelação de sua identidade e de sua dualidade-revelação da realidade e da idealidade”13. Como reflexo no espelho, o gêmeo reflete o outro idêntico e impossível, que, no entanto, existe. Os mitos acerca dos gêmeos dividem-se em dois grupos: gêmeos de sexo oposto, que configuram, consoante Jung, o hermafrodito, simbolizando a integração e a harmonia, conseguidas no fim do processo de individuação, e gêmeos do mesmo sexo, que representam a luta, o litígio, o conflito, o espelho, a morte de Narciso. Tudo isto, porém, é muito relativo, porquanto os gêmeos, não importa o sexo da dupla, são o símbolo geral da dualidade na semelhança e até mesmo na identidade, porque estampam a imagem de todas as oposições exteriores e interiores, complementares ou contrárias, absolutas ou relativas, que se transformam numa tensão criadora. Na mitologia indo-europeia os heróis gêmeos são, as mais das vezes, benéficos, como os Açvins e os Dioscuros, Castor e Pólux: são curandeiros, protegem os homens dos perigos e salvam os navegantes. Os gêmeos védicos, Açvins, tinham a seu encargo, sobretudo, rejuvenescer os velhos e conseguir marido para as jovens... No México, entre os índios Pueblos, os Heróis Gêmeos, deuses da manhã e da tarde, abriram o caminho para a humanidade nos mitos cosmogônicos, quando o homem chegou à terra. Eliminaram os monstros e transformaram em úteis as coisas caducas e imperfeitas, tendo-se tornado os libertadores e os guias dos mortais. Em numerosos outros mitos, porém, os heróis gêmeos se apresentam como antagonistas: um é bom, o outro é perverso. Um constrói, o outro procura destruir-lhes a ação criadora, como se observa entre os iroqueses e os piaroas do Orenoco. Se passarmos ao mundo grecolatino, as coisas ainda são mais claras: Rômulo mata a Remo, e Etéocles e Polinice morrem um às mãos do outro, lutando pela posse de Tebas. Ainda bem que Apolo e Ártemis não apenas simbolizaram, mas realizaram a integração... 1. Τιτυός, em grego Tituov (Tityós), cujo nome é tido como uma reduplicação da raiz *teu, “ser túmido, gordo, forte”, o que não parece provável, era filho de Zeus e Elara. Temendo os ciúmes de Hera, o deus escondeu a amante nas entranhas da terra. Foi lá que nasceu o Gigante Títio. Dele se serviu Hera para perseguir Leto, inspirando no Gigante um violento desejo de possuí-la. Depois de tentar violentá-la, foi fulminado pelo raio de Zeus ou, segundo outras fontes, foi liquidado a flechadas por Apolo e Ártemis. Ao tombar no solo, seu corpo cobriu nove jeiras de terra. Lançado no Tártaro, foi condenado a ter o fígado devorado por duas serpentes ou duas águias, mas o órgão renasce conforme as fases da lua. 2. AUGRAS, Monique. Op. cit., p. 22. 3. MONTAIGNE, Michel. Essais. Paris: NRF, 1953, I, 36, p. 247. 4. .Cariátides, aqui, é apenas um epíteto das jovens que dançavam em homenagem a Ártemis Cariátis, a “protetora das nogueiras”, uma vez que a deusa possuía um templo num bosque de nogueiras, junto à cidade de Cárias, no Peloponeso. Segundo Vitrúvio, I, 1,5, o termo de arquitetura Cariátides, isto é, moradoras de Cárias, teria origem no fato de terem os habitantes desta cidade, por ocasião das guerras greco-pérsicas, abraçado o partido dos persas. Por isso, derrotados os invasores, suas mulheres foram escravizadas, de que é símbolo a finalidade arquitetônica das “cariátides”, isto é, servirem de colunas (como castigo) a uma cornija ou arquitrave. V. Dicionário mítico-etimológico, verbete. 5. Selene, em grego Σελ'ηνη, é derivada da mesma raiz que σέλας (sélas), “brilho”, *sawélios > Ἤλιος(Hélios), “sol”, do indo-europeu *swel, “brilhar”, sânscrito svar – “sol”, latim sol. Filha de Hiperíon e Teia, Selene era representada como uma jovem lindíssima, que percorria o céu em carro de prata, tirado por dois cavalos. De Zeus teve uma filha, Pandia, “a totalmente divina”. Foi amante de Pã, que a presenteou com um rebanho de bois brancos. Do belo pastor Endímion ela teve cinquenta filhas. 6. A respeito de Hécate, veja-se o Vol. I, p. ....-..... 7. BRIFFAULT, Robert. The Mothers. 3 vols. New York: Macmillan, 1927. 8. O português sábado provém do latim sabbatu(m), que, por sua vez, é um empréstimo ao hebraico šabbat, por intermédio do grego σάββατον (sábbaton). Quanto à etimologia, uns fazem o hebraico šabbat provir do verbo šabat (cessar de); outros o relacionam com šeba‘ (sete), mercê do caráter rigorosamente periódico do sábado, de sete em sete dias. Há ainda os que preferem explicá-lo como uma deformação de šabi‘at (dia sétimo). Seja como for, há que se levar em consideração o acádico šapatu, por sua notável semelhança com o hebraico šabbat: talvez este provenha daquele e o sentido primeiro do vocábulo seria descanso, repouso da Lua. 9. VAN DEN BORN A. et al. Op. cit., verbete Sábado, p. 1340ss. 10. Ofato de o ciclo mensal da mulher estar relacionado com as fases da lua, o argumento de que no sangue está a vida e que, por isso mesmo, “o contato com o sangue e até ver sangue” eram considerados um perigo, não justificam tantos tabus e interditos, alguns profundamente desumanos, que recaíam sobre a mulher menstruada. Considerada impura, na fase do catamênio, era afastada do convívio social e tudo quanto fosse por ela tocado se tornava contaminado ou perdia sua eficácia. Por que isso? Por que a mulher indisposta era considerada pelos primitivos como uma verdadeira causa de infecção e de contaminação, um mal que podia ser transmitido a todos quantos entrassem em contato com ela, a ponto de até sua sombra ser tida como emanação mefítica? Por que grandes legisladores antigos como Zoroastro, Manu e Moisés registraram em seus sistemas interditos concernentes à menstruação? Ouçamos um pequeno trecho de Manu: “a sabedoria, a energia, a força, o poder e a virilidade de um homem que se aproxima de uma mulher coberta com excreções menstruais desaparecem por completo. Se ele a evita, enquanto ela permanece nesse estado, sua sabedoria, sua energia, sua força, seu poder e virilidade tomarão novo impulso” (BUHLER, G. The Laws of Manu, in: Sacred Books of the East. Oxford: Clarendon Press, 18791910, p. 135). A Dra. Esther Harding, em sua excelente obra, Woman’s Mysteries, p. 63ss, que voltaremos a citar mais adiante, e que estamos seguindo de perto neste estudo sobre a deusa-lua, também discorda de que o tabu do catamênio se restrinja apenas ao horror do sangue em si mesmo e tenta explicá-lo de maneira bem diversa. Vamos resumir-lhe a longa exposição sobre o assunto. É verdade que o homem primitivo tinha horror ao sangue, que é a seiva da vida, mas nenhum tabu existe com respeito às pessoas que sangram, quando este sangue provém de uma ferida. Por que, então, o tabu acerca do sangue menstrual? Julga Harding que para o espírito do primitivo a menstruação provém de uma espécie de infecção, de uma possessão do demônio, que é preciso expulsar através de jejuns, fumigações, mortificações e isolamento da paciente. Era essa, aliás, a terapia aplicada em casos de “possessão demoníaca”. Uma segunda causa seria ditada pela própria mulher: já que os desejos e apetites intempestivos dos homens se constituíam numa ameaça séria para ela, alguns mitos primitivos fazem supor que, para se defender das exigências excessivas dos homens, as mulheres se impuseram continência durante esse período, embora seu desejo sexual, como entre os animais, seja particularmente forte quer imediatamente antes, quer imediatamente após a menstruação. Nesse sentido, diz o Talmude que se uma mulher passar entre dois homens, no início de suas regras, causará a morte de um; se passar no fim das mesmas, ela provocará simplesmente entre eles uma violenta altercação. Um terceiro motivo para semelhante tabu seria o de tornar possível a evolução dos povos primitivos. Sem essa salvaguarda, tornar-se-ia impossível a homens e mulheres, consoante a Dra. Harding, o desenvolvimento de valores especificamente humanos e a libertação do domínio absoluto do instinto animal. Talvez se possa ver em todos esses tabus, sobretudo no que tange às restrições alimentares que pesavam sobre a mulher menstruada, gestante ou de resguardo, como focalizamos no Vol. I, p. 327-329, um complexo de castração por parte do homem. 11. HARDING, Esther. Woman’s Mysteries. New York: Longmans, Green & C., 1953, p. 32ss. 12. ZAZZO, René. Les jumeaux, le couple et la personne. Paris: PUF, 1960, p. 183. 13. BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves. Paris: Gallimard, 1957, p. 34 CAPÍTULO III O mito de Apolo: Epidauro e o Oráculo de Delfos 1 APOLO, em grego 'Απόλλή (Apóllon). Muitas têm sido as tentativas de explicar o nome do irmão de Ártemis, mas, até o momento, nada se pode afirmar com certeza. Há os que procuram aproximá-lo do dórico ἄπελλα (ápella) ou mais precisamente de ἀπέλλαι (apéllai), “assembleias do povo”, em Esparta, onde Apolo, inspirador por excelência, seria o “guia” do povo, como Tiaz, com o nome de Thingsaz, dirigia as reuniões dos germanos. Outros preferem recorrer ao indo-europeu *apelo-, “forte”, que traduziria bem um dos ângulos do deus do arco e da flecha, mas tais hipóteses não convencem. Apolo nasceu no dia sete do mês délfico Bísio, que corresponde, no calendário ático, ao mês Elafebólion, ou seja, segunda metade de março e primeira de abril, nos inícios da primavera. Tão logo veio à luz, cisnes, de uma brancura imaculada, deram sete voltas em torno da ilha de Delos. Suas festas principais celebravam-se no dia sete do mês. As consultas ao Oráculo de Delfos se faziam primitivamente apenas no dia sete do mês Bísio, aniversário do deus. Sua lira possuía sete cordas. Sua doutrina se resumia em sete máximas, atribuídas aos sete Sábios. Eis aí o motivo por que o pai da tragédia, Ésquilo, o chamou augusto deus Sétimo, o deus da sétima porta (Sept., 800). Sete é, pois, o número de Apolo, o número sagrado, sobre que se falará depois. Zeus enviou ao filho uma mitra de ouro, uma lira e um carro, onde se atrelavam alvos cisnes. Ordenou-lhes o pai dos deuses e dos homens que se dirigissem todos para Delfos, mas os cisnes conduziram o filho de Leto para além da Terra do Vento Norte, o país dos Hiperbóreos, que viviam sob um céu puro e eternamente azul e que sempre prestaram ao deus um culto muito intenso. Ali permaneceu ele durante um ano: na realidade, uma longa fase iniciática. Decorrido esse período, retornou à Grécia, e, no verão, chegou a Delfos, entre festas e cantos. Até mesmo a natureza se endomingou para recebê-lo: rouxinóis e cigarras cantaram em sua honra; as nascentes tornaram-se mais frescas e cristalinas. Anualmente, por isso mesmo, se celebrava em Delfos, com hecatombes, a chegada do deus. O filho de Zeus estava pronto e preparado para iniciar a luta, que, aliás, foi rápida, contra Píton, o monstruoso dragão, filho da Terra, que montava guarda ao Oráculo de Geia no monte Parnaso e que a ira ainda não apaziguada da deusa Hera lançara contra Leto e seus gêmeos. Este deus que se está apresentando, já em roupas de gala, paramentado e etiquetado, não corresponde ao que foi nos primórdios o senhor de Delfos. Já se mostrou, no Vol. I, p. 143-144, que o Apolo homérico ainda se comporta como uma divindade de santuário, provinciano e sobremodo orientalizado. O Apolo grego, o Apolo do Oráculo de Delfos, o “exegeta nacional”, é, na realidade, resultante de um vasto sincretismo e de uma bem elaborada depuração mítica. Na llíada, I, pass., aparentando a noite, o deus de arco de prata, Febo Apolo, brilha (e por isso é Febo, o brilhante) como a lua. É necessário levar em conta uma longa evolução da cultura e do espírito grego e mais particularmente da interpretação dos mitos, para se reconhecer nele, bem mais tarde, um deus solar, um deus da luz, de sorte que seu arco e suas flechas pudessem ser comparados ao sol e a seus raios. Em suas origens, o filho de Leto estava indubitavelmente ligado à simbólica lunar. No primeiro canto da llíada, apresenta-se como um deus vingador, de flechas mortíferas: O Senhor Arqueiro, o toxóforo, o portador do arco de prata, o argirótoxo. Violento e vingativo, o Apolo pós-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos, de origem nórdica, asiática, egeia e sobretudo helênica e, sob este último aspecto, conseguiu suplantar por completo a Hélio, o “Sol” propriamente dito1. Fundindo, numa só pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão diversificadas, o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num só deus um vasto complexo de oposições. Tal fato possivelmente explica, em terras gregas, como o futuro deus dos Oráculos substituiu e, às vezes, de maneira brutal, divindades locais préhelênicas: na Beócia, suplantou, por exemplo, a Ptóos, que depois se tornou seu filho ou neto; em Tebas, particularmente, sepultou no olvido o culto do deus-rio Ismênio e, em Delfos, levou de vencida o dragão Píton. O deus-Sol, todavia, iluminado pelo espírito grego, conseguiu, se não superar, ao menos harmonizar tantas polaridades, canalizando-as para um ideal de cultura e sabedoria. Realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava a suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las no sentido de uma espiritualização progressiva, mercê do desenvolvimento da consciência, com base no γνῶθι σ'αὐτόν (gnôthi s’autón), “conhece-te a ti mesmo”. Apolo é saudado na literatura com mais de duzentos atributos, que o projetam como Σμινθεύς (Smintheús), um deus-rato, a saber, um deus agrário, não propriamente como propulsor da vegetação, mas como guardião das sementes e das lavouras contra os murídeos. Como seu filho Aristeu, o filho de Leto zela pelos campos com seus rebanhos e pastores, de que é, aliás, uma divindade tutelar. Com os epítetos de Νόμιος (Nómios), “Nômio”, protetor dos pastores, e καρνεῖος (Karneîos), “Carnio”, dos rebanhos e particularmente dos carneiros, Apolo defende os campos e sua grei contra os lobos, daí talvez seu nome de Λύκειος (L×keios), “Lício”. Sua ação benéfica, porém, não se estende apenas ao campo: com a designação de 'Αγυιεύς (Aguyieús), “Agieu”, representado por um obelisco ou pilar, ele se posta à entrada das casas e guarda-lhes a soleira. Vigia igualmente tanto a Fratria, com o nome de Phrátrios, quanto os viajantes nas estradas, como atesta Ésquilo (Ag., 1086), e nas rotas marítimas, sob a forma de delfim, predecessor zoomórfico do deus, salva, se necessário, os marinheiros e tripulantes. Sob a denominação de 'Ακέσιος (Akésios), “o que cura”, precedeu em Epidauro, como médico, a seu filho Asclépio, de que também se falará neste capítulo. Já na Ilíada, I, 473, curara a peste que ele próprio havia lançado contra os aqueus, que lhe apaziguaram a ira com sacrifícios e entoando-lhe um belo peã, nome este, que, sob a forma de παιάν (paián), peã, após designar Παιήων (Paiéon), “Peéon”, médico dos deuses, passou a qualificar outrossim não só Apolo como deus que cura, mas ainda um canto sobretudo de ação de graças. Médico infalível, o filho de Leto exerce sua arte bem além da integridade física, pois é ele um Καθάρσιος (Kathársios), um purificador da alma, que a libera de suas nódoas. Mestre eficaz das expiações, mormente as relativas ao homicídio e a outros tipos de derramamento de sangue, o próprio deus submeteu-se a uma catarse no vale de Tempe, quando da morte de Píton. Incentivava e defendia pessoalmente aqueles com cujos atos violentos estivesse de acordo, como foi o caso de Orestes, que matou a própria mãe Clitemnestra, conforme nos mostra Ésquilo em sua Oréstia. Fiel intérprete da vontade de Zeus, Apolo é Χπηστήριος (Khrestérios), um “deus oracular”, mas cujas respostas aos consulentes eram, por vezes, ambíguas, donde o epíteto de Λοxίας (Loksías), Lóxias, “oblíquo, equívoco”. Deus da cura por encantamento, da melopeia oracular, chamado, por isso mesmo, pai de Orfeu, que tivera com Calíope, Apolo foi transformado, desde o século VIII a.C., em mestre do canto, da música, da poesia e das Musas, com o título de Μουσηγέτης (Museguétes), “condutor das Musas”: as primeiras palavras do deus, ao nascer, diz o Hino homérico (Hh. Ap., I, 131-132) foram no sentido de reclamar “a lira e seu arco recurvado”, para revelar a todos os desígnios de Zeus. Deus da luz, vencedor das forças ctônias, Apolo é o Brilhante, o Sol. 2 Alto, bonito e majestoso, o deus da música e da poesia se fazia notar antes do mais por suas mechas negras, com reflexos azulados, “como as pétalas do pensamento”. Muitos foram assim seus amores com ninfas e, por vezes, com simples mortais. Amou a ninfa náiade Dafne, filha do deus-rio Peneu, na Tessália. Esse amor lhe fora instilado por Eros, de quem o deus gracejava. É que Apolo, julgando que o arco e a flecha eram atributos seus, certamente considerava que as flechas do filho de Afrodite não passavam de brincadeira. Acontece que Eros possuía na aljava a flecha que inspira amor e a que provoca aversão. Para se vingar do filho de Zeus, feriu-lhe o coração com a flecha do amor e a Dafne com a da repulsa e indiferença. Foi assim que, apesar da beleza de Apolo, a ninfa não lhe correspondeu aos desejos, mas, ao revés, fugiu para as montanhas. O deus a perseguiu e, quando viu que ia ser alcançada por ele, pediu a seu pai Peneu que a metamorfoseasse. O deus-rio atendeu-lhe as súplicas e transformou-a em loureiro, em grego δάφνη (dáphne), a árvore predileta de Apolo. Com a ninfa Cirene teve o semideus Aristeu, o grande apicultor, personagem do mito de Orfeu. Também as Musas não escaparam a seus encantos. Com Talia foi pai dos Coribantes, demônios do cortejo de Dioniso; com Urânia gerou o músico Lino e com Calíope teve o músico, poeta e cantor insuperável, Orfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, de que nascerá Asclépio, terminaram tragicamente para ambos, como se verá mais adiante: a ninfa será assassinada e o deus do Sol, por ter morto os Ciclopes, cujos raios eliminaram Asclépio, foi exilado em Feres, na corte do rei Admeto, a quem serviu como pastor, durante um ano. Com Marpessa, filha de Eveno e noiva do grande herói Idas, o deus igualmente não foi feliz. Apolo a desejava, mas o noivo a raptou num carro alado, presente de Posídon, levando-a para Messena, sua pátria. Lá, o deus e o mais forte e corajoso dos homens se defrontaram. Zeus interveio, separou os dois contendores e concedeu à filha de Eveno o privilégio de escolher aquele que desejasse. Marpessa, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, preferiu o mortal Idas. Com a filha de Príamo, Cassandra, o fracasso ainda foi mais acentuado. Enamorado da jovem troiana, concedeu-lhe o dom da manteía, da profecia, desde que a linda jovem se entregasse a ele. Recebido o poder de profetizar, Cassandra se negou a satisfazer-lhe os desejos. Não lhe podendo tirar o dom divinatório, Apolo cuspiu- lhe na boca e tirou-lhe a credibilidade: tudo que Cassandra dizia era verídico, mas ninguém dava crédito às suas palavras. Em Cólofon, o deus amou a adivinha Manto e fê-la mãe do grande adivinho Mopso, neto de Tirésias. Mopso, quando profeta do Oráculo de Apolo em Claros, competiu com outro grande mántis, o profeta Calcas. Saiu vencedor, e Calcas, envergonhado e, por despeito, se matou. Pela bela ateniense Creúsa, filha de Erecteu, teve uma paixão violenta: violou-a numa gruta da Acrópole e tornou-a mãe de Íon, ancestral dos Jônios. Creúsa colocou o menino num cesto e o abandonou no mesmo local em que fora amada pelo deus. Íon foi levado a Delfos por Hermes e criado no Templo de Apolo. Creúsa, em seguida, desposou Xuto, mas, como não concebesse, visitou Delfos e, tendo reencontrado o filho, foi mãe, um pouco mais tarde, de dois belos rebentos: Diomedes e Aqueu. Com Evadne teve Íamo, ancestral da célebre família sacerdotal dos iâmidas de Olímpia. Castália, filha do rio Aqueloo, também lhe fugiu: perseguida por Apolo junto ao santuário de Delfos, atirou-se na fonte, que depois recebeu seu nome e que foi consagrada ao deus dos Oráculos. As águas de Castália davam inspiração poética e serviam para as purificações no Templo de Delfos. Era dessa água que bebia a Pítia. Muitas foram as vitórias e os fracassos amorosos do deus Sol e a lista poderia ser ainda grandemente ampliada. Quanto aos amores de Apolo por Jacinto e Ciparisso devem ser interpretados não como um episódio de homossexualismo, mas antes como a substituição de antigas divindades agrárias pré-helênicas, como seus próprios nomes de origem mediterrânea o indicam, por um deus solar. JACINTO, em grego Ὑάκινθος (Hyákinthos), talvez com base na raiz *weg, estar úmido, configure a primavera mediterrânea, estação úmida e fértil, após a sequidão do estio, símbolo da morte prematura do belo jovem. Filho do rei Amiclas e de Diomedes, era um adolescente de rara beleza, que foi amado por Apolo. Divertia-se este em arremessar discos, quando um deles, desviado pelo ciumento vento Zéfiro, ou Bóreas, segundo outros, foi decepar a cabeça do amigo. O deus, desesperado, transformou-o na flor jacinto, cujas pétalas trazem a marca, que re lembra quer o grito de dor do deus (AI), quer a inicial do nome do morto (Y). Quanto a Ciparisso, em grego Κυπάρισσος (Kypárissos), não possui etimologia segura, relacionando-se talvez com o semítico gofer, “cipreste”, mas a hipótese é controvertida. Este, como todas as árvores de folhas resistentes, era objeto de um respeito especial, como “árvores da vida ou árvores da tristeza”. filho de Télefo, era um dos favoritos de Apolo. Tinha por companheiro inseparável um veado domesticado. Ciparisso, um dia, o matou acidentalmente e, louco de dor, pediu aos deuses que fizessem suas lágrimas correrem eternamente. Foi, por isso, transformado em cipreste. Das três provas por que passou Apolo com os três consequentes exílios (em Tempe, Feres e Troia), a terceira foi a mais penosa. Tendo tomado parte com Posídon na conspiração urdida contra Zeus por Hera e que fracassou, graças à denúncia de Tétis, o pai dos deuses e dos homens condenou ambos a se porem ao serviço de Laomedonte, rei de Troia. Enquanto Posídon trabalhava na construção das muralhas de Ílion, Apolo apascentava o rebanho real. Findo o ano de exílio e do fatigante trabalho, Laomedonte se recusou a pagar-lhes o salário combinado e ainda ameaçou de lhes mandar cortar as orelhas. Apolo fez grassar sobre toda a região da Tróada uma peste avassaladora e Posídon ordenou que um gigantesco monstro marinho surgisse das águas e matasse os homens no campo. Não raro, Apolo aparece como pastor, mas por conta própria e por prazer. Certa feita, Hermes, embora ainda envolto em fraldas, lhe furtou o rebanho, o que atesta a precocidade incrível do filho de Maia. Apolo conseguiu reaver seus animais, mas Hermes acabava de inventar a lira e o filho de Leto ficou tão encantado com os sons do novo instrumento, que trocou por ele todo o seu rebanho. Como também tivesse Hermes inventado a flauta, Apolo a obteve imediatamente, dando em troca ao astuto deus psicopompo o caduceu. Um dia em que o deus tocava sua flauta no monte Tmolo, na Lídia, foi desafiado pelo sátiro Mársias, que, tendo recolhido uma flauta atirada fora por Atená, adquiriu, à força de tocá-la, extrema habilidade e virtuosidade. Os juízes de tão magna contenda foram as Musas e Midas, rei da Frígia. O deus foi declarado vencedor, mas o rei Midas se pronunciou por Mársias. Apolo o puniu, fazendo que nascessem nele orelhas de burro. No tocante ao vencido, foi o mesmo amarrado a um tronco e escorchado vivo. 3 A mais séria aventura de amor do deus Sol foi com a ninfa Corônis, fato que vai nos conduzir, se bem que de maneira sintética, a um estudo sobre Asclépio e sua “cidade médica” de Epidauro. Consoante o mito mais seguido, Asclépio (o Esculápio dos latinos), cuja etimologia se desconhece até o momento, era filho do deus Apolo e de uma mortal, Corônis, filha de Flégias, rei dos lápitas. Temendo que o deus, eternamente jovem, por ser imortal, a abandonasse na velhice, uniu-se, embora grávida, a Ísquis, que foi morto por Apolo. Quanto a Corônis, foi liquidada a flechadas por Ártemis, a pedido do irmão. Mas, como acontecera a Dioniso, o rebento, certamente através de uma “cesariana umbilical”, foi extraído do seio materno de Corônis e recebeu o nome de Asclépio. Educado pelo Centauro Quirão2 no aprazível e regenerador monte Pélion, o filho de Apolo fez tais progressos na medicina, que chegou mesmo a ressuscitar vários mortos. Com medo de que a ordem do mundo fosse transtornada, a pedido de Plutão, Zeus fulminou-o, mas como Héracles, Asclépio foi divinizado. O rebento de Apolo e Corônis possuía vários filhos, entre os quais os dois médicos Podalírio e Macáon, que aparecem na Ilíada e as sempre jovens Panaceia e Higiia. Como se vê, uma constelação em defesa da saúde: dois médicos, uma panaceia e uma higiia, isto é, a própria saúde... Asclépio é um herói-deus muito antigo e deve ter “vivido” lá pelo século XIII a.C., pois já o encontramos, como médico, na célebre expedição dos Argonautas, em companhia de heróis como Jasão, Peleu, Héracles, os Dioscuros (Castor e Pólux) e tantos outros... Fixando-se em Epidauro, onde o médico Apolo há muito reinava, Asclépio, “o bom, o simples, o filantropíssimo”, como lhe chamavam os gregos, desenvolveu ali uma verdadeira escola de medicina, cujos métodos eram sobretudo mágicos, mas cujo desenvolvimento (em alguns ângulos espantoso para a época) preparou o caminho para uma medicina bem mais científica nas mãos dos chamados asclepíades ou descendentes de Asclépio, cuja figura mais célebre foi o grande Hipócrates. Como herói, que foi deificado, Asclépio participa da natureza humana e da natureza divina, simbolizando a unidade indissolúvel que existe entre ambas, assim como o caminho que conduz de uma para outra. Mesmo na época histórica, a natureza do deus da medicina permaneceu ambivalente, ambígua, entre herói e deus: assim as oferendas lhe eram outorgadas como deus e os “enaguísmata” (os sacrifícios) lhe eram ofertados como herói. É precisamente esse culto secreto ao herói Asclépio, que era “escondido” pelo Thólos (edifício abobadado, rotunda) de Epidauro, famoso por sua luxuriosa ornamentação e seu misterioso Labirinto. Neste, provavelmente, era “guardada” a serpente, réptil detentor para os antigos do dom da adivinhação, por ser ctônia, e que simbolizava a vida que renasce e se renova ininterruptamente, pois, como é sabido, a serpente enrolada num bastão era o atributo do deus da medicina. Assim os dois monumentos mais famosos de Epidauro se encontravam lado a lado: o Templo para o deus e o Thólos para o herói. Historicamente, Asclépio “residiu” em Epidauro, dos fins do século VI a.C. até os fins do século V d.C. Onze séculos de glórias e de curas incríveis! À entrada do recinto sagrado do antigo hierón do deus da “nooterapia”, isto é, da cura pela mente, sobre a arquitrave de majestosos propileus, que formavam como um arco de triunfo, com duas fileiras de colunas de mármore, estava gravada a mensagem que sintetizava o grande segredo das “curas incríveis” e incrivelmente modernas da medicina de Asclépio: Puro deve ser aquele que entra no Templo perfumado. E pureza significa ter pensamentos sadios. A conclusão é simples: certamente em épocas mais recuadas só havia cura total do corpo em Epidauro, quando primeiro se curava a mente. Em outros termos, só existia cura, quando havia metánoia, ou seja, transformação de sentimentos. Será que os sacerdotes de Epidauro julgavam que as hamartíai (as faltas, os erros, as démesures) provocavam problemas que levavam ao “encucamento” e este agente mórbido, esta incubação “detonava” as doenças? De qualquer forma, a missão de cura em Epidauro era uma das missões, porque, basicamente, a cidade do deus-herói-Asclépio era um centro espiritual e cultural. Dado que as causas das doenças eram principalmente mentais, o método terapêutico era essencialmente espiritual, daí a importância atribuída à nooterapia, que purifica e reforma psíquica e fisicamente o homem inteiro. Procurava-se, a todo custo, através do gnôthi s’autón (conhece-te a ti mesmo) que o homem “acordasse” para sua identidade real. A julgar pelas estelas (espécie de coluna destinada a ter uma inscrição) do Museu de Epidauro, durante todo o grande período de esplendor da história do Santuário de Asclépio, isto é, até fins do século IV a.C., data das supracitadas estelas, as curas não eram efetuadas com medicamentos, mas tão somente com o juízo e a intervenção divina, bem como com a insubstituível metánoia. Essas técnicas, os sacerdotes de Asclépio, muito mais pensadores profundos que médicos, as conheciam muito bem, porque haviam feito um grande progresso no que tange à psicossomática e à nooterapia. Ao que parece, partiam eles do princípio de que a Harmonia e a Ordem divina exercem influência decisiva sobre a saúde psíquica e corporal. Recomendavam sempre aos doentes que “pensassem santamente”, por isso estavam convencidos de que, quando nossa consciência se mantém em estado de pureza e harmonia, o físico torna-se, necessariamente, são e equilibrado. Não é outra coisa, aliás, o que prega Platão em seu Banquete (186d) pelos lábios do médico-filósofo Erixímaco. Era, portanto, o equilíbrio biopsíquico o fator básico, o medicamento de uma cura irreversível! Daí também, para os sacerdotes, a importância dos “sonhos” por parte dos pacientes que dormiam (era a célebre enkoímesis, ação de deitar-se, de dormir) no Ábaton (Santuário) de Epidauro. Esses sonhos, essas manifestações do divino, essa “hierofania”, porque Asclépio vinha visitar os pacientes e tocava as partes enfermas do organismo, eram interpretados pelos sacerdotes que, em seguida, “aviavam a receita”. Era o que se denomina mântica por incubação. Com o correr do tempo e a experiência adquirida, as curas, por meio de ervas, e a cirurgia fizeram também seus milagres. Uma coisa, porém, é certa: só existia cura total, quando havia metánoia. Epidauro, já o dissemos, era além do mais um centro cultural e de lazer. Lá encontramos um Odéon, pequeno teatro fechado, onde se ouvia música e se ouviam poetas; um Estádio para as competições esportivas, que se realizavam de quatro em quatro anos; um Ginásio para exercícios físicos; um Teatro, o mais bem conservado do mundo grego e que foi construído, no século IV a.C., pelo grande arquiteto Policleto, o Jovem; uma Biblioteca e numerosas obras de arte. Havia, pois, em Epidauro, uma real metusía, uma communio, um consortium, uma comunhão, um elo infrangível entre as cerimônias culturais e cultuais, as doxologias (hinos laudatórios) com que os sacerdotes reforçavam o sentimento religioso dos peregrinos e o ritmo e a harmonia da música, da poesia e da dança, que eram utilizadas por seu valor tranquilizante e seu efeito terapêutico imediato sobre a alma e o corpo. A tragédia e a comédia bem como a poesia épica e lírica contribuíam para aumentar a espiritualidade e purificar a alma de certas paixões desastrosas. A ginástica e as disputas atléticas disciplinavam os movimentos e o ritmo interior do corpo, multiplicando as possibilidades físicas e psíquicas do ser humano. A contemplação artística e o fruir da beleza de tantas obras de arte, que ornamentavam o Ábaton, tinham por escopo a elevação, a espiritualização e humanização do pensamento. Todo esse conjunto, espiritual e cultural, visava, em última análise, à catarse. Mesmo à época da dominação romana (séc. II a.C.), quando o emprego de medicamentos se generalizou, assim como a utilização de meios mais modernos de higiene, dietética, cirurgia, hidroterapia, purgantes... Asclépio e sua nooterapia jamais desapareceram: purifica tua mente e teu corpo estará curado. O tão citado verso do poeta latino do século I-II d.C., Décimo Júnio Juvenal, não seria um eco da nooterapia asclepiana? Orandum est ut sit mens sana in corpore sano (Sat., 10,356). – O que se deve pedir é que haja uma mente sã num corpo são. Estava com a razão o escritor norte-americano Henry Miller, não há muito falecido, quando, em seu livro The Colossus of Maroussi (1941), agudamente sintetizou o grande ideal nooterápico de Epidauro. “A meu ver, não há mistérios nas curas que se realizaram aqui, neste grande Centro Terapêutico da Antiguidade. Aqui o médico era o primeiro a ser curado, o que constituía o grande progresso de uma arte que não é médica, mas religiosa.” 4 A grande aventura de Apolo e que há de fazer dele o senhor do Oráculo de Delfos foi a morte do Dragão Píton. Miticamente, a partida do deus para Delfos teve como objetivo primeiro matar o monstruoso filho de Geia, com suas flechas, disparadas de seu arco divino. Seria importante não nos esquecermos do que representam arco e flecha num plano simbólico: na flecha se viaja e o arco configura o domínio da distância, o desapego da “viscosidade” do concreto e do imediato, comunicado pelo transe, que distancia e libera. Quanto à guardiã do Oráculo de Geia pré-apolíneo, era, ao que parece, a princípio, uma δράκαινα (drákaina), um dragão fêmea, nascida igualmente da Terra, chamada Delfine. Mas, ao menos a partir do século VIII a.C., o vigilante do Oráculo primitivo e o verdadeiro senhor de Delfos era o dragão Píton, que outros atestam tratar-se de uma gigantesca serpente. Seja como for, o dragão, que simboliza a autoctonia e “a soberania primordial das potências telúricas” e que, por isso mesmo, protegia o Oráculo de Geia, a Terra Primordial, foi morto por Apolo, um deus patrilinear, solar, que levou de vencida uma potência matrilinear, telúrica, ligada às trevas. Morto Píton, Apolo teve primeiramente que purificar-se, permanecendo um ano no vale de Tempe, segundo se mencionou páginas atrás, tornando-se, desse modo, o deus Kathársios, “o purificador”, por excelência. É que, e já se fez referência ao fato no Vol. I, p. 80-81, todo μίασμα (míasma), toda “mancha” produzida por um crime de morte era como que uma “nódoa maléfica, quase física”, que contaminava o génos inteiro. Matando e purificando-se, substituindo a morte do homicida pelo exílio ou por julgamentos e longos ritos catárticos, como foi o sucedido com Orestes, assassino de sua própria mãe, Apolo contribuiu muito para humanizar os hábitos antigos concernentes aos homicídios. As cinzas do dragão foram colocadas num sarcófago e enterradas sob o ὀμπαλός (omphalós), o umbigo, o Centro de Delfos, aliás o Centro do Mundo, porque, segundo o mito, Zeus, tendo soltado duas águias nas duas extremidades da terra, elas se encontraram sobre o omphalós. A pele de Píton cobria a trípode sobre que se sentava a sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa. Embora ainda se ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a relacionaram com δελφύς (delph×s), útero, a cavidade misteriosa, para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego στόμιον (stómion), que significa tanto cavidade quanto vagina, daí ser o omphalós tão “carregado de sentido genital”. A descida ao útero de Delfos, à “cavidade”, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, configuravam, de per si, uma “união física” da sacerdotisa com Apolo. Para perpetuar a memória do triunfo de Apolo sobre Píton e para se ter o dragão in bono animo (e este é o sentido dos jogos fúnebres), celebravam-se lá nas alturas do Parnaso, de quatro em quatro anos, os Jogos Píticos. Do ponto de vista histórico, é possível ter-se ao menos uma ideia aproximada do que foi Delfos arqueológica, religiosa e politicamente. Múltiplas escavações, realizadas no local do Oráculo, demonstraram que, à época micênica (séc. XIV-XI a.C.), Delfos era um pobre vilarejo, cujos habitantes veneravam uma deusa muito antiga, que lá possuía um Oráculo por “incubação”, cujo omphalós certamente era da época pré-helênica. Trata-se, como se sabe, de Geia, a Mãe-Terra, associada a Píton, que lhe guardava o Oráculo. Foi na Época Geométrica (séc. XI-IX a.C.), que Apolo chegou a seu habitat definitivo e, nos fins do século VIII a.C., a “apolonização” de Delfos estava terminada; a manteía por “incubação”, ligada a potências telúricas e ctônias, cedeu lugar à manteía por “inspiração”, embora Apolo jamais tenha abandonado, de todo, algumas “práticas como se observa no sacrifício de uma porca feito por Orestes em Delfos, após sua absolvição pelo Areópago. Tal sacrifício em homenagem às Erínias se constitui num rito tipicamente ctônio. A própria descida da Pitonisa ao ádyton, ao “impenetrável”, localizado, ao que tudo indica, nas entranhas do Templo de Apolo, atesta uma ligação com as potências de baixo. De qualquer forma, a presença do deus patrilinear no Parnaso, a partir da Época Geométrica, é confirmada pela substituição de estatuetas femininas em terracota por estatuetas masculinas em bronze. O novo senhor do Oráculo do monte Parnaso trouxe ideias novas, ideias e conceitos que haveriam de exercer, durante séculos, influência marcante sobre a vida religiosa, política e social da Hélade. Mais que em qualquer outra parte, o culto de Apolo testemunha, em Delfos, o caráter pacificador e ético do deus que tudo fez para conciliar as tensões que sempre existiram entre as póleis gregas. Outro mérito não menos importante do deus foi contribuir com sua autoridade para erradicar a velha lei do talião, isto é, a vingança de sangue pessoal, substituindo-a pela justiça dos tribunais, como se comentou no Vol. I, p. 95-96. Buscando “desbarbarizar” velhos hábitos, as máximas do grandioso Templo Délfico pregam a sabedoria, o meio-termo, o equilíbrio, a moderação. O γνῶθι σ'αὐτον (gnôthi s’autón), “conhece-te a ti mesmo”, e o μηδὲν ἄγαν (medèn ágan), o “nada em demasia” são um atestado bem nítido da influência ética e moderadora do deus Sol. E como Heráclito de Éfeso (século V a.C.) já afirmara (fr. 51) que “a harmonia é resultante da tensão entre contrários, como a do arco e da lira, Apolo foi o grande harmonizador dos contrários, por ele assumidos e integrados num aspecto novo. “A sua reconciliação com Dioniso”, salienta M. Eliade, “faz parte do mesmo processo de integração que o promovera a padroeiro das purificações depois do assassinato de Píton. Apolo revela aos seres humanos a trilha que conduz da ‘visão’ divinatória ao pensamento. O elemento demoníaco, implicado em todo conhecimento do oculto, é exorcizado. A lição apolínea por excelência é expressa na famosa fórmula de Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’. A inteligência, a ciência, a sabedoria são consideradas modelos divinos, concedidos pelos deuses, em primeiro lugar por Apolo. A serenidade apolínea torna-se, para o homem grego, o emblema da perfeição espiritual e, portanto, do espírito. Mas é significativo que a descoberta do espírito conclua uma longa série de conflitos seguidos de reconciliação e o domínio das técnicas extáticas e oraculares”3. Deus das artes, da música e da poesia, é bom que se repita, as Musas jamais o abandonaram. Note-se, a esse respeito, que os Jogos Píticos, ao contrário dos Olímpicos, cuja tônica eram os concursos atléticos, deviam seu esplendor sobretudo às disputas musicais e poéticas. Em Olímpia imperavam os músculos; em Delfos, as Musas. Em síntese, temos de um lado Geia e o dragão Píton; de outro, o omphalós, Apolo e sua Pitonisa. Ora, se examinarmos as coisas mais de perto, como já o esboçamos linhas acima, vamos encontrar em Delfos o seguinte fato incontestável: Apolo com seu culto implantou-se no monte Parnaso, porque substituiu a mântica ctônia, por incubação, pelamântica por inspiração, embora se deva observar que se trata tão somente da substituição de um interior por outro interior: do interior da Terra pelo interior do homem, através do “êxtase e do entusiasmo” da Pitonisa, assunto, aliás, controvertido e que se tentará explicar. Ademais disso, convém repetir, os gregos sempre ligaram Delfos a delph×s, útero, e a descida da sacerdotisa ao ádyton é um símbolo claro de uma descida ritual às regiões subterrâneas. 5 Antes de se discutir e apresentar algumas conjecturas sobre o problema do “êxtase e do entusiasmo” que se apossariam da sacerdotisa de Apolo, vamos dizer uma palavra sobre a própria Pítia e sua ação mântica. Pitonisa ou Pítia é o nome da intérprete de Apolo, que, possivelmente, em estado de êxtase e entusiasmo, mas possuída de Apolo, respondia às consultas que lhe eram feitas. O nome Pitonisa ou Pítia provém de Píton, o dragão morto pelo filho de Leto e cuja pele cobria a trípode de bronze em que se sentava a sacerdotisa. De início, havia apenas uma Pítia, normalmente, parece, uma jovem camponesa de Delfos, escolhida pelos sacerdotes de Apolo. Mais tarde, a intérprete do deus deveria ter ao menos cinquenta anos. Quando o Oráculo chegou a seu apogeu, entre os séculos VI e V a.C., havia três sacerdotisas e, à época da decadência do mesmo, século II d.C., voltou a funcionar apenas uma. Antes de qualquer consulta, segundo algumas fontes autorizadas, ao menos no que concerne ao essencial, havia um ritual tanto para os consulentes como para a sacerdotisa. Aqueles, após pagarem uma taxa, que não era igual para todos, e se purificarem com água da fonte Castália, ofereciam um sacrifício cruento ao deus: em geral imolava-se um bode ou uma cabra. Originariamente as consultas se faziam uma vez por ano, no dia sete do mês Bísio, aniversário de Apolo. Com o aumento da clientela, aquelas passaram a ser feitas no dia sete de cada mês, exceto nos meses de inverno, em que o deus estava em repouso no país dos Hiperbóreos. Se o sacrifício oferecido pelos consulentes fosse favorável, quer dizer, se o animal, cabra ou bode, antes de ser imolado, uma vez aspergido com água fria, começasse a tremer, o dia era fasto. Nesse caso, a Pítia, ricamente vestida e após purificar-se com água da mesma fonte Castália, dirigia-se para o Templo de Apolo, seguida de sacerdotes e dos consulentes. Feitas as fumigações de praxe com folhas de loureiro, a árvore sagrada de Apolo, e com farinha de cevada no “fogo eterno do deus Pítio”, a profetisa descia para o ádyton, “o inacessível, o sacrossanto”, isto é, uma pequena sala localizada sob a cela do Templo, enquanto os sacerdotes ou profetas ficavam numa saleta ao lado, de onde formulavam em altas vozes as suas perguntas. Estas eram expressas sob forma alternativa: ou seja, “se era preferível fazer isto ou aquilo”. A Pítia, após beber água da fonte Cassótis, que, dizem, corria no ádyton, sentava-se na trípode e tocava no omphalós, que ficava junto àquela. Em seguida, mastigando folhas de loureiro, respirava as exalações (pneúmata) que proviriam de uma fenda no solo, o que, aliás, diga-se logo, jamais foi detectado em Delfos, entrava em êxtase e entusiasmo; “possuída de Apolo”, balbuciava palavras entrecortadas, que eram recolhidas pelos Sacerdotes. Essas palavras “incoerentes” da Pitonisa eram redigidas, a princípio, em verso hexâmetro e mais tarde também em prosa e oferecidas como resposta às consultas formuladas. O sentido, as mais das vezes, equívoco da resposta era, não raro, interpretado por exegetas. De qualquer forma, “Os Oráculos” traduziam a vontade todopoderosa de Delfos, porque, para todo o mundo grego, Apolo foi decididamente o árbitro e o garante da ortodoxia. Os oráculos délficos são conhecidos por textos literários, particularmente do historiador Heródoto (séc. V a.C.) e por inscrições. Algumas respostas de Lóxias, sobretudo as mais antigas, redigidas em hexâmetros datílicos, ficaram célebres por causa de seu sentido obscuro e ambíguo. Sirva de exemplo a resposta do Oráculo ao famoso rei da Lídia, Creso (séc. VI a.C.), que, em guerra contra Ciro, rei da Pérsia, interrogou a Pítia a respeito da “destruição de um grande império”. A Pitonisa respondeu com absoluta precisão: Se Creso cruzar o rio Hális, destruirá um grande império. O império destruído não foi o de Ciro, como supunha Creso, mas seu próprio reino. O deus não mentiu, mas a resposta foi terrivelmente ambígua. A respeito dessa particularidade do Oráculo de Delfos, vale a pena mencionar o fr. 247 de Heráclito: “O deus soberano, cujo oráculo está em Delfos, nem revela, nem oculta coisa alguma, mas manifesta-se por sinais”. Ou seja: Apolo não esconde a verdade, apenas faz que se lhe compreenda a vontade. No que se refere aos propalados vapores que embriagavam a Pitonisa no ádyton e ao êxtase e entusiasmo da mesma, é necessário, ao menos, ventilar o assunto, que é complexo sob alguns ângulos, e estabelecer o status quaestionis. As tão comentadas exalações, que, emanando do solo, no Parnaso, inebriavam pastores, cabras e, mais tarde, a Pitonisa, fazendo com que os primeiros, tomados de entusiasmo, começassem a profetizar e os animais entrassem numa grande excitação, nenhum índice geológico até o momento as comprovou. Também a existência do ádyton tem sido posta em dúvida, mas com menos intensidade, por isso que a inexistência do mesmo, hodiernamente, se poderia explicar por abalos sísmicos. Acerca do êxtase e do entusiasmo da sacerdotisa, os quais seriam de origem dionisíaca, muito se tem discutido. Há os que, simplesmente, os negam. É o caso de Mircea Eliade, que se apoia para tal fato em Plutarco e numa assertiva de Platão. Para Plutarco4, “O deus contenta-se em colocar na Pítia as visões e a luz que iluminam o futuro: nisso consiste o entusiasmo”. Apenas o historiador grego se esqueceu de comentar “como essas visões e essa luz eram colocadas na profetisa”. Não poderiam ser pelo êxtase e pelo entusiasmo? Com respeito a Platão, comenta o autor da História das crenças e das ideias religiosas: “Tem-se falado do delírio pítico, mas nada indica os transes histéricos ou possessões do tipo dionisíaco”. Platão comparava o delírio (maneîsa) da Pítia à inspiração poética devida às Musas e ao arrebatamento amoroso de Afrodite5. Esta opinião do filósofo ateniense colidirá, todavia, com outras do mesmo autor. Com efeito, para os antigos gregos, a manía, a loucura sagrada, alicerçada no êxtase e no entusiasmo, era inseparável de Dioniso. E Platão, em outras passagens, insiste muito nesse ponto. E bem antes dele Eurípides, nas Bacantes, pelos lábios de Tirésias, afirma que Baco e sua mania fazem prever, com certeza, o futuro. A dificuldade maior é explicar a presença de Dioniso em Delfos. Uma presença tão marcante, que, no inverno, quando Apolo se retirava para o país dos Hiperbóreos, o deus do ditirambo reinava soberano no Parnaso, sem, no entanto, se imiscuir pessoalmente no Oráculo. Há os que argumentam que Dioniso deve ter precedido ao filho de Leto em Delfos e, nesse caso, a Pítia seria uma mênade apolinizada, o que justificaria o êxtase e o entusiasmo na mesma, uma vez que é impossível se negar o “parentesco” da manía com a mântica. Tal fato, porém, não implica que o êxtase e o entusiasmo obrigatoriamente desaguem em processo mântico: as Mênades ou Bacantes, embora possuídas da manía báquica, não eram profetisas! Outros opinam que a sizígia de dois deuses antagônicos como Apolo e Dioniso traduziria uma das características básicas do apolinismo: a conciliação e a harmonização dos diversos cultos e ritos helênicos. De outro lado, Dioniso jamais ameaçou Apolo, que sempre se considerou o único e verdadeiro deus oracular da Hélade; o deus do êxtase e do entusiasmo jamais lhe fez concorrência nesse terreno. Dos três filhos divinos dos amores de Zeus (Hermes, Dioniso e Apolo), este último se reservou o direito de ser o autêntico e único intérprete do pensamento de seu pai. Sob esse aspecto, talvez se pudesse compreender a Pitonisa como uma espécie de conciliação ctônio-dionisíaco-apolínea. Seja como for, acreditando-se que a Pítia entrasse em êxtase e entusiasmo, a “técnica” seria dionisíaca, mas o “efeito” era apolíneo. 6 Não menos importante foi, a par da religiosa, a influência político-social do Oráculo de Delfos. Apesar das grandes dissenções internas que sempre grassaram entre os habitantes da Hélade, o Oráculo de Delfos foi durante muitos séculos um oásis nesse deserto de divergências. Como uma espécie de super-Estado neutro, o célebre oráculo foi uma manifestação contínua da unidade espiritual do helenismo: mau grado as lutas fratricidas que sempre enxovalharam a bandeira da unidade política da Grécia, esta procurou manter a qualquer preço a inviolabilidade de Delfos, o que prova que os gregos, a despeito de sua desunião, compreendiam que este centro de poder moral era a coisa mais preciosa que possuíam em comum. E se na Hélade, como todos sabem, jamais existiu união política, uma união muito forte sempre houve: a religiosa. Pois bem, o responsável direto por essa aliança no campo religioso foi o Oráculo de Delfos, que era como um ditador em matéria de crença: legislava, executava e julgava... A par da influência religiosa de Delfos, é incontestável a sua influência política. Não obstante suas tendências aristocráticas, o que vale dizer, suas simpatias por Esparta, bem como as atitudes um pouco equívocas que tomou nas guerras greco-pérsicas, a influência de Delfos foi muito salutar à pátria de Homero. Os sacerdotes apolíneos, homens de vasta cultura e de grande visão política, foram verdadeiros condutores da política interna e externa da Hélade. Graves decisões políticas foram ditadas pelo Oráculo: quer se tratasse da guerra, da paz, da administração interna e sobretudo da expansão sempre crescente do povo grego. Foi graças também a Delfos que a colonização helênica se propagou por todo o Mediterrâneo. Inúmeras colônias se fundaram sob a égide de Apolo, e o mais curioso é que, após o estabelecimento de uma colônia, a influência religiosa e política do Oráculo continuava a manifestar-se em todos os setores da vida interna e externa do novo pedaço da Grécia. Positivamente, não se sabe o que mais admirar: se os conhecimentos geográficos e etnográficos de Delfos, se a prudência e visão com que administravam cidades e colônias, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista religioso. Platão, ao enunciar em sua República, 427b-c, os deveres de um verdadeiro legislador, é a Apolo que aconselha se peçam as leis fundamentais do Estado, porque “esse deus, exegeta nacional, intérprete tradicional da religião, se estabeleceu no centro e no umbigo da Terra, para guiar o gênero humano”. 7 Eram muitas as festas e os locais em que se prestava culto a Apolo, sob múltiplos epítetos, consoante a expressão de Calímaco, 2,70: Πάντη δ'ε τοι οὔνομα πουλύ (pánte dé toi únoma pul×) – por toda parte és invocado com muitos nomes. Vamos nos restringir aos principais. O mais antigo deles na Grécia europeia deve ter sido a ilha de Delos, pois que Leto, antes mesmo do nascimento do filho, prometera que Apolo ergueria na ilha um templo magnífico, onde funcionaria um oráculo para atender a todos os homens (Hh. Ap., I, 79ss.). O “magnífico” Oráculo de Delos, na realidade, foi logo suplantado pelo de Delfos e até mesmo pelos de Claros e Dídimo, ambos na Ásia Menor. O berço de Apolo, contudo, continuou a ser o ponto de reencontro dos jônios, que para lá afluíam anualmente, nas célebres Panegírias (reuniões solenes e festivas) para celebrar Apolo com jogos e coros (Hh. Ap., I, 146ss.). A delegação mais pomposa nas Panegírias, era a de Atenas, cujos Θεωροί (Theoroí), “Teoros” (legados, embaixadores), em número quase sempre de três, presidiam, em nome da Cidade de Atená, à Anfictionia da ilha de Apolo. Nessa ocasião, Atenas enviava a Delos um navio, que se dizia ser o mesmo em que Teseu conduzira a Creta as quatorze vítimas do Minotauro e as livrou do monstro. Enquanto duravam as festividades de Apolo Délfico e a viagem da “nau de Teseu”, nenhum condenado podia ser executado em Atenas, como aconteceu com Sócrates. Estendendo à ilha sagrada essa ânsia de pureza absoluta, os atenienses, em 426 a.C., proibiram que “se nascesse e se morresse” em Delos e até mesmo os restos mortais de antigos habitantes, que lá descansavam, foram transferidos. Somente não se tocou nos sepulcros das Virgens Hiperbóreas, considerados locais de culto. Além de Delos, o deus possuía dois santuários em Atenas, o de Apolo Delfínio e o de Apolo Pítio, tendo sido este último inaugurado solenemente por Pisístrato. Igualmente na Beócia eram dois os seus santuários: o de Apolo Ismênio, em Tebas, um dos mais antigos da Hélade e, perto do lago Copaide, o de Apolo Ptóos. Em Argos era cultuado com o nome de Apolo Lício e, em Esparta, com o de Apolo Carnio. Na Ásia Menor ficaram célebres seus templos de Dídimo, perto de Mileto, e particularmente o de Claros, onde o deus foi associado à sua irmã e vizinha, a Ártemis de Éfeso. Na Grécia setentrional, na costa de Epiro, ou mais precisamente, na ilha Leucádia, Apolo era titular de um templo famoso no píncaro do penhasco branco de Lêucade, Λευκὰς πέτρη (Leukàs pétre), “o rochedo de Lêucade”, como já o denominava Homero, Odiss., XXIV, 11. Era nesse rochedo fatídico que se praticava em tempos recuados o rito ancestral do καταποντισμός (katapontismós), isto é, “lançamento ao mar”, hábito esse que foi amenizado e suavizado na época clássica. A precipitação “histórica” nas ondas do mar, em Lêucade, de uma vítima humana, o conhecido φαρμακός (pharmakós), quer dizer, “o que é imolado pelas faltas dos outros”, o bode expiatório, era um sacrifício que se fazia em benefício da coletividade. Assegurava-se, destarte, a salvação do todo pela imolação de um só ou de um número muito reduzido de pessoas. A partir de uma data difícil de se determinar, talvez lá pelo século VIII a.C., o katapontismós compulsório foi substituído pelo voluntário. Só se lançavam ao mar, do rochedo de Lêucade, os que desejavam uma purificação ou liberação pessoal, um meio, além do mais, seguro, para se libertar de uma paixão amorosa incontrolável. O exemplo mítico que servia de respaldo foi o salto de Safo, loucamente apaixonada pelo jovem Fáon, como se pode ler nas Heroides, XV, de Públio Ovídio Nasão6. O salto de Safo para a morte foi interpretado pela exegese pitagórica, possivelmente criadora dessa lenda biográfica, como derradeiro esforço para se vencer um amor profano, transmutando-o em amor sagrado, ao contato catártico da aura (ar) de Apolo. A prática do sacrifício do φαρμακός (pharmakós) pela comunidade, origem certamente do salto do rochedo de Lêucade, aparece bastante mitigado numa das mais populares e frequentadas festas de Apolo, as Targélias, celebradas em honra do Καθάρσιος (Kathársios), o “Purificador”, não só em Atenas, mas entre todos os jônios. Essas festas solenes realizavam-se nos dias seis e sete do mês Targélion (maio-junho), quando se aguardava a colheita anual. Durante as Targélias se conduziam em procissão ramos de oliveira envoltos em pequenas faxas e se as solenidades terminavam com concursos de canto e música, o dia seis era consagrado às purificações da pólis, com a expulsão espetacular dos φαρμακοί (pharmakoí). Em Atenas eram dois os “bodes expiatórios” humanos: um trazia ao pescoço um colar de figos brancos e outro de figos negros, o que era interpretado como representação dos dois sexos. As vítimas eram perseguidas sem tréguas pela cidade inteira: batia-se nos pharmakoícom ramos de figueira e réstias de cebola, elementos tidos por altamente catárticos. Em seguida se tirava a sorte e uma das vítimas era morta ou expulsa para terras distantes. O alvo desse rito era sempre o mesmo: provocar a fertilidade do solo com o afastamento de todo e qualquer flagelo e resgate de algum “miasma” oculto e ainda não expiado. Outra grande comemoração em honra de Apolo eram as Pianépsias, no dia sete do mês Pianépsion (outubro-novembro), quando se cozinhavam fava, πύανος (p×anos), e outros legumes com farinha de trigo e se oferecia essa panspermía ao deus. Ainda em Atenas o filho de Leto fazia jus a uma terceira festa, as Delfínias, em homenagem a Apolo Delfínio, cujo santuário teria sido obra de Egeu, quando de seu retorno de Delfos, conforme a Medeia de Eurípides, o que poderia explicar como Apolo Delfínio, protetor dos barcos e dos navegantes, foi parar num templo (Delphínion) de Atenas. Em Roma, onde, pelo menos desde os inícios do século IV a.C., já se cultuava o filho de Leto, Apolo acabou por tornar-se o protetor pessoal de Augusto, o primeiro imperador romano, que lhe mandou construir um templo no monte Palatino, bem ao lado do palácio imperial. Quando, no ano 17 a.C., se celebravam os Jogos Seculares, o hino que se cantou, o Carmen Saeculare, Canto Secular, composto por Quinto Horácio Flaco, foi, em grande parte, uma homenagem a Apolo e à sua irmã gêmea Ártemis. A abertura solene do hino não deixa dúvidas a esse respeito: Phoebe siluarumque potens Diana, lucidum caeli decus, o colendi semper et culti, date quae precamur tempore sacro. (Carm. Saec., 1-4) – Febo, e tu, senhora das florestas, Diana, ornamento luminoso do céu, vós sempre adoráveis e sempre adorados, concedei-nos o que deprecamos na data sagrada. 8 Viu-se, no início deste capítulo, que Apolo é o augusto deus sétimo. O sete é, pois, o número do senhor do Oráculo de Delfos, o que não é mera casualidade, pois que o sete se constituía para os antigos numa síntese da sacralidade. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant fazem uma longa dissertação acerca do simbolismo do número em pauta. Vamos tentar resumi-la no que ela tem, a nosso ver, de mais importante. Sete corresponde, de saída, aos sete dias da semana, aos sete planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas celestes, às sete pétalas da rosa, aos sete ramos da árvore cósmica e sacrifical do xamanismo, mas alguns setenários se ampliam e tornam-se símbolos de outros: a rosa de sete pétalas evoca os sete céus e as sete hierarquias angélicas, todos conjuntos perfeitos. Desse modo, sete designa a totalidade das ordens planetárias e angélicas, a totalidade das mansões celestes, a totalidade da ordem moral, a totalidade das energias, sobretudo na ordem espiritual, constituindo-se assim, para os egípcios no símbolo da vida eterna, uma vez que configura um ciclo completo, uma perfeição dinâmica. Cada período do ciclo lunar dura sete dias e os quatro (número também perfeito) períodos do ciclo (4 X 7) fecham o mesmo. O filósofo judaico Fílon de Alexandria (séc. I d.C.) observa, a esse respeito, que a soma dos sete primeiros números (1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7) chega ao mesmo resultado: 28. Sete indica o sentido de uma transformação após um ciclo completo e de uma renovação positiva. Sete não é na Grécia tão somente o número característico de Apolo, pois que surge ainda com frequência em outras denominações: as sete Hespérides, as sete Portas de Tebas, os sete chefes, os sete filhos e sete filhas de Níobe, as sete esferas, as sete cordas da lira... As circumambulações de Meca compreendem sete voltas. O hexagrama, como o Selo de Salomão, desde que se lhe acrescente o centro, torna-se um sete inteiro. A semana (< do baixo latim septimana, 7 dias) possui seis dias ativos e um dia de repouso, figurado pelo centro. No cômputo antigo, o céu tem seis planetas: o sétimo é o sol, que está no centro. O hexagrama, como a palavra indica, tem seis ângulos, seis lados ou seis pontas de estrelas, figurando o centro como sétimo; as seis direções do espaço possuem um ponto mediano ou central, que forma o número sete, donde se conclui que sete simboliza a totalidade do espaço e a totalidade do tempo. Associando-lhe o número quatro, que configura a terra com os quatro pontos cardeais e o três, que representa o céu, sete simboliza a totalidade do universo em movimento. O setenário sintetiza igualmente a totalidade da vida moral, acrescentando às três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, as quatro virtudes cardeais, a prudência, a temperança, a justiça e a força. As setes cores do arco-íris e as sete notas da escala diatônica mostram o setenário como regulador das vibrações, as quais traduziam para muitas tradições primitivas a própria essência da matéria. Sete, já se observou, é o fecho de um ciclo e de sua renovação: Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, transformando-o em dia santificado, donde o sábado não é, na realidade, um repouso exterior à criação, mas seu coroamento, seu fecho na perfeição. É isto que evoca a semana, duração de um quarto lunar. Para o Ismaelismo o sólido possui sete lados, seis faces mais sua totalidade, que corresponde ao sábado. Tudo que existe no mundo é sete, porque cada coisa possui sua ipseidade e seis lados. Os dons da inteligência, afirmam igualmente os Ismaelitas, são sete, seis mais a ghaybat, o conhecimento suprassensível. Desse modo, o arco-íris não possui sete cores, mas seis: a sétima é o branco, síntese das seis outras. Diz S. Clemente de Alexandria que emanam de Deus as seis durações e as seis fases do tempo e nisto consiste o segredo do número sete: o retorno ao Centro, ao Princípio. No fim do desenvolvimento senário completa-se o setenário. Símbolo universal de uma totalidade em movimento ou de um dinamismo total, sete é a chave do Apocalipse, onde aparece quarenta vezes: sete igrejas, sete estrelas, sete Espíritos de Deus, sete selos, sete trombetas, sete trovões, sete cabeças, sete pestes, sete reis. Sete é o número dos céus búdicos. O árabe Ibn Sina (Avicena, 980-1036) descreve os Sete Arcanjos príncipes dos sete céus, que são os Guardiães de Henoc e correspondem aos sete Rishi védicos. Estes habitam as sete estrelas da Grande Ursa com as quais os chineses relacionam as sete aberturas do corpo e as sete aberturas do coração. A lâmpada vermelha das sociedades secretas chinesas tem sete braços como o castiçal dos hebreus. Observe-se que o Ioga conhece igualmente sete centros sutis: os seis chakra e o sahasrârapadma. Quarenta e nove (7 X 7) é o número do Bardo, o estado intermediário que se segue à morte, entre os tibetanos: tal estado dura quarenta e nove dias, divididos, no início ao menos, em sete períodos de sete dias. Acredita-se que as almas japonesas permanecem quarenta e nove dias sobre o teto das casas, o que vem a dar no mesmo. O número sete é empregado com muita frequência na Bíblia: só no Antigo Testamento aparece setenta e sete vezes, constituindo esta cifra, de per si, um número mágico. Temos, assim, no Antigo Testamento, entre outros exemplos: castiçal de sete braços; sete espíritos que repousam sobre o tronco de Jessé; sete são os céus, onde habitam as ordens angélicas; Salomão construiu o Templo em sete anos (1Rs 6,38). Não apenas o sétimo dia, mas também o sétimo ano era de repouso: todos os sete anos os servidores eram liberados, os devedores perdoados. Pela própria transformação, que inaugura, o número sete passa a ter um poder extraordinário: quando da tomada de Jericó, sete sacerdotes, que levavam sete trombetas, deviam, no sétimo dia, dar sete voltas em torno da cidade; Eliseu espirrou sete vezes e a criança ressuscitou (2Rs 4,35). Um leproso se banhou sete vezes no rio Jordão e saiu curado (2Rs 5,14); o justo cairá sete vezes e tornará a se levantar (Pr 24,16). Sete animais puros de cada espécie serão salvos do dilúvio. José sonhou com sete vacas gordas e sete vacas magras. Sete, enfim, é o número querido e preferido da aritmética bíblica. Pelo fato de corresponder ao número dos planetas, sete caracteriza sempre a perfeição, o que a gnose denomina πλήρωμα (pléroma), pleroma, “o que está completo”. A semana tem sete dias em memória do tempo que durou a criação. Se a festa pascal dos pães ázimos cobre sete dias é certamente porque o Êxodo é tido como nova criação, a criação salvadora. Zacarias (3,9) fala dos sete olhos de Deus. Os setenários do Apocalipse de João, como as sete lâmpadas que são os sete espíritos de Deus (o que quer dizer o espírito inteiro de Deus), as sete cartas às sete Igrejas (o que corresponde à Igreja inteira), as sete trombetas, anunciam a execução final da vontade de Deus no mundo. Assim se explica também por que sete é o número de Satã, que tudo faz para imitar e copiar Deus, “o macaco de Deus”. Por isso a besta infernal do Apocalipse tem sete cabeças. João, no entanto, reserva, as mais das vezes, aos espíritos do mal a metade de sete, três e meio, comprovando, dessa maneira, o fracasso total do Maligno, porque, reduzido à metade, suas forças deixam de atuar. O dragão não poderá ameaçar a mulher (a Igreja de Deus) por mais de 1260 dias (Ap 12,6), isto é, três anos e meio. Também em Ap 12,14 se fala de três tempos e meio, para que a mulher fique fora do alcance da serpente. Sete configura o remate do mundo e a plenitude dos tempos. Consoante Santo Agostinho, sete mede o tempo da história, o tempo da peregrinação terrestre do homem. Se Deus elegeu este dia para repousar, é porque Ele queria se distinguir da Criação, ser independente dela e permitir-lhe descansar no próprio Deus. De outro lado, o homem, através do número sete, que indica o repouso, a cessação do trabalho, está convidado a voltar-se para Deus e apenas em Deus descansar. Desse modo, para o Santo de Hipona, seis designa uma parte, porque o trabalho está na parte; só o repouso (sete) significa o todo, porque traduz a perfeição. Nós sofremos, por conhecermos tão somente a parte, sem a plenitude do reencontro com Deus. O que é parte, um dia, se dissipará e o sete há de coroar o seis (De Ciuitate Dei, 11,31). Segundo o Talmude, sete é símbolo da totalidade humana, macho e fêmea, simultaneamente, o que se explica pela adição de quatro e de três: é que Adão, nas horas de sua primeira jornada, recebeu a alma, que lhe deu a existência por completo, à hora quarta e, à hora sétima, recebeu sua companheira, permitindo-lhe desdobrar-se em Adão e Eva. Sem sair da Bíblia, e para terminar esta primeira parte do estudo do sete com ela, porque os exemplos, citações e símbolos bíblicos do sete poderiam ainda se multiplicar por sete vezes sete, vejamos uma quadrinha do folclore nordestino, que é, por sua vez, uma reminiscência de um episódio célebre da Sagrada Escritura (Tb 3,715; 7,1–10,13): Sete vezes fui casada, Sete homens conheci; E juro por fé de Cristo, Inda estou como nasci. Que mulher se teria casado sete vezes e permanecido virgem? Trata-se, obviamente, da história de Sara, filha de Ragüel, de Ecbátana. Sara, conforme o relato bíblico, se casara sete vezes, sem consumar o matrimônio, porque os sete maridos haviam sido mortos, nas sete noites de núpcias, pelo demônio Asmodeu, que habitava o corpo da linda filha de Ragüel. Exorcizado por Tobias, Asmodeu tentou fugir, mas foi acorrentado pelo anjo do Senhor e levado para os desertos do alto Egito. Após três noites de oração, Sara e Tobias consumaram em paz e no amor seu casamento. Tudo isto aconteceu sete séculos antes de Cristo! 9 Paramos em Tobias e em seu grande amor por Sara. Vejamos, agora, se bem que resumidamente, o símbolo de uma ave que é exatamente a grande integração do amor. Tão logo nasceu, Apolo foi levado para o país dos Hiperbóreos por cisnes de uma brancura imaculada. Da Grécia à Sibéria, da Ásia Menor aos povos eslavos e germânicos, um vasto conjunto de mitologemas celebra o Cisne, cuja brancura, vivacidade e graça se constituem numa verdadeira epifania da luz. Mas, assim como existem duas colorações para o cisne, a branca e a negra, de duas maneiras igualmente se nos apresenta a luz: a do dia, solar e masculina, e a da noite, lunar e feminina. Na medida em que encarna uma ou outra, o simbolismo da ave de Febo Apolo inflete numa ou noutra direção. Sintetizando as duas, o que é frequente, o cisne se torna andrógino, carregando-se mais ainda de mistério sagrado. Um conto, de cunho popular e com inúmeras variantes, comum aos povos altaicos, eslavos, escandinavos e iranianos, mostra, com muita clareza, os dois lados do símbolo7. Certa feita, um caçador surpreendeu três jovens lindíssimas que se banhavam num lago solitário. Eram três cisnes, que se haviam despido de seu manto de plumas para entrar na água. O astuto caçador escondeu uma das “indumentárias”, o que lhe permitiu desposar uma das jovens. Este cisne fêmea, após lhe dar onze filhos e seis filhas, retomou sua plumagem e alçou voo em direção ao céu, dizendo ao caçador as seguintes palavras: “Vocês, seres terrestres, permanecerão na terra; eu, porém, pertenço ao céu e para lá voltarei. Cada ano, na primavera, quando virem os cisnes passar, voando em direção ao norte e, no outono, regressando ao sul, comemorem nossa passagem com cerimônias especiais”. Numa variante, entre os povos altaicos, o cisne fêmea é substituído pela gansa, como o poderia ser pela gaivota ou pomba, tantos são os avatares do cisne. Neste e em outros contos, a ave da luz, de beleza fascinante e imaculada, configura a virgem celeste, que será fecundada pela água ou pela terra – o lago ou o caçador –, para dar origem ao gênero humano, deixando a luz celeste, neste caso, de ser masculina e fecundante, para tornar-se feminina e fecundada. A hierogamia egípcia Terra-Céu é significativa a esse respeito: Nut, deusa do Céu, é fecundada por Geb, deus da Terra. Trata-se, no caso, da luz lunar, leitosa e doce, de uma virgem mítica. Mas é sobretudo na luz pura da Hélade que o cisne, companheiro inseparável de Apolo, encarna com mais frequência a luz masculina, solar e fecundante. Se Apolo é também, como se viu, e em grau superlativo, o deus das Musas e da mântica, o cisne é símbolo da força do poeta e da poesia, o emblema do vate inspirado, a insígnia do sacerdote sagrado, do druida vestido de branco, do bardo nórdico... O mito de Zeus e Leda, comentado no Vol. I, p. 118-119, à primeira vista, retoma a interpretação masculina e diurna do simbolismo do cisne, mas examinando o mitologema um pouco mais de perto, pode se chegar a uma outra conclusão, o que bem patenteia a complexidade do mito e de seus símbolos... Zeus, nos diz o mito, só se transformou em cisne, para conquistar Leda, depois que esta, para fugir-lhe, se metamorfoseou em gansa. A gansa, já se falou, é um avatar do cisne em sua acepção lunar e fêmea. Os amores de Zeus-cisne e Leda-gansa representam, assim, uma bipolarização do símbolo, o que leva a pensar que os gregos, fundindo as duas acepções diurna e noturna, fizeram do cisne um símbolo hermafrodito, em que Zeus e Leda são a mesma personagem. Para Bachelard8, “a imagem do cisne é hermafrodito. O cisne é feminino na contemplação das águas luminosas e é masculino na ação. Para o inconsciente, a ação é um ato”. A imagem do cisne tornase, então, para Bachelard como a do Desejo, que busca a fusão das duas polaridades do mundo, manifestadas em suas duas luminárias, o sol e a lua. Pode-se, destarte, interpretar o canto do cisne como as palavras quentes e eloquentes do amante, antes daquele momento tão fatal à exaltação que é verdadeiramente a morte amorosa. O cisne morre cantando e canta morrendo, convertendo-se, de fato, no símbolo do desejo primeiro, que é o desejo sexual. O canto do cisne parece estar latente na cadeia simbólica luzpalavra-sêmen, de acordo com a aproximação que faz Jung do radical sven, do sânscrito svan, “murmurar”, chegando à conclusão de que o canto do cisne (Schwan), ave solar, é tão somente a manifestação mítica do isomorfismo etimológico da luz e da palavra. No Extremo Oriente, o cisne é ainda símbolo de nobreza, de elegância e de coragem. Símbolo também da música e do canto, enquanto a gansa selvagem, cuja desconfiança se conhece bem, o é da prudência. Da gansa se serve o I Ching para indicar as etapas de uma progressão circunspecta, uma progressão, claro está, suscetível de uma interpretação espiritual. O cisne e a gansa, porém, não se distinguem com nitidez na iconografia hindu, de tal modo que o cisne (hamsa) de Brahma, que lhe serve de montaria, possui o aspecto da gansa. Aliás, o parentesco etimológico de hamsa, cisne e do latim anser, ganso, parece claro. Hamsa, montaria de Varuna, é ave aquática, mas, enquanto montaria de Brahma, é símbolo de elevação do mundo informal para o céu do conhecimento. O simbolismo do cisne além disso está ligado ao ovo do mundo, que ele põe ou choca, como a gansa do Nilo, no Egito antigo; a hamsa chocando Brahmanda nas águas primordiais da tradição hindu e ao ovo de Leda e Zeus, de que nasceram os imortais Pólux e Helena (V. Helena, o eterno feminino). O cisne participa igualmente da simbólica da alquimia, uma vez que a ave de Apolo sempre foi considerada como emblema do mercúrio, de que participa pela cor, pela mobilidade e pela volatilidade, configurada em suas asas. O cisne expressa um centro místico e a união dos opostos (água – fogo), em que se encontra seu valor arquetípico de andrógino. O canto do cisne configura o mercúrio, que, condenado à morte e à decomposição, transmite sua alma ao corpo interno, proveniente do metal imperfeito, inerte e dissolvido. Foi numa homenagem diáfana ao canto do cisne, à sizígia indissolúvel do amor, a arte que faz que cada um seja ambos, que o poeta fluminense de Bom Jardim, Júlio Mário Salusse, nos deixou o lindíssimo soneto, Os Cisnes: A vida, manso lago azul algumas Vezes, algumas vezes mar fremente, Tem sido para nós constantemente Um lago azul sem ondas, sem espumas. Sobre ele, quando, desfazendo as brumas Matinais, rompe um sol vermelho e quente, Nós dois vagamos indolentemente, Como dois cisnes de alvacentas plumas. Um dia um cisne morrerá, por certo: Quando chegar esse momento incerto, No lago, onde talvez a água se tisne, Que o cisne vivo, cheio de saudade, Nunca mais cante, nem sozinho nade, Nem nade nunca ao lado de outro cisne! 1. Hélio, em grego Ἤλιος Hélios), da raiz indo-europeia *sawélios, “o que brilha”, é a personificação do Sol. Hélio, o Sol, pertencia à geração dos Titãs, portanto um deus anterior aos Olímpicos. Filho de Hiperíon e Teia, tinha por irmãos a Eos (Aurora) e Selene (Lua), como se apontou no Vol. I, p. 165-166 e 283. Casou-se com Perseis, filha de Oceano e Tétis. Foi pai da grande mágica Circe; de Eetes, rei da Cólquida; de Pasífae, mulher do rei Minos, e de Perses, que destronou a Eetes, mas acabou sendo morto pela sobrinha Medeia, quando esta retornou da Grécia. Hélio era representado como um jovem de grande beleza, com a cabeça cercada de raios, como se fora uma cabeleira de ouro. Percorria o céu num carro de fogo tirado por quatro cavalos de extraordinária velocidade: Pírois, Eoo, Éton e Flégon, nomes que traduzem fogo, chama e brilho. Cada manhã, precedido pelo carro da Aurora, o deus avançava impetuosamente por um itinerário que passava pelo meio do céu, chegando, à tarde, ao Oceano (poente), onde banhava seus cavalos fatigados. Repousava num palácio de ouro e, pela manhã, recomeçava seu trajeto diário. O itinerário de Hélio, porém, sob a terra ou sobre o Oceano, que a cercava, foi substituído, com os progressos da astronomia grega, pelo itinerário de Febo Apolo, bem mais longo, através da abóbada celeste, mas bem mais correto. Tendo perdido “o caminho”, Hélio tornou-se uma divindade secundária no Panteão helênico e, o mais tardar, a partir de Ésquilo, foi substituído por Febo Apolo. Hélio é considerado no mito grego como o olho do mundo, aquele que tudo vê. 2. .Quirão, em grego Χείρων(Kheíron), nome que é, possivelmente, uma abreviatura de χειροθρυγός (kheirurgós), “que trabalha ou age com as mãos”, cirurgião, pois que esse Centauro foi um grande médico, que sabia muito bem compreender seus pacientes, por ser um médico ferido. Filho do deus Crono e de Fílira, pertencia à geração divina dos Olímpicos. Pelo fato de Crono ter-se unido a Fílira sob a forma de um cavalo, o Centauro possuía dupla natureza: equina e humana. Vivia numa gruta, no monte Pélion, e era um gênio benfazejo, amigo dos homens. Sábio, ensinava música, arte da guerra e da caça, a moral, mas sobretudo a medicina. Foi o grande educador de heróis, entre outros, de Jasão, Peleu, Aquiles e Asclépio. Quando do massacre dos Centauros por Héracles, Quirão, que estava ao lado do herói e era seu amigo, foi acidentalmente ferido por uma flecha envenenada do filho de Alcmena. O Centauro aplicou unguentos sobre o ferimento, mas este era incurável. Recolhido à sua gruta, Quirão desejou morrer, mas nem isso conseguiu, porque era imortal. Por fim, Prometeu, que nascera mortal, cedeu-lhe seu direito à morte e o Centauro então pôde descansar. Conta-se que Quirão subiu ao céu sob a forma da constelação do Sagitário, uma vez que a flecha, em latim sagitta, a que se assimila o Sagitário, estabelece a síntese dinâmica do homem, voando através do conhecimento para sua transformação, de ser animal em ser espiritual. Para a etimologia veja-se ainda o Dicionário mítico-etimológico. 3. .ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 107. 4. .PLUTARCO. Pítia, 7,397. 5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 104s. 6. Epistulae, Cartas, ou como foram chamadas mais tarde Heroidum Epistulae, Cartas de Heroínas, ou ainda simplesmente Heroides, Heroides, são vinte e uma cartas de amor, dirigidas por heroínas a seus amados e por estes àquelas, em forma de resposta (Cartas XVI, XVIII e XX). Veja-se o Prefácio que fizemos à excelente edição das Heroides, do Prof. Walter Vergna. Rio de Janeiro: Granet Lawer, 1975. 7. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 332ss. 8. BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 52. CAPÍTULO IV Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e do entusiasmo 1 DIONISO, em grego Διόνυσος (Diónysos), é palavra ainda sem etimologia definida. Talvez o teônimo seja um composto do genitivo Διο(ς) – (Dio(s) – nome do céu em trácio e de Νῦσα (Nysa), filho, donde Dioniso seria “o filho do céu”. Quanto a Baco, em grego Βάκχος (Bákkhos) e seus vários derivados, como Βάκχη (Bákkhe), Bacante e o verbo βακχεύειν (bakkheúein) “ser tomado de um delírio sagrado”, também não possuem um étimo seguro. A tentativa de Carnoy1 de fazer “eclodir” Dioniso de um elemento διο (dio-), “céu” e de nuzo, do indo-europeu * sneudh, “escorrer”, por ser Dioniso “o deus da seiva úmida que circula nas plantas” é francamente voltar à Volksetymologisch... V. Dicionário mítico-etimológico, verbete. Trata-se, sem dúvida, de dois nomes importados, provavelmente da Trácia. Quanto a Baco, deus grego e não romano (o latim Bacchusque, à época da helenização de Roma e do sincretismo religioso greco-latino, suplantou oLiberdos latinos, é mera transliteração do grego Bákkhos); quanto a Baco, repetimos, que não aparece em Homero, Hesíodo, Píndaro e Ésquilo, somente surgiu na literatura grega no século V a.C., a partir de Heródoto e sobretudo no Édipo Rei de Sófocles, v. 211. Três outros epítetos de Dioniso, Iaco, Brômio e Zagreu merecem igualmente um ligeiro comentário, Iaco, em grego Ἵακχος (Íakkhos), é um avatar de Dioniso. Via-se nele o deus que conduzia a procissão dos Iniciados nos Mistérios de Elêusis e que era identificado misticamente com Baco. Etimologicamente, Iaco provém de ἰακχή (iakkhé), “grande grito”. Trata-se, em princípio, de uma exclamação ritual, de que nasceu a ideia da presença, no cortejo dos Iniciados, de um daímon(gênio), o místico Iaco (o Iaco dos Mistérios), que projetava, de certa forma, a alma coletiva e a expressão do entusiasmo de que era tomada, como antegozo da iniciação, a multidão dos peregrinos em marcha para Elêusis. Daímon de Deméter, Iaco era o arkheguétes, o introdutor dos mistérios, como o denomina, com justiça, Estrabão. Na comédia de Aristófanes, As Rãs, 316ss., o Coro dos Iniciados continua a invocá-lo na outra vida, como seu guia e corifeu. BRÔMIO, em grego Βρόμιος (Brómios), é um dos epítetos mais frequentes de Dioniso nos hinos que imitam os cantos litúrgicos, entoados em seu culto. Do ponto de vista etimológico, Βρόμιος (Brómios) se prende a βρόμος (brómos), “estremecimento, frêmito, ruído surdo e prolongado”, cuja fonte é o verbo βρέμειν (brémein), “fremir, agitar-se”, donde Brômio é o “ruidoso, o fremente, o palpitante”, significação que se harmoniza perfeitamente com a agitação e o tremor, acompanhados de estertores e surdos rugidos, que assinalavam o estado de transe com a presença do deus que se apossou de seus adoradores. ZAGREU, em grego Ζαγρεύς (Dzagreús), é um dos nomes pelos quais é chamado o deus do êxtase e do entusiasmo no mundo mediterrâneo e particularmente, ao que parece, na ilha de Creta. Talvez o deus designe uma divindade, que, por força de analogias de seu culto com o de Dioniso, com este se tenha confundido, em época difícil de se precisar. Tendo-se tornado um dos nomes de Dioniso místico e, tendo permanecido religiosamente mais fiel ao Dioniso arcaico do antigo mundo insular, jamais se assimilou de todo ao “segundo Dioniso”, que, conforme se verá, era filho de Sêmele. A etimologia, já familiar aos antigos, do nome de Zagreu, como Grande Caçador, tão defendida por Wilamowitz, é de cunho popular. O deus, possivelmente, de origem oriental, é chamado Zagreu sobretudo na Ásia Menor e em Creta. E se Zagreu, como epíteto, raramente aparece em textos da época clássica, seu nome, todavia, já é atestado desde o século VI a.C. Ésquilo, em fragmentos de algumas de suas peças perdidas, faz de Zagreu o equivalente de Hades ou Plutão, ou mesmo seu filho, mas Eurípides o menciona entre as divindades cultuadas por confrarias religiosas que ele supõe terem existido desde a época de Minos e cujos membros formam o coro de sua tragédia Os Cretenses. Esse Grande Caçador é um Caçador noturno: o coro da tragédia citada dá-lhe o epíteto de nyktipólos, “noctívago”, o mesmo que empregara Heráclito para designar os seguidores de Dioniso. A menção da omofagia, a alusão ao orgiasmo e ao culto da Grande Mãe, a qualificação de boieiro permitem adiantar que Eurípides situava Zagreu numa atmosfera religiosa intencionalmente dionisíaca. Fundindo os dois, os Órficos hão de fazer de Zagreu o primeiro Dioniso. 2 Dioniso é o deus da μεταμόρφωσις (metamórphosis), quer dizer, o deus da transformação. Antes de chegarmos lá, uma ligeira explicação de ordem histórica. Até a década de 1950, muitos pensavam e escreviam que Dioniso, deus importado, possivelmente da Trácia, havia chegado à Hélade quando muito lá pelo século IX a.C., uma vez que seu primeiro aparecimento teria sido na Ilíada, VI, 130-140, no famoso episódio de Licurgo, narrado por Diomedes. Este herói conta como Licurgo, filho de Drias e rei dos edônios, na Trácia, perseguiu a Dioniso e as suas nutrizes sobre o monte Nisa2. Estas lançaram por terra seus tirsos e fugiram; o deus, ainda adolescente, mas já possuído da loucura sagrada, damanía, apavorado com as ameaças do rei, lançou-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis. Os deuses, todavia, se encarregaram da vingança e Zeus cegou ao rei dos edônios. Diga-se, logo, que a perseguição a Dioniso, sob a perspectiva mítica, faz parte de um rito iniciático e catártico: a purificação pela água. Este é um dos temas bem atestados em quase todas as culturas primitivas. O episódio da perseguição aparece em determinados momentos das festas e cerimônias a que o filho de Sêmele presidia. Plutarco, falando das Agriônias, festas “selvagens e cruéis” em honra de Dioniso, em Orcômeno, na Beócia, informa que, durante as mesmas, uma das Miníades3 (as primeiras Mênades ou Bacantes da tradição local) era sacrificada (simbolicamente, ao menos na época histórica) pelo sacerdote do deus. Dioniso e seu séquito corriam, perseguidos pelo sacerdote, em direção a um rio. Trata-se, como é óbvio, de uma alusão a alguma prática de banho ritual, como preliminar ou conclusão de uma cerimônia religiosa. Já se viu, no Vol. I, p. 316, como os Iniciados, de modo tumultuoso, se dirigiam ao mar para se purificarem, antes das cerimônias que se realizariam pouco depois em Elêusis. Um mito da cidade tebana de Tanagra, conservado por Pausânias, atesta que as mulheres tinham por hábito purificar-se no mar, antes de se entregarem às orgias báquicas. A perseguição de Dioniso por Licurgo insere-se e sintetiza, de outro lado, a perseguição à vítima sacrifical, rito em que o deus se apresenta, por vezes, em forma de touro ou de bode. Foi assim que Penteu, vítima da μανία (manía), da loucura sagrada, como se há de assinalar, desejando acorrentar o deus, o vê sob a forma de touro, que não é outra coisa senão o próprio Dioniso dissimulado pela máscara: Tu, que me guias, parece que tens um aspecto de touro. Creio que nasceram cornos em tua cabeça. Eras, anteriormente, um animal feroz? Eis que te transformaste em touro! (Eur. Bacantes, 920-922) As perseguições a Dioniso pelos piratas etruscos ou por Perseu, que, com seus soldados, precipitou o deus e suas “mulheres-do-mar” no fundo do pântano de Lerna, se inscrevem na mesma linha de raciocínio. Se, porém, se analisar a perseguição de Licurgo e de Penteu sob um ângulo mais político, poder-se-á ver em ambas, e a esse respeito se falará um pouco mais adiante, uma séria e longa oposição à penetração do culto de Dioniso na pólis aristocrática da Grécia antiga. Viu-se que o deus do êxtase e do entusiasmo, até mais ou menos a década dos anos 1950, era considerado como uma divindade que chegara tardiamente à Hélade. Pois bem, a partir de 1952, as coisas se modificaram: é que a decifração de uma parte dos hieróglifos cretomicênicos por Michael Ventris, segundo se mostrou no Vol. I, p. 54, ou mais precisamente, a decifração da Linear B, consoante a classificação de Arthur Evans, demonstrou que o deus já estava presente na Hélade, pelo menos desde o século XIV ou XIII a.C., conforme atesta a tableta X de Pilos. Há de se perguntar por que um deus tão importante, já documentado no século XIV, só se manifesta e de forma aparentemente grotesca, no século IX, e só a partir dos fins do século VII a.C. tem sua entrada solene na mitologia e na literatura? É quase certo que o adiado aparecimento de Dioniso e sua tardia explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a causas políticas. Por agora, porque se voltará ao assunto, apenas a epígrafe: Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo o filho de Sémele era uma séria ameaça à pólisaristocrática, à pólisdos Eupátridas, ao status quovigente, cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos. 3 Um deus importado não penetra na Grécia sem um batismo de ordem mítica. Consoante o sincretismo órfico-dionisíaco, dos amores de Zeus e Perséfone nasceu o primeiro Dioniso, chamado mais comumente Zagreu. Preferido do pai dos deuses e dos homens, estava destinado a sucedê-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o contrário. Para proteger o filho dos ciúmes de sua esposa Hera, Zeus confiou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o esconderam nas florestas do Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro do jovem deus e encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. Com o rosto polvilhado de gesso, a fim de não se darem a conhecer, os Titãs atraíram o pequenino Zagreu com brinquedos místicos: ossinhos, pião, carrapeta, “crepundia” e espelho. De posse do filho de Zeus, os enviados de Hera fizeram-no em pedaços; cozinharam-lhe as carnes num caldeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram os homens, o que explica no ser humano os dois lados: o bem e o mal. A nossa parte titânica é a matriz do mal, mas, como os Titãs haviam devorado a Dioniso, a este se deve o que existe de bom em cada um de nós. Na “atração, morte e cozimento” de Zagreu há vários indícios de ritos iniciáticos. Diga-se, logo, que, sendo um deus, Dioniso propriamente não morre, pois que o mesmo renasce do próprio coração. A morte, desse modo, não afeta a imortalidade do filho de Zeus, donde provém, certamente, sua identificação com Osíris o “morto imortal” (Heród., 2,42; Plut., Ísis e Osíris, 35,364 F) e com o imortal deus da morte, Plutão (Heráclito, frag. 15). Destarte, a “morte” de Dioniso nada mais é que uma catábase seguida, de imediato, de uma anábase. De saída, cobrir o rosto com pó de gesso ou com cinzas é um rito arcaico de iniciação: os neófitos, como assinala Mircea Eliade4, cobriam as faces com pó de gesso ou cinza para se assemelharem aos eídola, aos fantasmas, o que traduz a morte ritual. Em Atenas, durante os mistérios de Sabázio, “este outro Dioniso”, um dos ritos iniciáticos consistia em aspergir os neófitos com pó ou com gesso. Demóstenes (384-322 a.C.), o maior orador da Hélade, em seu universalmente famoso discurso, A Oração da Coroa, 259, desdenha de seu adversário Ésquines, afirmando que o mesmo, para ajudar a mãe, que se ocupava de magia, ungia os iniciados com argila e farelo. Diga-se, aliás, de passagem, que, por etimologia popular, se associou τίτανος (títanos), “gesso”, com Τιτᾶνες (Titânes), “Titãs”, o que de qualquer forma patenteia o complexo místico-ritual. Quanto aos brinquedos, que são verdadeiros símbolos de iniciação, demarcando a idade infantil, por oposição aos sofrimentos da adolescência, que àquela se seguem, são atestados em muitas culturas. As crepundia, quer dizer, argolas de marfim ou pequenos chocalhos, que se colocavam no pescoço das crianças, os ossinhos e o pião tinham um sentido preciso: não existe teleté, isto é, cerimônia de iniciação, sem “determinados ruídos”. Um deus se atraía e se atrai com flauta e tambores... Acrescente-se também que crepundia e ossinhos possuíam um decisivo poder apotropaico, pois repeliam influências malignas e demoníacas. Lúcio Apuleio, nascido por volta de 125 d.C., que foi um verdadeiro colecionador de iniciações no segundo século de nossa era e que se vangloriava de ser iniciado nos mistérios de Dioniso, fala de objetos misteriosos, usados por iniciados: a esses objetos o escritor dá o nome de crepundia. O espelho, a partir do qual, especulando, vemos o que somos e o que não somos, objeto muito comum em ritos iniciáticos, tem, entre muitas finalidades que se lhe atribuem, a de captar com a imagem, que nele se reflete, a alma do refletido. Olhando-se no espelho, Zagreu tornouse presa fácil dos Titãs... O dado central do mito foram o desmembramento do menino divino e seu cozimento num caldeirão. Trata-se de um assunto mítico com muitas versões e inúmeras variantes, mas, ao menos na Grécia, todas convergem para um tema comum. Jeanmaire, em sua obra monumental5, lembra que a cocção, sobretudo num caldeirão, ou a passagem pelas chamas constitui uma operação mágica, um rito iniciático, que visam a conferir um rejuvenescimento; especialmente, em se tratando de uma criança, o rito tem por objetivo outorgar virtudes diversas, a começar pela imortalidade. Viu-se, a esse respeito, no Vol. I, p. 308-310, a tentativa de Deméter de imortalizar Demofonte. Tétis submeteu Aquiles a idêntica cerimônia. As filhas de Pélias, a conselho da mágica Medeia, cortam o pai em pedaços e põem-no a cozer num caldeirão, com o fito de rejuvenescê-lo. Acentua Mircea Eliade que “os dois ritos – desmembramento e cocção ou passagem pelo fogo – caracterizam as iniciações xamânicas. De fato, os Titãs comportam-se como Mestres de iniciação, no sentido de que matam o neófito, a fim de fazê-lo “renascer” numa forma superior de existência”.6 Plutarco (De Iside et Osiride – Acerca de Ísis e Osíris, 35), falando do caráter iniciático dos ritos dionisíacos em Delfos, quando as mulheres celebravam o renascimento do filho de Sêmele, afirma que o cesto délfico “continha um Dioniso desmembrado e prestes a renascer, um Zagreu” e esse Dioniso “que renascia como Zagreu era ao mesmo tempo o Dioniso tebano, filho de Zeus e de Sêmele”. É que, de fato, Zagreu voltou à vida. Atená, outros dizem que Deméter, salvou-lhe o coração que ainda palpitava. Engolindo-o, a princesa tebana Sêmele tornou-se grávida do segundo Dioniso. O mito possui muitas variantes, principalmente aquela segundo a qual fora Zeus quem engolira o coração do filho, antes de fecundar Sêmele. A respeito de Sêmele diga-se logo que se trata de uma avatar de uma Grande Mãe, que, decaída, porque substituída em função de grandes sincretismos operados no seio da religião grega, se tornou uma simples princesa tebana, irmã de Agave, Ino e Autônoe, todas filhas do legendário herói do ciclo tebano, Cadmo, e de Harmonia. A etimologia de Σεμέλη (Seméle) e de Semelo, frígio ζεμελῶ (dzemelô), postulada por P. Kretschmer, como oriunda do tracofrígio, com o significado de “terra”, é hoje normalmente aceita. Tendo, pois, engolido o coração de Zagreu ou fecundada por Zeus, Sêmele ficou grávida do segundo Dioniso. Hera, no entanto, estava vigilante. Ao ter conhecimento das relações amorosas de Sêmele com o esposo, resolveu eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa tebana, aconselhou-a a pedir ao amante que se lhe apresentasse em todo o seu esplendor. O deus advertiu a Sêmele de que semelhante pedido lhe seria funesto, uma vez que um mortal, revestido da matéria, não tem estrutura para suportar a epifania de um deus imortal. Mas, como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais contrariar-lhe os desejos, Zeus apresentou-se-lhe com seus raios e trovões. O palácio da princesa se incendiou e esta morreu carbonizada. O feto, o futuro Dioniso, foi salvo por gesto dramático do pai dos deuses e dos homens: Zeus recolheu apressadamente do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação normal. Tão logo nasceu o filho de Zeus, Hermes, o recolheu e levou-o, às escondidas, para a corte de Átamas, rei beócio de Queroneia, casado com a irmã de Sêmele, Ino, a quem o menino foi entregue. Irritada com a acolhida ao filho adulterino do esposo, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou seu filho caçula, Melicertes, num caldeirão de água fervendo, enquanto Átamas, com um venábulo, matava o mais velho, Learco, tendo-o confundido com um veado. Ino, em seguida, atirou-se ao mar com o cadáver de Melicertes e Átamas foi banido da Beócia. Temendo novo estratagema de Hera, Zeus transformou o filho em bode e mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que lá habitavam numa gruta profunda. Dois fatos aqui expostos chamam logo a nossa atenção. O primeiro deles é a tenaz perseguição da ciumenta Hera contra o filho de Sêmele e o segundo, a morte de Sêmele pelo fogo e a coxa de Zeus como segundo ventre de Dioniso. Quanto ao primeiro, é suficiente lembrar que a inimizade entre o deus do êxtase e do entusiasmo e a rainha dos deuses era um fato consumado no mito grego. Através de um fragmento de Plutarco, concernente às antigas festas beócias das Δαίδαλα (Daídala), “Dédalas”, em honra de Hera, ficamos sabendo que, em Atenas, e possivelmente na Beócia, se evitava cuidadosamente todo e qualquer contato entre os objetos que pertenciam ao culto de Hera e aqueles pertencentes ao de Dioniso. Até mesmo as sacerdotisas das duas divindades não se cumprimentavam. A verdadeira muralha que separava os dois cultos era certamente consequência das características muito diferentes desse par antitético: de um lado, Hera, a teleia, a saber, a protetora dos casamentos, de outro, Dioniso, o deus das orgias, dos “desregramentos”. O mais sério é que tanto as orgias báquicas como as práticas coletivas das mulheres de Plateias, em homenagem a Hera Teleia, tinham por cenário o monte Citerão, o que inevitavelmente contribuía para açular os ânimos dos adeptos de uma e de outra divindade e aumentar a tradicional rivalidade entre os dois imortais do Olimpo. O segundo fato é a morte trágica de Sêmele e o nascimento de Dioniso, da coxa de Zeus. Até mesmo à época tardia, Dioniso ainda era chamado Pyriguenés, Pyrísporos, quer dizer, “nascido ou concebido do fogo”, a saber, do raio. O próprio nome do deus parece estar ligado a uma filiação com o deus celeste indo-europeu Ζεύς (Dzeús), Zeus, genitivo Διός (Diós), que apareceria no primeiro elemento do composto Dioniso. Reunindo estas simples indicações, pode-se tentar reconstruir um mito naturalista elementar: a Terra-Mãe (Sêmele) fecundada pelo raio celeste do deus do Céu (Zeus), gerou uma divindade, cuja essência se confunde com a vida que brota das entranhas da terra. Acontece, no entanto, que, no mito tradicional, Sêmele não é mais uma Grande Mãe, e sim uma princesa tebana, uma simples mortal. O raio de Zeus, que fulminou a mãe de Dioniso, embora possa ser interpretado como sinal de um hieròsgámos, que liga duas entidades míticas, o deus Céu e a deusa Terra, no caso em pauta perde todo o seu conteúdo, porque se trata da união, clandestina por sinal, do deus supremo com uma virgem mortal. O mito, por isso mesmo, foi inteiramente refundido: enganada pela astúcia da ciumenta Hera e desejosa de responder, à altura, aos gracejos de suas irmãs, que não acreditavam estivesse ela grávida de um deus, Sêmele concebeu o projeto louco de pedir a Zeus que se lhe apresentasse em todo o esplendor de sua majestade divina. A vaidosa princesa tebana sucumbiu fulminada e fez que o filho nascesse precocemente. Esse nascimento prematuro da criança teve por finalidade conferir a Dioniso uma divindade que a simples ascendência paterna não lhe poderia outorgar. No mito grego é de regra que a união de deuses e de mulheres mortais gere normalmente um varão, dotado de qualidades extraordinárias, de areté e timé, mas partícipe da natureza humana, donde um mero ser mortal. Salvo por Zeus e completada a gestação na coxa divina, Dioniso será uma emanação direta do pai, donde um imortal, figurando a coxa do deus como o segundo ventre de Dioniso, tal qual o foi a cabeça do mesmo Zeus em relação a Atená. Esse tipo de nascimento talvez se reporte ao simbolismo de adoção paterna, à reminiscência de um rito de “choco” ou à persistência de lembrança de algum mito fundamentado num ancestral andrógino. No tocante ao simbolismo geral da coxa, é bastante lembrar que, por sua função no corpo como suporte móvel, ela traduz igualmente a força, que a Cabala compara com a firmeza de uma coluna. A coxa de Zeus, em cujo interior Dioniso operou uma segunda gestação, tem um significado evidentemente sexual e matrilinear. Consoante o esquema clássico dos ritos iniciáticos, o mito quer significar que o detentor de um dos mais célebres cultos da Antiguidade grega recebeu sua educação iniciática ou “segunda gestação” na coxa de um deus supremo, que pode, no caso em pauta, ser considerado como um andrógino inicial. Coxa, no duplo nascimento de Dioniso, seria um mero eufemismo para designar o ventre materno. De qualquer forma, esse deus nascido duas vezes foi uma divindade muito poderosa, talvez porque compartilhasse do úmido e do ígneo. Com efeito, participante, por natureza, do elemento úmido, o filho de Zeus sempre manteve íntima convivência com o elemento ígneo. Sófocles, em Édipo Rei, 209-215, pede-lhe que venha com suas tochas ardentes pôr cobro à peste lançada por Ares contra Tebas: Invoco ainda o deus da tiara de ouro, epônimo deste país, Baco dos evoés, de rosto tinto de vinhaço, para que, sem seu cortejo das Mênades, avance em nosso socorro, com sua tocha ardente, contra o deus que entre os deuses ninguém adora. Nas Bacantes, 145-150, Eurípides, através do Coro, o invoca como deus das tochas de chama ardente. Na realidade, é ao clarão das tochas que se celebram suas orgias noturnas e só quando se via o tremeluzir dos fachos sobre as montanhas é que se acreditava na presença de Dioniso à frente de seu tíaso. Já na llíada e Odisseiase diz que o corisco possuía um odor sulfurosoe a palavra pela qual se designa enxofre, θεῖον (theîon), é a mesma que expressa o divino, isto é, θεῖον (theîon), em sua essência mais geral. O local, onde caía um raio, era posse do divino. Nascido da coxa de Zeus, Dioniso se tornou tão poderoso, que desceu até o fundo do Hades para de lá arrancar sua mãe Sêmele, conferir-lhe a imortalidade (o que mostra ter sido Sêmele um dos avatares da deusa terra), mudar-lhe o nome para Θνώνη (Thyóne), Tione, e com ela escalar o Olimpo. Viu-se que o filho de Zeus foi levado para o monte Nisa e entregue aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Pois bem, lá, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se entrelaçavam galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o jovem deus. Certa vez, ele, ainda adolescente, colheu alguns desses cachos, espremeu-lhes as frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte. Todos ficaram então conhecendo o novo néctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros, Ninfas e o próprio filho de Sêmele começaram a dançar vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo a Dioniso por centro. Embriagados do delírio báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos. Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em Atenas e por toda Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de Baco, se embriagavam e começavam a cantar e a dançar freneticamente, à luz dos archotes e ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. Esse desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os “devotos do vinho” e do deus se embriagarem de êxtase e de entusiasmo, cujo sentido bem como as consequências se explicitarão mais adiante. 4 Deixemos, por agora, o mito e voltemos ao deus da vegetação, ao deus dos campônios. Dioniso somente fez seu aparecimento solene e “oficial” na pólis, de Atenas, assim como na literatura grega e, por conseguinte, na mitologia, a partir do século VI a.C. Por que tão tardiamente, se, como se disse, o filho de Zeus e Sêmele já aparece “atestado” lá pelo século XIV a.C.? A explicação não parece difícil. Dioniso é um deus essencialmente agrário, deus da vegetação, deus das potências geradoras e, por isso mesmo, permaneceu por longos séculos confinado no campo7. É que Atenas, até os fins do século VII a.C., foi dominada pelos Eupátridas, os bem-nascidos, os nobres, que, sendo os únicos que se podiam armar, eram igualmente os únicos que podiam defender a pólis, tornando-se esta propriedade dos mesmos. Assim, o governo, as terras, o sacerdócio, a justiça sob forma temística (expressa pela “vontade divina”) somente a eles, aos Eupátridas, pertenciam de direito e de fato. Senhores de tudo, eram também senhores da religião. Seus deuses olímpicos e patriarcais (Zeus, Apolo, Posídon, Ares, Atená...), projeção de seu regime político, em troca de hecatombes e de renovados sacrifícios, mantinham-lhes a pólis e o status quo. A pólis e seus Eupátridas eram politicamente guardados pelos imortais do Olimpo. Somente no século VI a.C., com o enfraquecimento militar e, por conseguinte, político dos Eupátridas, balançados pela criação do sistema monetário (a terra até então era a forma principal de riqueza), pelo vertiginoso desenvolvimento do comércio, pelo descontentamento popular – a revolução era iminente, segundo expressa o grande Sólon em seus Iambos e Elegias – e sobretudo pela constituição do mesmo legislador, com sua famosa σεισάκθεια (seisákhtheia), conforme já se comentou, inclusive acerca da reforma solonina, no Vol. I, p. 156-161, quando se lançaram em Atenas as primeiras sementes da democracia, é que o povo começou a ter certos direitos na pólis. As sementes da democracia frutificaram-se rapidamente, como é sabido, e de Sólon, passando por Pisístrato e depois por Clístenes, Efialtes e Péricles, a árvore cresceu e o povo teve, afinal, uma vasta sombra onde refugiar-se. Sua voz soberana se fez ouvir: era a ekklesía, a assembleia do povo. Com o povo e a democracia, Dioniso, de tirso em punho, seguido de suas Mênades ou Bacantes, suas sacerdotisas e acólitas, fez sua entrada triunfal na pólis de Atenas. Além do mais, é conveniente acentuar que a “demora” de Dioniso deve-se ainda ao próprio caráter do deus: o filho de Sêmele é o menos “político” dos deuses gregos. Enquanto os outros imortais disputavam a proteção, a posse e a eponímia das cidades helênicas, não se conhece cidade alguma que se tenha colocado sob sua proteção. Na realidade, Dioniso permaneceu estranho à religião da família bem como à da pólis e, conforme acentua Jeanmaire, existe latente no dionisismo, ao menos sob forma elementar, um conflito entre a vocação religiosa e o conformismo social, embora sancionado pela religião8. Ao contrário de Apolo, jamais houve um Dioniso nacional e nem tampouco um Dioniso sacerdotal. Deus imortal, talvez o filho de Sêmele tenha sido mais humano que o próprio homem grego. E se se esperou tanto por Dioniso, é ainda e sobretudo porque “sua religião” colidia frontalmente com a religião “política” dos Eupátridas, apoiados nos deuses olímpicos tradicionais e despóticos. Expliquemo-nos. Na Grécia, as correntes religiosas místicas (Mistérios, Orfismo, Pitagorismo, Dionisismo...) confluem para uma bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnôsis); purificação da vontade para receber o divino (kátharsis); e libertação desta vida, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasía). Mas essa mesma sede de imortalidade, preconizada por mitos naturalistas de divindades da vegetação, que morrem e ressuscitam (Dioniso sobretudo), essencialmente populares, chocava-se violentamente, e ver-se-á por quê, com a religião oficial e aristocrática da pólis: os deuses olímpicos sentiamse ameaçados e o Estado também. Assim, a imortalidade na Grécia tornou-se uma espécie de competição. Justificam-se, desse modo, na Hélade, sob a tutela religiosa do Oráculo de Delfos, tantos apelos à sophros×ne, à moderação: “gnôthi sautón”, conhece-te a ti mesmo; medèn ágan, nada em demasia... A respeito dessa oposição feita à penetração do culto de Dioniso na Grécia escreveu Mircea Eliade: “Qualquer que seja a história da penetração do culto dionisíaco na Grécia, os mitos e os fragmentos mitológicos que aludem à oposição encontrada têm uma significação mais profunda: eles nos informam ao mesmo tempo da experiência religiosa dionisíaca e da estrutura específica do deus. Dioniso devia provocar resistência e perseguição, pois a experiência religiosa, que suscitava, punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores. Tratava-se, sem dúvida, da supremacia ameaçada da religião olímpica e de suas instituições. Mas a oposição denunciava ainda um drama mais íntimo, e que aliás está abundantemente atestado na história das religiões: a resistência contra toda experiência religiosa absoluta, que só pode efetuar-se, negando-se o resto (seja qual for o nome que se lhe dê: equilíbrio, personalidade, consciência, razão, etc.)”9. 5 Poderia parecer estranho que um deus tão perseguido e tão distante dos demais deuses olímpicos tenha sido tão festejado na Hélade e sobretudo em Atenas, a pólis que sempre buscou o equilíbrio apolíneo. Talvez se possa explicar o fenômeno, levando-se em consideração dois fatos incontestáveis: a política de Pisístrato e, de modo particular, o esvaziamento e a transformação do conteúdo dionisíaco de algumas das festas que celebravam o deus do êxtase e do entusiasmo. Na realidade, a política de Pisístrato (605-527 a.C.), que tanto fez por Atenas e por seu povo, buscou com afinco o nivelamento das classes sociais e a conciliação dos diversos cultos, tentando realizar uma verdadeira confraternização entre os deuses. Pois bem, foi a partir principalmente desse tirano que em Atenas se celebravam quatro grandes festas em honra do deus do vinho: Dionísias Rurais, Leneias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias. As Dionísias Rurais celebravam-se no mês Posídeon, o que corresponde, mais ou menos, à segunda metade de dezembro. São as mais antigas das festas áticas de Dioniso, mas pouco se sabe, até o momento, a respeito das mesmas. Realizavam-se apenas nos “demos”, isto é, nos burgos da Ática, dependendo o brilho de tais festejos dos recursos de cada um dos cem demos que constituíam a terra de Platão. A cerimônia central consistia num kômos, quer dizer, aqui no caso, numa alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os participantes dessa ruidosa falofória cobriam o rosto com máscaras ou disfarçavam-se em animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e dos lares. Aristófanes, em sua comédia engraçadíssima, Os Acarneus, 237ss., nos deixou uma caricatura memorável dessas comemorações. Claro que tanto a falofória quanto os demais ritos das Dionísias Ruraisprecederam ao filho de Sêmele, mas este os incorporou integralmente, fazendo que se lhes esquecesse a idade milenar. A partir do século V a.C., no entanto, as Dionísias Rurais foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias10. Inscrições recentes provam que em muitos demos havia bons teatros, sobretudo no Pireu, Salamina, Elêusis, Flia, Muníquia e Tórico. As Leneias eram celebradas em pleno inverno, no mês Gamélion, correspondente aos fins de janeiro e inícios de fevereiro, mas pouco se conhece também acerca dessa festa muito antiga do deus do vinho. O nome Leneias, em grego Λήναια (Lénaia), é uma abreviatura já comum em Atenas, pois que a designação oficial da festa era Dioniso do Lénaion, isto é, cerimônias religiosas dionisíacas que se realizavam no Lénaion, local onde se erguia o mais antigo templo do deus e, mais tarde também, um teatro. Segundo os arqueólogos que se têm ocupado da topografia da Atenas antiga, esse espaço consagrado ao deus do êxtase e do entusiasmo talvez se localizasse ou nas vizinhanças da antiga Ágora e da rampa que levava à Acrópole ou, ao contrário, na outra extremidade da rocha, que sustem a Acrópole, isto é, aos pés de sua fachada oeste. Se ainda se discute acerca da localização do Lénaion, nada de muito concreto existe a respeito de sua etimologia. A fonte tradicional de Λήναιον (Lénaion) é ληνός (lenós), “lagar”, quer dizer, “tanque ou instalação, onde se espremiam as uvas para fabrico do vinho novo”, mas a aproximação é de cunho popular. Acerca das Leneias, as festas que se celebravam no Lénaion, são pouquíssimas as informações. Sabe-se tão somente que Dioniso era invocado com o auxílio do daduco, “o condutor de tochas”, e, consoante uma glosa de um verso de Aristófanes, o sacerdote eleusino, “trazendo na mão uma tocha”, exclamava: “Invocai o deus!” Os participantes do festival gritavam em resposta: “Ó Iaco, filho de Sêmele, distribuidor de riquezas!” Trata-se, como é claro, de uma invocação para provocar fertilidade e a hierofania de Dioniso, que deveria presidir às solenidades das Leneias. Estas, ao que tudo indica, se iniciavam por uma procissão de caráter orgiástico, uma indubitável reminiscência do Kômos antigo, a que se seguia um duplo concurso de comédia e tragédia. As Dionísias Urbanas celebravam-se na primavera, no mês Elafebólion, fins de março, e a elas acorriam todo o mundo grego e embaixadores estrangeiros. Duravam seis dias. O primeiro era consagrado a uma majestosa procissão, de que a cidade inteira participava. Nessa procissão transportava-se a estátua do deus do Teatro, de seu templo, no sopé da Acrópole, até um templo arcaico de Baco, perto da Academia, de onde o ícone era solenemente levado e colocado, por fim, na Orquestra do Teatro, que, até hoje, tem o nome do deus e que fica ao lado do santuário, de onde a estátua fora retirada. Nos dois dias seguintes realizavam-se os concursos de dez Coros Ditirâmbicos11, que, com seus cinquenta executantes cada um, dançavam em torno do altar de Dioniso, na Orquestra. Os concursos dramáticos ocupavam os três últimos dias. Sendo três os poetas trágicos admitidos em concurso, representava-se cada manhã a obra inteira de cada um deles, a saber, via de regra, no século V a.C., uma tetralogia: três tragédias (de assunto correlato ou não), seguidas de um drama satírico. Embora ainda se discuta a origem da tragédia, até o momento não se conseguiu explicá-la, sem fazê-la passar pelo elemento satírico, quer dizer, a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do drama satírico. Aristóteles12 nos informa que a tragédia, cuja etimologia tradicional13 já nos recorda um elemento básico de Dioniso, teve origem nos “solistas” do ditirambo e que surgiu mediante um processo de transformação de peças satíricas, em cujo transcurso passou de assuntos menores, de fábulas curtas, para assuntos mais elevados, abandonando, com isso, o tom jocoso da linguagem. O Drama Satírico é, pois, anterior à tragédia. Apesar do nome, o Satírico, aqui em questão, nada tem a ver nem literária nem etimologicamente com sátira14, não pretendendo criticar os defeitos de uma pessoa ou de uma época. Seu nome se prende ao fato de as personagens que lhe compunham o coro se disfarçarem em Sátiros, os eternos companheiros de Dioniso. De outro lado, é necessário acentuar que nenhuma contradição parece existir em Aristóteles pelo fato de o mesmo afirmar que a tragédia teve sua gênese nos solistas do ditirambo e que surgiu mediante um processo de transformação de peças satíricas: se o ditirambo é um coro em honra de Baco, com seus componentes certamente disfarçados em Sátiros, o Drama Satírico há de ser uma fase mais evoluída daquele, isto é, uma peça e um coro regular e literariamente estruturados. Em suas origens, o Drama Satírico devia consistir em danças mímicas e rituais em honra de Dioniso. Desenvolvendo-se, estas deram origem a representações rústicas, executadas por um coro de homens disfarçados em Sátiros, cujo corifeu reproduzia alguma aventura de Dioniso. Com o passar dos anos, no entanto, uniram-se ao Drama Satírico cerimônias de caráter fúnebre e regionais e a alegria das primitivas representações deve ter desaparecido e outras divindades ocuparam o posto antes exclusivo de Baco. No princípio deve ter havido uma coexistência pacífica entre ditirambo, drama satírico e tragédia, mas, à medida que esta, pelo seu tom sério e majestoso, se desvinculou dos Sátiros e quase levou à morte o drama satírico, houve, cerca de 490 a.C., a famosa reforma de Prátinas. Este poeta é o verdadeiro introdutor do gênero em Atenas: devolveu a Dioniso os coros, fixando por escrito os vários cânticos e partes do drama satírico, dando-lhe, por isso mesmo, uma forma literária. Destarte, Prátinas não apenas salvou o drama satírico, mas também satisfez o povo, que, certamente sem compreender o pouco que restava de Dioniso na tragédia, que passara de assuntos menores, satíricos, para temas “mais elevados”, reclamou da ausência do deus do êxtase e do entusiasmo com uma expressão que se tomou proverbial: oὐδὲν πρὸς τὸν Διόνυσον (uden pràs tàn Diónyson), isto é, (a tragédia) “nada tem a ver com Dioniso”! A influência de Prátimas foi tão grande, que, a partir de sua “reforma”, tornou-se obrigatória nas representações dramáticas a tetralogia, ou seja, três tragédias e um drama satírico. Em síntese: afastando-se consideravelmente de Baco e buscando seus temas no ciclo dos mitos heroicos, a tragédia perdeu muito de seu antigo caráter dionisíaco. E se é verdade que encontramos em Dioniso uma das forças vivas que impulsionaram o desenvolvimento do drama trágico como obra de arte, não se pode igualmente esquecer que a tragédia, quanto ao conteúdo, foi configurada por um outro campo da cultura grega, pelo mito dos heróis. O drama satírico procurou manter as características dionisíacas, ao menos em parte, pois conservou intactos alguns elementos primitivos. Se Dioniso não é mais seu herói, a lembrança do deus está assegurada pela presença dos Sátiros que lhe formam obrigatoriamente o coro, ao menos no que nos chegou do Drama Satírico: O Ciclope, de Eurípides e uma parte de Os Cães de Busca, de Sófocles. Dioniso,já o dissemos, é o deus da metamórphosis, o deus da transformação. Um dos mais profundos conhecedores da tragédia grega, A. Lesky15, é taxativo a esse respeito: “O elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem arrebatado pelo deus, transportado para seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo quotidiano”. Assim, se essa “transformação” operada no homo dionysiacus pelo êxtase e pelo entusiasmo, como se há de ver mais adiante, nas Antestérias, levava inexoravelmente a romper com todos os interditos de ordem política, social e “religiosa”, ela, ipso facto, ia de encontro aos postulados da pólis, mesmo “democrática” e dos deuses olímpicos, que lhe serviam de respaldo. Ora, se a tragédia é uma liturgia e um verdadeiro apêndice da religião grega, como admiti-la, se o deus do Teatro, na ótica da pólis, é exatamente o “contestador religioso” da religião política dessa mesma pólis? Desde Píndaro, o poeta dos príncipes e o príncipe dos poetas líricos da Hélade, passando pelos trágicos Ésquilo e Sófocles, aquele mais explicitamente que este, a poesia, em geral, e a tragédia, em particular, visavam também a um propósito educativo. Píndaro e Ésquilo, para não nos alongarmos em citações, fizeram das Musas as porta-vozes de seu programa apolineamente educativo. Na obra poética do condor de Tebas, a moderação, o reconhecimento por parte do homem de que ele é tão somente o “sonho de uma sombra” se constituem numa verdadeira mensagem ético-educativa. Na Pítica, 3,59-62, o poeta deixa bem claro o discurso do comedimento: Não se deve pedir aos deuses senão o que convém a corações mortais. É preciso ter o olhar fixo nos próprios pés, para nunca esquecer sua condição. Não aspires, minha alma, a uma vida imortal; pelo contrário, exaure o campo do possível. Na mesma obra (Pítíca, 8,76-78), mostrando ao herói campeão, em Delfos, que a vitória é uma outorga do divino, repete-lhe a mensagem da moderação: A vitória não depende dos homens. Somente a divindade outorga sucessos. Ora eleva este ao céu, ora sua mão rebaixa aquele. Saibas encontrar o teu caminho, observando a moderação. O homem pindárico é realmente limitado, “metrado” por suas próprias misérias e somente pode erguer-se de sua aflita limitação, quando sobre ele descansa o calor salutar do olhar divino, como está ainda no mesmo poema, Pítica, 8,95-97: Seres efêmeros! Que é cada um de nós? Que não é cada um de nós? O homem é o sonho de uma sombra! Mas, quando os deuses pousam sobre ele um raio de sua luz, então vivo fulgor o envolve e adoça-lhe a existência. Ésquilo é ainda mais rigoroso no tocante à ética trágica e à missão educativa do poeta. Na comédia de Aristófanes, As Rãs, 1.045-1.056, de que vamos transcrever apenas uma ponta do diálogo, quando Eurípides censura a Ésquilo por não ter em suas tragédias uma só parcela de amor, o autor de Prometeu Acorrentado traça a suprema missão do poeta: Eurípides - Sim, por Zeus, não tens uma única parcela de Afrodite. Ésquilo - Oxalá eu jamais a tenha. Sobre ti e sobre os teus ela pesava tanto, que chegou mesmo a lançar-te por terra. Eurípides - Sim ou não: é fictícia a história de Pedra que eu compus?16 Ésquilo - Não, por Zeus, é verídica. O dever do poeta, no entanto, é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer somente coisas honestas. Moderação, comedimento, ética rigorosa, eis aí como a doutrina apolínea do μηδὲν ἄγαν (meden ágan), do “nada em demasia”, e do γνῶθι σ'αὐτόν (gnôthi s’autón), do “conhece-te a ti mesmo”, acabou por se apossar da tragédia e da poesia em geral. Até mesmo o esquema trágico, o caminhar do ánthropos, do “simples mortal”, ultrapassando o métron, a sua medida, e tornandose, por isso mesmo, anér, “herói”, que, em consequência, acabará, fatalmente, nos braços da Maria, do destino cego, é tipicamente uma lição apolínea: “todas as coisas têm a sua medida ... “ Vejamos, mais de perto, como Apolo, com seu comedimento, com seu gnôthi s’ autón, se apossou da tragédia e fez do homo dionysiacus uma presa fácil da Maria, valendo o esquema trágico para o ánthropos, como se fora um aviso prévio: não te “dionizes”, não ultrapasses a medida da miséria mortal, porque, se o fizeres, encontrarás os braços de bronze da fatalidade cega ... Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa de que se falou, caíam semidesfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo processo do ἔκστασις (ékstasis), “êxtase”. O sair de si implicava um mergulho de Dioniso em seu adorador através do ἐνθουσιααμός (enthusiasmós), “entusiasmo”. O homem, simples mortal, ἄνθρωπος (ánthropos), em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se ἀνήρ (anér), isto é, herói, um varão que ultrapassou o μέτρον (métron), a medida de cada um. Tendo ultrapassado sua medida mortal, o anér, o herói, transforma-se em ὑποκριτής (hypokrités), aquele que responde em êxtase e entusiasmo, a saber, o ator. Essa ultrapassagem do métron pelo hypokrités se configura como ὔβρις (hybris), um descomedimento, uma “démesure”, uma violência, feita a si próprio e aos deuses imortais, o que desencadeia a νέμεσις (némesis), a punição pela injustiça praticada, o ciúme divino; o hypokrités, o anér torna-se êmulo dos deuses, o que vai provocar a ἄτη (áte), a cegueira da razão; tudo quanto o hypokrités fizer, daqui para diante e terá que fazê-lo, realizá-lo-á contra si mesmo. Mais um passo e fechar-se-ão sobre ele as garras da Μοῖρα (Moira), o destino cego. No fundo, a tragédia grega, como encenação religiosa, é o suplício do leito de Procrusto contra todas as “démesures”. Esquematizando: Métron (medida de cada um) Ánthropos (simples mortal) ... ultrapassagem (êxtase e entusiasmo) ... Anér = ATOR ↓ hybris (descomedimento, violência) ↓ némesis (castigo pela injustiça praticada, ciúme divino) ↓ áte (cegueira da razão) ↓ Moira (destino cego, punição) Foi assim que a tragédia de Dioniso, esse deus cuja experiência religiosa punha em risco todo um “estilo de vida e um universo de valores”, exatamente porque, entranhado no homem pelo êxtase e entusiasmo, abolia a distância entre o mortal e os imortais, pôde ser aceita na pólis dos deuses olímpicos. “Desdionizada” em seu conteúdo, “punida” em sua essência e exorcizada por Apolo, a tragédia se tornou mais apolínea que dionisíaca. Despindo-se de Dioniso e revestindo-se da indumentária solar e patriarcal de Apolo, pôde ser tranquilamente agasalhada como liturgia. A quarta grande festa dionisíaca e a mais antiga delas, consoante o historiador Tucídides ( 460-395 a. C. aproximadamente), eram as 'Ανθεστήρια (Anthestéria), isto é, a “festa das flores”, que se celebravam nos dias 11, 12 e 13 do mês Antestérion, fins de fevereiro, inícios de março. Trata-se, como o próprio nome expressa, de uma festa primaveril, em que se aguardava, portanto, a nova brotação, o rejuvenescimento da natureza. Embora nessas festas Dioniso imperasse inteiro, havendo, por conseguinte, a quebra de todos os interditos, o Estado sempre os tolerou, uma vez que toda ruptura com tabus de ordem política, social e sexual visava não apenas à imprescindível fecundidade e à fertilidade, mas era algo que atingia tão somente o mundo da sensibilidade, sem chegar à reflexão, como na tragédia. O primeiro dia das Antestérias denominava-se Πιθοιγία Pithoiguía), vocábulo proveniente de píthos, “tonel”, e oignynai, “abrir”: abriam-se os tonéis de terracota, em que se guardava o vinho da colheita do outono, e transportavam-nos até um Santuário de Dioniso no Lénaion, que só se abria por ocasião dessas festas da primavera. Dessacralizava-se o vinho novo, quer dizer, levantava-se o tabu que ainda pesava sobre a colheita anterior17 e, após uma libação a Dioniso pela boa safra, dava-se início à bebedeira sagrada. Possivelmente, como nas Dionísias Rurais e nas Leneias, também os escravos participavam dessa confraternização, porque uma das características fundamentais de Dioniso, “deus do povo”, é sua universalidade social. O segundo dia chamava-se Χόες (Khóes), de Χόος (Khóos), cãntaro, cuja fonte é o verbo χέειν (khéein), “derramar”. Era o dia consagrado ao concurso dos beberrões. Vencedor era aquele que esvaziasse o cântaro (três litros e um quarto) mais rapidamente. O prêmio era uma coroa de folhagens e um odre de vinho. Nesse mesmo dia, em que se celebravam as Khóes, organizava-se uma solene e ruidosa procissão para comemorar a chegada do deus à pólis. Mas, como Dioniso está ligado,já se comentou, ao elemento úmido, por ser uma divindade da vegetação, supunha-se que ele houvesse chegado a Atenas, vindo do mar. É, por esse motivo, que integrava o cortejo uma embarcação, que deslizava sobre quatro rodas de uma carroça, puxada por dois Sátiros. Na embarcação via-se o deus do êxtase, empunhando uma videira, ladeado por dois Sátiros nus, tocando flauta. Um touro, destinado ao sacrifício, acompanhava o barulhento cortejo, cujos componentes, provavelmente disfarçados em Sátiros e usando máscaras, cantavam e dançavam ao som da flauta. Quando a procissão chegava ao santuário do deus, no Lénaion, havia cerimônias várias, de que participavam a Βασίλιννα (Basílinna), isto é, a esposa do Arcante Rei e catorze damas de honra. A partir desse momento, a Basílinna, a Rainha, herdeira da antiga rainha dos primeiros tempos da cidade, era considerada esposa de Dioniso, certamente representado por um sacerdote com máscara18. Subia para junto dele na embarcação e novo cortejo, agora de caráter nupcial, conduzia o casal para o Βουκολεῖον (Bukoleîon), etimologicamente, “estábulo de bois”, mas, na realidade, uma antiga residência real na parte baixa da cidade. Ali se consumava o hieràs gámos, o casamento sagrado entre o “deus” e a rainha, conforme atesta Aristóteles, Constituição de Atenas, L3, c5. Observe-se que o local escolhido, o Bucolíon, atesta que a hierofania taurina de Dioniso era ainda um fato comum. De outro lado, sendo a união consumada na residência real e apresentando-se Dioniso como rei, o deus estava exatamente exercendo a função sagrada da fecundação. Essa hierogamia era, na realidade, o símbolo do casamento, da união do deus com a pólis inteira, com todas as consequências que daí poderiam advir. O terceiro dia intitulava-se χύτροι (khytroi), “vasos de terracota, marmitas”, cuja fonte é ainda o verbo χέειν (khéein), “derramar”. Os khytroi são consagrados aos mortos e às Κῆρες (Kêres) : configuravam, portanto, um dia nefasto, uma vez que as Queres (Aleto, Tisífone e Megera), “deusas dos mortos”, são portadoras de influências maléficas do mundo ctônio. Por isso mesmo, logo pela manhã, se colhiam ramos com espinhos, cujo valor apotropaico é bem conhecido, e com eles todos se enfeitavam; as portas das casas eram pintadas com uma resina preta e todos os templos, exceto o Santuário do Lénaion, eram fechados. Orava-se pelos mortos, que, juntamente com as Queres, vagavam pela cidade, e à tarde ofereciase a Hermes, deus psicopompo, uma πανσπερμία (panspermía), palavra composta de πᾶν (pân), “todo total” e σπέρμα (spérma), “semente”, quer dizer, um tipo de sopa com mistura de todas as espécies de sementes. Da panspermia a pólis inteira participava em homenagem a seus mortos. Chegada a noite, todos gritavam: “Retirai-vos, Queres, as Antestérias terminaram”. Soa estranho que, em meio ao regozijo da festa do vinho novo, surjam os mortos e as Queres, veículos de terríveis miasmas. É bom, todavia, não nos esquecermos de que Dioniso, sendo um deus da vegetação, como Deméter e Perséfone, dele depende também a próxima colheita. O hieràs gámos com a Basílinna, no dia anterior, e a panspermia têm toda uma conotação de fertilidade. Além do mais, os mortos (já que as sementes são sepultadas no seio da terra) e as forças ctônias governam a fertilidade e as riquezas, de que, aliás, são os distribuidores. Não é por metáfora que o senhor do reino dos mortos se chamava Plutão, o rico por excelência, o qual, como se mostrou, é uma deformação de Pluto, a “própria riqueza”. Num tratado, atribuído ao grande médico Hipócrates, lê-se: “É dos mortos que nos vêm os alimentos, os crescimentos e os germes”. Os mortos sobem a este mundo em busca dos agradecimentos e dos sacrifícios (frutos, cereais, animais ... ) daquilo que eles mesmos proporcionaram aos vivos. Para uma boa safra futura, um hieràs gámos, em que a semente (spérma) de Dioniso é colocada no seio da Basílinna, hipóstase da Terra-Mãe e, logo a seguir, uma panspermia pesavam muito no mundo dos vivos e dos mortos. De qualquer forma, as Antestérias eram a festa sagrada do vinho, quando, então, os participantes dos festejos, sagradamente embriagados, começavam a cantar e a dançar freneticamente, não raro à noite, à luz dos archotes, ao som das flautas e dos címbalos, até cair semidesfalecidos. É, nesse estado, que algo de sério e grave acontecia, porque a embriaguez e a euforia, pondo-os em comunhão com o deus, antecipavam uma vida do além muito diversa daquela que, desde Homero até os grandes e patrilineares deuses olímpicos, lhes era oferecida. É que, através desse estado de semi-inconsciência, os adeptos de Dioniso acreditavam sair de si pelo processo do ékstasis, o êxtase. Esse sair de si significava uma superação da condição humana, uma ultrapassagem do métron, a descoberta de uma liberação total, a conquista de uma liberdade e de uma espontaneidade que os demais seres humanos não podiam experimentar. Evidentemente, essa superação da condição humana e essa liberdade, adquiridas através do ékstasis, constituíam, ipso facto, uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social, o que explica, consoante Mircea Eliade, a adesão maciça das mulheres às festas de Dioniso. E, em Atenas, as coisas eram claras: nada mais reprimido e humilhado que a mulher. Dioniso e suas Antestérias simbolizam a sua libertação. Não era em vão que, unindo-se à Basílinna, ele contraía núpcias com todas as mulheres da pólis de Atenas. O ékstasis, todavia, era apenas a primeira parte da grande integração com o deus: o sair de si implicava num mergulho em Dioniso e deste no seu adorador pelo processo do ἐνθουσιασμός (enthusiasmós), de ἔνθεος (éntheos), isto é, “animado de um transporte divino”, de ἐν (en), “dentro, no âmago” e θεός (theós), “deus”, quer dizer, o entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, coparticipando da divindade. E se das Mênades ou Bacantes, e ambos os termos significam a mesma coisa, as possuídas, quer dizer, em êxtase e entusiasmo, delas, como dos adoradores de Dioniso, se apossavam a μανία (manía), “a loucura sagrada, a possessão divina” e as ὄργια (órguia), “posse do divino na celebração dos mistérios, orgia, agitação incontrolável”, estava concretizada a comunhão com o deus. A mania e a orgia provocavam uma como que explosão de liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distensão, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação. É necessário, no entanto, não confundir essa explosão das Mênades dionisíacas ou humanas (como acontece na gigantesca tragédia euripidiana, As Bacantes) com “crises psicopáticas”, porque a mania, loucura sagrada e a orgia, agitação incontrolável, inflação anímica, possuíam indubitavelmente o valor de uma experiência religiosa. Viu-se que, no segundo dia das Antestérias, as Khóes, um touro, que acompanhava o alegre cortejo, era destinado ao sacrifício. Ao que tudo indica, esse sacrifício se realizava por diasparagmós e omofagia, ou seja, por desmembramento violento do animal vivo e consumação de seu sangue ainda quente e de suas carnes cruas e palpitantes. Diasparagmós, em grego διασπαραγμόσ verbo διασπαράσσειν (diasparássein), “despedaçar”, era, pois, em termos de religião, o rito do dilaceramento da vítima sacrificial (touro, bode, corça, enho ... ) viva ou ainda palpitante e a consumação imediata do sangue e da carne crua da mesma, isto é, a omofagia, ὠμοσαγία (omofaguía), de ὠμός (omós), “cru” e o verbo φα (phaguetn), “comer”. Dioniso, como observa o erudito Ateneu, Dipnosofistas, ll,51,476a, é frequentemente qualificado de touro pelos poetas, donde seus epítetos de Taurófago, “devorador de touros”, que se encontra num fragmento de Sófocles e num gracejo de Aristófanes (As Rãs, 357), bem como de Omádio e Omeste, quer dizer, “o que come carne crua”. O despedaçamento do touro, símbolo da força e da fecundidade, se de um lado representava os sofrimentos de Dioniso, dilacerado pelos Titãs, de outro, o fato de os e as Bacantes lhe beberem o sangue e lhe comerem as carnes, pelo rito da omofagia, inseparável do transe orgiástico, configurava a integração total e a comunhão com o deus. É que os animais, que se devoravam, eram a hierofania, a encarnação do próprio Dioniso. De outro lado, despedaçando animais e devorando-os, os devotos de Dioniso integram-se nele e o recompõem simbolicamente, o que, consoante Jung, configura a conscientização de conteúdos divididos. Uma divindade assim tão próxima e integrada no próprio homem, um deus tão libertário e “politicamente” independente, não poderia mesmo ser aceito pela pólis de homens e de deuses tão apolineamente patrilineares e tão religiosamente repressivos. Eis aí por que o deus do êxtase e do entusiasmo e suas Mênades levaram tantos séculos para penetrar e ser “tolerados” por Atenas. Mas, no dia em que transpuseram as muralhas da pólis, orientados pela bússola da democracia, o grande deus acendeu na tímele, seu altar bem no meio do Teatro de “Dioniso”, dois archotes: um ele o consagrou ao êxtase, o outro, ao entusiasmo. Era a distensão. Ao menos uma vez por ano ... Sintetizando algumas das ideias expostas na obra célebre de Walter Otto, Dionysos, Mircea Eliade mostrou que o filho de Sêmele é realmente o deus da metamórphosis interna e externamente: bem mais que todos os imortais do Olimpo, “Dioniso assombra pela multiplicidade e pela novidade de suas transformações. Ele está sempre em movimento; penetra em todos os lugares, em todas as terras, em todos os povos, em todos os meios religiosos, pronto para associar-se a divindades diversas, até antagônicas [ ... ] Dioniso é certamente o único deus grego que, revelando-se sob diferentes aspectos, deslumbra e atrai tanto os camponeses quanto as elites intelectuais, políticos e contemplativos, ascetas e os que se entregam a orgias. A embriaguez, o erotismo, a fertilidade universal, mas também as experiências inesquecíveis provocadas pela chegada periódica dos mortos, ou pela manía, pela imersão no inconsciente animal ou pelo êxtase do enthusiasmós - todos esses terrores e revelações surgem de uma única fonte: a presença do deus. O seu modo de ser exprime a unidade paradoxal da vida e da morte. É por essa razão que Dioniso constitui um tipo de divindade radicalmente diversa dos Olímpicos”19. Walter Otto mostrou bem como o deus do Teatro é capaz de múltiplas hierofanias: surge de repente e desaparece misteriosamente. Nas Agriônias, as festas solenes que se celebravam em sua honra na cidade beócia de Queroneia, de que já se falou, as mulheres, num dado momento, procurando-o por toda parte, voltavam com a notícia de que o deus havia regressado para junto das Musas. Mergulhava no lago de Lema ou no mar e reaparecia, como no segundo dia das Antestérias, sobre uma embarcação. Todos esses desaparecimentos periódicos e hierofanias tinham por escopo mostrar que Dioniso é um deus da vegetação e, com efeito, suas festas mais populares se realizavam em função do calendário agrícola. Como a semente, o deus morre para dar novos frutos. Todas essas ocultações e retornos, aparecimentos e ausências súbitas traduzem o surgimento e o desaparecimento da vida, o ciclo da vida e da morte e, por fim, sua unidade. Foi exatamente como deus da vegetação, da vida e da morte, que Dioniso celebrou um solene hieràs gámos com Ariadne, em torno de cuja união com o deus, na ilha de Naxos, se teceram narrativas romanescas. Uma delas se relaciona com o retorno de Teseu a Atenas, após eliminar o Minotauro. Tendo ajudado o herói ático a escapar do Labirinto de Cnossos, Ariadne, apaixonada pelo filho de Egeu, fugiu com ele. Quando o navio ateniense fez escala na ilha de Naxos, Teseu a abandonou, adormecida na praia, por amor a outra mulher. Diz-se ainda que foi em obediência a uma ordem dos deuses, que não lhe permitiram desposá-la. Embora em prantos, quando viu o navio de velas desfraldadas já fora da barra, logo se consolou com a chegada intempestiva de Dioniso e seu cortejo de Sátiros e Mênades. Fascinado pela beleza da jovem cretense, desposou-a elevou-a consigo para o Olimpo. Como presente de núpcias, deu-lhe um diadema de ouro, cinzelado por Hefesto. Quando o casal chegou à mansão dos imortais, o diadema foi transformado em constelação. A realidade dos fatos é bem outra. Ariadne é uma antiga deusa egeia da vegetação, que foi suplantada, em Naxos e demais ilhas do Mediterrâneo, por Dioniso. O hieràs gámos do deus com a filha de Minos, isto, é a união de duas divindades protetoras da vegetação pertence a um velho fundo de costumes religiosos, além de possibilitar que uma antiga deusa “decaída”, suplantada em suas funções e transformada em princesa, tivesse direito à apoteose. Finalmente, no que diz respeito à existência concreta de tíasos20 secretos dionisíacos, mais claramente, de ritos secretos e iniciáticos do deus, o assunto é ainda muito discutido. Autoridades de peso como Nilsson e Festugiere negam a existência de um Mistério Dionisíaco, por não existirem “referências precisas à esperança escatológica”, ao menos na época clássica. Jeanmaire21, embora sem muita objetividade, defende um rito secreto dionisíaco, apontando a Trácia como berço desses Mistérios, que se teriam difundido por uma série de ilhas gregas. Eliade22, sem citar os locais onde se realizavam tais Mistérios, argumenta que os desaparecimentos, as hierofanias de Dioniso, suas catábases ao Hades (semelhantes à morte, seguida de ressurreição) e sobretudo o culto de Dioniso-menino com ritos, que celebravam seu “despertar”, seriam indícios de um desejo e de uma esperança de renovação espiritual. De qualquer forma, as coisas, até o momento, ainda não estão muito claras. Dioniso, todavia, continua e continuará a ser, independentemente de um “Mistério Dionisíaco”, o deus da metamorphósis. O que já é muito! Antes de Dioniso, costuma-se dizer, havia dois mundos: o mundo dos homens e o inacessível mundo dos deuses. A metamórphosis foi exatamente a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitaram de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração. De um ponto de vista simbólico, o deus da mania e da orgia configura a ruptura das inibições, das repressões e dos recalques. Na feliz expressão de Defradas, Dioniso “simboliza as forças obscuras que emergem do inconsciente, pois que se trata de uma divindade que preside à liberação provocada pela embriaguez, por todas as formas de embriaguez, a que se apossa dos que bebem, a que se apodera das multidões arrastadas pelo fascínio da dança e da música e até mesmo a embriaguez da loucura com que o deus pune aqueles que lhe desprezam o culto”23. Desse modo, Dioniso retrataria as forças de dissolução da personalidade: a regressão às forças caóticas e primordiais da vida, provocadas pela orgia e a submersão da consciência no magma do inconsciente. 1. CARNOY, Albert. Op. cit., verbete. 2. O texto homérico fala tão somente que Dioniso foi perseguido no divino Νυσήιον (Nyséion), o que é identificado com o monte Nisa, na Trácia. É conveniente lembrar que Nisa faz parte da geografia mítica: os mitógrafos, além de Tebas, Naxos, Trácia ..., localizavam Nisa desde o Cáucaso à Arábia, e do Egito à Líbia... 3. Miníades eram as três filhas do rei Mínias, de Orcômeno. Chamavam-se Leucipe, Arsipe e Alcítoe. Seu mito é de ordem didática: tem por escopo mostrar como Dioniso castiga os que lhe desprezam o culto. Conta-se que, durante uma festa em honra do deus, enquanto todas as mulheres de Orcômeno percorriam as montanhas, no rito denominado ὀρειβάσια (oreibásia), de ὄρος (óros), “montanha” e βαίνειν (baínein), “percorrer”, procissão nas montanhas, oribásia, dançando freneticamente, as três irmãs permaneceram em casa, fiando e bordando. Subitamente, porém, uma parreira começou a crescer em torno dos tamboretes em que elas se sentavam e do teto corriam leite e mel. Clarões misterioros surgiram por toda a casa e feras invisíveis rugiam, ao mesmo tempo em que se ouviam sons agudos de flautas e a cadência surda dos tambores. Transtornadas, as Miníades foram atacadas de loucura e tendo agarrado o pequeno Hípaso, filho de Leucipe, o despedaçaram, tendo-o tomado por um veadinho. Em seguida, coroando-se de hera, juntaram-se às outras mulheres nas montanhas. Em outras versões foram metamorfoseadas em morcegos, símbolo da evolução espiritual obstruída. 4. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 214. 5. JEANMAIRE, H. Dionysos, Histoire du Culte de Bacchus. Paris: Payothèque, 1978, p. 386ss. 6. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 215. 7. Dioniso era um deus da árvore em geral. Como outros deuses da vegetação (Adônis, Osíris...) pereceu de morte violenta, mas retornou à vida. Sua morte, sofrimentos e renascimento eram representados em seus ritos. Assim, como toda e qualquer divindade da vegetação, que passa, como a “semente”, uma parte do ano sob a terra, o deus do êxtase e do entusiasmo é também uma divindade crônica, que morre, renasce, frutifica, torna a morrer e retorna ciclicamente. O fato de Dioniso ser concebido sob forma animal, como touro ou bode, representa apenas o espírito da vegetação, o espírito do grão, que, no momento da colheita, se encarna num animal, em cujo corpo encontra guarida. O animal sacrificado nos ritos dionisíacos é um animal desse tipo, quer dizer, o próprio deus. Ora, o sacrifício, consoante as práticas antigas de caráter agrário, se consuma por desmembramento e omofagia. O desmembramento tem por objetivo converter em talismãs, em amuletos de fertilidade as partes do corpo do animal em que está concentrado o espírito da vegetação e a omofagia expressa o desejo de assimilar as forças mágicas existentes nesse mesmo corpo. Desse modo, os dados fundamentais (desmembramento, morte e retorno à vida) do mito de Dioniso explicam-se através de ritos agrários. 8. JEANMAIRE, H. Op. cit., p. 8. 9. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 201. 10. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: T.A.B., 1980, p. 97ss. 11. Ditirambo, em grego διθύραμβος (dithyrambos), é uma canção coral cujo objetivo era, quando do sacrifício de uma vítima, gerar o êxtase coletivo com a ajuda de movimentos rítmicos, aclamações e vociferações rituais. Quando, a partir dos séculos VII-VI a.C., se desenvolveu no mundo grego o Lirismo Coral, o ditirambo se tornou um gênero literário, dado o acréscimo de partes cantadas pelo ἐxάρχων (eksárkhon), isto é, pelo “regente” do hino sacro. Essas partes cantadas pelo “regente” eram trechos líricos em temas adaptados às circunstâncias e à pessoa de Dioniso. 12. Aristóteles. Poétique, 1449a, 19-21. Texte établi et traduit par J. Hardy: Paris, “Les Belles Lettres”, 1932. 13. O vocábulo tragédia provém de τραγαδία (tragoidía) e esta possivelmente de τράγος (trágos), bode, ᾠδή (oidé), canto, e o sufixo (ía), donde o latim tragoedia e o nosso tragédia. 14. Satura ou sátira, esta na época imperial, é palavra latina. Trata-se do feminino do adjetivo satur, -a, -um, “farto, sortido”. Satura lanx é um prato, uma travessa “farta”, “sortida”, isto é, um prato com as primícias de frutas e legumes que se ofereciam à deusa Geres, por ocasião da colheita. Depois substantivada, Satura (Sátira) passou a designar “mistura de prosa e verso de assuntos e metros vários”. Em literatura, Satura (Sátira) é a crítica às instituições e pessoas; a censura dos males da sociedade e indivíduos. Nada tem a ver com Sátiro, Σάτυρος (Sátyros), que é palavra grega e que talvez signifique em etimologia popular “de pênis em ereção”. Os Sátiros eram semideuses rústicos e maliciosos, com o nariz arrebitado e chato, com o corpo peludo, cabelos eriçados, dois pequenos cornos e com pernas e patas de bode. A confusão se deve ao fato de satírico ser um adjetivo que tanto pode provir de sátira quanto de Sátiro, graças à simplificação ortográfica. V. Dicionário míticoetimológico, verbete. 15. LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 61. 16. Fedra, esposa de Teseu, na ausência deste, apaixonou-se perdidamente pelo enteado Hipólito. Repelida pelo filho do primeiro matrimônio de Teseu, Fedra matou-se, mas deixou uma mensagem mentirosa ao marido, acusando-lhe o filho de tentar violentá-la, o que irá provocar a morte do inocente Hipólito. Sobre este tema Eurípides compôs a lindíssima tragédia Hipólito Porta-Coroa. 17. Toda colheita era considerada um presente dos deuses. Assim, enquanto não se fizesse uma consumação ritual e uma oferta das primícias aos imortais, para afastar quaisquer influências maléficas, a safra estava interditada, era tabu. 18. Usar máscara é encarnar o deus que ela representa. Transformando o exterior, a máscara transfi• gura o interior, permitindo a quem a usa o desempenho de funções próprias de um ser divino ou de• moníaco. Claro está que toda máscara cobre muito pouco do exterior, mas desnuda o interior ... 19. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 216. 20. Tiaso, em grego θίασος (thíasos), significa “um grupo de pessoas ou uma confraria que celebra um sacrifício em honra de um deus”, sobretudo de Dioniso, percorrendo barulhentamente as ruas, cantando, dançando e gritando. 21. JEANMAIRE, H. Op. cit., p. 43lss. 22. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 2lss. 23. CHEVALIER,Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 358. CAPÍTULO V Orfeu, Eurídice e o Orfismo 1 ORFEU, em grego 'Ορφεύς (Orpheús). Por ter descido às trevas do Hades, alguns relacionam o nome do citaredo trácio, ao menos por etimologia popular, com ὀρφνός (orphnós), “obscuro”, ὄρφπνη (órphne), “obscuridade”, mas não se conhece, realmente, a etimologia do herói. Trata-se de uma personagem mítica, possivelmente de origem trácia. Era filho de Calíope, a mais importante das nove Musas e do rei Eagro. Este, por motivos político-religiosos, como se verá depois, é frequentemente substituído por Apolo. De qualquer forma, Orfeu sempre esteve vinculado ao mundo da música e da poesia: poeta, músico e cantor célebre, foi o verdadeiro criador da “teologia” paga. Tangia a lira e a cítara, sendo que passava por ser o inventor desta última ou, ao menos, quem lhe aumentou o número de cordas, de sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Sua maestria na cítara e a suavidade de sua voz eram tais, que os animais selvagens o seguiam, as árvores inclinavam suas copadas para ouvi-lo e os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e de bondade. O que importa é que Orfeu é um herói muito antigo, pois já o encontramos na expedição dos Argonautas. Sua existência era tão real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a cabeça como verdadeira relíquia. Educador da humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos “mistérios”, completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. De retorno do Egito, divulgou na Hélade a ideia da expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse. Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice, a quem amava profundamente, considerando-a como dimidium animae eius, como se ela fora a metade de sua alma. Acontece que um dia (o poeta latino do século Ia.e., Públio Vergílio Marão nos dá, no canto 4,453-527, de seu maravilhoso poema As Geórgicas, a versão mais rica e mais bela do mitologema) o apicultor Aristeu tentou violar a esposa do cantor da Trácia. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou numa serpente, que a picou, causando-lhe a morte. Inconformado com a perda da esposa, o grande vate resolveu descer às trevas do Hades, para trazê-la de volta. Orfeu, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal forma o mundo ctônio, que até mesmo a roda de Exíon parou de girar, o rochedo de Sísifo deixou de oscilar, Tântalo esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher tonéis sem fundo. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, todavia, uma condição extremamente difícil: ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas, enquanto caminhassem pelas trevas infernais, ouvisse o que ouvisse, pensasse o que pensasse, Orfeu não poderia olhar para trás, enquanto o casal não transpusesse os limites do império das sombras. O poeta aceitou a imposição e estava quase alcançando a luz, quando uma terrível dúvida lhe assaltou o espírito: e se não estivesse atrás dele a sua amada? E se os deuses do Hades o tivessem enganado? Mordido pela impaciência, pela incerteza, pela saudade, pela “carência” e por invencível póthos, pelo desejo grande da presença de uma ausência, o cantor olhou para trás, transgredindo a ordem dos soberanos das trevas. Ao voltar-se, viu Eurídice, que se esvaiu para sempre numa sombra, “morrendo pela segunda vez ... “ Ainda tentou regressar, mas o barqueiro Caronte não mais o permitiu. Inconsolável e sem poder esquecer a esposa, fiel a seu amor, Orfeu passou a repelir todas as mulheres da Trácia. As Mênades, ultrajadas por sua fidelidade à memória da esposa, fizeram-no em pedaços. Há muitas variantes acerca da morte violenta do filho de Eagro. Vamos destacar duas delas. Conta-se que Orfeu, ao retornar do Hades, instituiu mistérios inteiramente vedados às mulheres. Os homens se reuniam com ele em uma casa fechada, deixando suas armas à porta. Uma noite, as mulheres enfurecidas, apoderaram-se dessas armas e mataram Orfeu e seus seguidores. Outra variante nos informa que, tendo servido de árbitro na querela entre Afrodite e Perséfone na disputa por Adônis, Calíope teria decidido que o lindíssimo filho de Mirra permaneceria uma parte do ano com uma e uma parte com outra. Magoada e irritada com a decisão, Afrodite, não podendo vingar-se de Calíope, vingou-se no filho. Inspirou às mulheres trácias uma paixão tão violenta e incontrolável que cada uma queria o inexcedível cantor só para si, o que as levou a esquartejá-lo e lançar-lhe os restos e a cabeça no rio Hebro. Ao rolar da cabeça pelo rio abaixo, seus lábios chamavam por Eurídice e o nome da amada era repetido pelo eco nas duas margens do rio. Punindo esse crime abominável das mulheres trácias, os deuses devastaram-lhe o país com uma grande peste. Consultado o oráculo sobre como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só se extinguiria quando se encontrasse a cabeça do vate e lhe fossem prestadas as devidas honras fúnebres. Após longas buscas, um pescador finalmente a encontrou na embocadura do rio Meles, na Jônia, em perfeito estado de conservação e ali mesmo foi erguido um templo em honra de Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. A cabeça sagrada do cantor passou a servir de oráculo. Se a lira do poeta, a qual após longos incidentes, foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da poesia lírica da Hélade, a Psiqué do cantor foi elevada aos Campos Elísios, aqui no caso sinônimo de Ilha dos BemAventurados ou do próprio Olimpo, onde, revestido de longas vestes brancas, Orfeu canta para os imortais. 2 Exposto resumidamente o mitologema, pois as variantes são inúmeras, vamos tentar fazer-lhe alguns comentários, abordando os aspectos que nos parecem mais importantes, deixando para a terceira e última parte uma visão sobre o Orfismo. Orfeu desceu à mansão do Hades e poderia ter trazido a esposa de volta, se não tivesse olhado para trás. A catábase de Orfeu é a do tipo tradicional, xamânico: o iniciado morre aparentemente e na contemplação do além, “encontrando-se”, torna-se detentor do saber e dos mistérios, nos quais procurará orientar seus seguidores, para que, preparando-se adequadamente nesta vida, “se encontrem” na outra1. Na realidade, o grande desencontro de Orfeu no Hades foi o de ter olhado para trás, de ter voltado ao passado, de ter-se apegado à matéria, simbolizada por Eurídice. Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante, jamais “retorna”. Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima2 Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma catábase ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções. Estas, bem como os lados e os pontos cardeias, possuíam, nas culturas antigas, um simbolismo muito rico. A matrilinhagem sempre deu nítida preferência à esquerda: esta pertence à feminilidade passiva; a direita, à atividade masculina,já que a força está normalmente na mão direita e foi, através da força, da opressão, que a direita, o homem, execrou a esquerda, a mulher. O tabu dos canhotos sempre foi um fato consumado. Diga-se, aliás, de passagem, que um dos muitos epítetos do Diabo é Canhoto. A superioridade da esquerda estava, por isso mesmo, ligada à matrilinhagem, entre outros motivos porque é a noite (oeste) que dá nascimento ao dia, lançando o sol de seu bojo, parindo-o diariamente. Daí, a cronologia entre os primitivos ser regulada pela noite, pela Lua; daí também o hábito, desde tempos imemoriais, da escolha da noite para travar batalha, para fazer reuniões, para proceder a julgamentos, para realizar determinados cultos, como os Mistérios de Elêusis e o solene autojulgamento dos reis da Atlântida ... Observe-se que entre Grécia e Roma a designação de esquerda diverge profundamente. Em latim, direita é dextera ou dextra, que talvez, ao menos do ponto de vista da etimologia popular, pode se aproximar de decet, “o que é conveniente”, e esquerda é sinistra, de mau presságio, funesto, “sinistro”; em grego, direita é δεxιά (deksiá) que, como se observa, tem a mesma raiz que o latim dextra e significa “de bom augúrio, favorável” e esquerda é ἀριστερά (aristerá), etimologicamente a “excelente, a ótima”, uma vez que aristerá se prende ao superlativo ἄριστος (áristos), “o melhor, o mais nobre, o ótimo”. Trata-se evidentemente de um eufemismo que a inteligência grega engendrou para amortecer o impacto da esquerda, da sinistra. Os pontos cardeais atestam igualmente não apenas adicotomia matrilinhagem-patrilinhagem, mas também o azar e a sorte, o perigo e a segurança. Talvez, partindo-se do inglês, as coisas fiquem mais claras: West, “oeste”, cf. Wespero, é a tarde, a boca da noite, como em grego ἑσπέρα (hespéra), “tarde”, em latim uespera, “tarde” e em português véspera, vespertino ... Oeste é onde “morre” o sol e começa a noite, donde em latim occidens, o que morre, “ocidente”: é o lado nobre da matrilinhagem, e nefasto para a patrilinhagem, porque é a esquerda. North, “norte”, cf. ner, debaixo”, isto é, à esquerda do nascimento do sol. É também um dos lados propícios à matrilinhagem. Daí Ner-eu, Ner-eidas, divindades da água, vinculadas ao feminino. Easte, “leste”, cf. awes, ideia de “brilhar”, em grego ἠώς (eós), “aurora”; em latim existe o adjetivo,já da época da decadência, ostrus, -a, -um, “vermelho”, que está ligado a oriens, “o que nasce”, o sol nascente. Aliás, púrpura em latim se diz ostrum. Leste, à direita, é o lado nobre da patrilinhagem. South, “sul”, cf. sawel, swen, “à direita do nascimento do sol”, é igualmente um dos lados do masculino. É assim que olhar para a frente é desvendar o futuro e possibilitar a revelação; para a direita é descobrir o bem, o progresso; para a esquerda é o encontro do mal, do caos, das trevas; para trás é o regresso ao passado, às hamartíai, às faltas, aos erros, é a renúncia ao espírito e à verdade. Em Gênesis 19,17-26, uma das recomendações que os dois anjos dejavé, enviados para destruir Sodoma e Gomorra, fizeram a Ló foi que, abandonando Sodoma com a família, não olhasse para trás: salua animam tuam, noli respicere post tergum - “salva tua vida, não olhes para trás”, mas a mulher do patriarca olhou para trás e foi transformada numa coluna de sal. Acerca desse episódio do Antigo Testamento há uma excelente interpretação estruturalista do Dr. D. Alan Aycok3, que, lato sensu, chega à mesma conclusão que aventamos para a desobediência de Orfeu. A mulher de Ló foi transformada em estátua de sal (símbolo, entre outros, de purificação, esterilidade e contrato social, e os três significados poderiam ser aplicados a Ló e sua família), por seu apego a uma cidade condenada à ruína, por causa de seus pecados; quer dizer, a esposa de Ló, olhando para trás, “voltou ao passado” e sofreu, com isso, as consequências de sua desobediência a Javé. Na Odisseia, X, 528, Ulisses, seguindo o conselho da feiticeira Circe, dirigiu-se ao país dos mortos para consultar Tirésias. Segundo a recomendação da temível maga, o esposo de Penélope deveria fazer um sacrifício aos habitantes do Hades, ficando de costas para o mesmo e, portanto, sem olhar para trás, já que o mundo dos mortos se localizava no oeste, no ocidente. No Édipo em Colono de Sófocles, 490, o Corifeu, após ensinar ao alquebrado Édipo como fazer um sacrifício às Eumênides, acrescenta: ἔπειτ' ἀφέρπειν ἄστροφος (épeit’ aphérpein ástrophos), “retira-te, em seguida, sem olhar para trás”. Nas Coéforas, 91-99, segunda tragédia da trilogia Oréstia, de Ésquilo, Electra pergunta ao coro como deverá fazer libações sobre o túmulo de seu pai Agamêmnon, assassinado pela esposa Clitemnestra: Electra (dirigindo-se ao Coro) Não sei o que dizer, ao derramar esta oferenda no túmulo de meu pai. Serd que devo empregar a fórmula ritual: “que recompense os que lhe enviam esta homenagem”! retribuindo-a com dddiva digna de seus crimes? Ou silenciosa, de modo ultrajoso - pois foi assim que morreu meu pai - espalharei estas libações no solo que as beberd e ir-me-ei, depois de atirar este vaso, sem olhar para trds, como quem arroja um objeto lustral depois do uso? ... Igualmente, na Écloga 8,101-103, Vergílio emprega, numa fórmula de encantamento, o mesmo processo. A pastora Amarílis lançará cinzas em água corrente, para trazer de volta ao campo seu amado pastor Dáfnis: Fer cineres, Amarylli, foras, riuoque fluenti transque caput iace, nec respexeris. His ego Daphnim adgrediar; nihil ille deos, nil carmina curat. - Traze para fora as cinzas, Amarílis, e lança-as por cima da cabeça, em água corrente, mas não olhes para trás. Com isso pretendo atrair Dáfnis, que não mais se preocupa nem com os deuses, nem com os encantamentos. Na magia imitativa por contágio são inúmeros os métodos empregados para a transferência de males e doenças. Essa permuta, nas culturas primitivas (e até hoje), pode ser feita através de pedras, troncos de árvores, frutos, ramos, flocos de algodão, peças do vestuário. Basta friccionar a parte de que se sofre num desses objetos e levá-lo inteiro ou fragmentado, em “determinadas horas” do dia ou da noite (meio-dia, crepúsculo, meia-noite) para junto de uma árvore, reentrância de pedra, encruzilhada, e aí abandoná-lo: a transferência está feita, desde que, em se retirando, não se olhe para trás. A Orfeu, buscando Eurídice, à mulher de Ló, fugindo da cidade maldita, ou a nossos feiticeiros, fazendo seus despachos, a recomendação é sempre a mesma: não olhar para trás. A exigência feita a Orfeu pelo soberano dos mortos é parte integrante de outros interditos que, nas culturas primitivas, pesavam sobre vários tipos de atividade. O trabalhador, ao traçar o primeiro sulco na terra, para depositar a semente, deveria permanecer em absoluto silêncio, como as mulheres que dispunham o fio da teia para fazer o tecido, como os encarregados de abrir uma sepultura e como aqueles que acompanhavam um cortejo fúnebre. Iniciado o trabalho, não se podia interrompê-lo e tampouco olhar para trás. Forças invisíveis estavam presentes e podiam agastar-se com uma palavra dita irrefletidamente ou mesmo irritar-se perigosamente por terem sido vistas às escondidas. Orfeu foi o homem que violou o interdito e ousou olhar o invisível. Olhando para trás e, por causa disso, perdendo Eurídice, o citaredo, ao regressar, não mais pôde tanger sua lira e sua voz divina não mais se ouviu. Perdendo Eurídice, o poeta da Trácia perdeu-se também como indivíduo, como músico e como cantor. É que a hannonia se partiu. Atente-se para a etimologia deste vocábulo: em grego ápµovía (harmonía) significa precisamente “junção das partes”. Orfeu descompletou-se, desindividuou-se. A segunda parte do symbolon se fora. O encaixe, a harmonia agora somente será possível, se houver um “retorno perfeito”. 3 Ao regressar do Hades, como já se viu, Orfeu foi despedaçado pelas Mênades e sua cabeça lançada no rio Hebro, tendo sido, mais tarde, encontrada por um pescador. A cerimônia do despedaçamento simbólico do neófito ou mesmo iniciado, sempre relembrado no diasparagmós grego, quando se fazia em pedaços um animal, para recordar o “renascimento” de Dioniso, como se viu mais atrás, à p. 143, é um rito bem atestado em muitas culturas e sua finalidade última, já o frisamos, é fazer o neófito ou o iniciado renascer numa forma superior de existência. Assim o foi, entre outros, com Osíris, Dioniso e Orfeu. Quanto à cabeça ou crânio, é bom deixar bem claro que essa parte nobre do corpo possuía em quase todas as culturas uma importância extraordinária. A cabeça de um inimigo morto, mormente se fosse um rei, um chefe, um general ou mesmo um simples combatente que se tivesse destacado pela coragem, era oferecida como presa de honra ao chefe tribal, ao rei ou ao guerreiro que houvesse praticado a façanha de eliminar o inimigo. Sede do pensamento e, por conseguinte, do comando supremo, o crânio é o mais importante dos quatro centros (os outros três estão situados na base doesterno, no umbigo e no sexo) em que, consoante Chevalier e Gheerbrant4, os Bambara sintetizam sua representação macrocósmica do homem. Homólogo, em muitas culturas, da abóbada celeste, o Rig-Veda considera esta última como formada pelo crânio do ser primordial. O culto do crânio, no entanto, acrescentam os supracitados autores, não se restringe a cabeças humanas. Entre os grandes caçadores de épocas primitivas, troféus animais desempenhavam um papel ritual relevante, porque estavam relacionados simultaneamente com a afirmação da superioridade humana, atestada em suas aldeias pela presença do crânio de um grande javali, e com a preocupação pela conservação da vida, uma vez que, como vértice do esqueleto, o crânio se constitui no que há de imperecível no corpo humano, isto é, a alma. Quem se apropria de um crânio, apodera-se igualmente de sua energia vital, de seu mana. O historiador latino Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), em sua História Romana, 23, 24, conta que, em 216 a.C., tendo os gauleses cisalpinos destruído o exército do cônsul romano Postúmio levaram em triunfo os despojos e a cabeça do magistrado: Seu crânio, diz o historiador, ornamentado com um círculo de ouro, servia-lhes de vaso sagrado na oferenda de libações, por ocasião das festas. Os pontífices e os sacerdotes do templo usavam-no como taça e, aos olhos dos gauleses, a presa foi tão importante quanto a vitória. Ponto culminante do esqueleto, com sua forma de cúpula e sua função de centro espiritual, o crânio é muitas vezes denominado o céu do corpo humano. Considerado como sede da força vital, do mana do corpo e do espírito, quanto maior o número de crânios reunidos, maior a energia que dos mesmos se desprende, o que explica os montes de crânios encontrados nas escavações. Símbolo da morte física, o crânio é análogo à putrefação alquímica, como o túmulo o é do atanor: o homem novo sai do crisol, onde o homem velho se destrói, para transformar-se. Jung nos dá uma síntese admirável da eficácia da cabeça: “O culto do crânio é um procedimento espalhado por toda parte. Na Melanésia e na Polinésia são principalmente os crânios dos ancestrais que estabelecem a relação com os espíritos ou servem de paládios, como acontece, por exemplo, com a cabeça de Osíris, no Egito. O crânio desempenha também papel considerável entre as relíquias dos santos. [ ... ] A cabeça, e partes dela (como o cérebro), são usadas como alimento de eficácia mágica ou como meio de aumentar a fertilidade dos campos. É de particular importância para a tradição alquímica o fato de que na Grécia também se conhecia a cabeça oracular. Eliano5, por exemplo, nos relata que Cleômenes de Esparta guardava a cabeça de seu amigo Arcônidas numa panela contendo mel e a consultava como oráculo. O mesmo se dizia da cabeça de Orfeu. Onians nos lembra muito acertadamente que a ψυχή (psykhé), cuja sede era a cabeça, corresponde ao “inconsciente” moderno, e isto naquele estágio em que a consciência era localizada com o θυμός e o φρέωες, dentro do peito ou na região do coração. Por isso é que a expressão de Píndaro, designando a alma como αἰῶνος εἰδωλον (imagem do éon), é sumamente significativa, pois o inconsciente não produz apenas oráculos, como também sempre representa o microcosmo”6. Eis aí por que os deuses somente suspenderam o terrível flagelo que devastava a Trácia, depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e se lhe prestaram as devidas honras fúnebres. Dotado de mana inesgotável, o crânio do vate e cantor tornou-se paládio poderoso e oráculo indiscutível. 4 Tem razão Mircea Eliade, ao afirmar que “parece impossível escrever sobre Orfeu e o Orfismo sem irritar certa categoria de estudiosos: quer os céticos e os ‘racionalistas’, que minimizam a importância do orfismo na história da espiritualidade grega, quer os admiradores e os ‘entusiastas’, que nele veem um movimento de enorme alcance”7. Falar de Orfismo é, no fundo, descontentar a gregos e troianos. Apesar dos pesares, vamos nós também entrar na guerra ... Na realidade, o Orfismo é um movimento religioso complexo, em cujo bojo, ao menos a partir dos séculos VI-Va.C., se pode detectar uma série de influências (dionisíacas principalmente, pitagóricas, apolíneas e certamente orientais), mas que, ao mesmo tempo, sob múltiplos aspectos, se coloca numa postura francamente hostil a muitos postulados dos movimentos também religiosos supracitados. Embora de maneira sintética, porque voltaremos obrigatoriamente ao assunto mais abaixo, vamos esquematizar as linhas básicas de oposição entre Orfeu e os princípios religiosos preconizados por Dioniso, Apolo e Pitágoras. Se bem que o profeta da Trácia se considere um sacerdote de Dioniso e uma espécie de propagador de suas ideias básicas, de modo particular no que se refere ao aspecto orgiástico, bem como ao êxtase e ao entusiasmo, quer dizer, à posse do divino, o Orfismo se opõe ao Dionisismo, não apenas pela rejeição total do diasparagmós e da omofagia, porquanto os órficos eram vegetarianos, mas sobretudo pela concepção “nova” da outra vida, pois, como se mostrou mais atrás, à p. 144, ainda que a religião dionisíaca tente expressar a unidade paradoxal da vida e da morte, não existem na mesma referências precisas à esperança escatológica, enquanto a essência do Orfismo é exatamente a soteriologia. Acrescente-se a tudo isto que, enquanto o êxtase dionisíaco se manifestava de modo coletivo, o órfico era, por princípio, individual. Curioso é que Orfeu era conhecido como “o fiel por excelência de Apolo” e até mesmo, numa variante do mito, passava por filho de Apolo e de Calíope. Sua lira teria sido um presente paterno e a grande importância que os órficos atribuíam à kdtharsis, à purificação, se devia ao deus de Delfos, uma vez que esta é uma técnica especificamente apolínea. A bem da verdade, somente a última afirmação é exata: os órficos realmente se apossaram da kdtharsis apolínea, ampliando-a, no entanto, aperfeiçoando-a e sobretudo “purificando-a” de suas conotações políticas. No tocante “à fidelidade e à filiação” de Orfeu, ambas expressam a investida dos sacerdotes de Delfos de se “apossarem” também de Orfeu, como, em grande parte,já o haviam feito com Dioniso, “apolinizando-o” e levando-o para o Olimpo. A catequese apolínea, todavia, não surtiu efeito com o filho de Calíope, porque nada mais antagônico que Orfeu e Apolo. Este, “exegeta nacional”, comandou a religião estatal com mão de ferro, freando qualquer inovação com base no métron traduzido no conhece-te a ti mesmo e no nada em demasia! Uma quase liturgia sem fé, a religião da pólis se resumia, em última análise, num festival sócio-político-religioso. Que prometia Apolo para o post mortem? Quais as exigências éticas e morais da religião oficial? Que se celebrassem condigna e solenemente as festas religiosas ... E depois? Talvez a resposta tenha sido dada bem mais tarde por Quinto Horácio Flaco: puluis et umbra sumus, somos pó e sombra! Pó e sombra, nada além da triste escatologia homérica, que a religião estatal, opressora e despótica teimava em manter sob a égide de Apolo. E até mesmo a kdtharsis apolínea visava primariamente à purificação do homicídio, ao passo que os órficos purificavam-se nesta e na outra vida com vistas a libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer. Fundamentando-se numa singular antropologia, numa inovadora teogonia e em novíssima escatologia, o Orfismo aprendeu a reservar as lágrimas para os que nasciam e o sorriso para os que morriam ... Entre o Pitagoricismo e o Orfismo, do ponto de vista religioso, há, efetivamente, semelhanças muito grandes: o dualismo corpo-alma; a crença na imortalidade da mesma e na metempsicose; punição no Hades e glorificação final da Psiqué no Elísion; vegetarismo, ascetismo e a importância das purificações. Todas essas semelhanças levaram muitos a considerar erradamente o Orfismo como mero apêndice do Pitagoricismo, mas tantas analogias não provam, como acentua Mircea Eliade, “a inexistência do Orfismo como movimento autônomo”. É muito possível, isto sim, que certos escritos religiosos órficos sejam de cunho, inspiração ou até mesmo obra de pitagóricos, mas não teria sentido pensar ou defender que a antropologia, a teogonia, a escatologia e os rituais órficos procedam de Pitágoras ou de seus discípulos. Os dois movimentos certamente se desenvolveram paralela e independentemente. Mas, se existem tantas semelhanças entre ambos, as diferenças são também acentuadas, sobretudo no que tange ao social, à política, ao modus uiuendi e ao aspecto cultural. Os pitagóricos organizavamse em seitas fechadas, de tipo esotérico. Movimento religioso de elite, talvez não fosse impertinente lembrar a obrigatoriedade pitagórica do silêncio e da abdicação, por parte de seus seguidores, da própria razão em favor da autoridade do mestre. Consideravam a sentença de seu fundador como a última palavra, uma espécie “de aresto inapelável e expressão indiscutível da verdade”. Depois do αὐτὸς ἔφη (autàs éphe), ipse dixit, “ele falou”, não havia mais o que discutir. De outro lado, os pitagóricos eram homens cultos e dedicavam-se a um sistema de “educação completa”: complementavam suas normas éticas, morais e ascéticas com o estudo em profundidade da música, da matemática e da astronomia, embora todas essas disciplinas e normas visassem, em última análise, a uma ordem mística. Mircea Eliade sintetiza essa ciência pitagórica de finalidade religiosa: “Entretanto, o grande mérito de Pitágoras foi ter assentado as bases de uma ‘ciência total’, de estrutura holística, na qual o conhecimento científico estava integrado num conjunto de princípios éticos, metafísicos e religiosos, acompanhado de diversas ‘técnicas do corpo’. Em suma, o conhecimento tinha uma função ao mesmo tempo gnosiológica, existencial e soteriológica. É a ‘ciência total’, do tipo tradicional, que se pode reconhecer tanto no pensamento de Platão como entre os humanistas do Renascimento italiano, em Paracelso ou nos alquimistas do século XVl8. O Pitagoricismo estava, ademais disso, voltado para a política. É sabido que “sábios pitagóricos” detiveram o poder, durante algum tempo, em várias cidades do sul da Itália, a Magna Graecia. O Orfismo, ao contrário do Pitagoricismo, era um movimento religioso aberto, de cunho democrático, ao menos na época clássica, e, embora contasse em seu grêmio com elementos da elite,jamais se imiscuiu em política e tampouco se fechou em conventículos de tipo esotérico. Se bem que o Papiro Derveni, datado do século IV a.C. e descoberto em 1962, perto da cidade de Derveni, na Tessalônica, dê a entender que, em época remota,já que o papiro é um comentário de um texto órfico arcaico, os seguidores de Orfeu se reuniam ou se fechavam em verdadeiras comunidades, não se pode, no período histórico, afirmar a existência de seitas órficas, no sentido de “conventos” em que se trancassem. Talvez o Orfismo fosse mais uma “escola”, uma comunidade, com seus mestres, que explicavam as doutrinas e orientavam os discípulos e iniciados na leitura da vasta literatura religiosa que o movimento possuía. Claro está que, com exceção do Papiro Derveni e das lamelas, de que se falará mais abaixo, os textos órficos de caráter “literário” que chegaram até nós são poucos e alguns de época bem recente, mas é necessário distinguir “a data da redação de um documento com a idade de seu conteúdo” e alguns dos escritos órficos pertencem inegavelmente a épocas bem tardias: uns pela data da redação, outros pelo conteúdo. Feito esse ligeiro balanço das convergências e divergências entre dionisismo, apolinismo, orfismo e pitagoricismo, vamos, agora, dar uma ideia das datas de Orfeu, da antiguidade do Orfismo e de algumas possíveis influências sobre ele exercidas pelo Oriente. Se Orfeu é uma figura integralmente lendária, o Orfismo é rigorosamente histórico. Enquanto Homero e Hesíodo iam dando forma poética às concepções religiosas do povo, havia na Hélade, desde o século VI a.C. ao menos, uma escola de poetas místicos que se autodenominavam órficos, e à doutrina que professavam davam-lhe o nome de Orfismo. Seu patrono e mestre era Orfeu. Organizavam-se, ao que tudo indica, em comunidades, para ouvir a “doutrina”, efetuar as iniciações e celebrar seu grande deus, o primeiro Dioniso, denominado Zagreu. Abstendo-se de comer carne e ovos (princípios da vida), praticando a ascese (devoção, meditação, mortificação) e uma catarse rigorosa (purificação do corpo e sobretudo da vontade, por meio de cantos, hinos, litanias), defendendo a metempsicose (a transmigração das almas) e negando os postulados básicos da religião estatal, o Orfismo provocou sérias dúvidas e até transformações no espírito da religião oficial e popular da Grécia. Quando se disse, no início deste capítulo, que Orfeu era um herói muito antigo, não se estava exagerando. Se bem que o nome do poeta e cantor surja pela vez primeira no século VI a.C., mencionado pelo poeta Íbico, de Régio, Frg. lOA, Bergk: 'Ονομακλυτως 'Ορφήν (Onomaklytos Orphén), “Orfeu de nome ilustre”, e ainda no mesmo século, o citaredo tenha seu nome, sob a forma 'Ορφας (Orphas), gravado numa métopa do Tesouro dos Siciônios em Delfos, seus adeptos o consideravam anterior a Homero. Pouco importa que o profeta de Zagreu tenha “vivido” antes ou depois do poeta da Ilíada. Se seus seguidores assim o proclamavam, é porque acreditavam no fato ou porque desejavam enfatizar e também aumentar-lhe a autoridade, fazendo-o ancestral do próprio símbolo da religião oficial, e salientar a importância de sua mensagem religiosa, cujo conteúdo contrasta radicalmente com a religião olímpica. Uma coisa, porém, é inegável: certos traços da “biografia” de Orfeu e o conteúdo de sua mensagem possuem inegavelmente um caráter arcaizante e o que se conhece de uns e de outro bastaria para localizar o esposo de Eurídice bem antes de Homero. Como os xamãs, Orfeu é curandeiro, músico e profeta; tem poderes de encantar e dominar os animais selvagens; através de uma catábase do tipo xamânico desce ao Hades à procura de Eurídice; é despedaçado pelas Mênades e sua cabeça se conserva intacta, passando a servir de oráculo; e, mais que tudo, é sempre apresentado como fundador de iniciações e de mistérios. Mais ainda: embora se conheçam apenas “os atos preliminares” dos mistérios e das iniciações tidas como fundadas por Orfeu, como o vegetarismo, a ascese, a catarse, os ἱεροὶ λόγοι (hierol lógoi), ou seja, “os livros sagrados” que continham a instrução religiosa e particularmente as posições teológicas cifradas na antropogonia, na teogonia, na escatologia e na metempsicose, duas conclusões se impõem: primeiro, se bem que se desconheçam a origem e a pré-história de Orfeu e do Orfismo, ambos estão muito longe da tradição homérica e da herança mediterrânea; segundo, as características xamânticas de sua biografia e o conteúdo de sua mensagem, que se contrapõem por inteiro à mentalidade grega do século VI a.C. e à religião olímpica de Apolo, postulam para Orfeu e para o Orfismo uma época bem arcaica. R. Pettazzoni defende, se não a origem, pelo menos uma influência marcante da trácia sobre o Orfismo: “Quaisquer que sejam suas mais remotas origens, um fato não se discute: o Orfismo se alimentou, desde cedo, de uma seiva religiosa proveniente da Trácia, e esta, por ter mantido o orgiasmo em sua espontaneidade natural, continuará a nutri-lo, graças às relações mais estreitas que, a partir do século VI a.C., Atenas começou a manter com o mundo bárbaro do Norte”9. Não há dúvida de que não se podem negar certas influências tracodionisíacas e, sobretudo, orientais sobre todo o Orfismo, mas alguns de seus ângulos, de modo especial a escatologia, parecem remontar a “uma herança comum imemorial, resultado de especulações milenares sobre os êxtases, as visões e os arrebatamentos, as aventuras oníricas e as viagens imaginárias, herança, por certo, diferentemente valorizada pelas diversas tradições”. No fundo, um arquétipo. Na Grécia, o mais notável representante do Orfismo e da poesia órfica foi o hábil versificador e imitador medíocre de Homero e Hesíodo, o célebre Onomácrito (século VI a.C.), sobre quem dizia Aristóteles, Frg. 7 Rose, que “a doutrina era de Orfeu, mas a expressão métrica pertencia a Onomácrito”. Antes de passarmos aos três pontos altos da doutrina órfica, vamos estampar, a título de conclusão de quanto se disse até agora, a admirável síntese dosábio e seguro professor sueco, Martin P. Nilsson, acerca do Orfismo e de sua significação religiosa: “O Orfismo é o compêndio e, ao mesmo tempo, o coroamento dos agitados e complexos movimentos religiosos da época arcaica. A constituição de uma cosmogonia em sentido especulativo, com o encaixe de uma antropogonia que, antes do mais, pretende explicar a dupla natureza do homem, composta de bem e de mal; o ritualismo nas cerimônias e na vida; o misticismo na doutrina e no culto; a elaboração de ideias acerca de uma vida no além, plástica e concreta, bem como a transformação do inferno em um lugar de castigo por influxo da exigência de reparação, segundo a ideia antiga de que a vida no outro mundo é uma repetição da existência sobre a terra. Tudo isto se pode constatar em outras partes, ao menos em esboço, mas a grandeza do Orfismo reside em ter combinado o todo numa estrutura harmônica. Sua realização genial foi situar o indivíduo e sua relação com a culpa e com a reparação da mesma no próprio âmago da religião. Desde o início, o Orfismo se apresentou como uma religião de minorias seletas e, por isso mesmo, muitos se sentiram repelidos por seus ritos primitivos e pela grotesca e fantástica indumentária mitológica de suas ideias. A evolução seguiu depois outro caminho: o ar claro e fresco do grande auge nacional, que se seguiu à vitória sobre os persas, dissipou as trevas e fez que se tornasse vitoriosa a tendência do espírito grego para a claridade e beleza sensível. O Orfismo mergulhou, então, como seita desprezada, nos estratos inferiores da população, onde continuou a vicejar até que os tempos novamente se transformassem e viesse abaixo a supremacia do espírito grego após meio milênio. Foi, então, que, mais uma vez, saiu à tona e contribuiu para a derradeira crise religiosa da antiguidade”10. 5 Os três pontos altos do Orfismo e sua mais séria contribuição para a religiosidade grega foram a cosmogonia, a antropogonia e a escatologia. Três inovações que hão de abalar os nervos da intocável religião olímpica. A cosmogonia órfica que, sob alguns aspectos, segue o modelo da de Hesíodo, já por nós exaustivamente exposta nos capítulos IX, X, XI, XII e XIII, do Vol. I, introduz novo motivo, aliás de caráter arcaico, já que se repete em várias culturas: o cosmo surgiu de um ovo. Mas não existe apenas este paradigma, pois são três as tradições cosmogônicas transmitidas pelo Orfismo. A primeira delas está nas chamadas Rapsódias Órficas11 : Crono, o Tempo, gera no Éter, por ele criado juntamente com o Caos, o Ovo primordial, onde tem origem o primeiro dos deuses, Eros, também chamado Fanes12, deus-criador, andrógino. Daí por diante a sequência é a mencionada por Hesíodo, ao menos até Zeus. Fanes (Eros) é, pois, o princípio da criação, que gerou os outros deuses. Zeus, no entanto, engoliu a Fanes e toda a geração anterior, criando um novo mundo. Observe-se que o tema da absorção é um fato comum em várias culturas. Crono devorara os filhos e o próprio Zeus engoliu sua esposa Métis, antes do nascimento de Atená. O gesto de Zeus, no caso em pauta, é significativo na cosmogonia órfica: de um lado, patenteia a tentativa de fazer de um deus cosmocrata, isto é, de uma divindade, que conquistou o governo do mundo pela força, um deus-criador; de outro, reflete uma séria indagação filosófica do século VI a.C., pois, como é sabido, o pensamento filosófico e religioso desta época preocupou-se muito com o problema do Um e do Múltiplo. Guthrie sintetiza bem essa indagação. Os espíritos religiosos do século VI a.C. se perguntavam com certa ansiedade: “Qual a relação existente entre cada indivíduo e o deus a que se sente aparentado? Como se pode realizar a unidade potencial implícita tanto no homem quanto no deus”? Por outra: “Qual a relação existente entre a realidade múltipla do mundo em que vivemos e a substância única e original de onde tudo procede?”13 O ato prepotente de Zeus, por conseguinte, engolindo a Fanes e a todos os seres, simboliza a tentativa de explicar a criação de um universo múltiplo a partir da Unidade. O mito de Fanes, apesar dos retoques, tem uma estrutura arcaica e reflete certas analogias com a cosmogonia oriental, principalmente com a egípcio-fenícia. Como esta versão teogônica órfica é a mais conhecida e, talvez, a mais importante na história do Orfismo, vamos esquematizá-la: A segunda tradição cosmogônica órfica é difusa e admite várias alternativas. Em resumo, reduz-se ao seguinte: Nix (Noite) gerou Úrano (Céu) e Geia (Terra), o primeiro casal primordial, donde procede, como em Hesíodo, o restante da criação; ou Oceano, de que emergiu Crono (Tempo), que, mais tarde, gerou Éter e Caos; ou ainda Monds (UM) que gerou É ris (Discórdia), que, por sua vez, separou Geia de Oceano (Águas) e de Úrano (Céu). A terceira e última tentativa órfica de explicar a origem do mundo foi recentemente revelada pelo já citado Papiro Derveni, em que tudo está centrado em Zeus. Um verso de “Orfeu” (col. 13,12) afirma categoricamente que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”. Para Orfeu, Moira (Destino) é o próprio pensamento de Zeus (cal. 15,5-7): “Quando os homens dizem: Mafra teceu, entendem que o pensamento de Zeus estipulou o que é o que será, bem como o que deixará de ser”. Oceano (cal. 18, 7-11) não é mais que uma hipóstase de Zeus, tanto quanto Geia (Deméter), Reia e Hera não passam de nomes diferentes de uma única deusa, quer dizer, de uma Grande Mãe. Para explicar o ato criador do pai dos deuses e dos homens, o texto afirma, sem mencionar a parceira, que Zeus fez amor “no ar”, literalmente, “no alto, por cima”, nascendo então o mundo. A unidade da existência (cal. 15,1-3) é igualmente proclamada: “o lógos do mundo é idêntico ao lógos de Zeus”, donde se pode concluir com Heráclito (Frg. B 32) que o nome que designa o “mundo” é “Zeus”. Como se pode observar, a cosmogonia órfica, particularmente a revelada pelo Papiro Derveni, caminhou a passos largos para uma tendência monista. Em conclusão: tomada em conjunto, a teogonia órfica possui elementos provenientes da Teogonia de Hesíodo, que influenciou quase todo o pensamento mitológico posterior respeitante ao assunto. É assim que a Noite e o Caos tiveram importância considerável nos contextos órficos. Estes elementos circularam por meio de variantes arcaicas e tardias e acabaram sendo engastadas num complexo mitológico órfico e individual. Outras facetas da cosmogonia órfica, como o Tempo (Khrónos) e o Ovo dão mostras de que se conheciam pormenores do culto e da iconografia orientais. O Tempo, particularmente, trai sua proveniência oriental nos relatos órficos pela forma concreta com que se apresenta: uma serpente alada e policéfala. Tais monstros multidivididos são orientalizantes nas suas características, principalmente de origem semítica, e começam a surgir na arte grega por volta do século VIII a.C. A antropologia, ou melhor, a antropogonia órfica, tem como consequência o crime dos Titãs contra Zagreu, o primeiro Dioniso. Segundo se mostrou mais atrás, às p. 121-122, após raptarem Zagreu, por ordem de Hera, os Titãs fizeram-no em pedaços, cozinharam-lhe as carnes num caldeirão e as devoraram. Zeus, irritado, fulminou-os, transformando-os em cinzas e destas nasceram os homens, o que explica que o ser humano participa simultaneamente da natureza titânica (o mal) e da natureza divina (o bem), já que as cinzas dos Titãs, por terem devorado a Dioniso-Zagreu, continham igualmente o corpo do menino Dioniso. O mito do nascimento do homem, a antropogonia, é muito mais importante no Orfismo do que a Cosmogonia. Platão (Leis, 3,701B) refere-se à antropogonia órfica, ao dizer que todos aqueles que não querem obedecer à autoridade constituída, aos pais e aos deuses, patenteiam sua natureza titânica, herança do mal. Mas cada ser humano, diz o filósofo ateniense, carrega dentro de si uma faísca de eternidade, uma chispa do divino, uma parcela de Dioniso, ou seja, uma alma imortal, sinônimo do bem. Em outra passagem (Crátílo, 400C), alude à doutrina, segundo a qual o corpo é uma sepultura da alma durante a vida e acrescenta que os órficos chamam assim ao corpo, porque a alma está encerrada nele como num cárcere, até que pague as penas pelas culpas cometidas. A Psiqué é a parte divina do homem; o corpo, sua prisão. Apagava-se, destarte, no mapa religioso órfico, a tradicional concepção homérica que considerava o corpo como o homem mesmo e a alma como uma sombra pálida e abúlica, segundo se mostrou no Vol. 1, p. 153-154. Uma passagem importante de Píndaro (Frg. 131 Bergk) permite-nos compreender melhor como foi possível essa mutação completa de valores. O corpo, diz o poeta tebano, segue a poderosa morte; a alma, porém, que procede apenas dos deuses, permanece. A alma, acrescenta, dorme, enquanto nossos membros estão em movimento, mas aquele, que a faz dormir, mostra-lhe em sonhos o futuro. Desse modo, se os sonhos são enviados pelos deuses e a alma é divina, é preciso libertá-la do cárcere do corpo, para que possa participar do divino, dos sonhos. O homem, pois, tendo saído das cinzas dos Titãs, carrega, desde suas origens, um elemento do mal, ao mesmo tempo que um elemento divino, do bem. Em suma, uma natureza divina original e uma falta original e, a um só tempo, um dualismo e um conflito interior radical. Nos intervalos do êxtase e do entusiasmo, o dualismo parece desaparecer, o divino predomina e libera o homem de suas angústias. Essa bem-aventurança, todavia, passada a embriaguez do êxtase e do entusiasmo, se evapora na triste realidade do dia a dia. É bem verdade que a morte põe termo às tribulações, mas, pela doutrina órfica da metempsicose, de que se falará logo a seguir, o elemento divino terá obrigatoriamente que se “reunir” a seu antagonista titânico, para recomeçar nova existência sob uma outra forma, que pode ser até mesmo a de um animal. Assim, em um ciclo, cujo término se ignora, cada existência é uma morte, cada corpo é um túmulo. Tem-se aí a célebre doutrina do σῶμα-σῆμα (sôma-sêma), do corpo (sôma) como cárcere (sêma) da alma. Assim, em punição de um crime primordial, a alma é encerrada no corpo tal como no túmulo. A existência, aqui neste mundo, assemelha-se antes à morte e a morte pode se constituir no começo de uma verdadeira vida. Esta verdadeira vida, que é a libertação final da alma do cárcere do corpo, quer dizer, a posse do “paraíso”, sobre cuja localização se falará também, não é automática, uma vez que, “numa só existência e numa só morte”, dificilmente se conseguem quitar a falta original e as cometidas aqui e lá. Talvez, e assim mesmo o fato é passível de discussão, só os “grandes iniciados órficos” conseguiriam desvincular-se da “estranha túnica da carne”, para usar da expressão do órfico, filósofo e poeta Empédocles (Frg. B 155 e 126), após uma só existência. A alma é julgada e, consoante suas faltas e méritos, depois de uma permanência no além, retorna ao cárcere de novo corpo humano, animal ou, até mesmo, pode mergulhar num vegetal. Sendo o Orfismo, no entanto, uma doutrina essencialmente soteriológica, oferece a seus seguidores meios eficazes para que essa liberação se faça de um modo mais rápido possível, com os menores sofrimentos possíveis, porquanto as maiores dores neste vale de lágrimas são tão somente um pálido reflexo dos tormentos no além ... Para um sério preparo com vistas a libertar-se do ciclo das existências, o Orfismo, além da parte iniciática, mística e ritualística, que nos escapa, dava uma ênfase particular à instrução religiosa, através dos “hierol lógoi”, “dos livros sagrados”, bem como obrigava seus adeptos à prática do ascetismo, do vegetarianismo e de rigorosa catarse. Mortificações austeras, como jejuns, abstenção de carne e de ovos, ou, por vezes, de qualquer alimento, castidade no casamento ou até mesmo castidade absoluta, como a do jovem vegetariano Hipólito na tragédia euripidiana que tem o nome do herói consagrado à deusa virgem Ártemis, meditação, cânticos, austeridade no vestir e no falar são alguns dos tópicos que compõem o verdadeiro catálogo do ascetismo órfico. Vegetarianos, os órficos não apenas se abstinham de carne, mas também eram proibidos de sacrificar qualquer animal, o que, sem dúvida, suscitava escândalo e indignação, por isso que o sacrifício animal e o banquete sacrifical eram precisamente os ritos mais característicos da religião grega. O fundamento de tal proibição há de ser buscado primeiramente na doutrina da metempsicose14, uma vez que todo animal podia ser a encarnação de uma alma, de um elemento dionisíaco e divino e, por isso, virtualmente sagrado. Além do mais, poderia estar animado pela psiqué de um parente, até muito próximo ... De outro lado, abstendo-se de carne e dos sacrifícios cruentos, obrigatórios no culto oficial, os seguidores do profeta da Trácia estavam, sem dúvida, contestando a religião oficial do Estado e proclamando sua renúncia às coisas deste mundo, onde se consideravam estrangeiros e hóspedes temporários. Com o sacrifício cruento em Mecone, assunto de que se tratou no Vol. I, p. 175, Prometeu, tendo abatido um boi e reservado astutamente para os deuses os ossos cobertos de gordura e para os homens as carnes, desencadeou a cólera de Zeus. Profundamente irritado com o logro do primeiro sacrifício que os mortais faziam aos deuses por meio de Prometeu, o senhor do Olimpo privou aqueles do fogo e pôs termo ao estado paradisíaco, quando os homens viviam em perfeita harmonia com os imortais. Ora, com sua recusa em comer carne, decisão de não participar de sacrifícios cruentos e prática do vegetarianismo, os órficos visavam também, de algum modo, a purgar a falta ancestral e recuperar a felicidade perdida. Não bastam, no entanto, ascetismo e vegetarianismo para libertar a alma do cárcere da matéria. Se a salvação era obtida sobretudo através da iniciação, quer dizer, de revelações de cunho cósmico e teosófico, a catarse, a purificação desempenhava um papel decisivo em todo o processo soteriológico do Orfismo. É bem verdade que nas ὄργια (órguia), nos orgiasmos dionisíacos, provocados pelo êxtase e entusiasmo, se realizava uma comunhão entre o divino e o humano, mas essa união, segundo se mostrou, era efêmera e “obtida pelo aviltamento da consciência”. Os órficos aceitaram o processo dionisíaco e dele não só arrancaram uma conclusão óbvia, a imortalidade, donde a divindade da alma, mas ainda o enriqueceram com κάθαρσις (kátharsis), a catarse, que, embora de origem apolínea, foi empregada em outro sentido pelos seguidores de Orfeu. Ainda que se desconheça a técnica purificatória órfica, além do vegetarianismo, abluções, banhos, jejuns, purificação da vontade por meio de exame de consciência, de cantos, hinos, litanias e, sobretudo, a participação nos ritos iniciáticos, pode-se ter uma ideia do esforço que faziam os órficos no seu afã catártico, através de uma citação cáustica de Platão, que logo se transcreverá. Observe-se, todavia, que nem todos esses vergastados pelo filósofo são adeptos de Orfeu. Ao lado de homens sérios, verdadeiros purificadores órficos, ascetas e adivinhos, aos quais o filósofo Teofrasto (cerca de 372-287 a.C.) dá o nome de 'Ορφεοτελεοσταί (Orpheotelestaí), “iniciadores nos mistérios órficos”, pululavam, desde o século VI a.C., os embusteiros, charlatães, vulgares taumaturgos e curandeiros. Usando o nome de Orfeu, conseguiam, as mais das vezes, embair a ignorância e a boa-fé de suas vítimas. Fenômeno, seja dito de passagem, que se repete em todas as épocas, sobretudo nas chamadas religiões populares. Foi exatamente contra esses impostores que o autor do Fédon deixou em sua República, 364b-365a, uma página mordaz, que, de certa forma, nos ajuda a compreender um pouco mais a técnica purificatória do Orfismo: “ ... sacrificantes mendigos, adivinhos, que assediam as portas dos ricos, persuadem-nos de que obtiveram dos deuses, por meio de sacrifícios e encantamentos, o poder de perdoar-lhes as injustiças que puderam cometer, ou que foram cometidas pelos seus antepassados [ ... ]. Para justificar os ritos, produzem uma multidão de livros, compostos por Museu e por Orfeu, filhos da Lua e das Musas. Com base nessas autoridades, persuadem não só indivíduos, mas também Estados, de que há para os vivos e os mortos absolvições e purificações [ ... ]; e essas iniciações, pois é assim que lhes chamam, nos livram dos tormentos dos infernos”15 O terceiro e último ato do drama gigantesco da existência e da morte é precisamente a sorte que aguardava a alma no além e o caminho perigoso que a conduzia até lá e a trazia de volta ao mundo dos vivos, para recomeçar uma nova tragédia. Estamos nos domínios da Escatologia16. Entre algumas obras apócrifas atribuídas a Hesíodo há uma Catábase de Teseu e Pirítoo ao Hades. O Ulisses homérico já descera igualmente até a periferia da outra vida. Pois bem, a catábase homérica e hesiódica se enriqueceu com uma terceira, órfica, dessa feita, a Κατάβασις εἰς Ἅιδου (Katábasis eis Haídu), “a Descida ao Hades”. Pouco interessa a autoria desse poema, o que importa é salientar que a escatologia é o ponto capital do Orfismo. Com a mântica, a escatologia representa um segundo elemento decisivo nas novas tendências religiosas do século VI a. C. Como Orfeu foi um dos raros mortais a descer em vida à região das trevas, é muito natural que seus seguidores construíssem, dentro dos novos padrões religiosos órficos, uma nova escatologia, reestruturando inclusive toda a topografia do além. Se em Homero o Hades é um imenso abismo, onde, após a morte, todas as almas são lançadas, sem prêmio nem castigo, e para todo o sempre, segundo comentamos no Vol. I, p. 147-154, e se em Hesíodo, conforme está no Vol. I, p. 188, já existe uma nítida mudança escatológica, se não na topografia infernal, mas no destino de algumas almas privilegiadas, o Orfismo fixará normas topográficas definidas e reestruturará tudo quanto diz respeito ao destino último das almas. No tocante à topografia, o Hades foi dividido, orficamente, em três regiões distintas: a parte mais profunda, abissal e trevosa, denomina-se Tdrtaro; a medial, Érebo, e a mais alta e nobre, Elísion ou 'Ηλύσια πεδία (Elysia pedía), os Campos Elísios. Ao que tudo indica, os dois primeiros eram destinados aos tormentos que se infligiam às almas, que lá embaixo purgavam suas penas, havendo, parece, uma clara gradação nos suplícios aplicados: os do Tártaro eram muito mais violentos e cruéis que os do Érebo. Os Campos Elísios seriam destinados aos que, havendo passado pelos horrores dos dois outros compartimentos, aguardavam o retorno. Isto significa que a estada no Hades era impermanente para todos. Duas observações se impõem: será que também os órficos desciam ao Hades e estavam sujeitos aos castigos e à metempsicose ou à ensomatose e, em segundo lugar, depois de quitadas todas as penas, onde estaria localizado o “paraíso”? Quanto às almas dos órficos, houve sempre uma certa hesitação a respeito de também elas passarem pelo processo da transmigração ou reencarnação. Talvez, pelo próprio exame das fontes órficas que se possuem, se possa afirmar que o problema estaria na dependência de ser ou não um iniciado perfeito (o que seria muito difícil) nos Mistérios de Orfeu ... No que diz respeito à localização do “paraíso”, existem, igualmente, algumas hesitações e contradições, mas, depois dos ensinamentos de Pitágoras, de algumas descobertas astronômicas e dasespeculações cosmológicas dos filósofos Leucipo e Demócrito, respectivamente dos fins do século VI e fins do V a.C., se chegou à conclusão de que a Terra era uma esfera e, em consequência, o Hades subterrâneo e a localização da Ilha dos Bem-Aventurados no extremo Ocidente deixaram “cientificamente” de ter sentido. O próprio Pitágoras, numa sentença, afirma que a “Ilha dos Bem-Aventurados eram o Sol e a Lua”, ainda que a própria catábase do grande místico e matemático, porque também ele teria visitado o reino dos mortos, pressupunha um Hades localizado nas entranhas da Terra. A ideia de se colocar o “céu” lá no alto, na Lua, no Éter, no Sol ou nas Estrelas, tinha sua lógica, uma vez que, ao menos desde o século V a.C., se considerava que a substância da alma era aparentada com o Éter ou com a substância das estrelas. A localização homérica do Hades nas entranhas da Terra, entretanto, era tradicional e forte demais para que o povo lhe alterasse a geografia ... Feita esta ligeira introdução ao velho e novo Hades, vamos finalmente acompanhar “um órfico” até lá embaixo e observar o que lhe acontece. Nossa primeira fonte será Platão, que, desprezando a tradição mitológica clássica e “estatal”, fundamentada em Homero e Hesíodo, organizou uma mitologia da alma, com base na doutrina órfico-pitagórica e em certas fontes orientais. A segunda serão as importantíssimas lamelas17, pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na ilha de Creta. Essas lamelas foram encontradas em túmulos órficos18, nas cidades de Túrio e Petélia, na Magna Graecia, e datam dos séculos IV e III a.C., bem como em Eleuterna, na ilha de Creta, séculos 11-1 a.C., e possivelmente em Roma, século II d.C. Apesar das diferenças de época e de procedência, as fórmulas nelas gravadas têm, com diferenças mínimas, conteúdo idêntico. É quase certo que procedem de um mesmo texto poético, que deveria ser familiar a todos os órficos, como uma espécie de norma de sua dogmática escatológica, o que os distinguia do comum dos homens e traduzia sua fé na salvação final, a salvação da alma. A obsessão dos iniciados órficos pela salvação os teria levado a depositar nos túmulos de seus mortos não o texto inteiro, mas ao menos fragmentos escolhidos, certas mensagens e preceitos que lhes pareciam mais importantes do cânon escatológico. Tais fórmulas serviam-lhes certamente de bússola, de “guia para sair à luz”, como o impropriamente chamado Livro dos Mortos dos antigos egípcios, como o Bardo Thôdol tibetano e o Livro Maia dos Mortos. Voltemos, porém, à “viagem” órfica. O ritual “separatista” se iniciava pelo sepultamento: um órfico não se podia inumar com indumentária de lã, porque não se deviam sacrificar os animais. Realizada a cerimônia fúnebre, com simplicidade e alegria, afinal “as lágrimas se reservavam no Orfismo para os nascimentos”, a alma iniciava seu longo e perigoso itinerário em busca do “seio de Perséfone”. No Fédon (108a) e no Górgias (524a) de Platão se diz que o caminho não é um só nem simples, porque vários são os desvios e muitos os obstáculos: “A mim, todavia, quer me parecer que ele não é simples, nem um só, pois, se houvesse uma só rota para se ir ao Hades, não era necessária a existência de guias,já que ninguém poderia errar a direção. Mas é evidente que esse caminho contém muitas encruzilhadas e voltas: a prova disso são os cultos e costumes religiosos que temos” (Fédon, 108a). A República (614b) deixa claro que os justos tomam a entrada da direita, enquanto os maus são enviados para a esquerda. As lamelas contêm indicações análogas19 : “Sejas bem-vindo, tu que caminhas pela estrada da direita em direção às campinas sagradas e ao bosque de Perséfone”20. A alma é bem orientada em seu trajeto: “À esquerda da mansão do Hades, depararás com uma fonte a cujo lado se ergue um cipreste branco. Não te aproximes muito dessa fonte. Encontrarás, a seguir, outra fonte: a água fresca jorra da fonte da Memória e lá existem guardas de sentinela. Dize-lhes: ‘Sou filho de Geia e de Úrano estrelado, bem o sabeis. Estou, todavia, sedento e sinto que vou morrer. Dai-me, rapidamente, da água fresca que jorra da fonte da Memória’. Os guardas prontamente te darão água da fonte sagrada e, em seguida, reinarás entre os outros heróis”. As almas que se dirigiam ao Hades bebiam das águas do rio Lete, a fim de esquecer suas existências terrenas. Os órficos, todavia, na esperança de escapar da reencarnação, evitavam o Lete e buscavam a fonte da Memória. Uma das lamelas deixa claro esse fato: “Saltei do ciclo dos pesados sofrimentos e das dores e lancei-me com pé ligeiro em direção à coroa almejada. Encontrei refúgio no seio da Senhora, a rainha do Hades”. Perséfone responde-lhe: “Ó feliz e bem-aventurado! Eras homem e te tornaste deus”. No início da lamela há uma passagem significativa. Dirigindo-se aos deuses ctônios, diz o iniciado: “Venho de uma comunidade de puros, ó pura senhora do Hades, Eucles, Eubuleu21 e vós outros, deuses ctônios. Orgulho-me de pertencer à vossa raça bem-aventurada”. A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas refrigério, pelo longo caminhar da mesma em direção à outra vida, mas sobretudo simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Nós conhecemos bem esta sede de água fresca, da água viva, através dos escritos neotestamentários de países de cultura grega Oo 7,37; Ap 22,17). Evitando beber das águas do rio Lete, o rio do esquecimento, penhor de reencarnações, a alma estava apressando e forçando sua entrada definitiva no “seio de Perséfone”. Mas, se a alma tiver que regressar a novo corpo, terá forçosamente que tomar das águas do rio Lete, para apagar as lembranças do além. Se para os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida. Desse modo, na doutrina de Orfeu, o rio Lete teve parte de suas funções prejudicadas. Bebendo na fonte da Memória, a alma órfica desejava apenas lembrar-se da bemaventurança. O encontro de uma árvore, no caso o cipreste branco, símbolo da luz e da pureza, junto a uma fonte, a fonte da Memória, é uma imagem comum do Paraíso, em muitas culturas primitivas. Na Mesopotâmia, o rei, representante dos deuses na Terra, vivera junto aos imortais, num jardim fabuloso, onde se localizava a Árvore da Vida e a Água da Vida. Seria conveniente não nos esquecermos de que em grego, παράδεισος (parádeisos), fonte primeira de paraíso, significava também jardim. E ao que consta, o jardim do Éden estava cheio de árvores e de fontes ... Essejardim do Éden (Gn 13,lO;Jl 2,3), simbolizando o máximo de felicidade e sendo equiparado ao Jardim de Deus (Is 51,3; Ez 31,8-9). Semelhante jardim concretiza os ideais da futura restauração (Ez 36,35), da felicidade escatológica, que era considerada como um retorno à bem-aventurança perdida dos tempos primordiais. Passemos, agora, a acompanhar outra alma, que talvez tenha tomado a entrada da esquerda ou tenha vindo muito “carregada” do mundo dos vivos. Os sofrimentos que pesavam sobre aqueles que haviam partido desta vida com muitas faltas são vivamente desenhados por Platão, por uma passagem de Aristófanes, pelo neoplatônico Plotino e até mesmo pela arte figurada. “Mergulhados no lodaçal imundo, ser-lhes-á infligido um suplício apropriado à sua poluição moral” (República, I, 363d; Fédon, 69c); “esvair-se-ão em inúteis esforços para encher um barril sem fundo ou para carregar água numa peneira”22 (Górgias, 493b; República, 363e); “como porcos agrada-lhes chafurdar na imundície” (Enéadas, 1,6,6). Aristófanes, num passo da comédia As Rãs, 145ss., descreve, pelos lábios de Héracles, o que aguarda certos criminosos na outra vida: “Verás, depois, um lodaçal imundo e submersos nele todos os que faltaram ao dever da hospitalidade [ ... ]; os que espancaram a própria mãe; os que esbofetearam o próprio pai ou proferiram um falso juramento”. Um exemplo famoso dos tormentos aplicados no Hades é a pintura do inferno com que o grande artista do século V a.C., Polignoto, decorou a Λέσχη (Léskhe), “galeria, pórtico”, de Delfos: nela se via, entre outras coisas, um parricida estrangulado pelo próprio pai; um ladrão sacrílego sendo obrigado a beber veneno e Eurínomo (uma espécie de “demônio”, segundo Pausânias, metade negro e metade azul, como um moscardo) está sentado num abutre, mostrando seus dentes enormes em sarcástica gargalhada e roendo “as carnes dos ossos” dos mortos. Todos esses criminosos e sacrílegos estavam condenados a passar por penosas metempsicoses. Diga-se, logo, que é, até o momento, muito difícil detectar a origem e a fonte de tal crença. Na Grécia, o primeiro a sustentá-la e, possivelmente, a defendê-la foi o mitógrafo e teogonista Ferecides de Siros (séc. VI a.C.), que não deve ser confundido com seus homônimos, o genealogista Ferecides de Atenas (séc. V a.C.) e Ferecides de Leros, posterior e muito menos famoso que os dois anteriores. Apoiando-se em crenças orientais, o mitógrafo de Siros afirmava que a alma era imortal e que retornava sucessivamente à Terra para reencarnar-se. No século de Ferecides, somente na Índia a crença na metempsicose estava claramente definida. É bem verdade que os egípcios consideravam, desde tempos imemoriais, a alma imortal e suscetível de assumir formas várias de animais vários, mas não se encontra na terra dos faraós uma teoria geral da metempsicose. Caso contrário, por que e para que a mumificação? De qualquer forma, as teorias de Ferecides não surtiram muito efeito no mundo grego. Os verdadeiros defensores, divulgadores e sistematizadores da “ensomatose” e da metempsicose foram o Orfismo, Pitágoras e seus discípulos, e o filósofo Empédocles. A alma, pois, não quite com suas culpas, regressava para reencarnar-se. O homem comum percorria o ciclo reencarnatário dez vezes e o intervalo entre um e outro renascimento era de mil anos, cifras que, no caso em pauta, são meros símbolos, que expressam não quantidades, mas sim ideias e qualidades, o que, aliás, se constitui na essência do número. Finda a breve ou longa jornada, a alma podia finalmente dizer, como está gravado em uma das lamelas: “Sofri o castigo que mereciam minhas ações injustas [ ... ]. Venho, agora, como suplicante, para junto da resplandecente Perséfone, para que, em sua complacência, me envie para a mansão dos bem-aventurados”. A deusa acolhe o suplicante justificado com benevolência: “Bem-vindo sejas, ó tu que sofreste o que nunca havias sofrido anteriormente[ ... ]. Bem-vindo, bem-vindo sejas tu! Segue pela estrada da direita, em direção às campinas sagradas e aos bosques de Perséfone”. Um fragmento da tragédia euripidiana (sempre Eurípides!), Os Cretenses (Frg. 4 72), atesta a presença na ilha de Minas, terra das iniciações, da religião de Zagreu e, portanto, do Orfismo. O poeta nos apresenta um coro de adeptos de Zagreu, numa palavra, de iniciados órficos, que “erra na noite” e se alegra “por haver abandonado os repastas cruentos”: “Absolutamente puro em minha indumentária branca, fugi da geração dos mortais; evito os sepulcros e me abstenho de alimentos animais; santificado, recebi o nome da bákkhos”. Este nome, que é, ao mesmo tempo, o nome do deus, exprime a comunhão mística com a divindade, isto é, o núcleo e a essência da fé órfica. Bákkhos, Baco, é, como se sabe, um dos nomes de Dioniso, que era, exatamente, sob seu aspecto orgiástico, a divindade mais importante dos órficos. Nome esotérico e sagrado, bákkhos, “baco”, servirá para distinguir o verdadeiro místico, o verdadeiro órfico, o órfico que conseguiu libertar-se de uma vez dos liames do cárcere do corpo. O Orfismo tudo fez para impor-se ao espírito grego. De saída, tentou romper com um princípio básico da religião estatal, a secular maldição familiar, segundo a qual, como já se comentou no Vol. I, p. 80-86, cada membro do génos era corresponsável e herdeiro das hamartíai, das faltas cometidas por qualquer um de seus membros. Os órficos solucionaram o problema de modo original: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela (e foi a primeira vez que a ideia surgiu na Grécia) se paga aqui; quem não conseguir purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras reencarnações, até a catarse final. Mas, diante do citaredo trácio erguia-se a pólis com sua religião tradicional, com suas criações artísticas de beleza inexcedível e, mais que tudo, com seu sacerdote e poeta divino, Homero. É bem verdade que, desde o início, o Orfismo pediu socorro às Musas e Orfeu tentou modelar-se sobre a personagem do criador da epopeia, tornando-se também, em suas rapsódias e hinos, poeta e cantor, mas a distância entre Homero e Orfeu é aquela mesma estabelecida por Hesíodo entre o Olimpo e o Tártarο... E mais uma vez a Ásia curvou-se diante da Hélade! Foi, não há dúvida, mais uma vitória da cultura que da religião, mas, com isso, o Orfismo jamais passaria, na Grécia, de uma “seita”, de uma confraria. Foi uma pena! Na expressão feliz de Joseph Holzner23, é difícil precisar em seus pormenores em que consiste a missão da Grécia na história da salvação e qual foi a influência providencial dos Mistérios. Talvez essa missão se encontre menos em minúcias precisas do que no todo da mentalidade helênica. K. Prümm não se equivocou ao afirmar que “a história do desenvolvimento espiritual da humanidade, apesar de seus saltos e tropeços, apesar de sua descontinuidade, segue um plano estabelecido por Deus”. No fundo deste plano existe um projeto de salvação. O Cardeal Newman, na história do desenvolvimento da doutrina cristã, insiste no papel providencial dos Mistérios: “As transformações na história são, as mais das vezes, preparadas e facilitadas por uma disposição providencial, pela presença de certas correntes do pensamento e sentimentos humanos, que apontam o rumo da futura transformação [ ... ]. Foi isto exatamente o que aconteceu com o cristianismo, como exigia sua alta transcendência. O cristianismo chegou, anunciado, acompanhado e preparado por uma multidão de sombras, impotentes e monstruosas, como são todas as sombras... “. Os que acreditam seriamente na vontade salvífica universal de Deus devem admitir que o Senhor não podia permanecer indiferente aos inúmeros esforços, muitas vezes sinceros, desses gregos que foram educados nos Mistérios. Os gregos, realmente, não tiveram os deuses que mereciam. Esse povo extraordinário teve sede de amor e submeteu-se, por isso mesmo, às exigências arbitrárias de seus deuses. Foi, no entanto, enganado e traído por eles. Desse modo, do ponto de vista religioso, a era helênica terminou profundamente decepcionada. A antiguidade, já em seu declínio, retratou sua própria alma no mito gracioso e profundo de Eros e Psiqué. A Psiqué grega, que buscou por todos os caminhos, no céu, na terra e nos infernos, o único alimento que podia satisfazer sua fome de amor, o amor divino. Mais um pouco, e as sombras, de que fala o Cardeal Newman, haveriam de dissipar-se com os raios do Novo Sol, que brilharia intensamente também no céu azul da Hélade. No Olimpo, Psiqué celebrará suas núpcias com Eros. Repetindo, mais uma vez, o pensamento lúcido de Jean Daniélou, S.J., segundo quem uma coisa é a revelação e outra o modo como esta revelação foi transmitida pelos escritores sacros, haurida, em grande parte, nas civilizações antigas (e particularmente na grega, acrescentaríamos) é que se pode avaliar bem os significantes com que o Orfismo contribuiu para a formação do cristianismo nascente. O mito grego ornamentou simbolicamente Orfeu com o nimbo da santidade. Nas pinturas das catacumbas romanas ele aparece sob a figura de citaredo e de cantor do amor divino. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como BomPastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”. A alma grega, realmente, não podia suportar a ruptura entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, um mundo que entrega o homem à morte e proclama a imortalidade dos deuses. Eis por que tanto se lutou na Grécia órfico-pitagórico-platônica pela imortalidade da alma. É que, existindo no homem aquele elemento divino, aquela faísca de eternidade, de que tanto se falou, é preciso libertá-la, constituindo-se essa liberação no tema central dos mistérios gregos. Não há dúvida de que a gnose é filha bastarda da antiguidade helênica: a alma, como diz Berdiaev deve forçosamente retornar à sua pátria eterna. Além da óbvia influência sobre Píndaro e sobretudo, juntamente com o Piagoricismo, sobre a gigantesca síntese platônica da nova “mitologia da alma”, o Orfismo chegou até os primeiros séculos da era cristã, ainda com muita vitalidade. Em seguida, foi-se apagando lentamente, mas Orfeu, mesmo independente do Orfismo, teve sua figura reinterpretada “pelos teólogos judaicos e cristãos, pelos hermetistas, pelos filósofos do Renascimento, pelos poetas, desde Poliziano até Pape, e desde Novalis até Rilke e Pierre Emmanuel”. Também nós, de língua portuguesa, tivemos a nossa reinterpretação do mito de Orfeu e Eurídice: trata-se da tragédia de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição. Em homenagem ao poeta carioca, vamos transcrever, do Segundo Ato, um suspiro do violão de Orfeu em busca de sua bem-amada. Enlouquecido com a morte de Eurídice, Orfeu desce o morro e chega à Cidade, quer dizer, ao Irifemo: era dia de Carnaval. “Plutão”, possivelmente diretor do clube “Os Maiorais do Inferno”, expulsa-o, para que o poeta e cantor não perturbe a folia. Vejamos uma fala da personagem principal de Vinícius, que bem lhe caracteriza a catábase, do morro para a cidade: Orfeu: “Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido - sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo o mundo canta, todo o mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta da vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez!” 1. A mordaz alusão de Platão, em O Banquete, 179d, à covardia de Orfeu, que “não soubera morrer por amor a seu amor”, é apenas um meio de servir a seu objetivo, isto é, de mostrar que o verdadeiro amor consiste na morte do amante pelo amado ou vice-versa. Para isso o filósofo ateniense introduziu certas modificações na urdidura do mito. 2. Quando se fala de anima e animus, “feminino e masculino”, não se quer fazer referência a determinações sexuais, mas a princípios, uma vez que anima e animus são arquétipos que servem de elo entre o inconsciente profundo e o Eu, tanto na mulher quanto no homem. 3. LEACH, Edmund & AYCOCK, D. Alan. Structuralist Interpretations of Biblical Myth. London: Cambridge, 1983, p. 113ss. 4. Ibid., p. 307ss. 5. Varia Historia, XII, 8. 6. JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 247s. [Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB.] 7. Ibid., p. 199. 8. bid., p. 214s. 9. Ibid., p. 120. 10. Ibid., p. 40s. 11. São muitos os escritos atribuídos a “Orfeu”. Aliás, os órficos davam grande importância aos 'Ιεροὶ Λόγοι (Hierol Lógoi), aos “textos sagrados”, aos Livros. Platão (República, 364e, Crátilo, 402b, Filebo, 66c) fala de uma multiplicidade de livros compostos por Orfeu e Museu, “seu filho ou discípulo”; Eurípides (Hipólito Porta-Coroa, 954) menciona as escrituras órficas e Aristóteles (Da Alma, 410b28) conhecia as teorias da alma existentes nos “pretensos versos órficos”. Uma grande quantidade de obras atribuídas a Orfeu é ainda catalogada pela Suda. No tocante particularmente às denominadas Rapsódias ôificas, de que subsistem muitos fragmentos (Kern, Frgs. 59-235), sobretudo através de citações em obras neoplatônicas, é bom lembrar que se trata de uma compilação tardia em hexâmetros, cuja data de composição é variável. É bem possível que crenças genuinamente arcaicas tenham sido engastadas em alguns versos dessa Ilíada ôifica, apesar de sua composição e compilação tardias. 12. Fanes, em grego Φάνης (Phánes), do verbo φαίνειν (phaínein), “brilhar, fazer-se visível, aparecer” é o “Brilhante, a Luz que brilha”. Alado, andrógino e autógamo, brilhante e etéreo, dá à luz as primeiras gerações divinas e é o criador supremo do cosmo. 13. GUTHRIE, W.K.C. The Greeks and their Gods. London: Cambridge, 1950, p. 319. 14. Existe, stricto sensu, uma diferença sensível entre reencarnação e metempsicose. A primeira diz-se em grego ἐνσωμάτωσις (ensomátosis), “ensomatose”, é a reassunção pela alma de um novo corpo humano; a segunda, μετεμψύχωσις (metempsykhosis), “metempsicose”, é a transmigração da alma para um outro corpo, humano, animal ou até para um vegetal. 15. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 205, n. 14. 16. Escatologia, do grego ἔσχατος (éskhatos), “extremo, último” e Λόγος “tratado, doutrina”, é o tratado sobre os novíssimos, isto é, acerca do fim último do homem e da humanidade. 17. Alguns sábios e pesquisadores, como G. Zuntz, Persephone. Three Essays on Religion and Thought in Magna Graecia. London: Oxford, 1971, p. 275-393, acham que as lamelas são de origem pitagórica, mas a communis opinio se inclina por julgá-las órficas com influência pitagórica. Enfim, lamelas óifico-pitagóricas ... Todas elas são marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas em correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaportes para a eternidade. 18. Os Órficos sepultavam seus mortos em “cemitérios comunitários”, separados da sorte e do mundo dos restantes mortais. Uma inscrição do século V a.C., descoberta na cidade grega de Cumas (Sul da Itália), proibia que se enterrasse em determinado lugar quem não se tivesse tornado bákkhos (que se explicará mais abaixo), isto é, quem não fosse iniciado. Tal disposição testemunha a solidariedade firme e estreita dos adeptos de uma fé exclusiva e esotérica, na qual as realidades da morte possuíam importância considerável e, em função delas, o local e as condições da sepultura. Até na morte, os iniciados órficos desejavam ficar à margem dos demais seres humanos. A colocação das lamelas na tumba confirma, de outro lado, ideias e hábitos particulares, concernentes à sepultura: as lamelas, contrariamente ao uso comum, não trazem o nome do morto. Nenhuma lápide faz que os vivos se lembrem do nome e da descendência do falecido. O morto desejava que se esquecesse por completo o invólucro em que, se em vida se sentia estranho e exilado, quanto mais na morte! As palavras gravadas no metal incorruptível, secretas aos profanos e compreendidas apenas por ele, eram o viático que o conduzia à outra vida, “puro numa companhia de puros”. 19. GUTHIE, W.K.C. Orpheus and the Greek Religion. London: Cambridge, p. l 7lss. 20. Perséfone, a esposa de Plutão e rainha do Hades, conforme o Vol. I, p. 307-309, simboliza nas lamelas o termo final do ciclo reencamatório, “o paraíso”. 21. Eucles e Eubuleu, segundo parece, são grandes iniciados, ligados aos Mistérios de Elêusis. 22. Essa imagem concernente a encher um tonel sem fundo ou carregar água numa peneira, configurada no suplício das Danaides, é interpretada por Platão como uma entrega insaciável a paixões eternamente insatisfeitas. No Orfismo, talvez simbolize a punição dos que, não tendo praticado as abluções catárticas, devem transportar por todo o sempre, mas em vão, a água do banho purificador. 23. HOLZNER,Joseph. Ibid., p. 115. CAPÍTULO VI O mito de Narciso 1 NARCISO, em grego Νάρκισσος (Nárkissos). Comecemos pela etimologia. Nárkissos, o nosso Narciso, não é uma palavra grega. Talvez se trate de um empréstimo mediterrâneo, quem sabe da ilha de Creta. De qualquer forma, uma aproximação com o elemento νάρκη (nárke), que, em grego, significa “entorpecimento, torpor”, cuja base talvez seja o indo-europeu *snerq, “encarquilhar, estiolar, morrer”, é de cunho popular. Com o sentido de torpor, nárke já é empregado por Aristófanes, Vespas, 713. Relacionando-se, depois, com a flor narciso, que era tida por estupefaciente, nárke será a base etimológica de nossa palavra narcótico e toda uma vasta família com o elemento narc-. Sob este enfoque, como demonstrou Murray Stein1, várias associações se poderiam fazer com a flor narciso: ela é “bonita e inútil”; fenece, após uma vida muito breve; é “estéril”; tem um “perfume soporífero” e é venenosa, tal qual o jovem Narciso, que, carentes de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso. De outro lado, nárke, como fonte de narcose (sono produzido por meio de narcótico), ajuda a compreender a relação da flor narciso com as divindades ctônias e com as cerimônias de iniciação, sobretudo as atinentes ao culto de Deméter e Perséfone. Narcisas plantados sobre os túmulos, o que era um hábito, simbolizavam o sorvedouro da morte, mas de uma morte que era apenas um sono. Às Erínias, consideradas como entorpecedoras dos réprobos, ofereciamse guirlandas de narcisas. Uma vez que o narciso floresce na primavera, em lugares úmidos, ele se prende à simbólica das águas e do ritmo das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua ambivalência morte (sono)-renascimento. Na Ásia é símbolo da felicidade e expressa os cumprimentos do Ano Novo, isto é, de um ano que sucede ao sono do ano velho. Os ritos antigos, com que se acordava o cansaço do ano velho, fazendo-o novo, são hodiernamente substituídos, entre outros “ruídos”, por estrepitosos foguetórios, cuja finalidade, possivelmente, é despertar e retemperar as forças do laborioso e exausto ano velho ... No fundo, não existe ano velho e ano novo, e sim mais um anniuersarius (de annus, “ano” e uersare, “voltar constantemente”), quer dizer, um retorno anual, um aniversário do tempo cíclico. 2 Quanto ao mito, Narciso era filho do rio Cefiso, em grego Κήφισος (Képhisos), “o que banha, o que inunda”, desde que proceda do indo-europeu *gwâp, *gwâph, “banhar, irrigar”, e da Ninfa Liríope, que talvez signifique de voz macia como um lírio, isto é, λείριον (leírion), “lírio”, e ὄψ (óps), “voz”, mas trata-se de mera hipótese. Como se vê, voltamos à simbólica das águas. E, segundo se comentou no Vol. 1, p. 279-280, um dos símbolos do rio, do “escoamento” das águas, é a fertilidade. Acrescentemos, de passagem, que determinados “seres” primordiais, como rios e montes, entre outros, talvez por não se terem antropomorfizado, eram detentores de uma grande energia sexual, como se demonstrou no Vol. I, p. 274275, em que o rio Aqueloo lutou bravamente com Héracles pela posse de Dejanira. O fato é que são inúmeros os filhos de oceanos, rios e montes ... Ora, se as ninfas, conforme se viu no Vol, I, p. 223-224, são divindades também ligadas à água, vamos ter em Narciso e narciso dois enamorados das águas. Pois bem, Liríope foi vítima da insaciável energia sexual de Cefiso, em cujas margens tranquilas ninfa alguma poderia passear incólume. Um dia, foi a vez de Liríope. Uma gravidez penosa e indesejável, mas um parto jubiloso e, ao mesmo tempo, de apreensão. Não era concebível um menino tão belo! Na cultura grega, de modo particular, beleza fora do comum sempre assustava. É que esta facilmente arrastava o mortal para a h×bris, o descomedimento, fazendo-o, muitas vezes, ultrapassar o métron. Competir com os deuses em beleza era uma afronta inexoravelmente punida. Bastaria o mito de Eros e Psiqué para testemunhá-lo! E Narciso era mais belo do que os Imortais, que carregavam o peso da eveternidade, embriagados de néctar e fartos de ambrosia ... É que também a beleza era uma outorga do divino: constituía, portanto, uma “démesure”, a ultrapassagem do métron, ufanando-se alguém de um dom que não lhe pertencia. Némesis, ajustiça distributiva e, por isso mesmo, a vingadora da injustiça praticada, estava sempre atenta e pronta para punir os culpados. Não importa: Narciso seria desejado pelas deusas, pelas ninfas e pelos jovens da Grécia inteira! Mas uma beleza assim nunca vista realmente conturbava o espírito de Liríope. Quantos anos viveria o mais belo dos mortais? O temor levou a mãe preocupada a consultar o velho cego Tirésias, o célebre Τειρεσίας (Teiresías), que é um derivado do neutro τέρας (téras), sinal enviado pelos deuses, donde “adivinho, profeta”. Tirésias, porque era cego, possuía o dom da manteía, da adivinhação. Era um uates, um profeta, dotado de uaticinium, do poder da predição. Um parêntese para explicar algo importante: a cegueira e a manteía de Tirésias eram consequência de um castigo e de uma compensação. Ao atingir a época de sua dokimasía, a saber, das “provas” de caráter iniciático por que passava todo jovem, ao ingressar na efebia e, em seguida, participar da vida da pólis, Tirésias escalou o monte Citerão e viu duas serpentes que se acoplavam num ato de amor. O jovem Tirésias as separou, ou, consoante outras fontes, matou a serpente fêmea. O resultado dessa intervenção foi desastroso: o jovem se tornou mulher. Sete anos mais tarde, subiu o mesmo Citerão e, encontrando cena idêntica, repetiu a intervenção anterior, matando a serpente macho, e recuperou seu sexo masculino. Tirésias era, portanto, alguém que tinha experiência dos dois sexos. Sua desventura o tornou célebre: um dia em que lá no Olimpo, Zeus, que terminara a consolidação do poder e se tornara deus otiosus, discutia acaloradamente com sua esposa Hera. O objeto da polêmica era deveras sério e complicado. Girava em torno do amor: “quem teria maior prazer num ato de amor, o homem ou a mulher?” Para dirimir dúvidas, foi chamado aquele que tinha experiência de ambos os sexos. Tirésias respondeu, sem hesitar, que, se um ato de amor pudesse ser fracionado em dez parcelas, a mulher teria nove e o homem apenas uma. Hera, furiosa, o cegou, porque havia revelado o grande segredo feminino e sobretudo porque, no fundo, Tirésias estava decretando a superioridade do homem, causa eficiente dos nove décimos do prazer feminino. Hera compreendeu perfeitamente a resposta patrilinear do adivinho tebano: ao dar-lhe a “vitória”, nove décimos de prazer, estava, na realidade, traçando um perfil da superioridade masculina, da potência de Zeus, simbolizando todos os homens, únicos capazes de proporcionar tanto prazer à mulher. Para compensar-lhe a cegueira e por “gratidão”, Zeus concedeulhe o dom da manteía, da profecia e o privilégio de viver sete gerações humanas. Foi ao grande profeta grego, ao mais célebre mántis, que Liríope consultou: Narciso viveria muitos anos? A resposta do adivinho foi lacônica e direta: si non se uiderit, “se ele não se vir” ... como narra Ovídio (Met., 3,339ss.). Apenas isto. Narciso viveria longos anos, desde que não se visse. Eis aí o seu drama, o problema da “visão”, aquela mesma “visão” que Tirésias traz dissociada. A visão de Tirésias, etimologicamente, “o adivinho, o profeta”, é a visão de dentro para fora, por isso é mántis. Diga-se, de passagem, que, de maneira muito constante, a mântica está relacionada com a serpente, réptil ctônio por excelência e, por isso mesmo, em comunicação com o mundo de baixo, depositário muito antigo da adivinhação. No culto decisivamente ctônio, subterrâneo e ínfero de Trofônio, o consulente oferecia bolos de mel às serpentes que habitavam no Oráculo e até mesmo se acreditava que a outorga da resposta se devesse a esse réptil, segundo nos informam a Suda, verbete Τροφόνιος (Trophónios), e o Escoliasta de Aristófanes, Nuvens, 508. No próprio Oráculo de Delfos, a mântica pré-apolínea, como se mostrou mais atrás, às p. 97-98, tinha por guardiã e inspiradora a serpente Píton. Alguns heróis devem sua própria faculdade divinatória à serpente, tais como Heleno, Cassandra e Melampo, conforme nos conta Apolodoro, 1,96. Como Tirésias, um outro “vidente”, mítico, Poliido, matou também uma serpente, mas as consequências foram bem diferentes: uma outra serpente acorre e ressuscita a companheira, mediante uma erva miraculosa, de cujo segredo se apossa Poliido para ressuscitar a Glauco, informa o mesmo Apolodoro, 3,19. Existem adivinhos, como Ofioneu, em grego serpente se diz ὄφις (óphis), cujo nome possui estreita relação etimológica com “serpente”, observou Pausânias, 4,10,5. Acrescente-se, por fim, que a cegueira atribuída a numerosos “videntes”, de Tirésias a Ofioneu, passando por Polimnestor (Eurípides, Hécuba, 1265), Eveno (Heródoto, 9,93s.), Fórmio (Pausânias, 7,5,7), está acoplada à esfera da mântica ctônia, trevosa. Vê-se, adivinha-se de dentro para fora, das trevas para a luz ... Voltemos, porém, a Narciso. E as grandes paixões pelo filho do rio Cefiso começaram ... Jovens da Grécia inteira e ninfas, como sonhara Liríope, estavam irremediavelmente presas à beleza de Narciso, que, no entanto, permanecia insensível. Entre as grandes apaixonadas do jovem da Beócia estava a ninfa Eco, que, após um grave acontecimento, acabara de regressar do Olimpo. É que a deusa Hera, desconfiada, como sempre, e com razão, das constantes “viagens” do esposo ao mundo dos mortais, resolveu prendê-lo lá em cima. Desesperado, Zeus lembrou-se de Eco, ninfa de uma tagarelice invencível. A esposa seria distraída pela ninfa e ele, Zeus, poderia dar seus passeios, quase sempre de caráter amoroso, pelo habitat das encantadoras mortais ... A princípio, tudo correu bem, mas a ciumenta Hera, “a defensora dos amores legítimos”, por fim, desconfiou, e sabedora do porquê da loquacidade de Eco, condenou-a a não mais falar: repetiria tão somente os últimos sons das palavras que ouvisse. Mas Eco estava apaixonada pelo mais belo dos jovens! Era verão, e Narciso partira para uma caçada, com alguns companheiros. Eco o seguia, sem se deixar ver. Acontece que, tendo-se afastado em demasia dos amigos, o jovem começou a gritar por eles ... Antônio Feliciano de Castilho nos deu, com sua tradução do latim em português castiço, o tom, primeiro das esperanças e, depois, do desespero de Eco: Dos sócios seus na caça extraviado Narciso brada: Olá! Ninguém me escuta? Escuta, lhe responde a amante Ninfa. Ele pasma: em redor estira os olhos; E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita; Convite igual ao seu parte dela. Volta-se, nada vê: Por que me foges? Clama; Por que me foges, lhe respondem. Da mútua voz deluso, insiste ainda: Juntemo-nos aqui. Frase mais doce, Nem lha espera, nem quer; delira, e logo, Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias De o pôr por obra; da espessura rompe, Vem de braços abertos, anelando, Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo. Ele foge; fugindo, ilude o abraço, E Antes, diz, morrerei, que amor nos una. Ela, imóvel, co’a vista o vai seguindo, E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una2. Tão friamente repelida, mas ardendo em paixão por Narciso, Eco se isolou e se fechou numa imensa solidão. Por fim, deixou de se alimentar e definhou, transformando-se num rochedo, capaz apenas de repetir os derradeiros sons do que se diz. As demais ninfas, irritadas com a insensibilidade e frieza do filho de Liríope, pediram vingança a Nêmesis, que, prontamente, condenou Narciso a amar um amor impossível. Antes de seguirmos a derradeira etapa do breve e trágico itinerário da beleza de Narciso, duas ou três pequenas observações se fazem necessárias. A primeira delas é a respeito da relação NarcisoEco, sobre que falou o psiquiatra e analista junguiano, Dr. Carlos Byington, em memorável conferência proferida em 1982, na Faculdade Cândido Mendes, no Rio dejaneiro. “Se Narciso, argumentou Byington, vai ser um símbolo central de permanência em si mesmo, Eco, ao revés, traduz a problemática da vivência de seu oposto. Para se compreender o mito, é preciso frisar que Narciso e Eco estão em relação dialética de opostos complementares, não só de masculino e feminino, mas sobretudo de sujeito e objeto, de algo que permanece em si mesmo e de algo que permanece no outro. Além do mais, a história de Eco está ligada à dissociação conjugal de Zeus e Hera, porque Eco é castigada exatamente por dar cobertura aos adultérios de Zeus. Tal castigo, no entanto, não deve ser tomado sob uma relação de causa e efeito, o que representa um mero discurso racional, para se compreender o mito, mas como imagem de uma dissociação real entre o pai e a mãe dos deuses e dos homens. Narciso e Eco são dois caminhos provenientes de uma raiz comum, do sofrimento cultural, e que buscam, através de suas peripécias, se encontrar e se resolver. Acontece que, como se encontram e não se resolvem, e mais ainda, se separam, nos fica desse encontro-desencontro a marca de uma discórdia e de uma tragédia, que muito nos elucida sobre a realidade do homem e da mulher, a realidade da relação conjugal e, mais que tudo, a realidade do desenvolvimento psicológico da personalidade individual e da cultura.” Saindo um pouco da análise psicológica, desejaríamos lembrar que, na cultura maia, Eco é um dos atributos do grande deus ctônio Jaguar, enquanto associado às montanhas, aos animais selvagens, particularmente ao tapir, e ao tambor, que pode ser considerado em todas as culturas como uma catrofania, quer dizer, a “manifestação do poder urânico ou ctônio”, relacionado, destarte, com o simbolismo da caverna, da gruta, da matriz. Em síntese, o tambor é o “eco” sonoro da existência. De outro lado, tem-se no mito um caso de imobilização: como se viu, Eco foi transformada em pedra, como o herói Asdiwal3 ; e a mulher de Ló, por ter olhado para trás, o foi em estátua de sal. Se a interpretação da metamorfose da mulher de Ló talvez deva ser analisada sob um ângulo um tanto diferente, como, deresto, o fez Aycock4, a hermenêutica concernente à imobilização da jovem ninfa grega e do herói dos índios Tsimshian pode ser concentrada no símbolo da regressão e da passividade, que não representam necessariamente um estado permanente, mas algo de passageiro, precursor de uma transformação. Eco e Asdiwal evocariam, assim, a noção de duplo, de sombra, de Golem5. Acrescente-se, por fim, que a impermanência da transformação em pedra baseia-se no fato de que a pedra e o homem exprimem um duplo movimento de subida e de descida. O homem nasce de Deus e a ele retorna. A pedra bruta desce do céu e, transmutada, a ele regressa. É hora de se voltar à desdita do filho de Liríope. Estava-se novamente no verão. O jovem Narciso, sedento, aproximou-se da límpida fonte de Téspias para mitigar a sede. Como as flores que Hipólito colhera para ofertar a Ártemis jamais haviam sido tocadas nem mesmo pelas asas de ouro das abelhas da primavera, assim as águas da fonte de Téspias eram tão puras, que nem sequer delas se haviam aproximado os lábios ressequidos dos pegureiros. Ainda na tradução poética de Antônio Feliciano de Castilho, sintamos a atmosfera de pureza, de bucolismo, languidez e indolência que cercava o jovem caçador Narciso (Met., 3,407-413): Sem limos, toda esplêndida, manava, Fonte argêntea, onde nunca os pegureiros, Nunca do monte as cabras repastadas, Nem outra qualquer grei, jamais desceram; Ave alguma o cristal lhe não turbara, Nem fera, nem caduca arbórea rama. Com seu frescor em torno se lhe alastra Mole tapete ervoso, e a cingem bosques, Do lago contra os sóis perene escudo. Da beleza do sítio, e do saudoso Murmúrio cativado, aqui chegava, Da calma, e do caçar opresso, o jovem. Debruçou-se sobre o espelho imaculado das águas e viu-se. Viu a própria imago (imagem), a própria umbra (sombra) refletida no espelho da fonte de Téspias. Si non se uiderit, “se ele não se vir”, profetizara Tirésias. Viu-se e não mais pôde sair dali: apaixonara-se pela própria imagem. Nêmesis cumprira a maldição. No mito de Narciso, narrado pelo mitógrafo grego Cânon (cerca de 30 a.C.), o jovem é descrito como “extremamente belo, mas orgulhoso para com Eros e em relação àqueles que o amavam”. Eis aí a grande “hamartía” de Narciso que, como Hipólito, ultrapassou o métron (o que Liríope temia) e, encastelado em sua beleza, comete uma hybris, uma violência contra Eros, contra o amor-objeto e contra o envolvimento erótico com o outro. Ovídio, mais uma vez, em suas Metamorfoses, 3,414-428 nos relata a grande tragédia. Deitou-se e tentando matar a sede, Outra mais farte achou. Enquanto bebia, Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem. Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora. Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar, O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros. Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos, Dignos de Baco, dignos também de Apolo; Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim, A boca encantadora, o leve rubor que lhe colore a nívea pele. Admira tudo quanto admiram nele. Em sua ingenuidade deseja a si mesmo. A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo os ardores que sente. É uma chama que a si própria alimenta. Quantos beijos lançados às ondas enganadoras! Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes Mergulhou inutilmente suas mãos nas águas. O mesmo erro que lhe engana os olhos, acende-lhe a paixão. Crédulo menino, por que buscas, em vão, uma imagem fugitiva? O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto de teu amor. A sombra que vês é um reflexo de tua imagem. Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece. Tua partida a dissiparia, se pudesses partir ... Inútil: sustento, sono, tudo esqueceu. Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar seu falso enlevo, E por seus próprios olhos morre de amor. Procuram-lhe o corpo: havia apenas uma delicada flor amarela, cujo centro era circundado de pétalas brancas. Era o narciso. Por Narciso se perdeu Eco e por narciso se arruinou Perséfone. É que esta, como se comentou no Vol. I, p. 307, tinha o hábito de colher flores no campo. Desejando-a, o rei do Hades, Plutão, contou com a conivência de Zeus. Este colocou um narciso às bordas de um precipício e, ao aproximar-se para pegá-lo, a filha de Deméter caiu no abismo. Lá embaixo, já a aguardava a carruagem de Plutão, que a fez sua mulher. Na realidade, foi o perfume estupefaciente do narciso que embriagou Perséfone e arrastou-a para as trevas. O Hino Homérico a Deméter (10-18) nos descreve a flor e seus efeitos sobre Core: A flor brilhava intensa e maravilhosamente, e provocava admiração De quantos, então, a viram: deuses imortais e homens mortais. De sua raiz brotou um caule de cem cabeças, E das múltiplas carolas exalava um perfume que fazia sorrir Todo o vasto Céu, a terra e a áspera tumefação das ondas do mar! Maravilhada, a jovem estendeu, de uma só vez, ambas as mãos, A fim de colher o lindo presente, mas a terra de vastos caminhos Se abriu na planície de Nisa, e surgiu com seus cavalos imortais O Senhor, rico em hóspedes, o filho de Crono, invocado sob tantos nomes. Acerca da “paixão” e morte de Narciso, o historiador e mitógrafo grego Pausânias (séc. II d.C.) nos deixou uma versão diferente. Narciso tinha uma irmã gêmea, parecidíssima com ele e a quem muito amava. Com a morte prematura da mesma, o jovem ficou inconsolável e refugiou-se na solidão. Vendo-se na fonte de Téspias, acreditou ele estar vendo a irmã e não mais conseguiu afastar-se dali. De qualquer modo, Narciso ainda tenta, no Hades, ver-se nas águas escuras do rio Estige! Muitas têm sido as interpretações do mito de Narciso. Desde os mais antigos, passando depois pelos neoplatônicos, teólogos cristãos, críticos literários, até desembocar (e felizmente!) em Freud,Jung e seus discípulos, o mitologema do mais belo dos mortais vem sendo submetido à análise, à exegese e a variados tipos de hermenêutica, sem que se tenha, até o momento, uma interpretação definitiva, e é pouco provável que se venha a tê-la. Como muito bem faz ver Murray Stein, “o escape ao intelecto é uma das características dos mitos e uma de suas forças, e é precisamente esta qualidade que nos leva a reflexões psicológicas mais profundas, que, de outro modo, não seriam prováveis”6. Vamos tentar fazer algumas reflexões sobre o mitologema de Narciso, reflexões, evidentemente, já “pensadas” pelos antigos, como Cânon, Filóstrato, Pausânias, neoplatônicos, S. Clemente de Alexandria ... e modernamente “traduzidas” (aqui tradução se reveste da conotação etimológica que lhe empresta Martin Heidegger em Holzwege) para um outro universo de cultura. Nossos guias serão Jung, o supracitado Murray Stein, o seguríssimo ].O. de Meira Penna,James George Frazer, este com as “devidas cautelas”, Norman O. Brown e as magníficas interpretações do Dr. Carlos Byington, nos três seminários que juntos fizemos sobre Narciso. Claro está que, tratando-se de “terreno alheio”, vamos ser sumamente cauteloso e sobretudo conciso, entre outros motivos, para seguir o conselho do grande poeta latino Q. Horácio Flaco, esta breuis, “sê breve” ... Se o mito de Narciso deve ser enquadrado nos de Eros, o elemento básico que separa o mitologema do filho de Liríope daqueles, como a lindíssima narrativa de Eros e Psiqué, é a “natureza do amor de Narciso”, que se apaixona, sem o saber, pela própria imagem refletida na fonte de Téspias. Ou seja: o engano fatal do jovem tebano foi a escolha errada do objeto do amor. Tratar-se-ia, no caso, de uma espécie de advertência à violação dos impulsos do amor, que deve ser dirigido a outro. Nesse caso, a libido deixa de se dirigir ao objeto, ao “outro”, e retroage a uma atividade endopsíquica: assim, Narciso teria cometido um como que incesto intrapsíquico. Do ponto de vista subjetivo de Narciso, seu amor é realmente orientado para um objeto, pois que ele descobriu uma face humana de uma beleza arrebatadora e por ela se apaixonou. O desenlace trágico, todavia, no relato de Ovídio, acima transcrito, é a conscientização de Narciso de que está perdidamente apaixonado por sua própria imagem; de que sua paixão é um autoamor, um amor do self e não um amor pelo outro. Tal descoberta leva-o ao desespero e à morte, por uma reflexão “patológica”. Reflectere, de re-, “novamente” e flectere, “curvar-se”, significa etimologicamente, “voltar para trás”, donde reflexus, “reflexo”, retorno, e reflexio, -anis, “inclinação para trás”. Jung acentuou bem o que ele compreende por reflexão: “O termo reflexão não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana, face às necessidades das leis da natureza. Como bem o indica a palavra ‘reflexio’, isto é, ‘inclinação para trás’, a reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao desenvolvimento natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação a um confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência”7. Mas a reflexão, como a de Narciso, pode representar sério perigo. Valendo-nos, mais uma vez, da clareza de Murray Stein, vejamos mais de perto o problema. “Se o mitologema de Narciso é baseado num tabu contra a vaidade (o excessivo autoamor) e no horror do solipsismo (o eu como única realidade), sua ‘advertência’ também fala de um tipo de reflexão patológica. Mais precisamente, o mito fala de um desenvolvimento patológico, exatamente isto que Jung chamou de instinto de reflexão. ‘Reflexio’ significa ‘voltar atrás’. A libido cessa de mover-se em direção ao objeto, sofrendo uma ‘psiquização’ e é desviada para uma atividade endopsíquica. Jung atribui a esse instinto a possibilidade da riqueza e da complexidade psicológica. Trata-se de um instinto estritamente humano e, sem ele, a cultura e a interioridade psíquica seriam inconcebíveis. Mas, como Jung frisa, cada instinto (ele enumera cinco) tem um potencial de expressão patológica. A patologia é indicada, geralmente, quando um dos cinco instintos começa a dominar o resto e a restringir sua progressão para a satisfação. Narciso indicaria este desenvolvimento patológico no instinto de reflexão: a atividade da reflexão (voltar-se para si mesmo) domina e exclui a necessidade de alimentação, de sexualidade comum, da atividade da entrada de qualquer pensamento ou impulso novos. O que o jovem beócio ama é sua ‘reflexão’ que, como já foi visto anteriormente, é sua ‘umbra’, sua alma-sombra. Ele está apaixonado por sua alma. Esta relação entre autoimagem (imagem do self) e alma é primitiva e atravessa as idades, e é este o aspecto que Frazer enfatiza em sua interpretação do mito. Sob a influência da ‘anima’, ama-se o que se autorreflete e reflete-se o que se ama. No caso de Narciso, ele ama o próprio reflexo e, por isso, não pode jamais abandonar as águas paradas da fonte, onde esta ação é possível”8. O perigo que oferece o aprofundar-se em demasia na linha narcísica de alma e amor-reflexão está não somente na autocontenção, no solipsismo, no incesto intrapsíquico, mas também no suicídio. De modo explícito, ao recusar comer, Narciso se suicidou. Esse suicídio anoréxico foi motivado pela desilusão: a imagem querida e amada, que surge no reflexo, não possui equivalência no mundo real e objetivo. Narciso se perdeu no momento em que se encontrou, se viu: si non se uiderit. Sob esse aspecto, o mito do mais belo dos homens assemelha-se ao de Édipo. Ambos se arruinam, no momento em que a ἀναγνώρισις (anagnórisis), o “conhecimento”, os conscientizou acerca do objeto de seu amor: Narciso está apaixonado por sua própria imago, imagem, umbra, sombra, e Édipo descobre que sua amada é sua própria mãe. Desse modo, a tragédia de Sófocles Édipo Rei é alicerçada no horror do solipsismo, além de evocar o tabu da vaidade. A interpretação de James George Frazer9 relaciona o mito com o reflexo, mas de modo diferente, seguindo a primitiva superstição de que nas fontes, lagos e rios esconde-se o espírito das águas, preparado para roubar a alma, a imagem do self, que neles, porventura, se refletisse. Para o autor de The Golden Bough não se deve olhar o próprio reflexo na água, para que os espíritos da mesma não venham a arrastar esse reflexo, que é a própria alma, para debaixo das águas e privar o homem de sua psiqué. A história, em seus primórdios, consoante Prazer, era de um jovem que contemplou sua própria imagem num lago, com tanta fascinação, que a perdeu para um espírito oculto, vindo, por isso mesmo, a morrer. É conveniente, para a interpretação do autor de The Golden Bough, não esquecer que Narciso era filho do rio Cefiso e de uma náiade (do verbo grego naíein, “habitar”), donde náiade era uma ninfa que habitava rios e riachos, como Liríope e, por isso mesmo, Narciso estava inteiramente agregado à água: aliás, ele nasce e morre junto à água, “perdido numa reflexão passional, fitando introvertidamente as profundidades. Seu itinerário leva ao ctônio, à desilusão e à morte”. Nesse caso, o espírito das águas de que fala Prazer poderia estar associado à mãe de Narciso, o qual teria perdido sua vida para uma mãe-anima possessiva. Ovídio, em seus lindíssimos versos supracitados, diz que Narciso vê na fonte de Téspias sua imagem (imago) e sua sombra (umbra). Ora, as palavras que, em grego, designam “sombra e reflexo”, respectivamente σκιά (skiá) e εἴδωλον (eídolon) e, em latim, imago e umbra, têm relação também com a morte. O morto, na Hélade, tornava-se eídolon, um reflexo inteiro do finado. O poeta latino Horácio, já citado, escreveu melancolicamente numa Ode (4,7,16): puluis et umbra sumus, somos pó e sombra, isto é, morte. E, como se viu, Narciso procura ainda desesperadamente no Hades ver-se nas águas escuras do rio Estige. Sob este enfoque, a morte de Narciso é como se fora um retorno às águas primevas. Igualmente os neoplatônicos, sobretudo Plotino, deram sua contribuição para um dos ângulos possíveis da hermenêutica do mitologema em pauta. Se narcisismo pode ser compreendido como uma repulsa, uma rejeição do mundo-objeto e da relação sujeito-objeto, os neoplatônicos viram em Narciso um símbolo do oposto: uma espécie de fascinação sem esperança, como se fora um elo preso ao mundo da matéria e das aparências. Deixando de lado o jovem frio, indiferente ao amor e autossuficiente, apresentam-no como vítima de uma ilusão de que a imago, a imagem, a umbra, a sombra, são a única realidade. Mais precisamente: o esquema neoplatônico vê o mitologema como o mito equivalente à queda da alma na matéria. É, precisamente, nessa visão neoplatónica que o símbolo do espelho é tão importante. Mas que é o espelho? O Prof. Manuel Antônio de Castro nos dá, em excelente artigo sobre conceito de literatura infantil, um enfoque realmente “neoplatônico” de espelho: “Peguemos um espelho, olhando-o, captamos dele a nossa imagem. Atentemos à imagem: podemos achar que corresponde, mas a imagem não é o que somos: ela é, sendo outra que não nós. [ ... ] O que é espelho? É o lugar a partir do qual, especulando, colhemos o que somos e não somos”10. Pois bem, a identificação, ou melhor, a relação do espelho com a matéria é muito frequente: a alma, olhando de cima, de seu estado puro, vislumbra um reflexo dela mesma na matéria e enamora-se de si mesma. Descendo, para alcançar o objeto de seu amor, mergulha na matéria e torna-se prisioneira do cárcere do corpo. Plotino (En., 4,2,12) fazendo um paralelo do mito de Narciso com o espelho de Dioniso, de que já se fez menção, mais atrás, à p ..... , afirma: “As almas dos homens, vendo suas imagens no espelho de Dioniso, como se fossem elas próprias, entraram neste domínio, dando um salto para baixo do Supremo”. Assim, o desejo das almas de entrar na vida material é consequência de se terem elas olhado num espelho, “o mesmo espelho no qual Dioniso se contemplara, antes de voltar-se para a criação das coisas individuais”. O espelho funciona, dessa maneira, para estimular na alma um desejo pelo corpo, pelo distinguível, pela particularidade. Para os neoplatônicos este movimento simboliza igualmente uma queda da unidade na multiplicidade, do Uno no muito, do pleuroma na criatura. 4 Uma palavra ainda acerca da sombra e do tabu do reflexo em Platão, no Novo Testamento e no folclore. A umbra, a sombra, tem função ambivalente, já que possui qualidades comuns à luz e às trevas. Na verdade, não pode existir sombra sem luz, e estas estão de tal modo relacionadas, que, ao cair da noite, ambas são devoradas pelas trevas. Assim, relacionando-se com a luz e com as trevas e aflorando o problema do bem e do mal, a essência da sombra pode manifestar-se através de funções ambivalentes. No plano filosófico e religioso é que se pode ver bem a dimensão ambivalente da umbra. No início do sétimo livro da República de Platão, os “prisioneiros” estão de costas para a saída da caverna, onde se encontram encerrados. Ao longe, arde uma fogueira. Entre a caverna e a fogueira transitam homens, transportando objetos vários. Suas sombras projetam-se na parede da gruta, sendo as mesmas observadas e discutidas pelos que estão de costas para a saída. Tais sombras, tais reflexos constituem para Platão as imagens das ideias verdadeiras, para nós ainda invisíveis. Buscando essas sombras, estamos à procura da luz. A prosperidade, a felicidade e a força de fertilidade da sombra, associada à luz geradora da vida, estão patentes na Anunciação de Maria, quando lhe disse o Anjo Gabriel: Spiritus Sanctus superueniet in te, et uirtus Altissimi obumbrabit tibi (Lc 1,35). -O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. A força curativa da umbra também é muito exaltada em várias culturas. Nos Atos dos Apóstolos há uma passagem deveras interessante a esse respeito: o povo colocava seus doentes ao longo das ruas pelas quais deveria passar Pedro, para que a sombra do apóstolo lhes curasse os males. Eis o texto: Magis autem augebatur credentium in Domino multitudo uirorum ac mulierum: ita ut in plateas eicerent infirmos, et ponerent in lectulis et grabatis, ut, ueniente Petro, saltem umbra illius obumbraret quemquam eorum (At 5,14-15). - Cada vez aumentava mais o número de homens e mulheres que acreditavam no Senhor, de maneira que traziam os doentes para as ruas, e punham-nos em leitos e enxergões, a fim de que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos sua sombra algum deles. Também a umbra e o reflexo têm muito em comum, pois surgem ambos como “reproduções incorpóreas de um original e se acham imbuídos de mistério e de sobrenaturalidade”. A estreita relação entre sombra e reflexo é ilustrada por um episódio ocorrido na velha Constantinopla. Um jovem apaixonado viu, de seus aposentos, sua amada chegar à janela fronteiriça. De imediato, tomando um espelho, captou-lhe a imagem e beijou-a ternamente. Denunciado, o rapaz foi condenado a quarenta vergastas, e na sombra! A par da força terapêutica e da fertilidade, porém, a umbra tem seu lado negativo: assim, quando se volta para o lado das trevas, seus efeitos benéficos desaparecem com ela. Surgem, então, as tendências fantasmagóricas e demoníacas. Os mortos perdem a sombra, ou, por outra, transformam-se eles próprios em sombras, imago, umbra, eídolon e podem assustar os vivos: são as assombrações. O nosso folclorista maior, Luís da Câmara Cascudo, seguindo em muitos passos, em Anúbis e outros ensaios, cap. XIV, a obra de James George Frazer, The Golden Bough, já por nós citada, colheu por lá e em pesquisas pessoais vários exemplos que atestam os perigos da sombra e o tabu dos reflexos, “que ainda permanecem vivos no espírito popular do Brasil”. A imagem reproduzida na água ou na superfície dos espelhos tem uma impressão de sobrenaturalidade e de mistério. A alma pode ficar inteira e real no reflexo exterior. Em quase todas as partes do mundo havia proibição de contemplar-se em água parada: a imagem na água é alma disponível às forças do mal e do demônio. Faz mal, registrava Gonçalves Fernandes, olhar o rosto refletido na água do fundo de uma cacimba: o diabo pode levar a alma da pessoa para as profundezas do inferno. Criança que olha no espelho custa a falar. Espelho quebrado é sinal de morte: quebrou-se o reflexo, a imago, a alma. Olhar-se no espelho, à noite, é perigoso: pode-se ver o diabo. Em casa onde há mortos cobrem-se os espelhos durante três dias. Moça que deseja conhecer o futuro noivo espera pela festa de Santa Luzia (13 de dezembro), reza uma Salve-Rainha até o “nos mostrai” (ad nos conuerte) e, com uma vela acesa na mão, vai olhar-se no espelho: o futuro esposo fatalmente aparecerá ... A sombra do corpo é parte integrante do mesmo e suscetível de todas as suas virtudes, poderes e perigos. Quem brinca com sombra, assombra-se. Pisar na sombra de alguém é uma agressão séria: é apossar-se da pessoa. Em culturas primitivas não se podiam e em algumas ainda não se podem tirar fotografias: a alma fica presa na imagem imóvel, à disposição do fotógrafo. Se a alma (a imago) pode ficar prisioneira e perder-se nas águas e no reflexo de um espelho, quando estamos conscientes, imagine-se quando estamos adormecidos: a alma sem ação, abandonada ao desconhecido, está à mercê dos inimigos. Assim, não se deve acordar repentinamente uma pessoa adormecida: a alma, que aproveitou uns momentos de liberdade para peregrinar pelo mundo, pode não ter tempo de regressar e o despertado morre. Não se deve dormir com sede: a alma irá fatalmente beber água e poderá afogar-se num poço ou cacimba. Não se deve pintar nem caricaturar a quem dorme: a alma, ao regressar de suas viagens, pode não reconhecer seu habitat e passar adiante ... Não se deve dormir com os braços cruzados sobre o peito: a alma deixa de voltar ao corpo, uma vez que não pode atravessar o sinal da cruz. Parte escondida e inconsciente da personalidade consciente ou parcela do inconsciente coletivo, no dizer de Jung, a umbra, a imago perdida de Narciso continua viva entre nós. Consciente ou inconscientemente, o místico e nostálgico poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens nos deixou um belíssimo poema sobre a morte provocada pelo espírito-ladrão das águas: ] ISMÁLIA Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar ... Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar ... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar ... E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar. .. Estava perto do céu, Estava longe do mar. .. E como um anjo pendeu As asas para voar ... Queria a lua do céu, Queria a lua do mar. .. As asas que Deus lhe deu Rufiaram de par em par ... Sua alma subiu ao céu. Seu corpo desceu ao mar... 1. STEIN, Murray. Narcissus. ln: Rev. Spring. New York: 32-53, 1976, p. 34. 2. NASÃO, Públio Ovídio (43 a.C-17 d.C.). Metamorfoses, 3,368-384. Rio dejaneiro: Organização Simões, 1959 [Tradução de Antônio Feliciano de Castilho]. 3. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973, p. 152ss. [Tradução e coordenação de Maria do Carmo Pandolfo]. 4. LEACH, Edmund & AYCOCK, D. Alan. Structuralist Interpretations of Biblical Myth. London: Cambridge University Press, 1983, p. l 13ss. 5. Galem é uma espécie de homem-robô na lenda judaico-cabalística. Criado por meios artificiais, em concorrência com a criação de Adão por Deus, Galem é mudo, porque os homens não conseguiram dar-lhe o dom da palavra. 6. Op. cit., p. 32. 7. Ibid., p. 158, n. 9. 8. Ibid., p. 40. 9. Ibid., p. 233ss. 10. CASTRO, Manuel Antônio de. Conceito de Literatura Infantil. ln: Legenda. Rio de Janeiro, 7: 49-58, 1983. CAPÍTULO VII Hermes Trismegisto 1 HERMES, em grego 'Ερμῆς (Hermês) e também “herma, cipo, pilastra, estela com cabeça de Hermes”, não possui etimologia confiável. Derivar o nome do deus de ἔρμα (hérma), “cipo, pilar” que o representa ou dos “montes de pedras” que o configuram, não é correto, pois que o nome do deus é anterior à “herma que o simboliza”. Filho de Zeus e de Maia, a mais jovem das Plêiades1, Hermes nasceu num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa caverna do monte Cilene, ao sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e colocado no vão de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade e da imortalidade, o que traduz, de saída, um rito iniciático, o menino revelou-se de uma precocidade extraordinária. No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração clara de seu poder de ligar e desligar, viajou até a Tessália, onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, guardado por Apolo, que cumpria grave punição, de que se falou mais atrás, à p. 89. Percorreu com os animais quase toda a Hélade, tendo amarrado folhudos ramos na cauda dos mesmos, para que, enquanto andassem, fossem apagando os próprios rastros. Numa gruta de Pilos sacrificou duas novilhas aos deuses, dividindo-as em doze porções, embora os imortais fossem apenas onze: é que o menino-prodígio acabava de promover-se a décimo segundo. Após esconder o grosso do rebanho, regressou a Cilene. Tendo encontrado uma tartaruga à entrada da caverna, matou-a, arrancando-lhe a carapaça e, com as tripas das novilhas sacrificadas, fabricou a primeira lira. Apolo, o deus mântico por excelência, descobriu o paradeiro do ladrão e o acusou formalmente perante Maia, que negou pudesse o menino, nascido há poucos dias e completamente enfaixado, ter praticado semelhante roubo. Vendo o couro dos animais sacrificados, Apolo não teve mais dúvidas e apelou para Zeus. Este interrogou habilmente ao filho, que persistiu na negativa. Convencido de mentira pelo pai e obrigado a prometer que nunca mais faltaria com a verdade, Hermes concordou, acrescentando, porém, que não estaria obrigado adizera verdade por inteiro2. Encantado com os sons que o menino arrancava da lira, o deus de Delfos trocou o rebanho furtado pelo novo instrumento de som divino. Um pouco mais tarde, enquanto pastoreava seu gado, inventou a σῦριγx(syrinks), a “flauta de Pã”. Apolo desejou também a flauta e ofereceu em troca o cajado de ouro de que se servia para guardar o armento do rei Admeto. Hermes aceitou o negócio, mas pediu ainda lições de adivinhação. Apolo assentiu e, desse modo, o caduceu de ouro passou a figurar entre os atributos principais de Hermes, que, de resto, ainda aperfeiçoou a arte divinatória, auxiliando a leitura do futuro por meio de pequenos seixos. 2 Divindade complexa, com múltiplos atributos e funções, Hermes parece ter sido, de início, um deus agrário, protetor dos pastores nômades indo-europeus e dos rebanhos, daí seu epíteto de Crióforo, por ser muitas vezes representado com um carneiro sobre os ombros. Pausânias (2,3,4) deixa bem claro essa atribuição primária do filho de Maia: “Não existe outro deus que demonstre tanta solicitude para com os rebanhos e seu crescimento”. Os gregos, no entanto, ampliaram-lhe grandemente as funções, e Hermes, por ter furtado o rebanho de Apolo, se tornou o símbolo de tudo quanto implica astúcia, ardil e trapaça: é um verdadeiro trickster, um trapaceiro, um velhaco, companheiro amigo e protetor dos comerciantes e dos ladrões ... Na tragédia Reso, 216s., erradamente atribuída a Eurípides, o deus é chamado “Senhor dos que realizam seus negócios durante a noite”. Ampliando-lhe o mito, os escritores e poetas igualmente lhe dignificaram as prerrogativas. Na Ilíada, XXIV, 334s., vendo o alquebrado Príamo ser conduzido pelo filho de Maia através do acampamento aqueu, Zeus exclama comovido: Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do homem; ouves a quem estimas. Nesse sentido, como está na Odisseia, VIII, 335. Hermes, mensageiro, filho de Zeus, é o dispensador de bens. Além do mais, se qualquer oportunidade é uma dádiva do deus, é porque ele gosta de misturar-se aos homens, tornando-se, destarte, juntamente com Dioniso, o menos olímpico dos imortais. Protetor dos viajantes, é o deus das estradas. Guardião dos caminhos, cada transeunte lançava uma pedra, formando um ἔρμαιον (hérmaion), isto é, literalmente, “lucro inesperado, descoberta feliz” proporcionados por Hermes: assim, para se agradecerem ou para se obterem bons lucros, formavam-se, em honra do deus, verdadeiros montes de pedra à beira da estrada. Digase logo que uma pedra lançada sobre um monte de outras pedras simboliza a união do crente com o deus ao qual as mesmas são consagradas, pois que na pedra está a força, a perpetuidade e a presença do divino. Também entre os judeus, para não citar outras culturas, um acontecimento feliz se comemorava com um monte de pedras, não raro um sinal de aliança entre Israel e Javé, como emjs 4,6-7: Para que seja sinal entre vós e, quando amanhã vos perguntarem vossos filhos, dizendo: “que significam estas pedras?”, vós lhes respondereis: as águas do Jordão desapareceram diante da arca da aliança do Senhor, quando passava por ele, e por isso, se puseram estas pedras, para servirem aos filhos de Israel de um eterno monumento. Para os gregos, todavia, Hermes regia as estradas, porque andava com incrível velocidade, pelo fato de usar sandálias de ouro, e, se não se perdia na noite, era porque, “dominando as trevas”, conhecia perfeitamente o roteiro. Com a rapidez que lhe emprestavam suas sandálias divinas e com o domínio dos três níveis, tornou-se o mensageiro predileto dos deuses, sobretudo de seu pai Zeus e do casal ctônio, Hades e Perséfone. De outro lado, conhecedor dos caminhos e de suas encruzilhadas, não se perdendo nas trevas e sobretudo podendo circular livremente nos três níveis, o filho de Maia acabou por ser um deus psicopompo, quer dizer, um condutor de almas, tanto do nível telúrico para o ctônio quanto deste para aquele: numa variante do mito, foi ele quem trouxe do Hades para a luz a Perséfone e Eurídice; na tragédia de Ésquilo, Os Persas, 629, guiou, para curtos instantes na terra, o êidolon do rei Dario. Para Mircea Eliade são as faculdades “espirituais” do deus psicopompo que lhe explicam as relações com as almas: “Pois a sua astúcia e a sua inteligência prática, a sua inventividade [ ... ], o seu poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte em um piscar de olhos, já anunciam os prestígios da sabedoria, principalmente o domínio das ciências ocultas, que se tornarão mais tarde, na época helenística, as qualidades específicas desse deus”3. Está com a razão o sábio romeno, pois aquele que domina as trevas e os três níveis, guiando as almas dos mortos, não opera apenas com a astúcia e a inteligência, mas antes com a gnose e a magia. Embora, como frisa Walter Otto, “o mundo de Hermes não seja um mundo heroico”, a esse deus psicopompo não apenas os deuses mas igualmente os homens ficaram devendo algumas ações memoráveis, levadas a efeito mais com a solércia e a magia do que com a força. Na Gigantomaquia, usando o capacete de Hades, que tornava invisível o seu portador, lutou ao lado dos deuses, matando o gigante Hipólito. Recompôs fisicamente a seu pai Zeus, roubando os tendões, que lhe arrancara o monstruoso Tifão. Libertou a seu irmão Ares, que os Alóadas haviam encerrado num pote de bronze, segundo se comentou bem antes, à p. 42. Salvou a Ulisses e a seus companheiros, estes já transformados em animais semelhantes a porcos, oferecendo-lhe como defesa uma planta fabulosa, de caráter apotropaico, denominada móli4, cujos efeitos neutralizaram por completo a beberagem peçonhenta que lhe preparara a feiticeira Circe, conforme nos conta Homero na Odisseia, X, 281-329. A grande tarefa de Hermes, no entanto, consistia em ser o intérprete da vontade dos deuses. Após o dilúvio, foi o portador da palavra divina a Deucalião, para anunciar que Zeus estava pronto a conceder-lhe a satisfação de um desejo. Por intermédio dele, o consumado músico Anfião recebeu a lira, Héracles a espada, Perseu o capacete de Hades. Após insistente súplica de Aterrá a seu pai Zeus, foi ele o enviado à bela Calipso, com ordens para que permitisse a partida de Ulisses, há sete anos prisioneiro da paixão da ninfa da ilha Ogígia. Foi quem adormeceu e matou Argos, o gigante de cem olhos, colocado pela ciumenta Hera como guardião da vaca lo. Levou ao monte Ida, na Frígia, as três deusas, Hera, Aterrá e Afrodite, para que o pastor Páris fosse o árbitro na magna querela provocada por Éris, acerca da mais bela das imortais. Por ordem expressa de Zeus, cumpriu a ingrata missão de levar a Prometeu, aguilhoado a uma penedia, o ultimatum, para que revelasse o grande segredo que tanto preocupava o pai dos deuses e dos homens. Conduziu o pequeno Dioniso de asilo em asilo, primeiro para a corte de Átamas e depois para o monte Nisa. A ele coube, igualmente, a gratíssima tarefa de conduzir Psiqué para o Olimpo, a fim de que se casasse com Eros. 3 Poder-se-iam multiplicar as missões e as comissões de Hermes, mas o que interessa mais de perto nesse deus tão longevo, que só faleceu, se é que faleceu, no século XVII, “são suas relações com o mundo dos homens, um mundo por definição ‘aberto’, que está em permanente construção, isto é, sendo melhorado e superado. Os seus atributos primordiais - astúcia e inventividade, domínio sobre as trevas, interesse pela atividade dos homens, psicopompia - serão continuamente reinterpretados e acabarão por fazer de Hermes uma figura cada vez mais complexa, ao mesmo tempo que um deus civilizador, patrono da ciência e imagem exemplar das gnoses ocultas”5. Agilis Cyllenius, o deus rápido de Cilene, como lhe chama Ovídio nas Metamorfoses, 2,720, 818, o filho de Maia para os helenos, era o λόγιος (lóguios), o sábio, o judicioso, o tipo inteligente do grego refletido, o próprio Lógos. Hermes é o que sabe e, por isso mesmo, aquele que transmite toda ciência secreta. Não sendo apenas um olímpico, mas igualmente ou sobretudo um “companheiro do homem”, tem o poder de lutar contra as forças ctônias, porque as conhece, como demonstrou Kerényi em sua obra capital sobre Hermes6. Todo aquele que recebeu deste deus o conhecimento das fórmulas mágicas tornou-se invulnerável a toda e qualquer obscuridade. No Papiro de Paris, o deus de Cilene é chamado, por esse motivo, “o guia de todos os magos”, πάντων μάγων ἀρχηγέτης (pánton mágon arkheguétes). Através do livro de Lúcio Apuleio sobre a bruxaria (De Magia, 31), ficamos sabendo que o feiticeiro o invoca nas cerimônias como aquele que transmite conhecimentos mágicos: Solebat aduocari ad magorum cerimonias Mercurius carminum uector - “Mercúrio (nome latino de Hermes) costumava ser invocado nas cerimônias dos magos como transmissor de fórmulas mágicas”. Inventor de práticas mágicas, conhecedor profundo da magia da Tessália, possuidor de um caduceu com que tangia as almas na luz e nas trevas, foi com esses atributos que Hermes mereceu estes versos lindíssimos do maior poeta ocidental da antiguidade cristã, Aurélio Clemente Prudêncio (cerca de 348 d.C.)7 : Nec non Thessalicae doctissimus ille magiae traditur extinctas sumptae moderamine uirgae in lucem reuocasse animas [ ... ] ast alias damnasse neci penitusque latenti inmersisse Chao. Facit hoc ad utrumque peritus. “Mercúrio conhece profundamente a magia da Tessália e conta-se que seu caduceu conduzia as almas dos mortos para as alturas da luz [ ... ] mas que condenava outras à morte e as precipitava nas profundezas do abismo entreaberto. Ele é perito em executar ambas as operações”. Ad utrumque peritus, “hábil em ambas as funções”, isto é, versado em conduzir para a luz ou para as trevas: eis aí o grande título de Hermes, o vencedor mágico da obscuridade, porque sabe tudo e, por esse motivo, pode tudo. Aquele que é iniciado pelo luminoso Hermes é capaz de resistir a todas as atrações das trevas, porque se tornou igualmente um “perito”. Mesmo após a grande crise por que passou a religião grega, com o martelamento dos templos de seus deuses pelo imperador Flávio Teodósio, Hermes continuou vitorioso, através, claro está, de mil vicissitudes. Assimilado ao deus egípcio Tot, mestre da escritura e, por consequência, da palavra e da inteligência, mago terrível e patrono dos magos, que, já no século V a.C., era identificado a Hermes, como ensina Heródoto (2,152), bem como ao inventivo e solerte Mercúrio romano, o deus de Cilene, com o nome de Hermes Trismegisto, isto é, “Hermes três vezes Máximo”, sobreviveu através do hermetismo e da alquimia, até o século XVII. No mundo greco-latino, sobretudo em Roma, com os gnósticos e neoplatônicos, Hermes Trismegisto se converteu num deus muito importante, cujo poder varou séculos. Na realidade, Hermes Trismegisto resultou de um sincretismo, como já se assinalou, com o Mercúrio latino e com o deus “ctônio” egípcio Tot, o escrivão da psicostasia no julgamento dos mortos no Paraíso de Osíris e patrono, na Época Helenística, de todas as ciências, sobretudo porque teria criado o mundo por meio do lógos, da palavra. Pois bem, em Roma, a partir dos primeiros séculos da era cristã, surgiram muitos tratados e documentos de caráter religioso e esotérico que se diziam inspirar-se na religião egípcia, no neoplatonismo e neopitagoricismo. Esse vasto conjunto de escritos que se acham reunidos sob a epígrafe de Corpus Hermeticum8, “coleção” relativa a Hermes Trismegisto, fusão de filosofia, religião, alquimia, magia e, sobretudo, de astrologia, tem muito pouco de egípcio. Desse Corpus Hermeticum muito se aproveitou a Gnose, em grego γνῶσις (gnôsis), “conhecimento”, que se pode definir como conhecimento esotérico da divindade, que se transmite particularmente através de ritos de iniciação. Os gnósticos com seu gnosticismo, isto é, sincretismo religioso, um amálgama greco-egípcio-judaico-cristão, surgido também nos primeiros séculos de nossa era, procuraram conciliar todas as tendências religiosas e explicar-lhes os fundamentos por meio da gnose. Como judiciosamente acentua Leonel Franca, essa erupção religiosa se deveu particularmente à fadiga e à decepção carreadas pelo ecletismo e sobretudo pela dúvida, o que fez os espíritos se voltarem para um “comércio mais íntimo com a divindade”. Diz Leonel Franca: “Fatigados pelo ecletismo e abatidos pela dúvida, buscam os espíritos em novos processos de conhecimento e num comércio mais íntimo com a divindade as bases de uma nova metafísica e a natural expansão de sentimentos religiosos a que já não podia satisfazer o Panteón despovoado de Roma. Desta tendência nasceu o neoplatonismo fundado por Amônia Saca (176243), mas organizado e unificado em corpo de doutrina por Platino (205-270), seu discípulo”9. Plotino era um filósofo “egípcio”, de língua grega. Sua obra consta de cinquenta e quatro dissertações, agrupadas por seu discípulo Porfírio em seis séries de nove e, por isso, intituladas Ennéades, Enéadas, cujo sistema místico é o desenvolvimento de um panteísmo de emanação. Emanação, palavra formada à base do verbo latino emanãre, “manar, provir de, originar-se de”, como doutrina pode sintetizar-se da seguinte maneira: acima de todos os seres eleva-se o Uno, a Grande Mônada, a Unidade Absoluta, ser supremo e incognoscível (sem inteligência, nem vontade, já que estes atributos implicam a dualidade de sujeito e objeto), unidade simplicíssima e suficientíssima, plenamente identificada consigo mesma na contemplação e amor de si mesma. Do Uno não se pode dizer o que ele é, apenas que é uno e bom, o que o leva a “emanar-se”, a expandir-se para fora de si; desse Uno, por emanação, degradação e dissemelhança, provém a Inteligência, Λόγος (Lógos), Νοῦς (Nus), que contém em si todas as coisas, o mundo dos inteligíveis. Da Inteligência, como princípio dinâmico, emana a Alma do Mundo, caracterizada pela tendência essencial a realizar as ideias eternas no mundo sensível. Como emanações hierárquicas do Uno, Inteligência e Alma do Mundo constituem com ele a trindade neoplatônica. Da Alma do Mundo provêm as almas individuais ou forças plásticas que geram a matéria e a ela se unem, constituindo os seres corpóreos e sensíveis. É, pois, a matéria a última emanação em que se esgota o Uno, a essência suprema. A esse processo objetivo de degradação do Uno em emanações sucessivas corresponde um processo subjetivo de reintegração dos seres na Grande Mônada, na unidade absoluta. Nessa “reabsorção”, a psiqué passa por três estágios ou caminhadas: κάθαρσις (kátharsis), catarse, purificação, através da qual se desliga de tudo o que é sensível e se reune, se religa à Alma do Mundo; διαλεκτική (dialektiké), dialética (o diálogo), pela qual se eleva à contemplação das ideias e se “reune” à Inteligência; ἔκσρασις (ékstasis), contemplação, êxtase, pelo qual a psiqué se despoja do sentimento da própria personalidade para abismar-se inconscientemente na Unidade Suprema. Toda a finalidade da doutrina é, como se vê, a “reunião” extática, o retomo místico da alma à Grande Mônada: nisto consiste precisamente a felicidade suprema do homem. Na realidade, o que se buscava era uma religião de caráter universalista, uma religião transistórica e primordial. Hermes Trismegisto permaneceu também através da alquimia. Alquimia, consoante Corominas10, procede do artigo árabe al + kimyâ, “pedra filosofal” e, quanto à origem da palavra árabe, há duas hipóteses: a base seria o grego χυμεία (khymeía), “mistura de diversos líquidos”, derivada de χυμός (khymós), “suco, sumo”, ou o copta chame, “negro”, nome aplicado aos egípcios e às artes que se lhes atribuem. Uma breve mas claríssima exposição sobre alquimia, como introdução à interpretação de Jung, encontra-se em Monique Augras, num livro precioso, já por nós citado. Vamos procurar seguir Monique, sintetizando aquilo que nos parece mais importante para a finalidade que temos em mira. “A alquimia é uma ciência, ou melhor, uma filosofia ainda mal conhecida. Baseava-se na teoria segundo a qual tudo no mundo obedece às mesmas leis, e todos os objetos da natureza contêm a energia vital. [ ... ] Para o alquimista, toda matéria contém a vida. Na expressão mais alta, a ‘arte régia’ tendia a reconstituir o processo pelo qual essa vida adulterada na terra, depois da queda de Adão, perdeu sua pureza, mas pode reencontrá-la. A pureza, para o homem moral, é a redenção ou regeneração, para a natureza é a purificação ou perfeição. Trata-se, portanto, de participar da obra do Demiurgo, do Criador, ajudando a Terra a reencontrar a sua integração em Deus. [ ... ] Mas alquimia é, antes de tudo, mística. Professam os (alquimistas) a crença de que, para realizar a grande obra, a regeneração da matéria, devem procurar a regeneração de sua alma.Já que se trata de processos análogos e até do mesmo processo, o alquimista vai realizar a sua redenção espiritual paralelamente à procura da ‘pedra filosofal’. [ ... ]Apedra representa a materialização da energia, mas também a purificação da alma. Os alquimistas que procuravam apenas fabricar ouro não eram verdadeiros adeptos, pois, diz Hermes, O meu ouro não é ouro vulgar”11 Claro está que, sendo para iniciados, toda a terminologia que descreve a obra, a busca da “pedra filosofal”, é vazada numa linguagem criptográfica, cifrada, esotérica, hermética enfim. A célebre Tabula Smaragdina, “Tábula de Esmeralda”, cuja tradução para o latim data do século XII e cujo texto teria sido gravado pelo próprio Hermes numa esmeralda, contém a base dessa busca. O fundamento simbólico é a separação dos sexos e a “reunião” dos mesmos, patenteando a oposição e o equilíbrio dos dois grandes princípios do universo. Consoante a Tabula, a distribuição simbólica masculino-feminino é a seguinte: masculino: o sol, ouro, o fogo, o ar, o rei, o espírito de enxofre. feminino: a luz, a prata, a terra, a água, a rainha, o espírito de mercúrio. Diga-se logo que o mercúrio dos alquimistas, quer dizer, Hermes, é hermafrodito, porque é feminino, por ser branco e líquido, e é masculino, por ser um metal seco. Esse hermafroditismo provém exatamente do fato de simbolizar a complexio oppositorum, a “união dos contrários”. O occultus lapis, a pedra oculta, a pedra filosofal, que renascerá das cinzas, será o homo nouus, o homem novo, a Fênix, a Rosa. Sendo o universo formado de quatro elementos, ar,fogo, água e terra, sob o aspecto de quatro estados, gasoso, sutil, líquido e sólido, a “pedra”, que representa a unificação dos quatro, através do isolamento da energia represada nos quatro elementos, é, por conseguinte, a quintessência, simbolizada pelo número cinco ou pela Rosa que possui cinco pétalas. A unidade do cosmo é configurada pelo Uróboro12, a serpente que “morde a própria cauda”. Da complexio opposítorum, da união dos contrários, sairá a energia vital, a pedra. Já que os metais procedem dessa união, com graus diferentes de maturação, é necessário recriar a matéria-prima, a fim de fazê-la amadurecer até se obter o occultus lapis, a pedra oculta. A matéria irá passar por uma experiência dramática, análoga às “paixões” de determinados deuses dos Mistérios Greco-Orientais: sofrimentos, morte e ressurreição. O opus magnum, “a grande operação”, ou opus phílosophicum, a “operação filosófica”, fará com que a matéria sofra, morra e ressuscite, como se fora o drama místico do deus (paixão, morte e ressurreição), o qual se vê projetado sobre a matéria, a fim de transmutá-la. O alquimista, portanto, tratará a matéria tal qual o deus era tratado nos Mistérios: os minerais padecem, morrem e renascem em uma outra forma, isto é, são transmutados. Essa transmutação, efetuada pelo opus magnum, e que tem por objetivo único, simbolicamente, a Pedra Filosofal, faz a matéria passar por quatro fases (segundo outros por cinco), que são designadas segundo as cores que tomam os ingredientes na operação: nigredo (preto), albedo (branco), citrinitas (amarelo), rubedo (vermelho). Após alguns ritos preliminares, como a construção do fogão adequado, do atanor ( vaso especial) e de todos os ingredientes e instrumentos que irão servir às manipulações, dava-se início à operação: recriar a matéria-prima. Os contrários são encerrados no atanor ou ovo filosófico. Estes contrários são o princípio enxofre masculino, cujo símbolo é um rei vestido de vermelho, e o princípio mercúrio feminino, configurado por uma rainha vestida de branco. Desse “matrimônio filosófico” nascerá a matéria-prima. Em seguida, procede-se ao cozimento: a matéria-prima é submetida a uma série de operações dentro do ovo e passa por várias etapas e transformações, representadas sucessivamente pelas cores preta, branca, amarela e vermelha. A nigredo, o “preto”, é a regressão ao estado fluido da matéria: é a putrefação, a morte do alquimista, e como escreve o cabalista Paracelso (1493-1541), “aquele que deseja entrar no Reino de Deus deve entrar primeiramente com seu corpo em sua mãe e ali morrer”. A “mãe”, no caso, é a primeira matéria, a massa confusa, o caos, o abismo. O acróstico, formado por Basile Valentin, é sugestivo a esse respeito, VITRIOL: Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem, quer dizer: “Desce às entranhas da Terra e, purificando-te, encontrarás a pedra secreta”. A albedo, o “branco”, é o mercúrio, a iluminação, uma vez que a pedra branca transforma todos os metais em prata; a rubedo, o “vermelho”, é o enxofre, o sangue, a paixão, a sublimação; citrinitas, o “amarelo”, é o Ouro, a Pedra, o Azoth (primeira e última letras do alfabeto hebraico), o princípio e o fim de todas as coisas. O alfa e o ômega. Projetando sobre a matéria a função iniciática do sofrimento e graças às operações alquímicas assimiladas aos tormentos e dores, à morte e à ressurreição do iniciado, opera-se a transmutação, pois a “substância” converte-se em Ouro. Sendo o Ouro o símbolo da eternidade, essa transmutação alquímica é o grau máximo de perfeição da matéria e, para o alquimista, corresponde ao término de sua iniciação. 4 Viu-se logo no início deste capítulo que Hermes, em troca da “flauta de Pã”, recebeu de Apolo, além do caduceu, lições de mântica, de poder divinatório. Foi graças a esse dom do deus de Delfos, que o “deus alquímico” fez jus a um templo na Acaia, onde respondia às consultas de seus devotos pelo denominado processo das vozes. Purificado, provavelmente com o mais simples processo da ablução, o consulente dirigia-se para o fundo do templo, onde estava a estátua de Hermes e dizia-lhe baixinho ao ouvido o seu desejo secreto. Em seguida, tapava fortemente as orelhas com as mãos e caminhava até o átrio do templo, onde, num gesto rápido, afastava as mãos: as primeiras palavras ouvidas dos transeuntes eram a resposta do oráculo e a decisão de Hermes. Esse método, direto e econômico, popularizou-se, passando a voz humana “não provocada” a ter poderes mágicos. Afinal, uox populi, uox Dei, a voz do povo é a voz de Deus. Em Portugal, consoante Luís da Cãmara Cascudo13, bem como no Brasil, ir às vozes era uma técnica não apenas para saber das coisas, mas sobretudo um método muito usado pelas moças casado iras, certamente já em estado de titiite ... Vamos transcrever apenas três excelentes informações de autores portugueses, arroladas por Luís da Câmara Cascudo. A primeira é de Teófilo Braga: “A voz humana tem poderes mágicos; um feiticeiro: - Para saber se uma pessoa era morta ou viva, dizia à janela: Corte do céu, ouvi-me! Corte do céu, falai-me! Corte do céu, respondei-me! Das primeiras palavras que ouvia na rua acharia a resposta” (Sentenças das Inquisições, ap. Boletim da Soe. de Geografia. Sic!). “Na Foz do Douro, costumam as mulheres andar às vozes para inferirem pelas palavras casuais que ouvem do estado das pessoas que estão ausentes.” Aliás, não é bem do estado das pessoas ausentes, mas de sua disposição e disponibilidade matrimonial... “D. Francisco Manuel de Melo, nos ‘Apólogos Dialogais’ (mais precisamente nos ‘Relógios Falantes’, p. 24 da ed. brasileira de 1920, Sic!), refere esta superstição: e com o próprio engano com que elas traziam a outras cachopas do São João às quartas-feiras, e da Virgem do Monte às sextas, que vão mudas à romaria, espreitando que diz a gente que passa; donde afirmam que lhes não falta a resposta dos seus embustes, se hão de casar com fulano ou não; e se fulano vem da Índia com bons ou maus propósitos; ou se se apalavrou lá em seu lugar com alguma mestiça, filha de Bracmene.” Zacarias, pai de João Batista, por não ter acreditado nas palavras do Anjo Gabriel, que lhe anunciava a gravidez da esposa Isabel, ficou mudo. Ignorando a discussão acerca do nome que se deveria dar ao recém-nascido, escolheu João, que ainda não fora usado em sua geração (Lc 1,60-63). Certamente por ter resolvido o problema, sem do mesmo ter conhecimento, passou Zacarias a ser em Portugal “um mentor de vozes”, como anotou o notável filólogo José Leite de Vasconcelos. “J. Leite de Vasconcelos registra semelhantemente no Tradições populares de Portugal (Porto, 1882, 258): Quando se quer saber qualquer coisa, chega-se à janela, à hora das trindades (outros dizem que a qualquer hora) e diz-se: Meu São Zacarias, Meu santo bendito! foste cego, surdo e mudo, tiveste um filho e o nome puseste João. Declara-me nas vozes do povo ... (formula-se o pedido). Em seguida correm-se as ruas, sem parar, recolhendo-se os ditos que se ouvem, e aplicando-os ao fim, no que eles têm de aplicável. A fórmula diz-se três vezes, e a cerimônia dura três noites seguidas (Minho). No Porto, antes de se correrem as ruas, vai-se rezar à Senhora das Verdades (ao pé da Sé) e, enquanto se anda pelas ruas, não se fala com ninguém. A isto chama-se ir às vozes”. 5 Hermes teve muitos amores e vários filhos. O mais importante de todos, porém, foi Hermafrodito. HERMAFRODITO, em grego 'Ερμαφρόδιτος (Hermaphróditos), “filho de Hermes e de Afrodite”, por onde já se conclui que a grafia Hermafrodita é descabida e simplesmente absurda. Hermafrodito foi criado pelas Ninfas nas florestas do monte Ida, na Frígia, e era dotado de uma beleza tão grande como a de Narciso. Aos quinze anos pôs-se a percorrer o mundo. Viajando pela Ásia Menor, encontrou-se um dia, na Cária, às margens de um lago, habitado pela Ninfa Sálmacis, que por ele se apaixonou violentamente. Repelida pelo jovem, fingiu conformar-se, mas, quando Hermafrodito se despiu e se lançou às águas do lago, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu aos deuses que, para sempre, lhes unissem os dois corpos em um só. Os imortais ouviram-lhe a súplica e, assim, surgiu um novo ser, de dupla natureza. Por seu lado, Hermafrodito implorou aos deuses, e estes o atenderam, que todo aquele que se banhasse no lago da Ninfa Sálmacis perdesse a virilidade. O mito de Hermafrodito não passa, na realidade, de mera repetição ou recapitulação do andrógino primordial, ou seja, o Rebis14 (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Hermafrodito). A iconografia de Hermes apresenta-o com um chapéu de formato especial, πέτασος (pétasos), o pétaso; com sandálias providas de asas e segurando um caduceu com duas serpentes entrelaçadas na parte superior. A simbólica estampada na imagem clássica do deus alquímico não é de difícil interpretação, como o demonstram Jean Chavalier e Alain Gheerbrant e sobretudo Joseph L. Henderson. É o que se há de ver muito resumidamente. O chapéu, em muitas culturas, significou e significa ainda determinadas prerrogativas e sinal de autoridade. Seu simbolismo, como o da coroa, é o poder e a soberania. Embora se julgue que o chapéu, substituindo os cabelos, como instrumento receptor de influência celeste, configure o fecho do processo iniciático, uma coisa não invalida a outra e nem, tampouco, interrompe a função mediadora do cabelo, uma vez que as pontas ou pequenos cornos que se colocavam sobre os chapéus e as pontas da coroa são concebidos como cabelo, à imagem dos raios de luz. Cobrindo a cabeça, sede da psiqué e da inteligência, o chapéu é um símbolo de identificação. Segundo Jung, trocar de chapéu é trocar de ideias, ter uma outra visão do mundo. As sandálias, e as de Hermes eram dotadas de asas, separam a terra do corpo pesado e vivente, daí a importância simbólica das sandálias depostas, rito maçônico que evoca a atitude de Moisés no monte Sinai, pisando descalço a terra santa. Descalçar a sandália e entregá-la ao parceiro era entre os judeus a garantia de um contrato (Rt 4,7-8). Para os antigos taoístas as sandálias eram o substituto do corpo dos imortais e seu meio de deslocamento no espaço: homens com solas de vento, suas sandálias eram aladas. Instrumentos de imortalidade, símbolos até mesmo de elixir da vida, compreende-se que tais acessórios fossem muitas vezes fabricados por imortais-sapateiros. As sandálias aladas, para Hermes e Perseu, são um símbolo de elevação mística e, para o filho de Maia particularmente, configuram o domínio dos três níveis. O caduceu, em grego κηρύκειον (kerykeion), significa bastão de arauto. Diga-se logo que o latim caduceus ou caduceum deve ser um “empréstimo antigo, direto ou indireto”, talvez com intermediário etrusco, ao grego dórico καρύκειον (karykeion) . Símbolo dos mais antigos, sua imagem já se acha gravada, desde o ano 2600 a.C., na taça do rei Gudea de Lagash. São várias as formas e múltiplas as interpretações do caduceu; vamos nos restringir às essenciais, com vistas principalmente ao deus alquímico. O caduceu, insígnia principal de Hermes, é um bastão em torno do qual se enrolam, em sentidos inversos, duas serpentes. Nesse enfoque, o caduceu serve de equilíbrio aos dois aspectos do símbolo da serpente, a direita e a esquerda, o diurno e o noturno, uma vez que esse réptil ctônio possui duplo aspecto simbólico: um benéfico, outro maléfico, cujo antagonismo e equilíbrio são representados pelo caduceu. Este equilíbrio e esta polaridade estão bem claros nas correntes cósmicas, configuradas pela dupla espiral. O mito do caduceu se reporta não só ao Caos primordial, em que duas serpentes entram em luta, mas ainda à sua polarização, momento em que Hermes as separa. Enrolando-se em torno do caduceu, elas simbolizam o equilíbrio das tendências contrárias em torno do axís mundí, do eixo do mundo, o que nos leva a interpretar o bastão do deus de Cilene como um símbolo de paz. Sendo Hermes o mensageiro dos deuses e o guia dos seres na sua transmutação, estas duas funções estão bem marcadas pelos dois sentidos ascendente e descendente das correntes representadas pelas duas serpentes. Uma segunda interpretação é a de Henderson15, que se volta para um outro lado, para o ângulo da fecundidade. O caduceu, com efeito, simbolizando um falo em ereção com duas serpentes acopladas, é uma das mais antigas representações indo-europeias, sendo encontrado na Índia antiga e moderna, associado a numerosos ritos, bem como na Grécia, onde se tornou insígnia de Hermes, e entre os latinos, que o transferiram a Mercúrio. Espiritualizado, esse falo de Hermes psicopompo penetra, na expressão de Henderson, a partir do mundo conhecido no mundo desconhecido, em busca de uma mensagem espiritual de libertação e de cura. Seria oportuno lembrar que o caduceu é, hodiernamente, o emblema universal da ciência médica. O caduceu, todavia, só adquiriu um sentido pleno à época clássica grega, quando as duas serpentes foram encimadas por asas; desde então, transcendendo suas origens, o símbolo se converteu numa síntese ctônio-urânia, como a representação do deus asteca Quetzalcóatl, que, após seu sacrifício voluntário, renasceu para uma ascensão celeste sob a forma de uma serpente emplumada. O grande infortúnio dos deuses antigos é que eles eram biografáveis e, por isso, morreram. Talvez por ter sido o “companheiro do homem”, o Trismegisto morreu tão tarde e, bem antes de suas exéquias, mereceu o quinto hino órfico: Tu, mensageiro do deus, profeta do lógos para os mortais ... O saber divino, diz Rahner, que nos libera de nós mesmos, que vem a nosso encontro ἄνωθεν (ánothen) e θεόθεν (theóthen), do alto e de Deus, é oλόγος προφορικός (lógos prophorikós), “a palavra tornada audível”, e Hermes é justamente isto! Hermes Trismegisto foi um deus tão importante, que, em Listra, a multidão, ao ver um milagre de Paulo, tomou-o por Hermes e gritou entusiasmada, pensando estar diante de deuses, de Paulo e de Barnabé, sob forma humana, e isto porque Paulo parecia ser aquele (Hermes), ὁ ἡγούμενος τοῦ λόγου (ho hegúmenos tû lógu), “aquele que lhes dirigia a palavra” (At 14 ,11-12). Naquele dia, o grande apóstolo, em companhia de Barnabé, deve ter convertido a muitos, que certamente compreenderam que Paulo não era Hermes, nem tampouco o Lógos, mas um simples instrumento do único e verdadeiro Lógos. 1. Plêiades eram as filhas de Atlas e Plêione. Eram sete irmãs: Taígeta, Electra, Alcíone, Astérope, Celene, Mérope e Maia. Exceto Mérope, que desposou Sísifo, todas se uniram a deuses. A elas são atribuídas as instituições dos coros de dança e das festas noturnas. Foram transformadas na constelação dita das Plêiades, por Zeus, que as livrou assim da implacável perseguição do temível caçador Oríon, que se apaixonara por uma delas. 2. A propósito da busca de Apolo (no que foi ajudado pelos Sátiros) a seu rebanho furtado por Hermes, Sófocles compôs o drama satírico Os cães de busca, que, infelizmente, não chegou completo até nós. 3. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 109. 4. Móli, em grego μῶλυ (môly), que a etimologia popular aproximou do verbo μωλύειν (molyein), “embotar, relachar, enfraquecer, esgotar”, isto é, móli é o antídoto que toma ineficazes os venenos. A respeito dessa planta, antigos e modernos já fizeram correr muita tinta, segundo nos mostra, com fartas citações e densa bibliografia, o extraordinário Hugo Rahner S.J., em seu livro famoso Mythes grecs et mystere chrétien. Paris: Payot, 1954, p. 196ss. Na realidade, não se pode fazer de móli uma ideia concreta, porque ela não expressa nome algum de planta: trata-se de uma expressão poética e geral para designar um antídoto. Mais precisamente, móli faz parte da botânica mítica e poética de Homero ... Mas, como desde a antiguidade, passando pela Idade Média, essa planta de raízes negras e flores brancas, se para os gregos era uma dádiva dos deuses e, portanto, um φάρμακον ἐσθλόν (phármakon esthlón), um “antídoto eficaz”, para os Cristãos móli se transformou num antídoto contra o demônio. Na Antologia Palatina, XV, 12, um pequeno poema medieval, talvez da autoria de Léon le Sage (886-912), patenteia a cristianização da planta dos deuses: Desaparece, sombria caverna de Circe. Para mim, nascido do céu, Seria uma vergonha alimentar-me com tuas glandes, como um animal! Peço a Deus, pelo contrdrio, que me dê a flor que cura as almas, Mólí, a boa medicina contra os maus pensamentos. 5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 109. 6. KERÉNYI, K. Hermes der Seelenführer (Hermes, o condutor das Almas). Zürich: RheinVerlag, 1944. 7. Contra Symmachum, I, 94-98. 8. A denominação Corpus Hermeticum remonta ao século XV, quando Cosme de Médicis, por volta de 1460, comprou um manuscrito grego e solicitou ao grande humanista e latinista Marsílio Ficino (1433-1499) que o traduzisse para o latim. Trata-se de uma literatura “hermética”, erudita: são dezessete tratados, que remontam, na sua quase totalidade, ao século II d.C. Não seria fora de propósito estabelecer a complementaridade e a diferença entre Hermetismo e Corpus Hermeticum (Coletãnea Hermética); Hermetismo é o conjunto de crenças, ideias, práticas e ritos transmitidos através da vasta literatura hermética, cujos textos foram redigidos entre os séculos III a.C. e II-III d.C. Dividem-se em dois grandes grupos: tratados concernentes ao hermetismo popular (magia, alquimia, astrologia, ciências ocultas), sendo os mais antigos, possivelmente do século III a.C., e o Corpus Hermeticum, do século II d.C., de cunho muito mais erudito. 9. FRANCA, S.]. Leonel. Op. cit., p. 68s. 10. COROMINAS,]. Diccionario crítico etimológico de Ia Iengua castellana. 4 vols. Madrid: Editorial Gredos, 1954, verbete. 11. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 66ss. 12. Ouróboros é palavra formada à base de um composto grego: oupá (urá), “cauda dos animais” e βορός (borós), “voraz, glutão”, provindo esta última do verbo βιβρώσκειν (bibróskein), “devorar, engolir”. A única forma correta em nossa língua é Uróboro. É que, por “distração”, as pessoas se esquecem de que o ditongo ou em grego ou em “francês” soa em português u ... Do ponto de vista simbólico, Uróboro configura a manifestação e a reabsorção cíclica. É a união sexual em si mesma, é a serpens se ipsum impregnans, a serpente que se fecunda a si mesma, autofecundadora, permanente, como demonstra a cauda mergulhada em sua própria boca; é a perpétua transmutação da morte em vida e vice-versa,já que suas presas injetara veneno em seu próprio corpo. Para usar da expressão de Bachelard. Uróboro é a dialética material da vida e da morte, a morte que brota da vida e a vida que brota da morte. 13. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1951, p. 33ss. 14. O autor do acróstico VITRIOL, Basile Valentin, criou, igualmente, e publicou a figura simbólica Rebis numa obra hermética, Traité de l’Azoth, que data de 1659. Rebis, “feito de dois, formado de duas coisas”, é o símbolo do andrógino. Os alquimistas denominam Rebis a primeira decocção do “espírito mineral” misturado a seu próprio corpo, uma vez que é feito de duas coisas, do masculino e do feminino, isto é, do dissolvente e do corpo solúvel, embora se trate, no fundo, da mesma coisa e de matéria idêntica. Deu-se também o nome de Rebis à matéria da “obra transformada em albedo, “no branco”, porque então aquela é um mercúrio animado de seu enxofre e estes dois elementos, provenientes de uma mesma raiz, constituem um todo homogêneo, assimilando-se destarte ao andrógino. 15. JUNG, C. Gustav et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 154ss. CAPÍTULO VIII Eros e Psiqué 1 EROS é o amor personificado. Em grego ἔρως (éros), do verbo ἔρασθαι (érasthai) “desejar ardentemente”, significa com exatidão “o desejo incoercível dos sentidos”. Em indo-europeu tem-se o elemento (*e)rem “comprazer-se, deleitar-se” com o qual talvez se possa fazer uma aproximação. PSIQUÉ é igualmente a alma personificada. Em grego ψυχή (psykhé), do verbo 2-ψύχειν (psykhein), “soprar, respirar”, significa tanto “sopro” quanto “princípio vital”. V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Psiqué. O mito de Eros e Psiqué, embora de origem grega, chegou até nós inserido, como uma verdadeira novela, no romance Metamorfoses do escritor latino Lúcio Apuleio1. Narraremos primeiramente o mito, em sua essência, como está no autor latino, mas despindo-o de sua indumentária romanesca e de algumas tiradas cáusticas de Apuleio. Em seguida, faremos um comentário sobre o mesmo, buscando a interpretação que nos parecer mais adequada. Em certa cidade havia um rei e uma rainha que tinham três filhas lindíssimas. As duas mais velhas, ainda que fossem também muito belas, podiam perfeitamente ser celebradas por louvores dos homens, mas não havia linguagem humana capaz de descrever ou pintar a formosura extraordinária da caçula. Assim começa o romance de Psiqué, que era tão arrebatadoramente bela, que os mortais, em lugar de pedi-la em casamento, adoravam-na como se fosse a própria Afrodite, cujos templos e culto, por isso mesmo, haviam sido esquecidos e abandonados. Psiqué se tornara a nova deusa do amor. A nova Afrodite! E era sob os traços humanos da jovem princesa que se procurava venerar a poderosa mãe de Eros. Grande Mãe, origem de todos os elementos, alma do mundo inteiro, como se autodenominava, vendo-se preterida por uma simples menina, irritada com o confronto de beleza, a deusa chamou a seu filho Eros, menino alado e de maus costumes, corruptor da moral pública e provocador de escândalos, e deu-lhe uma incumbência urgente. Levou-o à cidade, onde vivia a linda Psiqué, e pediu-lhe que a fizesse apaixonar-se pelo mais horrendo dos homens. Beijou-o, muitas vezes, com os lábios entreabertos e retornou a seu habitat preferido, o bojo macio do mar. O rei, casadas as duas filhas mais velhas e temendo, como Liríope, a cólera dos deuses por causa da beleza da mais jovem, mandou consultar o Oráculo de Apolo em Mileto. A resposta do deus mântico foi direta e terrível: a jovem, coberta com uma indumentária fúnebre, deveria ser conduzida ao alto de um rochedo, onde um monstro horrível com ela se uniria. Eros, todavia, que, em lugar de ferir com suas flechas a Psiqué, havia sido ferido por ela, ordenou ao vento Zéfiro que a transportasse para um vale macio e florido, que se estendia ao sopé da montanha. Após descansar de tantas emoções e restaurada por um sonho reparador, a jovem princesa se ergueu e viu logo, cercado por um bosque, à beira de uma fonte, um palácio de sonhos: suas colunas de ouro serviam de suporte ao teto de cedro e marfim; as paredes eram recamadas de baixos-relevos de prata; o pavimento, confeccionado de mosaicos de pedras preciosas; os imensos salões tinham paredes de ouro maciço. Uma obra digna de Dédalo e de Hefesto! Deslumbrada com tanta beleza, Psiqué penetrou no palácio e, a partir de então, foi servida não por escansões e criadas em carne e osso, mas por uma multidão de Vozes, que lhe atendiam até mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da chegada da princesa ao vale dos encantos, Eros, sem se deixar ver, fez de Psiqué sua mulher, mas, antes do nascer do sol, desapareceu rápida e misteriosamente. A cena se repetia todas as noites e a princesa acabou por habituar-se à sua nova existência: as Vozes, atentas e solícitas, consolavam-na da solidão. A Fama2, porém, divulgou a “desdita” de Psiqué e as irmãs casadas, tristes e cobertas de luto, deixando seus lares, apressaram-se em visitar e confortar os pais. Eros pressentiu a ameaça que pesava sobre a felicidade do casal e avisou a esposa do perigo iminente: as irmãs, dentro em pouco, viriam até o rochedo para chorá-la. Psiqué deveria fazer ouvidos moucos às suas lamentações e nem sequer “olhar para elas”, para não incidir no mesmo erro de Orfeu ... A jovem esposa tudo prometeu, mas tão logo o amante se retirou, sem se deixar contemplar, como acontecia todas as madrugadas, Psiqué se viu mais que nunca prisioneira da própria felicidade, impedida de consolar e até mesmo de se encontrar com suas irmãs. Foi com muitas carícias e súplicas que conseguiu arrancar do esposo permissão não apenas para vê-las, mas ainda o consentimento para que Zéfiro as transportasse até seu palácio paradisíaco. Apaixonado, Eros concordou com tudo, mas pediu-lhe e suplicou que jamais tentasse ver-lhe o semblante, por mais que as irmãs insistissem neste ponto. O encontro, a princípio, foi um deslumbramento. Às lágrimas de dor sucederam as manifestações de alegria e regozijo. Mas, à medida que a inocente Psiqué ia-lhes abrindo as portas de sua doce ventura, a abundância de suas riquezas, as sementes da inveja começaram a germinar-lhes no coração. Apesar, todavia, das insistentes perguntas de uma das irmãs acerca do marido e de tantas riquezas, Psiqué inventou o que a situação embaraçosa lhe inspirava e, cumuladas as irmãs de ouro e joias, fez que Zéfiro as levasse de volta ao rochedo. Já agora envenenadas pelo fel da inveja, confrontaram sua desdita com o destino da irmã: esta, mais jovem, “rebento de uma fecundidade esgotada”, habitando um palácio de ouro, servida por Vozes, dando ordens aos ventos e casada certamente com um deus; elas, mais velhas, unidas a dois estafermos: um, “mais calvo que uma abóbora, mais baixo e anão que um menino”, mais avarento que Caronte; a outra desposara um ancião doente e sua função não era a de esposa, mas de enfermeira ... Ocultando tudo dos pais, regressaram a seus lares com uma ideia fixa: derrubar a ingênua Psiqué do pedestal de sua bem-aventurança. Eros, naquela mesma noite, voltou a advertir a esposa: Não vês o perigo que de longe te ameaça? Se não procederes com a máxima cautela, o destino se abaterá sobre ti. As bruxas traiçoeiras esforçamse por te armar uma cilada e a pior armadilha é persuadir-te a contemplar meu rosto. Já te adverti muitas vezes de que nunca mais o verás, se o contemplares uma única vez. [ . . . ] Dentro em breve teremos um filho. Ainda uma menina, darás à luz uma criança. Se guardares nosso segredo, ela será um deus; se o propalares, será tão somente um ser mortal. Psiqué exultou com a ideia de ter um filho divino e regozijou-se com a dignidade do nome de mãe. Os dias se escoaram rápidos e o esposo noturno voltou, dessa feita, mais incisivo em admoestá-la de que chegara o momento decisivo: as bruxas já se aproximavam, prontas para destruir-lhe a paz e a felicidade. As últimas palavras do deus são significativas: deixa-as uivar do cume do rochedo, como as Sereias, com sua voz fúnebre. Novas lágrimas de Psiqué, novas promessas, novas juras de amor e o deus apaixonado novamente se curvou aos caprichos da esposa. As conspiradoras, entretanto, tal era a pressa em executar seu plano sórdido, tão logo chegaram ao alto do rochedo, nem mesmo esperaram por Zéfiro, lançando-se temerariamente no abismo. A contragosto, o Vento as acolheu e depositou no solo. Com fingida alegria congratularam-se com a irmã pela gravidez, conseguindo, desse modo, desfazer qualquer suspeita. Em seguida, vieram as perguntas, sempre as mesmas: queriam saber quem era o marido de Psiqué. Esta, em sua ingenuidade, se contradisse: na primeira visita dissera-lhes que o esposo era um jovem lindíssimo e agora o descreveu como um homem de meia-idade, um riquíssimo comerciante. Era o que lhes bastava: ou a irmã estava mentindo, e o marido era um deus, ou ela simplesmente ignorava seu aspecto. De qualquer forma, era preciso destruir a prosperidade de Psiqué. Passaram uma noite em claro na casa dos pais e, já pela manhã, estavam novamente no palácio de Eros. Com fingida e cínica preocupação, mostraram à irmã o perigo que a ameaçava. Quem à noite se deitava a seu lado não era um homem, mas uma serpente enrascada em mil anéis, com as Jauces túrgidas de peçonha, a boca larga como um abismo. Lembraram-lhe o Oráculo de Apolo que a predestinava a unir-se a um monstro, reforçando seu intento diabólico com a mentira: a medonha serpente, segundo camponeses e caçadores da região, tem sido vista à noitinha, atravessando o rio vizinho em direção ao palácio. O réptil aguardava apenas o momento oportuno para devorá-la, bem como à criança que ela trazia no ventre. Elas, porém, as irmãs, ali estavam prontas para ajudá-la! Transtornada, Psiqué confessoulhes a verdade: jamais contemplara o rosto do marido e pediu-lhes súplice que a protegessem e assistissem. Vendo que tudo estava aparelhado para o plano sinistro, há muito arquitetado, uma das bruxas o transmitiu à insegura e desditosa esposa de Eros: deveria ela preparar um punhal bem afiado e um candeeiro de luz bem forte. Quando a “serpente imunda” mergulhasse em sono profundo, seria o instante propício: iluminar-lhe cuidadosamente o rosto e de um só golpe cortar-lhe a cabeça. Embora tivessem prometido que permaneceriam a seu lado, até a “execução do monstro”, tão logo perceberam que o veneno fizera seu efeito, apressaram-se em deixála. Sozinha, com o espírito transtornado, Psiqué se agita e parece decidida a perpetrar o crime, mas eis que subitamente hesita, depois resolve; vacila outra vez, desconfia das irmãs, se enfurece, lembra-se dos ternos abraços do esposo... Seria ele, realmente, uma serpente imunda? Numa palavra: Psiqué num mesmo corpo odeia o monstro e ama o marido... Eros a seu lado dormia tranquilamente. Como fora de si, a jovem esposa reuniu todas as suas forças: numa das mãos o candeeiro, na outra o punhal. Muito de leve aproximou a luz do rosto do marido. Estava revelado o grande segredo: viu a mais delicada, a mais bela de todas as feras. Eros, o deus do amor, ali estava diante de seus olhos. A jovem empalidece, treme, cai de joelhos. Olhando-o, contempla-o embevecida e, “especulando-o”, Psiqué, como Narciso, não mais pôde tirar os olhos dele. Quis matar-se, mas o punhal se lhe resvalou da mão. Percebendo ao lado do leito a aljava e as flechas do deus, ao tocá-las, acabou ainda por ferir-se com uma delas. Agora, mais que nunca, sua paixão seria eterna. Inflamada de amor, inclina-se sobre ele e começa a beijá-lo como louca. Esquecida do candeeiro, deixa-o curvar-se em demasia e uma gota de óleo fervente cai no ombro do deus adormecido. Eros desperta num sobressalto e, ao ver desvendado seu segredo, levantou voo no mesmo instante; sem dizer uma só palavra, afastou-se rapidamente da esposa. Esta ainda tentou segui-lo através das nuvens, segurando-lhe a perna direita, mas, exausta, caiu ao solo. 2 Foi então que, descendo das alturas celestiais e pousando num “cipreste”, Eros falou à sua amada: Quantas vezes não te admoestei acerca do perigo iminente, quantas vezes não te repreendi delicadamente. Tuas ilustres conselheiras serão castigadas em breve, por suas pérfidas lições; quanto a ti, teu castigo será minha ausência. Estava decretado o início do itinerário doloroso de outra Psiqué. Fora de si, a princesa, desejando morrer, lançou-se às correntezas de um rio próximo, mas as próprias águas, numa corcova, repuseram-na em terra. Pã, “o velho sábio”, que tranquilamente estava sentado numa ribanceira vizinha, aconselhou-a a desistir da morte e a invocar Eros. Dali partiu a jovem esposa e, após longa caminhada, chegou a uma cidade, onde morava uma das irmãs. Narrou-lhe sua desdita e mentiu-lhe, dizendo que Eros a desejava por esposa. A irmã, sem mais delongas, alucinada de paixão e de inveja criminosa, dirigiu-se para o rochedo fatídico e, invocando o deus do amor e a Zéfiro, lançou-se no abismo: seu corpo se despedaçou nas pontas da rocha e suas vísceras se espalharam pela encosta. Com igual ardil procurou a segunda irmã, que teve o mesmo destino da primeira. Enquanto Psiqué peregrinava, de cidade em cidade, em busca de Eros, este jazia no leito, gemendo de dor pela queimadura sofrida. Foi então que a Gaivota indiscreta buscou Afrodite no fundo do mar, onde a deusa despreocupadamente nadava, e contou-lhe tudo a respeito da doença do filho e da paixão do mesmo por Psiqué. Indignada, a deusa deixou os domínios de Posídon e partiu para seu palácio dourado e, como mãe-bruxa repressiva, descarregou sobre o filho uma saraivada de insultos. Vale a pena transcrever algumas linhas da explosão castradora da deusa do amor e “mãe de Eros”: Porventura desejas impor-me uma rival como nora? Julgas, realmente, devasso, asqueroso, sedutor intolerável, que somente tu podes ter filho e que eu, por causa de minha idade, não mais poderia conceber? Pois é bom que saibas: gerarei um filho melhor do que tu, ou até mesmo, para te humilhar, adotarei um de meus escravos e a ele entregarei tuas asas, teu archote, as setas e tudo quanto carregas para outro fim. Nada do que possuis vem de teu pai, tudo é meu! A mãe, que não quer nora, mas o filho apenas para si, a mãe que o beija “com lábios entreabertos”, deixou o palácio ardendo em fúria e em ciúmes. Pediu a Deméter e a Hera, duas outras Grandes Mães, que a ajudassem a encontrar a fugitiva Psiqué, mas, percebendo que ambas, por medo de Eros, o lisonjeavam, abandonou-as no meio do caminho e refugiou-se no mar. Psiqué, no entanto, continuava seu roteiro de dor. Dois encontros importantes com Deméter e Hera de nada lhe valeram: as DeusasMães, se bem que penalizadas com os sofrimentos da jovem esposa, não podiam prestar-lhe qualquer auxílio. Dessa feita, temiam irritar Afrodite ... Exausta e vendo malograr todas as suas tentativas de encontrar o único “amor” de sua vida, Psiqué estava prestes a tomar uma resolução extrema: entregar-se à sogra e procurar mitigar-lhe o ódio com humilde submissão. E quem sabe não encontraria no dourado palácio da deusa a quem tanto buscava? A poderosa senhora do amor, nessas alturas, já conseguira com Zeus a preciosa assistência de Hermes, para que anunciasse pelo mundo inteiro que uma de suas escravas havia fugido e que recompensaria a quem desse informação a respeito de seu paradeiro. O anúncio do mensageiro dos deuses e dos homens apressou a deliberação da amante de Eros. Sentindo-se perdida, encaminhou-se resolutamente para o palácio da deusa. Já se aproximava do mesmo, quando foi vista por Hábito, uma das escravas do palácio. A serva agarrou-a brutalmente pelos cabelos e arrastou-a para junto de sua Senhora. Quando esta viu Psiqué, um sorriso feroz iluminou-lhe as feições. Após humilhá-la e insultá-la, entregou-a a duas outras escravas, Inquietação e Tristeza, para que a torturassem. Flagelada e supliciada de todas as maneiras, foi novamente conduzida à presença da deusa. Como se novos insultos grosseiros não bastassem, Afrodite investiu contra a indefesa menina: rasgou-lhe as vestes, arrancou-lhe os cabelos e espancou-a da cabeça aos pés. Em seguida, e foi o pior dos castigos, impôs-lhe as quatro célebres tarefas, como se tivesse diante de si um novo Héracles! Manda trazer uma grande quantidade de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, sementes de papoula, lentilhas e fava, mistura tudo, fazendo com eles um só monte e ordena a Psiqué de separá-los por espécie: trabalho para aquela noite! A jovem nem mesmo tentou, pois a empreitada era inexequível. Uma formiguinha, porém, que por ali passava, pode avaliar a impossibilidade de execução da tarefa e, revoltada com a perversidade da deusa, resolveu convocar um batalhão de formigas e pedir-lhes que todas juntas socorressem Psiqué, pois que todas são as ágeis criaturinhas da Terra, a mãe de todos. Trabalhando incansavelmente, ao anoitecer, as filhas da Terra já haviam separado espécie por espécie e grão por grão. Furiosa, atribuindo o êxito de Psiqué a Eros, a deusa insultou-a e atirou-lhe um pedaço de pão. Pela manhã, convocou a “nora” e deu-lhe a segunda tarefa, impraticável e mortal: trazer-lhe, custasse o que custasse, flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de ovelhas ferozes que vagueavam ali bem perto, num bosque, à beira de um rio de imensos sorvedouros. Sem dizer palavra, a jovem amante caminhou em direção ao bosque, não para executar o trabalho ordenado, mas para precipitar-se nas águas impetuosas do rio. Um simples e humilde Caniço verde, todavia, salvou-a duas vezes da morte: suplicou-lhe que não lhe poluísse “as águas sagradas” e ensinou-lhe como proceder para cumprir a ordem recebida. O ardil consistia em não se aproximar das ovelhas, enquanto o sol estivesse a pino, porque, com o calor, elas eram tomadas de um furor terrível, atacavam com os chifres, davam testadas e suas mordidelas eram venenosas e mortais. Era aguardar tranquilamente, sob um plátano, que o calor diminuísse e o vento fresco do rio as acalmasse. Passado o “furor”, as ovelhas iriam descansar e deixariam flocos de lã presos nas árvores do bosque. Bastaria sacudi-las e colher a quantidade desejada. Seguindo à risca os conselhos do Caniço, Psiqué pode voltar para junto da “sogra” com o regaço cheio de flocos de lã de ouro. A deusa não se tocou e mais uma vez imputou o bom êxito da tarefa à intervenção de Eros. O terceiro trabalho era o mais perigoso até agora: tratava-se da busca da água perigosa. Entregou-lhe a Grande Mãe um vaso de cristal e ordenou-lhe que escalasse um rochedo íngreme e enchesse a urna numa fonte guardada de ambos os lados por terríveis dragões. Dessa fonte rolavam as águas escuras, que alimentavam dois rios infernais: o Cocito e o Estige. Ao aproximar-se do rochedo, Psiqué ficou como que petrificada. Nem chorar conseguia. Era até mesmo impossível escalar o rochedo escorregadio. Mais prático seria desistir ou matar-se. A águia de Zeus, todavia, lembrando-se da inestimável ajuda de Eros, por ocasião do rapto de Ganimedes3, abriu suas asas imensas e veio em socorro da amante do deus do Amor. Balanceando as asas, a ave predileta de Zeus passou rápida por entre os dentes ferozes dos dragões, encheu o vaso e o entregou a Psiqué. O bom resultado do empreendimento, dessa vez, não foi atribuído a Eros, mas à magia e à bruxaria. Foi com um sorriso sinistro que Afrodite lhe deu a quarta e fatal empreitada. Passou-lhe às mãos uma caixinha e ordenou-lhe que descesse ao fundo do Hades. Lá deveria se apresentar a Perséfone e solicitar-lhe, em nome da mãe de Eros, que lhe enviasse um “pouquinho de beleza imortal”, uma vez que a deusa do Amor havia consumido toda a sua radiante formosura nos cuidados com o filho doente. A tarefa teria que ser executada no mesmo dia. Foi então que Psiqué compreendeu que, na realidade, seu fim estava próximo. Não havia mais enigmas: enviavam-na, claramente, à própria morte. Subiu, por isso mesmo, a uma Torre muito alta, a fim de precipitar-se lá de cima. Era este, pensou, o atalho mais rápido para chegar ao fundo do Hades. A Torre, porém, falou com mansidão à esposa de Eros que não recuasse ante a prova derradeira. Infundiu-lhe ânimo e instruiu-a acerca do caminho mais curto para atingir o mundo dos mortos, explicando-lhe, ao mesmo tempo, as precauções que deveria tomar na longa caminhada pelas trevas. A entrada que conduzia diretamente ao palácio do Orco, disse-lhe a Torre, era pelo cabo Tênaro, no Peloponeso. Além do mais, deveria ela levar na boca dois ó bolos e em cada mão um bolo de cevada e mel. Os primeiros eram para pagar a passagem de ida e volta ao barqueiro Caronte e os segundos para apaziguar o cão Cérbero, na entrada e saída do Hades. Três tentações deveriam ser vencidas no longo percurso. Uma vez percorrido um bom trecho do caminho, Psiqué encontraria um burriqueiro coxo, conduzindo um asno igualmente coxo, carregado de lenha. O condutor lhe pediria que apanhasse algumas lascas caídas no chão, mas a jovem deveria fazer ouvidos moucos à solicitação e prosseguir viagem. Já na barca de Caronte, em plena travessia dos rios infernais, um velho ergueria do fundo das águas as mãos pobres e imploraria que o puxasse para dentro da embarcação, mas a amante de Eros não deveria se deixar vencer pela piedade ilícita. Já do outro lado, ao se encaminhar para o palácio de Plutão e Perséfone, encontraria umas velhas tecedeiras, que lhe solicitariam ajuda. Sem atendê-las, prosseguiria em seu caminho. A intenção diabólica de Afrodite era que a “nora” largasse um dos bolos e, se assim acontecesse, ela entraria no mundo dos mortos para nunca mais regressar. Uma vez na mansão de Hades, seria gentilmente atendida por Perséfone, que a convidaria a sentar-se e participar de um lauto jantar. Psiqué recusaria ambas as gentilezas. Sentar-se-ia no chão e aceitaria apenas um pedaço de pão preto. Exposto o motivo da viagem e recebida a encomenda da deusa do Amor, deveria imediatamente refazer o caminho de volta, mas, em hipótese alguma, poderia abrir a caixinha, que continha a beleza imortal! Ouvidas com toda a atenção as instruções e recomendações da Torre, Psiqué partiu e fez exatamente quanto lhe fora dito. No retorno do mundo das trevas, porém, já em plena luz, uma grande curiosidade lhe assaltou o espírito: Sou mesmo uma tola, disse de si para si. Trago comigo a beleza divina e até agora não peguei um pouquinho para mim, a fim de conquistar meu lindíssimo amante. Assim dizendo, abriu a caixinha. Como no mito de Pandora, as mazelas sempre estão guardadas em jarras e caixinhas! E a da esposa de Eros não continha beleza alguma imortal, mas o sono estígio, que, espalhando-se, se apoderou da curiosa Psiqué e a prostrou no meio do caminho, imóvel como um cadáver. Eros, já curado do ferimento produzido pelo óleo fervente, morto de saudades da esposa, adivinhando o que se passava, escapou pela janela do quarto, que lhe servia de cárcere e, num voo rápido e nervoso, aproximou-se de Psiqué. Recolocou cuidadosamente na caixinha o sono letárgico e despertou sua Bela Adormecída com o leve toque de uma de suas flechas. Repreendeu-a “pela última vez” com toda a delicadeza e pediu-lhe que cumprisse a missão de que fora encarregada por Afrodite. Ele faria o resto. Enquanto Psiqué se desempenhava de sua última tarefa, levando a caixinha à mãe de Eros, este, temendo a ira materna, dirigiu-se diretamente a Zeus e pediu-lhe que lhe advogasse a causa. Aceita a incumbência, o senhor do Olimpo ordenou a Hermes que convocasse todos os deuses para uma assembleia. Vale a pena transcrever uma pontinha do discurso de Zeus, porque ele tem muito a ver com a interpretação do mito: Deuses, cujos nomes estão inscritos no arquivo das Musas, todos vós conheceis muito bem, assim penso, este jovem que eu próprio eduquei. Julgo ser conveniente refrear de uma vez por todas as desregradas paixões de sua juventude. Chega de ouvir falar em seus escândalos diários no mundo inteiro, mercê de seus galanteios e devassidões. Chegou o momento de tirar-lhe qualquer oportunidade de praticar a luxúria. Cumpre aprisionar-lhe o temperamento lascivo da meninice nos laços do himeneu. Ele escolheu uma donzela e roubou-lhe a virgindade. Que ele a possua, que ela o conserve para sempre, que ele goze de seu amor e tenha Psiqué em seus braços por toda a eternidade. Quanto a Afrodite, nada teria ela com que preocupar-se: este casamento morganático, isto é, entre um deus e uma mortal, em nada afetaria a dignidade e a nobreza da deusa do Amor, porquanto Zeus faria que o mesmo se realizasse dentro dos cânones do melhor direito civil, mas civil do Olimpo. Aprovada por todos os imortais a união de Eros e Psiqué, o pai dos deuses e dos homens ordenou a Hermes que a raptasse da Terra para o Céu. Tão logo a jovem chegou à mansão dos deuses, Zeus foi-lhe ao encontro com uma taça de ambrosia, a bebida da imortalidade: Bebe, Psiqué, disse-lhe o deus supremo, e sê imortal. Eros, com efeito, jamais abandonará teus braços, porquanto o vosso casamento será perpétuo. Um esplêndido banquete nupcial foi servido aos imortais. Com muito néctar e ambrosia, com muita música, dança e cantos melodiosos, com muitas rosas e bálsamos, sob as bênçãos de Afrodite, Eros e Psiqué se “reuniram” para sempre. Desse enlace nasceu logo depois uma menina, que, na língua dos mortais, se chama Volúpia, quer dizer, o prazer, a bem-aventurança. 3 São tantas as análises, interpretações e conjeturas acerca do mito de Eros e Psiqué, que, se Apuleio as tivesse conhecido, teria escrito várias outras Metamorfoses ... Aliás, o mito em pauta é a maior das metamoifoses e é, sob esse enfoque, que se tentará decodificá-lo. Na busca de uma interpretação plausível do mito de Eros e Psiqué, recorremos, além dos neoplatônicos, sobretudo à obra erudita de Neumann4, cuja análise nos pareceu a mais profunda e a mais bem elaborada de quantas tivemos em mãos. Vamos, pois, segui-la, traduzindo-a, não raro, ipsis litteris. A beleza de Psiqué fez que se esquecesse Afrodite. Seus templos foram fechados e abandonados e de todas as partes acudiam forasteiros para ver e reverenciar não mais a mãe do Amor, mas uma mera princesa. Irritada com a competição e com o desleixo de seu culto, a deusa pediu a seu filho Eros para vingá-la e destruir a jovem beldade, fazendo-a casar-se com o mais repulsivo dos homens. Apesar de tanta beleza, porém, Psiqué não era amada, pois que todos se aproximavam dela como se fosse uma das imortais e não uma simples mulher. Temendo pela filha, o rei consultou o oráculo e este a condenou às núpcias da morte: Sobre um rochedo escarpado, suntuosamente ataviada, expõe, ó rei, tua filha, para as núpcias da morte. Não esperes para genro alguém nascido de estirpe mortal, mas um monstro cruel e viperino, que voa pelos ares: feroz e cruel não poupa ninguém e tudo destrói aferro e fogo. Faz tremer o próprio Zeus e aterroriza os imortais, estremece os rios infernais e inspira horror às trevas do Estige. Em obediência ao oráculo, os pais abandonam a jovem às núpcias da morte com o monstro, mas surpreendentemente Psiqué é levada pelo vento Zéfiro para um palácio encantado, onde passa a desfrutar uma vida paradisíaca com Eros, seu amante invisível. As irmãs mais velhas, corroídas de ciúme e inveja, resolvem destruir o idílio da caçula. Não obstante as contínuas advertências do marido, ela decide, a conselho das irmãs, surpreender o monstro dormindo e matá-lo. Executado o plano diabólico, Psiqué vê a seu lado o próprio Eros, por quem se apaixona loucamente. Uma gota de azeite fervente, porém, lhe cai no ombro. O deus desperta e, sem dizer palavra, abandona a amante. Segue-se a busca de Psiqué, sua luta contra a crescente ira de Afrodite e a execução das quatro tarefas que a deusa lhe impõe. Abrindo a caixinha que lhe entregara Perséfone, a esposa do filho de Afrodite mergulha num sono letárgico. Eros a salva, e, imortalizada por Zeus, é festejada no Olimpo como esposa eterna do eterno Amor. Como se pode observar, o mito se divide em cinco partes: a introdução; as núpcias da morte; a tentação de Psiqué e sua paixão; as quatro provas e o desfecho feliz, com a imortalização da heroína. É esta a ordem que segue Neumann na análise do mitologema e, tendo-o tomado por guia, vamos perseguir com ele o mesmo roteiro. Tema central do mito é inquestionavelmente o conflito entre Afrodite e Psiqué. A deusa, “que surgiu das profundezas azuis do mar e nasceu do borrifo das ondas espumantes”, dignou-se manifestar sua divindade ao mundo e estaria vivendo entre os povos da terra. E não obstante tanta gentileza e amizade pelos mortais, estes cada vez mais se afastavam de seus templos e dos prazeres que somente ela lhes poderia proporcionar. Tudo por causa de uma simples princesa mortal! Ofensa mais grave para a deusa, todavia, era a crença corrente entre os homens de que “o céu chovera novo e fecundante orvalho e de que a terra germinara, como uma flor, uma segunda Afrodite em todo o viço de sua mocidade”. Consoante tal convicção, Psiqué não seria apenas uma encarnação da deusa, mas uma segunda Afrodite, recém-concebida e recém-nascida. Se a mãe de Eros fora concebida no bojo do mar, em virtude do esperma do falo decepado de Úrano, sua antagonista nascera da terra, fecundada por uma gota de orvalho, caído do céu. Com seus templos arruinados, as chamas de seus altares extintas, seus leitos sagrados desrespeitados, seu culto esquecido, e a cada dia crescendo a multidão que atravessava as profundezas do mar para ver a nova Afrodite, a deusa deixou-se dominar por uma cólera violenta. Afinal, ela, “a primeira mãe de todas as coisas criadas, a fonte primordial de todos os elementos”, ser posposta a uma simples princesa! Ferida em sua dignidade de Grande Mãe, resolveu usar seu filho Eros para destruir a rival, ou seja, para punir ὔβρις (hybris), a híbris, a “démesure”, o descomedimento de uma pobre mortal, “lama imunda da terra”, que ousara igualar-se a uma deusa numinosa. Sob este aspecto, o mito se abre dentro dos padrões da tragédia grega. 4 Enquanto se encenava essa tragicomédia entre mãe e filho, Psiqué estava irremediavelmente só, sem marido e sem amor e começou, desse modo, a odiar “em si mesma a beleza que constituía o encantamento de nações inteiras”. O pai, recorrendo ao oráculo de Apolo, na expectativa de que a filha lindíssima obtivesse um marido, recebeu a resposta terrível que já se conhece. Inicia-se, então, o lúgubre cortejo para as núpcias da morte, insinuadas no prólogo do drama. As tochas levemente acesas, “obstruídas por escura fuligem e cinza”, as árias festivas da flauta nupcial “substituídas pelos plangentes acordes da melopeia lídia” são elementos típicos do ritual matrilinear das núpcias de morte, que precediam as lamentações por Adônis. Trata-se, no caso, do tema primordial da noiva consagrada à morte, que normalmente aparece sob a epígrafe de “a virgem e a morte”, o que denota, consoante Neumann, “um fenômeno central da psicologia feminina matrilinear”. Para o mundo matrilinear, argumenta o psiquiatra israelense, “todo casamento é um rapto de Core, a flor virginal, consumado por Hades, o violador, ou seja, um simbolismo terreno do macho hostil. Desse modo, todo casamento é como uma exposição no cume de um monte em mortal solidão e uma espera pelo monstro masculino a quem a noiva é entregue. O velar-se5 da noiva é sempre o velar, o encobrir do mistério, e o matrimônio, como as núpcias da morte, é um arquétipo central dos mistérios femininos. Na mais profunda experiência do feminino os temas das núpcias de morte, da virgem sacrificada a um monstro, feiticeiro, dragão ou espírito do mal, recontados em inúmeros mitos e lendas, são igualmente um hieràsgámos. O caráter de rapto, que o evento assume, expressa, relativamente ao feminino, a projeção típica da fase matrilinear - do elemento hostil sobre o homem. Nessa linha de raciocínio é inadequado interpretar o crime das Danaides, todas as quais, menos uma, mataram seus maridos na noite de núpcias, como a resistência do feminino ao casamento e como a dominação patrilinear do masculino. Indubitavelmente, tal interpretação é correta, mas aplica-se tão somente à última fase de um desenvolvimento, que ocorre muito antes. “A situação fundamental do feminino [ ... ] prende-se à relação primordial de identidade entre filha e mãe. A aproximação do macho, por isso mesmo, sempre e em qualquer caso, significa separação. O casamento é sempre um mistério, mas é também um mistério de morte. Para o macho - e isto é inerente à oposição essencial entre o masculino e o feminino - o casamento, como a matrilinhagem o concebia, é antes do mais um sequestro, uma aquisição, uma violação, um rapto”6. No casamento greco-latino ao menos, diga-se, de caminho, o “rapto” era substituído simbolicamente não só pela fuga simulada da noiva, indo-lhe o marido ao encalço e reconduzindo-a ao cortejo nupcial, que se realizava ao anoitecer, à luz das tochas, mas ainda, quando a procissão atingia a casa do esposo, pelo gesto deste em tomá-la nos braços e colocá-la dentro de seu novo lar. No mundo moderno ainda se usa, de certa forma, a segunda modalidade, mas, ao que tudo indica, o atraso intencional da noiva em chegar ao local do casamento se configuraria numa simulação simbólica de fuga. Na análise desse profundo estrato mítico e psicológico é necessário esquecer o desenvolvimento cultural e as formas que assumiram as relações entre homens e mulheres e retroceder ao fenômeno do primeiro encontro sexual entre eles. Não há de ser difícil intuir que a significação desse encontro foi certamente muito diversa para o masculino e para o feminino. O que para o masculino é agressão, vitória, violação, satisfação dos desejos - basta que se observe o mundo animal e se tenha a coragem de reconhecer este nível como válido também para o ser humano - é, para o feminino, destino, transformação e o mais profundo mistério da vida. Não é por mero acaso, segundo observou agudamente Erich Neumann, que o símbolo central da virgindade seja a flor e é extremamente significativo que a consumação do matrimônio, a destruição da virgindade, se denomine defloração. Para o feminino o ato da defloração representa um verdadeiro e misterioso vínculo entre um fim e um começo, entre um deixar-de-ser e penetrar na vida real. Eis o motivo por que o ato de defloração representou originariamente para o masculino algo numinoso e profundamente misterioso. Em muitas culturas este ato foi, por isso mesmo, abstraído da vida privada e executado como um rito. Acrescente-se, além do mais, que a defloração nem sempre era consumada pelo noivo, mas pelo rei, por um estranho e mais especificamente por uma “divindade”, o que explica que a noiva, não raro, passava a primeira noite de núpcias num templo. E, quando a tarefa era desempenhada pelo noivo, rodeava-se o leito nupcial de divindades ajudantes e cooperantes, conforme se mostrou no Vol. 1, p. 326-327. De qualquer forma, torna-se patente quão decisiva deve ter sido, na vida do feminino, a transição da “virgem-flor” para a “mãe-fruto”, quando se leva em consideração a rapidez com que se esvai a juventude feminina, sob condições primitivas, e com que pressa é consumida a fecundidade, quando a mulher é submetida a trabalhos pesados e penosos. O tema das núpcias de morte ocupa, sem dúvida, uma posição central no mitologema de Psiqué, se bem que, de início, o mesmo se nos apresente apenas como uma simples vingança de Afrodite. Conduzida pela multidão para o local onde se consumaria, segundo todos acreditavam, seu fatídico himeneu, a jovem princesa acompanha em prantos não a alegre e festiva procissão de suas núpcias, mas o cortejo fúnebre de suas exéquias. Aos pais, abalados com o destino da filha e hesitantes em executar o crime nefando, Psiqué os exorta com palavras, que, nascidas de seu inconsciente, estão em perfeita harmonia com o mistério do feminino face a essa situação de morte. Sem discutir, sem protestar, sem desafiar ou resistir, como agiria um ego masculino em situação idêntica, ela aceita seu destino. Suas palavras são claras e firmes: Se nações e povos me tributam honras divinas; se a uma só voz me consagram como a nova Afrodite, então agora chegou o momento de vocês padecerem, chorarem e me lamentarem como morta. Assumindo a hybris da humanidade e não a sua própria, a de seu ego, e mais ainda sua punição, declara estar pronta para o sacrifício: Estou ansiosa para concluir esta união sagrada e contemplar o nobre esposo que me aguarda. Por que não protelo e fujo de sua presença? Não nasceu ele para destruir o mundo inteiro? Deixada só no cume do rochedo, a princesa é arrebatada pelo vento Zéfiro e suavemente transportada para um vale macio e perfumado. Vem, então, a grande surpresa, que, a princípio, dá a impressão de um conto de fadas. Esta é a terceira parte do mito: Psiqué no paraíso de Eros. 5 O casamento, que fora precedido por um autêntico préstito fúnebre das “núpcias da morte”, é então consumado num cenário típico das “Mil e Uma Noites”: Agora, quando a noite já ia avançada, uma voz suave lhe chegou aos ouvidos. Ela temia por sua virgindade, vendo-se completamente só. Tremia de horror e receava o desconhecido muito mais que qualquer outro perigo que já houvesse imaginado. Por fim chegou seu misterioso consorte; subiu ao leito e fez Psiqué sua mulher, mas, antes do amanhecer, desapareceu apressadamente. Em breve, o que, de início, parecia estranho, por força do hábito tornou-se um deleite e as Vozes alegravam sua solidão e perplexidade. Logo depois, ela dá expansão à sua felicidade: Antes morrer cem vezes que perder tão doce amor. Onde estiveres, eu te amo e adoro apaixonadamente. Amo-te como amo a própria vida. Comparado a ti, o próprio self de Eros seria nada. Mas o êxtase em que murmura esposo doce como o mel ou minha vida e amor é um êxtase de trevas. É um estado de desconhecimento e cegueira, uma vez que seu grande amor podia ser sentido e ouvido, mas não visto. Psiqué, todavia, parecia feliz e vivia em paradisíaca bem-aventurança. Todo paraíso, no entanto, tem sua serpente e a felicidade “noturna” da jovem esposa não poderia durar para sempre. O intruso, a serpente venenosa desse Éden é representada pelas irmãs, cuja irrupção deflagra a catástrofe, que, também aqui, equivale à expulsão do paraíso. Apesar da séria advertência de Eros, Psiqué encontrou-se com as irmãs, que, cegas de inveja, planejavam destruir-lhe a felicidade. O método arquitetado pelas “bruxas” foi o universalmente conhecido: não se tratava, no fundo, de matar a Eros, mas de quebrar o tabu e desvendar o mistério, a saber, fazer que a irmã visse o esposo. Examinadas sob um ângulo superficial, a proibição de ver o marido, de saber “quem ele era”, bem como a tentação das irmãs, motivadas pelo despeito, poderiam ser enquadradas num conto de fadas, mas, numa análise mais profunda, como o fez Neumann7, fica patente que o tema em pauta comporta vários níveis extremamente significativos. Qual seria o significado das irmãs no mito de Psiqué? De saída, ambas se casaram, ou melhor, “foram casadas”, muito mal. Suas núpcias, símbolo da escravidão patrilinear, são exemplos típicos do que se poderia denominar a escravidão do feminino na patrilinhagem. Diz-nos o texto de Apuleio que elas foram dadas a reis estrangeiros, mas para que fossem suas serviçais. Uma delas descreve o marido como mais velho que seu pai, mais calvo que uma abóbora e mais frágil que uma criança. Dessa forma, seu papel era o de filha e não de esposa. A outra não era menos infeliz: unira-se a um doente, gotoso, já meio alquebrado, e sua função precípua era a de enfermeira. Embora não se possa minimizar o tema óbvio da inveja das irmãs, este, entretanto, não deve se constituir no ponto central da interpretação da atitude das mesmas. Necessário se torna ressaltar que ambas odiavam intensamente os homens, evidenciando, assim, um ângulo típico da matrilinhagem. O sintoma mais evidente dessa atitude matrilinear de repúdio aos homens é a caracterização que elas fazem do esposo invisível de Psiqué. Quando falam dos abraços de uma venenosa e asquerosa serpente, quando afirmam que Psiqué e seu rebento serão devorados pelo monstro, expressam mais que a inveja e o ciúme de mulheres sexualmente insatisfeitas. “Suas mentiras, segundo Neumann - porque elas dizem a verdade num tom difamador, como se fosse um mal-entendido - têm origem no desgosto sexual de uma Psiqué matrilinear violada e insultada”8. O êxito por elas alcançado deve-se à evocação que fazem na própria Psiqué desse estrato matrilinear de ódio aos homens. Com isso intensificam o conflito já existente no espírito da irmã, o qual pode ser traduzido numa simples frase: no mesmo corpo ela odeia o monstro e ama o marido. Esta relação transparente com a matrilinhagem e com as assassinas de maridos, as Danaides, é intensificada, quando as irmãs aconselham Psiqué não a fugir do esposo desconhecido, mas a decepar-lhe a cabeça com uma faca, o que estampa um antigo símbolo de castração sublimado e elevado à esfera espiritual. O macho hostil, a mulher como vítima do esposo-monstro, o assassinato do homem e sua castração, símbolos matrilineares de autodefesa ou dominação, como se explica que Psiqué tenha chegado a esse ponto? Que significado tem tudo isto no mito de Eros e Psiqué? Para Neumann, a atuação das duas irmãs matrilineares da heroína, as quais odeiam homens, contrasta profundamente com o doce enlevo e autoanulação da caçula, que se rendera por completo à escravidão sexual do amante. O aparecimento delas introduz a primeira perturbação nesse paraíso de prazeres. Desse modo, consoante a interpretação do mesmo psiquiatra, “as figuras das irmãs representam projeções reprimidas ou tendências matrilineares inteiramente inconscientes da própria Psiqué e cuja erupção provoca um conflito no interior da mesma, atuando aquelas como o aspectosombra da esposa de Eros. Desde a primeira visita das irmãs, Psiqué adquire uma certa independência em relação ao marido e a si própria. Repentinamente ela percebe que sua existência e convivência com Eros não passam de uma prisão luxuriosa e sente saudades da presença de seres humanos. Até então ela havia flutuado na correnteza de um êxtase inconsciente, mas agora começa a perceber a fantasmagórica irrealidade de seu paraíso sensual e principia, em contato com o amante, a tomar conhecimento de sua feminilidade. Faz cenas e envolve aquele que a havia envolvido com murmúrios apaixonados”9. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, as irmãs-sombras (desde que se deixe de lado a intriga superficial que as envolve) representam um aspecto da consciência feminina que marcará todo o subsequente desenvolvimento de Psiqué. Sem ele, ela não seria o que é, a saber, a Psiqué feminina. Apesar de sua forma negativa, antimasculina e assassina, a incitação das irmãs configura a resistência da natureza feminina à situação e à atitude de Psiqué, bem como o início de uma maior conscientização feminina. Isto não quer dizer que as irmãs representam a consciência, são apenas sua sombra, seu lado negativo, seu precursor. Mas, se Psiqué consegue passar de um estado inteiramente de sombras para um estágio mais desenvolvido é sobretudo porque se sujeitou à orientação negativa das irmãs. Bastoulhe quebrar o tabu que Eros lhe impusera, ao responder à sedução das irmãs, para entrar em conflito com ele. Pois bem, este conflito é a base de seu desenvolvimento. Na realidade, até o momento, Psiqué, apesar de seu paraíso sensual, viveu na “sombra”, num perfeito estado de servidão contra o qual a consciência feminina do selfe é exatamente esta a atitude matrilinear do feminino deve protestar, como fizeram as duas irmãs mais velhas. A existência da amante do filho de Afrodite era uma não existência, um estar-no-escuro, um êxtase de sensualidade, algo assim que poderia ser caracterizado como uma situação em que ela está sendo devorada por um monstro. Eros, enquanto fascinação invisível, é tudo aquilo que o Oráculo, citado pelas irmãs, havia previsto: Psiqué, sem dúvida, é vítima de Eros10. Ora, a norma básica do matrimônio é a proibição, como demonstrou Bachofen11, de a mulher ter relações individuais com o homem: o macho é conhecido apenas como um poder anônimo. Para a heroína esse anonimato acabou, mas a jovem incorreu na mais profunda e imperdoável desgraça: sucumbiu à masculinidade do marido e caiu em seu poder. Do ponto de vista matrilinear, só existe uma saída para esse impasse: matar e castrar o masculino; e é exatamente isto que as irmãs exigem de Psiqué. Mais uma vez é necessário acentuar que as mesmas não configuram somente a regressão, pois que um princípio feminino mais elevado está atuando igualmente: sem dúvida, elas iluminaram o estado inconsciente da irmã. Em seu “conflito” com Eros, apesar das constantes recomendações e pedidos do esposo, Psiqué lhe resiste aos conselhos de romper relações com as irmãs e com elas se encontra, o que parece destoar de sua aparente suavidade. No decorrer desse “litígio”, ela, finalmente, deixa escapar palavras reveladoras que são a chave de seu estado interior: Não mais procurarei ver tua face e nem mesmo a escuridão da noite poder d ser um obstáculo à minha felicidade, pois tenho-te em meus braços, luz de minha vida. No momento exato em que Psiqué dá mostras de aceitar a escuridão, isto é, a inconsciência de sua situação e, quando no aparente abandono de sua consciência individual, refere-se ao amante desconhecido como luz de minha vida, nesse instante um sentimento até então desconhecido vem à tona: ela fala negativamente de sua opressiva escuridão e de seu desejo de conhecer o marido. Exorcizando seu próprio medo do que está por acontecer, revela seu conhecimento inconsciente do que está acontecendo. Antes era prisioneira das trevas, mas agora o impulso, que a arrasta ao conhecimento da luz, se torna imperioso. A esposa de Eros, sem dúvida, está muito longe de ser apenas a menina “gentil” e “simples”. Ao contrário, a atitude das irmãs, com sua hostilidade e protesto, corresponde exatamente ao que se passa no interior da própria Psiqué. Atuado pelas irmãs, o protesto matrilinear aflora a partir do exterior e a impele à ação. É exatamente esta situação que torna possível o “conflito” em Psiqué: no mesmo corpo odeia o monstro e ama o marido e foi essa constatação que permitiu às irmãs seduzila. Embora a jovem esposa ignorasse a aparência do marido, de há muito a oposição monstro-amante vivia em seu inconsciente e foram precisamente as irmãs que a conscientizaram do pressuposto aspecto da “fera mortífera”. Não lhe sendo mais possível permanecer em seu antigo estado inconsciente, ela é coagida a ver o verdadeiro aspecto do parceiro e, apesar da ambivalência, a oposição entre a Psiqué que odeia o monstro e ama o marido é projetada para o exterior, obrigando-a a entrar em ação. Armada com um punhal afiado e empunhando um candeeiro, aproximou-se do amante e, na luz, reconheceu Eros. Tentou matarse, mas fracassou. Depois, enquanto se extasiava com a beleza do marido, feriu-se numa de suas flechas. Inflamada de desejo, inclinouse para beijá-lo e uma gota de óleo fervente, caindo do candeeiro, queimou e feriu o deus. Acordando sobressaltado e, constatando a desobediência da esposa, abandonou-a imediatamente. E aqui se inicia o drama de Psiqué, a busca da individuação, que sempre dói muito, porque é um parto e um pacto extremamente difíceis. Que experimenta Psiqué, quando, impulsionada pelas forças matrilineares de ódio aos homens, se aproxima do leito para matar o suposto monstro e descobre Eros? A palavra está com Neumann: “Se reconstruirmos a grandeza mítica desta cena [...], perceberemos um drama de grande profundidade e poder, uma transformação psíquica de significado único. É o despertar de Psiqué como Psiqué, o momento decisivo do destino na vida do feminino, no qual, pela vez primeira, a mulher emerge de seu inconsciente e da clausura de seu aprisionamento matrilinear e, num encontro individual com o masculino, ama, ou seja, reconhece Eros. Este amor da jovem princesa é um amor de tipo muito especial e, só se compreendermos o que é novo nesta situação amorosa, é que podemos intuir o que isto significa para o desenvolvimento do feminino, como é o representado por Psiqué”12. A Psiqué que se aproxima do leito, em que dorme Eros, não é mais aquela criatura langorosa e envolvente, seduzida por seus sentidos, que vivia no paraíso trevoso da sexualidade e do desejo. Conscientizada pelas incursões de suas irmãs, ciente do perigo iminente, ao aproximar-se do leito para matar o monstro, a besta macho que a havia raptado do mundo superior em núpcias de morte e arrastado para as trevas, ela assume a cruel e hostil militãncia da matrilinhagem. Mas, ao brilho da nova e tênue luz com que ilumina a escuridão inconsciente de sua antiga existência, reconhece Eros. Ela, agora, ama. Conscientizada, ela experimenta uma transformação radical: descobre que a dicotomia entre monstro e marido não é válida. Atingida pela faísca do amor, tenta apunhalar-se, em outros termos,fere-se com a flecha de Eros. Com isto, abandonando o aspecto inconsciente infantil de sua realidade, renuncia igualmente ao aspecto matrilinear de ódio aos homens. À luz do “novo” amor, Psiqué reconhece Eros como um deus que sintetiza em si o inferior e o superior e que é a sizígia dos dois níveis. Viu-se que Psiqué se deixou ferir na flecha de Eros e sangrou: Assim, desapercebidamente, mas através de seu próprio ato, Psiqué se apaixona pelo Amor. O que a amante de Eros experimenta agora poderia ser chamado de uma segunda defloração, uma defloração que se passa em seu interior. Esse ato de amor, com entrega voluntária a Eros, é ao mesmo tempo um sacrifício e uma perda. Psiqué não renuncia ao aspecto matrilinear de sua feminilidade, mas o paradoxal da situação é que, em e através de seu ato de amor, ela o eleva à sua essência autêntica e o exalta, simultaneamente, ao seu nível amazônico13. A Psiqué, que conheceu, porque viu Eros na luz, e que quebrou o tabu de sua invisibilidade, não é mais a menina ingênua e infantil em sua atitude contra o masculino. Não se trata mais da cativante e da cativada: sua feminilidade se transformou a tal ponto, que ela perdeu e realmente deveria perder o marido. O amor da amante que explodiu, ao ver o amante, fez com que passasse a existir dentro dela um Eros que não é mais aquele que dormia diante dela, ou seja, fora dela. Seu Eros interior, imagem de seu amor, é, na realidade, uma forma superior e invisível do Eros que dormia placidamente a seu lado. Tal forma superior e invisível pertence à Psiqué consciente e adulta, a uma Psiqué que deixou de ser criança. Pois bem, esse Eros superior e invisível, interno a Psiqué, deverá necessariamente entrar em conflito com sua imagem visível, revelada pela luz do candeeiro e queimada pela gota de óleo fervente. O Eros oculto pelas trevas ainda poderia ser uma encarnação de uma imagem qualquer de Eros, mas este Eros visível é o divino, o filho de Afrodite, o qual, como tal, não deseja também tal Psiqué! A tarefa urgente da amante é a unificação da estrutura dual de Eros, que também se manifesta na figura antitética de Eros e Ânteros, é a transformação do Eros inferior no Eros superior, pois uma coisa é o Eros de Afrodite, outra, o Eros de Psiqué. Na interpretação lapidar de Neumann, “a perda do amante, neste momento, é uma das mais profundas verdades dentre as verdades deste mito. Este é o momento trágico em que toda Psiqué feminina assume seu próprio destino. Eros foi ferido por Psiqué. A gota de óleo, que o queimou, acordou-o e fê-lo ir embora, o que se constitui, de qualquer forma, numa fonte de sofrimentos. Para ele, o deus masculino, a amante era desejável, enquanto no escuro, e ele a possuía com exclusividade. Afastada do mundo, vivendo apenas para ele, sem participação e interferência em sua existência divina, Psiqué se tornara apenas uma companheira para suas noites. Sua insistência em manter-se no anonimato agrava ainda mais a condição servil da parceira: a cada dia ela era mais devorada por ele”14. Tentando matá-lo e ferindo-o, mas vendo-o, Psiqué emergiu da escuridão e assumiu seu destino como mulher apaixonada, pois ela é Psiqué, quer dizer, sua essência é psíquica e, por essa razão, uma existência nas trevas não pode satisfazê-la15. Ao libertar-se de Eros com um punhal e um candeeiro e, desse modo, transcendendo-o e espancando a escuridão que ele lhe impusera, a princesa despoja o amante de seu poder divino sobre ela. Agora, os dois se defrontarão como iguais. Em um novo plano, quer dizer, amando conscientemente, sua grande tarefa há de ser a de unir-se de novo a ele e formar um todo em nova sizígia, uma vez que a necessidade de uma junção a havia impelido ao sacrifício. Assim, a iniciativa “criminosa” de Psiqué é o início de um desenvolvimento que envolve não apenas a si mesma, mas que também atinge a seu amante. E Eros, como se comporta face a essa transformação? O filho de Afrodite, segundo se mostrou, foi ferido por sua própria flecha, quer dizer, amou Psiqué desde o início, mas esta,já se falou, só começou a amá-lo, após “seu ato heroico”. Aquilo, porém, que Eros denominava “seu amor” e o modo como o desempenhava chocam-se com a amante e sua ação libertadora, “que acabou por expulsar a Eros e a si mesma do paraíso da inconsciência urobórica”. Foi através da esposa que ele, pela primeira vez, sofreu as consequências de suas próprias flechas, aqui simbolizadas pela gota de óleo fervente que lhe caiu no ombro. Que significa, porém, o óleo fervente? O texto de Apuleio é elucidativo a esse respeito: Ó candeeiro temerário e insolente, tu queimaste o próprio senhor do fogo. O instrumento que provoca dor é uma arma cortante e perfurante como a flecha, mas a substância que alimenta o candeeiro é o princípio da luz e da sabedoria. O óleo, enquanto essência do mundo vegetal, uma essência extraída da terra, usada para ungir o rei, o senhor na terra, é um símbolo muito difundido em todas as culturas. Assim, é significativo que, sendo a base da luz, para iluminar, deve inflamar e queimar, para purificar. Se, através de seu ato, Psiqué toma consciência de Eros e do amor que sente pelo mesmo, este está apenas ferido, mas não conscientizado do ato de amor e separação da amante. Em Eros tão somente uma parte do processo se completou: a substância básica foi inflamada e ele arde por causa dela. Trata-se, no entanto, do início de uma transformação, mas involuntária e o deus a experimenta passivamente. Como se sabe, Eros era um menino, um jovem, o filho-amante de sua Grande Mãe, cujas ordens transgrediu, amando Psiqué, em vez de fazê-la infeliz. Esse logro, todavia, não o libertou de Afrodite; atesta apenas que ele a traiu, já que seu objetivo era que tudo se passasse em segredo, na escuridão, às ocultas de sua mãe. Seu romance com a mais bela das mortais é mais uma das “fugas” dos deuses gregos, longe da luz da opinião pública, representada tipicamente pelas divindades femininas. Mas o oculto e egoístico paraíso sensual do filho de Afrodite foi iluminado por Psiqué, que rompeu a “participação mística” com seu parceiro e lançou os dois no destino da separação, que é a consciência. O amor, como expressão da totalidade do feminino, não é possível nas trevas, como mero processo inconsciente. Um encontro autêntico com o outro envolve a consciência, apesar da separação e do sofrimento. “A ação de Psiqué leva à individuação, na qual, como diz Neumann, a personalidade experimenta a si mesma em relação a um parceiro como o outro, quer dizer, não somente como unida a um parceiro. A jovem fere e fere-se e, através desses ferimentos, desfaz-se o vínculo original e inconsciente que os unia, criando, todavia, a possibilidade de um novo encontro, pré-requisito do amor entre dois indivíduos16. No Banquete de Platão, 189, 190, 191, a separação operada por Zeus no andrógino, no Um, e a carência daí resultante, isto é, o anseio de “reunir” o que havia sido dividido, é descrita como a origem mítica do amor. Aqui a mesma concepção se repete em termos do individual. Desse modo, a práxis de Psiqué “encerra a idade mítica no universo arquetípico, na qual a relação entre os sexos dependia tão somente da força superior dos deuses, que mantinham os homens sob seu jugo. Inicia-se, então, a idade do amor humano, em que a Psiqué, conscientemente, assume por si mesma a decisão derradeira”. Este fato, afirma Neumann, nos leva de volta ao ãmago do mito, quer dizer, ao grave conflito entre a “nova Afrodite” e Afrodite, a Grande Mãe. A rivalidade se inicia, quando os homens, adorando a beleza de Psiqué, negligenciam o culto e os templos da deusa. A contemplação pura da beleza contraria inteiramente o princípio representado por Afrodite, que também é bela e configura a beleza, mas esta é um meio apenas para se atingir um fim. Se este parece sintetizar-se exclusivamente no desejo e na intoxicação sexual, na realidade esse fim é a fertilidade: Afrodite é também uma Grande Mãe, como Deméter e Hera. E apesar de a deusa do amor representar o eterno ciclo da criação, ela é igualmente um dos aspectos do arquétipo da matrilinear geratriz da vida e da fertilidade das coisas vivas. A beleza, a sedução e o prazer por ela outorgados são instrumentos de um “esporte celestial”, armas poderosas de que dispõe e usa para a multiplicação das espécies. Mas a aliança entre a deusa e Eros representa igualmente o atrativo da beleza e o encanto das relações humanas, como se pode depreender das palavras de Hera e Deméter, quando aquela explode em cólera por causa dos amores de Eros por Psiqué: Quem entre os deuses e os mortais te permitirá semear paixões entre os homens, se proíbes teus próprios familiares de usufruírem os encantos do amor e os excluis de todas as alegrias proporcionadas pela fraqueza da mulher, um prazer que é permitido a todo mundo? O “semear paixões” e a norma acerca da “fraqueza da mulher” são atributos afrodíticos da Grande Mãe e que a deusa do amor, a “velha Afrodite”, ainda representa em grau superlativo. Pois bem, este aspecto torna-se evidente no conflito da deusa com Psiqué, que, contrariando todos os preceitos do amor, é adorada em pura contemplação. Assim agindo, a “nova Afrodite” interfere na esfera dos imortais. Com sua práxis, o feminino, como força psíquica, entra em litígio com a Grande Mãe e com seu aspecto terrível, ao qual o feminino, em sua existência matrilinear, estivera subordinado. Mais que isso, Psiqué não se rebela só contra a Grande Mãe Afrodite, insurge-se ainda contra o amante masculino, Eros. Com seu autossacrifício, a frágil amante abandonou tudo e assumiu a solidão de um amor pelo qual renuncia, inconsciente e conscientemente, à atração de sua beleza, que conduz ao sexo e à fertilidade. Agora, porém, que viu seu amante Eros na luz, Psiqué coloca, lado a lado, o princípio do amor, do encontro e da individuação com o princípio da atração que fascina e com o da fertilidade das espécies. Acima do preceito do amor material de Afrodite, enquanto deusa da atração mútua entre os opostos, ergue-se o princípio do amor de Psiqué, que a essa atração associa conhecimento, crescimento da consciência e desenvolvimento psíquico. Do ponto de vista de Grande Mãe do amor, a união do feminino com o masculino, como fato natural, não é essencialmente diverso no homem e nos animais; a amante de Eros, porém, transcendeu esse estágio, transformando-o numa psicologia do encontro. Pela vez primeira, o amor individual de Psiqué rebela-se contra o preceito coletivo da embriaguez sensual, encarnado em Afrodite. Sua luta, agora, por isso mesmo, será em duas frentes: contra a Grande Mãe Malvada, a sogra-bruxa, e contra Eros, a quem terá que conquistar e desenvolver, transformando-o num amante humano. O filho-amante de Afrodite, a quem ela beija com os lábios entreabertos, numa relação incestuosa, filho que ela teme perder para uma nora inimiga, terá que ser resgatado por Psiqué, de uma esfera transpessoal da Grande Mãe, para ser trazido à esfera pessoal da humana e amantíssima-nova-Afrodite. Mas, por que essa regressão de Afrodite à condição de Mãe Terrível? Ouçamos Neumann: “Do começo ao fim deste mito, o princípio da personalização secundária é dominante. Com o desenvolvimento da consciência, fenômenos transpessoais e arquetípicos assumem uma forma pessoal e tomam lugar na construção de uma história individual, de uma situação humana de vida. A Psiqué humana é um ego ativo que ousa opor-se, e com sucesso, a forças transpessoais. A consequência desse grandioso posicionamento da personalidade humana, aqui no caso feminina, é de enfraquecer o que antes era algo todo-poderoso. O mitologema da nova Afrodite humana se fecha com sua deificação. Paralelamente a divina Afrodite se humaniza, bem como Eros que, através do sofrimento, prepara o caminho para a união com a Psiqué humana. Quando se torna claro para Afrodite que seu rebento masculino, que sempre havia sido um escravo obediente, se excedera na função de filho e amado, um instrumento e auxiliar, e se tornou independente como amante, surge um conflito na esfera do feminino e uma nova fase do desenvolvimento de Eros se inicia”17. 6 Ao deixar de fugir de Afrodite, o que se configura, na realidade, numa busca de Eros, e ao render-se à deusa, Psiqué está preparada para enfrentar a “morte certa”. Iria começar a parte mais dolorosa de sua iniciação, que, em contexto religioso, sempre pressupõe a morte do iniciando para o renascimento do homo nouus. A amante de Eros vai, nesta quarta parte do mitologema, enfrentar “os trabalhos”. O plano de Afrodite, para destruir a nora, gira em torno de quatro tarefas. Ao realizá-las, Psiqué converte-se num Héracles feminino e sua sogra desempenha papel idêntico ao de Hera, e madrasta do herói do Peloponeso. Consoante Neumann, “os trabalhos que Afrodite impõe à amante do filho parecem, à primeira vista, não ter sentido nem ordem. Mas, uma interpretação baseada no simbolismo do inconsciente mostra que o contrário é o verdadeiro”18. É exatamente essa interpretação que vamos transcrever, não raro, ipsis uerbis. A primeira tarefa, como já se mostrou, consistia em separar de um monte enorme de cereais as sementes e grãos de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, papoula, lentilha e fava ... Tudo por espécie, e numa só jornada noturna! A deusa, ferida e “ameaçada” no mais fundo de seu ser,julga simplesmente que o primeiro trabalho é impossível de se realizar. Diga-se logo que o mesmo simboliza primeiramente “uma mistura urobórica do masculino”, quer dizer, a típica promiscuidade do estágio pantanoso de Bachofen, conforme se mostrou páginas atrás. As criaturas que vêm ajudar a heroína não são as aves da deusa, as pombas, que tanto auxiliaram a Cinderela, mas as formigas, a raça “mirmidônica”19, as ágeis criaturinhas da Terra, a mãe de todos. Foi, pois, com a ajuda imprescindível das formigas que Psiqué conseguiu “ordenar a promiscuidade masculina”. Kerényi faz menção do primitivo caráter humano dos povos-formiga, nascidos da terra, e sua conexão com a “autoctonia”, a saber, com o caráter da vida, que é oriunda da terra e particularmente com o caráter do homem. “Aqui, como sempre”, são palavras textuais de Neumann, “os animais ajudantes são símbolos do mundo dos instintos”. Se nos lembrarmos de que as formigas, nos sonhos, são um símbolo relacionado com o sistema nervoso vegetativo, começaremos a entender por que essas forças ctônias, essas criaturas nascidas do solo, são capazes de ordenar as sementes masculinas da terra. Psiqué opõe à promiscuidade de Afrodite um princípio ordenador instintivo. Enquanto a deusa do amor se atem à fertilidade do estado pantanoso, que também é representado por seu filho sob a forma de monstro-serpente fálico, Psiqué possui em si um princípio inconsciente, que lhe permite selecionar, peneirar, correlacionar, avaliar e, assim, encontrar seu próprio caminho em meio à confusão do masculino. Contrariamente à oposição matriarca! da futura sogra, para quem o masculino é fundamentalmente anônimo, como demonstram, por exemplo, os ritos de Istar, Psiqué, mesmo em seu primeiro trabalho, já alcançou o nível da seletividade. [ ... ] Não se pode, de outro lado, esquecer um encontro importante da jovem esposa com um experimentado “conquistador”, depois que o marido a abandonou e depois que o rio lhe frustrara a tentativa de suicídio20, provando-lhe assim que a regressão era impossível21. Pã, o velho filósofo, o sábio, um “simples pastor”, apegado à terra, aos animais e à natureza que, possuindo também poder divinatório, percebeu, de imediato, o que se passava com a “nova Afrodite”. Seu conselho, aparentemente tão singelo, fez que Psiqué continuasse vivendo e encontrasse o rumo certo: Dirige-te a Eros, o mais poderoso dos deuses, com preces fervorosas e conquista-o com suave submissão, pois ele é um adolescente suave e meigo. Aparentemente os desordenados e incríveis trabalhos que Afrodite impõe à nora são apenas perigos mortais, mas o conselho de Pã - procura Eros e conquista-lhe o amor - dá pleno sentido ao que parecia um absurdo. O deus-pastor faz que as tarefas passem a ter um sentido novo e definitivo para o encontro com Eros, porque até mesmo a passagem de um trabalho a outro torna-se um caminho em direção ao amor. A segunda tarefa ainda mais estranha consistia em trazer para a deusa do amor flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de carneiros ferozes que vagueavam num bosque, à beira de um rio caudaloso. Após evitar que a desesperada Psiqué se lançasse nas correntezas, um junco humilde ensinou-lhe como executar a ordem divina. Qual seria o significado no mito desses flocos de lã e da “prudência” do verde caniço? As ovelhas, ou melhor, os carneiros, cuja lã Psiqué deveria recolher, são descritos pelo junco como detentores de poderes mágicos e destruidores. Semelhante alusão patenteia a relação do carneiro com o sol, como se atesta no Egito ou no mito do Velocino de Ouro. Psiqué é advertida para não transitar entre os “terríveis” carneiros até que o sol se tenha posto, “pois, enquanto o violento calor do sol os aquece, são possuídos de uma raiva feroz, tanto que, com seus chifres agudos e sua fronte rija como pedra e, às vezes, com mordeduras venenosas, investem furiosamente contra os mortais”. Os carneiros do sol, consoante Neumann, simbolizam o poder destrutivo masculino e correspondem, em consequência, ao princípio negativo de morte, experimentado pela matrilinhagem. “Essa castração”, contida na ordem da deusa, pode ser interpretada como um “tomar posse de”, como uma opressão, uma “despotencialização”, como o foi o gesto de Dalila, ao cortar os cabelos de Sansão, o herói solar, e o crime das Danaides. Psiqué estaria destruída pelo opressivo princípio masculino, se enfrentasse os carneiros do sol, símbolos do tirânico poder espiritual masculino, com o qual o feminino não se pode defrontar. Se o fizesse, ela se abrasaria como Sêmele na epifania de Zeus ou enlouqueceria como as Miníades, que se opuseram a Dioniso. A princesa, todavia, é salva pelo humilde junco, o “cabelo da terra”, associado às águas profundas, e que é contrário ao carneiro de fogo. Suas palavras caem suavemente na consciência de Psiqué: seja paciente, aguarde o momento propício. Nem sempre é dia alto e o sol é abrasador: nem sempre o masculino é mortal. A tarde virá e com ela a noite, quando o sol se põe, pois Hélio viaja para as entranhas da sagrada noite escura, para junto de sua mãe, da esposa e de muitos filhos, e então o princípio masculino se aproxima do feminino. Após o pôr do sol surge a situação de amor, quando é seguro pegar os cabelos dourados dos carneiros do sol que se acalmam e buscam o descanso. “Física e psicologicamente”, interpreta Neumann, “estes cabelos-raios são poderes masculinos da fertilização, e o feminino, como Grande Sol no ventre da natureza. [ ... ] O feminino necessita apenas consultar seus instintos para conseguir uma relação fecunda, ou seja, uma relação amorosa com o masculino, ao cair da noite. [ ... ] Nesse momento, quando o espírito solar masculino retorna às profundezas do feminino, este encontra o fio dourado, a fértil semente da luz”22. Num comentário-síntese aos dois primeiros trabalhos, Neumann afirma serem ambos de “caráter erótico” e arremata: “É curioso que Afrodite que havia apresentado esses trabalhos não como um ‘problema erótico’, mas como um separar de sementes e como uma procura do fio de lã dourado, atribua a solução dos mesmos à ajuda de Eros. Este, e ela o sabia perfeitamente, estava doente e preso em seu palácio: Sei muito bem quem foi o autor secreto deste feito. Apesar de tudo, parece existir alguma relação, uma certa empatia oculta entre Afrodite e Psiqué, pois aquela compreendeu o caráter erótico não apenas dos problemas que havia imposto, mas também das soluções encontradas pela nora”23. Para realizar a terceira tarefa, Psiqué deveria trazer para Afrodite uma jarra cheia com a água que alimentava dois rios infernais, o Cocito e o Estige. A esposa de Eros não tinha esperança alguma de poder cumprir o mandado que lhe fora imposto; porque, se de um lado a fonte brotava nos píncaros de uma rocha encravada em íngreme penhasco, de outra, era a mesma guardada por terríveis dragões. Dessa feita, o deus ex machina de Psiqué foi a Águia de Zeus. A tarefa é uma variante da busca da água da vida, a preciosa substância difícil de se obter. A característica essencial da fonte é que ela une o superior, o mais elevado, e o inferior, o mais profundo. Trata-se, por conseguinte, de uma fonte circular urobórica que alimenta as entranhas do mundo ctônio e que sobe novamente para emanar da mais elevada rocha que coroa inacessível montanha. A dificuldade consiste em captar numa jarra o líquido dessa fonte, que configura a corrente da energia vital, um Oceano ou um Nilo, em escala mítica reduzida. Afrodite considera o feito impossível, porque, para ela, o fluxo da vida desafia a captura, a contenção. Trata-se de movimento eterno, mudança perpétua, geração, nascimento e morte. A qualidade essencial desse fluxo é que o mesmo não pode ser contido. Psiqué, como jarro feminino, deverá sustá-lo, dar forma e repouso ao que é informe e eternamente fluido. “Sob tal aspecto”, comenta Neumann, “torna-se evidente que, além de sua significação de energia incontida do inconsciente, o fluxo da vida é detentor de um simbolismo específico em relação a Psiqué. Como o que enche a urna-mandala, esse fluxo é gerativo-masculino como o poder fecundante arquetípico de inumeráveis deuses-rios, espalhados pelo mundo inteiro. Em relação à amante de Eros, esse fluxo é o poder conquistador numinoso-masculino daquilo que penetra para fecundar, isto é, do uróboro paternal. O problema insolúvel apresentado pela deusa à nora e que esta resolve é o de encerrar, conter essa energia, sem ser por ela despedaçada”24. Para uma melhor compreensão, todavia, de todo o contexto e de sua simbologia, é necessário, embora sumariamente, dar uma ideia de alguns elementos que neles figuram. Que sentido possui o deus ex machina, representado pela águia? E por que logo esta ave, símbolo espiritual masculino, pertencente a Zeus e ao âmbito do ar? E particularmente, por que se trata da mesma águia, que ergueu Ganimedes ao Olimpo? Existe, de saída, comenta Neumann, um paralelo evidente entre Ganimedes e Psiqué: ambos são seres humanos amados por deuses e arrebatados às mansões celestes como parceiros de seus amantes divinos. A intervenção da águia insinua uma certa admiração de Zeus pela princesa, afeição, aliás, que vai decidir, favoravelmente, o desfecho da sofrida busca de Psiqué. O pai dos deuses e dos homens apoia seu filho Eros, em parte por simpatia masculina, pois também ele sabe o que é estar preso por amor e, em parte, como protesto contra a Grande Mãe que, como Hera, refreia a liberdade de amar de seu esposo e que, como Afrodite, empenha-se em reprimir igualmente seu filho. “Não é por acaso”, diz o mesmo psiquiatra, “que a relação amorosa homossexual de Zeus e Ganimedes interfere positivamente no caso de Eros e Psiqué. É que pares masculinos homoeróticos e homossexuais atuam como ‘conflitantes’, assumindo a luta para se libertarem do domínio da Grande Mãe. Também Eros, dentro dessa mesma perspectiva, deverá abandonar sua condição de filhoamante, para que possa iniciar uma relação livre e independente com Psiqué”. Para o que aconteceu antes, é relevante o fato de que o aspecto masculino espiritual, cujo símbolo central é a águia, venha em auxílio da amante de Eros neste terceiro trabalho. “Se a segunda tarefa consistiu em ‘amansar’ o princípio masculino hostil na ligação erótica do que poderia ter sido destrutivo sob a forma de uróboro paternal, este é uma reconciliação com o masculino, que vai possibilitar a Psiqué estabelecer a comunicação com o mundo espiritual masculino da águia de Ganimedes. [ ... ] O princípio espiritual que dá ajuda, a águia do espírito masculino, que espreita a pilhagem e a executa, possibilita-lhe conter um pouco do fluxo da vida e dar-lhe forma. A águia, segurando a jarra, configura ajá masculino-feminina espiritualidade de Psiqué, que, num único ato, ‘recebe’ como mulher, isto é, ‘recolhe’ como um jarro, e concebe, mas, ao mesmo tempo, compreende e sabe como um homem. [ ... ] Assim, o princípio masculino da águia permite-lhe receber uma parcela do mesmo, sem que seja por ele destruída”25. No primeiro trabalho forças instintivas cooperaram, para que ela pudesse separar e ordenar o masculino; no segundo, um fio de lã é separado da abundância escaldante da luz; no terceiro, uma urna cheia de água é retirada da abundância do fluxo. Desse modo, em planos diferentes, as três tarefas, uma vez executadas, significam que Psiqué pode receber e assimilar o masculino e dar-lhe forma, sem perigo de ser destroçada pelo destrutivo poder do numinoso. Eis por que, a cada tarefa cumprida, a amante de Eros sobe um degrau da escada que a levará paulatinamente a transformar-se, transformando o amante. Sob este último aspecto, argumenta o autor já tantas vezes citado, “o desaparecimento de Eros ganha novo e misterioso significado. Superficialmente, o filho de Afrodite desaparece, porque a amante lhe desobedeceu às ordens. Em outro nível mais profundo, ele ‘retorna para a mãe’, o que é simbolizado pelo cipreste, árvore da Grande Mãe, no qual pousa como pássaro, e também por sua volta à prisão, ao palácio de Afrodite. Em nível ainda mais profundo, é preciso compreender que Eros desaparece, porque Psiqué, com seu candeeiro, não pode reconhecer nele o que ele era realmente. Subsequentemente, fica evidenciado que Eros lhe revelou sua verdadeira identidade gradualmente, no curso do próprio desenvolvimento da amante. Sua manifestação depende dela: Eros é transformado por e através de Psiqué. Através de cada uma das tarefas, a amante apreende, sem o saber, uma nova categoria da realidade do amado. Os trabalhos realizados ‘para ele’ são um crescimento retilíneo, não só da consciência de si mesma, mas também de seu conhecimento do amante. Precisamente porque isto se dá por etapas e porque Psiqué age de forma a não ser arruinada pelo destrutivo poder do numinoso, que também é Eros, ela se torna, a cada trabalho, mais segura de si e mais amoldada ao divino poder e à divina figura de Eros”26. Com a independência do amor de Psiqué surge um fato novo e tão sério, que a própria Afrodite julgava impossível pudesse existir no feminino, a não ser que este possuísse “um coração intrépido e uma prudência além da prudência característica da mulher”. A grande deusa do amor não acreditava que mulher alguma possuísse tais atributos masculinos. Mas o que salienta e assinala de modo ímpar o desenvolvimento da jovem princesa, é que ela executou as três primeiras tarefas indiretamente e com a cooperação do masculino, mas não como um ser masculino. “Forçada a construir o lado masculino de sua natureza, permaneceu fiel à sua feminilidade, o que, decerto, está bem patente no quarto trabalho que lhe impôs a deusa”27. De outro lado, as três primeiras missões são executadas com a assistência de “ajudantes”, quer dizer, por forças internas da inconsciência da heroína. O último deverá ser realizado apenas por ela mesma. Nos três anteriores, seus “auxiliares” pertenciam ao mundo vegetal e animal; no derradeiro será “apoiada” pela Torre, um símbolo da cultura humana. Naqueles, Psiqué lutou com o princípio masculino, neste último entrará em litígio com o princípio feminino central, com Afrodite-Perséfone. Se no terceiro trabalho a água da vida, o fluxo, foi recolhido no mais alto penhasco, agora o objeto da busca se localiza em profundezas insondáveis; está nas mãos da própria Perséfone, a rainha do Hades. Se não mais existem ajudantes, Psiqué terá o Apolo da TorreConselheira, cujo simbolismo é deveras importante. Como recintomandala é feminina: cidade, fortaleza e montanha, que possui como equivalente cultural a torre em degraus ou a torre-templo, a pirâmide. De outro lado, a torre é igualmente fálica, enquanto falo da terra: árvore, muralha, pedra. A par dessa significação bissexual, ela é também um edifício erigido por mãos humanas, donde uma configuração do trabalho coletivo e espiritual dos homens. Símbolo do conhecimento humano, é, por isso mesmo, designada como “a Torre que vê longe”. Dominando dois níveis, ela vê para baixo e vê para cima, podendo, por isso mesmo, mostrar a Psiqué, enquanto indivíduo, mulher e ser humano, como poderá derrotar a mortal aliança das deusas, três das quais, Deméter, Afrodite e Hera, governam a esfera divina superior, e a quarta, Perséfone, comanda a esfera divina inferior. Não é por mero acaso, aliás, que três dos trabalhos são realizados no mundo da luz e o quarto nas entranhas das trevas. Completamente só, armada com as instruções da Torre, Psiqué empreende a grande κατάβασις (katábasis), a perigosa “descida”, em defesa de seu único amor, Eros. Alguns pormenores da viagem, como o itinerário através do cabo Tênaro, as moedas para pagamento da passagem a Caronte e o bolo de mel e cevada para apaziguar o cão Cérbero, não são significativos, uma vez que pertencem a temas tradicionais e não especificamente ao mito de Psiqué. Outros fatos, no entanto, inerentes à catábase, como a proibição de ajudar ao burriqueiro coxo, ao cadáver, às fiandeiras e de não aceitar a cadeira e o lauto jantar, oferecido por Perséfone, merecem um comentário, porque, segundo a Torre, são “armadilhas” de Afrodite. Esta, com tantas ciladas, procura fazer com que a nora fracasse, permanecendo para todo o sempre no Hades, antes mesmo de transmitir à rainha dos mortos a derradeira tarefa que lhe impusera. No quarto e último trabalho, como se salientou, Psiqué, munida de uma caixinha, deveria solicitar a Perséfone, em nome de Afrodite, que enviasse a esta “um pouquinho de beleza imortal”. Trágico é que cada um dos estratagemas da deusa do amor é fatal por si mesmo. O burriqueiro coxo, o “perigoso” Ocno ou Aucno, de quem, no ensaio de Bachofen28, se afasta Afrodite, segura uma corda, cuja extremidade é devorada por um asno fálico. Atender-lhe à solicitação, pegando a acha, símbolo fálico, que caíra no chão, seria para sempre prender-se, na outra vida, ao sensualismo animalesco e a uma tarefa inútil. O cadáver que, erguendo a mão podre, pede ajuda para entrar na barca de Caronte, pode ser entendido, consoante Neumann, como uma representação do perigo de ser possuído pelo homem morto, a saber, pelo espírito ancestral. As fiandeiras, símbolos da Grande Mãe (da vida e da morte), são as Queres, as Parcas dos latinos, que trançam os fios da vida e da morte, segundo se mostrou no Vol. I, p. 241-242. Em suas mãos, no mundo das sombras, Psiqué seria apenas mais uma dos que povoam o reino de Plutão. Por fim, as ofertas de Perséfone, a cadeira e o alimento, não podiam em hipótese alguma ser aceitos. Sentar-se numa cadeira, comer (e disto a própria rainha dos mortos tinha experiência) e outras atitudes de intimidade e identidade, que serão comentadas logo a seguir, estabelecem uma permanência, uma fixação, como a respeito da cadeira aconteceu com Teseu e Pirítoo (o que será exposto no mito dos Heróis, no Vol. III) e sobretudo acerca do comer, como aconteceu com a própria Perséfone, conforme se comentou no Vol. I, p. 322-323. Tomadas em conjunto, as proibições e advertências da Torre têm particular importância no mito que estamos examinando. Psiqué foi advertida de que não ajudasse a Ocno, ao cadáver e às fiandeiras. As palavras da Torre são claras: não te é lícito sentir piedade. O comentário é mais uma vez de Erich Neumann: “Se, como iremos demonstrar em seguida, todos os atos de Psiqué representam um rito iniciático, esta proibição implica a insistência na ‘estabilidade do ego’, característica de qualquer iniciação. Nos homens essa estabilidade se manifesta como resistência à dor, à fome, à sede e assim por diante, mas, na esfera feminina, evidencia a forma de resistência à piedade. A firmeza do ego forte, concentrado em seu objetivo, é expressa em inúmeros outros mitos, com suas imposições de não se voltar, não olhar para trás, não responder, etc. [ ... ] O feminino é ameaçado na estabilidade do ego pelo perigo da distração, provocada pelo ‘relacionamento’, causada por Eros. Esta é a difícil tarefa com que se defronta qualquer Psiqué feminina em seu caminho para a individuação: ela deve abandonar o anseio pelo que está próximo em função de um objetivo distante e abstrato. [ ... ] O componente universal do relacionamento é tão essencialmente uma parte da estrutura coletiva da Psiqué feminina, que Briffault a considera o fundamento de toda comunidade e cultura humana, as quais ele julga pertencentes ao grupo feminino com seu vínculo entre mães e filhos. Mas este vínculo não é individual e sim coletivo, pois pertence à Grande Mãe em seu aspecto de preservadora da vida e de deusa da fertilidade, que não está interessada com o individual e com a individuação, mas com o grupo que ela espera ‘seja fértil e se multiplique’. Por esse motivo, a proibição de ter piedade traduz a luta de Psiqué contra a natureza feminina. Originariamente, ‘ajudar’ sempre significou uma ‘participação mística’, que pressupõe e cria uma identidade e, por isso, é perigosa. Pode, por exemplo, conduzir à possessão por aquele que é ajudado. Nas Mil e Uma Noites, o herói alivia a bruxa de sua carga e, como agradecimento, esta monta em suas costas e não se deixa derrubar”29. Desse modo, a ajuda, o comer em conjunto, o sentar-se, o aceitar presentes ou ser convidado para ir à casa de outrem estabelecem comunhão, identidade e um elo infrangível entre o ajudante e o ajudado. Eis por que Psiqué não se deve deixar mover pela piedade nem aceitar os convites de Perséfone. Se assim agisse, jamais voltaria do Hades. 7 A catábase de Psiqué ao reino de Plutão é uma viagem heroica e o mais difícil de todos os seus trabalhos, porque requer a luta com a própria morte em seu habitat. A grande importância da catábase da jovem amante de Eros reside no fato de que, através da descida, ela irrompeu da esfera matrilinear e, em seu amor consciente por Eros, alcançou a esfera psíquica, “a experiência feminina do encontro”, que é a pressuposição da individuação feminina. As inimigas irmãs-sombra devem ser configuradas como poderes ma trilineares, mas a intervenção de Afrodite deslocou o conflito do plano pessoal para o transpessoal. Os três trabalhos iniciais patentearam que a “queda” de Psiqué visava a terminar com a atitude primordial da matrilinhagem. Por trás da impossibilidade de realizá-los encontrava-se a caraterística concepção matrilinear de um princípio masculino, que, conforme esperava a deusa, seria fatal à sua nora. Com o desenrolar das tarefas, esse princípio masculino manifestou-se como promiscuidade masculina (as sementes); o masculino mortal (a lã de ouro) e o masculino incontível (o fluxo da água da vida). Vencida esta etapa, a deusa vai tentar “destruir” a amante do filho no quarto trabalho, que é a busca da beleza divina, que deveria ser encerrada numa caixinha. Abrindo-a, Psiqué cai num “sono semelhante à morte”. Que significa essa caixinha que contém a beleza imortal e por que Psiqué, apesar da admoestação da Torre, a abriu? Qual o sentido de seu sono estígio e da intervenção de Eros, que a “liberta do sono da morte”? O “creme” de beleza imortal representa, possivelmente, a eterna juventude de Perséfone, a juventude eterna de Thánatos, a “morte” e, por isso mesmo, Perséfone é κόρη (kóre), a “jovem”. Trata-se, portanto, da beleza “do sono semelhante à morte”, conhecida nas lendas da “Bela Adormecida” e da “Branca de Neve” a ele condenadas pela Mãe Terrível, a madrasta, ou pela velha bruxa. É a beleza do caixão de cristal, do qual, espera-se, Psiqué se liberte. É a beleza árida e frígida da virgindade estéril, sem amor pelo homem, como determina a matrilinhagem. O objetivo de Afrodite é fazer que a nora “morra”, regredindo-a a seu antigo estado de Core-Perséfone, ao estágio em que se encontrava antes de seu encontro com Eros. Tem-se aí a sedução do narcisismo que tenta derrotá-la. Afrodite deseja que Psiqué regrida, da mulher que amou Eros, que foi “raptada” por seu amor por ele, para a virgem encarcerada no amor narcísico de si mesma, como se estivesse encerrada no caixão de cristal. Colocar o “creme” da beleza imortal nas mãos de Psiqué é um ardil muito inteligente da deusa, que conhece como ninguém a feminilidade. Que mulher resistiria a essa tentação e como poderia uma Psiqué, em especial, não cair no engodo? Surda à advertência da Torre, abre a caixinha e cai em sono profundo. Mais uma vez, “fracassa”. Caindo no sono estígio, ela retorna a Perséfone, como Eurídice, cujo marido, “ainda nas trevas”, olhou para trás. Vencida pelo aspecto mortal da própria Afrodite, torna-se Core-Perséfone e é conduzida novamente ao Hades, não por Plutão, o noivo masculino da morte, mas pela vitoriosa Grande Mãe, enquanto mãe da morte. Mas, assim como as exigências de Deméter junto a Plutão não foram de todo bem-sucedidas, igualmente a tentativa de Afrodite de fazer Psiqué regredir à matrilinhagem foi em vão, uma vez que a jovem está grávida e sua gravidez de Eros é símbolo de seu profundo vínculo individual com ele. A amante de Eros não está preocupada, como Afrodite, com a fertilidade da natureza, mas com a fertilidade do encontro individual. É evidente que a independência de Psiqué começa no período da gravidez. Enquanto esta na esfera matrilinear conduz a uma união entre mãe e filha, aqui o despertar de Psiqué para a independência, que se inicia com a gravidez, leva-a ao encontro do amor e da consciência. O final feliz, devido a Eros, que desperta a esposa do sono da morte não é uma simples intervenção do deus ex machina, tão comum na literatura clássica, mas algo muito mais profundo. Por que Psiqué fracassa, justamente, agora, no final? Seria apenas por irresistível curiosidade feminina somada a uma vaidade narcísica? Psiqué fracassa e precisava fracassar, porque ela é uma psiqué feminina e é precisamente esse fracasso que lhe dá, sem que ela o saiba, a vitória. Esta é a maior luta, que se conhece, contra o dragão. Sabe-se que o método feminino de derrotar o monstro é aceitá-lo e aqui essa perspicácia assume a surpreendente, mas não menos eficiente, forma de fracasso da jovem princesa. Após palmilhar toda a trilha de um grande herói, após desenvolver sua consciência e estabilizar seu ego, ela se lança ingenuamente de volta nos braços de Afrodite-Perséfone ... Tudo isto teria sido inútil? Seu gesto, aparentemente tolo, visava tão somente a tornar-se atraente para Eros? Quando Psiqué decide abrir a caixinha e usar o “creme da beleza imortal”, devia estar consciente do perigo a que se expunha. A Torre a prevenira o suficiente. Mesmo assim, decidiu não entregar à Grande Mãe o que conseguira a tão duras penas. Tudo começou com o tema da beleza, que agora reaparece em novo plano. Quando a princesa era chamada a nova Afrodite por causa de sua beleza, que despertara o entusiasmo dos homens e a inveja da deusa, esse dom era considerado por ela uma desgraça. Mas agora, exatamente para aumentar sua beleza e torná-la digna de Eros, está disposta a atrair sobre si mesma a maior das desgraças. Tal mudança ocorreu por causa de Eros e isso exprime uma perspicácia profundamente feminina. Psiqué é uma mortal em conflito com deusas. Isto é mau o bastante, mas, na medida em que seu bemamado é também um deus, como poderá ela olhá-lo, contemplá-lo de frente? Ela procede da esfera terrena, mortal, mas aspira a tornar-se uma igual a seu amante divino. De modo muito feminino, ela intui que seus atos e seu sacrifício final o comoveriam e o forçariam a salvá-la. É que, no início, Psiqué sacrificou-se ao paraíso escuro de Eros em função de seu desenvolvimento espiritual, mas agora está prestes a sacrificar seu desenvolvimento espiritual à beleza de AfroditePerséfone, que a tornará atraente para Eros. Ao agir dessa forma, ela parece regredir realmente, mas esta não é uma regressão a algo do passado, à posição matrilinear. Ao preferir a beleza ao conhecimento, ela se concilia com a beleza de sua natureza. E porque ela o fez por e para Eros, sua “antiga feminilidade” entra em nova fase. Já não é a beleza fechada em si mesma, nem a beleza sedutora de Afrodite, que só se interessa pelo “propósito natural”. Trata-se da beleza da mulher que ama, que deseja ser bela para ser amada, que deseja ser bela para Eros e para mais ninguém. Ao tomar tal decisão, ela renova o vínculo com seu centro feminino, com seu self. Professa seu amor e agarra-se ao encontro individual com Eros. Esse “toque” feminino, de mulher que tudo sacrifica pelo amor, é, ao que parece, a razão recôndita que leva Afrodite-Perséfone a perdoar a Psiqué e levantar subitamente toda e qualquer oposição à deificação da amante de seu próprio filho. Esse fracasso paradoxalmente feminino de Psiqué provoca a intervenção de Eros, que, de jovem aventureiro e irresponsável, se torna um homem, transformando o fugitivo queimado em salvador. O salvador de uma Psiqué em outro nível. Sob esse aspecto, o fracasso da nova Afrodite não é um naufrágio regressivo e passivo, mas uma reversão dialética de seu extraordinário devotamento. Através do aperfeiçoamento de sua feminilidade e de seu amor, a “bela adormecida” evoca a perfeita masculinidade de Eros. Abandonando-se ao amor, ela recebe, sem o adivinhar, a redenção através do amor. Com essa redenção através do amor, Psiqué completou suas quatro tarefas e, destarte, perfez o itinerário dos iniciados através dos quatro elementos. Curioso, todavia, é que Psiqué feminina não deve simplesmente peregrinar pelos quatro elementos, como os iniciados masculinos nos Mistérios de Ísis. Ela terá que torná-los seus através de sua práxis e de seus sofrimentos, assimilando-os como forças auxiliares de sua natureza: as formigas, que pertencem à terra; o caniço, que pertence à água; a águia de Zeus, que pertence ao ar; e a ígnea e celestial figura do próprio Eros redentor, o próprio fogo. Antes de se conscientizar de seus componentes masculinos e de compreendê-los, antes de tornar-se um todo, graças ao desenvolvimento de seu aspecto masculino, Psiqué encontrava-se na posição de confronto com a totalidade da Grande Mãe em seu duplo aspecto de Afrodite-Perséfone. O fim do confronto foi, paradoxalmente, a “derrota vitoriosa” de seu comentado fracasso. Em função de sua derrota vitoriosa, ela recuperou não só um Eros adulto, mas ainda o contato com seu próprio self central feminino. Reconciliados o masculino e o feminino, Psiqué foi recebida no Olimpo como esposa de Eros. Seu guia foi Hermes, que, nessa missão, exerceu sua verdadeira função de psicopompo, de guia da “alma feminina”. O arrebatamento de Psiqué, da Terra para o Céu, e sobretudo suas núpcias com Eros, vistas sob o ângulo feminino, significam que a faculdade de amar da alma individual é divina e que a transformação pelo amor é um mistério que deifica. E essa experiência da Psiqué feminina adquire especial importância face ao mundo patrilinear antigo, no qual a existência coletiva das mulheres estava subordinada às leis do princípio da fertilidade. Se os mortais conquistaram seu lugar no Olimpo, o feito não se deve a um herói masculino divinizado, mas a uma psiqué apaixonada. A mulher humana, como indivíduo, escalou o Céu e, a partir daí, na perfeição conquistada pelo mistério do amor, a mulher encontrou-se lado a lado com os arquétipos da humanidade inteira, os deuses imortais. Do enlace Eros-Psiqué nasceu uma menina, que, “na linguagem dos mortais”, se chama Volúpia; “volúpia” sem dúvida, mas algo muito superior à sensualidade. Talvez, “na linguagem dos deuses”, essa criança divina tenha recebido simplesmente o nome de mulher. Fernando Pessoa, num poema lindíssimo, Eros e Psique30, compreendeu, com a sensibilidade e a profundidade que lhe são peculiares, a extensão desse amor-consumação, em que Eros, buscando a Psiqué, acaba descobrindo que ele é a própria Psiqué, transfigurada em Amor ... Vale a pena mostrar este contraste: Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. 1. Lúcio Apuleio, nascido por volta de 125 na cidade africana de Madauro e falecido após 170 d.C., é um dos grandes polígrafos da literatura latina, embora dominasse com tal perfeição a língua de Homero, que se dizia de Apuleio que ele pensava em grego e escrevia em latim. Sua obra mais famosa, e que, entre outras, chegou até nós, é o romance Metamorfoses, também impropriamente denominado O Asno de Ouro, em onze livros. O assunto principal da obra em pauta é a história de um jovem, chamado Lúcio, que foi metamorfoseado em asno, e que só após muitas e grotescas aventuras recuperou a forma humana. No corpo do romance, no entanto, o autor intercala várias historietas, que nada têm a ver com o enredo principal. Entre elas, a de maior extensão, pois ocupa nada menos que o fim do livro IV e os livros V e VI, é o mito de Eros e Psiqué. Em se tratando de mito grego, manteremos os nomes dos deuses na língua de Eurípides, e só os transcreveremos em latim em caso de absoluta necessidade. 2. Fama, em grego Φήμη (Phéme), dórico Φάμα (Pháma), do verbo φάναι (phánai), “dizer, propalar”, é uma divindade que simboliza “a voz pública”. Filha da Terra, era dotada de uma multiplicidade de olhos e ouvidos, que tudo viam e ouviam, e de outras tantas bocas para o divulgar. Habitava, nos confins do mundo, um palácio de bronze cheio de orifícios por onde penetravam e eram ampliadas todas as palavras que se diziam no mundo, por mais baixas que fossem proferidas. 3. Ganimedes, em grego Γανυμήδης (Ganymédes), talvez de γάνος (gános), “líquido brilhante” (vinho) e μήδεσθαι (médesthai), “ocupar-se de”, designando, assim, a função exercida pelo mancebo troiano no Olimpo. Ganimedes era um jovem de grande beleza, filho do rei Trós e de Calírroe. Guardava o rebanho paterno nas montanhas que cercam a cidade de Troia, quando foi raptado pela Águia de Zeus, ou pelo próprio deus, com o indispensável auxílio de Eros. Levado para o Olimpo, foi feito copeiro dos deuses, em substituição a Hebe, que se casara com Héracles (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete). 4. NEUMANN, Erich. Apuleius: Amor und Psyche, mit einem Kommentar von Erich Neumann: Ein Beitrag zur seelischen Entwicklung des Weiblichen (Apuleio: Amor e Psiqué, com um comentário de Erich Neumann: uma contribuição ao desenvolvimento psíquico do feminino). Zürich: Rascher Verlag, 1952 5. Observe-se, segundo se acentuou no Vol. I, p ..... , que νύμφη (nymphe) “noiva”, em etimologia popular, é a que se cobre com um véu. Em latim, também já se disse, o verbo casar se expressa diferentemente para o homem e para a mulher. Em relação àquele, “casar”, é ducere uxorem, literalmente, “conduzir a mulher (para casa), comandar”, um como que “apossar-se da mulher”; para esta “casar” é nubere, “cobrir-se com um véu”, velar-se, recolher-se, ocultar-se. 6. Ibid., p. 62s. 7. I bid., p. 71. 8. Ibid., p. 72. 9. Ibid., p. 73. 10. Erich Neumann observa com muita argúcia que a vida de Psiqué no Éden sombrio de Eros é muito semelhante ao mito do herói engolido pela baleia-dragão-monstro. É bem verdade que a prisão de Psiqué nas trevas é superada, de certa forma, pelo prazer, “mas também esta situação é arquetípica e não excepcional”. Como no percurso da viagem marítima noturna o herói solar masculino acende uma luz no bojo do monstro e livra-se das trevas; igualmente Psiqué liberta-se da “noite”, por estar equipada com luz e punhal. No mito solar masculino, todavia, a ação do herói é violenta, porque sua função principal é matar o monstro. Mesmo que se trate de aquisição de “conhecimento”, o herói coloca em primeiro plano a morte e o desmembramento da baleia-dragão-monstro. Na variante feminina, a necessidade de “saber” permanece vinculada à outra maior, a necessidade de amar. Se bem que Psiqué seja compelida a ferir, ela continua a manter um nexo ainda mais forte com seu amante, a quem jamais deixou de conciliar e transformar. 11. BACHOFEN,JohannJakob. Op. cit., p. 140ss. 12. Ibid., p. 77s. 13. Por nível amazônico entenda-se o que expôs Bachofen em sua obra,já por nós citada, Das Mutterrecht, “O Matriarcado”. Para que se compreenda bem a análise de N eumann, por vezes apoiada em Bachofen, vamos sintetizar o ângulo da tese bachofiana que nos interessa no momento.Johann Jakob Bachofen (1815-1887), historiador do direito e filólogo suíço de língua alemã, na obra supracitada, estuda a Matrilinhagem como força político-social dentro da ginecocracia, quer dizer, do poder senhorial feminino. A Matrilinhagem, assim concebida, resulta da maternidade tomada como um princípio, cujas consequências, amor, fraternidade, igualdade e liberdade, teriam determinado em tempos antigos (o que parece confirmado, até hoje, em culturas ditas primitivas) a vida de povos ginecocráticos, que se mantiveram, por longo tempo, fiéis a tais postulados. Após longas pesquisas, fundamentadas na história e, não raro, na intuição e no mito, o estudioso suíço concluiu que, em épocas muito remotas, as relaçôes sexuais eram promíscuas e, por isso mesmo, somente era indiscutível o parentesco matrilinear. Sabia-se quem era a mãe, jamais o pai. Desse modo, somente à mulher se poderia atribuir a consanguinidade. Ela, unicamente ela, era a autoridade, a legisladora: governava tanto o grupo familiar como o social. Tratava-se da ginecocracia, o poder, o governo da mulher. Tal supremacia era expressa não apenas na esfera da organização social, mas ainda e sobretudo na religião. A religião olímpica, dos deuses de cima, Zeus, Apolo, Ares, Posídon, Aterrá, fora precedida por outra, em que deuses, figuras maternas, eram as divindades do Hades, debaixo, ctônias: Erínias, Deméter, Perséfone. Supôe Bachofen que, através de um longo processo “histórico”, a constituição ginecocrática teria passado por três fases: heterismo, de ἑταιρισμός (hetairismós), “vida ou condição de companheira, de cortesã”, aqui, mais em sentido social, isto é, a fase em que, não existindo casamento, a mulher era mulher de todos. Eis por que, nesse estágio, o “pai” é chamado Udeis, “Ninguém”. E era óbvio que assim acontecesse: afinal, a maternidade é natural e a paternidade mentalmente adquirida. O símbolo do heterismo é a vegetação caótica dos pântanos. O amazonismo é a segunda etapa da ginecocracia: é o estágio agressivo da mulher, uma espécie de imperialismo feminino. Amazonismo é palavra formada com base no grego ἀμαxών (amadzón), “amazona”, que a etimologia popular fazia provir de ἀ (a) não e μαxός (madzós) seio. Segundo se acreditava, as Amazonas, mulheres guerreiras, que habitavam o Ponto Euxino, a Cítía ou a Lídia, mutilavam o seio direito para que pudessem manejar com mais destreza o arco. Só concebiam relaçôes sexuais com adventícios: os filhos homens eram emasculados e empregados, quando não eliminados, em serviços inferiores. Uma projeção do amazanismo é o mito das Danaides e das Lemniades. O símbolo é o nomadismo, a agressividade da natureza. A terceira e última fase é o demetrismo, vocábulo derivado de Δημήτηρ (Deméter), a Terra-Mãe, a terra cultivada. É a etapa do sedentarismo, da agricultura organizada, do “casamento”, mas, ao que parece, por livre escolha da mulher, uma vez que o prestígio social, a família e a religião continuavam sob sua égide. Dado o poder matrilinear, a dominação matronímica, a designação do país natal era feita pelo vocábulo mátria, de mater, mãe; pátria, de pater, pai, seria criação da androcracia, quer dizer, da patrilinhagem. Modernamente, os denominados três estágios ginecocráticos de Bachofen vêm sendo interpretados como estratos e fases psíquicas, particularmente a fase urobórica, caracterizada pela relação de identidade, e não como um fato histórico ou social. 14. Ibid., p. 81. 15. Psiqué repete, “num plano bem diferente”, consoante Neumann, o ato matrilinear das Amazonas, que sacrificavam sua feminilidade, mutilando, como vimos, um dos seios, não apenas para combater como um homem em sua luta com o masculino pela independência, mas também para fortalecer a Grande Deusa da matrilinhagem, Ártemis de Éfeso. Esta se nos apresenta na arte figurada coberta com um manto cheio de seios, símbolos, se não os próprios seios, dos seios a ela sacrificados pelas Amazonas. 16. Ibid., p. 85s. 17. Ibid., p. 92. 18. Ibid., p. 93. 19. Consoante o mito, Éaco, o mais piedoso dos homens, era filho de Zeus e da ninfa Egina. Como a ilha Enone (mais tarde chamada Egina), onde nascera, era inteiramente despovoada, pediu ao pai divino que transformasse em homens as numerosas formigas ali existentes. Zeus concordou e o povo nascido da terra, quer dizer, das formigas, que lhe habitavam as entranhas, recebeu o nome de Mirmidões, em grego Μυρμιδόνες (Myrmidónes) e formiga se diz μύρμηx (myrmeks), que é, por sinal, do “gênero masculino”, mas a aproximação etimológica é de cunho popular. 20. Várias vezes Psiqué foi “tentada” pelo suicídio, por sua desvantagem com o mundo arquetípico, no caso, a natureza dos deuses. Somente com uma crescente integração, com o desenvolvimento psíquico do self, é que a humana Psiqué poderá resistir a esses ataques. Como se pode observar, no início de cada trabalho é tomada pelo dsespero e vê o suicídio como única saída. Consoante Neumann, esse tema se insere num contexto significativo: “Por uma reviravolta surpreendente, as núpcias de morte, a que Psiqué fora condenada, são substituídas pelo escuro paraíso de Eros. Mas a consumação dessas núpcias de morte que o Oráculo de Apolo havia predito (e o Oráculo não pode falhar) é uma exigência arquetípica de sua relação com Eros”. Até agora, a jovem princesa não havia se conscientizado desse fato, que só se manifestara em sua tendência ao suicídio. Mas sua viagem ao mundo ctônio significa que ela deverá, agora, olhar conscientemente a morte de frente. Mas algo há de mudar: no final de seu desenvolvimento, ela enfrentará a situação mortal como alguém transformado. Essa “viagem extrema” tomar-se-á possível para Psiqué somente quando, através das tarefas, ela adquirir o conhecimento que de longe transcenderá seu mero conhecimento intuitivo inicial. Mercê de sua união com as formigas, o junco e a águia, a amante de Eros será capaz de adotar a atitude de conhecimento que é representado pela “Torre que vê longe”. 21. Ibid., p. 95ss. 22. Ibid., p. 101s. 23. Ibid., p. 102. 24. Ibid., p. 103s. 25. Ibid., p. 105s. 26. Ibid., p. 106s. 27. As tarefas nos mitos são normalmente três, mas para Psiqué existe um quarto trabalho adicional: quatro é o símbolo da totalidade. 28. BACHOFEN,JohannJakob. Versuch über die Grabersymbolik der Alten (Ensaio sobre o simbolismo dos túmulos na antiguidade). Stuttgart: Krõner Verlag, 1954. Este ensaio (além de outros, inclusive alguns capítulos de Das Mutterrecht) do mestre suíço foi traduzido para o inglês por Ralph Manheim com o título de Myth, Religion and Mother Right-Selected Writings of]]. Bachof en. Princeton: Princeton University Press, 1973, p. Slss. Quanto a Ocnus, Ocno ou Aucnus, Aucno, como lhe chamou o gramático latino Sérvio Mauro Honorato, é uma personagem do mito grego. Ὄκνος (Óknos), que provém de ὄκνος (óknos), “preguiça, indolência” é a personificação da inércia e do sensualismo. No mito em geral, o velho Ocno é representado trançando uma corda que um burro devora. Em Eros e Psiqué o ancião arrasta no Hades, num vaivém ininterrupto, o burro que transporta achas, que vão caindo, à medida que ele se movimenta. É inútil pegá-las, porque, quando o animal reinicia a caminhada, elas voltam a cair. O castigo de Ocno, portanto, como o das Danaides, que tentam encher um barril sem fundo, é um eterno recomeçar. Em nosso mito, Ocno foi condenado a semelhante suplício por sua indolência e sensualidade, uma vez que tanto o trançar como a corda e o burro, que a devora, são símbolos fálicos, mas inúteis e falhos, no caso em pauta: o burro é estéril, a acha cai e a corda é roida. O paralelo com o mito das Danaides é significativo: estas, que mataram os maridos, despejam água, detentora de grande energia sexual, num barril, num “útero” sem fundo. Bachofen, no ensaio supracitado, ao decodificar Ocno, limitou-se a fazê-lo em relação ao ato de trançar e a outros pormenores, sem tocar no mito de Eros e Psiqué. O estudioso suíço nos apresenta duas personagens diferentes: a primeira é o penitente do Hades e a segunda, certamente por ter, após a reencarnação, se iniciado nos Mistérios Órficos, o Ocno redimido. Isto explica as duas gravuras principais, estampando Ocno no Columbário da Porta Latina, em Roma. 29. Ibid., p. 112ss. 30. PESSOA, Fernando. Poesias. 5. ed. Lisboa: Edições Ática, 1958. Este poema me foi lembrado pelo colega e amigo, Prof. Luís Filipe Ribeiro, a quem agradecemos. APÊNDICE Deuses olímpicos e arquétipos masculinos No Vol. III de nossa Mitologia grega, o último capítulo foi consagrado a “uma heroína forte”, Clitemnestra. A poucas páginas do fecho desse mito indubitavelmente trágico e doloroso, resolvemos fazer uma espécie de apêndice, estampando as características básicas de todas as mulheres, pois os arquétipos do sexo feminino projetam “a existência de cada uma das grandes deusas”. Para individualizá-los melhor, fizemos uma inversão: primeiro levantamos os arquétipos das deusas e, em seguida, fizemos que os mesmos retornassem às suas legítimas detentoras, as mulheres. De outro lado, a fim de que os dois quadros finais constantes do Volume supracitado, em que sintetizamos as atribuições das deusas, sua natureza e respectiva junção arquetípica, ficassem bem claros e inteligíveis, esboçamos, de saída, um pequeno retrato de cada uma das olímpicas. Todo esse trabalho, que, na realidade, se tornou bem árduo, foi inspirado não apenas no estudo das divindades presentes nos Volumes I e II de Mitologia grega, mas sobretudo teve por fonte e ponto de Apolo a obra muito importante de Jean Shinoda Bolen, Goddesses in Everywoman. New York: Harper & Row, 1984. Acontece, todavia, que meus leitores, particularmente “as leitoras”, sempre me cobraram os arquétipos masculinos, que projetaram os deuses prepotentes (illo tempore!) da Hélade. Alguns “repressores” perguntavam com um sorriso, por vezes malicioso: “e nós, os homens, não projetamos nada?” Parecia-me estar na Grécia dos fins do séc. VI e inícios do V a.C., quando os espectadores segundo uma versão corrente, sentindo-se burlados com a ausência do deus do teatro na tragédia, já então apolinizada, reclamaram com insistência: ούδὲν πρὸς τὸν Διόνυσιον (udèn prós tòn Diónyson), “isto”, quer dizer, a tragédia contaminada pela doutrina do morigerado deus de Delfos “nada tem a ver com Dioniso”. Os poetas responderam aos apelos do público, introduzindo o Drama Satírico em que se reviviam as gestas e aventuras grotescas do filho de Zeus e Sêmele, representado pelos eternos companheiros do deus, os Sátiros e o velho beberrão Sileno, como se pode ver no Ciclopede Eurípides, por nós traduzido e comentado. Aguardei pacientemente que as circunstâncias me permitissem rever o Vol. II, como já o fizéramos com o I, e ampliá-lo de uma vez por todas com as tão esperadas projeções masculinas... Esperávamos igualmente o anunciado livro da supracitada psiquiatra norte-americana, que iria complementar os arquétipos femininos. Afinal, em 1989, foi editado Gods in Everyman. San Francisco: Harper & Row, 1989, com as funções arquetípicas de todos os homens... Curioso é o relato de Shinoda Bolen no Prefácio: “Men who have heard me lecture on the goddesses have repeatedly asked, What about us?” Era o “isto nada tem a ver com Dioniso”... “E nós os homens”, diziam os leitores de Shinoda Bolen, “não somos retratados?” Pois bem, para agradar a gregos e troianos, vamos procurar, com base na obra citada e em nossos três Volumes de Mitologia grega, encaixar cada homem em um ou mais deuses da Hélade. Seguiremos, para tanto, método idêntico ao empregado no Volume III: primeiro um breve levantamento dos caracteres dos oito grandes olímpicos e em seguida os quadros em que se resumem suas atribuições, natureza e respectivas funções arquetípicas. Jean Shinoda Bolen divide os oito grandes imortais em dois grupos: os deuses senhoriais, reis de cada um dos três níveis, Zeus, Posídon, Hades e os cinco rebentos de Zeus: Apolo, Ares, Hermes, Hefesto e Dioniso, obedecendo esta ordem a um critério meu, muito pessoal. Zeus é o deus indo-europeu “do céu e da luz”. Foi salvo pela mãe Reia de ser engolido, como seus irmãos, pelo pai Crono. Tendo-se aquele aconselhado com Métis, a Prudência, esta lhe forneceu uma droga maravilhosa, graças à qual o pai se viu coagido a vomitar os filhos que havia devorado. Apoiando-se em Hades e Posídon, seus irmãos, devolvidos à luz por Crono, Zeus, para se apossar do governo do mundo, iniciou um duro combate contra ele e seus tios, os Titãs. A luta gigantesca durou dez anos. Por fim, venceu o futuro grande soberano do Olimpo. Crono e os Titãs foram encarcerados no Tártaro. Para obter tão retumbante vitória, o filho de Reia, seguindo as sugestões de Geia, libertou do Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, que lá haviam sido lançados por Crono. Agradecidos, os Ciclopes deram a Zeus o raio e o trovão; a Hades ou Plutão, um capacete mágico, que tornava invisível a quem o usasse e a Posídon presentearam-no com o tridente, capaz de abalar a terra e o mar. Terminada a refrega, os três grandes imortais receberam por sorteio seus respectivos domínios: Zeus obteve o céu; Posídon, o mar; Hades ou Plutão, o mundo subterrâneo, igualmente denominado Hades, ficando, porém, Zeus com a supremacia no universo. Geia, todavia, irritada com os Olímpicos, por lhe terem aprisionado no Tártaro os Titãs, seus filhos, excitou contra os vencedores primeiro os Gigantes e, em seguida, o monstruoso Tifão. Derrotados os primeiros com o auxílio dos irmãos, Zeus, sozinho, enfrentou corajosamente a Tifão e o sepultou sob o monte Etna. Tendo esmagado o último inimigo, Zeus estava preparado para pôr cobro às violentas sucessões das dinastias divinas e assumir, em definitivo, o governo do universo. O triunfo do filho caçula de Crono patenteia a vitória da ordem sobre o Caos, das divindades da luz sobre as potências ctônias e primordiais. Consolidado o poder, o deus da claridade celebrou seu hieròsgámos, suas núpcias sagradas, com Hera, a protetora, desde então, do casamento e da família. Além dessa união legítima, todavia, o senhor do Olimpo teve inúmeras ligações com imortais e simples mortais. Para não estender em demasia o catálogo de tantos amores extraconjugais, bastaria citar as uniões com as deusas Métis, Têmis, Eurínome, Deméter, Mnemósina, Leto, Maia e com as heroínas Sêmele, Alcmena, Dânae, Europa, Io, Leda et aliis... É necessário, no entanto, levar em conta que Zeus é um deus da fertilidade: é ómbrios e hyétios, quer dizer, é chuvoso. Trata-se de uma divindade dos fenômenos atmosféricos, por isso que do deus do céu depende a fecundidade da terra. De outro lado, é mister não esquecer que a significação profunda de tantas ligações e aventuras amorosas obedece antes do mais a um critério religioso (a fertilização da terra por um deus celeste, pois afinal todas as deusas e mulheres são projeções da Terra-Mãe), bem como a um intento político: ligando-se a deusas e heroínas pré-helênicas, o deus consuma a unificação e o sincretismo que hão de fazer da religião grega um calidoscópio de crenças, cujo chefe e guardião é o próprio Zeus. Observa-se, todavia, em determinadas atitudes do poderoso pai dos deuses e dos homens o que se convencionou chamar de Complexo de Zeus. Trata-se de uma tendência a monopolizar a autoridade e a destruir nos outros toda e qualquer manifestação de autonomia, segundo se patenteia na Ilíada, VIII, 19-27. O temor de que sua autocracia, sua dignidade e seus direitos não fossem devidamente acatados e respeitados tornaram Zeus extremamente sensível e sujeito a explosões coléricas, não raro calculadas. Descobrem-se nesses complexos as raízes de um manifesto sentimento de inferioridade intelectual e moral, com evidente necessidade de uma compensação social, através de exibições de autoritarismo. Posídon, antigo deus-cavalo indo-europeu, que significaria, etimologicamente, “o mestre, o senhor, o esposo da terra”, reinou primeiro sobre as águas do mundo ctônio, mas, após a vitória de Zeus sobre os Titãs e a divisão do governo do mundo entre os três grandes imortais do Olimpo, passou a ser o senhor do mar. Desde a Ilíada, Posídon é apresentado como o rei dos oceanos. Com seu tridente o deus não apenas domina ou encrespa as ondas, provoca borrascas, sacode os rochedos, mas também faz brotar nascentes, o que dá a impressão de que, exceto os rios, ele tem o governo das águas correntes, fontes, nascentes e ribeiros. Embora tenha lutado valentemente contra os Titãs, o soberano dos mares nem sempre foi muito dócil à superioridade e autoridade de seu irmão Zeus. Tal independência explica o ter participado com Hera e Atená de uma conspiração para destronar o senhor do Olimpo, o que para sempre estabeleceu entre os dois irmãos um certo distanciamento e desconfiança mútua. Deus de grande atividade e intuição, era, no entanto, de grande instabilidade emocional. Facilmente irritável, convertia-se em inimigo implacável e cruel de seus ofensores, como o foi de Ulisses, na Odisseia. Litigante e autossuficiente, disputou com os outros imortais a eponímia e a proteção de diversas cidades gregas. Sempre vencido, vingava-se inapelavelmente. Foi senhor de muitos amores, todos fecundos. Mas, enquanto os filhos de Zeus eram heróis benfeitores da humanidade, os de Posídon, em sua maioria, se apresentam como gigantes terríveis, disformes e violentos, como o Ciclope Polifemo, o perverso Crisaor, os Alóadas, Oto e Efialtes, os salteadores Cércion e Cirão, o antropófago Lamo e tantos outros. Hades, cuja etimologia se desconhece, mas que o povo teimava em aproximar de awidés, “invisível, tenebroso”, é irmão de Zeus e Posídon, como já se mencionou. Herdeiro do reino dos mortos, localizado “no seio das trevas brumosas”, o nome Hades, “o invisível” em etimologia popular, segundo se frisou, raramente se proferia: o deus era tão temido, que não o nomeavam por medo de excitar-lhe a cólera. Normalmente era invocado por meio de eufemismos, sendo o mais comum Plutão, em grego Plúton, “o rico”, que, com um sufixo inédito, procede de plûtos, “riqueza, abundância” ou do nome do próprio deus dispensador da “abundância de bens”, Plûtos, Pluto, confundido depois com Hades. Plutão é, pois, “o rico” com referência não apenas a seus hóspedes inumeráveis, mas também às riquezas inexauríveis das entranhas da terra, constituindo--se estas na fonte profunda de toda produção vegetal e mineral. Isto explica o Corno da Abundância com que é frequentemente representado. Pródigo, beneficia a todos, fazendo germinar as sementes que se enterram no seio da terra. Tranquilo em sua majestade de “deus subterrâneo”, permanece confinado no sombrio Hades. Sensível, introvertido, mas violento e inflexível, comanda o mundo dos mortos como um “Zeus subterrâneo”. Não encontrando com quem casar-se, raptou Core-Perséfone, filha de Deméter, a deusa da vegetação. Não teve filhos, porque o mundo das trevas é estéril. Apolo, sem etimologia definida até o momento, é um deus tipicamente oriental, mas que, com o tempo, soube angariar características helênicas muito acentuadas. Filho de Zeus e de Leto, o futuro detentor do Oráculo de Delfos, o “exegeta nacional”, como lhe chamava Platão, é, na realidade, resultante de um vasto sincretismo e de uma bem elaborada depuração mítica. É mister levar em conta uma longa evolução da cultura e do espírito grego e mais particularmente da interpretação dos mitos, para se reconhecer nele, bem mais tarde, um deus solar, um deus da luz, de sorte que seu arco e suas flechas pudessem ser comparados ao sol e a seus raios. No primeiro canto da llíada, apresenta-se como um deus vingador, de flechas mortíferas. Violento e implacável, o Apolo pós-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos de origem nórdica, asiática, egeia e sobretudo helênica e, sob este último aspecto, conseguiu suplantar por completo a Hélio, o “Sol” propriamente dito. Fundindo numa só pessoa e em seu mito influências e funções diversificadas, o senhor de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras heterogênea. São tantos seus atributos, que se tem a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num só deus um vasto complexo de oposições. Tal fato possivelmente explica como o futuro deus da mântica substituiu, por vezes, de maneira brutal, divindades como Píton, que guardava um antigo Oráculo de Geia no monte Parnaso. O novo deus, todavia, iluminado pelo espírito grego, conseguiu, se não superar, ao menos harmonizar tantas polaridades, canalizando-as para um ideal de cultura e sabedoria. Realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava a suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las no sentido de uma espiritualização progressiva, mercê do desenvolvimento da consciência. Seu lema é gnôthi s’autón, “conhece-te a ti mesmo”, freio com que “o exegeta nacional” mantinha, das alturas do Parnaso, a unidade religiosa da Hélade. Alto, bonito, majestoso, altivo como os eupátridas, o deus da música, da poesia e da mântica jamais conseguiu encontrar-se ou encontrar segurança em suas múltiplas relações amorosas, tendo permanecido solteiro, apesar dos inúmeros filhos que deixou. Ares certamente está relacionado com o grego aré, “desgraça, infortúnio”, pois, desde o panteão homérico, apresenta-se como deus da guerra e da violência. Filho de Zeus e Hera, Ares era dotado de coragem cega e brutal; é o espírito da batalha que se rejubila com a carnificina e o sangue. O próprio pai o chama de o mais odioso de todos os imortais que habitam o Olimpo (Il., V, 830ss.). Enquanto Apolo é a reflexão, a prudência, Ares se notabiliza pelos músculos e pela força física. Na Guerra de Troia colocou-se ao lado dos troianos, talvez para agradar Afrodite, sua amante, mas tal opção não importa muito, uma vez que o deus não está preocupado com a causa que defende. Seu prazer, seja de que lado combata, é participar da violência e do sangue. De estatura gigantesca e “de físico perfeito”, como lhe chama o aleijado e complexado Hefesto, o deus da guerra não se casou. Preferiu, já que era apenas “físico”, amar uma pletora de mortais e deusas imortais. Seus filhos, como Deîmos, o Terror, e Phóbos, o Medo, Cicno, Diomedes Trácio, Licáon, Tereu, foram cruéis e sanguinários. A mais séria de suas aventuras amorosas foi a que teve com Afrodite, casada, no momento, com Hefesto. Este surpreendeu o casal de amantes em flagrante adultério e o envolveu numa rede invisível. Uma vez libertado, Ares fugiu para a Trácia, país selvagem, de clima rude, percorrido frequentemente por povos sanguinários. Pública e solenemente desprezado pelos próprios pais, era ridicularizado por seus pares e até pelos poetas, que se regozijavam em chamá-lo, entre outros epítetos deprimentes, de bebedor de sangue, flagelo dos homens, deus das lágrimas. Ares jamais se adaptou ao espírito grego (exceto talvez em Esparta), convertendo-se num antípoda do equilíbrio apolíneo. Hermes, em grego Hermês, que também significa “herma, cipo, pilastra, estela com uma cabeça de Hermes”, não possui etimologia confiável. Filho de Zeus e Maia, a mais jovem das Plêiades, nasceu num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa gruta do monte Cilene. Apesar de enfaixado e colocado no vão de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade e da imortalidade, o menino revelou-se de uma precocidade extraordinária. No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração clara de seu poder de atar e desatar, viajou até a Tessália, onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, guardado por Apolo. De retorno a Cilene, encontrou uma tartaruga à entrada da caverna; matou-a, arrancando-lhe a carapaça e, com as tripas de uma novilha sacrificada, fabricou a primeira lira. Apolo, o deus mântico por excelência, descobriu o paradeiro do larápio, mas, encantado com os sons que o menino arrancava da lira, trocou o rebanho furtado pelo instrumento de som divino. Logo depois, com seu poder inesgotável de criatividade, Hermes inventou a syrinks, “flauta de Pã”. Apolo desejou também o novo instrumento e ofereceu em troca o cajado de ouro com que apascentava o rebanho de Admeto. O filho de Maia aceitou a permuta, mas, habilíssimo negociador, pediu ainda lições de mântica, de adivinhação. Apolo concordou e, desse modo, o caduceu de ouro passou a figurar entre os atributos principais do astuto Hermes, que, de resto, ainda aperfeiçoou a arte divinatória, auxiliando a leitura do futuro por meio de pequenos seixos. Deus agrário, de início, protetor dos pastores nômades e dos rebanhos, os gregos aumentaram-lhe grandemente as funções, e Hermes, por ter furtado o rebanho de Apolo, tornou-se o símbolo de tudo quanto implica astúcia, ardil e embuste: é um autêntico trickster, um trapaceiro, velhaco, amigo e protetor dos comerciantes. Ampliando-lhe o mito, os escritores e poetas lhe dignificaram as prerrogativas. Na Ilíada, XXIV, 334ss., vendo o alquebrado Príamo ser conduzido pelo filho de Maia através do acampamento aqueu, Zeus exclama: Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do homem; ouves a quem estimas. Neste sentido, o núncio dos imortais é o dispensador de bens. Se qualquer oportunidade é uma dádiva do deus, é porque ele gosta de misturar-se aos homens, tornando-se, destarte, juntamente com Dioniso, o menos olímpico dos deuses. Protetor dos viajantes, tornou-se o guardião das estradas. E se não se perdia na noite, era porque, dominando as trevas, conhecia perfeitamente o roteiro. Circulando livremente nos três níveis (olímpico, telúrico e ctônio), era o mensageiro predileto de Zeus e dos soberanos do mundo de baixo, Plutão e Perséfone. Deus, por isso mesmo, psicopompo, isto é, um condutor de almas de um nível para outro. Quem possui tão grande privilégio, não opera tão somente com a astúcia e a inteligência, mas antes com a gnose e a magia. Tal fato elucida ser ele o inventor das práticas mágicas, o conhecedor de plantas apotropaicas, o perito consumado em alquimia e o mais eloquente dos imortais. Com o epíteto de Hermes Trismegisto, “o três vezes máximo”, sobreviveu através do hermetismo e da alquimia, até o séc. XVII. Hermes não se casou, mas teve muitos amores e vários filhos. Hefesto, segundo alguns etimólogos, significaria “o fogo nascido nas águas celestes” (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete). Filho de Zeus e de Hera, consoante Homero (Il., I, 573ss.), ou vindo ao mundo sem união de amor, conforme Hesíodo (Teog., 927), o deus coxo e senhor das forjas teve um nascimento complicado. Hera, continua Hesíodo, por cólera e desafio lançado ao esposo (Teog., 928), gerou sozinha o filho. O ódio da deusa e o desafio ao esposo se deveram ao nascimento de Atená, que saiu da cabeça de Zeus, sem o concurso da esposa. Para o defeito físico do deus das forjas há igualmente duas versões. Hera discutia violentamente com o marido a propósito de Héracles e Hefesto ousou tomar a defesa da mãe. Zeus, enfurecido, agarrou-o por um dos pés e lançou-o do alto do Olimpo. O deus rolou pelo espaço o dia todo e, à tarde, caiu na ilha de Lemnos. Com a queda ficou aleijado e manquitolava de ambas as pernas, o que lhe trouxe muitos problemas de ordem psíquica. Na segunda versão, Hefesto já teria nascido coxo e deformado. Humilhada com a fealdade e defeito físico do filho, Hera o atirou dos píncaros do Olimpo. O infeliz, após rolar pelo vazio um dia inteiro, caiu no mar. Recolhido por Tétis e Eurínome, passou nove anos numa gruta submarina, o que mostra o longo período iniciático do deus coxo. Nas profundezas do mar, Hefesto fez sua longa aprendizagem: trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se “o mais engenhoso de todos os filhos do céu”. Em sua longa carreira de ferreiro e ourives divino, o artista multiplicou suas criações, forjando e confeccionando os mais preciosos, belos e surpreendentes objetos de arte que já se viram. A obra-prima do coxo genial, porém, foi “a criação” da primeira mulher. Por solicitação de Zeus, modelou em argila uma mulher ideal, fascinante, irresistível, Pandora. Não a moldou apenas, foi além do artista: animou-a com um sopro divino, deu-lhe alma, vida. Fisicamente an odd number, um mutilado, só teve por mulheres a grandes belezas. Já na Ilíada, XVIII, 382, está unido a Cáris, a Graça por excelência; Hesíodo, Teog., 945s., lhe atribui Aglaia, a mais jovem das Cárites, mas Zeus, para “compensar tudo”, deu-lhe em casamento a própria beleza, a deusa do amor, Afrodite. Essa ânsia de beleza por parte de Hefesto traduziria, segundo alguns intérpretes, menos o sentimento de um doloroso contraste físico do que a ideia profunda que o artista possuía da suprema beleza. Parece que essa visão preenche o ângulo estético do problema, mas, ao que tudo indica, há uma causa mais recôndita e séria. É bem possível que se trate da busca de uma complementaridade: o coxo e deformado tenta completar-se na beleza de Afrodite e esta, apenas encanto físico, procura a genialidade do artista. Cada um está buscando no outro aquilo que lhe falta, o que, em casamento, pode ser um forte índice de fracasso. A sizígia Hefesto-Afrodite foi um desastre. A deusa do amor encantou-se por Ares. Quando o ourives divino surpreendeu os amantes em flagrante adultério, sua reação, após prender os dois numa rede invisível, é dura e amarga, como atesta a Odisseia, VIII, 308-310: – Afrodite, filha de Zeus, por ser eu coxo, me desonra continuamente e prefere o pernicioso Ares, que é belo e tem membros sãos. Eu, porém, sou aleijado... Aí está o magno problema pessoal de Hefesto, que procura suprir sua deficiência física não apenas com sua extrema habilidade artística, mas também com excessiva serventia, procurando sempre agradar a todos. No primeiro canto da Ilíada é alvo de chacota por parte de seus irmãos imortais. Em meio às gargalhadas de seus pares, o deus claudica atarefado pelos salões do Olimpo, sempre na ânsia de servir. É o mais prestativo e humilde dos deuses gregos e, certamente por isso mesmo, o truão da corte celeste. Dioniso, em grego Diónysos, talvez seja um composto provindo do trácio com o sentido de “o filho do céu”, o que estaria bem de acordo com o nascimento difícil e dramático do deus. A nobre tebana Sêmele, amada por Zeus, ficou grávida de Dioniso. A princesa, por instigação de Hera, que se disfarçara em escrava, pediu ao amante divino que se lhe apresentasse em todo o seu esplendor. O deus relutou, mas como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais contrariar-lhe os desejos, manifestou-se-lhe epifanicamente com seus raios e trovões. O palácio de Sêmele se incendiou e esta morreu carbonizada. Zeus recolheu apressadamente do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação normal. Tal gesto dramático fez de Dioniso um deus, porque se nascesse de Sêmele seria apenas um herói. A coxa de Zeus serviu-lhe de segundo ventre. De qualquer forma, esse deus nascido duas vezes foi uma divindade muito poderosa, talvez porque compartilhas-se do úmido e do ígneo. Com efeito, participante, por natureza, do elemento úmido, o filho de Zeus manteve íntima convivência com o elemento ígneo, como é invocado por Sófocles no Édipo Rei, 209-215. Nascido o deus, começou a peregrinação, para se evitar nova cilada da ciumenta deusa Hera, que jamais deixou em paz as amantes e os filhos adulterinos do esposo. Da corte de Átamas, o pequeno Dioniso, sob a forma de bode, foi levado por Hermes para o monte Nisa, onde os Sátiros e as Ninfas passaram a cuidar do futuro deus do vinho. Pois bem, no monte Nisa, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se entrelaçavam galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o filho de Sêmele. Este, certa vez, colheu alguns dos cachos, espremeu-lhes as frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte. Todos ficaram conhecendo o novo néctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros, Ninfas e o próprio Dioniso começaram a dançar vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo o deus por centro. Embriagados do delírio báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos. Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se a cada ano, em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes se embriagavam e começavam a dançar freneticamente, à luz dos archotes e ao som dos címbalos, até cair desfalecidos. Esse desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os devotos de Baco (epíteto do deus) se embriagarem de êxtase e de entusiasmo. Ékstasis, “êxtase”, é um sair de si interno, uma espécie de transformação, uma catarse; enthusiasmós, “entusiasmo”, é “deus dentro de nós”, é a posse, o mergulho de Dioniso naqueles que se prepararam pelo êxtase para recebê-lo. É a comunhão com a imortalidade. Essa transformação, essa metamórphosis operada nos adoradores do deus levava-os a romper inexoravelmente com todos os interditos de ordem política, social e “religiosa” da pólis. A manía, “mania” a loucura sagrada, a possessão divina e as órguia, a “orgia”, a posse do divino na celebração dos mistérios, a agitação incontrolável, que colocavam o homem em comunhão com o deus, levavam-no à descoberta de uma libertação total, à conquista de uma liberdade que os demais seres humanos não podiam experimentar. Evidentemente essa superação da condição humana e essa liberdade adquiridas, através do êxtase e do entusiasmo, constituíam uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social. Daí a antinomia Dioniso-Apolo: num, o desvincular-se de todos os tabus; no outro, o comedimento, a moderação, a ética rigorosa cifradas no “conhece-te a ti mesmo” e no rigoroso “nada em demasia”. Caracteres tão díspares explicam por que Dioniso levou tantos séculos para entrar na pólis de Atenas. Um dia penetrou, deixou seu culto e viajou... Retornaria no ano seguinte por ocasião das Antestérias, da festa do vinho novo. O deus do êxtase e do entusiasmo não tem propriamente um lar fixo. Está sempre a peregrinar e chega quando não é esperado, normalmente vindo do mar, do elemento úmido. Retorna para cantar, dançar, liberar, “desreprimir”! De qualquer forma, o elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem liberado, arrebatado pelo deus, transportado para seu reino por meio do êxtase e do entusiasmo, é diferente do que era no mundo quotidiano. A metamórphosis, a transformação, foi a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitaram de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração. Dioniso não se casou e nem poderia fazê-lo: havia contraído núpcias indissolúveis com a libertação de todos os mortais. Deixou, no entanto, vários filhos e amou particularmente a Ariadne, a princesa da ilha de Creta, a Afrodite minoica. Eis aí, em traços muito gerais, um esboço e um retrato dos oito grandes deuses olímpicos, projetados pelos homens. Que cada um, agora, procure nos dois quadros que se seguem, elaborados pela Drª Jean Shinoda Bolen (em que introduziremos algumas alterações), o deus ou os deuses que projetou e através dele(s) esboce seu autorretrato interno. Certos homens, bem mais que a mulher, são muito “cautelosos” e temem revelar-se. Arranquem, ao menos uma vez, o prósopon, a persona, “a máscara”, como lhe chamavam respectivamente os gregos e latinos e tenham a coragem de reflectere, “de dobrar-se e olhar-se por dentro”. Lembremo-nos de que a máscara cobre muito pouco e desnuda o restante... I – QUADRO GERAL DOS OITO DEUSES OLÍMPICOS Deuses e suas Natureza atribuições Função arquetípica Outras características importantes Zeus: deus do Deus céu (Olimpo). patrilinear Senhor dos raios e trovões. Domínio da vontade e do arbítrio. Rei, senhor do Legítima esposa: Olimpo, pai do céu. Hera. Inúmeras Executivo. amantes. Conquistador. Hábil em fazer alianças. Galanteador e amante contumaz. Henrique VIII (Inglaterra), Luiz XIV (França), Napoleão Bonaparte, Getúlio Vargas Posídon: deus do Deus mar, das patrilinear tempestades e terremotos. Domínio da emoção e do instinto. Rei, senhor dos mares, pai da terra. Domínio das profundidades, das emoções primordiais. Instintivo, emotivo. Inimigo implacável. Eugene O’Neill, Beethoven, Rubem Braga Hades: deus do Deus mundo patrilinear subterrâneo. Domínio das almas e do inconsciente. Rei recluso. Domínio Legítima esposa: P. Vergílio das imagens, Perséfone. Marão, Dante, fantasias e sombras. C.G. Jung, Machado de Assis Apolo: deus do Filho Determinador Legítima esposa: Anfitrite. Algumas amantes. Vários filhos, em sua maioria violentos ou monstruosos. bem- Solteiro. Alguns representantes típicos Ésquilo, sol, da música, protegido de sucedido de metas a da mântica. Zeus alcançar. Legalista, conservador. Excelente irmão. Fracassos no Píndaro, amor. Vários Juscelino filhos com Kubitschek, amantes. George Bush Ares: deus da Filho guerra. rejeitado Impulsivo, violento, apaixonado, agressivo e sujeito a reações físicas. Amante arrebatado. Solteiro. Amante ardente de Afrodite. Vários filhos, violentos como o pai. Robert Kennedy, John McEnroe, João Saldanha Hermes: deus mensageiro dos imortais, psicopompo, companheiro do homem. Filho protegido e estimado por seus pares Andarilho, grande Solteiro. Alguns capacidade de filhos com comunicação. várias amantes. Excelente guia. Trabalhador, diplomata; sumamente esperto e trapaceiro, donde “sociopata”. Marco Polo, Barão do Rio Branco, Von Ribbentrop, Tancredo Neves Hefesto: deus das forjas. Grande ourives. Dioniso: deus do vinho, do êxtase e do entusiasmo. Filho Artista consumado. rejeitado e Um gênio criativo. ridicularizado Trabalha na solidão. por seus pares Dioniso: deus do Filho vinho, do êxtase protegido e do entusiasmo. com desvelo Dinâmico, libertário, sem repressões, amante entusiasta, místico. Casado com Afrodite e por ela traído. Fracassado no amor. Michelangelo, James Joyce, Aleijadinho, Carlos Drummond de Andrade Solteiro. Algumas amantes. Grande amor: Ariadne. Eurípides, André Gide, Fernando Pessoa, Affonso Romano de Sant’Anna II – TABELA DOS OITO DEUSES SOB ENFOQUE JUNGUIANO Deuses Visão junguiana psicológica Dificuldades psicológicas Pontos de apoio Zeus Normalmente extrovertido. Definitivamente racional. Intuitivo e sensível. Posídon Ora introvertido, extrovertido. Definitivamente sentimental. Autoritário. Cruel, por Hábil no uso do poder. vezes. Inflação. Resoluto. Imaturidade Prolífico. emocional. ora Emotividade Leal. destrutiva. Fácil acesso Instabilidade sentimentos. emocional. Excessiva autoestima. Hades Definitivamente introvertido. Definitivamente sensível. Vive alheio ao tempo. Apolo Normalmente Arrogância. extrovertido. Intuitivo. Distanciamento Reflexivo. Visão do futuro. emocional. Age distância. Ares Definitivamente extrovertido. Definitivamente sentimento e sensação. Vive o presente. Hermes Normalmente extrovertido. Definitivamente intuitivo. Geralmente meditativo. Inadequação social. Mundo de Distorção da realidade. interiores. Depressão, Baixa Desprendido. autoestima. aos imagens Rico. Sabe apreciar a claridade e a forma. Hábil em atingir à metas. Reação emocional. Integração psicossomática. Abusivo. Intempestivo. Expressividade emocional. Bode expiatório. Baixa autoestima. Impulsivo. Visão do presente, passado e futuro. “Adulescens aeternus”. Hefesto Definitivamente Inadequação introvertido. Bufão. Definitivamente autoestima. sentimento e sensação. Busca do presente. Capacidade para compreender significantes e significados. Amigo. Comunicador de ideias. social. Criatividade, Baixa engenhosidade. Habilidade manual. Capacidade para ver e criar o belo. Dioniso Ora extrovertido, ora Distorção na Apreciação da experiência introvertido. autopercepção. Abuso sensorial. Intensidade Definitivamente sensação. da essência. apaixonada. Amor à Vive o presente imediato. natureza. Complementação bibliográfica do Volume I ARAÚJO, Rosangela N. de. Roteiro trágico de um herói. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985. BAILEY, A. Alice. Les travaux d’Hercule. Genève: Éd. Lucis, 1981. BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique de la mort. Paris: Gallimard, 1976. BAUM, Julius et al. The Mysteries. Bollingen Series. Princeton University Press, 1971. BAYARD, Jean-Pierre. Le symbolisme du caducée. Paris: Guy Trédaniel, 1978. ______. La symbolique du monde souterrain. Paris: Payot, 1973. ______. La symbolique du feu. Paris: Payot, 1973. BEAUMONT, Leprince de. The Fairy Tale Book. New York: Simon & Schuster, 1958. BETTELHEIM, Bruno. The Uses of Enchantment. New York: A. 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JUNITO DE SOUZA BRANDÃO, falecido em 15/05/96, aos 71 anos, foi professor titular de Língua e Literatura Grega e de Língua e Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa Úrsula e na Universidade Gama Filho. Era Licenciado em Letras Clássicas, tinha doutorado e livre-docência em Literatura Grega. Ministrava, além de suas aulas normais nas universidades supracitadas, cursos regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica da mesma cidade. Mapa do Mundo Helênico © 1986, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J. Berkenbrock Secretário executivo João Batista Kreuch Diagramação: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Juliana Teresa Hannickel Conversão para eBook: SCALT Soluções Editoriais ISBN 9786557131121 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brandão, Junito de Souza, 1926-1995. Mitologia grega, vol. III / Junito de Souza Brandão. 21. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2015. Bibliografia. 6• reimpressão, 2021. 1. Mitologia grega - História I. Título. 07-6314 Índices para catálogo CDD-292.0809 sistemático: 1. Mitologia grega : História 292.0809 Editado conforme o novo acordo ortográfico. Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda. SUMÁRIO Prefácio Ligeira introdução I. Introdução ao Mito dos Heróis II. Perseu e Medusa III. Héracles e os Doze Trabalhos IV. O Mito de Teseu V. Jasão: o Mito dos Argonautas VI. Belerofonte e a luta contra Quimera VII. Faetonte: uma ascensão perigosa VIII. Os Labdácidas: o Mito de Édipo IX. Ulisses: o Mito do Retorno X. Uma heroína forte: Clitemnestra Complementação bibliográfica dos volumes I e II PREFÁCIO O convite do professor Junito de Souza Brandão, para que eu escrevesse o prefácio deste terceiro e último volume do seu tratado de “Mitologia grega”, é para mim motivo de intensa satisfação. Faltava, em língua portuguesa, uma obra séria e, ao mesmo tempo, didática como esta sobre tema de tão grande relevância. O terceiro volume nos fala dos mitos dos heróis. Aprendemos com a Psicologia Analítica de C.G. Jung, através do conceito de arquétipo, a importância dos mitos para a estruturação e desenvolvimento de nossa consciência individual e coletiva. A presença e a compreensão do dinamismo do herói é de primordial importância na evolução e estruturação de nossa personalidade. Sempre que algo novo e transformador vai ser implantado em nossa consciência pessoal e coletiva algum dinamismo heroico deverá estar ativado. A tarefa de melhor conhecer as possibilidades da consciência individual e coletiva do ser humano é bastante árdua. Neste sentido, a feliz descrição que Junito Brandão faz das múltiplas facetas, bem como dos variados comportamentos dos numerosos heróis da riquíssima mitologia grega, muito pode nos ajudar. O herói é aquele que se exaure na sua missão, vive para a sua causa. Como seres que não são deuses nem humanos, são intermediários entre o mundo da consciência e o inconsciente. São “daímones”, são o traço-de-união entre o mundo dos homens e o mundo divino. Símbolos fortíssimos de transformação são sempre dotados de forte carga emocional, de grande potencial transformador, trazendo vida nova e fertilizando, a partir do inconsciente, a nossa consciência. O conhecimento das características dos heróis, a sua complicada e às vezes dupla origem, seu comportamento, ora encantador, ora agressivo, destrutivo ou desonesto; seus defeitos, sua morte trágica como coroamento de sua vida, seus diferentes destinos após a morte, ora ajudando ora prejudicando os humanos, tudo nos enriquece e amadurece para experimentarmos as infinitas possibilidades das transformações humanas. O herói, como arquétipo, está sempre constelado nas grandes transformações. Assim temos o herói matriarcal, implantando o dinamismo da grande mãe, fertilizando e organizando o mundo em função dos princípios de procriar, nutrir, cuidar e acolher. O herói patriarcal implanta sua lei, a moral espiritual, a palavra, a coerência, o sacrifício do espontâneo para se atingir um objetivo. O herói da alteridade implanta o respeito à individualidade, a busca do outro lado das coisas, da outra face, dos lados negados ou não desenvolvidos na consciência pessoal e coletiva. Finalmente temos o herói da sabedoria, da transcendência, que nos leva a enxergar o sentido da vida e da morte e a nos preparar para regressarmos ao Todo de onde viemos e para onde retornamos. Temos na adolescência uma fase em que por excelência o arquétipo do herói está constelado em nossa personalidade. É a hora da grande batalha para se sair do mundo parental, para a morte simbólica dos pais e do filho, para assim poder surgir o indivíduo, o adulto. Nesta fase, o herói, presente em nossa personalidade, assume as mais variadas características, dependendo de diferentes aspectos bio-psico-sociais e da natureza onde vivemos. Em nível coletivo ele vai assumir características próprias do momento cultural de determinada sociedade. O perigo de se ficar identificado com o arquétipo do herói, como com qualquer outro arquétipo, é ultrapassar o “métron”, a medida humana. Isto fica bem caracterizado nos mitos e expresso na famosa frase do oráculo de Delfos “gnôthi s’autón” – o célebre “conhece-te a ti mesmo” do tempo de Apolo. Somos humanos e não deuses ou semideuses, e por isso devemos ter nos heróis inspiradores e modelos de transformação e não modelos de identificação. Que a rica e agradável leitura dos mitos dos heróis gregos ajude o leitor a se dar conta da pujança e potencialidade de sua personalidade, bem como da riqueza cultural da civilização grega. O professor Junito Brandão dedicou muito de sua vida ao estudo de culturas antigas, principalmente da greco-romana. Nós, que frequentamos seus cursos e temos com ele a satisfação de um convívio pessoal, sabemos do conhecimento e erudição do professor Junito Brandão neste campo. Sabemos também do amor e do carinho que ele dedica ao ensino e do quanto lhe custou a obra realizada. Como ser humano ele também tem aquela faísca divina que o herói Prometeu roubou dos deuses para o homem. Mas a dele é bem grande! Produziu muita luz. Ele é um “herói” pela obra que oferece à cultura brasileira como mestre e escritor, porém sem perder sua condição humana. Nós, analistas, ficamos agradecidos em especial ao professor Junito Brandão por esse trabalho que é um verdadeiro símbolo de transformação e enriquecimento para o povo brasileiro. Tenho a certeza de que o leitor fará muito bom proveito desse ato heroico do grande mestre. Dr. Nairo de Souza Vargas Psiquiatra e analista junguiano (São Paulo) Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. LIGEIRA INTRODUÇÃO Este terceiro volume foi sem dúvida um parto difícil. Tive por momentos a impressão de que a vingativa deusa Hera retivera Ilítia no Olimpo e, como não dispunha de um Hefesto para abrir-me o crânio, os meus heróis provocaram-me cefalalgias homéricas... O primeiro problema a enfrentar foi a carência de uma bibliografia adequada e confiável em nossa língua. Tal fato obrigoume a “importar” nestes últimos três anos uma razoável “biblioteca heroica” que se acha, por sinal, indicada nos dois primeiros volumes e sobretudo nas notas de rodapé e bibliografia deste terceiro. Acontece, no entanto, que exceto as obras formidáveis de Angelo Brelich, Philippe Sellier e, em parte, as de H. Jeanmaire, Joseph Campbell, Marie Delcourt, Martin P. Nilsson, Otto Rank, Robert Graves e K. Kerényi, que assim mesmo focalizam tão somente as funções do herói, as demais falam de tudo um pouco, “inclusive” de alguns aspectos dos paladinos que nasceram para servir... Somando tudo, cheguei à conclusão de que o único recurso era voltar às origens. Com a paciência e persistência das formiguinhas do mito de Eros e Psiqué, debrucei-me resoluta e corajosamente sobre Homero, Hesíodo, Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Platão, Apolônio de Rodes, Apolodoro, Pausânias, Ovídio, Higino, entre outros, e refiz o caminho ao contrário do que planejara. Primeiro, Grécia e Roma, e depois o que os modernos pensaram, repetiram e disseram! Alguns heróis, como Aquiles, Agamêmnon, Menelau e uns quantos que escaparam da “neurose e da banalização” das duras análises de Paul Diel, não foram individualmente retratados, porque já se encontram mais que estudados e analisados nos dois primeiros volumes e, às vezes, até mesmo retomados neste terceiro. Para os comentários “simbólicos” apoiei-me em Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, J.E. Cirlot e Yves Bonnefoy. C. Gustav Jung, Marie-Louise von Franz, Erich Neumann, J. Henderson, Jean Shinoda Bolen e Paul Diel tiveram sempre a palavra final, quando se tratava de interpretação psicológica. O capítulo VIII, que versa sobre Édipo, foi lido pelo psiquiatra e analista junguiano, e mais que isto, meu amigo, Dr. Walter Boechat, cujo nihil obstat me encorajou muito. Com todo esse aglomerado e sincretismo bibliográfico me foi possível, Deo Iuuante, montar este penoso e fatigante terceiro volume sobre o Mito dos Heróis. Estou consciente de que dei apenas a saída. Ainda falta muito o que dizer sobre o herói grego, principalmente porque, até o momento, se desconhece todo o ritual concernente à sua necessária e indispensável iniciação. Teria que agradecer a muitas pessoas amigas que não só me incentivaram, mas ainda pela ajuda que me emprestaram. Dina Maria M.A. Martins Ferreira, Léa Bentes Cardozo e Fred Marcos Tallmann, todos professores, mais uma vez se encarregaram da parte datilográfica. Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo, probo e extremamente culto, reviu este terceiro volume e fez-me preciosas sugestões, particularmente com respeito à parte estilística. Augusto Ângelo Zanatta, manu fraterna, elaborou com sua conhecida proficiência os índices, em cuja tarefa contou com a preciosa colaboração de Cléa Paula Braga e Valderes Barboza. À minha equipe muito especial de revisão, de ternura e de amizade, Bluma Waddington Vilar de Queiroz, Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo, Heraldo José Abreu Leitão, Monika Leibold e Zaida Maldonado, que se debruçou horas a fio sobre as provas paginadas do segundo e deste terceiro volume, para escoimá-los dos erros tipográficos, minha gratidão sine fine. Com esta equipe sui generis temos em mente outros labores mais altos e difíceis. A todos um cordial muito obrigado. Rio de Janeiro, 20 de junho de 1987 Junito Brandão CAPÍTULO I Introdução ao Mito dos Heróis 1 A etimologia, a origem e a estrutura ontológica de herói ainda não estão muito claras. Talvez se possa falar com certa desenvoltura acerca de “suas funções” e, assim mesmo, tomando-se como ponto de partida sobretudo a Grécia. É claro que todas as culturas primitivas e modernas tiveram e têm seus heróis, mas foi particularmente na Hélade que a “estrutura”, as funções e o prestígio religioso do herói ficaram bem definidos e, como acentua Mircea Eliade, “apenas na Grécia os heróis desfrutaram um prestígio religioso considerável, alimentaram a imaginação e a reflexão, suscitaram a criatividade literária e artística”1. Etimologicamente, ἥρως (héros) talvez se pudesse aproximar do indo-europeu serva, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, “ele guarda” e o latim seruare, “conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil”, donde herói seria o “guardião, o defensor, o que nasceu para servir”. Não importa muito que Píndaro2, em suas Olímpicas, 2,2, tenha distinguido três categorias de seres: deuses, heróis e homens e que Platão, no Crátilo, 397ss tenha acrescentado os demônios como uma quarta espécie na galeria dos protetores e intermediários entre os mortais e os imortais. A nós interessa, nesta Introdução, discutir-lhe a possível origem, as características e particularmente as funções e os “serviços” que sempre prestaram nesta vida e post mortem. Em sua obra clássica, E. Rohde3 defende com ênfase a tese de que os heróis estariam estreitamente ligados aos deuses do mundo subterrâneo, às divindades ctônias, mas se originariam de homens célebres, que, após a morte, desceram ao Hades e aí habitam em companhia dos deuses de baixo, dos quais muito se aproximariam pelo poder e pela influência que exercem sobre os homens. H. Usener4 advoga, em obra publicada logo após a de Rohde, uma teoria diametralmente oposta: os heróis teriam origem divina. Como os daímones, os “demônios”, aqueles proviriam de divindades “decaídas”, “momentâneas” ou “privativas”, o que Usener denominou Sondergötter (deuses particulares), quer dizer, divindades “especializadas em funções específicas”. Um pouco mais tarde, surgiu a obra de L.R. Farnell5, que procurou conciliar a teoria evemerista de Rohde com a mítica de Usener: os heróis seriam tanto seres humanos quanto divindades particulares, ou seja, uma verdadeira mistura ou fusão de tipos, uma vez que, para Farnell, os heróis não possuem a mesma origem, apresentando-se escalonados em sete categorias. Desse modo, teríamos desde heróis de origem divina até os simplesmente criados por eruditos e poetas... A teoria conciliatória de Farnell fez e ainda faz sucesso, pois até mesmo o seguríssimo Nilsson a abraçou, ao afirmar que os heróis constituíam um grupo muito heterogêneo (“the heroes were a very mixed company”)6. Neste grupo promíscuo o erudito sueco incluiu as divindades locais decadentes, os ancestrais das grandes famílias, personagens históricas e algumas outras categorias. A polêmica em torno da origem divina ou humana do herói se apoiava particularmente nos dois tipos diferentes de sacrifícios, que eram oferecidos aos deuses e heróis, e no rito com que eram executados, consoante a documentação até então existente. Aos deuses se sacrificava pela manhã, aos heróis, à tarde; aos deuses se ofereciam vítimas brancas, aos heróis, pretas; aos deuses o sacrifício se fazia sobre um βωμός (bomós), um altar colocado sobre um embasamento; aos heróis, sobre uma simples ἐσχάρα (eskhára), uma lareira ou braseiro, instalado no chão; as vítimas oferecidas aos deuses se degolavam com o pescoço voltado para o alto, as dedicadas aos heróis com o pescoço inclinado para baixo, para o centro da Terra, para que o sangue caísse diretamente num βόθρος (bóthros), num fosso sacrifical. Mas, como diferença fundamental se argumentava que o sacrifício aos deuses era sob forma de θυσία (thysía), isto é, uma oblação em que apenas uma parte da vítima era ofertada aos imortais, enquanto a parte restante – a melhor delas – era consumida pelos sacrificantes, graças a Prometeu. Aos heróis se sacrificava mediante o ἐναγισμός (enaguismós), isto é, sob forma de cerimônia fúnebre, que comportava o όλόκαουτος (holókautos), o holocausto, isto é, o consumo total da vítima pelas chamas. É que, tendo-se tornado “sagrada”, porque ofertada aos mortos ou aos semideuses, como transparece na própria etimologia do ἐναγίζειν (enaguídzein), “sacrificar aos mortos ou aos semideuses infernais”, o consumo da carne da vítima era vetado aos mortais. No fundo, como se pensava, tratava-se de um problema catártico: seria “impuro” tudo quanto se oferecia ao mundo dos mortos. Embora estas afirmações minuciosas a respeito dos ritos e sacrifícios aos deuses e heróis – o que postularia a origem humana destes últimos – provenham de um período tardio da civilização grega, não há dúvida de que na época clássica a diferença entre sacrificar a um deus, ὡς θεῷ θύειν (hos theôi th×ein) e sacrificar a um herói, ὡς ἥρῳ ἐναγίζειν (hos héroi enaguídzein), era corrente e habitual, como aparece, entre outros, em Heródoto, 2,44. Bastaria, no entanto, essa diferença de ritos e sacrifícios para confirmar a origem evemerista dos heróis? De outro lado, tais modalidades ritualísticas seriam absolutas na religião grega? Em artigo substancioso, A.D. Nock7propriamente anulou as teorias de Rohde, Usener e Farnell, demonstrando, com documentação bem mais recente, que fundamentar a origem dos heróis na diferença sacrifical da θυσία (thysía), na consumação de uma parte da vítima pelos sacrificantes e no όλόκαουτος (holókautos), no holocausto, na “queima” total das carnes da mesma, não tinha mais sentido e não correspondia à verdade dos fatos. De saída, Nock não vê dado algum concreto que prove que, através da thysía, se estabelecesse a comunhão entre o deus e os sacrificantes, por meio da consumação “dividida” das carnes da vítima (p. 148ss), nem tampouco, através do holocausto, se pode comprovar, segundo o autor, que a abstenção das carnes da vítima, por parte dos sacrificantes, se deva ao fato de a mesma ser consagrada a um herói, a um morto, e, portanto, impuro (p. 156). Em segundo lugar, Nock demonstra que, independentemente de qualquer teoria, as diferenças mesmas entre ritual divino e heroico são bem menos nítidas do que realmente se pensava: em poucas páginas (p. 144ss) o sábio americano reuniu um número respeitável de cultos heroicos em que as carnes das vítimas eram consumidas pelos sacrificantes. Aliás, a respeito do horário dos sacrifícios heroicos, o próprio Nilsson já havia observado que, em numerosos casos, os mesmos se realizavam em pleno sol da manhã... Se o grande número de exemplos catalogados por Nock não permite argumentar-se com a exceção, a antiguidade dos documentos igualmente não autoriza que se vejam neles deformações ou produtos do relaxamento de uma organização originária. Com isso, o autor chegou a conclusões inteiramente diferentes das estampadas nas obras de Rohde, Hermann Usener e Farnell. Não se trata aqui, como deixa claro Brelich, de casos em que as formas do culto heroico se tenham confundido com as do culto divino, como processos secundários de uma decadência, mas, ao contrário, da diferença entre os dois tipos rituais, diferença essa que poderia ser fruto de um processo de “legalização”, de sistematização, que se observa em muitos outros setores da religião grega”8. Em sua obra clássica sobre os heróis, Gli eroi greci, já por nós citada mais de uma vez, Angelo Brelich, após observar que, numa religião tão plástica como a grega, embora exista uma diferença muito grande entre um herói e outro, o que se deve ao “princípio informador de uma religião politeísta que tende a diferenciar e a fixar em formas plásticas suas múltiplas experiências e exigências”, chega à conclusão de que é possível, mutatis mutandis, traçar um retrato do herói grego. Para o pesquisador italiano assim poderia ser descrita a estrutura morfológica dos heróis: “virtualmente, todo herói é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; oherói é, além do mais, ancestral de grupos consanguíneos e representante prototípico de certas atividades humanas fundamentais e primordiais. Todas essas características demonstram sua natureza sobre-humana, enquanto, de outro lado, a personagem pode aparecer como um ser monstruoso, como gigante ou anão, teriomorfo ou andrógino, fálico, sexualmente anormal ou impotente, voltado para a violência sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o sacrilégio e para a transgressão dos limites e medidas que os deuses não permitem sejam ultrapassados pelos mortais. E, embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início, é ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico”9. Mircea Eliade remata o magnífico retrato do herói, traçado por Brelich, com as seguintes palavras: “Utilizando uma fórmula sumária, poderíamos dizer que os heróis gregos compartilham uma modalidade existencial sui generis (sobre-humana, mas não divina) e atuam numa época primordial, precisamente aquela que acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. A sua atividade se desenrola depois do aparecimento dos homens, mas num período dos ‘começos’, quando as estruturas não estavam definitivamente fixadas e as normas ainda não tinham sido suficientemente estabelecidas. O seu próprio modo de ser revela o caráter inacabado e contraditório do tempo das ‘origens’ [...]”10. Como se pode observar, tanto Angelo Brelich quanto Mircea Eliade traçam apenas a “estrutura morfológica” do herói, mas evitam opinar claramente sobre a origem do mesmo. E, como estávamos falando exatamente acerca de sua gênese, é necessário, para concluir, voltar a ela. Se talvez não se deva mais, após os argumentos de Nock, defender a origem humana ou divina dos heróis, e nem tampouco sua procedência mista, preconizada por Farnell, como foram “fabricados” esses seres maravilhosos, que encantam e recreiam a nossa imaginação? Não seria mais simples dizer que o herói, seja ele de procedência mítica ou histórica, seja ele de ontem ou de hoje, é simplesmente um arquétipo, que “nasceu” para suprir muitas de nossas deficiências psíquicas? De outra maneira, como se poderia explicar a similitude estrutural de heróis de tantas culturas primitivas que, comprovadamente, nenhum contato mútuo e direto mantiveram entre si? Da Babilônia às tribos africanas; dos índios norteamericanos aos gregos; dos gauleses aos incas peruanos, todos os heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais, têm um mesmo perfil e se encaixam num modelo exemplar. Otto Rank tentou mesmo formular um esquema do que ele denominou a lenda-padrão do herói11. Vamos imitá-lo ou até mesmo transcrevê-lo, fazendo-lhe, no entanto, algumas achegas ou podando-o naquilo que nos parece supérfluo. Consoante Rank, o herói descende de ancestrais famosos ou de pais da mais alta nobreza: habitualmente é filho de um rei. Seu nascimento é precedido por muitas dificuldades, tais como a continência ou a esterilidade prolongada, o coito secreto dos pais, devido à proibição ou ameaça de um oráculo, ou ainda por outros obstáculos, como o castigo que pesa sobre a família. Durante a gravidez ou mesmo anterior à mesma, surge uma profecia, sob forma de sonho ou de oráculo, que adverte acerca do perigo do nascimento da criança, uma vez que esta põe em perigo a vida do pai ou de seu representante. Via de regra, o menino é exposto num monte ou num “recipiente”, cesto, pote, urna, barco, é abandonado nas águas, as mais das vezes, do mar. É recolhido e salvo por pessoas humildes: pastor, pescador, ou por animais, e é amamentado por uma fêmea de algum animal, ursa, loba, cabra... ou ainda por uma mulher de condição modesta. Transcorrida a infância, durante a qual o adolescente, não raro, dá mostras de sua condição e natureza superiores, o “futuro herói” acaba descobrindo, e aqui as circunstâncias variam muito, sua origem nobre. Retorna à sua tribo ou a seu reino, após façanhas memoráveis, vinga-se do pai, do tio ou do avô, casa-se com uma princesa e consegue o reconhecimento de seus méritos, alcançando, finalmente, o posto e as honras a que tem direito. Mas, após tantas lutas, o fim do herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada post mortem. Diga-se, de caminho, que, para Rank, o mito do herói é uma projeção da “novela familiar”: a neurose infantil “estancada”, a luta do menino contra o pai e suas tentativas de libertar-se de seus genitores: “Na medida em que dispomos dos elementos mencionados acima, passa a ter fundamento nossa analogia do ‘eu’ do menino com o herói do mito, em virtude das tendências coincidentes entre as novelas familiares e os mitos heroicos, uma vez que o mito revela, ao longo de todo o seu desenvolvimento, um esforço por libertar-se dos pais, e esse mesmo desejo se depreende das fantasias individuais do menino, quando busca sua emancipação. Nesse sentido o ‘eu’ do menino se comporta como o herói do mito e, na realidade, o herói deve ser interpretado sempre como um ‘eu’ coletivo, dotado de todas as excelências”. E, mais adiante, remata o estudioso austríaco: “Na realidade, os mitos dos heróis equivalem, em função de muitas de suas características essenciais, às ideias delirantes de alguns psicóticos, que sofrem de delírios de perseguição e grandeza, isto é, os paranoicos. Seu sistema delirante está construído de forma muito semelhante ao mito do herói, revelando assim os mesmos temas psicológicos que a novela familiar do neurótico”12. Em todo caso, as portas da pesquisa e das conclusões continuam abertas, até mesmo para os heróis... 2 Expostas essas ligeiras observações sobre a origem do herói, passaremos agora a uma síntese acerca de suas atividades e características fundamentais, em sua maioria, aliás, já estampadas nos comentários supracitados de Brelich e complementadas por Eliade. Nosso objetivo é dar-lhes uma forma didática, fazer-lhes alguns acréscimos e acompanhar o itinerário, do berço ao túmulo, desse paladino, que nasceu “para servir”. Via de regra, os heróis têm um nascimento complicado, como Perseu, Teseu, Héracles e muitíssimos outros. Descendem de um deus com uma simples mortal: Minos, Sarpédon e Radamanto, filhos de Zeus e Europa; Castor, Pólux, Clitemnestra e Helena, do mesmo Zeus e Leda; Asclépio, de Apolo e Corônis; ou de uma deusa com um mortal: Eneias e Aquiles, frutos respectivamente dos amores de Afrodite e Anquises e de Tétis e Peleu ou, por vezes, lhe é atribuída uma “dupla paternidade”: Teseu é filho de Posídon e “Egeu”; Héracles, de Zeus e “Anfitrião”. Neste último caso, como acentua Jung, falando sobre os arquétipos, “toda criança vê nos pais uma ‘parelha divina’, cuja ‘mitologização’ continua, as mais das vezes, até a idade adulta e somente é abandonada após uma ingente resistência. Pois bem, o medo de perder, no curso da vida, essa conexão com a fase prévia, instintiva e arquetípica da consciência, é geral e foi exatamente esse temor que provocou, desde muito, que se agregassem aos pais carnais do recém-nascido dois padrinhos, um godfather e uma godmother, como se chamam em inglês, ou um Götti e uma Gotte, como se diz em alemão da Suíça, os quais devem cuidar do bem-estar espiritual do afilhado. Tais padrinhos representam a ‘parelha’ de deuses, que aparece no nascimento da criança e patenteia o tema do duplo nascimento”13. Os heróis podem ter ainda um nascimento irregular, em consequência de um incesto: Egisto é fruto do incesto de Tieste com sua filha Pelopia, e a “ninhada tebana”, Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene, provém de Édipo com sua própria mãe Jocasta...; acrescente-se, ademais, que muitos heróis, além do nascimento difícil ou irregular, são expostos, por força normalmente de um oráculo, que prevê a ruína do rei, da cidade, ou por outros motivos, caso o recém-nascido permaneça na corte ou na pólis. É assim que Páris, Édipo e Egisto são expostos num monte. O primeiro o foi porque sua sobrevivência, como sonhara sua mãe Hécuba, ameaçava Troia, conforme se comentou no Vol. I, p. 107; Édipo, porque, segundo o oráculo, estava condenado a cometer parricídio e casar-se com a própria mãe; e Egisto, porque Pelopia fora violada, como vimos no Vol. I, p. 89; outros são expostos nas águas do mar, como Perseu, que punha em perigo a vida de seu avô, o rei Acrísio, conforme se verá no capítulo seguinte; Reso, Reso, 926s; e, segundo algumas versões, os gêmeos Pélias e Neleu, filhos de Posídon e Tiro, além de Tenes e sua irmã Hemítea... Em geral, o exposto é recolhido por uma pessoa humilde e criado numa corte: Édipo, no palácio de Pólibo e Mérope, em Corinto; Perseu, no de Polidectes, na ilha de Sérifo. Alguns expostos em montes, como Egisto e Páris, são alimentados por um animal: o troiano Páris o foi por uma ursa; Egisto, por uma cabra, segundo se mostrou no Vol. I, p. 89, onde, por sinal, se comentou igualmente o simbolismo da alimentação de um herói ou futuro rei por um animal. De qualquer forma, exatamente por ser um herói, a criança já vem ao mundo com duas “virtudes” inerentes à sua condição e natureza: a τιμή (timé), a “honorabilidade pessoal”, e a ἀρετή (areté), a “excelência”, a superioridade em relação aos outros mortais, segundo se viu no Vol. I, p. 151, o que o predispõe a gestas gloriosas, desde a mais tenra infância ou tão logo atinja a puberdade: Héracles, contase, aos oito meses, estrangulou duas serpentes enviadas por Hera contra ele e seu irmão Íficles; Teseu, aos dezesseis anos, ergueu um enorme rochedo sob o qual seu pai Egeu havia escondido a espada e as sandálias; o jovem Artur, e somente ele, foi capaz de arrancar a espada mágica de uma pedra... 3 Dado importante, para que o herói inicie seu itinerário de conquistas e vitórias, é a “educação” que o mesmo recebe, o que significa que o futuro benfeitor da humanidade vai desprender-se das garras paternas e ausentar-se do lar, por um período mais ou menos longo, em busca de sua “formação iniciática”. A partida, a educação e, posteriormente, o regresso representam, consoante Campbell14, o percurso comum da aventura mitológica do herói, sintetizada na fórmula dos ritos de iniciação separação-iniciaçãoretorno, “que poderia receber o nome de unidade nuclear do monomito”15, isto é, partes integrantes e inseparáveis de um mesmo e único mitologema. Separando-se dos seus e, após longos ritos iniciáticos, o herói inicia suas aventuras, a partir de proezas comuns num mundo de todos os dias, até chegar a uma região de prodígios sobrenaturais, onde se defronta com forças fabulosas e acaba por conseguir um triunfo decisivo. Ao regressar de suas misteriosas façanhas, ao completar sua aventura circular, o herói acumulou energias suficientes para ajudar e outorgar dádivas inesquecíveis a seus irmãos. Jasão, tão logo abandonou a corte de Iolco, foi entregue ao grande educador de heróis, o Centauro Quirão, de que já se falou no Vol. II, p. 93. Aos vinte anos organizou a célebre Expedição dos Argonautas. Navegou com seus cinquenta e cinco heróis através das “rochas azuis”, as Ciâneas, também denominadas Simplégades, “as rochas que se fecham”, chegou à Cólquida, venceu as “provas” impostas por Eetes, enganou o dragão que guardava o Velocino de Ouro e regressou com o mesmo, para disputar com o usurpador Pélias o trono que a ele Jasão cabia de direito e de fato. Prometeu, o filantropo, vencidas tantas fadigas e renúncias, escalou o Olimpo, roubou o fogo celeste e recuperou a humanidade. Eneias, após tantos sofrimentos “em terra e no mar”, acompanhado da Sibila de Cumas, desceu aos Infernos e, após cruzar os mortais rios do Hades e passar pelo monstruoso Cérbero, pôde afinal dialogar com o eídolon, a umbra, a sombra de seu pai Anquises. Todas as coisas lhe foram reveladas: o destino das almas, o destino de Roma, que ele iria fundar, e sobretudo como suportar tantas aflições e sofrimentos que ainda teria pela frente. Eneias, o “piedoso Eneias”, voltou ao mundo da luz através da porta de marfim, para realizar todas as tarefas que as Parcas lhe impuseram16. Uma representação majestosa das lutas por que passa o herói no esquema separação-iniciação-retorno é a lenda das Grandes Batalhas que travou o príncipe Gautama Sakyamuni, o Buddha, desde a renúncia às comodidades e prazeres da corte paterna até a difícil “iluminação perfeita”, estado de liberação, que lhe possibilitou sair de sob a “quarta árvore” e comunicar a todos o conhecimento do caminho17. Fato de certa forma semelhante é registrado no Antigo Testamento, Ex 19–20, quando Moisés, completados três meses da partida do povo de Israel do Egito e sua penosa caminhada pelo deserto, chegou ao Monte Sinai e, sozinho, o escalou para ir falar a Javé, que lhe entregou as Tábuas da Lei e ordenou-lhe que voltasse com elas para Israel, o povo do Senhor. Como é dado observar, do Oriente ao Ocidente, o mito do herói segue normalmente o modelo da unidade nuclear exposto acima: a separação do mundo, a penetração em alguma fonte de poder e um regresso à vida, a fim de que todos possam usufruir das energias e dos benefícios outorgados pelas façanhas do herói. Este, no entanto, apesar de haver nascido com uma timé e uma areté especiais, terá que preparar-se para a execução de suas magnas tarefas. É precisamente a esse preparo que se dá o nome de educação do herói. Consoante Júlio Pólux, gramático e retor alexandrino do séc. II d.C., em seu dicionário Ονομαστικόν (Onomastikón), Onomástico, II, 4, Hipócrates dividia a vida humana em oito períodos de sete anos. A educação clássica e sobretudo a da época helenística, a partir do séc. IV a.C., ocupava as três primeiras etapas. A primeira fase, denominada παιδίον (paidíon), “idade infantil”, ia de 1 a 7 anos, e a “educação” era ministrada em casa; a segunda, παῖς (paîs), o “menino”, de 7 a 14 anos, era a idade em que a criança, quer dizer, o menino, “o sexo masculino”, escapava à vigilância materna e iniciava seu período escolar propriamente dito. A etapa seguinte, chamada μειράκιον (meirákion), “adolescente”, de 14 a 21 anos, o período da efebia, era coroado, de certa forma, por um estágio de formação cívica e militar. Quanto à mulher, em tese, ela percorria, ao menos a partir da época helenística, as mesmas etapas educativas que os jovens, podendo até mesmo, como em Esparta, participar de exercícios físicos na Palestra e no Ginásio, mas o “ideal de mulher” não é o da que estuda e “participa”, mas aquele traçado, com gulosa satisfação machista, por Iscômaco, no Econômico, 7, de Xenofonte, ao descrever para Sócrates o que era, por ocasião de seu casamento, a esposa “por ele escolhida”: “ela estava com quinze anos, quando entrou em minha casa. Até então fora submetida a uma extrema vigilância, a fim de que nada visse, nada ouvisse e nada perguntasse. Que poderia eu desejar mais? Tenho nela uma mulher que aprendeu não só a fiar a lã, para fazer um manto, mas ainda como distribuir tarefas às escravas fiandeiras. Quanto à sobriedade, ela foi muito bem instruída. Excelente, não?” Eis aí uma síntese da educação ateniense da época da decadência, porque a espartana sempre foi bem diversa. Este quadro, em que se estampa resumidamente o essencial da educação ministrada aos jovens de Atenas, é necessário para que se compreenda a educação mítica dos heróis, que, em linhas gerais, é uma transposição daquela. É claro que se omitiu, até o momento, a formação religiosa, sobretudo o catálogo de ritos de passagem, os imprescindíveis ritos iniciáticos, mas, no decorrer da exposição sobre a educação dos heróis, faremos alguns comentários a esse respeito. Vários foram os mestres dos heróis, como Lino, Eumolpo, Fênix, Forbas, Cônidas..., mas o educador-modelo foi o pacífico Quirão, o mais justo dos Centauros, na expressão de Homero, Ilíada, XI, 832. Muitos heróis passaram por suas mãos sábias, na célebre gruta em que residia no monte Pélion: Peleu, Aquiles, Asclépio, Jasão, Actéon, Nestor, Céfalo... lista que é enriquecida por Xenofonte, em sua obra Cinegética, 1,21 (Tratado sobre a Caça) com mais catorze nomes! Quirão era antes do mais um médico famoso, donde sua arte primeira era a Iátrica, mas seu saber enciclopédico, como aparece nos monumentos figurados e literários, fazia do educador de Aquiles um mestre na arte das disputas atléticas, Agonística, e talvez praticasse e ensinasse ainda a arte divinatória, Mântica. Não para aí, todavia, a versatilidade de Quirão: ministrava igualmente a seus discípulos conhecimentos relativos à caça, Cinegética; à equitação, Hípica, bem como lhes ensinava a tanger a lira e o arremesso do dardo... Mais que tudo, no entanto, o fato de ser Quirão um médico ferido, um xamã, e residir numa gruta evocam, de pronto, sua função mais nobre e indispensável aos jovens “históricos”, mas sobretudo aos heróis míticos, a saber, a ação de fazê-los passar por ritos iniciáticos, que outorgavam aos primeiros o direito à participação na vida política, social e religiosa da pólis e aos segundos a imprescindível indumentária espiritual, para que pudessem enfrentar a todos e quaisquer monstros... Diga-se, de passagem, que os Efebos eram iniciados por mestres igualmente históricos, que, em Atenas, se chamavam Σοφρονισταί (Sophronistaí), os Sofronistas, isto é, os preceptores, os monitores e, em Esparta, Εἰρένες (Eirénes), os Írenos. Infelizmente se conhece muito pouco acerca desses ritos de passagem, tendo chegado até nós apenas algumas informações exteriores, cuja interpretação ainda é, por vezes, muito discutida. O restante, por ser um ritual secreto, se perdeu nas montanhas, nas grutas, nas cavernas e nos templos, onde se celebravam os mistérios. Do que se tem notícia, ao menos sumária, pode-se destacar o corte do cabelo, a mudança de nome, o mergulho ritual no mar , a passagem pela água e pelo fogo, a penetração num Labirinto , a catábase ao Hades , o androginismo, o travestismo, a hierogamia. A esse respeito, com o respaldo da obra já citada de Angelo Brelich, Mircea Eliade faz as seguintes ponderações: “Certos heróis (Aquiles, Teseu etc.) são associados aos ritos de iniciação dos adolescentes, e o culto heroico é frequentemente executado pelos efebos. Muitos episódios da saga de Teseu são, na verdade, provas iniciatórias: o seu mergulho ritual no mar, prova equivalente a uma viagem ao outro mundo, e precisamente no palácio submarino das nereidas, fadas kourotróphoi (quer dizer, em grego, ‘nutridoras dos jovens’) por excelência; a penetração de Teseu no labirinto e seu combate com o monstro (Minotauro), tema exemplar das iniciações heroicas; e, finalmente, o rapto de Ariadne, uma das múltiplas epifanias de Afrodite, no qual Teseu conclui a sua iniciação por meio de uma hierogamia. Segundo H. Jeanmaire, as cerimônias que constituíam as Thésia18ou Theseîa seriam provenientes dos rituais arcaicos que, numa época anterior, marcavam o retorno dos adolescentes à cidade, depois de sua permanência iniciatória na savana. Da mesma forma, certos momentos da lenda de Aquiles podem ser interpretados como provas iniciatórias: ele foi criado pelos Centauros, isto é, foi iniciado na savana por Mestres mascarados ou que se manifestavam sob aspectos animalescos; suportou a passagem pelo fogo e pela água, provas clássicas de iniciação, e chegou inclusive a viver entre as moças, vestido como uma delas, seguindo um costume específico de certas iniciações arcaicas de puberdade. Os heróis são igualmente associados aos Mistérios: Triptólemo tem um santuário, e Eumolpo o seu túmulo, em Elêusis (Pausânias, 1,38,6; 1,38,2). Além disso, o culto dos heróis é solidário dos oráculos, principalmente dos ritos de incubação que visam à cura (Calcas, Anfiarau, Mopso etc.); alguns heróis estão, portanto, relacionados com a medicina (em primeiro lugar Asclépio)”19. 4 Passaremos em revista, embora resumidamente, alguns dos tópicos relacionados acima com os ritos iniciáticos, particularmente os ritos de passagem em conexão com a efebia, o corte do cabelo, a mudança de nome, o travestimento e a hierogamia, porque do fogo já se falou no Vol. I, p. 292; do Labirinto já se deu uma ideia no Vol. I, p. 65, e acerca do mesmo se voltará a falar no capítulo sobre Teseu; a catábase ao Hades, já diversas vezes mencionada, será retomada no mito de Héracles. Em seguida, trataremos de algumas características físicas dos heróis e do vínculo dos mesmos com a Agonística, a Mântica, a Iátrica e com outras funções de que se ocupavam nesta vida e post mortem os que “nasceram para servir”. Embora os Mistérios houvessem absorvido o grosso da herança das iniciações tribais e, na época clássica, a organização social e religiosa fosse bem diferente daquelas, a importância da passagem para a idade adulta continuou a ser uma exigência institucional e ritual, que possuía um evidente aspecto religioso, o qual se manifestava ainda num forte nexo com o culto dos heróis. Os Efebos atenienses prestavam seu juramento no santuário de Agrauro ou Agraulo, filha do herói Cécrops. Era por meio de uma representação de Efebos, que Atenas participava das festas Eantias, na ilha de Salamina, em homenagem ao grande herói local Ájax. O documento mais antigo de uma participação ativa dos Efebos – ou, mais precisamente, dos κοῦρο (kûroi), “jovens”, como antigamente se designavam os membros dessa classe de idade – num culto heroico está na Ilíada, II, 550ss, em que eles oferecem um sacrifício ao herói Erecteu. Em Esparta, o sistema complexo de classes de idade e da passagem relativa de uma para outra estava concentrado no culto de Ártemis Órtia, mas, conforme Pausânias, 3,14,16, no ritual agonístico entre os Σφαιρεῖς (Sphaireîs), nome dado aos Efebos em Esparta, celebravase um sacrifício diante de uma antiga estátua de Héracles. De qualquer forma, a classe de idade, mormente em Atenas, não interessava apenas ao Estado, mas sobretudo à unidade tribal, o que explica a importância ritual atribuída à festa das Apatúrias, de que, lamentavelmente, se conhece muito pouco. Aliás, a respeito dessa festa ateniense já fizemos um ligeiro comentário no Vol. II, p. 26. Vamos aqui tão somente reexplicá-la com um ou outro pormenor a mais. Sabe-se, com certeza, que, à época histórica, a festa era estatal, pois que, de resto, era celebrada em honra de Zeùs Phrátrios e Athenà Phratría, uma festa das Fratrias20, por conseguinte. As Apatúrias, celebradas em outubro, ao que parece, duravam três dias: nos dois primeiros faziam-se sacrifícios e banquetes e no terceiro, denominado Κουρεῶτις (kureôtis), os pais de família apresentavam os filhos legítimos (nascidos durante o ano ou já com três ou quatro anos de idade?) para que fossem regularmente inscritos em sua respectiva Fratria. Pois bem, era exatamente, durante os festejos do terceiro dia, denominado Κουρεῶτις (kureôtis), que se procedia ao corte ritual do cabelo dos Efebos, que comemoravam sua entrada na Efebia, levando a Héracles o oinistérion, quer dizer, um grande vaso cheio de vinho e, após a libação, ofereciam-no a beber aos presentes. A palavra Κουρεῶτις (kureôtis) não possui, até o momento, uma etimologia segura. Talvez esteja ligada à Κουρά (kurá), “ação de cortar”, e ao verbo Κείρειν (keírein), “cortar”, uma vez que o rito “epônimo” de kureôtis é o corte do cabelo à escovinha, tanto para os Efebos como para os heróis, o que demonstra tratar-se de um rito iniciático. É bem verdade que o corte do cabelo ou de apenas uma mecha aparece como forma sacrifical e constitui um rito de luto, como se pode observar nas Coéforas, 6s, de Ésquilo e se repete na Electra, 51ss de Sófocles, mas, de outro lado, se encontra com muita frequência também o corte do cabelo em conexões diversas com o fenômeno religioso de mudança de idade ou até mesmo de “estado”. Se, em Atenas, o ritual se fazia no início da Efebia, em Esparta o rito era bem mais rigoroso: os jovens cortavam-no aos doze anos, como informam Xenofonte, República dos Lacedemônios, 11,3 e Plutarco, Licurgo, 16,6 e só o deixavam crescer novamente ao término de sua ἀγωγή (agogué), de sua longa educação iniciática, isto é, aos trinta anos, segundo o mesmo Plutarco, Licurgo, 22,1. Também a mulher praticava o mesmo rito: às vésperas do casamento, de “mudança de estado”, as jovens ofereciam uma mecha ou parte do cabelo a um herói ou a uma heroína. Em Trezena é o herói Hipólito, conforme a tragédia homônima de Eurípides, Hipólito Porta-Coroa, 1425s, quem recebe a oferta de madeixas das jovens, πρὸ γάμου (prò gámu), “antes do casamento”, na expressão de Pausânias, 2,32,1. Por ocasião da festa das Hiperbóreas, companheiras de Leto, mortas em Delos, não só os jovens, mas também as jovens, naturalmente πρὸ γάμου (prò gámu) ofereciam madeixas junto ao túmulo das heroínas, consoante Heródoto, 4,34. Qual seria, afinal, o sentido desse rito iniciático, histórico e “heroico” de corte e oferta de madeixas ou de grande porção do cabelo, quando da mudança de idade e de “estado”? Van Gennep chama-o rito de passagem ou, mais precisamente, rito de separação, e explica o que denomina: “Os ritos de separação compreendem em geral todos aqueles nos quais se corta alguma coisa, principalmente o primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a cabeça [...]”21. E bem mais adiante, voltando ao assunto, assim se expressa o sábio germânico: “Na realidade, aquilo que se denomina ‘o sacrifício dos cabelos’ compreende duas operações distintas: a) cortar os cabelos; b) dedicá-los, consagrá-los ou sacrificá-los. Ora, cortar os cabelos é separar-se do mundo. Dedicar os cabelos é ligar-se ao mundo sagrado e mais especialmente a uma divindade ou a um demônio, que o indivíduo torna, assim, seu parente. Mas esta é apenas uma das formas de utilização dos cabelos cortados, nos quais reside, do mesmo modo que no prepúcio ou nas unhas cortadas, uma parte da personalidade. [...] Do mesmo modo, o rito de cortar os cabelos ou uma parte da cabeleira (tonsura) é utilizado em muitas circunstâncias diferentes. Raspa-se a cabeça da criança para indicar que entra em outro estágio, a vida. Raspa-se a cabeça da moça, no momento de casar-se, para fazê-la mudar de classe de idade. Assim também as viúvas cortam os cabelos para quebrar o vínculo criado pelo casamento, sendo a deposição da cabeleira sobre o túmulo um reforço do rito. Às vezes cortam-se os cabelos do morto, sempre com a mesma ideia. Ora, existe uma razão para que o rito de separação afete os cabelos; é que estes são pela forma, cor, comprimento e modo de arranjo um caráter distintivo, facilmente reconhecível, individual ou coletivo”22. Em síntese, para Van Gennep cortar o cabelo é separar-se do profano para mergulhar no sagrado, buscando, com isso, o neófito, iniciar uma vida nova. Outro fato muito importante na iniciação heroica e histórica é a mudança do nome. Jasão somente deixa seu mestre Quirão aos vinte anos, após receber um novo nome, consoante Píndaro, Píticas, 4,104 e 119. Outro que mudou de nome, por obra da arte iniciática do mesmo preceptor, foi Aquiles, conforme testemunha Apolodoro, 3,172. Igualmente Teseu só recebe seu verdadeiro nome, ao término da adolescência, quando foi reconhecido pelo pai, no dizer de Plutarco, Teseu, 4,1. O próprio Héracles, antes de tornar-se “a glória de Hera”, antes do término dos Doze Trabalhos, chamava-se Alcides. Também e sobretudo Simão recebeu o nome de Pedro (Jo 1,42), após o olhar fixo do Senhor, e foi sobre este rochedo que se ergueu o Castelo indestrutível, contra o qual nem mesmo as portas do Inferno prevalecerão (Mt 16,18). Na Índia védica, num rito de passagem, de separação e sobretudo de agregação, no décimo dia de nascimento, a criança recebia dois nomes, um comum, que a agregava ao mundo, e o outro, que a separava de todos, porque se tratava de um nome secreto, de que só a família tinha conhecimento. Em culturas primitivas, via de regra, a criança mudava de nome tantas vezes quantas as etapas de seu crescimento e, possivelmente, do seu desenvolvimento iniciático. É assim que a mesma recebe, de início, uma denominação vaga, depois um nome pessoal conhecido, a seguir um nome pessoal secreto e, por fim, talvez como acréscimo a este último, um nome de família, de clã, de sociedade secreta. Desse modo, o nome (secreto, religioso) separa o “nominado” de seu mundo anterior, profano, impuro, para integrá-lo no sagrado, o que explica a mudança de nome entre religiosos atuais. A respeito da extraordinária importância do nome, comenta Luís da C. Cascudo: “O nome é a essência da coisa, do objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome, porque o nome é a forma e a substância vital. No plano utilitário as coisas só existem pelo nome. [...] Conhecer o nome de alguém, usá-lo, é dispor da pessoa, participando-lhe da vida mais íntima”23. Eis aí o motivo por que os heróis, as cidades, os deuses, além do nome conhecido, possuíam um outro, o secreto. Moisés morreu sem saber o nome de Deus, o que não deve ser interpretado como tabu ou superstição, mas simplesmente como um “hábito bem oriental”. Pois bem, em Ex 3,6, quando Moisés chegou através do deserto ao monte de Deus, Horeb, o Senhor se lhe deu a conhecer, dizendo: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Acatando a ordem de ir ao encontro dos filhos de Israel no Egito, Moisés, todavia, quis saber como responder ao povo, se este lhe perguntasse qual o nome do Deus que o enviara, ao que Javé retrucou: “Eu sou aquele que sou. E disse: Assim dirás aos filhos de Israel: Aquele que é enviou-me a vós” (Ex 3,14). Em Jz 13,17-18, quando Manoá, pai de Sansão, desejou saber o nome do anjo com quem dialogava, este lhe respondeu: “Por que perguntas tu o meu nome, que é admirável?” E mais não disse. Maomé, segundo se sabe, preceituava que Alá possuía cem nomes, mas só se conheciam noventa e nove! O centésimo era secreto, inefável. Se a Dioniso se atribuíam 96 nomes e a Osíris 100, Ísis possuía 10.000!... E assim, como descobrir o verdadeiro, o inefável? Aliás, no impropriamente denominado Livro dos mortos, a alma, ao chegar diante de Osíris, para recitar as célebres confissões negativas, diz-lhe, de saída: “Eu te conheço e conheço também o nome das quarenta e duas divindades que estão contigo nesta sala das duas Maât...”24Conhecer o nome de Osíris e das quarenta e duas divindades, que lhe vão ouvir as confissões negativas, é para a alma, que vai ser julgada, um pré-requisito psicológico de salvação. Se uma palavra em si já é mágica, e se o nome é parte da pessoa, ou da coisa, conhecê-lo é dispor da pessoa ou do objeto, porque também as coisas e os objetos têm alma, vida; têm energia, têm mana. Por saber o nome de seu arco, Ulisses foi o único a retesá-lo, no célebre episódio da matança dos Pretendentes, Odis., XXI, 409-412. De outro lado, mutilar ou apagar o nome de uma pessoa, de um animal ou de um objeto é condená-los à impotência ou à morte. Quando Amenófis IV, o famoso Akhnaton, tentou impor Aton (Disco Solar) como deus único do Egito, mandou martelar o nome de Amon nas inscrições monumentais. Nas paredes de monumentos egípcios, os hieróglifos que estampam nomes de animais ferozes ou perigosos aparecem mutilados, tirando-lhes, com isso, toda e qualquer eficácia maléfica. Recordando a tradição egípcia de “matar o nome”, fazendo-o raspar dos monumentos, Javé, no Dt 29,20, ameaça destruir os que não guardarem a aliança, adorando outros deuses: “o Senhor apague o seu nome de debaixo do céu”. O supracitado Luís da C. Cascudo arrola uma série de informações e superstições acerca do tabu do nome, as quais merecem ser lidas25. Concluindo o que se disse a respeito do nome, vale a pena citar uma observação de Jung: “Somente a mente primitiva acredita no ‘nome verdadeiro’. No conto de fadas, alguém pode reduzir a pedaços o corpo do pequeno Rumpelstilz simplesmente pronunciando o seu verdadeiro nome. O chefe tribal oculta o seu verdadeiro nome e adota paralelamente um nome exotérico, para uso diário, a fim de que ninguém o enfeitice, conhecendo seu verdadeiro nome. No Egito, quando se sepultava o faraó, davam-se-lhe os verdadeiros nomes dos deuses, em palavras e em imagens, a fim de que ele pudesse obrigar os deuses a cumprir suas ordens, só com o conhecimento dos seus verdadeiros nomes. Para os cabalistas, a posse do verdadeiro nome de Deus significa a aquisição de um poder mágico. Em outras palavras: para a mente primitiva, o nome torna presente a própria coisa. ‘O que se diz, torna-se realidade’, diz o antigo ditado a respeito de Ptah”26. 5 Antes de se dar uma palavra acerca do travestismo e do hieròs gámos, do casamento sagrado do herói, vamos abordar, se bem que de maneira concisa, o problema do androginismo no mundo heroico, porque, por paradoxal que se nos afigure, as três coisas estão intimamente relacionadas. Mas, para se falar da concepção de andrógino no mito, é necessário começar por uma obra importante do filósofo da Academia. Platão, no Banquete27, 189e, 193d, pelos lábios do criativo e imaginoso poeta cômico Aristófanes, faz ampla dissertação acerca do ἀνδρόγυνος (andróguynos), palavra composta de ἀνήρ, ἀνδρός (anér, andrós), macho, “homem viril”, e de γυνή guyné), fêmea, mulher. Consoante o filósofo ateniense, “outrora nossa natureza era diferente da que vemos hoje. De início, havia três sexos humanos, e não apenas dois, como no presente, o masculino e o feminino, mas a estes acrescentava-se um terceiro, composto dos dois anteriores, e que desapareceu, ficando-lhe tão somente o nome: o andrógino era um gênero distinto, que, pela forma e pelo nome, participava dos dois outros, simultaneamente do masculino e do feminino, mas hoje lhe resta apenas o nome, um epíteto insultuoso” (Banquete, 189e). Este ser especial formava uma só peça, com dorso e flancos circulares: possuía quatro mãos e quatro pernas; duas faces idênticas sobre um pescoço redondo; uma só cabeça para estas duas faces colocadas opostamente; era dotado de quatro orelhas, de dois órgãos dos dois sexos e o restante na mesma proporção. Para Platão, os três sexos se justificam pelo fato de omasculinoproceder de Hélio (Sol); o feminino, de Geia (Terra) e o que provém dos dois origina-se de Selene (Lua), “a qual participa de ambos”. Esses seres, esféricos em sua forma e em sua movimentação, tornaram-se robustos e audaciosos, chegando até mesmo a ameaçar os deuses, com sua tentativa de escalar o Olimpo. Face ao perigo iminente, Zeus resolveu cortar o andrógino em duas partes, encarregando seu filho Apolo de curar as feridas e virar o rosto e o pescoço dos operados para o lado em que a separação havia sido feita, para que o homem, contemplando a marca do corte, o umbigo, se tornasse mais humilde, e, em consequência, menos perigoso. Desse modo, o senhor dos imortais não só enfraqueceu o ser humano, fazendo-o caminhar sobre duas pernas apenas, mas também fê-lo carente, porque cada uma das metades pôs-se a buscar a outra contrária, numa ânsia e num desejo insopitáveis de se “reunir” para sempre. Eis aí, consoante Platão, a origem do amor, que as criaturas sentem umas pelas outras: o amor tenta recompor a natureza primitiva, fazendo de dois um só, e, desse modo, restaurar a antiga perfeição. É conveniente, porém, acrescentar que não havia tão somente o andrógino, mas também duas outras “fusões”, igualmente separadas por Zeus, a saber, de mulher com mulher e de homem com homem, o que explica, no discurso de Aristófanes, o homossexualismo masculino e feminino28. Pois bem, o androginismo como o homossexualismo masculino são temas comuns no mito dos heróis, mas aquele se manifesta, não raro, de maneira atenuada, através do travestismo, da mudança de sexo e do hieròs gámos. Do androginismo puro existem pouquíssimos exemplos na mitologia clássica. Além dos casos conhecidos de Hermafrodito, de que se falou no Vol. I, p. 212, e de Himeneu29, os demais são conhecidos através de uma documentação tardia. O herói ateniense Cécrops, por exemplo, conforme a Suda, verbete, é διφυήια (diphyés), quer dizer, “de natureza dupla”, no sentido de que a parte superior de seu corpo era de um homem e a parte inferior, de mulher. Nono, poeta épico de Panópolis, do século VI d.C., em seu poema Dionisíacas, 9,310s, atesta que o rei Átamas, de que se falou no Vol. II, p. 124, aleitou seu próprio filho Melicertes. A Dioniso, acrescenta Apolodoro, 3,28, o mesmo Átamas o educava como se fora mocinha. Mais frequentes, todavia, são os heróis que mudam de sexo. Tirésias, de que se tratou no Vol. II, p. 183-184, escalou duas vezes o monte Citerão: na primeira foi transformado em mulher e, na segunda, recuperou novamente o sexo masculino. Acrescente-se logo que esses repetidos cambiamentos de sexo na Antiguidade já eram considerados “como forma de expressão de uma natureza propriamente andrógina”, segundo resulta da representação de um espelho etrusco, em que Tirésias, no Hades, aparece com aspecto de hermafrodito. Igualmente na Eneida de Virgílio, 6,448, o lápita Ceneu aparece como mulher: Ceneu, outrora mulher, amada por Posídon, foi por ele, como recompensa, transformada em homem, segundo o historiador Acusilau, século VI a.C., frag. 40a. De outras personagens, menos conhecidas no mito, se narram fatos semelhantes: Síton, pai de Palene, por cuja mão se batia com os pretendentes, como Enômao pela mão de Hipodamia, somente em Ovídio, Metamorfoses, 4,280, aparece modo uir, modo femina, ora como homem, ora como mulher. De Ífis narra o mesmo poeta, Met., 9,666ss, que, de fato, era mulher, mas fora educada como homem. Tendo-se apaixonado por outra mulher, foi por Ísis metamorfoseada em homem, no dia do casamento. Siprete, ao contrário, era homem, mas, durante uma caçada, tendo visto Ártemis nua, foi pela mesma transformado em mulher. Leucipo ou Leucipe também era mulher, mas para evitar que o pai a suprimisse, a mãe vestia-a como menino. No dia do casamento, Leto a metamorfoseou em homem. Em Festo, na ilha de Creta, Leucipe possuía um culto com festa própria, denominada Έκδύσια (Ekd×sia), Ecdísias, e os novos esposos passavam a primeira noite de núpcias sob sua estátua sagrada. Viram-se, até aqui, alguns casos de travestismo: moças, travestidas de rapazes, acabam por tornar-se realmente homens. Outros mitos abdicam do elemento prodigioso da metamorfose, conservando apenas o motivo do travestismo: neste caso trata-se normalmente de homens travestidos de mulher, que, no entanto, não precisam mudar de sexo para aparecer como homens, o que efetivamente o são. Não é difícil, por isso mesmo, ver que entre os dois grupos existe algo de comum: um início sexualmente ambíguo e, em seguida, uma definição. O exemplo mais conhecido de travestismo no mito é, talvez, o de Aquiles que, na corte de Licomedes, na ilha de Ciros, vivia como moça, entre as filhas do rei, para fugir, conforme o propósito de sua mãe Tétis, ao triste destino (morrer jovem) que o aguardava, e se cumpriu, na Guerra de Troia (Apol., 3,174). Na corte de Licomedes, enquanto não foi desmascarado pelas astúcias do solerte Ulisses, Aquiles era estrategicamente chamado Pirra (Hig., Frag. 96), “a ruiva”, pelo fato de ser muito louro. Pirro, o ruivo, será o nome de seu filho, que mais tarde o trocará por Neoptólemo (Plut., Pirr., 1,2). Héracles, por duas vezes, como veremos em seu mitologema, se vestiu de mulher: na primeira, quando a serviço da rainha Ônfale (Ov., Fastos, 2,319ss) e, na segunda, quando, num momento crítico, foi obrigado a disfarçar-se em mulher diante de seus inimigos, os Méropes, muito numerosos. Após vencê-los, o herói se purificou e tomou por esposa a Calcíope, filha de Eurípilo, rei da Ilha de Cós e chefe dos Méropes. A esse mito se prende, em Antimaquia, na ilha citada, o hábito religioso de os sacerdotes de Héracles e os noivos se vestirem de mulher. A forma de expressão mais atenuada de certa indeterminação sexual, na mitologia como na vida real, é a permanência de traços femininos em personagens do sexo masculino e vice-versa. Quando Teseu chegou a Atenas, os trabalhadores que estavam construindo o santuário de Apolo Delfínio pensaram tratar-se de uma παρθένος ἐν ὥρα γάγου (parthénos en hórai gámu), “de uma donzela pronta para casar-se”, na expressão simples e precisa de Pausânias, 1, 19,1. Um rito ateniense de travestismo estreitamente ligado ao mito de Teseu eram as festas denominadas ‘Ωσχοφόρια (Oskhophória), em que dois efebos, vestidos de mulher, “transportavam ramos de videira carregados de uvas”, segundo informação de Plutarco, Teseu, 23,2. Diga-se, aliás, de caminho, que entre os adolescentes, levados a Creta por Teseu, duas “moças” eram jovens travestidos. Síntese e coroamento, não apenas da vida heroica, mas ainda e sobretudo de um androginismo atenuado e simbólico é o hieròs gámos, as núpcias sagradas do herói. O casamento representa, no caso em pauta, o encontro da metade perdida, reunindo e restaurando, desse modo, a antiga perfeição, como diz o autor do Banquete. Essa difícil recomposição talvez explique a importância que se dá no mito ao hieròs gámos e às lutas travadas pelo herói para realizá-lo. Pisandro, de Camiro, na ilha de Rodes, poeta épico do século VII a.C., escreveu, segundo consta, um vasto poema de sessenta cantos, Ήρωικαὶ Θεογαμίαι (Heroikaì theogamíai), “Núpcias divinas dos heróis”, de que quase nada nos resta. Nesta obra o autor reunira diversos mitos célebres, relativos a núpcias heroicas. A citação de Pisandro é tão somente para mostrar que não foram apenas as guerras, os campeões olímpicos, os Argonautas, Prometeu, Édipo, Medeia... que mereceram as bênçãos das Musas, mas que igualmente os hieroì gámoi ocuparam seu espaço como temas tradicionais da literatura e da arte. As bodas famosas de Tétis e Peleu, a cuja celebração até os deuses compareceram, já são pressupostas na Ilíada, XVIII, 48s; de igual esplendor foi a união de Cadmo e Harmonia, de que falam os poetas Teógnis, 15s; Píndaro, Píticas, 3,87ss; Safo, a gigantesca poetisa da ilha de Lesbos, celebrou (frag. 55) o casamento de Heitor e Andrômaca. Píndaro dedicou um peã (frag. 64) às núpcias de Níobe e Anfião; o casamento solene de Admeto e Alceste figurava no trono de Amiclas, segundo Pausânias, 3,18,16; o de Jasão e Medeia, na arca de Cípselo, informa o mesmo historiador, 5,18,3; o de Pélops e Hipodamia, ou ao menos seu antecedente direto, a luta entre Enômao e Pélops, estava esculpido no frontão oriental do templo de Zeus em Olímpia. Já se disse que o herói tem que superar grandes obstáculos e até mesmo arriscar, por vezes, a própria vida, acrescentaríamos, para conseguir a metade perdida... Héracles, já se falou no Vol. I, p. 274, lutou bravamente com o rio Aqueloo pela posse de Dejanira, segundo relato de Apolodoro, 1,64; Pélops, veja-se o Vol. I, p. 86, matou traiçoeiramente o sogro Enômao, para ter a Hipodamia; Admeto, para ter Alceste, executará a difícil, mas simbólica tarefa, de jungir um leão e um javali a uma carruagem; Jasão superou inúmeras provas, como veremos no mito dos Argonautas, a fim de se casar com Medeia. Outra prova de altíssima importância nas núpcias do herói é quando este é obrigado a lutar com verdadeira multidão de pretendentes pela mão da bem-amada. E, nesse caso, a heroína que nos vem logo à mente é Helena, a filha de Zeus e de Leda, a Helena, que, já aos nove anos, fora raptada por Teseu e que, após seu casamento e adultério, provocou a suprema prova heroica, a Guerra de Troia, como se mostrou no Vol. I, p. 113. Mas, se Helena, graças à poesia homérica, que lhe conservou todo o esplendor incomparável da figura mítica, é a mais célebre das heroínas, não é todavia a única que fez palpitar os corações dos heróis: são bem conhecidos os numerosos pretendentes pré e pós-matrimoniais da “fidelíssima” Penélope, como se mostrará no mito de Ulisses. Um derradeiro assunto ainda inserido no conteúdo do androginismo simbólico e do hieròs gámos “prejudicado” de heróis célebres como Peleu (Hes., frag. 79; Pínd., Nemeias, 5,27ss e 4,53ss); Belerofonte (Il., VI, 160ss); Hipólito (Eur., Hipólito Porta-Coroa, passim) e outros menos famosos, como Fênix (Apol., 3,175), Eunosto, Tenes... é o tema que, já há algum tempo, se convencionou chamar de motivo Putifar30, fato narrado em Gênesis 39,7-20, a respeito da inteireza, caráter e temor de Deus por parte de José. Assim, o motivo Putifar pode ser definido como acusação infundada de adultério, tramada por uma mulher, com a qual o injustamente acusado e, quase sempre punido, se recusou a ter relações sexuais. Na mitologia heroica da Grécia, como em muitas outras culturas anteriores a ela, o motivo Putifar é amplamente difundido. Para alguns heróis, como Tenes, que se recusou a prevaricar com Filônome, segunda esposa de seu pai Cicno, o “motivo” se constitui no ponto de partida de todo o seu mitologema; para Hipólito, que igualmente repeliu sua madrasta Fedra, aquele se torna o episódio central; para outros é tão-só mais um incidente em meio a tantas vicissitudes mais importantes, como é o caso de Peleu, que rechaçou as pretensões indecorosas de Astidamia, esposa de seu hospedeiro e amigo Acasto. De qualquer forma, o motivo Putifar representa sempre uma situação crítica para o herói, conjuntura essa que se resolve ora tragicamente, com a morte, no caso de Hipólito e Eunosto, com a cegueira, como na punição de Fênix; ora de maneira menos violenta, como prova superada através de riscos tremendos, como a exposição de Tenes; com o exílio e a vida ameaçada, no caso de Belerofonte ou, eventualmente, a vítima se vinga mais tarde, de modo cruel, de quem o caluniou, como Peleu, que esquartejou Astidamia. 6 Feita esta resenha a respeito do androginismo em íntima correlação com o travestismo e o hieròs gámos do herói, voltemos ainda mais um pouco nossa atenção para o androginismo, de que se fará, em conjunto com os dois aspectos citados, uma interpretação mais simbólica. Para Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Mircea Eliade e, em parte, para Angelo Brelich, cujas obras já foram exaustivamente citadas em capítulos anteriores, o androginismo inicial é apenas um aspecto, uma projeção antropomórfica de Fanes, do ovo cósmico, cujo esquema se estampou no Vol. II, p. 164. Encontramo-lo na aurora de qualquer cosmogonia e no “fecho” de toda escatologia, pois tanto no início quanto no fim do mundo e do ser manifestado se depara a plenitude da unidade fundamental, onde se confundem os opostos, seja porque ainda não passam de potencialidade, seja porque alcançaram sua conciliação, sua integração final. Aplicada ao homem, é natural que o andrógino, símbolo de uma unidade primeva, possua uma expressão sexual, apresentada como idade da inocência ou virtude primeira, vale dizer, a idade de ouro a ser reconquistada. Mas a primeira bipartição do andrógino, que, cosmicamente criada, passou a diferenciar noite e dia, céu e terra, é idêntica à do Yin e Yang, que agrega a estas oposições fundamentais as do frio e do calor, do macho e da fêmea. É o mesmo que no Japão, Izanagi e Izanami, a princípio confundidos no ovo do Caos; de igual maneira, Ptah, no Egito, e Tiamat na Babilônia. Consoante o Rig-Veda, o andrógino é a vaca pintada, que é o touro de fértil semente. Ser duplo, possuidor dos atributos dos dois sexos, ainda unidos, mas prestes a separar-se, o andrógino explica perfeitamente a significação cosmogônica da escultura erótica indiana, em que Çiva, divindade andrógina, identificada com o princípio informal da manifestação, é, não raro, representada enlaçando estreitamente a Shakti, sua própria potência, configurada como divindade feminina. Traços de androginismo se notam igualmente em Dioniso, Castor e Pólux, Adônis e Cibele, o que faz lembrar Izanagi e Izanami. Os exemplos poderiam multiplicar-se, porque, em termos, como demonstram as antigas teogonias gregas, toda divindade é andrógina, o que faz com que a mesma não necessite de parceiro ou parceira para procriar. A androginia, símbolo da totalidade, surge, portanto, no início como no fim dos tempos. Na visão escatológica da salvação, o ser recompõe uma plenitude em que se anula a separação dos sexos, o que evoca, em muitos textos tradicionais, o mistério do casamento, o hieròs gámos, “reunindo”, desse modo, Çiva e sua Shakti. Se bem que universalmente confirmada, a crença na unidade original, que o homem deve recompor post mortem, é seguida, na maioria dos sistemas cosmogônicos, de uma necessidade imperiosa de diferenciar totalmente os sexos neste mundo. É que o ser humano jamais nasce inteiramente polarizado no seu sexo. Segundo os Bambaras, “é lei fundamental da criação que cada ser humano seja simultaneamente macho e fêmea em seu corpo e em seus princípios espirituais”, como a Rebis hermética, que é igualmente sol e lua, céu e terra, essencialmente um, aparentemente duplo, enxofre e mercúrio. Enfatizando a androginia como uma das características da perfeição espiritual, escreve Mircea Eliade: “Com efeito, tornar-se macho e fêmea ou não ser nem macho nem fêmea são expressões plásticas através das quais a linguagem se empenha em descrever a metánoia, a conversão, a inversão total dos valores. É igualmente tão paradoxal ser macho e fêmea quanto o tornar-se novamente criança, nascer de novo, passar pela porta estreita”31. O retorno ao estado primordial, a liberação das contingências cósmicas se efetuam pela complexio oppositorum, “pela conjugação dos opostos” e pela realização da Unidade primeira. Masculino e feminino são apenas um dos aspectos de uma multiplicidade de opostos, cuja interpenetração é necessário que novamente se consuma. O androginismo explícito, atenuado, alusivo, simbólico, não importa o nome ou o “grau”, está, como se mostrou, intimamente correlacionado com o travestismo e o hieròs gámos como rito de passagem, uma típica situação iniciática, em que o menino passa a adolescente e este se “completa” no casamento. Na Grécia, como em outras culturas, o télos, a “realização” do matrimônio está estreitamente vinculada ao télos da consecução da idade adulta e da iniciação que o sanciona. Na Grécia atual, como lembra Kerényi, ainda se chama o casal de τό άνδρόγυνον (tò andróguynon), o andrógino...32 Em síntese, o androginismo é a “nostalgia da totalização”. Para Jung, “o homem, nos mitos, sempre exprimiu a ideia da coexistência do masculino e do feminino num só corpo. Tais intuições psicológicas se acham projetadas de modo geral na forma da sizígia divina, o par divino, ou na ideia da natureza andrógina do Criador”33. 7 O herói está ligado, como se mencionou, à Luta, muitas vezes traduzida e reduzida ao que se denomina Trabalhos; à Agonística; à Mântica; à Iátrica e aos Mistérios. Vamos esquematizar cada um destes aspectos. O termo herói, comenta Brelich, permaneceu nas línguas modernas sobretudo com o sentido de guerreiro, de combatente intrépido. E talvez tenha sido este o significado mais antigo da palavra e é principalmente esta a conceituação que Homero empresta aos bravos da Guerra de Troia. À mesma conotação se deve a heroização em massa dos que tombaram em Maratona contra os bárbaros de Dario (Paus., 1,32,4). Hesíodo restringiu igualmente o conceito de herói àqueles que combateram em Troia e em Tebas. Efetivamente, excetuando-se a morte, nada realça tanto um número tão grande de heróis como o qualificativo de combatente. Tal predicado se expressa mais frequentemente na mitologia, mas, logo se verá, ele se encontra presente também no culto. Note-se, de passagem, que o “caráter de combatente” distingue, de certa forma, os heróis dos deuses. É verdade que estes também combatem, ou melhor, combateram, até consolidar sua posição divina, como aconteceu na Titanomaquia e na Gigantomaquia, segundo se viu no Vol. I, p. 212 e 358, e sua participação nas lutas humanas reduz-se à poesia épica. De resto, o heroísmo divino em combate ou fora dele é nulo porque, exceto um ou outro arranhão que os imortais possam receber, como Ares, Afrodite, Hera, Hades, conforme se pode ler num passo célebre da Ilíada, V, 376-404, esses ferimentos, repetimos, nenhuma consequência maior podem provocar, uma vez que, como a mesma Ilíada, V, 402, se apressa em dizer em relação a Hades ferido por Héracles: Apolo pôde tranquilamente curá-lo οὐ μὲν γαρ τι καταθνητός γἐτέτυκτο (u mèn gár ti katathnetós gu’etétykto), “porque ele (Hades) não havia nascido mortal!” Ao contrário, quer se trate de gestas prodigiosas, de tarefas inauditas, de Trabalhos gigantescos, como os de Héracles, Perseu, Teseu, Belerofonte e de tantos outros, executados contra monstros, feras, salteadores, bandidos, em proveito próprio ou da comunidade; quer se trate de guerra ou de μονομαχία (monomakhía), isto é, de “combate singular”, a razão da existência do herói é a Luta. Os deuses, não podendo morrer, pararam de lutar... Dissemos que o espírito bélico do herói está igualmente presente no culto. Pois bem, um dos motivos principais do culto do herói é a proteção que o mesmo dispensa à sua pólis em guerra. Teseu, segundo Plutarco, Teseu, 35,5, foi visto em Maratona à frente dos atenienses. Outra personagem, que os soldados gregos não conseguiram identificar no furor da batalha, mas cujo nome, Équetlo ou Equetleu, foi revelado pelo Oráculo de Delfos, lutava também, como um louco, em Maratona, empunhando uma charrua, em defesa de Atenas, informa Pausânias, 1,32,4. Igualmente, em Delfos, insurgiram-se contra os persas dois heróis locais, Fílaco e Autônoo (Heród., 8,34-39; Paus., 10,8,7). Contra os mesmos inimigos e ainda contra os celtas foram vistos pelejando os heróis Hipéroco, Laódico e Neoptólemo. Na batalha de Salamina contra os persas de Xerxes, o herói-serpente Quicreu foi identificado sobre uma das naves gregas (Paus., 1,35,1). Não é, porém, apenas sob forma de visões ou mito que se manifestava na Grécia a convicção de que os heróis protegiam efetivamente as tropas de sua pólis, mas essa mesma persuasão alimentava um culto real e verdadeiro. Assim, antes da grande batalha de Salamina, os gregos, comandados por Temístocles, invocaram os dois famosos heróis locais, Télamon e Ájax Telamônio, pai e filho, pedindo-lhes proteção e ajuda (Heród., 8,64), e mandaram “prender a ambos”, isto é, suas estátuas, as quais, no passado, os eginetes, quer dizer, os habitantes da ilha de Egina, haviam emprestado aos tebanos em guerra contra Atenas! (Heród., 5,80). Nas guerras, os cretenses sacrificavam a seus heróis Idomeneu e Meríones (Diod., 5,79,4). Antes da batalha de Plateias, que baniu os persas do território grego, celebrou-se um solene sacrifício em honra dos sete heróis epônimos, os “arquéguetas” locais (Plut., Aristides, 11). Um ponto é pacífico: o culto dos heróis e, particularmente, a conservação de suas “relíquias” tinham por escopo a proteção dispensada pelos mesmos em caso de guerra. Foi, por essa razão, que os espartanos, usando de um embuste, se apossaram dos ossos de Orestes guardados em Tégea (Heród., 1,67), conseguindo, assim, após duas derrotas, apossar-se da cidade. Igualmente os atenienses, por ocasião da luta contra Esparta, pela posse da cidade macedônica de Anfípolis, tomaram suas precauções, mandando procurar os ossos de Reso, o célebre rei da Trácia, morto por Ulisses naIlíada.Possuir os restos mortais ou mesmo as estátuas de seus heróis locais é ter uma inexpugnável muralha espiritual; perdê-los é entregar a cidade ao inimigo... Muito mais opulenta, todavia, é a mitologia do herói guerreiro: é tão rica e conhecida, que se torna supérflua qualquer exemplificação. Basta abrir a Ilíada e a Odisseia de Homero e contemplar o desfile gigantesco de Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Menelau, Ulisses, Ájax, Diomedes, Heitor, Páris, Eneias... Existe, no entanto, uma pequena questão que ainda levanta certa dúvida na Epopeia e enseja uma pergunta: como se travavam os combates? Ninguém ignora que as “guerras épicas” se decidiam, em boa parte, numa série de monomaquias, de justas, de lutas singulares entre os grandes heróis, ficando os demais contendores num plano muito inferior. É difícil pensar e admitir que essa modalidade de luta, essa “situação poética”, corresponda à realidade militar de qualquer época. Tratar-se-ia, então, de uma exigência poética, de um expediente para caracterizar melhor as personagens ou de uma tradição mítica? Talvez se pudesse responder um pouco evasivamente, dizendo que nem a monomaquia na guerra coletiva e nem tampouco a própria guerra coletiva sejam resultantes de exigências do gosto épico, cabendo nesse caso à monomaquia o importante papel de reflexo do núcleo mítico. Os heróis enfeitam a luta, os demais morrem anonimamente! Com efeito, imaginar-se um Héracles ou um Teseu, à frente de um exército, seria um total remodelamento do mito. Um herói autêntico é, no fundo, um solitário. “Valente, diria Ibsen, é o que está só”. A Agonística, em grego ἀγωνιστική (agonistiké), é luta, disputa atlética. Agonistiké, “agonística”, prende-se a άγών (agón), “assembleia, reunião” e, em seguida, “reunião dos helenos para os grandes jogos nacionais”, os próprios jogos, os concursos, as disputas. Pois bem, a agonística é como que um prolongamento das lutas dos heróis nos campos de batalha, porque também no agón os contendores usam de vários recursos bélicos e, em dependência do certame, expõem, muitas vezes, a vida, embora, em tese, a agonística não vise a eliminar o adversário. Seja como for, o agón é uma das formas mais características do culto heroico, se bem que o culto agonístico não seja exclusivamente heroico, porque também os deuses têm sua participação nos mesmos. Para não multiplicar os nomes, vamos lembrar apenas os jogos em honra de Tlepólemo na ilha de Rodes, os de Alcátoo em Mégara; aqueles em homenagem a Trofônio em Lebadia; os realizados em Oropo, para celebrar o grande herói Anfiarau; os de Fílace em memória da Protesilau; os de Cedrias ou também da ilha de Rodes em honra dos Dioscuros, Castor e Pólux. A essas disputas atléticas, dedicadas inteiramente a heróis, somamse as consagradas a algumas divindades. Entre essas disputas de caráter religioso avultam os quatro grandes Jogos Pan-Helênicos, mas inclusive nestes os heróis têm sua participação, ao menos em seus primórdios. Segundo uma tradição, os agônes pan-helênicos, Jogos Olímpicos, Píticos, Ístmicos e Nemeus, eram, em suas origens, consagrados a heróis e, só mais tarde, compuseram o culto divino (Teócrito, 12,32s; 12,29 e 12,34). Antes de pertencer a Zeus, o culto agonístico de Olímpia era celebrado em honra de Pélops; os Nemeus, mais tarde consagrados também a Zeus, eram, a princípio, dedicados a um menino, morto por uma serpente, Ofeltes-Arquêmoro; os Ístmicos o eram ao herói Melicertes, ou a Sínis ou ainda a Cirão, antes de caírem no domínio de Posídon; os Píticos, consagrados a Apolo, haviam sido instituídos para honrar ou “aplacar” a serpente-dragão Píton34, vítima do próprio deus. Um outro ponto de contato entre o culto agonístico e o culto heroico se encontra nos locais onde treinavam os heróis para as disputas atléticas: as palestras e os ginásios, já que inúmeros dentre estes eram dedicados a heróis. Embora Hermes se tenha consagrado como protetor inconteste das palestras, a seu lado sempre se encontra Héracles, concebido como o ideal atlético. A consistência religiosa de consagração desses locais aos heróis aparece bem nitidamente na cidade de Messena, em cujo ginásio figuravam, além de Hermes, Héracles e Teseu (Paus., 4,32,1). O ginásio de Argos estava construído em torno do túmulo do herói Quilárabis e de seu pai Estênelo (Paus., 2,22,8s). O ginásio de Craníon, em Corinto, tinha como titular a Belerofonte (Xen., Helênicas, 4,4,4). Em Trezena, ginásio e estádio estavam sob a proteção de Hipólito (Paus., 2,32,3). O de Delfos recordava um fato acontecido a um herói célebre: estava construído exatamente no local em que Ulisses fora ferido na caçada ao javali (Paus., 10,8,8) deixando-lhe uma cicatriz, que marcará na Odisseia, XIX, 467-475, um momento dramático para o herói. Em Esparta, onde a educação física era levada muito mais a sério que no restante da Grécia, a rua que conduzia ao estádio, além de ser marcada pelo túmulo do herói Eumedes, possuía uma estátua de Héracles, a quem os sphaireîs, os jovens próximos da maturidade, sacrificavam antes de seu combate ritual. Junto ao estádio se encontravam os locais de culto dos Dioscuros Afetérios e mais adiante o templo do herói Alcon, filho de Hipocoonte, e no espaço reservado ao combate ritual havia as estátuas de Héracles e Licurgo (Paus., 3,14,6ss; 3,15,ls). A conexão entre culto agonístico e culto heroico era tão séria, que os grandes e mais célebres atletas foram heroicizados, como é o caso, entre outros, de Cleomedes de Astipaleia, Eutimo de Locros e Teógenes de Tasos. Acrescente-se, além do mais, que o povo grego considerava os grandes Jogos Pan-Helênicos como os acontecimentos religiosos centrais da vida nacional. Pausânias, 1,10,1, colocava num mesmo plano os Mistérios de Elêusis e os Jogos Olímpicos35. A mitologia da agonística aparece mais abundante e rica em nomes do que em formas e temas plásticos. Mas se os heróis míticos são celebrados com jogos, é porque “devem” ter sido grandes atletas durante sua “existência terrena”. As primeiras grandes disputas atléticas, míticas, claro está, em Olímpia e Nemeia, possuem a listagem tradicional dos vencedores. Nela figuram importantes personagens da mitologia heroica, como os Dioscuros, Héracles, os “sete” da expedição contra Tebas e alguns outros nomes, que se imortalizaram também em diversas modalidades esportivas, sobressaindo cada um em determinada especialidade agonística: Héracles é vencedor no pankrátion (luta e pugilato); Castor, na corrida; Pólux, na luta; na corrida de carros, Iolau; no hipismo, Iásio; Etéocles, na corrida; Polinice, na luta; Anfiarau no salto; Adrasto, no hipismo...36 Todos estes grandes “campeões”, no entanto, passaram por longa fase de treinamento (rito iniciático, como já se frisou) com mestres especializados, destacando-se, dentre eles, Quirão. Somente Héracles, segundo Apolodoro, 2,63, teve por “treinadores” a Anfitrião, seu pai; Autólico, avô de Ulisses; Êurito, rei de Ecália; Castor e Lino... Trata-se, portanto, de um atleta bem preparado! No que tange à origem da agonística, a communis opinio é de que a mesma proviria do culto dos mortos, isto é, teria como função primeira homenagear a personagens célebres, a heróis, após sua morte. De fato, agônes, sob o aspecto de jogos fúnebres, são temas obrigatórios da épica heroica. Desde o XXIII canto da Ilíada, em que se homenageia Pátroclo, com disputas atléticas, ao VIII da Odisseia, nos agônes dos Feaces, passando pelo V canto da Eneida, em que se disputam jogos em memória de Anquises, pai de Eneias, e chegando, para não citar outros, ao também poeta latino Públio Papínio Estácio (40-96 d.C.) com sua Tebaida, os agônes têm sua presença garantida na epopeia. Os jogos fúnebres, todavia, não são privativos da epopeia. Aparecem, “desde o tempo dos heróis”, para celebrar até mesmo personagens sem grande relevo mítico, como Azane, filho de Arcas (Paus., 8,4,5; Estácio, Tebaida, 4,292) ou figuras heroicas de maior projeção, como as competições em honra de Pélias, cantadas por vates líricos, como Íbico, Estesícoro e Simônides, consoante Ateneu, 4,172Ds. De outro lado, talvez fosse mais correto refletir ainda um pouco acerca da exclusiva proveniência da agonística do culto dos mortos. Os funerais não se constituem na ocasião única em que se realizam memoráveis disputas atléticas. A tradição nos legou um bom número de agônes célebres, em que se estipulava como prêmio a mão de uma jovem. Um destes, por sinal, está em correlação com os Jogos Olímpicos, como já se falou: a fraudenta disputa entre Pélops e Enômao, pela mão de Hipodamia. Existem outros agônes míticos com o mesmo escopo. Entre eles, a disputa por Penélope, vencida por Ulisses (Paus., 3,12,1); a luta por Marpessa, ganha por Idas; a contenda por Atalante (Apol., 3,107); pelas segundas núpcias das Danaides (Pínd., Píticas, 9,111ss), assassinas de seus primeiros maridos; pela filha de Anteu (Pínd., Píticas, 9,105ss); pela mão de Dejanira, em que Héracles levou de vencida ao rio Aqueloo e até Peleu terá que lutar para conquistar Tétis (Pínd., Nemeias, 3,35s)... E os agônes não param nas disputas de belas mulheres. Existem ainda cerradas competições pela soberania, pelo reino: Endímion decide sua própria sucessão através de um célebre agón entre seus filhos e essa contenda famosa assumirá um valor “prototípico” nos Jogos Olímpicos (Paus., 5,8,1). Um outro agón pelo poder, mas de caráter cosmogônico, e que figura na perspectiva mítica de Olímpia, é a luta entre Zeus e Crono (Paus., 5,7,10; 8,2,2). Diga-se, logo, que o certame pela mão da bem-amada ou pelo reino pode ter como alternativa da vitória a própria morte: Érix desafiou a Héracles, para obter o rebanho de Gerião, e ofereceu, em caso de derrota, o próprio reino (Diod., 4,23; Paus. 3,16,4; 4,36,4). É claro que o êxito efetivo de luta entre Héracles e Érix era a vida ou a morte. O herói também participa da Mântica. Em grego, μαντική (mantiké), de mavntir (mántis) “adivinho, profeta ou profetisa”, é a arte de “predizer o futuro”. A Mântica na Grécia se apresenta sob formas diversas e como o herói não tem acesso a todas elas, talvez fosse oportuno apontar primeiro os vários aspectos da arte divinatória. Grosso modo, a mântica engloba diferentes técnicas, podendo ser: dinâmica ou por inspiração direta; indutiva (piromancia, eonomancia, hepatoscopia, oniromancia...); ctônia, por incubação, e cleromancia37. Esta divisão é apenas de cunho didático e está longe de ser completa: dá conta somente das técnicas mais conhecidas e mais usadas na Hélade e em outras culturas. As diferenças entre elas, sua importância e emprego serão resumidamente explicados linhas abaixo. Conquanto os poderes oraculares estivessem concentrados nas mãos de Apolo, o senhor todo-poderoso de Delfos, outros deuses e muitos heróis, sem o prestígio, claro está, do deus pítico, exerceram-nos igualmente na Grécia antiga. E fato curioso, na Hélade, é que, ao lado de famosos heróis “videntes”, como Tirésias, Calcas, Anfiarau, Anfíloco, Mopso, cuja arte divinatória faz parte intrínseca de seu mito, existem outros, como Ulisses, Protesilau, Sarpédon, Menesteu, Autólico, Pasífae38, Ino, Héracles em Bura, Glauco em Delos, Aristômenes na Messênia, Orfeu Laio... para os quais a mântica é apenas um apêndice de seu mitologema. Uma coisa, porém, parece fora de dúvida: no oráculo heroico parece prevalecer a mântica por incubação, sem dúvida a mais empregada por Homero39, e a cleromancia. Se bem que quase nada se saiba de preciso acerca dos oráculos de Ulisses na Etólia (Lícofron, 799; Aristóteles, frag. 1211); de Menesteu, na península ibérica (Estrabão, 3,140), de Autólico, em Sinope (Estrabão, 12,546) e de outros mais, os documentos, se bem que escassos, atestam que nos oráculos de Pasífae, Ino, Anfiarau, Calcas, Mopso e Tirésias predominava a ἐγκοίμησις (enkoímesis), isto é, a incubação. Em alguns casos, como nos de Calcas e Anfiarau, o consulente deveria fazer um sacrifício e depois dormir sobre a pele da vítima, o que, diga-se, de caminho, excluía o holocausto! Um culto heroico de que resulta concretamente que não era por incubação é o de Héracles, em Bura, na Acaia: pela localização do oráculo numa gruta, em local bastante inacessível, acredita-se que lá funcionava a cleromancia, cuja antiguidade na Grécia é comprovada. Possivelmente se lançavam quatro ossos no interior da caverna e, a cada golpe, correspondia uma resposta, que era anotada numa tabuinha. O fato de o culto oracular apolíneo estar muitas vezes associado ao culto ou à reminiscência de um herói não deve causar estranheza, uma vez que, como se sabe, o deus de Delfos, não raro, se sobrepôs ao herói de um local, que ali possuía um oráculo. O fenômeno já era conhecido dos antigos, como no caso do oráculo de Tilfusa: o Hino Homérico a Apolo, 244ss, parece aludir ao fato. No caso de Delfos, já se comentou o episódio no Vol. II, p. 96ss, as coisas são bem claras: o deus suplantou a Píton, antigo senhor do oráculo e, depois, o associou a seu próprio culto. O nome de sua sacerdotisa, Pitonisa, não deixa dúvidas a respeito. Fato semelhante aconteceu com o herói Ptóos, segundo se mostrou, em parte, no mesmo Vol. II, p. 87: Ptóos manteve um culto separado do de “Apolo Ptóos”, que lhe ocupara o oráculo. Na Cilícia, ao lado de “Apolo Sarpedônio”, existia um culto oracular consagrado ao próprio herói Sarpédon. De qualquer forma, com oráculos “independentes” ou associados ao deus mântico da Hélade, todos os adivinhos estão a serviço de Apolo e figuram, muitas vezes, como seus filhos: é o caso de Mopso de Malos; Mopso, o argonauta (Valério Flaco, l,383s); Anfiarau (Higino, frag. 70); Calcas, Íamo... A grande diferença entre Apolo e seus “associados” e “filhos” é que aquele fundamenta sua Mântica na inspiração direta e estes na ctônia, por incubação, e na cleromancia, embora também estas sejam consideradas como um dom de Apolo, Ilíada, I, 72. Para se ter uma ideia da oposição entre mântica apolínea e a ctônia é aconselhável ler uma passagem significativa de Eurípides, Ifigênia em Táuris, 1259ss. Para os gregos em geral, todavia, essas diferenças eram meramente “culturais”. Todas as formas divinatórias eram canônicas e ortodoxas e, não raro, certamente, uma questão de gosto, de “devoção” ou de possibilidades e meios político-econômicos: uma consulta “proveitosa” ao aristocrático Oráculo de Delfos poderia estar condicionada ao ouro de Creso ou à astúcia política de Filipe da Macedônia... O povo consultava oráculos mais simples! Afinal, como diz Aquiles (Il., I, 63), “o sonho é também uma mensagem de Zeus”: καί γὰρ τὄναρ εκ Διότιν (kaì gàr t’ónar ek Diós estin). E Zeus era o deus de todos... O herói também é médicoe tal é a conexão entre Mânticae Iátrica, que é impossível separar os dois tópicos, a não ser, como fizemos, por motivos didáticos.Iátrica, em grego Ἰατρική (Iatriké), de ἰατρός (iatrós), “médico”, é a “arte de curar”. Como vimos, a mântica ctônia é a forma característica do oráculo heroico. Pois bem, a incubação tem por objetivo essencial, na maioria dos casos, a cura, e a atividade terapêutica dos deuses e dos heróis se exerce principalmente através das respostas do oráculo. Apolo, deus mântico por excelência, era, ao menos a princípio, um deus-médico, e assim se torna visível a íntima correlação entre iátrica e mântica no majestoso epíteto que lhe empresta o grande trágico Ésquilo, Eumênides, 62: ἰατρόμαντις (iatrómantis), quer dizer, o médicomântico, “o que sabe curar através de seus oráculos”. Anfiarau, como já se disse, era adivinho e possuía um oráculo por incubação, mas esse oráculo se ocupava sobretudo de iátrica, como demonstra a presença em seu santuário de uma verdadeira constelação de médicos e médicas: Apolo Peéon40, Panaceia, Íaso, Higiia, Atená Peônia e, mais que tudo, o testemunho de Pausânias, 1,34,4, segundo o qual os “curados” lançavam moedas de ouro e prata numa fonte próxima ao santuário, o que, de saída, atesta um local de “cura”. Asclépio, o herói-deus, de que já se falou no Vol. II, p. 93s, cognominado o “grande médico”, desempenhava suas funções iátricas nos monumentais santuários de Epidauro, Cós e Atenas mediante a incubação: aparecia pessoalmente nos sonhos e dava respostas concernentes às doenças e à cura das mesmas. Igualmente Calcas (Estrabão, 6,284) e Podalírio, filho de Asclépio, eram detentores de oráculos por incubação com finalidade terapêutica. Há, todavia, heróis, que, mesmo não possuindo oráculos, eram depositários de culto terapêutico. Para não se estender em nomes, é bastante citar: Macáon, filho de Asclépio; Alexanor, Górgaso, Polemócrates e Nicômaco, filhos de Macáon; Hemítea, filha de Estáfilo; Oresínio de Elêusis e Aristômaco de Maratona... e até mesmo heróis, sem nexo algum com a iátrica, podiam ser invocados como médicos, em determinadas regiões: Héracles o era em Hieto, na Beócia (Paus., 9,24,3); Heitor, em Troia, e até o rei Reso. Uma característica da mitologia iátrica, que não causa surpresa, é sua conexão com Asclépio, não por ter sido ele um grande médico e ser filho de Apolo, o iatrómantis, mas porque seu mestre havia sido Quirão, o educador de tantos heróis sob tantos aspectos! (Il., IV, 219). A fonte primeira onde todos beberam é sempre do pacífico Centauro. Pátroclo curou a Eurípilo de um ferimento (Il., XI, 828ss), porque aprendera a “arte” com Aquiles, que, por sua vez, a recebera de Quirão. O próprio filho de Tétis exercita sua ciência médica, medicando a Pátroclo e, desse modo, a intervenção do grande herói, curando a um seu companheiro, passou a ser uma espécie de tema obrigatório na épica: Ulisses ferido é curado por Autólico (Odiss., XIX, 449ss); Eneias o é por Iápix (Eneida, 12,391ss). Mas não é só de feridas físicas que cuidam os heróis com poderes médicos: curam também a loucura. Héracles, vítima de insânia mais de uma vez, foi curado por Antiquíreo, epônimo de Antícira, a cidade de origem do heléboro, ou o foi, segundo uma variante, por Medeia (Diod., 4,55,4). Antíope, enlouquecida por Dioniso, recuperou a razão por meio de Foco (Paus., 9,17,6). As filhas de Preto, rei de Tirinto (Ov., Metamorfoses, 15,322ss) foram enlouquecidas pelo mesmo deus ou por Hera e curadas por Melampo. O adivinho tebano Bácis, curando a loucura das mulheres da Lacônia (Paus., 10,12,11), foi ele próprio enlouquecido. Esse fato conduz, aliás, a um motivo mítico deveras interessante: o do doente-médico ou médico-doente. Quirão, que ensinou a curar e curou tantos ferimentos, recebeu de Héracles uma ferida incurável (Apol., 2,85). Podalírio (Il., XI, 834s), em determinado momento, “necessita de um excelente médico”. Mais conhecido é um outro motivo que se pode expressar por somente cura aquele que provocou o ferimento. O mito mais divulgado a esse respeito é o de Télefo, que, ferido por Aquiles, só podia ser curado pelo herói ou por sua lança. Somente Helena, cuja familiaridade com drogas é atestada já na Odisseia, IV, 219ss, poderá curar da cegueira por ela produzida ao poeta Estesícoro, conforme a Suda, verbete Στησίχορος (Stesíkhoros). O herói é uma personagem especial, que sempre deve estar preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até mesmo para as perigosas catábases à outra vida. As iniciações da efebia servem-lhe de escudo e de respaldo para as grandes gestas nesta vida, mas a iniciação nos Mistérios parece predispô-lo para a última aventura, para a derradeira agonia: a morte, que, na realidade, o transformará no verdadeiro protetor de sua cidade e de seus concidadãos. E fato curioso, como se verá, alguns heróis, após a morte, passam a ter igualmente direito a um culto mistérico! O maior dos iniciados foi certamente Héracles, que mereceu inclusive o epíteto sagrado de Μύστης (M×stes), consoante o poeta alexandrino Lícofron, 1328, qualificativo, diga-se, de caminho, que não significa apenas iniciado, mas também iniciador nos Mistérios. Figurava inclusive o filho de Alcmena ao lado dos Dioscuros (Xen., Helênicas, 6,3,6) como o protótipo mítico do iniciado estrangeiro em Elêusis, tendo a Teseu como fiador ateniense41. Igualmente Hipólito (Eurípides, Hipólito, 24s) era iniciado nos Mistérios eleusinos. Aristeu o era, segundo Diodoro, 4,82,6, nos Mistérios de Dioniso. Se é tão pobre a documentação acerca da iniciação de heróis nos Mistérios, o mesmo não acontece com o culto mistérico que a muitos deles era prestado post mortem. Entre “esses muitos” estão os filhos de Medeia; Melicertes, o filho caçula de Ino e Átamas; os Dioscuros; Dríops; Hipodamia; Ino. Nos Mistérios de Andaina, na Messênia, o túmulo do herói Êurito estava localizado dentro do próprio templo (Paus., 4,3,10). A quase todos os Mistérios gregos, e até mesmo aos de Elêusis, estavam associados cultos heroicos, como os de Triptólemo (Paus., 1,38,6) e Eubuleu. Eumolpo possuía seu túmulo (Paus., 1,38,2) e Hipótoon, um templo na cidade sagrada de Deméter e Perséfone. Até mesmo os heróis tebanos, que tombaram na expedição dos Epígonos, foram sepultados em Elêusis (Plut., Teseu, 29,5). 8 O herói é, em princípio, uma idealização e para o homem grego talvez estampasse o protótipo imaginário da καλοκαγαθία (kalokagathía), a “suma probidade”, o valor superlativo da vida helênica. Aristóteles, Política, 7,1332b, é explícito, ao afirmar que os heróis eram física e “espiritualmente”, κατά τήν ψυχήν (katà tèn psykhén), superiores aos homens. Sob esse enfoque o herói surge aos nossos olhos externos e sobretudo “internos”, como alto, forte, bonito, solerte, destemido, triunfador... É bem possível que Perseu, Belerofonte, Teseu, Agamêmnon, Aquiles, Heitor, Diomedes, Ájax Telamônio, Meléagro, Páris, Jasão, Orestes, Peleu e tantos outros, que engalanam os grandes ciclos heroicos, merecessem “oniricamente”, epítetos até mais pomposos! De outro lado, segundo observa o já tão citado Angelo Brelich, esses seres extraordinários se notabilizam por certas formas específicas de criatividade, comparáveis às façanhas incríveis dos heróis civilizadores das sociedades arcaicas. Considerados autóctones42, a saber, como nascidos diretamente da “terra” e seus primeiros habitantes, são ancestrais de raças, povos e famílias importantes, como os cadmeus descendem de Cadmo; os cecrópidas de Cécrops; os argivos de Argos; os árcades de Arcas... Eméritos fundadores de cidades e colônias, inventam e revelam muitas instituições humanas, como as leis que governam a cidade, as normas da vida urbana, a monogamia, a metalurgia, a escrita, o canto, a tática militar. Instituem jogos esportivos; participam ativamente de guerras, da mântica, da iátrica e dos mistérios. E mais que tudo, em cometimentos gigantescos, varrem da terra os bandidos, as feras e os monstros... Mas este é tão somente um lado dessa personagem tão polimórfica e ambivalente, embora prototípica de tantas atividades humanas. Observando-a mais de perto, nota-se que a beleza e a bravura de Aquiles podem ser empanadas física e moralmente por caracteres monstruosos: um herói aparece igualmente e com muita frequência sob forma anormalmente gigantesca ou como baixinho; pode ter um aspecto teriomorfo e andrógino; apresentar-se como fálico; sexualmente anormal ou impotente; pode ser aleijado, caolho, ou cego; estar sujeito à violência sanguinária, à loucura, ao ardil e astúcia criminosa, ao furto, ao sacrilégio, ao adultério, ao incesto e, em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale dizer, dos limites impostos pelos deuses aos seres mortais. Alguns exemplos colhidos entre centenas de outros poderão dar uma ideia dos atributos contraditórios, da vasta complexio oppositorum desses seres “divinamente monstruosos”. De saída, como se está falando de atributos contraditórios, é conveniente lembrar que o herói tem a faculdade de ser tanto uma fonte quase inesgotável de bons serviços quanto de maldição, sobretudo quando ofendido nesta vida ou depois da morte, o que pode ser, de certa forma, confrontado com a ambivalência das divindades ctônias Erínias-Eumênides. Argos, que tantos benefícios trouxera à Argólida, enlouqueceu e induziu ao suicídio a Cleômenes, que violara o direito de asilo do santuário do herói, incendiando-lhe o bosque e fazendo perecer os suplicantes (Paus., 3,4,1). Mas vamos às anomalias: Héracles, dotado de três fileiras de dentes, possuía uma altura de mais de três metros. O gigantismo, porém, não é específico do principal herói grego: a altura, ou melhor, a “altitude” de Aquiles era de cinco metros e noventa e quatro centímetros! Os ossos de Orestes encontrados em Tégea permitem atribuir-lhe uma estatura de quatro metros e sessenta e dois centímetros! (Heród., 1,68). E, ao lado desses “píncaros heroicos”, poder-se-iam alinhar igualmente Teseu, Pélops, Aristômaco, Oto, Oríon43. Mas, paralelamente a esse gigantismo anormal, surgem heróis de baixa estatura, se bem que em documentação bastante rara e reticente, talvez para não lhes deslustrar a majestade física, a qual se concilia melhor com a tendência idealizante e com o conceito de superioridade. A Ilíada, II, 527ss já nomeia dois baixinhos: Ájax Oileu e Tideu. A este último se refere Atená, falando a Diomedes ferido, V, 801: Tideu, enfatiza a deusa, “era de baixa estatura, mas era um guerreiro”. Também Mínias era baixo. Ulisses, o solerte Ulisses, além de feio, era de pequena estatura. Na Odisseia, IX, 515s diz o Ciclope Polifemo, tendo Ulisses a seu lado, que sua cegueira pelo herói havia sido predita por um adivinho, mas que aguardava um homem alto e belo. Aliás, na Ilíada, III, 210, já se alude à baixa estatura do esposo de Penélope, o que é complementado por Lícofron, 1244, e Tzetzes, que chamam a Ulisses de Νάνος (Nános), nada menos que anão...44Outra deformidade comum dos belos e destemidos heróis é o teriomorfismo: Cécrops, já se mencionou, era ofiomórfico; Lico, representado sob a forma de lobo, era licomórfico e Egeu, sob a de cabra, era egimórfico. São muito numerosos os nomes de animais na mitologia heroica e, por vezes, esses nomes se adquirem através de metamorfoses, o que parece explicar que tais heróis pertenciam primitivamente “a mitos de origens de espécies animais”, vale dizer, trata-se de mitos de diferenciação de seres primordiais, que não são ainda nem totalmente homens, nem inteiramente animais. Desse modo, Céleo, no mito eleusino, é o picanço, o popular pica-pau; Alópeco, a raposa. Quanto a Arcas, cujo nome está ligado a árktos ou árkos, “urso”, percebe-se logo que é filho de Calisto, metamorfoseada em “ursa” por Ártemis, a “senhora dos animais”. Por vezes, a metamorfose nada tem a ver com o nome: Hécuba foi transformada em cadela (Eurípides, Hécuba, 1205ss); Hipômenes e Atalante, em leões (Apol., 3,105s); Io, em vaca (Hes., frag. 187). Como já se falou da “monstruosidade” do androginismo, além do gigantismo, nanismo e teriomorfismo, vamo-nos ocupar, agora, com as demais deficiências físicas dos heróis. Estes estão marcados por uma gama tão ampla de outras anomalias em seus corpos, que seria impossível, dentro de um capítulo, citar e comentar a todas. Mencionaremos, por isso mesmo, apenas as principais com seus respectivos portadores. Entre estas destacam-se a policefalia, a acefalia, a gibosidade, gagueira, coxeadura e cegueira. Policéfalo era Gerião (Hes., Teogonia, 285), enquanto Argos era polioftalmo. Molo, irmão (Diod., 5,79) ou filho (Apol., 3,17) de Deucalião, era acéfalo: cortaram-lhe a cabeça por haver tentado violentar uma ninfa ou uma jovem cretense. A estátua acéfala de Tritão em Tanagra (Paus., 9,20,4) repetia uma história análoga à de Molo. Míscelo, herói colonizador (Diod., 8,17), era corcunda. Lembremo-nos de que Tersites, além de corcunda, era coxo (Il., II, 216-219). Bato (Heród., 4,155) era gago e seu neto homônimo era coxo (Heród., 4,161). São muito numerosos os heróis coxos ou com defeitos e cicatrizes nas pernas, mas neste campo existem no mito várias atenuações, devidas à idealização dos heróis. Em certos casos a anormalidade das pernas ou dos pés é tão somente mencionada, sem uma ligação efetiva com o mito, como no caso de Édipo, que conserva apenas o nome de pés inchados, sem maiores consequências, aparentemente, para o mito! Em outras personagens, todavia, inteira ou parcialmente míticas, a coxeadura assume uma função mítica e religiosa: a deformidade, tida por castigo divino, passa a ser considerada como um obstáculo à sucessão ou como uma indignidade. Dos dois filhos mais velhos do rei ateniense Codro, Nileu não aceita ficar subordinado a seu irmão Médon, porque este é coxo (Paus., 7,2,1). Na história de Agesilau, que era coxo (Plut., Ages., 2,2,3,4), o mito se insere num contexto em parte determinado por um oráculo ambíguo, que adverte o povo acerca de um rei aleijado. Quanto a cicatrizes e ferimentos, eles normalmente se localizam nos pés, nos joelhos e pernas. Filoctetes é, sem mais, definido por Sófocles, Filoctetes, 486 e 1032, como χωλός (kholós) “coxo” e Télefo é cognominado aquele que tem “um ferimento na coxa” (Apol., 3,17). Em alguns casos, a cicatriz, particularmente, apresenta pouco relevo no conjunto do mito, mas enseja inserções importantes no relato: na Odisseia, XIX, 393, a cicatriz de Ulisses, além de provocar uma cena emocionante de ἀναγνώρισις (anagnórisis), de “reconhecimento” entre o herói e sua velha ama Euricleia, motiva uma longa narrativa a respeito da caçada ao javali. Aquiles possuía, como único ponto vulnerável de seu corpo, o calcanhar: é que, segundo uma variante do mito, o osso do calcanhar do pé direito do herói, ainda menino, se queimara na malograda tentativa de Tétis de imortalizar o filho, e Quirão o teria substituído por um osso do gigante Dâmiso. O mesmo Quirão, segundo já se comentou no Vol. II, p. 90, embora não fosse herói, mas o educador de heróis, também foi, sem oquerer, ferido, em torno do joelho, por uma flecha envenenada de Héracles (Apol., 2,85). Numa das variantes do mito de Belerofonte, segundo a grandiosa exposição pindárica (Ístmicas, 7,44ss), documentada por Aristófanes de Bizâncio (257-180 a.C.), verbete Ταρσός (Tarsós), o herói querendo escalar o Olimpo, cavalgando Pégaso, foi lançado do céu à terra. O local em que ele tombou, a cidade de Tarso, recebeu tal nome porque o herói fraturou o tarso do pé esquerdo! Outro ponto sensível na “monstruosidade” física dos heróis é a cegueira, que aparece com grande frequência entre os adivinhos míticos, Tirésias, Eveno, Fórmio e entre poetas míticos, como Demódoco (Odisseia, VIII, 64), semilendários, como Homero (Tucídides, 3,104,5) e históricos, como Estesícoro45. Existem, porém, muitos outros heróis, que, por um motivo ou outro, são cegos ou perdem a visão por efeito de um ato criminoso: o gigantesco caçador Oríon foi cegado pelo rei Enópion, porque aquele lhe violentara a esposa; Fênix o foi pelo próprio pai Amintor, por lhe ter seduzido a concubina, chamada Clícia ou Ftia (Aristófanes, Acarnenses, 421; Apol., 3,175); Anquises, pai de Eneias, perdeu a vista, porque, um dia, bêbado, se vangloriou de seus amores com Afrodite (Sérvio M. Honorato, Eneida, 2,35); Erimanto ficou cego por ter visto a mesma deusa nua. A cegueira, todavia, “não é a única forma de anormalidade”: há heróis monoftalmos, como o famoso Óxilo, que, por sinal, às vezes, é citado não diferentemente do herói germânico Odin, como trioftalmo (Paus., 5,3,5; Apol., 2,175), desde que se somem ao seu os olhos de seu cavalo, segundo se comentou no Vol. I, p. 107. Outra observação importante, conforme acentua Brelich, é que, “de modo surpreendente, a anormalidade dos olhos resulta da anormalidade das pernas, havendo entre os dois defeitos físicos, tão diferentes na realidade, uma singular equivalência mítica”46. Não se trata de acasos, enfatiza o mesmo autor, em que o herói aparece ora coxo, ora cego, como Édipo, que, “coxo” no nome, acabou por rasgar os próprios olhos, mas antes de fatos em que as duas deficiências físicas se apresentam alternativamente, mercê de um castigo divino, por exemplo. Licurgo, de quem já se fez menção, numa das variantes de seu mito, desejando, por ódio a Dioniso, cortar-lhe todos os pés de videira, feriu ou cortou a própria perna; na versão homérica (Il., VI, 139), em punição da hostilidade ao mesmo deus, o rei dos edônios, além da perna, perdeu igualmente a vista. O supracitado Anquises, que ficara cego, por ter imprudentemente relatado seus amores com Afrodite, na variante de Sófocles, frag. 344, se tornara também coxo47. O acontecido com Oríon é ainda mais original, porque suas duas deficiências procedem de dois mitos independentes: um é o mito da cegueira; outro aquele em que um escorpião lhe mordeu mortalmente o calcanhar (Nicandro, Theriaká, 13ss – “Mordeduras de animais selvagens e seu tratamento”). Há um outro ângulo ainda mais sério na “monstruosidade” do herói: seu comportamento social, ético e moral. Não apenas Héracles, mas vários outros são vítimas da polifagia, isto é, de um apetite insaciável. Lepreu, epônimo da cidade de Lépreon, na Acaia, desafiou, entre outros, a Héracles para uma competição glutônica. Cada um devorou um boi inteiro. Por fim, vencido, Lepreu foi morto por seu rival (Paus., 5,5,4). Também Sileu enfrentou ao filho de Alcmena para um concurso, mas, dessa feita, o vencedor seria o que bebesse mais. Igualmente vencido, Sileu foi assassinado. Mas a polifagia não está restrita ao ciclo de Héracles. É verdade que este é, por vezes, chamado búphagos, “que devora um boi”, mas existe um glutão, ou mais de um com o nome próprio de Búfago, sem nenhuma relação com Héracles. Idas, irmão de Linceu, dividiu um boi em quatro porções, mas acabou por devorá-lo sozinho (Apol., 3,135). Na Odisseia, VII, 215ss e IX, 5ss, para decepção dos idealizadores da figura de Ulisses, o grande comilão é exatamente o protagonista, citado inclusive na República de Platão, 3,390B; 9,162. Ateneu (séc. III d.C.), em sua obra importantíssima Dipnosofistas, “Banquete de Sofistas”, ao falar da polifagia (10,411Ass), afirma que Adefagia era detentora inclusive de um culto na Sicília (416B) e acrescenta que diversos atletas, “agonistas”, entre os quais heroicizados, possuíam igualmente um apetite hercúleo: Mílon de Crotona, Titormo da Etólia, Astíanax de Mileto. Ao lado, porém, da proverbial polifagia, os heróis cultuavam uma outra adefagia: seu apetite sexual era tão voraz quanto seu estômago. Como sempre, o campeão é Héracles: numa só noite, ele fecundou as cinquenta filhas de Téspio (Paus., 9,27,7). Outros, mais comedidos (Apol., 2,66), julgam que o fato se passou em cinquenta noites consecutivas, mas os “conciliadores”, para não racionalizar, em demasia, a potência hercúlea, transformaram o prodigioso em “fantástico”: a façanha teria sido consumada em sete noites sucessivas, possuindo o herói a sete tespíades por noite. A que sobrou, serviu de sobremesa... Não para aí, no entanto, o descomedimento sexual dos heróis. Existem ainda duas modalidades de violência carnal que os mesmos praticam constantemente: o rapto de mulheres e a violência propriamente dita, traduzida sob a forma de adultério, estupro, incesto... Teseu, o “ideal do espírito ateniense”, raptou a Helena, a mesma que Páris ou Alexandre raptaria mais tarde, quando a menina contava apenas nove anos de idade... Raptou, além do mais, a lindíssima princesa minoica Ariadne e a amazona Hipólita, o que provocou a guerra das Amazonas contra Atenas. Acompanhado de seu fraterno amigo Pirítoo, desceu ao Hades e tentou raptar Perséfone! Teseu e Páris, porém, não são os únicos: os Dioscuros, Castor e Pólux, se apossaram violentamente das leucípides, filhas de Leucipo (Teóc., 20,137ss); Cadmo se apossa da princesa Europa; Aquiles rapta, em Tanagra, as estratonices. E os exemplos poderiam multiplicar-se, como os que vamos apontar em relação à violência carnal propriamente dita e, nesse contexto, por vezes, nem as deusas escapam... Oríon, que, na ilha de Quios, já usara de violência contra a esposa ou filha de seu hospedeiro Enópion, tentou ainda estuprar a deusa Ártemis ou, segundo outros, a tentativa de estupro teria sido contra a fiel companheira desta, a hiperbórea Ópis (Apol., 1,27) como já o haviam tentado contra a mesma deusa Actéon e Alfeu, e igualmente fizera Títio contra Leto (Odiss., XI, 580s) e Ixíon contra Hera (Pínd., Píticas, 2,26s). Mais numerosos ainda são os casos de tentativa de violência sexual praticada pelos heróis contra indefesas vítimas humanas: Ájax violenta Cassandra; Sísifo deflora Anticleia, filha de Autólico e mãe de Ulisses; Héracles se apossa pela força de Auge, que se torna mãe de Télefo. “O mais excelente nos combates e nos conselhos” (Pínd., Nemeias, 8,7s); “o mais religioso dos gregos” (Plut., Teseu, 10,2); “o mais piedoso de todos” (Apol., 3,159), o justíssimo Éaco, também ele possuiu pela violência a Psâmate (Apol., 3,158)... Diferentemente do incesto involuntário de Édipo, que se pode classificar como um erro trágico, a infração de muitos heróis, tanto nos incestos quanto nos adultérios, é consumada em sã consciência. Tieste pratica incesto com a própria filha Pelopia; Eneu com a filha Gorge, de que nasce Tideu; Óxilo possui a própria irmã Hamadríada; Erecteu, a filha Prócris; Macareu, a irmã Cânace! Também os adultérios são muitos. Não se trata nestes de violência, mas de sedução. Aérope, mulher de Atreu, torna-se amante de Tieste; Egisto, na ausência de Agamêmnon, seduz-lhe a esposa Clitemnestra; Prócris se deixa induzir em adultério por uma personagem que ela ignora tratar-se de seu próprio marido travestido. Os numerosos adultérios de Penélope, “a fiel esposa de Ulisses”, que, a bem da verdade, só aparecem na literatura a partir do século III a.C., mas que parece pertencerem ao estrato pré-homérico do mito, desfiguram muito a imagem idealizada dessa ínclita senhora! Em violento contraste com essa fome sexual, tem-se, no mito, também a impotência heroica! Esclarece com certa razão Brelich que, se Freud tivesse conhecido o mito do herói Íficlo, filho de Fílaco, que nada tem a ver com Íficles, filho de Anfitrião e Alcmena, teria certamente criado um termo psicanalítico, Complexo de Íficlo, em vez de complexo de castração. Há duas explicações para a impotência desse herói: na primeira, Íficlo, só ao ver a faca ensanguentada com que o pai estava castrando os carneiros, perdeu a virilidade; na segunda, estando o pai a podar as árvores (note-se que em grego e em latim um mesmo verbo pode ser empregado no sentido de podar e castrar: καθαίρέιν [kathaírein] e putare), quis afastar o filho, tendo, para isso, lançado a faca para cravá-la numa árvore perto do lugar em que estava Íficlo, mas fê-lo com tanto azar, que aquela feriu os órgãos genitais do filho, tornando-o impotente. Igualmente Bato, fundador da colônia grega de Cirene na África, era, ao que tudo indica, um herói euiratus. O homossexualismo é outra presença constante no mito dos heróis. Vamos citar, tão somente, os três exemplos clássicos no mundo dos “homens”, uma vez que alguns deuses, se não o praticaram habitualmente, tiveram em várias ocasiões comportamentos homossexuais, como é o caso de Zeus com Ganimedes e de Apolo com Jacinto. Laio, hóspede de Pélops, raptoulhe, por paixão incontrolável, o filho Crisipo (Apol., 3,44), o que irá provocar a “culpa primordial” dos labdácidas, como se mostrará no mito de Édipo. Tântalo, personagem extremamente contraditória, rapta o jovem troiano Ganimedes. É tradição mítica que o homossexualismo tenha sido introduzido na Hélade por Laio, mas Apolodoro, 1,6, afirma categoricamente que “o primeiro de todos a amar o masculino” foi Tâmiris, cantor de Trácia, o qual já aparece na Ilíada, II, 595, passo em que, tendo desafiado as Musas, estas, após vencê-lo, fizeram do mesmo um “impotente”, πήρόν (perón) no grego homérico. Nestas circunstâncias, diga-se de passagem, é possível conciliar as duas tradições: Laio teria sido o primeiro homossexual ativo e Tâmiris, o passivo. A violência dos heróis, no entanto, não se limita ao campo sexual. Talvez sua tarefa mais brutal seja “matar”, já feita abstração da guerra, das lutas e das justas, “espaços naturais do derramamento de sangue e da atividade característica do herói”. Afora tudo isto, são poucos os heróis que não tenham cometido, ao menos, um homicídio. “A motivação desses homicídios, argumenta Brelich, é tão vária, muitas vezes tão contraditória e sobretudo tão desproporcionadamente insignificante, que dá a impressão de que na maior parte das vezes seja puramente secundária: o importante é o homicídio e não sua causa”48. E se o introdutor do homicídio (é que cada aspecto da vida humana, bom ou mau, possui um herói como iniciador) foi Ixíon (Ésquilo, Eumênides, 718), Héracles, que matou tantas vezes, alicerçado em motivações várias, foi igualmente o iniciador dos homicídios “por acaso”, quase por uma distração. Conta Pausânias, 2,13,8 que o filho de Alcmena, em seguida a uma simples irritação, matou com o polegar ao pequenino Êunomo, copeiro do rei Eneu. Heróis e heroínas matam “por acaso” ou, segundo expressão técnica, praticam o φόνος ἀκούσιος (phónos akúsios), o “homicídio involuntário”, cuja eficácia literária é reconhecida por Aristóteles49. Foi assim que Perseu, lançando um disco, matou, sem o querer, a seu avô Acrísio e, de maneira semelhante, Óxilo causou a morte de seu irmão Térmio (Paus., 5,3,7). Peleu, arremessando mal a lança, matou o sogro Eurítion (Apol., 3,163) na célebre caçada da Caledônia; Tideu assassinou involuntariamente ao irmão Olênio, Anfitrião ao sogro Eléctrion, Céfalo a esposa Prócris. O exemplo mais antigo na literatura se encontra na Ilíada, XXIII, 85ss, em que Pátroclo, οὐκ ἐθέλων (uk ethélon), “sem o querer”, mata Eanes, filho de Anfídamas. Uma variante do mito é o caso em que o herói, querendo assassinar alguém, mata, por fatalidade, a um parente, como Aédon, que, desejando exterminar os filhos de Níobe, golpeia o próprio filho. Uma segunda variante é aquela em que o herói, querendo matar a uma pessoa, o faz, mas logo em seguida descobre tratar-se do próprio pai: além do caso de Édipo, que mata a Laio, temse no mito o episódio de Altêmenes, que mata a seu pai Catreu, confundindo-o com um pirata (Apol., 3,16). Há, todavia, muitas outras causas que levam o herói à prática de homicídio: mata por inveja, como Pélops assassina a Estinfalo (Apol., 3,159) ou como Peleu e Télamon, que matam a seu meio-irmão Foco; por ciumes, como Io que liquida os filhos de Temisto; por vingança, como Anfião e Zeto, que assassinam a Dirce; “por encomenda”, como Alcméon, que, a pedido de seu pai Anfiarau, mata a própria mãe Erifila (Apol., 3,86); por loucura, como Héracles, que mata os próprios filhos tidos com Mégara. Uma observação importante é que, na lista negra de homicídios praticados por heróis, a percentagem de parentes assassinados é muito grande: pais, como Laio, Agamedes, Têmenos (Apol., 2,178); mães, como Clitemnestra, Erifila; filhos, como Toxeu, assassinado por Eneu, ou os de Héracles, bem assim os de Ino; irmãos, como Etéocles e Polinice; maridos, como os quarenta e nove assassinados, numa só noite, pelas Danaides, suas esposas; esposas, como Mégara, morta por Héracles (Eur., Héracles, 999-1000), ou Antíope, assassinada por Teseu (Ov., Heroides, 4,119); sogros, como Eléctrion, que morre às mãos de Anfitrião e ainda se poderia ir mais longe... Havia até mesmo, na Antiguidade, catálogos em que se registraram esses tipos violentos de assassinatos entre familiares. Um exemplo bem claro são as chamadas Fabulae (Fábulas)50de C. Higino Júlio, erudito do século I a.C. Nas Fábulas 238, 239, 240, 241, 244 e 245 pode-se ler: 238 (qui filias suas occiderunt, os que mataram suas filhas), 239 (matres quae filios interfecerunt, mães que assassinaram seus filhos), 240 (quae coniuges suos occiderunt, esposas que eliminaram seus maridos), 241 (qui coniuges suas occiderunt, maridos que mataram as mulheres), 244 (qui cognatos suos occiderunt, pais que assassinaram os filhos), 245 (qui soceros et generos occiderunt, os que mataram sogros e genros)... Vamos estampar mais um tipo de crime nessa ânsia sanguinária dos heróis e, em seguida, passaremos a outras deformações dessas criaturas extraordinárias, mas profundamente marcadas pela complexio oppositorum. O homicídio pode, além do mais, ser conjugado com o sacrilégio: Ájax Oileu violenta Cassandra junto ao altar da deusa Atená e Neoptólemo mata o rei Príamo sobre o altar de Zeus Herquio. Aquiles, apaixonado pelo filho caçula de Príamo, Troilo, assassina-o dentro do templo de Apolo. A verdade sobre o lado negro dos heróis, porém, não termina por aqui. Os atos de intemperança sexual e a violência sanguinária não esgotam os excessos de sua natureza irrequieta, irascível e tumultuosa, porquanto o herói pratica outrossim e com frequência a arte sutil da astúcia e da ladroagem. Héracles, quase sempre se inicia por ele, furtou a valiosa manada de éguas de Ífito e, quando este, que ignorava a identidade do ladrão, saiu para procurá-las, o herói o matou traiçoeiramente, violando o direito de hospitalidade (Odiss., XXI, 22ss). Como forma ainda mais grosseira de traição basta lembrar o episódio dos Molíones, Ctéato e Êurito, que, a serviço de Augias, derrotaram numa batalha ao herói. Mais tarde, quando da celebração dos terceiros Jogos Ístmicos, os Molíones foram enviados para representá-lo na festa e Héracles os matou numa emboscada (Pínd., Olímpicas, 10,25ss; Paus., 5,2,1). Na epopeia, o supremo “ideal da astúcia”, cuja intenção dolosa e desonesta é escamoteada sob a forma e o epíteto de prudência, de habilidade, e de trickster, é representado por Ulisses. É curioso, todavia, e de feição contraditória o fato de Homero caracterizar a verdadeira natureza do herói, lembrando que, genealogicamente, Ulisses era neto de Autólico e que este fora instruído por Hermes na arte do perjúrio e do furto (Odiss., XIX, 395ss). Há de se recordar ainda, como aliás se verá no mito do herói, a torpe traição por ele arquitetada contra seu grande rival Palamedes, que, em função da mesma, foi inocentemente lapidado (Apol., 3,8). Ao lado de Ulisses, mestre da solércia criminosa e de seu avô Autólico, que, na Ilíada, X, 267, aparece explicitamente como ladrão, se alinham outros, tão ou mais célebres que os dois anteriores. Sísifo, primeiro rei de Corinto, de que se apossou pela violência, foi tão astuto, segundo se comentou no Vol. I, p. 238, que, por duas vezes, conseguiu ludibriar a própria Morte (Thánatos). Não menos criminosamente arguto foi Tântalo, igualmente comentado no Vol. I, p. 83s, que furtou dos deuses o néctar e a ambrosia (Pínd., Olímpicas, l,60ss). Jasão e Medeia, através de uma “grande cilada”, μἐγα δόλος (mégas dólos), comenta Apolônio de Rodes, Argonáuticas, 4,421ss, despedaçaram Apsirto, irmão da própria Medeia. Com a ajuda de Mírtilo, segundo se viu no Vol. I, p. 86, Pélops usando de um estratagema sórdido, matou a Enômao. Foi através de uma fraude contra Ájax Telamônio que Menelau ganhou as armas de Aquiles. As citações e exemplos poderiam ir ainda muito longe, mas o que se deseja acentuar é a ambivalência dessa “criatura” singular. Suas inúmeras qualidades e serviços extraordinários em favor da pólis e da comunidade, mas também suas fraudes, roubos, solércia criminosa, bem como todas as violências e “monstruosidades” anteriormente apontadas, não se aplicam a este ou àquele tipo de herói, mas, em maior ou menor escala, o todo dessa vasta complexio oppositorum faz parte integrante da vivência heroica. 9 Se o herói tem um nascimento difícil e complicado; se toda a sua existência terrena é um desfile de viagens, de arrojo, de lutas, de sofrimentos, de desajustes, de incontinência e de descomedimentos, o último ato de seu drama, a morte, se constitui no ápice de seu πάθος (páthos), de sua “prova” final: a morte do herói ou é traumática e violenta ou o surpreende em absoluta solidão. Afirma Brelich que ainda não se fez uma estatística, e é pena, mas acrescenta que a maioria dos heróis morre tragicamente. Uns se matam, como Ájax Telamônio, Hêmon, Antígona, Jocasta, Fedra, Egeu. A guerra, as justas e as vinganças são as grandes ceifadoras. Basta abrir a Ilíada e o final da Odisseia, que se passa a nadar num mar de sangue. Da morte de Reso, Pátroclo e Heitor até o massacre dos pretendentes, no XXII canto da Odisseia, a cruenta seara do deus Ares produziu frutos em abundância! Quanto ao assassínio pode ser o mesmo agravado, segundo se viu mais acima, pelo grau de parentesco entre o criminoso e a vítima ou ainda pela crueldade com que foi praticado: Foco é sacrificado pelos próprios irmãos Peleu e Télamon; Agamêmnon é traiçoeiramente morto pela esposa Clitemnestra e esta pelo próprio filho Orestes. Alguns, além de mortos, são esquartejados, como Orfeu (Apol., 1,14), Apsirto e Penteu (Eur., Bacantes, 1125ss). Outros o são igualmente, mas por animais: Lino e Actéon foram dilacerados por cães; Abdero (Apol., 2,97), Glauco, Diomedes (Diod., 4,15,3) e Hipólito (Verg., En. 7,767) foram despedaçados por éguas e cavalos. Uns tantos são fulminados por Zeus, como Asclépio, Capaneu (Sóf., Antígona, 127ss), Salmoneu (Diod., 4,68,2), Erecteu (Higino, Fab., 46), Idas (Pínd., Nemeias, 10,71), Licáon ou seus filhos (Apol., 3,98). Por vezes os heróis são vítimas de acidentes fatais: Orestes, o argonauta Mopso, Ofeltes (Apol., 3,65), Épito (Paus., 8,4,7), Citéron, Eurídice (Verg., Geórgicas, 4,457), Hespéria (Ov., Metamorfoses, 11,769ss) são mortos, em circunstâncias várias, por mordidelas de serpentes; Héracles, tão valente e vigoroso, incendiou-se num simples manto que, por ciumes, lhe enviara a esposa Dejanira. Desesperado de dor, o gigantesco herói, segundo se verá, lançou-se numa fogueira no monte Eta. Teseu, que vencera o Minotauro, foi empurrado pelas costas para um abismo. Ulisses, o mais solerte dos gregos, foi assassinado por um simples adolescente, que, por acaso, era seu filho... Aquiles pereceu, ingloriamente, por uma simples flecha lançada talvez ao acaso por Alexandre ou Páris, o menos autêntico dos heróis troianos da Ilíada. Também um herói, como Édipo, pode morrer, ouvindo apenas os balbucios do silêncio, em absoluta solidão. A morte do herói, todavia, se constitui no clímax de sua δοκιμασία (dokimasía), do “conjunto de provas” por que passou esse espancador de trevas. A morte é seu último grau iniciático, quando então, como se expressa Sófocles no último verso de Édipo em Colono, 1779, πάντως γὰρ εχει τάδε κῦρος (pántos gàr ékhei táde kyros), “quando então a história se fecha em definitivo”. Acta est fabula, terminou a tragédia ou a comédia... É a morte, no entanto, que lhe confere e proclama a condição sobre-humana. “Se, por um lado, diz Eliade, não são imortais como os deuses, por outro os heróis se distinguem dos seres humanos pelo fato de continuarem a agir depois da morte. Os despojos dos heróis são carregados de temíveis poderes mágico-religiosos. Os seus túmulos, relíquias, cenotáfios atuam sobre os vivos durante longos séculos. Em determinado sentido, poderíamos dizer que os heróis se aproximam da condição divina graças à sua morte: gozam de uma pós-existência ilimitada, que nem é larvária nem puramente espiritual, mas consiste numa sobrevivência sui generis, uma vez que depende dos restos, traços ou símbolos dos seus corpos. Com efeito, e contrariamente ao costume geral, os despojos dos heróis são enterrados no interior da cidade; são mesmo admitidos nos santuários”51, como acontece com os “restos mortais” de Pélops e Neoptólemo, guardados respectivamente nos templos de Zeus em Olímpia e no de Apolo em Delfos. Seus túmulos e cenotáfios, no centro da Ágora, transformam-se no centro do culto heroico, onde se realizam sacrifícios, não raro acompanhados de lamentações fúnebres e até de “coros trágicos”, como acontecia em Sicione, em homenagem a Adrasto (Heród., 5,67). Em Esparta, consoante Xenofonte, República dos Lacedemônios, 15,9, os reis mortos eram cultuados “não como homens, mas como heróis” e acrescenta Heródoto, 6,58, que dessa forma de veneração fazia parte igualmente a lamentação ritual. Desse modo, a morte do herói transforma-o em δαίμων (daímon), num intermediário entre os homens e os deuses, num escudo poderoso que protege a pólis contra invasões inimigas, pestes, epidemias e todos os flagelos. Partícipe de uma “imortalidade” de cunho espiritual, garante a perenidade de seu nome, tornando-se, destarte, um arquétipo, um modelo exemplar para quantos “se esforçam por superar a condição efêmera do mortal e sobreviver na memória dos homens”. Na realidade, a grande tarefa desse dáimon é chegar à unidade na multiplicidade. Sua morte é a anagnórisis, o conhecer-se por inteiro. Com ela se fecha o uróboro. Sua vitória final, seu triunfo derradeiro desencadeiam e liberam novamente o fluir da vida no corpo do mundo. Em síntese, o herói é o umbigo do mundo, através do qual irrompem as energias que alimentam o cosmo. Quanto ao destino final do herói, vale dizer, no que se refere à sua escatologia, não é fácil determiná-lo, seja por carência de documentação, seja porque jamais houve na Hélade uma doutrina permanente sobre os novíssimos: existiram e coexistiram na mesma, de Homero a Plotino, tantas escatologias quantos os grandes “momentos culturais” por que passou a pátria de Sófocles. Com efeito, uma das singularidades da religião grega face às demais na Antiguidade é que aquela não possuiu uma teologia organizada. Esse fato ajuda a explicar as tremendas oscilações escatológicas que surgiram, do século IX a.C. ao século III d.C. Se na Odisseia, XI, 467ss, Aquiles, em companhia de “quase” todos os heróis aqueus, está mergulhado nas trevas do Hades, este mesmo herói, em outras tradições, participa da luminosidade eterna da ilha de Leuce. O próprio Homero não sabe muito bem o que fazer com Héracles: no mesmo canto XI, 601ss da Odisseia, Ulisses vê nas sombras do Hades o eídolon, “o corpo astral” do grande herói, mas “ele próprio”, αὐτός (autós), está no Olimpo em companhia de Hebe... O destino de alguns, porém, está claro e definido: Ganimedes foi elevado aos céus; o grande Héracles, “apesar de Homero”, certamente se banqueteia inteiro, em companhia de Hebe no Olimpo; o egrégio Menelau, sua Helena e outros se deliciam na Ilha dos Bem-Aventurados, cujo rei é o agora sorridente Crono que, após uma longa passagem pelo Hades, fez as pazes com Zeus na “doutrina órfica” e se tornou soberano de imortais menores! Alguns foram tragados vivos pela Mãe-Terra, como Trofônio, Anfiarau, Ceneu, Altêmenes, e devem ser felizes lá embaixo. Uns quantos, como Ixíon, Sísifo, Tântalo, as Danaides, foram condenados, no Tártaro, a um suplício eterno! Com respeito à sorte dos demais, e são centenas e centenas, quase tudo se ignora. Talvez continuem a viver e a agir, como os heróis epictônios e hipoctônios de Hesíodo, segundo se explicou no Vol. I, p. 185. Seja como for, uma vez que foram heróis, após sua atormentada carreira pelo vale de lágrimas, devem ter passado, na feliz expressão de Brelich, “para uma outra espécie de existência, formalmente semelhante àquela dos deuses”, de onde continuam a exercer influência sobre os acontecimentos humanos. Para encerrar este capítulo, uma derradeira indagação se impõe: em que consistiria, afinal, a tão decantada e comprovada ambivalência heroica? O herói acumula, como fartamente se mostrou, atributos contraditórios. De natureza excepcional, ambivalente, não raro aberrante e monstruosa, o herói se revela resplandecente e tenebroso, simultaneamente bom e mau, benfeitor e flagelo. Dominado por uma ὅβρις (hýbris) incoercível, sua “démesure”, seu descomedimento não conhece fronteiras nem limites. Se Antígona (Sóf., Antígona, 460ss) e Alceste (Eur., Alceste, 280ss) foram capazes, a primeira de morrer, para que o irmão fosse sepultado, e a segunda de entregar-se voluntariamente nos braços de Thânatos, por amor aos filhos e ao marido, ao pedido de Heitor (Ilíada, XXII, 338ss), agonizante a seus pés, para que não lhe entregasse o corpo aos cães, mas à solicitude de seus pais e amigos troianos, Aquiles, ardendo em hýbris, respondeu que desejaria que o ódio o levasse a dividir o corpo do esposo de Andrômaca em pedaços, para devorá-los crus! Ora, atitudes tão antagônicas demandam forçosamente uma explicação, que não parece muito difícil. Dotado de timé e areté, mais perto dos deuses que dos homens, o herói está sempre numa situação limite e a areté, a excelência leva-o facilmente a transgredir os limites impostos pelo métron, suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolência (hýbris). Foi necessário que Apolo, no canto XXII, 8ss da Ilíada, lembrasse a Aquiles, que avançava como um furacão contra Ílion, o abismo insondável que se interpõe entre um deus e um mortal, embora premiado com a timé e a areté. Tal conclusão, porém, explica, de certa forma, as atitudes ambíguas do herói, mas não as justifica. É preciso puxar o fio de mais longe. Mircea Eliade viu a solução do problema, como não poderia deixar de ser, no afastamento do herói para o illud tempus, para o tempo das origens: “Todos esses traços ambivalentes e monstruosos, esses comportamentos aberrantes, evocam a fluidez do tempo das ‘origens’, quando o ‘mundo dos homens’ ainda não havia sido criado. Nessa época primordial, as irregularidades e os abusos de toda espécie (isto é, tudo aquilo que será denunciado mais tarde como monstruosidade, pecado ou crime) suscitam, direta ou indiretamente, a obra criadora. No entanto, é em consequência das suas criações – instituições, leis, técnicas, artes – que surge o ‘mundo dos homens’, onde as infrações e os excessos serão proibidos. Depois dos heróis, no ‘mundo dos homens’, o tempo criador, o illud tempus dos mitos, está definitivamente encerrado”52. Angelo Brelich usa, para explicar as “mil faces” do herói, como diria Joseph Campbell, do mesmo processo de Eliade, isto é, do recuo do herói ao illud tempus, ao tempo das origens. Numa tradução mais ou menos livre, com alguns enxertos nossos, eis o pensamento de Brelich: Embora toda e qualquer generalização esteja sujeita a restrições, pode-se dizer, grosso modo, que todas as religiões do tipo arcaico empenharam-se em garantir e perpetuar a ordem existente, o status quo vigente. Em todas ou em quase todas, no entanto, tinha-se consciência de que esta ordem atual – ordem do cosmo, da natureza, da sociedade, das instituições – não existiu desde todo o sempre, ab aeterno, mas se formou de uma vez por todas num passado mais ou menos distante, que se pode chamar “o tempo do mito”, o qual confere à ordem existente seu valor sagrado e imutável. Pois bem, foi daquele tempo qualitativamente diverso do tempo profano que surgiu, mediante a ação de seres extraordinários, a grande transformação das coisas, a qual acabou por lhes outorgar o estado atual. É mister, todavia, acentuar, mais uma vez, que tudo quanto existe possui suas raízes naquele mundo ambivalente dos começos, um mundo integralmente diferente do atual. Eis o motivo por que, no tempo presente, para consolidar, vez por outra, a ordem permanente, ameaçada pelo desgaste do tempo profano, é preciso recorrer ao “tempo do mito”, reatualizando-o com toda a sua desordem primordial, para fazer ressurgir do mesmo, e de novo, a ordem permanente. Donde se conclui que a ambivalência do “tempo do mito”, condição da ordem e fonte de sua sacralidade, “mas, simultaneamente, desordem, o reverso da ordem atual (no bem ou no mal, paradisíaco ou monstruoso, se não ambos ao mesmo tempo), é um estado de imperfeição, um estado simplesmente não-humano. Pois bem, as personagens que agem nessa ambivalência são igualmente monstruosas e imperfeitas, mas se constituem simultaneamente nos agentes sobre-humanos da transformação criadora de que surge a ordem atual”. A ambivalência do herói mítico, seu lado luminoso e sua face escura, essa notória complexio oppositorum, fazem parte integrante, ipso jacto, do todo de sua personalidade, plasmada illo tempore, no tempo das origens. E é como agente e garante da transformação criadora, de que surgiu a ordem existente no mundo atual, que é também, no fundo, obra sua, que o herói está sempre pronto para defender o status quo vigente. A propósito desse esforço das religiões arcaicas em garantir e perpetuar a ordem existente, talvez não seja fora de propósito acrescentar que, para K. Kerényi53, bem assim, com mais prudência, para Brelich, os deuses são efetivamente “as formas” sobre as quais uma determinada civilização politeísta organizou, por articulação, a ordem que essa mesma cultura quer seja permanente em seu mundo. Experiência e criação – ambas historicamente condicionadas – não se separam jamais nitidamente, pois que toda experiência já é criação e toda criação se fundamenta na experiência. As divindades não são “realidades” simplesmente “descobertas” e passivamente contempladas, mas sobretudo formas “impostas” por uma cultura ao próprio mundo. Com todos os tipos particulares de culto, incluindose neles a narração dos mitos, uma religião visa a reafirmar, a consolidar e a plasmar os deuses, que não são imortais simplesmente porque a própria realidade é permanente, coisa, aliás, discutível, por isso que é diversa a realidade de cada cultura, mas que devem ser imortais, na medida em que uma civilização religiosa do tipo arcaico almeje que o mundo conserve a ordem e a forma construídas por essa mesma civilização. A tendência conservadora, característica das religiões antigas, é a fonte e o garante da imortalidade dos deuses. Os heróis, esses ἡμίθεοι (hemítheoi), esses semideuses, mais próximos dos deuses que dos homens, esses indispensáveis intermediários entre os mortais e os imortais, tiveram também por função, mantendo o status quo, apregoar a imortalidade de seus “pais”. E os psiquiatras, como visualizam o herói? Vamo-nos restringir ao capítulo Os mitos antigos e o homem moderno, do Dr. Joseph L. Henderson, inserido em obra importante, já por nós citada, da autoria de Jung e mais cinco excelentes colaboradores54. Não se traduzirá nem tampouco se resumirá o capítulo por inteiro, mas se fará apenas uma síntese daquilo que se julga indispensável para uma visão mais ampla do que se expôs nesta Introdução ao mito do herói. Iniciando por consignar que os mitos do herói variam muito em suas particularidades, mas, quando observados mais de perto, vê-se logo que todos são estruturalmente muito semelhantes, o psiquiatra norte-americano afirma que, não obstante terem sido desenvolvidos por grupos ou indivíduos comprovadamente sem nenhum contato, todos esses mitos possuem um modelo universal, vale dizer, todos têm por infraestrutura um arquétipo. Se é de todo impossível pensar num contato cultural entre tribos africanas, os incas peruanos e os gregos, é possível, todavia, descobrir em todas essas culturas o relato do nascimento complicado de um menino, suas primeiras mostras de força sobre-humana, sua rápida ascensão ao poder ou sua proeminência, as lutas gigantescas e triunfais contra monstros e forças do mal, seus desvios, motivados pela hýbris e sua queda, devida à traição ou o sacrifício “heroico”, cujo desfecho é a morte, não raro trágica. “Tal modelo, afirma o psiquiatra em pauta, possui significado psicológico tanto para o indivíduo como para toda uma sociedade, que tem uma necessidade análoga de estabelecer a identidade coletiva”55. Existe uma outra característica importante do mito do herói, que fornece uma boa pista para análise do mesmo. Em muitos dos relatos míticos heroicos, a primitiva fraqueza da personagem é compensada com a ajuda, sob forma hierofânica, de figuras tutelares ou guardiãs, que o assistem na realização de tarefas que o herói jamais poderia executar sozinho. No mito grego, a presença de divindades protetoras é muito comum: Eneias era protegido por Afrodite; Teseu era guardado por Posídon; Perseu por Atená; Hipólito por Ártemis; Orestes por Apolo; Aquiles, além de Tétis, estava sob a guarda do centauro Quirão. “Essas figuras divinas ou semelhantes a deuses são os representantes simbólicos da totalidade da psiqué, a maior e a mais abrangente identidade que prodigaliza a força de que carece o ego pessoal. Essa incumbência específica de tutela indica que a função essencial do mito do herói é desenvolver a consciência do ego individual, para que se dê conta de sua própria força e fraqueza, o que lhe servirá de respaldo para as grandes e duras tarefas que terá pela frente. Quando o indivíduo superou a prova inicial e entra na fase madura da vida, o mito do herói perde sua importância. A morte simbólica do herói convertese, por assim dizer, na consecução da maturidade”56. É preciso levar em conta, no entanto, que o esquema acima, traçado pelo Dr. Henderson, é por demais abrangente, uma vez que engloba um ciclo completo, do nascimento à morte. É essencial reconhecer, nas próprias palavras do autor, que em cada uma das etapas deste ciclo “existem formas especiais da história do herói aplicáveis ao estágio particular alcançado pelo indivíduo no desenvolvimento da consciência de seu ego e com o problema específico que se coloca num dado momento. A saber: a imagem do herói evolui de uma forma que reflete cada etapa do desenvolvimento da personalidade humana”. E, mais adiante, diz o psiquiatra norte-americano: e não obstante estar o herói em conflito com a sombra57, o que Jung denominou “a batalha pela liberação, na luta do homem primitivo para alcançar a consciência, esse conflito se expressa através da luta entre o herói arquetípico e as potências cósmicas do mal, personificadas em dragões e outros monstros. No desenvolvimento da consciência individual, a figura do herói representa os meios simbólicos com os quais o ego emergente ultrapassa a inércia da mente inconsciente e libera o homem maduro do desejo regressivo de voltar ao estado bem-aventurado da infância, a um mundo dominado pela figura materna”58. O herói é, pois, o que é: uma complexio oppositorum. E assim sendo, talvez se pudesse encerrar o presente capítulo com uma outra “conjugação dos opostos”: se de um lado a “idealização é um apotropismo secreto, porque se idealiza, quando se quer conjurar um perigo”, de outro, não se pode abandonar por completo a “idealização heroica”, porque “quando o homem perde a capacidade de idealizar, sobrevém fatalmente a morte do mundo heroico”, um mundo que faz falta, porquanto “uma das grandes crises do mundo moderno é a esterilização da imaginação”. É bom não esquecer que o termo imaginatio, “imaginação”, é correlato de imago, “imagem”, e perder a “imagem” pode não ser muito conveniente... 1. ELIADE, Mircea. Op. cit. T. I, vol. 2, p. 124. 2. Dada a carência de uma bibliografia básica emlíngua portuguesa sobre o Mito dos heróis, demos a este capítulo uma extensão bem maior do que havíamos planejado de início. A finalidade é abrir para os interessados umcampomais amplo de pesquisa comuma bibliografiamínima,mas atualizada e comas fontes greco-latinas, onde o herói está inteiro, presente e atuante, aomenos no que tange às suas “funções” e características. Para a redação do presente capítulo, recorremos, por issomesmo, aos poemas homéricos, particularmente à Ilíada; às obras de Píndaro; a algumas tragédias gregas; vez por outra a Xenofonte eHeródoto (Histórias),mas principalmente a Apolodoro (Biblioteca histórica), Pausânias (Descrição da Grécia) e Plutarco; Ovídio (Metamorfoses) e Higino (Fábulas). Para a parte teórica nossos guias foram, entre outros, Joseph Campbell (The Hero with a thousand faces); Otto Rank (El mito del nacimiento del héroe); Károly Kerényi (Miti e misteri);Mircea Eliade (História das crenças e das ideias religiosas, t. I, vol. 2) e sobretudo o profundo e documentadíssimo Angelo Brelich, de cuja obramonumental (Gli eroi greci)muito nos aproveitamos, traduzindo-lhe trechos e orientando-nos por outros. Os demais autores, que poderão ser consultados comproveito para uma boa compreensão do Mito dos heróis, aparecem alinhados na bibliografia do primeiro, mas particularmente neste terceiro volume. Para não repetir os títulos das obras únicas supracitadas de Apolodoro, Pausânias e Heródoto, citamos, por vezes, apenas os nomes dos autores, seguidos dos capítulos e demais indicações necessárias. Adotamos, além do mais, quando necessário, para os nomes dos autores gregos e latinos, as abreviaturas convencionais: Pín(daro); Sóf(ocles); Eur(ípides); Heród(oto); Xen(ofonte); Apol(odoro); Paus(ânias); Plut(arco); Ov(ídio) e Hig(ino). 3. ROHDE, Erwin. Psyche. Leipzig: Tübingen, 1893, p. 134. 4. USENER, H. Götternamen. Bonn: Cohen, 1897, p. 248ss. 5. FARNELL, L.R. Greek Hero Cults and Ideas of Immortality. Oxford: Oxford University Press, 1921, p. 71ss. 6. NILSSON, Martin. The Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion. Lund, 1950, p. 585. 7. NOCK, A.D. In: Harvard Theological Review, p. 141ss, citado por Angelo BRELICH. Op. cit., p. 17s. 8. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 18. 9. Ibid., p. 313s. 10. Op. cit., p. 118s. 11. RANK, Otto. El mito del nacimiento del héroe. Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 79s. 12. Ibid., p. 86ss. 13. JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e inconsciente colectivo. Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 63s. 14. CAMPBELL, Joseph. The Hero with a thousand faces.Princeton: Bollingen Paperback Printing, 1978, p. 30ss. 15. O neologismo monomito é, ao que parece, uma criação de James JOYCE. Finnegans Wake. New York: Viking Press, 1939, p. 581. 22 16. MARÃO, Públio Vergílio. Eneida, 6, 886-889. 17. O problema, segundo Campbell, é que o estado de Buddha, ou Iluminação, não pode ser comunicado, mas tão somente se aponta o caminho para a iluminação. Esse tipo de doutrina da incomunicabilidade da verdade, que paira acima de nomes e formas, é básico nas grandes tradições orientais e platônicas. Enquanto as verdades científicas são demonstráveis por meio de hipóteses racionalmente fundamentadas em fatos observáveis, o mito e o ritual são apenas guias, símbolos para que se possa chegar à iluminação transcendental, cujo passo definitivo depende de cada um individualmente em sua própria experiência silenciosa. Assim se explica que um dos termos sânscritos para designar “sábio” seja muni, o “silencioso”. Sakyamuni, um dos títulos de Gautama Buddha, significa o silencioso ou sábio (muni) do clã dos Sakya. Embora fundador de uma religião mundial, o último ponto de sua doutrina permanece oculto e, necessariamente, em silêncio. 18. Thésiadeve ter sido um engano: em grego as festas de Teseu se denominavamThéseiaouTheseîa 19. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 120. 20.Fratriva (Phratría), Fratria era, em Atenas, uma associação de cidadãos, unidos pela comunidade de sacrifícios e repastos religiosos, formando uma divisão política. Após Sólon (séc. VI a.C.), uma Fratria era composta de trinta famílias e cada Tribo de três Fratrias. Desse modo, como Atenas estava dividida em quatro Tribos, havia doze Fratrias e trezentas e sessenta famílias. 21 VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 62 [Tradução de Mariano Ferreira]. 22. Ibid., p. 141s. 23. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: Edições Funarte, 2. ed. 1983, p. 111. 24. BARGUET, Paul. Le Livre des Morts des anciens égyptiens. Paris: Cerf, 1967. 25. Ibid., p. 112ss. 26. JUNG. C.G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 325 [Tradução de D. Mateus Ramalho Rocha OSB]. 27. Banquete, em nossa língua, não traduz muito bem o grego συμπόσιον (sympósion), palavra formada por ούν (s×n), “com, juntamente”, e o v. πίνειν (pínein), “beber”, donde “beber em companhia de”. A tradução latina, já atestada em Cícero, Ad fam., 9, 24, 3, compotatio, “ação de beber em conjunto” poderia, talvez, desfazer qualquer equívoco. Ao que parece, os gregos distinguiam σύνδειπον (s×ndeipnon), em latim concenatio, o “comer junto”, o banquete propriamente dito, com muita comida e muita bebida, como aliás, afirma Pausânias, no Banquete, 176, de συμπόσιον (sympósion), em que se bebia, e certamente muito, mas se tratava também de algum assunto, de algum temasério, como acontece no Banquetede Platão, em que se discorre sobre o amor. O nosso banquete atual parece que reuniu tudo: comida, bebida e... os indigestos e soporíferos discursos! 28. Ao que parece, o relato de Platão acerca do andrógino e das fusões homem-homem, mulher-mulher, que, separados, estes dois últimos, deram origem, respectivamente, aos pederastas e às heterístrias, provém da antropogonia fantástica de Empédocles de Agrigento (séc. V a.C.), segundo se pode depreender dos fragmentos 60 e 61, Diels, da obra do filósofo agrigentino. 29. Himeneu, em grego ϓμέναιος (Hyménaios), talvez proceda de ύμήν (hymén), “grito do cântico nupcial” e seria, eventualmente, idêntico à ύμήν (hymén), hímen, película, membrana. Himeneu é o deus que conduz o cortejo nupcial e miticamente era filho de Apolo com uma das três Musas, Calíope, Clio ou Urânia ou ainda filho de Dioniso e de Afrodite. Vários mitos tentam explicar a invocação do nome de Himeneu por ocasião dos cortejos nupciais. O que passamos a resumir parece ser o mais corrente. Conta-se que Himeneu era um jovem ateniense de tamanha beleza, que comumente era confundido com uma lindíssima adolescente. Embora de condições modestas, apaixonou-se por uma jovem eupátrida e, desesperado por não poder desposá-la, seguia-a, de longe, aonde quer que ela fosse, como Eco, se bem que, em condições diversas, buscava sempre a Narciso. Certa feita, moças atenienses nobres foram a Elêusis oferecer sacrifícios a Deméter, mas uma súbita irrupção de piratas as raptou a todas, incluindo-se Himeneu, mais uma vez identificado como uma simples e linda mulher. Após longa travessia, os piratas chegaram a uma costa deserta e, extenuados, dormiram. Himeneu, com grande ousadia, matou a todos e, tendo deixado as jovens em lugar seguro, voltou só a Atenas e se prontificou a devolvê-las, desde que se lhe desse em casamento aquela que ele amava. Concluído o pacto, as atenienses foram devolvidas às suas famílias. Em memória desse feito, o nome de Himeneu é invocado, como de bom augúrio, em todos os casamentos. Segundo o gramático latino Sérvio M. Honorato, Eneida, 4,99 e 127, Himeneu era “reconhecido” em Pompeia como andrógino. 30. O motivo Putifar surge pela primeira vez, num contexto mais profano, no conto novelesco egípcio Os dois irmãos, isto é, a estória lindíssima do herói Anpu e Bata e, um pouco mais tarde, em contexto religioso, no relato bíblico supracitado e no mito grego. 31. ELIADE, Mircea. Méphistophélès et l’Androgyne. Paris: Gallimard, 1962, p. 132. 32. KERÉNYI, K. Die Mythologie der Griechen. Zürich: Rhein, 1951, p. 170. 33. JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 27s. [Tradução de D. Mateus Ramalho Rocha, OSB]. 34. Stricto sensu, Píton não é um herói, mas por seu paralelismo com Pélops, Ofeltes e Melicertes; pelo fato de possuir um túmulo precisamente no santuário de Apolo, o que o coloca em situação idêntica à de Jacinto; pelo fato de Apolo ter sido obrigado a purificar-se por havê-lo assassinado; por seu caráter teriomorfo, com ampla correspondência no mundo heroico e, finalmente, por sua faculdade mântica, Píton, lato sensu, poderia ser considerado herói. 35. Os nomes dos vencedores eram inseridos em documentos oficiais e nestes se fundamentava a cronologia grega. Assim, cada Olimpíada se realizava (porque eram quatro os jogos nacionais) de quatro em quatro anos. Em Olímpia, o primeiro campeão foi Corebo. Diga-se, de passagem, que as estátuas dos vencedores ornamentavam não apenas os locais da competição, mas ainda as praças públicas de suas respectivas cidades. 36. Este elenco de campeões pode ser visto e ampliado em Pausânias, 589, e Apolodoro, 3,66. 37. Mântica dinâmica ou por inspiração direta é a de Delfos, em que Apolo fala “diretamente” por intermédio de sua Pitonisa; indutiva é aquela em que o mántis procede por “conclusão”, examinando determinados fenômenos, tais como o fogo (piromancia), o voo das aves (eonomancia), o fígado das vítimas (hepatoscopia), os sonhos (oniromancia); ctônia, por incubação, como já se explicou no vol. II, p. 98, 184-185, era aquela em que o consulente, deitando-se (incubare é estar deitado) por terra (ctônia), normalmente num recinto sagrado, tinha sonhos, que eram interpretados pelo mántis; cleromancia é a adivinhação pela ação de tirar a sorte. No que diz respeito à oniromancia, é conveniente acrescentar que existem dois tipos de intérpretes de sonhos: o ὀνειροκρίτες (oneirokrítes), “o que explica o sonho alheio” e o ὀνειροπόλος (orneiropólos), “o que interroga os deuses, observando o próprio sonho”. 38. Esta Pasífae, detentora em Tálamas, na Lacônia, de um oráculo por incubação, era de tão grande importância política, que os Éforos dormiam no recinto do mesmo, para consultá-la a respeito de assuntos de interesse do Estado (Plut., Cleômenes, 7,2 e Ágis, 9,2), parece que nada tem a ver com a homônima heroína cretense. Há diferentes versões para sua identidade: filha de Atlas e mãe de Zeus, Cassandra, Dafne e até de Selene! (Paus. 3,26,1). 39. Exceção, certamente, à regra é o caso de Teoclímeno, na Odisseia, XX, 350ss, e possivelmente o de Heleno, na Ilíada, VII, 44. 40. É preciso não confundirΠαιάν (Paián), Peã, epíteto de Apolo, mas também “hino de ação de graças” a este deus, sobretudo por “uma cura” obtida, com Παιήων (Paiéon), Peéon, médico dos deuses, que igualmente qualificava Apolo, conforme se mostrou no Vol. II, p. 88. 41. “Estrangeiros”, normalmente, estavam excluídos dos Mistérios de Elêusis. Para serem admitidos nos mesmos, tinham que tornar-se primeiro cidadãos atenienses. Eis aí o motivo por que Teseu se fez “garante” de Héracles (Plut., Teseu, 30,5). 42. Há que se fazer, em grego, uma distinção entre αύτόχθων (autókhthon), autóctone, e γηγενής (gueguenés), gégenes: autóctone é o que nasce diretamente da “terra” e nela permanece; gégenes é igualmente o que nasce “da terra”, como os Gigantes, mas não tem um posto fixo na mesma. Assim, nem todo “gégenes” é autóctone, mas todo autóctone é “gégenes”. 43. Quando Píndaro diz nas Ístmicas, 4,53, que Héracles era μορφάν βραχύς, ψυξάν δἄκαμπτος (morphàn brakh×s, psykhàn d’ákamptos), “de baixa estatura, mas de alma invencível”, não estaria o poeta querendo exaltar a superioridade do espiritual sobre o físico? Tratar-se-ia de um “outro” Héracles ou o gigantismo para o pensamento grego era uma metáfora, um exagero, cujo escopo era enaltecer a natureza sobre-humana do herói? 44. Veja-se, a respeito do “tema de Ulisses”, a obra de W.B. STANFORD. The Ulysses Theme. London: Oxford, 1954, p. 254. 45. O grande poeta lírico Estesícoro (635-555 a.C.), consoante o mito, fora cegado por Helena, cujo rapto havia sido cantado pelo vate grego do sul da Itália. Recuperou-a, através de uma Palinódia, de uma retratação, em que afirmava que a Helena, levada a Troia por Páris, era tão somente um eídolon, uma “imagem” da verdadeira rainha de Esparta. 46. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 247. 47 Na introdução e tradução que fizemos do único Drama Satírico que nos chegou completo, o Ciclope de Eurípides, chamamos a atenção para os versos 637-641, em que os Sátiros, acovardados, para não participarem do cegamento do Ciclope, fingem-se coxos e com a visão perturbada pela poeira e pelas cinzas, que eles próprios não sabem de onde vêm. Veja-se Teatro grego. Eurípides - Aristófanes (O Ciclope, As Rãs, As Vespas). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987, p. 65. 48. BRELICH, Angelo, Op. cit., p. 254. 49. Aristóteles, na Poética, 1453b, reconhece a eficácia literária do assassinato de parentes em geral, mas considera que o efeito é mais convincente quando o herói só vem a saber depois a identidade da vítima. 50. Trata-se, na realidade, de 277 “mitos” ao que parece, escritos e denominados Fabulae (Fábulas) por este liberto do imperador Augusto. 51. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 121. 52 Ibid., p. 123. 53. KERÉNYI, Károly. Umgang mit Göttlichem (Convivência com o Divino). Göttingen: 1955, p. 43s. 54. JUNG, C.G. et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 110ss. 55. Ibid., p. 110. 56. Ibid., p. 111s. 57. Por umbra, “sombra”, compreende-se o conjunto de aspectos ocultos, reprimidos, desfavoráveis ou até mesmo execráveis da personalidade. Mas, essa obscuridade, comenta Henderson, “não é exatamente o contrário do ego consciente. Assim como o ego contém atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui, de seu lado, boas qualidades: instintos normais e impulsos criadores. Ego e umbra, destarte, embora separados, estão inextricavelmente ligados de uma forma muito parecida com a relação que se estabelece entre pensamento e sensação”. 58. Ibid., p. 118. CAPÍTULO II Perseu e Medusa 1 PERSEU provém do grego Περσεύς (Perseús), a respeito de cuja etimologia ainda não se chegou a um acordo. Admitindo-se, conforme ensina Carnoy, que a base do nome do herói seja a raiz bherêk, “brilhar”, com a necessária dissimilação k>s, como em peristerá (pomba), a saber, “ser branca ou cinza-claro”, Perseu encarnaria o “sol nascente”. Herói argólico, o filho de Zeus e Dânae possui uma genealogia famosa, figurando, de resto, como um dos ancestrais diretos de Héracles. Reduzindo ao mínimo necessário o mito de sua extensa e nobre linhagem, vamos ver que tudo começou no Egito. Com efeito, de Zeus e Io nasceu Épafo, cuja filha Líbia, unida a Posídon, engendrou os gêmeos Agenor e Belo. Enquanto o primeiro reinou na Síria, o segundo permaneceu no Egito. Do enlace sagrado do rei Belo com Anquínoe, filha do rio Nilo, nasceram os gêmeos Egito e Dânao. Temendo o irmão, pois que gêmeos, sobretudo quando do mesmo sexo, entram normalmente em conflito, Dânao fugiu para a Argólida, onde reinava Gelanor, levando as cinquenta filhas que tivera de várias mulheres. Conta-se que, ao chegar ao palácio real, Gelanor lhe cedeu pacificamente o poder. Uma variante, todavia, narra que se travou entre os dois um longo torneio retórico e que, logo após o mesmo, ocorreu um prodígio: surgiu da floresta vizinha um lobo, que, precipitando-se sobre o rebanho de Gelanor, matou instantaneamente o touro. O povo viu nisto a indicação do forasteiro para rei. Dânao, então, fundou Argos, onde, aliás, mais tarde se localizou seu túmulo, e mandou erguer um santuário a Apolo Lício, ou seja, Apolo, deus-Lobo. Os cinquenta sobrinhos de Dânao, no entanto, inconformados com a fuga das primas, pediram ao rei de Argos que esquecesse a inimizade com Egito e, para selar o pacto de paz, pediram-nas em casamento. O rei concordou, mas deu a cada uma das filhas um punhal, recomendando-lhes que matassem os maridos na primeira noite de núpcias. Todas as Danaides cumpriram a ordem paterna, menos Hipermnestra, que fugiu com seu noivo Linceu1. Este, mais tarde, vingou-se, matando o sogro e as quarenta e nove cunhadas, as Danaides, que foram condenadas no Hades a encher de água, eternamente, um tonel sem fundo, castigo cujo simbolismo já foi parcialmente comentado. De Linceu e Hipermnestra nasceu Abas, que, casado com Aglaia, foi pai dos gêmeos Acrísio e Preto, nos quais se reviveu o ódio que mantiveram um contra o outro seus avôs Dânao e Egito. Contava-se mesmo que a luta entre Acrísio e Preto se iniciara no ventre materno. Depois, quando moços, travaram uma guerra violenta pela posse do trono de Argos. Desse magno certame saiu vencedor Acrísio, que expulsou o irmão da Argólida, tendo-se este refugiado na Lícia, onde se casou com Antia, que os trágicos denominavam Estenebeia, filha do rei local Ióbates. Este, à frente de um exército lício, invadiu a Argólida, apossando-se de Tirinto, que foi fortificada com muralhas gigantescas, erguidas pelos Ciclopes. Os gêmeos, por fim, chegaram a um acordo: Acrísio reinaria em Argos e Preto em Tirinto, ficando, desse modo, a Argólida dividida em dois reinos. Reunindo num quadro o que se disse do mitologema, tem-se: 1. Ésquilo reviveu em sua tragédia As Suplicantes, a primeira de que se compõe a trilogia As Danaides, o mito das filhas de Dânao. Em se tratando de obra literária, o enfoque esquiliano, claro está, diverge bastante do mitologema. Quadro 1 Tendo desposado a Eurídice, filha de Lacedêmon, herói epônimo da Lacedemônia, cuja capital era Esparta, o rei de Argos teve uma filha, Dânae, mas, desejando um filho, consultou o Oráculo. Este limitou-se a responder-lhe que Dânae teria um filho que o mataria. De Preto e Estenebeia nasceram as célebres prétidas, Lisipe, Ifianassa, Ifínoe e um homem, Megapentes. 2 Temendo que o oráculo se cumprisse, Acrísio mandou construir uma câmara de bronze subterrânea e lá encerrou a filha, em companhia da ama. Zeus, todavia, o fecundador por excelência, penetrou na inviolável câmara de Dânae por uma fenda nela existente e, sob a forma de chuva de ouro, engravidou a princesa, que se tornou mãe de Perseu. Durante algum tempo, o menino pôde, com a cumplicidade da ama, ser conservado secretamente, mas, no dia em que o rei teve conhecimento da existência do neto, não acreditou que o mesmo fosse filho de Zeus, atribuindo-lhe o nascimento a alguma ação criminosa de seu irmão e eterno rival Preto. Após ordenar a execução da ama, encerrou mãe e filho num cofre de madeira e ordenou fossem lançados ao mar. A pequena arca, arrastada pelas ondas, foi dar à ilha de Sérifo, uma das Cíclades, onde reinava o tirano Polidectes. Um irmão do rei, de nome Díctis, etimologicamente a rede, pessoa muito humilde, os “pescou” e conduziu para sua casa modesta na ilha, encarregando-se de sustentá-los. Perseu tornou-se rapidamente um jovem esbelto, alto e destemido, segundo convém a um “herói”. Polidectes, apaixonado por Dânae, nada podia fazer, uma vez que o jovem príncipe mantinha guarda cerrada em torno da mãe e o rei não queria ou não ousava apossar-se dela pela violência. Certa feita, Polidectes convidou um grande número de amigos, inclusive Perseu, para um jantar e no curso do mesmo perguntou qual o presente que os amigos desejavam oferecer-lhe. Todos responderam que um cavalo era o único presente digno de um rei. Perseu, no entanto, respondeu que, se Polidectes o desejasse, ele lhe traria a cabeça de Medusa. Na manhã seguinte, todos os príncipes ofereceram um cavalo ao tirano, menos o filho de Dânae, que nada ofertou. O rei, que há muito suspirava por Dânae e, vendo em Perseu um obstáculo, ordenou-lhe fosse buscar a cabeça da Górgona, sem o que ele lhe violentaria a mãe. Este é o grande momento da separação e da iniciação: o herói afasta-se do respaldo materno e vai mergulhar em grandes aventuras, em busca de sua libertação dos “poderes inconscientes maternos”. Mas, antes de seguirmos com Perseu para suas gestas iniciáticas, matando a “monstros” e libertando dos mesmos a uma frágil donzela, é mister que se faça um ou outro comentário acerca de alguns tópicos desenvolvidos linhas acima. Deixando-se de lado os problemas dos gêmeos e da dupla paternidade, porque já se falou a respeito dos mesmos, respectivamente no capítulo II, 6, do Vol. II e na Introdução ao mito dos heróis, vamos nos concentrar nos simbolismos da criança exposta, da câmara de bronze e da chuva de ouro. Consoante a já citada mais de uma vez Marie Delcourt2, a exposição de recém-nascidos obedece a vários critérios. Uns o são porque, tendo nascido deformados, refletem a ira divina. Nesse caso, os expostos tornam-se, não raro, φαρμακοί (pharmakói), vale dizer, “purificadores das faltas da comunidade”, verdadeiros bodes expiatórios. O exposto, entretanto, pelo fato mesmo de ser objeto da cólera divina e carregar as faltas de sua pólis, torna-se intocável, sacer, “sagrado”, e se é salvo, o que quase sempre acontece, dos ingentes perigos que a exposição acarreta, converte-se, com “mudança de sinal”, num ser altamente benéfico para a mesma comunidade que o banira. Muitos são expostos por força da predição de um oráculo ou por motivos outros, que seria fastidioso enumerar, como é o caso de Édipo, Perseu, Páris, Egisto, Atalante, Télefo, Tenes, Karna, Rômulo e Remo, Moisés, Semíramis... os quais, em geral, são filhos de deuses com mulheres mortais ou de deusas tom homens ou ainda aparentados com divindades e que, por isso mesmo, sempre escapam à morte, como aconteceu, entre muitos outros casos, com o jovem Tenes3. Esses expostos, de qualquer forma, constituíam uma ameaça aos pais, ao avô, ao rei e à própria comunidade. Assim sendo, conforme se comentou no Vol. I, p. 94, o significado da exposição converte-se num ordálio, no juízo de um deus, do qual, se a criança sair sã e salva, estará predestinada a grandes feitos, a um destino brilhante, sendo, por este motivo, “promovida”, enquanto o expositor é castigado. Observe-se, todavia, segundo comentário feito na supracitada p. 94, que o rito da exposição habilita o “provado” a ser recebido num grupo social que, normalmente, por força de deformações físicas ou predição oracular, o repeliria. Desse modo, a prática acobertada pelo mito da criança exposta aplicava-se a pessoas que, de certa maneira, tinham que lutar para conquistar uma alta posição, mais comumente um reino. No fundo, o tema em pauta remonta a antigos ritos de provas iniciáticas, cujo escopo era introduzir o jovem na classe dos adultos. De outro lado, o cofre ou arca em que é colocada a criança e o lançamento daquela no mar tem um sentido religioso preciso, que transcende até mesmo o rito iniciático de passagem. O encerramento numa arca ou cofre traduz sentimentos que permeiam o mito do menino predestinado: aquele que entra numa arca sai da mesma engrandecido, como o jovem Comatas do poema de Teócrito, 7,78ss4. Inversamente, o conto da criança eleita é influenciado pelo caráter misterioso e numinoso da arca interdita, “sagrada”: Perseu e Télefo saem da lárnax (termo técnico grego para designar arca, urna funerária, sarcófago) menos violentos, mas igualmente tão espantosos quanto Erictônio, pois a arca é uma espécie de tabernáculo onde o exposto se torna um semideus, um “demônio”, um herói destemido. A imagem dessa prisão probatória sugere sensações muito vivas e claras: grande risco, probabilidade mínima de salvação, mas de uma salvação triunfante, com a presença atuante da divindade. A inclusão numa arca configura um começo absoluto. Além do mais, todos os mitos relativos à exposição de crianças ou de adolescentes traduzem uma hostilidade violenta entre o exposto e sua família, o que reflete o antagonismo profundo existente entre a organização familiar e a organização dos jovens, a tal ponto que o adolescente, após ser admitido na classe dos adultos, passando pela efebia, propriamente morria e renascia com outro nome. Sair da arca lançada ao mar, como ser rejeitado pela família, isto é, sair da “arca da adolescência”, é escapar do ventre da morte para uma vida plena, adulta e gloriosa, mas igualmente terrível e perigosa. Aliás esses antigos heróis se prolongaram em “muitos irmãos”, por longo espaço de tempo, como os Grabkinder, “as crianças saídas de túmulos”, da idade média germânica, de que fala Jacob Grimm em sua obra Deutsche Rechtsaltertümer, p. 461 (Código Antigo de Povos Germânicos), citada por Delcourt5. “No norte, diz Grimm, quando um pobre Freigelassner, “liberto”, abandonava seus filhos, eram os mesmos expostos numa fossa, sem alimento algum, de sorte que deveriam fatalmente morrer. O que sobrevivesse, o senhor o retirava do túmulo e o criava”. Trata-se, claro está, do predestinado. Igualmente, segundo o costume lombardo, salvava-se dentre as crianças expostas aquela que se agarrava ao venábulo do rei, comprovando, assim, sua vitalidade superior. Aquele que escapa vivo do ordálio é detentor de um duplo prestígio: a vitória sobre a morte, que tantas vezes o acariciou, e a eleição divina, que lhe restituiu a vida e o encaminhou para o triunfo6. Quanto à exposição na água, é preciso levar em conta que esta, na sua polaridade, como fonte da vida e fonte da morte, criadora e destruidora, para os expostos funciona, quase sempre, como ἀμνίον (amníon), como “um invólucro”, que guarda e protege, como o “líquido amniótico”. Diz Otto Rank que “nos contos de fadas adaptados à ideação infantil e sobretudo às teorias sexuais infantis o nascimento do ser humano é configurado frequentemente pela ação de alçar a criança de um poço ou de um lago. Alguns relatos folclóricos nos mostram que os recém-nascidos saem de um poço para a luz. Em certos ritos nacionais se expressa idêntica interpretação. Quando um celta estava em dúvida a respeito de sua paternidade, colocava o recémnascido sobre um escudo enorme e punha-o a flutuar nas águas de um rio. Se estas empurrassem o escudo para as margens, a paternidade era legítima, mas, se a criança se afogasse, estava provado que a mulher praticara adultério, pelo que também ela estava condenada a morrer”7. Como os filhos nascem da “água”, a arca simboliza o ventre materno, de sorte que o abandono nas águas representa diretamente o processo de nascimento ou de um “renascimento catártico”. No tocante à chuva de ourocom que Zeus fecundou a Dânae, tratase, simbolicamente, do esperma do Céu, fecundando a Terra: um hieròs gámos, um casamento sagrado, que se transforma numthaleròs gámos, numa “união fértil”, uma “conjugação amorosa” entre um deus fecundador, Zeus, e uma grande mãe, Dânae. Iolande Jacobi opina que “a presença da chuva é como um aguaceiro que diminui a tensão e fertiliza a terra. Em mitologia se considerava com frequência que a chuva era uma ‘união amorosa’ entre o céu e a terra. Nos Mistérios de Elêusis, depois que tudo havia sido purificado com água, invocava-se primeiro o céu: ‘Chove!’ e, em seguida, a terra, “Frutifica!” Com essas expressões se queria traduzir o matrimônio sagrado dos deuses. Desse modo, pode-se afirmar que a chuva representa uma ‘solução’ no sentido literal da palavra”8. Para Diel, “nascendo da chuva de ouro, a sublimidade do menino não poderia ser mais bem caracterizada: a névoa, tombando do céu, sob a forma de chuva, e fecundando a terra, é símbolo do espírito. Dânae é uma mulher terrestre, configuração frequente da própria terra. A sublimidade está bem marcada, porque a chuva fecundante é de ouro: amarelo e brilhante, o ouro é um símbolo solar. Perseu é, pois, o herói filho da terra, engendrado pelo espírito. O mito de seu nascimento o registra, desse modo, como herói vencedor”9. A interpretação de Diel está, como se vê, de acordo com a etimologia de Perseu, “o sol nascente”, aventada por Carnoy, segundo se expôs logo no início do presente capítulo. 3 Feitas estas ligeiras observações, agora podemos partir com Perseu para suas gestas iniciáticas, que o habilitarão à conquista da donzela e esta à posse do reino, uma vez que, segundo se há de mostrar, uma coisa está estreitamente vinculada à outra. Como já se assinalou na Introdução ao mito dos heróis, o herói, ao partir para seus longos e difíceis trabalhos, é assessorado por uma ou mais divindades, já que o mesmo, por sua origem sobre-humana, o que lhe conferia a timé e a areté, facilmente se deixava dominar pela hýbris, tornando-se presa fácil do descomedimento. Para evitar ou ao menos refrear os “desmandos heroicos” e sobretudo para dar-lhe respaldo na execução de tarefas impossíveis, todo herói conta com o auxílio divino. Perseu terá por coadjutores celestes a Hermes e Atená, que lhe fornecerão os meios necessários para que leve a bom termo a promessa imprudente feita a Polidectes. Conforme o conselho dessas divindades, o filho de Dânae deveria procurar primeiro as fórcidas, isto é, as três filhas de Fórcis, divindade marinha da primeira geração divina. Esses três monstros denominavam-se também Greias, quer dizer, as “Velhas”, as quais, aliás, já haviam nascido velhas. Chamavam-se Enio, Pefredo e Dino, que possuíam em comum apenas um olho e um dente. O caminho para chegar até elas não era fácil, pois habitavam o extremo ocidente, no país da noite, onde jamais chegava um só raio de sol. Mas era imprescindível que Perseu descesse ao país das sombras eternas, porquanto somente as Greias conheciam a rota que levava ao esconderijo das Górgonas e tinham exatamente a incumbência de barrá-la a quem quer que fosse. Mais importante ainda: eram as únicas a saber onde se escondiam determinadas ninfas, que guardavam certos objetos indispensáveis ao herói no cumprimento de sua missão. Ajudado por Hermes, o deus que não se perde na “noite” e no caminho, e pela inteligência de Atená, que espanca as trevas, Perseu logrou chegar à habitação das Greias, que, por disporem de um só olho, montavam guarda em turno, estando duas sempre dormindo. O herói se colocou atrás da que, no momento, estava de vigília e, num gesto rápido, arrebatou-lhe o único olho, prometendo devolvê-lo, caso a Greia lhe informasse como chegar às misteriosas ninfas. Estas sem a menor resistência ou dificuldade, entregaram-lhe o que, segundo um oráculo, era indispensável para matar a Górgona: sandálias com asas, uma espécie de alforje denominado quíbisis, para guardar a cabeça de Medusa e o capacete de Hades, que tornava invisível a quem o usasse. Além do mais, o próprio Hermes lhe deu uma afiada espada de aço e Atená emprestou-lhe seu escudo de bronze, polido como um espelho. Com essa verdadeira panóplia o herói dirigiu-se imediatamente para o esconderijo das Górgonas10, tendo-as encontrado em sono profundo. Eram três as impropriamente denominadas Górgonas, uma vez que só a primeira, Medusa, é, de fato, Górgona, enquanto as outras duas, Ésteno e Euríale só lato sensu é que podem ser assim denominadas. Estes três monstros tinham a cabeça aureolada de serpentes venenosas, presas de javali, mãos de bronze e asas de ouro e petrificavam a quem as olhasse. Não podendo, por isso mesmo, fixar Medusa, Perseu pairou acima das três Górgonas adormecidas, graças às sandálias aladas; refletiu o rosto de Medusa no polido escudo de Atená e, com a espada que lhe deu Hermes, decapitou-a. Do pescoço ensanguentado do monstro nasceram o cavalo Pégaso e o gigante Crisaor, filhos de Posídon, que foi o único deus a se aproximar das Górgonas e ainda manter um comércio amoroso com Medusa. Posteriormente a cabeça do monstro foi colocada, conforme se comentou no mesmo Vol. I, p. 251, no escudo de Atená e assim a deusa petrificava a quantos inimigos ousassem olhar para ela. Neste mesmo capítulo, tomando por base a obra de Diel, ensaiamos uma interpretação do olhar petrificador da Górgona por excelência. Vamos voltar ao mesmo autor e tentar ampliar-lhe um pouco mais a hermenêutica simbólica. Quem fixa Medusa se petrifica. Perguntam os autores do Dictionnaire des symboles, já tantas vezes citado, se isto não se deve ao fato de Medusa refletir a imagem de uma culpabilidade pessoal. E acrescentam que o reconhecimento da falta, alicerçado no conhecimento de si mesmo, pode se perverter em exasperação doentia, em consciência escrupulosa e paralisante. Em seguida vêm, novamente, as palavras de Diel: “O reconhecimento pode ser e o é, quase sempre, uma forma específica de exaltação imaginativa: um arrependimento exagerado. O exagero da culpa inibe o esforço reparador [...]. Não basta descobrir a falta: é mister suportar-lhe o olhar de maneira objetiva, sem exaltação e sem inibição, vale dizer, sem exagerá-la, mas outrossim sem minimizá-la. O próprio reconhecimento deve estar isento de excesso de vaidade e de culpabilidade”11. Medusa simboliza, portanto, a imagem deformada daquele que a contempla, uma autoimagem que petrifica pelo horror, ao invés de esclarecer de maneira equânime e sadia. Voltemos, no entanto, ao futuro rei de Tirinto. Tendo colocado a cabeça da Górgona no alforje, o herói partiu. Ésteno e Euríale saíramlhe em perseguição, mas inutilmente, porquanto o capacete de Plutão o tornara invisível. 4 Partindo do ocidente, dessa verdadeira catábase, Perseu dirigiu-se para o oriente, e chegou à Etiópia, onde encontrou o país assolado por um flagelo. É que Cassiopeia, esposa do rei local, Cefeu, pretendia ser mais bela que todas as nereidas ou que a própria deusa Hera, segundo outras versões. Estas, inconformadas e enciumadas com a presunção da rainha, solicitaram a Posídon que as vingasse de tão grande afronta. O deus do mar enviou contra o reino de Cefeu um monstro marinho que o devastava por inteiro. Consultado o Oráculo de Amon, este declarou que a Etiópia só se livraria de tão grande calamidade se Andrômeda fosse agrilhoada a um rochedo, à beiramar, como vítima expiatória ao monstro, que a devoraria. Pressionado pelo povo, o rei consentiu em que a filha fosse exposta, como Psiqué, às “núpcias da morte”. Foi nesse momento que chegou o herói argivo. Vendo a jovem exposta ao monstro, Perseu, como acontecera, em outras circunstâncias, a Eros em relação a Psiqué, se apaixonou por Andrômeda, e prometeu ao rei que a salvaria, caso este lhe desse a filha em casamento. Concluído o pacto, o herói, usando suas armas mágicas, libertou a noiva e a devolveu aos pais, aguardando as prometidas núpcias. Estas, no entanto, ofereciam certas dificuldades, porque Andrômeda já havia sido prometida em casamento a seu tio Fineu, irmão de Cefeu, que planejou com seus amigos eliminar o herói. Descoberta a conspiração, Perseu mostrou a cabeça de Medusa a Fineu e a seus cúmplices, transformando-os a todos em estátuas de pedra. Há uma variante que mostra o herói em luta não contra Fineu, mas contra Agenor, irmão gêmeo de Belo. É que Agenor, instigado por Cefeu e Cassiopeia, que se haviam arrependido de prometer a filha em casamento ao vencedor das Górgonas, avançou contra este com duzentos homens em armas. Perseu, após matar vários inimigos, já cansado de lutar, petrificou os demais com a cabeça de Medusa, inclusive o casal real. Antes de retornarmos com Perseu e Andrômeda à ilha de Sérifo, vamos fazer um ligeiro comentário à luta do herói contra o monstro e seu casamento com a princesa, o que o habilita ao poder. Do ponto de vista do mito, como se mostrou na Introdução, capítulo I, Perseu está completando o mandala, fechando o uróboro com a separaçãoiniciação-retorno. Citado por Delcourt, diz esquematicamente Jeanmaire em Couroï et Courètes, p. 314, que “o duelo do herói contra o monstro e, naturalmente, sua vitória sobre o mesmo, é a façanha que o habilita à realeza”12. Judiciosamente acrescenta a pesquisadora belga que é necessário intercalar entre a vitória sobre o monstro e a conquista do poder um episódio muito constante: o casamento do herói com uma princesa. A luta contra o monstro não oferece mistério para o mito: trata-se de um antigo rito iniciático por que passava todo adolescente e todo aquele que se preparava para assumir o poder, mas quase nada se sabe com precisão em que consistiam realmente esses ritos. A respeito da habilitação do herói ou do futuro rei ao poder, possuímos o que o mito nos informa, mas a realidade histórica das provas nos escapa quase que por completo. Talvez, como afirma Delcourt, à guisa de hipótese, deveríamos fazer uma montagem mental para tentar recompor essas provas: poderíamos imaginar “perigosas encenações de combates formidáveis contra instrutores revestidos de disfarces animais”. Já Dumézil deplorava essa carência quase absoluta de documentação acerca do conteúdo desses ritos iniciáticos: “É de se lamentar que as iniciações não sejam conhecidas diretamente através da descrição dos rituais e nem mesmo pelos mitos que os traduziam, mas por meio de narrativas épicas relativas a um ou o outro herói mais ou menos fabuloso e nas quais se inseriu, remoçando-se, o assunto religioso”13. Vencer o monstro é a condição para a conquista da princesa e com ela celebrar um hieròs gámos, porquanto, sendo a vitória sobre o monstro a comprovação do fecho iniciático, o casamento, o hieròs gámos simboliza a “maturidade” do herói e da heroína, vale dizer, da que passou também pela “prova”, no caso a da exposição e cumpriu seu papel de φαρμακός (pharmakós), de “vítima emissária”. Em muitas culturas primitivas a passagem para a classe dos adultos se fazia acompanhar, segundo observa Marie Delcourt, de casamentos simultâneos: os jovens de ambos os sexos, que haviam passado pelas provas, conquistavam, ao mesmo tempo, o direito de ascender a uma nova classe, a dos casados, o que comprova a solidariedade das iniciações14. Mas, curiosamente, o efeito benéfico do hieròs gámos provinha da mulher. Consoante a tese de Frazer, a realeza se transmitia pela princesa, reminiscência de um regime matrilinear arcaico, pré-indo-europeu, donde primeiro casar e depois reinar. Em primeiro lugar, segundo se mostrou, luta-se com o monstro para se salvar a “exposta”. A princesa emissária, φαρμακός (pharmakós), uma vez liberada e depois de passar pelo ordálio, carrega-se de influxos salutares, de energias, características dos eleitos dos deuses. São exatamente estas as energias que vão ser injetadas pela princesa no herói salvador, que dessa forma se habilitará a assumir o poder. Frazer procura comprovar o hieròsgámos e seu influxo benéfico por via matrilinear, recorrendo a exemplos sobretudo da “história” e do mito romano15. Desse modo, consoante o autor, a realeza era transmitida através da linha feminina, e nas monarquias antigas, contrariamente aos hábitos posteriores, a rainha é hereditária e o rei é que é eletivo. O etnólogo inglês observa com razão que nenhum rei de Roma teve como sucessor o próprio filho, embora muitos deles tivessem deixado descendência masculina. Numa Pompílio desposou a filha de Tito Tácio, rei dos sabinos, e tornou-se o segundo rei romano, sucedendo ao sogro, que invadira Roma. Anco Márcio tinha por mãe a filha de Numa, e Sérvio Túlio sucedeu no trono a Tarquínio, o Antigo, após desposar-lhe a filha. Tarquínio, o Soberbo, herdou o trono, porque se casou com a filha de Sérvio. “Isto significa, continua Frazer, que a sucessão no âmbito da realeza romana parece ter sido determinada por certas normas que se haviam estratificado em sociedades primitivas de muitas partes do mundo, a saber, a exogamia, o casamento beena e o parentesco feminino. Exogamia é o princípio que obriga o homem a contrair matrimônio em outro clã que não o seu; casamento beena é a norma que coage o esposo a deixar a casa paterna para viver na família da esposa e parentesco feminino é o sistema que faz provir da mulher e não do homem a filiação e a transmissão do nome da família”16. O mesmo Frazer encontra tradições análogas no mito grego. Recém-chegados a Atenas, como Cécrops e Anfictião, se casam com as filhas de seus predecessores, tornando-se reis. De outro lado, para explicar por que os filhos não sucederam a seus pais, como era de praxe em época posterior, inventam-se motivos, geralmente um homicídio, voluntário ou involuntário, que os obrigam a deixar sua cidade. Após muitas aventuras, os exilados conquistam um reino ao mesmo tempo que uma esposa. Éaco reinava na ilha de Egina. Todos os seus descendentes emigraram e quase todos passam a viver e reinar na pólis de sua respectiva esposa: Télamon17, em Salamina; Teucro, em Chipre; Peleu, na Ftiótida; Aquiles, na ilha de Ciros; Neoptólemo, no Epiro. Cálidon, na Etólia, se casa com a filha de Adrasto, rei de Argos. Seu filho Diomedes, de igual maneira, torna-se rei de Dáunia, na Itália. Tântalo é rei da Lídia: seu filho Pélops reina em Pisa, porque se casou com Hipodamia, filha de Enômao; seu neto Atreu reinou em Micenas e seu bisneto Menelau reinou em Esparta, pólis de sua esposa Helena. Existe, até mesmo, um mito antigo que faz igualmente de Agamêmnon, bisneto de Tântalo, rei da Lacônia, pátria de sua mulher Clitemnestra... Muitos outros exemplos da posse do reino pela linha matrilinear poderiam ainda ser aduzidos, mas os apontados situam bem o problema. É necessário, todavia, ter em mente o que se desenvolveu na Introdução: os casamentos heroicos, sejam quais forem suas origens e “linhas condutoras”, as mais das vezes pressupõem lutas, que se configuram sob o aspecto de provas iniciáticas: a “razzia”, a justa entre os pretendentes, o combate de morte contra o pai da pretendida, o conflito de gerações, a luta contra um monstro... De qualquer forma, uma coisa é certa: o casamento, o hieròs gámos está estreitamente ligado ao reino. Casar para reinar! Do ponto de vista da psicologia analítica, a luta contra o monstro e sua destruição, e bem assim a libertação da donzela e o casamento do herói com a mesma podem simbolizar a liberação da anima do aspecto “devorador” da imagem materna. 5 Acompanhado, pois, da esposa Andrômeda, Perseu retornou à ilha de Sérifo, onde novos problemas o aguardavam. Em sua ausência, Polidectes tentara violentar-lhe a mãe, sendo preciso que ela e Díctis, a quem o tirano igualmente perseguia, se refugiassem junto aos altares dos deuses, considerados e respeitados como locais invioláveis. O herói, sabedor de que o rei se encontrava reunido no palácio com seus amigos, penetrou salão a dentro e transformou Polidectes e toda a corte em estátuas de pedra. Tomando as rédeas do poder, entregou o trono a Díctis, o humilde pescador que o criara. Devolveu as sandálias aladas, o alforje e o capacete de Plutão a Hermes, a fim de que este os restituísse às suas legítimas guardiãs, as ninfas. A cabeça de Medusa, Atená a espetou no centro de seu escudo18. Deixando para trás o reino de Díctis, o herói, em companhia de Andrômeda e Dânae, dirige-se para Argos, sua pátria, uma vez que desejava conhecer seu avô Acrísio. Este, sabedor das intenções do neto, e temendo o cumprimento do oráculo, fugiu para Larissa, onde reinava Tentâmides. Ora, Acrísio assistia, como simples espectador, aos jogos fúnebres que o rei de Larissa mandava celebrar em memória do pai. Perseu, como convém a um herói, participava dos agônes, e lançou o disco com tanta infelicidade, ou, por outra, com o endereço certo fornecido há tantos anos atrás pelo oráculo, que o mesmo vitimou Acrísio. Cheio de dor com a morte do avô, cuja identidade lhe era desconhecida, Perseu prestou-lhe as devidas honras fúnebres, fazendo-o sepultar fora de Larissa. Não ousando, por tristeza e contrição, dirigir-se a Argos, para reclamar o trono que, de direito, lhe pertencia, foi para Tirinto, onde reinava seu primo Megapentes, filho de Preto, e com ele trocou de reino. Assim, Megapentes tornou-se rei de Argos e Perseu reinou em Tirinto. Uma variante obscura do mito narra a violenta oposição feita por Perseu a Dioniso que, com suas Mênades, tentava introduzir seu culto orgiástico em Argos. O herói perseguiu ao deus do êxtase e do entusiasmo e o afogou no Lago de Lerna. Havia sido assim que Dioniso terminara sua vida terrestre e, escalando o Olimpo, se reconciliara com a deusa Hera. À época romana, o mito do filho de Dânae foi deslocado para a Itália. A arca que transportava mãe e filho não teria chegado à ilha de Sérifo, mas às costas do Lácio. Recolhidos por pescadores, foram levados à corte do rei Pilumno. Este desposou Dânae e com ela fundou a cidade de Árdea, antiga capital dos Rútulos, situada no Lácio, perto do mar Tirreno, como está em Vergílio, Eneida, 7,411s. Turno, rei dos Rútulos, o grande adversário de Eneias, descendia desse enlace, pois que Pilumno era avô do herói itálico, ainda consoante a Eneida, 9,3s. De Perseu e Andrômeda nasceram os seguintes filhos: Perses, Alceu, Estênelo, Helio (que é preciso não confundir com Hélio, deus Sol), Mestor, Eléctrion e Gorgófone. Pois bem, Héracles, assunto de nosso próximo capítulo, é bisneto de Perseu, ao menos no que tange ao lado materno... 2. DELCOURT, Marie. Oedipe ou la Légende du conquérant. Liège: Bibliothèque de la Faculté de Philosophie et Lettres, 1981, p. 1ss. 3. Tenes se inscreve, como Hipólito, no “motivo Putifar”, segundo se viu na Introdução ao mito dos heróis, capítulo I. Caluniado pela madrasta Filônome, que por ele se apaixonara, sem ser correspondida, foi encerrado pelo pai, Cicno, numa arca, juntamente com a irmã Hemíteia, também filha do primeiro matrimônio de Cicno, e lançado ao mar. O cofre de madeira, com a proteção de Posídon, avô dos dois jovens, foi dar na ilha de Lêucofris, que daí por diante passou a chamar-se Tênedos, do nome de Tenes, que os habitantes da ilha aclamaram rei. 4. Comatasera um pastor de Túrio, na Itália do Sul, que fazia constantessacrifícios às Musas com vítimas escolhidas no rebanho de seu senhor. Este o encerrou num sarcófago, dizendolhe que suas deusas favoritas descobririam um meio de salvá-lo. Três meses depois, aberto o sarcófago, o jovem Comatas estava vivo e sadio: as Musas enviaram-lhe abelhas, que o alimentavam diariamente. 5. Ibid., p. 56s. 6. Ibid., p. 57. 7. RANK, Otto. Op. cit., p. 88s. 8. JUNG, C.G. et al. Op. cit., p. 280s. 9. DIEL, Paul. Le symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1952, p. 102. 10. A respeito das Greias e das Górgonas já se falou bastante exaustivamente no capítulo XI, 2, p. 250-251, do Vol. I, tanto do ponto de vista etimológico e mítico quanto sob o aspecto simbólico. 11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 93-97. 12. Ibid., p. 104. 13. DUMÉZIL, G. Les mythes romains: I – Horace et les Curiaces. Paris: Gallimard, 1942, p. 30. 14. Ibid., p. 150. 15. FRAZER, J.G. The Golden Bough. London: The Macmillan Press, 1975, p. 200ss. 16. Ibid., p. 201. 17. Embora na llíada não apareça nenhum parentesco entre Peleu e Télamon, é conveniente não nos esquecermos do “pulmão do mito”, que são as “variantes”. Além do mais, em todas as épocas se identificaram personagens com o mesmo nome ou com nomes semelhantes, para atender, quase sempre, a reivindicações de cidades, de templos e sobretudo a genealogias. Acrescente-se, de caminho, que Peleu foi banido juntamente com Télamon, porque ambos assassinaram a seu irmão Foco. Peleu chegou a Ftia e desposou Antígona, filha do rei local Eurítion, que deu àquele um terço de seu reino. Na caçada de Cálidon, Peleu, “sem o querer”, matou ao sogro, assumindo sozinho a posse do reino da Ftiótida. Observe-se que neste mito, como em tantos outros, encontram-se associados os dois temas: a morte do velho rei, “daquele que não mais fecunda” e o casamento com a princesa, penhor de conquista do reino 18. A temível cabeça de Medusa se tornou tão importante, que acabou até mesmo se transformando em amuleto mágico para afugentar certas doenças, como aparece numa pintura de Perseu, segurando a cabeça do monstro, com a seguinte inscrição:ϕuv(ge) podavgra Perseuvr se diwvki (Phy(gue) podágra Perseús se dióki) – “vai embora, podagra, Perseu te persegue”. CAPÍTULO III Héracles e os Doze Trabalhos 1 HÉRACLES, em grego Ήρακλῆς (Heraklês), é interpretado em etimologia popular como palavra composta de Ήρα (Héra), “Hera” e κλέος (kléos), “glória”, ou seja, o que fez a glória de Hera, saindo-se vitoriosamente nos doze trabalhos gigantescos que a deusa lhe impôs. Pergunta, entretanto, Carnoy, se a etimologia citada não resultaria de uma confusão entre o nome da deusa, que o perseguia, e o nome ἦρα (êra), sem aspiração, e que significa serviço, uma vez que o herói realmente pode ser chamado “aquele que gloriosamente serviu por suas gestas célebres”. Quanto ao nome latino do deus, Hércules, este provém do grego Heraklês, possivelmente com um intermediário etrusco hercle. Seja como for, trata-se de mais um nome mítico sem uma etimologia satisfatória. Quadro 2 Muito embora seja Zeus, no mito, e não Anfitrião, o pai de Héracles, este vem a ser bisneto de Perseu pelo lado materno, pois Alcmena, sua mãe, é filha de Eléctrion e neta de Perseu. O quadro anterior torna mais clara a genealogia do maior dos heróis gregos. Já tendo sido mencionados todos os filhos de Perseu e Andrômeda no fim do capítulo anterior, vamos nos preocupar apenas com Alceu e Eléctrion. Enquanto neto de Alceu, o filho de Alcmena é chamado igualmente Άλκείδης (Alkeídes), Alcides, nome proveniente de ἀλκή (alké), “força em ação, vigor”. Em tese, até a realização completa dos Doze Trabalhos, o herói deveria ser chamado tão somente de Alcides, pois só se torna a “glória de Hera”, Héracles, após o término de todas as provas iniciáticas impostas pela deusa. É assim, aliás, que lhe chama Píndaro, Olímpicas, 6,68: “o rebento ilustre da raça de Alceu”. É extremamente difícil tentar expor, já não diria em ordem racional, mas até mesmo com certa ordem, o vasto mitologema de Héracles, uma vez que os mitos, que lhe compõem a figura, evoluíram ininterruptamente, desde a época pré-helênica até o fim da Antiguidade greco-latina. Variantes, adições e interpolações várias de épocas diversas, algumas até mesmo de cunho político, enriqueceram de tal modo o mitologema, que é totalmente impraticável separar-lhe os mitemas. O único método válido, a nosso ver, para que se tenha uma visão de conjunto desse extenso conglomerado, é dividir a estória de Héracles em ciclos, fazendo-os preceder dos mitos concernentes a seu nascimento, infância e educação. Vamos, assim, tentar estabelecer uma divisão mais ou menos didática nesse longo mitologema, a fim de que se possa ter uma ideia das partes e, quanto possível, do todo. Nosso esquema “artificial” funcionará, pois, da seguinte maneira: 1 – nascimento, infância e educação de Héracles; 2 – o ciclo dos Doze Trabalhos; 3 – aventuras secundárias, praticadas no curso dos Doze Trabalhos; 4 – gestas independentes do ciclo anterior; e 5 – ciclo da morte e da apoteose do herói. 2 O Hino homérico a Héracles, 1-8, em apenas oito versos, nos traça o destino completo do herói incomparável: É a Héracles, filho de Zeus, que vou cantar, ele que é de longe o maior dentre os que habitam a terra. Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, deu à luz, após unir-se ao Crônida de sombrias nuvens. Errou e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar imensos; em seguida triunfou, graças à sua bravura, e, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos. Anfitrião, filho de Alceu, casara-se com sua prima Alcmena, filha de Eléctrion, rei de Micenas, mas, tendo involuntariamente causado a morte de seu sogro e tio, foi banido por seu tio Estênelo, rei suserano de Argos, e de quem dependia o reino de Micenas. Expulso, pois, de Micenas, Anfitrião, em companhia da esposa, refugiou-se em Tebas, onde foi purificado pelo rei Creonte. Como Alcmena se recusasse a consumar o matrimônio, enquanto o marido não lhe vingasse os irmãos, mortos pelos filhos de Ptérela1, Anfitrião, obtida a aliança dos Tebanos e com contingentes provindos de várias regiões da Grécia, invadiu a ilha de Tafos, onde reinava Ptérela. Com a traição de Cometo, a vitória de Anfitrião foi esmagadora. Carregado de despojos, o filho de Alceu se aprestou para regressar a Tebas, com o objetivo de fazer Alcmena sua mulher. Pois bem, foi durante a ausência de Anfitrião que Zeus, desejando dar ao mundo um herói como jamais houvera outro e que libertasse os homens de tantos monstros, escolheu a mais bela das habitantes de Tebas para ser mãe de criatura tão privilegiada. Sabedor, porém, da fidelidade absoluta da princesa micênica, travestiu-se de Anfitrião, trazendo-lhe inclusive de presente a taça de ouro por onde bebia o rei Ptérela e, para que nenhuma desconfiança pudesse ainda, porventura, existir no espírito da “esposa”, narrou-lhe longamente os incidentes da campanha. Foram três noites de um amor ardente, porque, durante três dias, Apolo, por ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou de percorrer o céu com seu carro de chamas. Ao regressar, logo após a partida de Zeus, Anfitrião ficou muito surpreso com a acolhida tranquila e serena da esposa e ela também muito se admirou de que o marido houvesse esquecido tão depressa a grande batalha de amor travada até a noite anterior em Tebas... Um duelo que fora mais longo que a batalha na ilha de Tafos! Mais espantado e, dessa feita, confuso e nervoso ficou o general tebano, quando, ao narrar-lhe os episódios da luta contra Ptérela, verificou que a esposa os conhecia tão bem ou melhor que ele. Consultado, o adivinho Tirésias revelou a ambos o glorioso adultério físico de Alcmena e o astucioso estratagema de Zeus. Afinal, a primeira noite de núpcias compete ao deus e é por isso que o primogênito nunca pertence aos pais, mas a seu Godfather... Mas Anfitrião, que esperara tanto tempo por sua lua-de-mel, se esquecera de tudo isto e, louco de raiva e ciumes, resolveu castigar Alcmena, queimando-a viva numa pira. Zeus, todavia, não o permitiu e fez descer do céu uma chuva repentina e abundante, que, de imediato, extinguiu as chamas da fogueira de Anfitrião. Diante de tão grande prodígio, o general desistiu de seu intento e acendeu outra fogueira, mas de amor, numa longa noite de ternura com a esposa. Com tantas noites de amor, Alcmena concebeu dois filhos: um de Zeus, Héracles; outro de Anfitrião, Íficles. Acontece que Zeus, imprudentemente, deixara escapar que seu filho nascituro da linhagem dos persidas reinaria em Argos. De imediato, a ira e o ciume de Hera, que jamais deixou em paz as amantes e os filhos adulterinos de seu esposo Zeus, começaram a manifestar-se. Ordenou a Ilítia, deusa dos partos, sobre quem já se falou no Vol. II, p. 60, e que, diga-se mais uma vez, é uma hipóstase da própria rainha dos deuses, que retardasse o mais possível o nascimento de Héracles e apressasse o de Euristeu, primo de Alcides, porquanto era filho de Estênelo. Nascendo primeiro, o primo do filho de Alcmena seria automaticamente o herdeiro de Micenas. Foi assim que Euristeu veio ao mundo com sete meses e Héracles com dez! Este acontecimento é narrado minuciosamente na Ilíada, XIX, 97-134. Fazia-se necessário, todavia, iniciar urgentemente a imortalidade do herói. Zeus arquitetou um estratagema, cuja execução, como sempre, ficou aos cuidados de Hermes: era preciso fazer o herói sugar, mesmo que fosse por instantes, o seio divino de Hera. O famoso Trismegisto conseguiu mais uma vez realizar uma façanha impossível: quando a deusa adormeceu, Hermes colocou o menino sobre os seios divinos da imortal esposa de Zeus. Hera despertou sobressaltada e repeliu a Héracles com um gesto tão brusco, que o leite divino espirrou no céu e formou a Via Láctea! Existe uma variante que narra o episódio de maneira diversa. Temerosa da “ira sempre lembrada da cruel Juno”, como diria muito mais tarde Vergílio, Eneida, 1,4, com respeito ao ressentimento da deusa contra Eneias, Alcmena mandou expor o menino nos arredores de Argos, num local que, depois, se chamou “Planície de Héracles”. Por ali passavam Hera e Atená e a deusa da inteligência, vendo o exposto, admirou-lhe a beleza e o vigor. Pegou a criança e entregou-a a Hera, solicitando-lhe desse o seio ao faminto. Héracles sugou o leite divino com tanta força, que feriu a deusa. Esta o lançou com violência para longe de si. Atená o recolheu e levou de volta a Alcmena, garantindo- lhe que podia criar o filho sem temor algum. De qualquer forma, o vírus da imortalidade se inoculara no filho de Zeus e Alcmena. Mas o ódio de Hera sempre teve pernas compridas. Quando o herói contava apenas oito meses, a deusa enviou contra ele duas gigantescas serpentes. Íficles, apavorado, começou a gritar, mas Héracles, tranquilamente, se levantou do berço em que dormia, agarrou as duas víboras, uma em cada mão, e as matou por estrangulamento. Píndaro, nas Nemeias, 1,33-63, disserta poética e longamente sobre a primeira grande gesta de Héracles. Anfitrião, que acorrera de espada em punho, ao ver o prodígio, acreditou, finalmente, na origem divina do “filho”. E o velho Tirésias, mais uma vez, explicou o destino que aguardava o herói. A educação de Héracles, projeção da que recebiam jovens gregos da época clássica, começou em casa. Seu primeiro grande mestre foi o general Anfitrião, que o adestrou na difícil arte de conduzir bigas. Lino foi seu primeiro professor de música e de letras, mas enquanto seu irmão e condiscípulo Íficles se comportava com atenção e docilidade, o herói já desde muito cedo dava mostra de sua indisciplina e descontrole. Num dia, chamado à atenção pelo grande músico, Héracles, num assomo de raiva, pegou um tamborete, outros dizem que uma lira, e deu-lhe uma pancada tão violenta, que o mestre foi acordar no Hades. Acusado de homicídio, o jovem defendeu-se, citando um conceito do implacável juiz dos mortos, Radamanto, segundo o qual tinha-se o direito de matar o adversário, em caso de legítima defesa. Apesar da quando muito legítima defesa cerebrinamente putativa, Héracles foi absolvido. Em seguida, vieram outros preceptores: Eumolpo prosseguiu com o ensino da música; Êurito, rei de Ecália, que bem mais tarde terá um problema muito sério com o herói, ensinou-lhe o manejo do arco, arte em que teve igualmente por instrutor o cita Têntaro e, por fim, Castor o exercitou no uso das demais armas. Héracles, porém, sempre se portou como um indisciplinado e temperamental incorrigível, a ponto de, temendo pela vida dos mestres, Anfitrião o mandou para o campo, com a missão de cuidar do rebanho. Enquanto isso, o herói crescia desproporcionadamente. Aos dezoito anos, sua altura chegava a três metros! E foi exatamente aos dezoito anos que Héracles realizou sua primeira grande façanha, a caça e morte do leão do monte Citerão. Este animal, de porte fora do comum e de tanta ferocidade, estava causando grandes estragos nos rebanhos de Anfitrião e do rei Téspio, cujas terras eram vizinhas das de Tebas. Como nenhum caçador se atrevesse a enfrentar o monstro, Héracles se dispôs a fazê-lo, transferindo-se, temporariamente, para o reino de Téspio. A caçada ao leão durou cinquenta dias, porque, quando o sol se punha, o caçador retornava, para dormir no palácio. Exatamente no quinquagésimo dia, o herói conseguiu sua primeira grande vitória. Acontece, porém, que Téspio, pai de cinquenta filhas, e desejando que cada uma tivesse um filho de Héracles, entregavalhe uma por noite, e foi assim que, durante cinquenta dias, o herói fecundou as cinquenta jovens, de que nasceram as tespíades. A respeito da divergência do tempo que durou essa proeza sexual do filho de Alcmena já se falou na Introdução, capítulo I, onde se mostrou, igualmente, que a potência sexual de Héracles não teve competidor, ao menos no mito. É possível que nos civilizados tempos modernos a Surmâle de Jarry lhe possa servir de parâmetro... Ao retornar do reino de Téspio, Héracles encontrou nas vizinhanças de Tebas os delegados do rei de Orcômeno, Ergino, que vinham cobrar o tributo anual de cem bois, que Tebas pagava a Orcômeno, como indenização de guerra. Após ultrajá-los, o herói cortou-lhes as orelhas e o nariz e, pendurando-os ao pescoço de cada um, os enviou de volta, dizendo-lhes ser este o pagamento do tributo. Indignado, Ergino, com um grande exército, marchou contra Tebas. Héracles desviou o curso de um rio e afogou na planície a cavalaria inimiga. Perseguiu, em seguida, a Ergino e o matou a flechadas. Antes de retirar-se com os soldados tebanos, impôs aos mínios de Orcômeno o dobro do tributo que lhes era pago por Tebas. Foi nesta guerra que morreu Anfitrião, lutando bravamente ao lado do filho. O rei Creonte, grato por tudo quanto o filho de Alcmena fizera por Tebas, deu-lhe em casamento sua filha primogênita Mégara, enquanto a caçula se casava com Íficles, tendo este, para tanto, repudiado sua primeira esposa Automedusa, que lhe dera um filho, Iolau. De Héracles e Mégara nasceram oito filhos, segundo Píndaro; três, conforme Apolodoro; sete ou cinco, consoante outras versões. Não importa o número. Talvez o que faça pensar é a reflexão de Apolodoro de que Héracles somente foi pai de filhos homens, como se de um macho quiçá só pudessem nascer machos... (Apol., 2,7,8). Hera, porém, preparou tranquilamente a grande vingança. Como protetora dos amantes legítimos, não poderia perdoar ao marido seu derradeiro adultério, ao menos no mito, sobretudo quando Zeus tentou dar a essa união ilegítima com Alcmena o signo da legitimidade (Diod., 4,9,3; Apol., 2,4,8), fazendo o menino sugar o leite imortal da esposa. Foi assim que a deusa lançou contra Héracles a terrível Λύσσα (L×ssa), a raiva, o furor, que, de mãos dadas com a ἄνοια (ánoia), a demência, enlouqueceu por completo o herói. Num acesso de insânia, ei-lo matando a flechadas ou lançando ao fogo os próprios filhos. Terminado o morticínio dos seus, investiu contra os de Íficles, massacrando dois. Sobraram dessa loucura apenas Mégara e Iolau, salvos pela ação rápida de Íficles. Recuperada a razão, o herói, após repudiar Mégara e entregá-la a seu sobrinho Iolau, dirigiu-se ao Oráculo de Delfos e pediu a Apolo que lhe indicasse os meios de purificar-se desse ἀκούσιος φόνος (akúsios phónos), desse “morticínio involuntário”, mas mesmo assim considerado “crime hediondo”, na mentalidade grega. A Pítia ordenou-lhe colocar-se ao serviço de seu primo Euristeu durante doze anos, ao que Apolo e Atená teriam acrescentado que, como prêmio de tamanha punição, o herói obteria a imortalidade. Existem variantes acerca dessa submissão de Héracles a Euristeu, que, aliás, no mito é universalmente tido e havido como um poltrão, um covarde, um deformado física e moralmente. Incapaz, até mesmo, de encarar o herói frente a frente, mandava-lhe ordens através do arauto Copreu, filho de Pélops, refugiado em Micenas. Proibiu, por medo, que Héracles penetrasse no recinto da cidade e, por precaução, mandou fabricar um enorme jarro de bronze como supremo refúgio. E não foi preciso que o herói o atacasse, para que Euristeu “usasse o vaso”. Mais de uma vez, como se verá, o rei de Micenas se serviu do esconderijo, só à vista das presas e monstros que lhe eram trazidos pelo filho de Alcmena. Numa palavra: Euristeu, incapaz de realizar mesmo o possível, impôs ao herói o impossível, vale dizer, a execução dos célebres Doze Trabalhos. Dizíamos, porém, que existem variantes, que explicam de outra maneira a submissão de Héracles ao rei de Micenas. Uma delas relata que Héracles, desejando retornar a Argos, dirigiu-se ao primo e este concordou, mas desde que aquele libertasse primeiro o Peloponeso e o mundo de determinados monstros. Uma outra, retomada pelo poeta da época alexandrina, Diotimo, apresenta Héracles como amante de Euristeu. Teria sido por mera complacência amorosa que o herói se submetera aos caprichos do amado, o que parece, aliás, uma ressonância tardia do discurso de Fedro no Banquete de Platão, 179. As variantes apontadas e outras de que não vale a pena falar, bem como a “condição de imortalidade”, sugerida ou imposta por Apolo e Atená, provêm simplesmente da reflexão do pensamento grego sobre o mito: a necessidade de justificar tantas provações por parte de um herói idealizado como o justo por excelência. Para as religiões de mistérios, na Hélade, os sofrimentos de Héracles configuram as provas por que tem que passar a psiqué, que se libera paulatina, mas progressivamente, dos liames do cárcere do corpo. 3 Os Doze Trabalhos são, pois, as provas a que o rei de Argos, o covarde Euristeu, submeteu seu primo Héracles. Num plano simbólico, as doze provas configuram um vasto labirinto, cujos meandros, mergulhados nas trevas, o herói terá que percorrer até chegar à luz, onde, despindo a mortalidade, se revestirá do homem novo, recoberto com a indumentária da imortalidade. Quanto ao número DOZE, trata-se de algo muito significativo. Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant2“é o número das divisões espáciotemporais, o produto dos quatro pontos cardeais pelos três níveis cósmicos. Divide o céu, visualizado como uma cúpula, em doze setores, os doze signos do zodíaco, mencionados desde a mais alta Antiguidade [...]. A combinação de dois números 12x5 origina os ciclos de 60 anos, quando se culminam os ciclos solar e lunar. Doze simboliza, pois, o universo em seu desenvolvimento cíclico espáciotemporal. Configura igualmente o universo em sua complexidade interna. O duodenário, que caracteriza o ano e o zodíaco, representa a multiplicação dos quatro elementos, água, ar, terra e fogo, pelos três princípios alquímicos, enxofre, sal e mercúrio, ou ainda os três estados de cada elemento em suas fases sucessivas: evolução, culminação e involução”. Na simbólica cristã, o doze tem um significado todo particular. A combinação do quatro do mundo espacial e do três do tempo sagrado, dimensionando a criação-recriação, produz o número doze, que é o do mundo concluído. Doze é outrossim o número da Jerusalém celeste: 12 portas, 12 apóstolos, 12 cadeiras...; é o número do ciclo litúrgico do ano de doze meses e de sua expressão cósmica, que é o Zodíaco. Para os escritores sagrados doze é o número da eleição, o número do povo de Deus, da Igreja. Jacó gerou doze filhos, ancestrais epônimos das doze tribos de Israel (Gn 35,23ss). A árvore da vida estava carregada com doze frutos; os sacerdotes tinham doze joias. Doze eram os Apóstolos. A Jerusalém celestial do Apocalipse 21,12 estava assinalada com o número doze: “E tinha um muro grande e alto com doze portas; e nas portas doze anjos, e uns nomes escritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel”. Logo a seguir, em 21,14, diz o Apocalipse: “E o muro da cidade tinha doze fundamentos e neles os doze nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro”. E o doze e seus múltiplos continuam por todo o capítulo 21. Os fiéis dos fins dos tempos serão 144.000, 12.000 de cada uma das doze tribos de Israel (Ap 7,4-8; 14,1). Também em torno daTávola Redondado rei Artur sentavam-se doze cavaleiros. Doze é, por conseguinte, o número de uma realização integral, de um fecho completo, de um uróboro. Desse modo, no Tarô, a carta do Enforcado (XII) marca o fim de um ciclo involutivo, seguido pelo da morte (XIII), que deve ser tomado no sentido de renascimento. Mostraremos esse décimo terceiro trabalho de Héracles... Voltemos às fadigas do herói-deus dos Helenos. Os mitógrafos da época helenística montaram um catálogo dos Doze Trabalhos em duas séries de seis. Os seis primeiros tiveram por palco o Peloponeso e os seis outros se realizaram em partes diversas do mundo então conhecido, de Creta ao Hades. Advirta-se, porém, que há muitas variantes, não apenas em relação à ordem dos trabalhos, mas igualmente no que tange ao número dos mesmos. Apolodoro, por exemplo, só admitia dez. Exceto a clava, que o próprio herói cortou e preparou de um tronco de oliveira selvagem, todas as suas demais armas foram presentes divinos: Hermes lhe deu a espada; Apolo, o arco e as flechas; Hefesto, uma couraça de bronze; Atená, um peplo; e Posídon ofereceu-lhe os cavalos. LEÃO DE NEMEIA3 Nemeia, nome de uma cidade e de um bosque na Argólida, foi o cenário do primeiro trabalho do herói. O Leão de Nemeia era um monstro de pele invulnerável, filho de Ortro, e este, filho de Tifão e de Équidna4, um outro monstro, sob forma de mulher-serpente. Esse Leão possuía uns irmãos célebres e terríveis: Cérbero, Hidra de Lerna, Quimera, Esfinge de Tebas... Criado pela deusa Hera ou à mesma emprestado pela deusa-Lua “Selene”, para provar Héracles, o monstro passava parte do dia escondido num bosque, perto de Nemeia. Quando deixava o esconderijo, o fazia para devastar toda a região, devorando-lhe os habitantes e os rebanhos. Entocado numa caverna, com duas saídas, era quase impossível aproximar-se dele. O herói atacou-o a flechadas, mas em vão, pois o couro do leão era invulnerável. Astutamente, fechando uma das saídas, o filho de Zeus o tonteou a golpes de clava e, agarrando-o com seus braços possantes, o sufocou. Com o couro do monstro o herói cobriu os próprios ombros e da cabeça do mesmo fez um capacete. Não insistimos em outros pormenores acerca desta primeira tarefa de Héracles, porque todos os episódios relativos ao Leão de Nemeia, inclusive a parte simbólica, foram estudados no Vol. I, p. 269. Igualmente se mostrou no Vol. II, p. 154-157, a importância da posse do crânio do inimigo abatido. Quanto à pele, com que o herói cobriu os ombros, além da invulnerabilidade, possuía como toda pele de determinados animais um mana, uma enérgueia muito forte, simbolizando, desse modo, a “insígnia da combatividade vitoriosa”do filho de Alcmena. HIDRA DE LERNA Como já se mostrou no Vol. I, p. 256, também este monstro com seu simbolismo foi bem estudado, pelo que nos abstemos de fazer repetições inúteis. Desejamos tão-somente acrescentar a interpretação simbólica e psicológica de Paul Diel, que nos parece muito pertinente. Para o autor de Le symbolisme dans la mythologie grecque, p. 208, “as múltiplas cabeças do monstro de corpo de serpente configuram os vícios múltiplos, nos quais se prolonga o ‘corpo’ da perversão, a vaidade. Vivendo num pântano, a Hidra é particularmente caracterizada como símbolo dos vícios banais. Enquanto o monstro viver, enquanto a vaidade não for dominada, as cabeças, símbolo dos vícios, renascerão, mesmo que, por uma vitória passageira, se consiga cortar uma ou outra. Para vencer o monstro, Héracles usa a espada, arma de combate espiritual, conjugada ao archote, que cauteriza as feridas, a fim de que, uma vez cortadas, as cabeças não mais possam renascer. O archote simboliza a purificação sublime”. JAVALI DE ERIMANTO Erimanto é uma escura montanha da Arcádia, onde se escondia um monstruoso javali, que Héracles deveria trazer vivo ao rei de Argos. Com gritos poderosos, o herói fê-lo sair do covil e, atraindo a besta-fera para uma caverna coberta de neve, o fatigou até que lhe foi possível segurá-lo pelo dorso e conduzi-lo ao primo. Ao ver o monstro, Euristeu, apavorado, escondeu-se no jarro de bronze, de que se falou mais acima. O simbolismo do javali está diretamente relacionado com a tradição hiperbórea, com aquele nostálgico paraíso perdido, onde se localizaria a Ilha dos Bem-Aventurados. Nesse enfoque, segundo comentam J. Chevalier e Alain Gheerbrant, o javali configuraria o poder espiritual, em contraposição ao urso, símbolo do poder temporal. Assim concebida, a simbólica do javali estaria relacionada com o retiro solitário do druida nas florestas: nutre-se da glande do carvalho, árvore sagrada, e a javalina com seus nove filhotes escava a terra em torno da macieira, a árvore da imortalidade. A respeito de toda a simbólica do javali já se falou no Vol. II, p. 67-68. Héracles, apoderando-se do símbolo do poder espiritual, escala mais um degrau no rito iniciático. CORÇA DE CERINIA Essa corça de Cerinia, segundo Calímaco, Hino a Ártemis, 98ss, era uma das cinco que Ártemis encontrou no monte Liceu. Quatro a deusa as atrelou em seu carro e a quinta a poderosa Hera a conduziu para o monte Cerinia, com o fito de servir a seus intentos contra Héracles. Consagrada à irmã gêmea de Apolo, esse animal, cujos pés eram de bronze e os cornos de ouro, trazia a marca do sagrado e, portanto, não podia ser morta. Mais pesada que um touro, se bem que rapidíssima, o herói, que deveria trazê-la viva a Euristeu, perseguiu-a durante um ano. Já exausto, o animal buscou refúgio no monte Artemísion, mas, sem lhe dar tréguas, Héracles continuou na caçada e, quando a corça tentou atravessar o rio Ládon, na Arcádia, ferindoa levemente, Alcides logrou apoderar-se dela. Quando já se dirigia a Micenas, encontrou-se com Apolo e Ártemis. Estes tentaram tirar-lhe o animal, mas, afirmando cumprir ordens de Euristeu, o filho de Alcmena conseguiu, por fim, prosseguir seu caminho. Píndaro apresenta uma versão acentuadamente mística dessa longa perseguição. Consoante o poeta tebano, Olímpicas, 3,29ss, Héracles teria seguido a corça em direção ao norte, através da Ístria, chegando ao país dos Hiperbóreos, onde, na Ilha dos BemAventurados, foi benevolamente acolhido por Ártemis. A interpretação pindárica é como que uma antecipação da única tarefa realmente importante do herói, sua liberação interior. Sua estupenda vitória, após um ano de tenaz perseguição, apossando-se da corça de cornos de ouro e pés de bronze, tendo chegado ao norte e ao céu eternamente azul dos Hiperbóreos, configura a busca da sabedoria, tão difícil de se conseguir. A simbólica dos pés de bronze há que ser interpretada a partir do próprio metal. Enquanto sagrado, o bronze isola o animal do mundo profano, mas, enquanto pesado, o escraviza à terra. Têm-se aí os dois aspectos fundamentais da interpretação: o diurno e o noturno dessa corça. Seu lado puro e virginal é bem acentuado, mas o “peso do metal” poderá pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos grosseiros, que lhe impedem qualquer voo mais alto. Paul Diel vai um pouco mais longe na hermenêutica da corça dos pés de bronze: “A corça, como o cordeiro, simboliza uma qualidade do espírito, que se contrapõe à agressividade dominadora. Os pés de bronze, quando aplicados à sublimidade, configuram a força da alma. A imagem traduz a paciência e o esforço na consecução da delicadeza e da sensibilidade sublime, especificando, igualmente, que essa mesma sensibilidade representada pela corça, embora se oponha à violência, possui um vigor capaz de preservá-la de toda e qualquer fraqueza espiritual”5que está bem configurada nos pés de bronze. De outro lado, embora consagrada a Ártemis, a corça, no mito grego, é propriedade de Hera, deusa protetora do amor legítimo e do himeneu. Símbolo essencialmente feminino, o brilho de seus olhos é, muitas vezes, cotejado com a limpidez do olhar de uma jovem. O Cântico dos Cânticos usa o nome da corça numa fórmula de esconjuro, para preservar a tranquilidade do amor: “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças do campo, que não perturbeis nem acordeis a minha amada, até que ela queira” (2,7). AVES DO LAGO DE ESTINFALO Numa espessa e escura floresta, às margens do lago de Estinfalo, na Arcádia, viviam centenas de aves de porte gigantesco, que devoravam os frutos da terra, em toda aquela região. Segundo outras fontes, eram antropófagas e liquidavam os passantes com suas penas aceradas, de que se serviam como de dardos mortíferos. A dificuldade consistia em fazê-las sair de seus escuros abrigos na floresta. Hefesto, a pedido de Atená, fabricou para o herói umas castanholas de bronze. Com o barulho ensurdecedor desses instrumentos, as aves levantaram voo e foram mortas com flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna. Uma interpretação evemerista do mito faz dessas aves filhas de um certo herói Estinfalo. Héracles as matou, porque lhe negaram hospitalidade, concedendo-a, logo depois, a seus inimigos, os moliônides, isto é, Ctéato e Êurito. Com suas flechas certeiras, símbolo da espiritualização, Héracles liquidou as Aves do lago de Estinfalo, cujo voo obscurecia o sol. Como o pântano, o lago reflete a estagnação. As aves que dele levantam voo simbolizam o impulso de desejos múltiplos e perversos. Saídos do inconsciente, onde se haviam estagnado, põem-se a esvoaçar e sua afetividade perversa acaba por ofuscar o espírito. A vitória do filho de Alcmena é mais um triunfo sobre as “trevas”. ESTÁBULOS DE AUGIAS Rei de Élis, no Peloponeso, Augias, filho de Hélio, era dono de um imenso rebanho. Mas, tendo deixado de limpar seus estábulos durante trinta anos, provocou a esterilidade nas terras da Elida, por falta de estrume. Para humilhar o primo, Euristeu lhe ordenou que fosse limpá-los. O herói, antes de iniciar sua tarefa, pediu a Augias, como salário, um décimo do rebanho, comprometendo-se a remover a montanha de estrume num só dia. Julgando impossível a empresa, o rei concordou com a exigência feita. Tendo desviado para dentro dos estábulos o curso de dois rios, Alfeu e Peneu, a tarefa foi executada com precisão e espantosa rapidez. Augias, no entanto, deixou de cumprir a promessa, e, como o herói tomara por testemunha o jovem Fileu, o rei expulsou de seu reino ao filho de Alcmena. Para se vingar, o herói reuniu um exército de voluntários da Arcádia e marchou contra Élis. Augias, tendo colocado à frente das tropas seus dois sobrinhos, Ctéato e Êurito, os moliônides, conseguiu repelir o ataque de Héracles, que, além do mais, quase perdeu seu irmão Íficles, que foi gravemente ferido em combate. Mais tarde, todavia, quando da celebração dos terceiros Jogos Ístmicos, como os habitantes de Élis tivessem enviado os moliônides para representálos nos Agônes, o herói, como se comentou na Introdução, cap. I, os matou numa emboscada. Não satisfeito, organizou uma segunda expedição contra a Élida: tomou a cidade de Élis, matou Augias e entregou o trono a Fileu, que, anteriormente, testemunhara a seu favor. Foi após essa vitoriosa campanha contra Augias que Héracles fundou os Jogos Olímpicos, como recorda Píndaro, Olímpicas, 10,25s. Segundo Diel, os estábulos do rei Augias “configuram o inconsciente. A estrumeira representa a deformação banal. O herói faz passar as águas do Alfeu e Peneu através dos estábulos imundos, o que simboliza a purificação. Sendo o rio a imagem da vida que se escoa, seus acidentes sinuosos refletem os acontecimentos da vida ‘corrente’ [...]. Irrigar o estábulo com as águas de um rio significa purificar a alma, o inconsciente da estagnação banal, graças a uma atividade vivificante e sensata”6. Estes seis primeiros Trabalhos de Héracles têm por cenário, já se mostrou linhas acima, em 3, a própria Hélade; os seis últimos, mais difíceis e penosos – afinal a iniciação é um progresso na dor –, levarão o filho de Alcmena para outras paragens. Trata-se, no fundo, de um caminhar em direção a Thánatos, conforme se há de mostrar. TOURO DE CRETA Minos, rei de Creta, prometera sacrificar a Posídon tudo quanto de especial saísse do mar. O deus fez surgir das espumas um touro maravilhoso. Encantado com a beleza do animal, o rei mandou leválo para junto de seu rebanho e sacrificou a Posídon um outro. Irritado, o deus enfureceu o touro, que saiu pela ilha, fazendo terríveis devastações. Foi este animal feroz, que lançava chamas pelas narinas, que Euristeu ordenou a Héracles de trazer vivo para Micenas. Não podendo contar com o auxílio de Minos, que se recusou a ajudá-lo, o herói, segurando o monstro pelos chifres, conseguiu dominá-lo e, sobre o dorso do mesmo, regressou à Hélade. Euristeu o ofertou à deusa Hera, mas esta, nada querendo que proviesse de Héracles, o soltou. O animal percorreu a Argólida, atravessou o Istmo de Corinto e ganhou a Ática, refugiando-se em Maratona, onde Teseu, mais tarde, o capturou e sacrificou a Apolo Delfínio. Como já se discorreu sobre a simbologia do touro no Vol. II, p.35ss, resta-nos apenas acrescentar que a vitória de Héracles sobre o touro feroz, que lançava chamas pelas narinas, é o triunfo sobre a força bruta da tendência dominadora. A cada trabalho o grande herói vai se aperfeiçoando e se encontrando... ÉGUAS DE DIOMEDES Diomedes, filho de Ares e Pirene, o cruel rei da Trácia, possuía quatro éguas, Podargo, Lâmpon, Xanto e Dino, que eram alimentadas com as carnes dos estrangeiros que as tempestades lançavam às costas da Trácia. Euristeu ordenou a Héracles de pôr termo a essa prática selvagem e trazer as éguas para Argos. O herói foi obrigado a lutar com Diomedes, que, vencido, foi lançado às suas próprias bestas antropófagas. Após devorarem o rei, as éguas estranhamente se acalmaram e foram, sem dificuldade alguma, conduzidas a Micenas. Euristeu as deixou em liberdade e as mesmas acabaram sendo devoradas pelas feras do monte Olimpo. Foi durante a caminhada do herói em direção à Trácia que se passou o episódio da ressurreição de Alceste, tema de que se aproveitou Eurípides em sua tragédia homônima, que traduzimos para Bruno Buccini Editor, Rio de Janeiro, 1968. Quando Héracles passou pela Tessália, mais precisamente por sua capital, Feres, o luto se apossara do palácio real. É que o rei, Admeto, tendo sido sorteado pelas Queres para baixar ao Hades, conseguira, por intervenção de Apolo, que as Moiras o poupassem, até novo sorteio, se alguém se oferecesse para morrer em seu lugar. Acontece que a empresa não era fácil e até mesmo os pais de Admeto, já idosos, recusaram-se a fazer tão grande sacrifício pelo filho. Somente Alceste, sua esposa, apesar de jovem e bela, num gesto heroico, espontaneamente se prontificou a dar a vida pelo marido. Quando Admeto se preparava para solenemente celebrar as exéquias da esposa, eis que surge Héracles, pedindo-lhe hospitalidade. Não obstante a tristeza e o luto que pesavam sobre o palácio real, o rei de Feres acolheu dignamente o filho de Alcmena. Ao ser informado, um pouco mais tarde, do que se passava, Héracles, apelando para seus braços possantes, dirigiu-se apressadamente para o túmulo da rainha. E foi num combate gigantesco que o grande herói levou de vencida a Thánatos, a Morte, arrancando de suas garras a esposa de Admeto, Alceste, mais jovem e mais bela que nunca. Para Paul Diel, do ponto de vista simbólico, sendo as éguas, no relato em pauta, “símbolo da perversidade, as éguas antropófagas de Diomedes configuram a perversidade que devora o homem: a banalização, causa da morte da alma”7. CINTURÃO DA RAINHA HIPÓLITA Foi a pedido de Admeta, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera argiva, que Héracles, acompanhado por alguns voluntários, inclusive Teseu, seguiu para o fabuloso país das Amazonas, a fim de trazer para Admeta o famoso Cinturão de Hipólita, rainha dessas guerreiras indomáveis. Tal Cinturão havia sido dado a Hipólita pelo deus Ares, como símbolo do poder temporal que a Amazona exercia sobre seu povo. A viagem do herói teve um incidente mais ou menos sério. Tendo feito escala na ilha de Paros, dois de seus companheiros foram assassinados pelos filhos de Minos. É que Nefálion, um dos filhos do rei cretense com a ninfa Pária, havia se estabelecido na ilha supracitada com seus irmãos Eurimedonte, Crises e Filolau e com dois sobrinhos, Alceu e Estênelo. Pois bem, foram esses filhos de Minos que, com seu gesto impensado, provocaram a ira de Héracles, que, após matar os quatro irmãos, ameaçou exterminar com todos os habitantes de Paros. Estes mandaram-lhe uma embaixada, implorando-lhe que escolhesse dois cidadãos quaisquer da ilha em substituição aos dois companheiros mortos. O herói aceitou e, tendo tomado consigo Alceu e Estênelo, prosseguiu viagem, chegando ao porto de Temiscira, pátria das Amazonas. Hipólita concordou em entregar-lhe o Cinturão, mas Hera, disfarçada numa Amazona, suscitou grave querela entre os companheiros do herói e as habitantes de Temiscira. Pensando ter sido traído pela rainha, Héracles a matou. Uma variante relata que as hostilidades se iniciaram, quando da chegada de Alcides. Tendo sido feita prisioneira uma das amigas ou irmã de Hipólita, Melanipe, a rainha das Amazonas concluiu tréguas com o filho de Alcmena e concordou em entregar-lhe o Cinturão em troca da liberdade de Melanipe. Foi no decorrer dessa luta, relata uma variante, que Teseu, por seu valor e desempenho, recebeu de Héracles, como recompensa, a Amazona Antíope. No retorno dessa longa expedição, o herói e seus companheiros passaram por Troia, que, no momento, estava assolada por uma grande peste. O motivo do flagelo, já relatado no Vol. II, p. 92, foi a recusa do rei Laomedonte em pagar a Apolo e a Posídon os serviços prestados por ambos na construção das muralhas de Ílion. Enquanto Apolo lançara a peste contra Tróada, Posídon fizera surgir do mar um monstro que lhe dizimava a população. Consultado o oráculo, este revelou que a peste só teria fim se o rei expusesse sua filha Hesíona para ser devorada pelo monstro. A jovem, presa a um rochedo, estava prestes a ser estraçalhada pelo dragão, quando Héracles chegou. O herói prometeu a Laomedonte salvar-lhe a filha, se recebesse em troca as éguas que Zeus lhe ofertara por ocasião do rapto de Ganimedes. O rei aceitou, feliz, a proposta do herói e este, de fato, matou o monstro e salvou Hesíona. Ao reclamar, todavia, a recompensa prometida, Laomedonte se recusou a cumpri-la. Ao partir de Troia, Héracles jurou que um dia voltaria e tomaria a cidade. E o cumpriu, segundo se verá. Para Paul Diel a vitória de Héracles sobre as Amazonas é extremamente significativa, porquanto se trata de “um símbolo representativo de um dos dois aspectos da escolha nefasta que concerne necessariamente quer à mulher muito dominadora, quer à muito banal. Ora, as Amazonas são simbolicamente caracterizadas como mulheres assassinas de homens: no fundo, desejam substituílos, rivalizar com os mesmos, opondo-se a eles, combatendo-os, ao invés de completá-los. Já que todo simbolismo se reporta à vida da alma, a Amazona, assassina da alma, é, indubitavelmente, a mulher que se opõe, de maneira doentia, histérica, à qualidade essencial, a única que interessa ao mito: o impulso espiritual. Esse antagonismo embota a força essencial, própria da mulher, a qualidade de amante e de mãe, o calor da alma. Existem, claro está, mulheres cuja força espiritual ultrapassa a da maioria dos homens. A exclusividade da escolha só tem importância para o homem e a mulher dotados de qualidades que ultrapassam a norma e que, para se desenvolver, exigem a complementação; e o que o mito estigmatiza através do símbolo ‘Amazona’ (o que a mulher neurótica realiza) é a ausência da virtude especificamente feminina e a predominância de uma rivalidade exaltada, puramente imaginativa, com a virtude masculina. O símbolo ‘Héracles, vencedor da rainha das Amazonas’, exclui da história do herói, atraído pela banalização, o atrativo contagiante de um tipo feminino, que, normalmente, é perigoso para os heróis sentimentais”8. Os Trabalhos de Héracles, tomados em bloco, configurariam a luta contra a banalização. Paul Diel preocupou-se, todavia, apenas com o lado “amazônico” da excursão vitoriosa do herói, mas deixou de lado o motivo principal da viagem, a busca do Cinturão de Hipólita. Na realidade, o cinturão, conforme nos mostram Chevalier e Gheerbrant, possui um simbolismo muito rico. Vamos tentar sintetizá-lo. O cinturão ou simplesmente o cinto, atado em torno dos rins, por ocasião do nascimento, religa o um ao todo, ao mesmo tempo que liga o indivíduo. Toda a ambivalência de sua simbólica está resumida nestes dois verbos, ligar e religar. Religando, o cinto dá maior segurança e tranquilidade, reanima, transmite força e poder; ligando, acarreta, ao revés, a submissão, a dependência e, por conseguinte, a restrição, escolhida ou imposta, da liberdade. Materialização de um engajamento, de um juramento, de um voto feito, o cinto assume um valor iniciático, sacralizante e, materialmente falando, torna-se uma insígnia visível, as mais das vezes honrosa, que traduz a força e o poder de que está investido seu portador. Para não multiplicar os exemplos, é bastante observar as “faixas” dos judocas, de cores variadas e significativas, os cinturões, em que se penduram as armas e os inumeráveis cintos votivos, iniciáticos e de aparato, mencionados pelas tradições e ritos de todas as culturas. Na Bíblia, o cinto é símbolo de uma união estreita, de um vínculo permanente, no duplo sentido de união na bênção e de tenacidade na maldição (Sl 108,18-19): Vestiu-se de maldição como de veste, e ela penetrou como água nas suas entranhas, e como azeite nos seus ossos. Que ela seja para ele o vestido com que se cobre, e como o cinto com que se cinge. Os judeus celebravam a Páscoa, consoante a ordem de Javé, com um cinto em torno dos rins9, pois que o cinto, como está em Jr 13,1-11, é um elo precioso que une Javé a seu povo. A composição simbólica do cinturão espelha a vocação de seu portador, configura a humildade ou o poder, designando sempre uma escolha e um exercício concreto dessa escolha. Quando Cristo diz a Pedro que, jovem, ele se cingia, mas um tempo viria em que outro o haveria de cingir (Jo 21,18), isto significa também que Pedro podia outrora escolher seu destino, mas que, depois, ele compreenderia o apelo da vocação: Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e ias aonde desejavas; mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos, outro te cingirá e te levará para onde tu não queres. O cinto é igualmente apotropaico: protege contra os maus espíritos, como os “cinturões” de proteção em torno das cidades as defendem dos inimigos. Para Auber, citado por Chevalier e Gheerbrant, “cingir os rins nas caminhadas ou em toda e qualquer ação viva e espontânea significava para os antigos uma prova de energia e, por conseguinte, de desprezo pela frouxidão e indolência; era ainda um sinal de continência nos hábitos e de pureza no coração [...]. Para S. Gregório, cingir os rins era um símbolo de castidade”10. É nesse sentido que, ligado à continência, pode-se interpretar o cinto de couro ou corda, usado em certas ordens e congregações religiosas. Mas o símbolo não para por aí, pois que os rins, consoante a Bíblia, configuram também não só o poder e a força, mas igualmente a justiça, como diz Isaías 11,5: A justiça será o cinto dos seus lombos e a fé o talabarte de seus rins. Símbolo de ligar e religar, símbolo de humildade e submissão, símbolo do poder e da justiça, mas igualmente do “poder castrador”, símbolo da continência, o Cinturão de Hipólita passou do “poder castrador” para o poder de continência: deixou de ser usado por uma Amazona, para guarnecer os rins de Admeta, sacerdotisa de Hera. BOIS DE GERIÃO Quinto Horácio Flaco, numa Ode, 2,14,7s, deveras melancólica, nos fala do tríplice Gerião, retido para sempre na água sinistra, que será, um dia, transposta por todos nós... Gerião, filho de Crisaor e, portanto, neto de Medusa, era um gigante monstruoso de três cabeças, que se localizavam num corpo tríplice, mas somente até os quadris. Habitava a ilha de Eritia, situada nas brumas do Ocidente, muito além do imenso Oceano, segundo já se falou no Vol. I, p. 254. Seu imenso rebanho de bois vermelhos era guardado pelo pastor Eurítion e pelo monstruoso cão Ortro, filho de Tifão e Équidna, não muito longe do local onde também Menetes pastoreava o rebanho de Plutão, o deus dos mortos. Foi por ordem de Euristeu que Héracles deveria se apossar do rebanho do Gigante e trazê-lo até Micenas. A primeira dificuldade séria era atravessar o Oceano. Para isso tomou por empréstimo a Taça do Sol. Tratava-se, na realidade, de uma Taça gigantesca, em que Hélio, o Sol, todos os dias, à noitinha, após mergulhar nas entranhas catárticas do Oceano, regressava a seu palácio, no Oriente. A cessão da Taça por parte de Hélio não foi, entretanto, espontânea. O herói já caminhava, havia longo tempo, pelo extenso deserto da Líbia, e os raios do Sol eram tão quentes e o calor tão violento, que Héracles ameaçou varar o astro com suas flechas. Hélio, aterrorizado, emprestou-lhe sua Taça. Chegando à ilha de Eritia, defrontou-se, de saída, com o cão Ortro, que foi morto a golpes de clava. Em seguida, foi a vez do pastor Eurítion. Gerião, posto a par do acontecido pelo pastor Menetes, entrou em luta com o herói, às margens do rio Ântemo, mas foi liquidado a flechadas. Terminadas as justas, embarcou o rebanho na Taça do Sol e reiniciou a longa e penosa viagem de volta, chegando primeiramente a Tartesso, cidade da Hispânia Bética, localizada na foz do rio Bétis. Foi durante todo esse tumultuado retorno à Grécia que se passou a maioria das gestas extraordinárias, que são atribuídas ao filho de Zeus no Mediterrâneo ocidental. Já em sua viagem de ida libertara a Líbia de um semnúmero de monstros e, em seguida, para lembrar sua passagem por Tartesso, ergueu duas colunas, de uma e de outra parte, que separa a Líbia da Europa, as chamadas Colunas de Héracles, isto é, o Rochedo de Gibraltar e o de Ceuta. Em seu caminho de volta, foi diversas vezes atacado por bandidos, que lhe cobiçavam o rebanho. Tendo partido pelo Sul e pelas costas da Líbia, Héracles regressou pelo Norte, seguindo as costas da Espanha, e depois as da Gália, passando pela Itália e a Sicília, antes de penetrar na Hélade. Todo esse complicado itinerário do herói estava, outrora, juncado de Santuários a ele consagrados. A todos estavam vinculadas lendas e mitos locais, que mantinham, de certa forma, alguma relação com o episódio do Rebanho de Gerião. Na Ligúria foi atacado por um bando de aborígenes belicosos. Após grande carnificina, o herói, percebendo que não havia mais flechas em sua aljava e, como estivesse em grande perigo, invocou a seu pai Zeus, que fez chover pedras do céu e com estas pôs em fuga os inimigos. Ainda na Ligúria, dois filhos de Posídon, Ialébion e Dercino, tentaram tomar-lhe os bois, mas foram mortos após cruenta disputa. Continuando seu caminho através da Etrúria, atingiu o Lácio, em cuja travessia, exatamente no local onde se ergueria a futura Roma, foi obrigado a matar o monstruoso e hediondo Caco, cujo mito é relatado pormenorizadamente por Evandro a Eneias (Eneida, 8,193267). Após ser hospedado pelo rei Evandro, o herói prosseguiu viagem, mas em Régio, na Calábria, fugiu-lhe um touro, que atravessou a nado o estreito que separa a Itália da Sicília e foi, desse modo, que miticamente a Itália recebeu seu nome, pois que, em latim, uitulus significa “vitelo, vitela, bezerro”. Héracles foi ao encalço do animal e, para reavê-lo, teve que lutar e matar o rei Érix, deixando-lhe o reino entregue aos nativos, mas profetizando que, um dia, um seu descendente se apoderaria do mesmo. Isto realmente aconteceu, na época histórica, quando um “descendente” de Héracles, o lacedemônio Dorieu, fundou uma colônia, na Sicília, na região dos Élimos. Finalmente, o herói, com todas as cabeças de gado, encaminhou-se para a Grécia; mas ao tocar a margem helênica do mar Jônio, o rebanho inteiro foi atacado por moscardos, enviados por Hera. Enlouquecidos, os animais se dispersaram pelos contrafortes das montanhas da Trácia. O herói os perseguiu e cercou por todos os lados, mas só conseguiu reunir uma parte. O rio Estrímon, que, por todos os meios, procurara dificultar essa penosa caçada ao rebanho disperso, foi amaldiçoado e é por isso que seu leito está coberto de rochedos, tornando-o impraticável à navegação. Ao termo dessa acidentada “peregrinação iniciática”, o infatigável filho de Alcmena entregou ao rei de Micenas o que sobrara do rebanho, que foi sacrificado a Hera. Angelo Brelich observa argutamente que o roubo do rebanho e a disputa pelo mesmo têm um sentido religioso e social no mito, grandemente significativo. Tem razão o autor, ao afirmar que os heróis raramente se dedicam ao furto de tesouros, como Trofônio e os seus, mas sim ao de rebanhos, assunto muito frequente na mitologia heroica. Pausânias, 4,6,3ss, viu bem a origem social do problema, ponderando que a riqueza “naqueles tempos” consistia antes do mais na posse de grandes armentos. Diga-se, aliás, de caminho, que em latim pecunia, “dinheiro, riqueza”, provém de pecu, “rebanho”, donde peculium, “pecúlio”, pequena parte do rebanho doada ao escravo, que guardava o armento; depois, pecúlio tomou um sentido mais lato de propriedade particular; de pecu se derivou igualmente, em latim, peculatus, concussão, “peculato”, que seria, fugindo “em parte” aos moldes jurídicos, uma como que rapinagem do suor do rebanhopovo... Acrescente-se logo que, se o latim grex, gregis possui também o sentido de “rebanho, manada”, egregius, “egrégio, importante”, é a “grei”, a ovelha ou o carneiro de escol, tirado do (e) rebanho (grex, gregis), como diz o gramático Sextus Pompeius Festus, De Verborum Significatione, “Acerca do significado das palavras”, 21,20: unde et egregius dictus e grege lectus, “donde também egrégio se diz do que foi escolhido do rebanho (e grege)”. Voltemos, porém, à pilhagem e à disputa do rebanho, a grande fonte de riquezas, illo tempore. Vimos como Héracles, após furtar os bois de Gerião, foi assediado em todo o percurso de seu retorno à Hélade por outras personagens míticas, que tentam arrebatar-lhe o rebanho, como Ialébion e Dercino (Apol., 2,109), o monstruoso Caco e Érix. Grandes acontecimentos míticos, acrescenta Brelich11, se relacionam com o rebanho, pouco importa que seja com o furto, a defesa ou com a vingança pelo roubo do mesmo. Hesíodo, Trabalhos e Dias, 161-163, falando dos heróis criados por Zeus, acrescenta que, na Guerra Tebana, muitos deles “pereceram, lutando em defesa dos rebanhos de Édipo”. O litígio entre Anfitrião e Ptérela, segundo se viu, teve por causa o roubo do rebanho de Eléctrion. O furto de rebanhos, no entanto, se prende igualmente a um motivo de caráter religioso: o casamento. O cometimento central de Melampo em furtar os bois de Fílaco e do filho deste último, Íficlo, era possibilitar que seu próprio irmão Bias obtivesse a mão de Pero, filha de Neleu, em troca do rebanho furtado (Od., XI, 281ss). A exigência de um rebanho como preço da mão de uma jovem aparece igualmente no mito de Ifídamas. É preciso levar em conta, entretanto, que o rapto de mulheres e o furto de rebanhos, fatos em si mesmos reprováveis e reprovados pela sensibilidade moderna e certamente pelo classicismo grego, eram empreendimentos comuns e normais naquela época de formação dos mitos e espelhavam o hábito real de uma sociedade arcaica de guerreiros nômades. Desse modo, pode-se acreditar que esses roubos e raptos se constituíam, ao contrário, em gestas extraordinárias e dignas de um herói. No que diz respeito ao simbolismo dessa exaustiva tarefa do herói, Paul Diel julga que a morte de Gerião, o gigante de três corpos, configura a vitória de Héracles sobre o índice de três formas de perversidade: a vaidade banal, a devassidão e a dominação despótica. BUSCA DO CÃO CÉRBERO O décimo primeiro Trabalho imposto por Euristeu ao primo foi a κατὰβαοις (katábasis), a “catábase” ao mundo dos mortos, para de lá trazer Cérbero, cão de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes, guardião inexorável do reino de Hades e Perséfone. Impedia que lá penetrassem os vivos e, quando isto acontecia, não lhes permitia a saída, a não ser com ordem expressa de Plutão. Jamais Héracles, como Psiqué, teria podido realizar semelhante proeza, se não tivesse contado, por ordem de Zeus, com o auxílio de Hermes e Atená, quer dizer, com o concurso do que não erra o caminho e da que ilumina as trevas. Pessoalmente, o herói se preparou, fazendo-se iniciar nos Mistérios de Elêusis, que, entre outras coisas, ensinavam como se chegar com segurança à outra vida. Segundo a tradição mais seguida, o herói desceu pelo cabo Tênaro, na Lacônia, uma das entradas clássicas que dava acesso direto ao mundo dos mortos. Vendo-o chegar ao Hades, os mortos fugiram espavoridos, permanecendo onde estavam apenas Medusa e Meléagro. Contra a primeira o herói puxou a espada, mas Hermes o advertiu de que se tratava apenas de um eídolon, de uma sombra vã; contra o segundo, Héracles retesou seu arco, mas o desventurado Meléagro contou-lhe de maneira tão comovente seus derradeiros momentos na terra, que o filho de Alcmena se emocionou até as lágrimas: poupou-lhe o eídolon e ainda prometeu que, no retorno, lhe desposaria a irmã Dejanira. O mito de Meléagro, cuja vida dependia do tempo em que ficasse aceso um tição, e a luta de Héracles com o rio Aqueloo pela mão de Dejanira, já foram relatados, respectivamente, nos Vols. I, p. 274, e II, p. 182. Mais adiante, encontrou Pirítoo e Teseu, vivos, mas presos às cadeiras, em que se haviam sentado no banquete fatal, assunto de que se tratará no capítulo seguinte. Um pouco mais à frente deparou com Ascálafo e resolveu libertá-lo. Esse Ascálafo, filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte, estava presente no jardim do Hades, quando Perséfone, coagida por Hades, comeu um grão de romã, o que lhe impedia a saída do mundo ctônio. Tendo-a denunciado, o filho de Aqueronte foi castigado por Deméter, que o transformou em coruja, segundo se viu no cap. I, 4, do Vol. II. Existe, porém, uma variante: para castigar a indiscrição de Ascálafo, a senhora de Elêusis colocara sobre ele um imenso rochedo. Foi desse tormento que o herói o libertou, embora a deusa tenha, em contrapartida, substituído um castigo por outro, transformando-o em coruja. Héracles não foi só o maior dos heróis, mas igualmente o mais humano de todos eles. Mais uma vez o encontramos penalizado com a sorte alheia: vendo que no Hades os mortos eram apenas eídola, fantasmas abúlicos, resolveu “reanimá-los”, mesmo que fosse por alguns instantes. Para tanto, tendo que fazer libações sangrentas aos mortos, imaginou sacrificar algumas reses do rebanho de Hades. Como o pastor Menetes quisesse impedi-lo até mesmo de se aproximar dos animais, o herói o apertou em seus braços possantes, quebrando-lhe várias costelas. Não fora a pronta intervenção de Perséfone, Menetes iria aumentar, mais cedo, o número dos abúlicos do Hades... Finalmente Héracles chegou diante de Plutão e, sem mais, pediulhe para levar Cérbero para Micenas. Hades concordou, desde que o herói não usasse contra o monstro de suas armas convencionais, mas o capturasse sem feri-lo, revestido apenas de sua couraça e da pele do Leão de Nemeia. Héracles agarrou-se com Cérbero e, quase sufocado, o guardião do reino dos mortos perdeu as forças e aquietou-se. Subindo com sua presa, passou por Trezena e dirigiu-se rapidamente para Micenas. Vendo Cérbero, Euristeu refugiou-se em sua indefectível talha de bronze. Não sabendo o que fazer com o monstro infernal, Héracles o levou de volta a Plutão. Embora já se tenha dito alguma coisa a respeito do simbolismo de Cérbero, no Vol. I, p. 255-256, voltaremos ainda ao assunto no capítulo sobre Teseu. A respeito da κατὰβαοις (katábasis), da “descida” de Héracles ao Hades, sabe-se que esta configura o supremo rito iniciático: a catábase, a morte simbólica, é a condição indispensável para uma anábase, uma “subida”, uma escalada definitiva na busca da ἀναγνώρισις (anagnórisis), do autoconhecimento, da transformação do que resta do homem velho no homem novo. A esse respeito escreveu acertadamente Luc Benoist: “A viagem subterrânea, durante a qual os encontros com os monstros míticos configuram as provações de um processo iniciático, era, na realidade, um reconhecimento de si mesmo, uma rejeição dos resíduos psíquicos inibidores, um ‘despojamento dos metais’, uma ‘dissolução das cascas’, consoante a inscrição gravada no pórtico do templo de Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’”12. POMOS DE OURO DO JARDIM DAS HESPÉRIDES Quando do hieròs gámos, do casamento sagrado de Zeus e Hera, esta recebeu de Geia, como presente de núpcias, algumas maçãs de ouro. A esposa de Zeus as achou tão belas, que as fez plantar em seu Jardim, no extremo Ocidente. E, como as filhas de Atlas, que ali perto sustentava em seus ombros a abóbada celeste, costumavam pilhar o Jardim, a deusa colocou os pomos e a árvore em que estavam engastados sob severa vigilância. Um dragão imortal, de cem cabeças, filho de Tifão e Équidna, e as três ninfas do Poente, as Hespérides, Egle, Eritia e Hesperaretusa, isto é, a “brilhante, a vermelha e a Aretusa do poente”, exatamente o que acontece com as três colorações do céu, quando o sol vai desaparecendo no ocidente, guardavam, dia e noite, a árvore e seus pomos de ouro. A derradeira tarefa do herói incansável consistia, exatamente, em trazê-los a Euristeu. O primeiro cuidado de Alcides foi pôr-se a par do caminho a seguir para chegar ao Jardim das Hespérides e, para tanto, tomou a direção do Norte. Atravessando a Macedônia, foi desafiado por Cicno, filho de Ares e Pelopia, uma das filhas de Pélias. Violento e sanguinário, assaltava sobretudo os peregrinos, que se dirigiam ao Oráculo de Delfos. Após assassiná-los, oferecia-lhes os despejos a seu pai Ares. Em rápido combate o herói o matou, mas teve que defrontar-se com o próprio deus, que pretendia vingar o filho. Atená desviou-lhe o dardo mortal, e o herói, então, o feriu na coxa, obrigando Ares a fugir para o Olimpo. Depois, através da Ilíria, alcançou as margens do Erídano (rio Pó) e aí encontrou as ninfas do rio, filhas de Zeus e Têmis, as quais viviam numa gruta. Interrogadas por Héracles, elas lhe revelaram que somente Nereu era capaz de informar com precisão como chegar ao Jardim das Hespérides. Nereu, para não indicar o itinerário, transformou-se de todas as maneiras, mas o filho de Zeus o segurou com tanta força, que o deus das metamorfoses acabou por revelar a localização da Árvore das Maçãs de Ouro. Das ondas do mar, residência de Nereu, o herói chegou à Líbia, onde lutou com o gigante Anteu, filho de Posídon e de Geia. De uma força prodigiosa, obrigava a todos os que passavam pelo deserto líbico a lutarem com ele e invariavelmente os vencia e matava. Héracles, percebendo que seu competidor, quando estava prestes a ser vencido, apoiava firmemente os pés na Terra, sua mãe, e dela recebia energias redobradas, deteve-o no ar e o sufocou. Tomou por esposa, em seguida, a mulher da vítima, Ifínoe, e deu-lhe um filho, chamado Palêmon. Para vingar seu amigo Anteu, os Pigmeus, que habitavam os confins da Líbia e não tinham mais que um palmo de altura, tentaram matar Héracles, enquanto este dormia. O herói, tendo acordado, pôs-se a rir. Pegou os “inimigos” com uma só das mãos e os levou para Euristeu. Atravessando o Egito, Héracles quase foi sacrificado por Busíris, tido na mitologia grega como o rei do Egito, mas seu nome não aparece em nenhuma das dinastias faraônicas. Seria Busíris uma corruptela de Osíris? Acontece que a fome ameaçava o Egito, pelas más colheitas consecutivas e um adivinho de Chipre, Frásio, aconselhou o rei a sacrificar anualmente um estrangeiro a Zeus, para apaziguar-lhe a cólera e fazer que retornasse a prosperidade ao país. A primeira vítima foi exatamente Frásio. Héracles, logo que lá chegou, o rei o prendeu, enfaixou-o, o coroou de flores (como se fazia com as vítimas) e o levou para o altar dos sacrifícios. O herói, todavia, desfez os laços, matou Busíris e a todos os seus assistentes e sacerdotes. Do Egito passou à Ásia e na travessia da Arábia viu-se forçado a lutar com Emátion, filho de Eos (Aurora) e de Titono e, portanto, um irmão de Mêmnon. Emátion quis barrar-lhe o caminho que levava ao Jardim das Hespérides, porque não desejava que Héracles colhesse os Pomos de Ouro. Após matá-lo, o herói entregou o reino a Mêmnon e atravessou, em seguida, a Líbia até o “Mar Exterior”; embarcou na Taça do Sol e chegou à margem oposta, junto ao Cáucaso. Escalandoo, libertou Prometeu. Como sinal de gratidão, o “deus filantropo” aconselhou-o a não colher ele próprio as Maçãs, mas que o fizesse por intermédio de Atlas. Continuando o roteiro, Héracles chegou ao extremo ocidente e, de imediato, procurou Atlas, que segurava a abóbada celeste sobre os ombros. Héracles ofereceu-se para sustentar o céu, enquanto aquele fosse buscar As Maçãs. O gigante concordou prazerosamente, mas, ao retornar, disse ao filho de Zeus que iria pessoalmente levar os frutos preciosos a Euristeu. Héracles fingiu concordar e pediu-lhe apenas que o substituísse por um momento, para que pudesse colocar uma almofada sobre os ombros. Atlas nem sequer desconfiou. O herói, então, tranquilamente, pegou as Maçãs de Ouro e retornou a Micenas. De posse das Maçãs, Euristeu ficou sem saber o que fazer com elas e as devolveu a Héracles. Este as deu de presente a Atená, a deusa da Sabedoria. A deusa repôs as Maçãs de Ouro no Jardim das Hespérides, porque a lei divina proibia que esses frutos permanecessem em outro lugar, a não ser no Jardim dos Deuses. Fechara-se o Ciclo. A gnôsis estava adquirida. E Héracles quase pronto para morrer. Agora, sim, já podia chamar-se Héracles, isto é, em etimologia popular, Hera + Kléos, “a glória de Hera”... Para Chevalier e Gheerbrant, a maçã é realmente apreciada sob vários enfoques diferentes, “mas todos eles acabam convergindo para um ponto comum, quer se trate do Pomo da Discórdia, outorgado a Afrodite por Páris; quer dos Pomos de Ouro do Jardim das Hespérides, frutos da imortalidade; quer do Pomo consumido por Adão e Eva ou do Pomo do Cântico dos Cânticos, que traduz, ensina Orígenes, a fecundidade do Verbo divino, seu sabor e seu odor. Tratase, em quaisquer circunstâncias, da maçã como símbolo ou meio de conhecimento, mas que pode ser tanto o fruto da Árvore da Vida quanto o fruto da árvore da Ciência do bem e do mal: conhecimento unitivo, que confere a imortalidade, ou conhecimento distintivo, que provoca a queda”13. E. Bertrand, citado pelos autores do Dictionnaire des symboles14, opina que “o simbolismo da maçã lhe advém do fato de a mesma conter em seu interior, formado por alvéolos, que envolvem as sementes, uma estrela de cinco pontas, um pentagrama, símbolo tradicional da sabedoria. Eis aí o motivo pelo qual os iniciados fizeram do pomo o fruto do conhecimento e da liberdade. E, portanto, comer a maçã significa para eles um abuso da inteligência para conhecer o mal, um insulto à sensibilidade por desejá-lo e à liberdade, por fazê-lo. O encasulamento do pentagrama, símbolo do homem-espírito, no interior das carnes da maçã, configura, além do mais, a involução do espírito na matéria carnal”. Alexandre Magno, buscando a Água da Vida, na Índia, encontrou maçãs que prolongavam a vida dos sacerdotes por quatrocentos anos. “Na mitologia escandinava a maçã é tida como o fruto regenerador e rejuvenescedor. Os deuses comem maçãs e permanecem jovens até o ragna rök, vale dizer, até o fecho do ciclo cósmico atual”15. Para Paul Diel, a maçã, por sua forma esférica, significaria, no seu todo, os desejos terrestres ou a complacência nesses desejos. O interdito de Javé teria como objetivo admoestar o homem contra a predominância desses anseios, que o arrastariam para uma vida animal, por uma espécie de regressão, contraponto da vida espiritualizada, sinal, esta sim, de uma evolução progressiva. Semelhante advertência divina faria com que o homem tomasse conhecimento dessas duas direções: a escolha entre a via dos desejos materiais e a da espiritualidade. A maçã seria, pois, o símbolo desse conhecimento e a opção de uma necessidade, a necessidade de escolha. A escolha de Héracles foi clara: optou pela via do espírito, preparando-se, destarte, para escalar o último degrau, que o levaria aos braços de Hebe, a Juventude perpétua. O herói, mesmo assim, ainda teria que esperar um pouco. O último degrau é sempre o mais difícil. Os sofrimentos em terra e no mar e, por fim, as chamas no monte Eta, lhe dariam o direito de brindar com Zeus à imortalidade! 4 As aventuras secundárias, os πάρεργα (párerga), “as gestas acessórias”, praticadas no curso dos Doze Trabalhos, foram quase todas comentadas neste ou em capítulos anteriores, mas teremos que completá-las. Uma delas, certamente das mais importantes, foi a morte dos Centauros, seres monstruosos, metade homens, metade cavalos. Esse episódio da vida tumultuada do herói está ligado ao Terceiro Trabalho, a caçada ao Javali de Erimanto. Quando o filho de Alcmena se dirigia para a Arcádia, passou pela região de Fóloe, onde vivia o Centauro Folo, epônimo do lugar. Dioniso o presenteara com uma jarra de vinho hermeticamente fechada, recomendando-lhe, todavia, que não a abrisse, enquanto Héracles não lhe viesse pedir hospitalidade. Segundo outra versão, a jarra era propriedade comum de todos os Centauros. De qualquer forma, acolheu hospitaleiramente o herói, mas tendo este, após a refeição, pedido vinho, Folo se escusou, argumentando que o único vinho que possuía só podia ser consumido em comum pelos Centauros. Héracles lhe respondeu que não tivesse medo de abrir a jarra e Folo, lembrando-se da recomendação de Dioniso, o atendeu. Os Centauros, sentindo o odor do licor de Baco, armados de rochedos, árvores e troncos avançaram contra Folo e seu hóspede. Na refrega, Héracles matou dez dos irmãos de seu hospedeiro e perseguiu os demais até o cabo Mália, onde o Centauro Élato, tendo se refugiado junto a Quirão, foi ferido por uma flecha envenenada de Héracles, que, sem o desejar, atingiu igualmente o grande educador dos heróis, provocando-lhe um ferimento incurável, conforme se comentou, em nota, no Vol. II, p. 92. Quando se ocupava em sepultar seus companheiros mortos, Folo, ao retirar uma flecha do corpo de um Centauro, deixou-a cair no pé e, mortalmente ferido, sucumbiu logo depois. Após fazer-lhe magníficos funerais, o herói prosseguiu em direção ao monte Erimanto. Uma outra aventura de “estrada” está vinculada ao Sexto Trabalho, a limpeza dos Estábulos de Augias. Banido da Élida pelo rei, Héracles refugiou-se em Óleno, na corte de Dexâmeno. As versões diferem muito, mas todas convergem para um ponto comum: a tentativa do Centauro Eurítion de violar Hipólita ou Mnesímaca, filha de Dexâmeno. Conta-se que o rei dera a filha em casamento ao arcádio Azane. Eurítion, convidado para o banquete das núpcias, tentou raptar a noiva, mas Héracles, chegando a tempo, o matou. Uma outra versão dá conta de que o herói seduzira Hipólita, mas prometera que, após executar sua tarefa junto a Augias, voltaria para desposá-la. Na ausência de Héracles, Eurítion resolveu cortejar a moça. Dexâmeno, por medo do violento Centauro, não ousou contrariar-lhe a vontade e marcou o casamento. Foi então que o herói chegou e matou a Eurítion, casando-se com Hipólita. Algumas gestas de Héracles são praticamente independentes do grande ciclo dos Doze Trabalhos. Uma delas já havia sido anunciada pelo próprio herói, que prometera regressar a Troia, para vingar-se de Laomedonte, que não lhe dera a recompensa prometida pela libertação de Hesíona, segundo se viu mais acima, por ocasião do retorno de Héracles do país das Amazonas. Tendo reunido um respeitável exército de voluntários, partiu o filho de Alcmena com dezoito naves de cinquenta remadores cada uma. Uma vez no porto de Ílion, deixou os navios sob os cuidados de uma guarnição, comandada por Ecles, e dirigiu-se para as muralhas de Troia com o grosso de seus soldados. Laomedonte, estrategicamente, atacou os navios e matou Ecles, mas o herói, voltando rapidamente sobre seus passos, obrigou o rei, como aconteceria “mais tarde” com os Troianos, a refugiar-se por trás das muralhas de Ílion. Isso feito, começou o cerco da cidade, que, aliás, não durou muito, porquanto um dos bravos voluntários da expedição, Télamon, transpôs, por primeiro, as muralhas de Troia. Furioso e já possuído da hýbris, por ter sido ultrapassado em valor, o herói investiu sobre o companheiro para matá-lo. Télamon, num gesto rápido, abaixou-se e começou a ajuntar pedras. Intrigado, o filho de Zeus e Alcmena perguntou-lhe o motivo de comportamento tão estranho. Télamon respondeu-lhe, ateniensemente, que reunia pedras para levantar um altar a Héracles Vitorioso. Satisfeito e comovido, o herói lhe perdoou a audácia... Tomada a cidade, o Vitorioso matou a flechadas a Laomedonte e a todos os seus filhos homens, exceto Podarces, ainda muito jovem. Casou Hesíona com Télamon e pôs à disposição da princesa o escravo que a mesma desejasse. Hesíona escolheu seu irmão Podarces e como Héracles argumentasse que aquele deveria primeiro tornar-se escravo e, em seguida, ser comprado por ela, a princesa retirou o véu com que se casara e o ofereceu como resgate do menino. Esse fato explica a mudança de nome de Podarces para Príamo, o futuro rei de Troia, nome que “miticamente” significaria o “comprado”, o “resgatado”16. No retorno, o herói se envolveu, melhor dizendo, foi envolvido em duas novas aventuras. Uma, graças a Hera, que, com o indispensável auxílio de Hipno, pôs o esposo Zeus a dormir profundamente e, aproveitando-se disso, levantou uma grande tempestade, que lançou o navio do herói nas costas da ilha de Cós. Os habitantes, pensando tratar-se de piratas, receberam os vencedores de Troia a flechas e pedras. Tal atitude hostil não impediu o desembarque do herói e seus comandados, que, em ação rápida, tomaram a ilha e mataram o rei Eurípilo. Héracles uniu-se, em seguida, à filha de Eurípilo, Calciopeia, e fê-la mãe de Téssalo, cujos filhos, Fidipo e Ântifo, tomarão parte mais tarde na Guerra de Troia. Destruída Ílion, Fidipo e Ântifo estabeleceram-se na Tessália, assim chamada em homenagem a seu pai Téssalo. Há uma variante que narra o desembarque em Cós de maneira diversa. Na tempestade todos os navios foram tragados pelas ondas, exceto o do herói. Tendo este desembarcado na ilha, encontrou o filho de Eurípilo, Antágoras, que guardava o rebanho paterno. Héracles, com fome, pediu-lhe um carneiro, mas Antágoras propôs o animal como prêmio ao vencedor de uma justa entre os dois. Como a população da ilha julgasse que Antágoras estivesse sendo atacado, avançou furiosa contra o herói. Afogado pela multidão, Héracles refugiou-se na cabana de uma mulher e, travestido, conseguiu fugir, dirigindo-se para a planície de Flegra, onde tomaria parte, ao lado dos deuses, na luta contra os Gigantes, segundo se comentou no Vol. I, p. 222. Outra vitoriosa expedição de Héracles foi contra Pilos, cujo rei Neleu tinha onze filhos, sendo o mais velho Periclímeno e o caçula, Nestor. Héracles se havia irritado com Neleu, que se recusara a purificá-lo, quando do assassinato de Ífito, cuja desdita se verá mais abaixo. Periclímeno tivera mesmo a audácia de expulsar o herói da cidade de Pilos, tendo-se a isto oposto unicamente o caçula, Nestor. Diga-se, de passagem, que a vingança de Héracles contra o rei de Pilos vinha-se amadurecendo há muito tempo, porquanto, na guerra contra Orcômeno, Neleu lutara contra Héracles e os Tebanos, por ser genro de Ergino, ou ainda porque o rei de Pilos tentara apoderar-se de uma parte do rebanho de Gerião. Seja como for, o herói tinha motivos de sobra para invadir Pilos e o fez. O episódio principal da guerra foi a luta entre Héracles e Periclímeno. Este possuía por pai “divino” a Posídon, que dera ao filho o dom de transformar-se no que desejasse: águia, serpente, dragão, abelha... Para atacar o filho de Alcmena, Periclímeno metamorfoseou-se em abelha e pousou na correia que lhe prendia os cavalos. Atená, vigilante, advertiu a Héracles da proximidade do inimigo, que foi morto por uma flecha ou esmagado entre os dedos do herói. Durante a batalha, Héracles causou ferimentos em várias divindades: feriu a deusa Hera, no seio, com uma flecha; Ares, na coxa, com a lança, bem como a Posídon e Apolo com a espada. Tomada Pilos, o filho de Zeus e Alcmena matou a Neleu e a todos os seus filhos, exceto Nestor, que outrora lhe advogara a purificação. Ao filho caçula de Neleu, aliás, consoante uma tradição conservada por Pausânias, foi entregue o reino de Pilos. Uma terceira expedição do herói foi dirigida contra Esparta, onde reinavam Hipocoonte e seus vinte filhos, os hipocoôntidas, que haviam exilado os herdeiros legítimos do poder, Icário e Tíndaro. O motivo alegado para essa guerra foi de repor no trono de Esparta os dois príncipes injustamente afastados do mesmo, mas havia uma motivação especial por parte de Héracles: vingar a morte violenta de seu sobrinho Eono. Este passeava por Esparta, quando repentinamente, ao passar diante do palácio real, foi atacado por um cão, de que se defendeu, atirando-lhe pedras. Os hipocoôntidas, que certamente já buscavam um pretexto para eliminá-lo, avançaram sobre Eono e espancaram-no até a morte. Existe ainda uma versão que atesta terem sido os hipocoôntidas aliados de Neleu na guerra precedente. Héracles reuniu seus companheiros na Arcádia e pediu o auxílio do rei Cefeu e de seus vinte filhos. Embora hesitante, o rei com seus filhos seguiu o herói. Foi uma luta sangrenta, mas coroada por grande vitória, embora o herói fosse obrigado a lamentar não apenas a morte de seu aliado o rei Cefeu e de seus filhos, mas igualmente a de seu irmão Íficles. Esmagados os hipocoôntidas e entregue o trono a Tíndaro, Héracles dirigiu-se para o monte Taígeto, onde, no templo de Deméter Eleusínia, foi curado por Asclépio de um ferimento na mão, provocado por um dos hipocoôntidas. Para comemorar vitória tão importante, mandou erguer em Esparta dois templos, um em honra de Atená e outro em homenagem a Hera, que nenhuma atitude hostil tomara contra ele nesta campanha. A derradeira expedição do herói se deveu à chamada aliança com Egímio, rei dos Dórios. Este rei era filho de Doro, ancestral mítico e epônimo dos Dórios. Ameaçado em seu reino pelos violentos Lápitas, a cuja frente estava Corono, Egímio apelou para Héracles, já, a essa época, casado com Dejanira e a quem prometeu um terço de seu reino, em caso de vitória. Com grande facilidade o herói livrou Egímio dos Lápitas, mas recusou pessoalmente a recompensa, pedindo-lhe tão somente que a reservasse para os heraclidas, o que, aliás, foi cumprido à risca por Egímio; este, tendo adotado Hilo, filho de Héracles com Dejanira, dividiu seu reino em três partes iguais: seus filhos Dimas e Pânfilo ocuparam as duas primeiras e Hilo, a terceira. Após essa vitória, Héracles retomou uma velha disputa com um povo vizinho de Egímio, os Dríopes, que habitavam o maciço do Parnaso. É que, expulso de Cálidon, por motivos que veremos mais abaixo, Héracles, ao atravessar o território dos Dríopes em companhia de Dejanira e de Hilo, o menino teve fome. O herói, tendo visto o rei local Teiódamas preparando-se para arar a terra com uma junta de bois, solicitou-lhe comida para Hilo. Face à recusa descortês e desumana do rei, Héracles desatrelou um dos bois, preso ao arado, e o comeu com a esposa e o filho. Teiódamas correu à cidade e retornou com uma pequena tropa. Apesar da disparidade, Héracles, com o auxílio de Dejanira, que foi ferida em combate, conseguiu repelir os Dríopes, matando-lhes o rei. Como os Dríopes tivessem igualmente se aliado aos Lápitas contra Egímio, o herói resolveu ampliar a campanha, sobretudo para vingar também o deus Apolo, cujo santuário havia sido profanado por Laógoras, novo rei dos Dríopes. Foi uma guerra muito rápida. Com a morte de seu novo soberano e a invasão de Héracles, os Dríopes abandonaram em definitivo o maciço do Parnaso, fugindo em três grupos: o primeiro para a Eubeia, onde fundaram a cidade de Caristo; o segundo para Chipre e o terceiro foi prazerosamente acolhido por Euristeu, o eterno inimigo, que lhes permitiu fundar três cidades em seu território. Após a vitória sobre os Dríopes, Héracles seguiu para a cidade de Ormínion, no sopé do monte Pélion, para vingar-se de Amintor, que, certa feita, proibira ao herói atravessar-lhe o reino. Héracles matou o rei e apoderou-se de Ormínion. Diodoro expõe uma variante: Héracles pedira em casamento Astidamia, filha de Amintor. Este, por estar o herói unido a Dejanira, não consentiu nas núpcias. Louco de ódio, Héracles tomou a cidade e levou consigo Astidamia, com quem teve um filho, chamado Ctesipo. 5 Expostas as aventuras principais de Héracles, vinculadas ou não aos Doze Trabalhos, vamos agora acompanhá-lo no denominado ciclo da morte e da apoteose. Até o momento, como se pôde observar, apesar de nossos esforços em imprimir uma certa ordem na vida atribulada e nas gestas, por vezes, bastante desconexas do herói, tivemos que fazer concessão ao “mito”, e à sua intemporalidade, antecipando aventuras e adiando outras. Felizmente, a partir do ciclo da morte e da apoteose, o mitologema do filho de Alcmena segue em linha mais ou menos reta, partindo de Dejanira, passando por Íole e Ônfale, e terminando nos braços da divina Hebe. É esse itinerário de liberação do inconsciente castrador materno e do encontro da animaque vamos perseguir. Diga-se, a bem da verdade, que esse cosimento do mito e de suas inúmeras variantes se deve, antes do mais, aos poetas trágicos que, coagidos a imitar “uma ação séria e completa, dotada de extensão” e com duração de “um período do sol” (Arist., Poética, 1449b), souberam dar unidade ao extenso drama final do herói. Pois bem, o fio condutor desse drama é Dejanira e a tragédia, que elaborou a síntese, foi escrita por Sófocles,Traquínias, infelizmente pouco citada pelos que se dedicam ao Teatro grego. O casamento com Dejanira, viu-se na catábase do herói em Busca do Cão Cérbero, foi acertado entre Héracles e Meléagro. A séria dificuldade para obter a mão da princesa, isto é, a luta com o rio Aqueloo, já foi por nós exposta no Vol. I, p. 274-275. Após as núpcias, Héracles permaneceu com a esposa por algum tempo na corte de seu sogro Eneu. Perseguido, todavia, pela fatalidade, matou involuntariamente o pequeno copeiro real, Êunomo, filho de Arquíteles, parente de Eneu. Embora aquele tivesse perdoado ao herói a morte do filho, Héracles não mais quis ficar em Cálidon e partiu com Dejanira e com o filho Hilo, ainda muito novinho. Foi durante essa viagem em direção ao exílio em Tráquis, porque, segundo uma variante, o filho de Zeus fora expulso do reino de Eneu, que o herói travou uma terceira e derradeira luta com Nesso. Esse Centauro habitava as margens do rio Eveno e exercia o ofício de barqueiro. Apresentando-se Héracles com a família, primeiramente o lascivo Centauro o conduziu para a outra margem, e, em seguida, voltou para buscar Dejanira. No meio do trajeto, como se recordasse de uma grave injúria de Héracles, tentou, para vingar-se, violar Dejanira que, desesperada, gritou por socorro. O herói aguardou tranquilamente que o barqueiro alcançasse terra firme e varou-lhe o coração com uma de suas flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna. Nesso tombou e, já expirando, entregou a Dejanira sua túnica manchada com o sangue envenenado da flecha e com o esperma que ejaculara durante a tentativa de violação. Explicando-lhe que a túnica seria para ela um precioso talismã, um filtro poderoso, com a força e a virtude de restituir-lhe o esposo, caso este, algum dia, tentasse abandoná-la. Com a esposa e o filho chegou finalmente a Tráquis, na Tessália, onde reinava Cêix, sobrinho de Anfitrião. Foi durante sua permanência na corte de seu “primo” Cêix que o herói teve que enfrentar um sério dissabor. Como Êurito, rei de Ecália, “o mais hábil dos mortais no arco”, tivesse desafiado a Grécia inteira, prometendo a mão de sua filha Íole a quem o vencesse (veja-se nisso a disputa da mão da princesa), Héracles resolveu competir com seu ex-mestre no manejo do arco e o venceu. Não tendo o rei cumprido a promessa, porque, pessoalmente, ou por conselho de todos os filhos, exceto Ífito, temesse que o herói viesse novamente a enlouquecer e matasse a Íole e os filhos que dela tivesse, Héracles resolveu, como sempre, vingar-se. A respeito dessa guerra de Héracles contra Êurito há várias versões e variantes. Vamos seguir aquela que nos parece mais lógica. Face, pois, à recusa do rei de Ecália, o herói invadiu a cidade e incendiou-a, após matar Êurito e seus filhos, com exclusão de Ífito e Íole, de quem fez sua concubina. Ífito, que herdara o famoso arco paterno, presente de Apolo a seu pai, partira para Messena, onde, na corte do rei Orsíloco, tendo se encontrado com Ulisses, resolveram ambos, como penhor de amizade, trocar as armas: o esposo de Penélope presenteou Ífito com sua espada e lança e este deu a Ulisses o arco divino com o qual, diga-se logo, o herói da Odisseia matará, “bem mais tarde”, os pretendentes. Quando Ulisses encontrou Ífito na cidade de Messena, este andava à procura de um rebanho de éguas ou de bois, que Héracles havia furtado ou, segundo outra versão, que o avô de Ulisses, Autólico, o maior de todos os ladrões da mitologia heroica, havia roubado e confiado a Héracles. Este, interrogado por Ífito, não só se recusou a entregar o rebanho, mas ainda o assassinou. Relata uma outra variante que Héracles era apenas suspeito do roubo e que Ífito o procurara para pedir-lhe ajuda na busca do armento. O herói prometeu auxiliá-lo, mas, tendo enlouquecido pela segunda vez, o lançara do alto das muralhas de Tirinto. Recuperada a razão, o herói dirigiu-se a Delfos e perguntou à Pítia como poderia, dessa feita, purificar-se. Esta simplesmente se recusou a responder-lhe. Ferido de hýbris, o filho de Alcmena ameaçou saquear o santuário e, para provar que não estava gracejando, apossou-se da trípode sagrada, sobre que se sentava a Pitonisa, e disse-lhe que iria fundar em outro local um oráculo novo, a ele pertencente. Apolo veio imediatamente em defesa de sua sacerdotisa e travou-se uma luta perigosa entre os dois. Zeus interveio e os separou com seu raio. Héracles devolveu a trípode, mas a Pítia viu-se coagida a dar-lhe a “penitência” pela morte de Ífito e outras “faltas” ainda não purgadas. Para ser definitivamente purificado, deveria vender-se como escravo e servir a seu senhor por três anos; o dinheiro apurado com a transação seria entregue à família de Ífito como preço de sangue. Comprou-o a rainha da Lídia, Ônfale, por três talentos de ouro. Durante todo esse tempo, Dejanira permaneceu em Tráquis e o herói levou Íole como sua concubina. A respeito da nova senhora de Héracles existem duas versões. Originariamente, o mito de Ônfale parece localizar-se na Grécia, mais precisamente no Epiro, onde ela aparece como Epônima da cidade de Onfálion. Muito cedo, porém, o mito foi deslocado para a Lídia, onde se revestiu de opulenta e pitoresca indumentária oriental, ampla e sofregamente explorada pelos poetas e artistas da época helenística. Com deslocamento igualmente de um nome próprio grego, a lindíssima Ônfale passou a ser filha de Iárdano17, rei da Lídia. Segundo outros autores, a princesa seria filha ou viúva do rei Tmolo, que lhe deixara o reino. Sabedora das proezas de seu escravo, impôs-lhe, basicamente, quatro trabalhos, que consistiam em limpar-lhe o reino de malfeitores e de monstros. O primeiro deles foi contra os Cercopes, coletivo para designar dois facínoras que empestavam a Lídia, Euríbates e Frinondas, também chamados Silo e Tribalo, filhos de Teia, uma das filhas de Oceano. Teia, aliás, que lhes apoiava o banditismo, mais de uma vez, os pôs de sobreaviso contra um certo herói, chamado Μελαμπῦγος (Melamp×gos), “Melampigo”, isto é, “de nádegas escuras”, vale dizer, com as nádegas cobertas de pelos negros, que, para os antigos gregos, era um sinal de força. Altíssimos e de uma força descomunal, assaltavam os viajantes e, em seguida, os matavam. Um dia em que Héracles dormia à beira de uma estrada, os Cercopes tentaram acometê-lo, mas o herói despertou e, após dominar os filhos de Teia, os amarrou de pés e mãos e prendeu cada um deles na ponta de um longo varal. Colocou o pesado fardo sobre os ombros, como se fazia com os animais que se levavam ao mercado e encaminhou-se para o palácio de Ônfale. Foi nessa posição que Silo e Tribalo, vendo as nádegas de Héracles, compreenderam a profecia de sua mãe e pensaram num meio de libertar-se. Descarregaram sobre o herói uma saraivada tão grande de chistes e graçolas apimentadas, que Héracles, coisa que há muito não experimentava, foi tomado de um incrível bom humor e resolveu soltá-los, sob a promessa de não mais assaltarem e matarem os transeuntes. O juramento, entretanto, não durou muito e os Cercopes voltaram à sua vida de pilhagem e assassinatos. Irritado, Zeus os transformou em macacos e levou-os para duas ilhas que fecham a baía de Nápoles, Próscia e Ísquia. Seus descendentes aí permaneceram e, por isso, na Antiguidade essas duas ilhas eram denominadas Pithecusae, “Ilhas dos Macacos”. A segunda tarefa consistia em libertar a Lídia do cruel Sileu, filho de Posídon. Sileu era um vinhateiro, que obrigava os transeuntes a trabalhar de sol a sol em suas videiras e, como pagamento, os matava. Héracles colocou-se a seu serviço, mas, em vez de cultivar as videiras, arrancou-as a todas e se entregou a todos os excessos. Terminada a faina, matou Sileu com um golpe de enxada. Segundo a tradição, Sileu possuía um irmão, chamado Diceu, o Justo, cujo caráter correspondia ao significado de seu nome. Após a morte do vinhateiro, o herói hospedou-se na casa de Diceu, que criara e educara uma sobrinha muito bonita, filha de Sileu. Enfeitiçado pela beleza da moça, o herói a desposou. Tendo se ausentado por algum tempo, a jovem esposa, não suportando as saudades do marido, e julgando que ele não mais voltaria, morreu de amor. Regressando, o herói, desesperado, quis atirar-se a qualquer custo na pira funerária da mulher, sendo necessário um esforço sobrehumano para dissuadi-lo de tão tresloucado gesto. O terceiro trabalho imposto pela soberana da Lídia tinha por alvo a Litierses, filho de Midas, e denominado o Ceifeiro maldito. Hospedava gentilmente todo e qualquer estrangeiro que passasse por suas terras e, no dia seguinte, convidava-o a segar o trigo em sua companhia. Se recusasse, cortava-lhe a cabeça. Se aceitasse, tinha que competir com ele, que saía sempre vencedor e igualmente decapitava o parceiro, escondendo-lhe o corpo numa paveia. Héracles aceitou-lhe o desafio e tendo-o vencido e mitigado com uma canção, o matou. Uma variante ensina que o herói resolveu matar Litierses, porque este mantinha por escravo a Dáfnis, que percorria o mundo em busca de sua amante Pimpleia, raptada pelos piratas. Ora, como Litierses a houvesse comprado, iria fatalmente matar o pastor Dáfnis, não fora a intervenção do herói, que, além do mais, após a morte do Ceifador maldito, entregou-lhe todos os bens a Dáfnis e Pimpleia. A quarta e última tarefa consistia em livrar a Lídia dos Itoneus, que constantemente saqueavam o reino. Héracles moveu-lhes guerra sangrenta. Apoderou-se de Itona, a cidade que lhes servia de refúgio; após destruí-la, trouxe todos os sobreviventes como escravos. Face a tanta coragem, pasma com gestas tão gloriosas e vitórias tão contundentes, ônfale mandou investigar as origens do herói. Ciente de que era filho de Zeus e da princesa Alcmena, de imediato o libertou e se casou com ele, tendo-lhe dado um filho, chamado Lâmon ou, segundo outras fontes, seriam dois os filhos de Héracles com Ônfale: Áqueles (Agelau) e Tirseno. A partir desse momento, terminaram os trabalhos do filho de Zeus e Alcmena. Todo o tempo restante do exílio, agora doce escravatura, Héracles o passou no ócio, nos banquetes e na luxúria. Apaixonada pelo maior de todos os heróis, Ônfale se divertia revestida da pele do Leão de Nemeia, brandindo a pesada clava de seu amante, enquanto este, indumentado com os longos e luxuosos vestidos orientais da rainha, fiava o linho a seus pés... Mas essa modalidade de exílio, ao menos para os heróis, costuma terminar rapidamente e, por isso mesmo, o amante de Ônfale preparou-se para a partida. Desejando, após a vitória sobre Êurito e o fim do exílio, erguer um altar em agradecimento a seu pai Zeus, mandou um seu servidor, Licas, pedir a Dejanira que lhe enviasse uma túnica que ainda não tivesse sido usada, conforme era de praxe em consagração e sacrifícios solenes. Admoestada pelo indiscreto Licas de que o herói certamente a esqueceria, por estar apaixonado por Íole, Dejanira lembrou-se do “filtro amoroso” ensinado e deixado por Nesso, e enviou-lhe a túnica envenenada com o sangue da Hidra de Lerna e com o esperma do Centauro. Ao vesti-la, a peçonha infiltrou-se-lhe no corpo. Alucinado de dor, pegou Licas por um dos pés e o lançou ao mar. Tentou arrancar a túnica, mas esta se achava de tal modo aderente às suas carnes, que estas lhe saíam aos pedaços. Não mais podendo resistir a tão cruciantes sofrimentos, fez-se transportar de barco para Tráquis. Dejanira, ao vê-lo, compreendendo o que havia feito, se matou. O retorno de Héracles assemelha-se, pois, a uma espécie de Odisseia ao contrário. Ulisses, remoçado por Atená, recebe o beijo de sua Penélope, sob os primeiros sorrisos da Aurora de dedos cor-de-rosa; Héracles, com as carnes aos pedaços, contempla, já agonizante, o suicídio de sua Dejanira, sob as maldições silenciosas do monstruoso Centauro Nesso. Após entregar Íole a Hilo, pedindo que com ela se casasse, tão logo tivesse idade legal, escalou, cambaleando, o monte Eta, perto de Tráquis. No píncaro do monte mandou erguer uma pira e deitou-se sobre ela. Tudo pronto, ordenou que se pusesse fogo na madeira, mas nenhum de seus servidores ousou fazê-lo. Somente Filoctetes, se bem que relutante e a contragosto, acedeu, tendo recebido, por seu gesto de coragem e compaixão, um grande presente do herói agonizante: seu arco e suas flechas. Conta-se que, antes de morrer, Héracles solicitou a Filoctetes, única testemunha de seus derradeiros momentos, que jamais revelasse o local da pira. Interrogado, sempre se manteve firme e fiel ao pedido do herói. Um dia, porém, tendo escalado o monte Eta, sob uma saraivada de perguntas, feriu significativamente a terra com o pé: estava descoberto o segredo. Bem mais tarde (é uma das versões) Filoctetes foi punido com uma ferida incurável no mesmo pé18. Tão logo as línguas do fogo começaram a serpear no espaço, fez-se ouvir o ribombar do trovão. Era Zeus que arrebatava o filho para o Olimpo. Acerca dos momentos derradeiros de Héracles neste vale de lágrimas existe uma variante. O herói não teria morrido torturado pela túnica impregnada do sangue da Hidra e do sêmen de Nesso, mas se teria abrasado ao sol e se teria lançado num regato caudaloso, perto de Tráquis, para extinguir as chamas, morrendo afogado. O ribeiro, em que se precipitara, teve, a partir daí, suas águas sempre quentes. Esta seria a origem das Termópilas (águas termais), entre a Tessália e a Fócida, onde existia e existe até hoje uma fonte de água quente. A morte de Héracles, em ambas as versões, teve por causa eficiente o fogo: era preciso, simbolicamente, que o herói se purificasse por inteiro, despindo-se dos elementos mortais devidos à sua mãe mortal Alcmena. Também Deméter tentou imortalizar nas chamas a Demofonte e Tétis a Aquiles, expondo-o ao calor de uma lareira, esquecendo-se apenas de que o segurava pelo calcanhar! Admitido entre os Imortais, Hera se reconciliou com o herói: simulou-se, para tanto, um novo nascimento de Héracles, como se ele saísse das entranhas da deusa, sua nova mãe imortal. Sófocles, nas Traquínias, 1105, compreendeu bem essa mensagem, ao escrever que, na hora da morte, o herói dissera que “se chamava assim (Héracles, ‘a glória de Hera’) por causa da mais perfeita das mães”. Seu casamento com Hebe, deusa da juventude eterna, é apenas uma ratificação da imortalidade do novo imortal. Se Hebe, até então, servia aos Imortais o néctar e a ambrosia, penhores da imortalidade, a partir de agora ela se servirá a Héracles como garantia dessa mesma imortalidade. Uma imortalidade conseguida por seus trabalhos, sua timé e sua areté, mas sobretudo por seus sofrimentos: τῷ πάθει μάθος (tôi páthei máthos), “sofrer para compreender”, escreveu Ésquilo na Oréstia (Agam., 177). 6 “O mais popular de todos os heróis gregos, como atestam a constância e a frequência de seus aparecimentos na tragédia e particularmente na comédia, foi o único celebrado por todos os Helenos”. Seu culto abrangeu uma universalidade tal, que até mesmo uma cidade como Atenas, tão cônscia de suas peculiaridades, não só se vangloriava de haver precedido a todo o mundo grego em prestar honras divinas ao herói (Diod., 4,39,1), mas também de lhe haver consagrado mais santuários do que ao herói ateniense Teseu (Eur., Héracles, 1324-1333; Plut., Teseu, 35,2). Cabe, por conseguinte, a indagação: será Héracles um herói ou um deus? Desde que Sófocles (Traquínias, 811) o disse “o mais destemido dos homens”19, ἄριστος ἀριστός (áristos andrôn), ou como o apodaram, com ligeiras alterações sinonímicas, Eurípides (Héracles, 183), Aristófanes (Nuvens, 1049 e Hino a Héracles, já citado), a qualidade de herói atribuída a Héracles não sofreu qualquer solução de continuidade. Afinal, não era o herói definido pelos gregos como um ser à parte, ferido de hýbris, excepcional, sobre-humano, consagrado pela morte? Mas, se entre o homem, o ánthropos, e o herói, o anér, a diferença se mede pela timé e a areté, o herói e o deus existe aquele abismo insondável, lembrado por Apolo ao fogoso Diomedes na Ilíada, V, 441-442: haverá sempre duas raças distintas, a dos deuses imortais e a dos homens mortais que marcham sobre a terra. Eis aí, portanto, o grande paradoxo de Héracles: enquanto filho de Zeus e de Alcmena, apesar de tantas gestas gloriosas, teve que escalar o monte Eta para purgar tantos descomedimentos, inerentes “à sua condição de herói” e desvincular-se, nas chamas, do invólucro carnal; enquanto “iniciado”, escala apoteoticamente o monte Olimpo e, como renascido de Zeus e Hera, torna-se imortal entre os Imortais, no júbilo dos festins (Odisseia, XI, 601-608). Ἥρως θεός (Héros theós), herói-deus, como diz Píndaro, Nemeias, 3,22, Héracles se eternizou nos braços de Hebe, a Juventude eterna. Tomados em conjunto, os Doze Trabalhos se constituem na escada por que sobe o herói até os píncaros do monte Eta, onde realiza o décimo terceiro, a vitória sobre a morte. Observe-se, aliás, que as três últimas tarefas do herói configuram um namoro com Thánatos. Em Gerião, o grande pastor, “em seus campos brumosos, muito além do ilustre Oceano”, está retratado um segundo Hades; seu cão Ortro, de duas cabeças, é irmão de Cérbero, o guardião do reino das sombras, aonde desce Héracles e de onde retorna vitorioso, com o pastor da morte em seus braços; para colher os pomos de ouro, mais uma vez o filho de Alcmena terá que transpor os limites do imenso Oceano (Eurípides, Hipólito, 742ss) e penetrar no jardim encantado das Hespérides cantoras (Hesíodo, Teog., 215, 275,517), sedutoras filhas de Nix (Noite) e irmãs das Queres e das Moîras... Este derradeiro Trabalho, diga-se de passagem, “numa versão mais antiga, como atesta Bonnefoy, era suficiente para abrir a Héracles o caminho do Olimpo. Sem conflitos. Sem sofrimentos. E, talvez, sem que lhe fosse necessário morrer a morte de um mortal”20. Desse modo, tendo arrostado o Além, Héracles venceu a morte e a tradição multiplicou indefinidamente essa vitória, relembrando como o herói feriu ao deus Hades (Il., V, 395ss) ou prendeu Thánatos na cadeia de seus braços (Eurípides, Alceste, 846s). Vencer a morte é um sonho do ideal heroico, que concentra todo o valor da vida na “esfuziante juventude”, a ἀγλαὴ ἥβη (aglaè hébe); vencer a velha idade, flagelo terrível, que aniquila os nervos e os músculos dos braços e das pernas do guerreiro. Héracles, o Forte, triunfou portanto da velhice, desposando a eterna Juventude. A época clássica, no entanto, já impregnada de Orfismo, fez que o herói escalasse o Eta, onde se encerra sua carreira mortal sobre uma pira, “como se, para penetrar no Olimpo, o herói tivesse necessidade de conhecer a morte; como se a morte de Héracles negasse nele a mortalidade: morrer, morrer, porém, através do fogo purificador, sobre o monte Eta, onde reina Zeus” (Sófocles, Traquínias, 200, 436, 1191; Filoctetes, 728s). De qualquer forma, só o aniquilamento do Héracles humano permitiu a apoteose do filho de Zeus; mas ainda não se deu a devida importância à tensão que constantemente reenvia Héracles da morte dos mortais para a morte que imortaliza21. Na Introdução ao mito dos heróis já se fez menção de um fato curioso: muitos e grandes heróis, que tantas vezes contemplaram a morte de perto e de frente, e a desafiaram, pereceram de maneira pouco mais que infantil. Parece que, em dado momento, quando Láquesis sorteia o fio da vida, o herói, por mais astuto que seja, perde o itinerário da luz, como Agamêmnon, Aquiles, Ulisses, Teseu... Héracles, o Forte, não escapou a essa armadilha da Moîra. Sófocles pôs majestosamente em cena a queda, o desabamento do “mais nobre de todos os homens” convertido num objeto de pena e de ignomínia. O maior exterminador de monstros e de Gigantes (Píndaro, Nemeias, 7,90; Sófocles, Traquínias, 1058s; Eurípides, Héracles, 177ss) transforma-se num monstro urrante, vítima da crueldade e traição que ele tantas vezes combateu e venceu. Fica patente no mito de Héracles que a força física é ambivalente, na medida em que ela se apoia apenas na hýbris, no excesso, na “démesure”. Assim o herói oscila entre o ánthropos e o anér, entre o homem ou sub-homem, e o herói, o super-homem, sacudido constantemente, de um lado para outro, por uma força que o ultrapassa, sem jamais conhecer o métron, a medida humana de um Ulisses, que soube escapar a todas as emboscadas do excesso. Talvez se pudesse ver nesses dois comportamentos antagônicos a polaridade Ares-Atená, em que a força bruta do primeiro é ultrapassada ou “compensada” pela inteligência astuta da segunda. Desse modo, antes de ser arrebatado para junto dos Imortais, o filho de Alcmena conheceu, mais e melhor que todos os mortais, a humilhação e o aviltamento. Vistos do Olimpo ou do Hades, seus Trabalhos são tidos por gestas ignominiosas e destino miserável (Il., XIX, 133; Od., XI, 618s): o flagelo dos monstros conheceu a escravidão às ordens de Euristeu ou de Ônfale; por duas vezes Ánoia ou L×ssa dele se apossaram, levando-o a matar os próprios filhos e essa demência não o abandonou a não ser para reduzi-lo à fragilidade de uma criança ou de uma mulher (Eurípides, Héracles, 1424). O grande momento de sua queda, todavia, se inscreve no episódio do ato final em que Dejanira se transmuta em homem e Héracles em mulher22. Na tragédia de Sófocles Dejanira se apunhala, como um herói, como Ájax, em vez de se enforcar, morte tipicamente feminina, segundo a tradição (Sófocles, Traquínias, 930s), enquanto o herói grita e chora como uma mulher, ele, o Forte, o másculo, que, no infortúnio, se revela uma simples mulher (Sófocles, Traquínias, 10711075). E é uma mulher com um físico de mulher sem nenhum traço de um macho, que o destrói, sem mesmo dispor de um punhal (Sófocles, Traquínias, 1062s). Como Δηιάνειρα (Deiáneira), etimologicamente, talvez provenha do v. δηιοῦν (deïûn), “matar, destruir”, e ἀνήρ (anér), “homem, marido”, e signifique “a que mata o marido”, viu-se em Héracles o símbolo de uma vigorosa denegação da fraqueza face à hostilidade materna de Hera, figurando Dejanira como a mãe perversa23. Para encerrar esta parte do capítulo, um derradeiro paradoxo do mais jovem imortal do Olimpo. É deveras impressionante a multiplicidade de facetas que o herói assumiu no lógos filosófico e a propensão de sábios e intelectuais, desde os Órficos e Pitagóricos, passando pelos Sofistas, em anexar-lhe a figura como modelo exemplar, como exemplar uirtutis. “Desse modo, a força bruta passou a ser um terreno inexplorado para o desenvolvimento desse exemplar uirtutis e já que o herói escravizado e humilhado pelos prepotentes se tornou um deus, os moralistas viram no seu destino um símbolo da própria condição humana: a encarnação mesma da eficácia do sofrimento”. “Sofrer para compreender”, já adiantara o religiosíssimo Ésquilo. Um herói, voltado eminentemente para a Φύσις (ph×sis), para a “natureza”, de repente passa a ser dotado de extraordinária capacidade deliberativa, capaz mesmo de “escolher os Trabalhos” e os sofrimentos como norma de vida, tornando-se um campeão do νόμος (nómos), da lei e dos costumes24. E o herói se desdobrou, como se fora executar um décimo quarto Trabalho, que seria a busca da ἀρετή (areté), da “virtude estoica”. Antes que os Sofistas se apoderassem desse novo Héracles, todo reflexão, sentado meditativamente em locais solitários ou nas encruzilhadas, o amante da música, o herói da ação energética da força moral, o justo fatigado e sofredor, a hagiografia órficopitagórica já transformara o mito em paradigma significativamente edificante. Coube, todavia, ao sofista Pródico, século V a.C., autor de um apólogo denominado na tradição latina Hercules in biuio, “Héracles na encruzilhada”, mostrar um herói novo, que, com uma constância invencível, sobrepujou todos os obstáculos, para tornar-se digno de uma glória imperecível. Pois bem, foi desse apólogo que se aproveitou Xenofonte para nos dar em seus Απομνημονεύματα (Apomnemoneúmata), que o escritor latino Aulo Gélio traduziu por Commentarii, “Memórias”, “Memoráveis”, como querem outros, um retrato decorpo inteiro do novo Héracles, inteiramente retocado pelo pincel órfico-pitagórico. A alegoria se encontra no livro segundo, capítulo I, 21-33 dos Memoráveis, quando do diálogo sobre a temperança entre Sócrates e Aristipo. Sentado num local solitário, Héracles adolescente pesa as vantagens e os inconvenientes, respectivamente, do caminho da “virtude”, ἀρετή (areté), e daquele do “vício”, κακία (kakía). Dele se aproximam duas mulheres, que, pela estatura e porte, são hipóstases de duas deusas, cujos nomes são Areté e Kakía. Como no Discurso Justo e no Discurso Injusto das Nuvens, 889-1114, de Aristófanes, comédia por nós traduzida, cada uma defende sua causa diante do jovem em busca de uma diretriz para sua vida, que está começando. Kakía, ricamente indumentada e com olhares gulosos, fala contra todo e qualquer esforço e contenção, e faz uma bela apologia do ócio e do prazer; Areté, vestida de branco, de olhar modesto e pudico, disserta com absoluta precisão acerca da felicidade e do bem, mas estes só se alcançam, diz ela, através do trabalho e da fadiga, com o sacrifício e a submissão do corpo à inteligência. É bem verdade que o prólogo se encerra com a luminosa peroração de Areté, mas o público de Pródico, ou melhor, o público ateniense sabia perfeitamente que o jovem Héracles, em nome da Εύδαιμονία (Eudaimonía), da Felicidade, elegera o caminho estreito dos Doze Trabalhos. Não há dúvida, acentua Bonnefoy, de que este apólogo evidencia temas estranhos àquilo que se constituiu até o século V a.C. no núcleo do mitologema de Héracles. Na referência à escolha dos dois caminhos tem-se reconhecido uma alusão a Hesíodo que, nos Trabalhos e Dias, 287-292, já opõe a via da κακότης (kakótes), do vício, da miséria à da ἀρετή (areté), do mérito e do trabalho; a alegoria, igualmente, parece ecoar, no concurso de eloquência entre Areté e Kakía, uma versão sofística do julgamento de Páris ou Alexandre, para outorga do Pomo da Discórdia: apenas um julgamento sem Hera, um julgamento ao contrário, em que o herói prefere Areté-Atená a Afrodite-Kakía. Um dilema evidentemente desconhecido pelo Héracles do mito, cuja virilidade e descomedimento se ajustam perfeitamente ao auxílio meio à distância de Atená e à presença integral dos prazeres de Afrodite! Por fim, a opção de Héracles está certamente relacionada com a escolha de Aquiles, morrer jovem, mas gloriosamente, ou morrer idoso,como qualquer mortal, tema favorito das escolas atenienses do século V a.C., em que a Areté e Kakía se dava o sentido tradicional de “bravura” e “covardia”25. Uma coisa, todavia, é definitiva: como núcleo do apólogo, bem distante dos órfico-pitagóricos e dos sofistas, baloiçando, como convinha a um herói de seu porte, entre dois polos antagônicos, o herói fez sua escolha e preferiu o que o mito lhe oferecia, uma vida de trabalhos e de dores, mas também de prazeres e desregramentos, quando os Trabalhos o permitiam... Reinterpretando, porém, à maneira órfico-pitagórica, as façanhas do herói numa perspectiva moralizante, que superlativava o esforço, Pródico construiu um Héracles edificante, fazendo esquecer as representações amorais do herói. No fecho desse longo percurso, triturado pela máquina moralizante órfico-pitagórico-prodiciana, eis um novo Héracles: casto, sábio, modelo de virtude! Héracles, realmente, se tornara por fim o que ele sempre foi, desde o Hino Homérico aos estoicos, um ἄριστος ἀριστός (áristos andrôn), “o melhor dos homens”. É que, e aqui está a diferença, a expressão áristos andrôn, “o maior, o melhor dos heróis”, adquiriu, no decorrer dos séculos, a conotação de “o melhor dos homens”. Também ἀρετή (areté), que é da mesma família etimológica que ἄριστος (áristos), e que designava originariamente “o valor guerreiro” se enriqueceu paulatinamente com uma carga de interioridade, até tornar-se algo semelhante a que se poderia chamar “virtude”. A história do destino de Héracles acabou por contrair núpcias indissolúveis com a areté, adquirindo o herói um perfil de urbanidade e civilidade que Homero e Hesíodo estavam longe de imaginar... 7 Ao mito de Héracles achamos por bem acrescentar este apêndice por julgá-lo apropriado e como um complemento ao estudo do umbigo. A respeito do ὀμφαλός (omphalós), do umbigo como centro do mundo, como canal de comunicação entre os três níveis, celeste, telúrico e ctônio, já se falou no Vol. II, p. 61-62. Igualmente na p. 97 do mesmo volume se voltou a mencionar o ὀμφαλός τῆς γῆς (omphalòs tês guês), o umbigo como centro de Delfos, vale dizer, como centro do mundo, demarcado por vontade de Zeus. Em ambos os capítulos supracitados, a relação de ὀμφαλός (omphalós) com o sexo ficou bem atestada. No capítulo II se aludiu à importância do umbigo como centro, pelo fato de o muito santo ter criado o mundo como se fora um embrião e este crescer a partir do omphalós, só se desenvolvendo e espalhando-se depois. Chamamos a atenção, por isso mesmo, para determinadas estatuetas africanas, nas quais a dimensão dada ao umbigo é bem mais importante do que a atribuída ao membro viril, uma vez que é daquele centro que provém a vida. No capítulo III fomos mais explícito, procurando relacionar etimologicamente Δελφοί26(Delphói), Delfos, sede do Oráculo de Apolo, com δελφύς (delph×s), matriz, útero, cavidade misteriosa aonde descia a Pitonisa, para tocar o omphalós, a “pedra”, o umbigo sagrado, que marcava o centro da terra, antes de responder às perguntas dos consulentes. Dizíamos, então, que esse omphalós estava carregado de “sentido genital”, uma vez que a descida ao útero de Delfos, à “cavidade”, onde profetizava a Pítia, e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, símbolo fálico, configuravam, de per si, uma “união física” da sacerdotisa com Apolo. Vínhamos, pois, já há algum tempo, perseguindo essa relação umbigo-sexo, quando, em recente viagem ao México, deparamos no gigantesco Museu Antropológico da capital dos astecas com a obra – a um tempo erudita e carregada de bom humor guareschiano – do ítalo-mexicano Tibón.27Já a conhecíamos de citações, mas, lendo e relendo-a, descobrimos exatamente o que nos faltava, sobretudo, quando a cotejamos com outro livro do mesmo autor28: uma explanação, o mais possível documentada, acerca do caráter erótico do umbigo. O motivo por que deslocamos este apêndice para o final do capítulo sobre Héracles é de fácil explicação: o último amor humano do herói foi Ônfale. Ora, ὀμφαλη (Omphále), Ônfale, “umbigo feminino”, é como se fora o feminino de ὀμφαλός (Omphalós), o “umbigo masculino”. Dado o relacionamento íntimo de Héracles com a rainha da Lídia, esta se nos apresenta, no todo, como uma res erotica, “uma Ônfale” do herói. Opina Gutierre Tibón que o Cântico dos Cânticos, arbitrariamente atribuído a Salomão, rei de Israel e Judá (cerca de 970-930 a.C.), seja o primeiro monumento literário em que se exalta metaforicamente o umbigo feminino como símbolo de beleza29: o omphalós merecedor de tão grande encômio é o de Sulamita. Eis o texto bíblico: Que verás tu na Sulamita senão coros de dança dum acampamento? / Quão belos são os teus pés / no calçado que trazes, ó filha do príncipe! / As juntas de teus músculos são como colares, / fabricados por mão de mestre. Teu umbigo é uma taça feita ao torno, / que nunca está desprovida de licores (Ct 7,1-2). De qualquer forma, seja qual for a interpretação que se dê ao texto, o umbigo, no caso, é apresentado como índice de atração sexual. Não foi, aliás, por escrúpulo de “protesto”, mas por injustificada pudicícia, que Martinho Lutero não aceitou a tradução do original hebraico shorer por “umbigo” e o transformou em “regaço”: Dein Schoss ist wie ein runder Becher, dem nimmer Getränke mangelt, isto é: “teu regaço é como uma taça redonda em que nunca faltam bebidas”. Se o ompbalós de Sulamita é como uma taça feita ao torno, redonda e profunda, é porque o “umbigo perfeito, comenta Tibón, deveria ser anular, côncavo, fundo”, embora os hebreus, por proibição da Lei, não tenham deixado nenhuma representação do mesmo. A carência de reprodução iconográfica do umbigo entre os árabes pelo mesmo veto legal que incidia sobre os hebreus não desanimou, no entanto, o infatigável pesquisador mexicano, que, após descobrir que México, em náuatle, significa no umbigo da Lua, não mais parou com suas buscas onfálicas... Da cultura hebraica, Tibón se aventura pela vastidão do texto do riquíssimo patrimônio literário oriental das Mil e uma noites e da ars amandi das sete partes do Kâma Sûtra, segundo Mallanaga Vâtsyâyana. Nas primeiras são destacados dois textos em que se exalta eroticamente o omphalós: Seu pescoço recorda o do antílope e seus seios, duas romãs. [...] Seu umbigo poderia conter vários gramas de unguento de benjoim. Um pouco mais abaixo diz Sherazade: Seu umbigo poderia conter certa quantidade de almíscar, o mais suave dos aromas (VIII, 33). E consoante Tibón, que cita o Dr. Woo Chan Cheng, o uso do almíscar no umbigo feminino funciona como afrodisíaco olfativo para o homem30. No Kâma Sûtra se encontram três passagens que aguçam nossa atenção para o erotismo umbilical. A primeira se acha no capítulo sobre os beijos, onde se afirma que na Índia oriental os amantes beijam as mulheres também no cotovelo, nos braços e no umbigo31; a segunda referência está no capítulo sobre a arte das carícias, onde se ensina que se deve marcar com as unhas o corpo da amada no umbigo, nas pequenas cavidades que se formam em redor das nádegas ou então nas virilhas32. O terceiro passo será citado mais adiante. Para não sair tão depressa da cultura asiática, o autor mexicano apresenta e descreve a estátua da deusa de Bali, Rati (Umbigo 1), Grande mãe protetora da fertilidade, que se acha estampada na obra de Campbell33. Rati, “a delícia erótica”, é representada com o braço direito segurando os seios, estilizados à maneira de dois falos monstruosos e com a esquerda sustém o ventre prenhe, coroado por um omphalós saliente, com dois orifícios, que se assemelham a dois dentes caninos contrapostos. Os olhos semicerrados e o sorriso da deusa, com a boca semiaberta e retorcida para a esquerda, expressam simultaneamente a voluptuosidade e a dor de um parto iminente e contínuo. Se os gregos visualizavam o belo como splendor ordinis, como mesótes, como busca do meio-termo, tudo fizeram em sua arte inimitável para “estabelecer as proporções precisas da beleza”. E, por isso mesmo, vendo no omphalós uma interseção, um balizamento, o limite entre a excitação e o prazer, o grande escultor ateniense Praxíteles, nascido em 390 a.C., insistiu em que o umbigo deveria estar exatamente entre os seios e o sexo. Sua Afrodite, denominada Afrodite de Cnido, a primeira estátua feminina inteiramente despida no mundo grego, e que ainda é possível “imaginar”, graças a uma cópia romana (Umbigo 2), apresenta um omphalós perfeito, redondo e profundo, como o da própria Ônfale (Umbigo 3), cuja estátua lindíssima, por sinal, em companhia de Héracles, se encontra no Museu Nacional de Nápoles. Nesse conjunto artístico HéraclesÔnfale, ela com a pele do Leão de Nemeia sobre os ombros e com a clava do herói na mão direita, ele indumentado com o leve e vaporoso traje feminino da rainha, segurando o fuso com a mão direita, é possível ver em Ônfale, personificação do próprio omphalós, uma submissão de Héracles ao princípio feminino, uma vez que à cicatriz onfálica poder-se-ia dar um enfoque de dependência inconsciente pré-natal mãe-filho. De outro lado, sendo andrógino o umbigo, “nele se fundem os dois sexos, que readquirem no centro do corpo sua unidade originária”34, como nos mostra Platão no Banquete, 190-191. Gustav Jung viu na sizígia Héracles-Ônfale a integração animusanima: “O mito de Héracles apresenta todos os aspectos característicos de um processo de individuação: as viagens em direção aos quatro pontos cardeais, quatro filhos, submissão ao princípio feminino, insconsciente”35. ou seja, a Ônfale, que simboliza o A perfeição umbilical, todavia, diga-se de caminho, não está apenas na Índia, na Judeia ou na Grécia, pois o omphalós redondo e profundo já se encontra na arte neossumeriana, como atesta a chamada deusa alada (Umbigo 4) do Museu do Louvre, dos inícios do segundo milenário a.C. O umbigo, que para Platão é a marca indelével da separação do andrógino primordial (Banquete, 190-191) e é por isso que “cada uma das metades pôs-se a buscar a outra”, na ânsia de completar-se pelo centro, tem conotação bem diversa no homem e na mulher. Tibón sintetiza bem a causa dessa “disparidade”: “O umbigo muda de essência, de caráter, quando pertence ao sexo feminino. Como demonstramos nas páginas precedentes, ele é parte do atrativo do corpo da mulher, imprescindível adorno do ventre. Assim como as aréolas masculinas são neutras, meras decorações do tórax, igualmente o é o umbigo viril. A ambivalência mítica do umbigo converge para o âmbito puramente feminino: é um apelo erótico a mais”36. Mas não se trata apenas de um apelo erótico a mais, pois que existe também uma “convergência ideal de umbigo e útero”, como aliás assinala com precisão o já tantas vezes citado Gutierre Tibón. Quando Ártemis, a pedido de seu irmão gêmeo Apolo, matou a Corônis, que estava grávida de Asclépio, fato por nós comentado no Vol. II, p. 92, o deus da medicina veio ao mundo mediante uma incisão, a partir do omphalós, no ventre da amante do ciumento deus de Delfos. Uma gravura anônima do século XVII, estampada por Tibón e intitulada Aesculapii ortus, “Nascimento de Esculápio”, mostra-nos Asclépio saindo do umbigo de Corônis como se fosse do próprio útero da desditosa princesa. “A crença infantil, comenta o autor, de que as crianças saem do orifício umbilical obedece a um simbolismo arquetípico: a identidade do omphalós e do útero como centro da vida”37. E citando a Erich Neumann38, para quem este simbolismo engloba inconscientemente o da natureza feminina da Terra, mãe por antonomásia, o autor conclui sabiamente, ao dizer que, se a MãeTerra pare, cada manhã, o Sol, cada noite, a Lua e as estrelas, as plantas e os alimentos, ela é a mãe universal. “O umbigo, centro que nutriu o ser humano, em sua existência pré-natal, equivale, pois, ao útero, não apenas da mulher, mas também antropocosmicamente ao do universo”39. Até mesmo de um ponto de vista linguístico, a identificação umbigo-útero pode ser abonada em várias culturas, como no sânscrito nábhila, que tanto pode significar cavidade quanto vulva; Cuzco, “umbigo”, esclarece Tibón, “en quechua actual equivale a vagina”40e Delphói, “Delfos”, relacionado etimologicamente com delph×s, como se disse mais acima, é o grande centro umbilical do mundo, exatamente por ser o útero da Terra... Mas, pelo fato mesmo de ser identificado com o útero, de se constituir em zona erótica, o omphalós passou a ter não apenas muitos amigos na literatura e na arte figurada, mas igualmente inimigos implacáveis, que se estendem, pelo menos, de Lutero a Mr. William H. Hays, considerado por Tibón como o onfalófobo, o inimigo número um do umbigo das “outras mulheres”! A história relatada com bastante malícia por Tibón a respeito desse “Mister” é deveras reveladora e edificante! Nomeado censor do cinema norte-americano, em 1922, Mr. Hays publicou o Código do Pudor e proibiu que se exibissem umbigos nos filmes. Os diretores cinematográficos deram tratos à bola e inventaram todos os expedientes possíveis para vedar o pomo da discórdia: cinturões, certamente mais fortes e largos que os de Hipólita, folhas, franjas, rosáceas... Para cima do maldito omphalós não havia problema: Au dessus du nombril pas de pêché, “acima do umbigo não há pecado”, divisa que Tibón diz pertencer a uma seita medieval francesa. Certo dia, porém, o puritano Mr. Hays foi levado ao tribunal pela esposa, cuja acusação contra o marido estava vinculada a tendências que àquela não se afiguravam muito normais e bem pouco puritanas. Aos meritíssimos juízes igualmente determinadas inclinações do implacável censor lhes pareceram uma total abrogação do Código do Pudor e concederam o divórcio à peticionária. Antes de deixar de ser Mrs. Hays, a infeliz dama fez a seguinte declaração: “Meu marido, Oríon infatigável, confunde alegremente o umbigo de Vênus com a flor mais pura da procriação”. Sublata causa, tollitur effectus, supressa a causa, está eliminado o efeito! E Mr. Hays, um “tarado umbilical”, divulgado o motivo do divórcio, deixou de exercer sua ditadura censória e o Código do Pudor foi arquivado ad perpetuam rei memoriam. Foi um triunfo em Hollywood, e o omphalós, há tanto tempo reprimido, graças a Mr. Hays, explodiu, tornando-se o símbolo da liberdade cinematográfica41e de outras liberdades... Na arte plástica o melhor exemplo que talvez se conheça do umbigo diabólico, fonte do pecado, é o quadro do pintor flamengo Peter Huys (Umbigo 5), citado, estampado e analisado por Tibón42. O quadro, que está no Museu do Prado, em Madri, se compõe de um trio: Céu, Purgatório, Inferno. Esta última é a parte que nos interessa: veem-se no “Tártaro” cenas terríveis, em que os condenados são atormentados por demônios sádicos, híbridos entre formas humanas e animais, armados de lanças, tridentes e punhais. Um dos demos força um condenado, já de ventre estufado, a beber; mais abaixo, à esquerda, um outro dianho, com a cabeça coberta por um funil, espeta, com enorme punhal, o umbigo de uma segunda vítima, submetida a idêntico suplício, a fim de que a água escorra do ventre intumescido e o castigo possa prosseguir ininterruptamente. O condenado apoia a mão direita num jarro vazio, mas um terceiro demônio, com cabeça de burro, tapa-lhe a boca e ameaça-o com uma faca. Este último condenado, possivelmente, era algum ancestral de Mr. Hays! Após o divórcio do arquiinimigo onfálico, os umbigos, livres e triunfantes, passaram até a merecer as honras de concursos em praias de grande frequência nos Estados Unidos, para escolha do umbigo-padrão. Houve dois, que se saiba, ambos em 1971, e as campeãs, segundo se pode ver pelas fotografias, tinham o denominado umbigo da Afrodite de Cnido, isto é, redondo e profundo. Uma das vencedoras ganhou como prêmio, além de uma coroa, como rainha onfálica, uma linda joia, de forma quadrada, mas vazada, para que, posta sobre o umbigo, este ficasse à mostra... É o cobrir para ser visto! Daí para cá se criaram todos os tipos de coberturas onfálicas: rosáceas, mãos espalmadas, relógios, folhas... na realidade, coberturas opacas e transparentes, para cobrir descobrindo o umbigo. Nessas alturas há de se pensar: pobre Ônfale, que jamais imaginou que a civilização dos grandes civilizados haveria de transformar o omphalós, símbolo místico do centro, símbolo da fecundidade, porque ligado à Grande Mãe, em objeto estético e erótico! Ônfale e os mitólogos podem ficar tranquilos. Nil noui sub sole, nada de novo no mundo dos homens, pois que os arquétipos trocam apenas de indumentária, mas são sempre os mesmos: o deus supremo dos astecas, Tezcatlipoca, usava sobre o umbigo uma pedra verde, o jade, porque esta pedra preciosa é carregada de Yang, quer dizer, de energia cósmica, sendo, por isso mesmo, dotada de qualidades solares, imperiais, indestrutíveis. Imagem da tríade suprema, o Céu, o Homem e a Terra, o jade é o centro, o axis mundi, o eixo do mundo, que os sustenta, fazendo que o UM reúna os três. Colocado sobre o omphalós, enquanto materialização do princípio Yang, o jade preserva e defende o corpo de todas as ameaças e até mesmo da decomposição, figurando assim um apotropismo. As modernas “ônfales” que, ainda há pouco e para o futuro, “porque tudo retorna”, cobriam e cobrirão estética e eroticamente os umbigos, apenas não sabiam e, possivelmente, não compreenderão por que o fazem ou hão de fazê-lo. Um dia, talvez, hão de sabê-lo: afinal, scire est reminisci, o conhecimento é reminiscência, consoante Platão. E os arquétipos, de quando em quando, são passados a limpo! À medida, porém, que o omphalós se tornou objeto de concurso, ou melhor, omofagicamente um objeto de consumo, passou a merecer, de acordo com seu formato e tipo de “provocação”, ao menos para Mr. Hays, uma nomenclatura apropriada. Assim é que, com Tibón e por dever de ofício, acabei por cooperar para o catálogo, distinguindo os seguintes tipos de omphalói: a) umbigo de Afrodite de Cnido ou igualmente o de Vênus de Milo: redondo e profundo, como o de Barbarella (Umbigo 6); b) umbigo saliente ou convexo, aliás socialmente condenado por Vâtsyâyana no Kâma Sûtra: não case com mulher de nariz achatado, de umbigo saliente43 (Umbigo 7), que talvez merecesse igualmente o apodo de Bellybutton, o “botão do ventre”, como aparece na estátua da Nióbida Ferida, que é réplica de um bronze grego de 440 a.C.; c) umbigo ophthalmós: é o que possui forma de olho, com a pálpebra semicerrada (Umbigo 8); d) umbigo em grão de café, que ostenta uma espécie de corte vertical no meio; há os que consideram esse tipo de omphalós como o mais belo e erótico da espécie (Umbigo 9); e) umbigo de Nefertiti: é o do tipo horizontal, que, aliás, historicamente falando, é um omphalós “recente”: a esposa de Amenófis IV ou Akhnaton viveu no século XIV a.C. e o umbigo horizontal mais antigo que descobri é o de uma estatueta calcária, que se encontra no Naturhistorisches Museum de Viena; a estatueta em pauta é chamada poeticamente Vênus de Willendorf e remonta ao Paleolítico, vale dizer, a 21.000 anos a.C.! (Umbigo 10); f) umbigo felinus: é o vertical, também denominado olho-de-gato, como aparece num mármore do século V a.C. que talvez retrate o Nascimento de Afrodite (Umbigo 11); e g) umbigo lóxias, meio torto, dextrogiro ou sinistrogiro, isto é, assimétrico, com rebordo para a direita ou para a esquerda (Umbigo 12), como se pode ver na estatueta de bronze dos fins do século V a.C. e nesta “Ônfale moderna” (Umbigo 13). E o umbigo dos umbigos, o de Ônfale, como seria? Simplesmente como o de Afrodite de Cnido (Umbigo 3). É conveniente deixar claro que ainda existem outros tipos de omphaloí, mas a preocupação foi mostrar, e com uma possível seriedade, que, desde muito cedo, o umbigo, além de centro, além de canal da vida e, certamente, por isso mesmo, passou a configurar também uma forte conotação sexual. Até aqui, porém, era o mito, era o império da Grande Mãe. A sociedade de consumo, no entanto, de início, o tabuizou e reprimiu, mas a liberdade que passou a campear, sobretudo a partir da década dos anos cinquenta, transformou o centro sagrado em centro profano e erótico: Delfos com sua Pitonisa emigrou para as praias com sereias de biquínis. Nascera uma outra onfaloscopia... Este apêndice sobre a última esposa de Héracles neste mundo, Ônfale e seu omphalós, não poderia terminar sem ao menos uma breve referência à exaltação musical do umbigo. De origem africana, como o samba, a umbigada é, em princípio, uma dança de roda, em que um dançarino ou dançarina, no meio do círculo formado por certo número de participantes da festa, após executar alguns passos, ao som de determinados instrumentos musicais, dá uma umbigada na pessoa que escolhe entre as da roda. A escolhida vai para o meio e as umbigadas se sucedem num crescendo. Luís da Câmara Cascudo, citando Alfredo de Sarmento, diz o seguinte: “Em Luanda, e em vários outros presídios e distritos, o batuque difere [...]. Consiste também o batuque num círculo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou uma preta, que, depois de executar vários passos, vai dar uma umbigada (a que chamam semba) na pessoa que escolhe entre as da roda, a qual vai para o meio do círculo substituí-lo”44. Mais adiante, ensina o próprio Cascudo: “A pancada com o umbigo nas danças de roda, como um convite intimatório para substituir o dançarino solista, tem a maior documentação para dizer-se de origem africana. Em Portugal ocorre no fandango e no lundu, como uma invitation à la danse, como vemos na punga do Maranhão, nos cocos de roda ou bambelôs e em certos sambas. Também aparece como uma constante, usada por todos os componentes no decurso da dança e não apenas para o convite à substituição. Nesse caso está o batuque paulista, que não é de roda, mas em filas paralelas e as umbigadas são sucessivas”45. Os versinhos citados pelo autor sintetizam bem o compromisso erótico da umbigada: São sete menina, São sete fulô; São sete umbigada Certeira qu’eu dou. Alceu Maynard Araújo, falando do batuque, é muito claro e feliz, ao interpretar a umbigada como “representação do ato genésico”, isto é, “uma dança do ritual de procriação”. Vamos ouvi-lo: “É uma dança do ritual de procriação. Há mesmo uma figuração coreográfica, chamada pelos batuqueiros ‘granché’, ‘grancheno’ ou ‘canereno’, na qual pai não dança com filha, porque é falta de respeito dar umbigada; então executam movimentos que nos fazem lembrar a coreografia da ‘grande chaîne’ (grande corrente) do bailado clássico (Granché é mesmo deturpação dos vocábulos franceses, muito usados na dança da quadrilha). Evitam o ‘incesto’, executando o ‘cumprimento’ ou ‘granché’, ‘pois é pecado (sic!) dançar (e a dança só consiste em umbigadas) nos seguintes casos: pai com filha, padrinho com afilhada, compadre com comadre, madrinha com afilhado, avó com neto ou batuqueiro jovem’. Se porventura, por um descuido, um batuqueiro bate uma umbigada na afilhada, esta lhe diz: ‘a bênção, padrinho’. O padrinho mais que depressa vem lhe dando as mãos alternadamente até perto da fileira onde estão os batuqueiros, sem batucar. Esta atitude tomada na dança do batuque, para os ‘folcloristas’ sem preparação sociológica, é traduzida apenas como ‘dança do respeito’. Mas o ‘cumprimento’ examinado à luz da antropologia cultural mostrará que os batuqueiros fazem o ‘granché’, porque este evitará o incesto, o que temem praticar. Por isso mesmo é evitado por meio do ‘granché’, pois aquele tabu sexual é uma observância já encontrada nas sociedades pré-letradas. Só este argumento, sem falar dos movimentos da umbigada, que no fundo são uma representação do ato genésico, nos dá prova suficiente para afirmarmos que o batuque é uma dança do ritual da reprodução”46. Como se observa, voltamos ao omphalós como centro da fecundação, mas, igualmente, mercê do tabu, como centro erógeno e erótico. A proibição da umbigada entre pessoas consanguíneas ou aparentadas, para “evitar o incesto”, é um sinal claro do tabu do umbigo. Jorge Amado também colaborou, em Jubiabá, para colorir a umbigada: “Agora toda a sala rodava. Os pés batiam no chão, os umbigos batiam nos umbigos, as cabeças se tocavam, estavam todos embriagados, uns de cachaça, outros de música”47. Como nas Antestérias gregas e nas Saturnais romanas, o carnaval, mormente o carnaval carioca, é uma desrepressão total e uma quebra violenta de interditos de ordem social e política. Pois bem, na década dos anos sessenta, gastando os derradeiros momentos de liberdade, o biguinho, ainda meio timidamente, ousou botar a cabeça de fora. João de Barro e Jota Júnior, no carnaval carioca de 1962, “compuseram buliçosa marchinha, caricaturando a moda chamada Saint-Tropez”48, que consistia em deixar o biguinho de fora, o que se constituía, para a época, numa audácia e descomedimento social imperdoável. Eis a marchinha: Ulalá... Ulalá Você é mais você 1. Ptérela era um dos muitos descendentes de Perseu. Durante o reinado de Eléctrion em Micenas, os filhos de Ptérela foram reclamar aquele reino, ao qual diziam ter direito, uma vez que ali reinara um seu bisavô, Mestor, irmão de Eléctrion. Este repeliu indignado as pretensões dos príncipes, que, como vingança, lhe roubaram os rebanhos. Desafiados pelos filhos de Eléctrion para um combate, houve grande morticínio, tendo escapado apenas dois contendores, um de cada família. Foi por amor de Alcmena que Anfitrião empreendeu a guerra contra Tafos. Havia, no entanto, um oráculo segundo o qual, em vida do rei Ptérela, a ilha jamais poderia ser tomada. É que a vida do rei estava ligada a um fio de cabelo de ouro que Posídon implantara na cabeça do mesmo. Aconteceu, no entanto, que Cometo, filha de Ptérela, se apaixonara por Anfitrião e, enquanto o pai dormia, arrancou o fio de cabelo mágico, provocando-lhe assim a morte e a ruína de Tafos. 2. Op. cit., p. 365s. 3. As fontes básicas de referência na literatura greco-latina sobre os Doze Trabalhos encontram-se na Ilíada, VIII, 132ss; XIV, 639ss; XVIII, 117ss; XIX 132ss; Sófocles, Traquínias, 1091ss; Eurípides, Héracles, 15ss; Teócrito, Idílios, 24,82ss; Apol., 2,4,12; Diod., 4,10ss; Verg., Eneida, 8,299; Ov., Metamorfoses, 9,182ss. 4. Équidna foi estudada, inclusive com seu simbolismo, no capítulo XI, 2, do Vol. I. 5. DIEL, Paul. Op. cit., p. 209. 6. Ibid., p. 207s. 7. Ibid., p. 208. 8. Ibid., p. 207. 9. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 185s. 10. Ibid., p. 185. 11. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 258ss. 12. BENOIST, Luc. Signes, symboles et mythes. Paris: PUF, 1975, p. 69. 13. Ibid., p. 776. 14. Ibid., p. 776. 15. ELIADE, Mircea. Traité d’histoire des religions. Paris: Payot. 1949, p. 252. 16. Πρίαμος (Príamos), “Príamo”, provém possivelmente da raiz prei, pri, como se pode ver pelo latim prior, “anterior”, pri(s)mo > primus, “o primeiro, o chefe, o guia”; veja-se o grego πράμος (prámos), πρόμος (prómos), “o que luta na primeira linha, o primeiro, o chefe”. 17. Na realidade, Ἰάρδανος (Iárdanos), Iárdano, designa em Homero o nome de um rio da Élida (Il., VII, 735) ou de Creta (Od., III, 292) e só a partir de Heródoto, 1,7, ao que parece, é que surge como rei da Lídia, pai de Ônfale. 18. O ferimento incurável de Filoctetes (devido a outra causa) e a importância do arco e das flechas de Héracles, para a tomada de Troia, constituem o pano de fundo da tragédia de Sófocles, Filoctetes, encenada em 409 a.C. 19. BONNEFOY, Yves. Op. cit., p. 492. 20. Ibid., p. 494. 21. Ibid., p. 494. 22. Leve-se em conta a ideia grega generalizada da fragilidade física da mulher e de sua capacidade de astúcia cruel (Hécuba, Medeia, Clitemnestra, Fedra...). Acentue-se, de outro lado, que o suicídio normal da mulher se praticava por enforcamento (Fedra, Antígona, Jocasta...). 23. SLATER, Ph. E. Greek Mythology and the Greek Family. Boston: BUP, 1968, p. 339 e 352. 24. BONNEFOIY, Yves. Op. cit., p. 496. 25. Ibid., p. 497. 26. Delph×s, “matriz, útero”, talvez se relacione com o sânscrito garbhah, “uterus, foetus”, e com o latim uulua, “vulva” (Émile BOISACK, Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Heidelberg: Carl Winter, 1950, verbete). 27. TIBÓN, Gutierre. El ombligo como centro erótico. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. 28. TIBÓN, Gutierre. El ombligo, centro cósmico. México: Fondo de Cultura Económica, 1979. 29. Acerca da origem e do conteúdo dos cinco poemas de que se compõe o Cântico dos Cânticos, diz A. VAN DEN BORN, no Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 237ss, que há opiniões várias e divergentes. A interpretação cultual e mítica que via nos Cânticos uma coleção de hinos que celebravam originalmente um hieròs gámos de divindades orientais da fertilidade, “coleção essa adotada como lenda festiva para a festa cananeia e israelita primitiva dos ázimos, celebrada na primavera, para cantar o despertar da natureza”, vem sendo abandonada em favor de algo bem mais canônico. O Cântico dos Cânticos teria um sentido literal, próprio, bem mais profundo: significaria “primeiramente o amor de Javé por seu povo, e depois, in sensu consequenti, à luz do cumprimento no NT, o amor de Cristo pela Igreja, o povo de Deus do NT”. A 40ª edição da Bíblia Sagrada, São Paulo, Paulinas, 1984, p. 718, resume assim o problema: “Se, porém, (o Cântico aos Cânticos) cantasse propriamente amores profanos, não teria sido por certo jamais inserido entre os livros inspirados das Escrituras. Foi, portanto, tradição constante e unânime da Sinagoga judaica, como o é da Igreja cristã, que no Cântico, sob a alegoria de amores profanos, celebra-se o amor mútuo entre Deus e seu povo, entre Deus e o fiel piedoso”. 30. TIBÓN, Gutierre. Op. cit., p. 28. 31. VÂTSYÂYANA, Mallanaga. Kâma Sûtra. Rio de Janeiro: Império, 1965, p. 33. 32. Ibid., p. 42. 33. CAMPBELL, Joseph. The Mythic Image. Princeton: PUP, 1974, p. 270. 34. TIBÓN, G. Op. cit., p. 52. 35. JUNG, C.G. The Archetypes and the Collective Unconscious. Princeton: PUP, 1975, p. 324. 36. Ibid., p. 53. 37. Ibid., p. 58. 38. NEUMANN, Erich. The Great Mother. Princeton: PUP, 1974, p. 32. 39. TIBÓN, G. Op. cit., p. 58 40. Ibid., p. 59. 41. Ibid., p. 70s. 42. Ibid., p. 72ss. 43. VÂTSYÂYANA, Mallanaga. Op. cit., p. 85. 44. CASCUDO, Luís da Câmara.Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: INL, 1954, p. 561. 45. Ibid., p. 627. 46. ARAÚJO, Maynard Alceu. Documentário folclórico paulista. São Paulo: Departamento Municipal de Cultura, 1952, p. 11ss. 47. AMADO, Jorge. Jubiabá. 26. ed. São Paulo: Martins, 1971, p. 154. 48. ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965. Quadro 3 Com umbiguinho de fora Garota de Saint-Tropez Laranja da Bahia Tem umbiguinho de fora, Por que é que você, Maria, Escondeu o seu até agora... Héracles, mesmo sentado meditativamente nas encruzilhadas sofisto-estoicas, coagido a escolher entre Atená-Areté e AfroditeKakía, jamais poderia imaginar que sua Ônfale percorresse itinerário tão longo – de Salomão a João de Barro, do Kâma Sûtra à Garota de Saint-Tropez! De qualquer forma, a enérgueia do herói, após a vitória final, é inesgotável, por isso que ele é o umbigo do mundo, através do qual irrompem as energias que alimentam o cosmo. CAPÍTULO IV O Mito de Teseu 1 TESEU, em grego Θησεύς (Theseús), talvez provenha de um elemento indo-europeu teu, “ser forte” > teues, “força” > te(u)s-o > teso > theso, isto é, “o homem forte por excelência”, que libertou a Grécia de tantos monstros. Quanto à genealogia do herói ateniense, é bastante verificar o Quadro da p. 24 do Vol. I, e o que a seguir estampamos, para se concluir que o êmulo de Héracles possui em suas veias o sangue divino de três deuses: descende longinquamente de Zeus, está “bem mais próximo” de Hefesto e é filho de Posídon1. A árvore genealógica da página seguinte, embora um pouco podada, mostra com mais clareza os dois últimos parentescos do fundador mítico da democracia ateniense. Herói essencialmente de Atenas, Teseu é o Héracles da Ática. Tendo vivido, consoante os mitógrafos, uma geração antes da Guerra de Troia, dois de seus filhos, Demofoonte e Ácamas, participaram da mesma. Bem mais jovem que o filho de Alcmena, foi-lhe, no entanto, associado em duas grandes expedições coletivas: a busca do Velocino de Ouro e a guerra contra as Amazonas, como se 1. As fontes básicas da Antiguidade clássica que servem de referência ou enfocam Teseu são as seguintes: Homero, Odisseia, XI, 322ss; 631; Baquílides, 18,16s; Eurípides, Hipólito PortaCoroa, passim; Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2,15; Plutarco, Teseu, 3ss; 6ss; 15ss; 24; 26ss; 30s; 35ss; Apolodoro, Biblioteca, 3,16,ls; 2,6,3; Pausânias, Descrição da Grécia, 1,2,1; 1,27,7; 1,20,3; 1,17,6; 1,44,8; 2,33,1; 2,1,3; 5,11,14; 10,28,2s; 10,29,9; 15,2; 41,7; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 4,28; 4,59; 4,61; 4,62,4; 6,4; Ovídio, Metamorfoses, 7,704ss; 8,174ss; Heroides, 10; Higino, Fábulas 37, 30 e 241. Quadro 4 mostrou no capítulo anterior. Como todo herói, “o filho de Posídon” teve uma origem deveras complicada. Segundo o mito, Egeu, rei de Atenas, não conseguindo ter um filho com várias esposas sucessivas, dirigiu-se a Delfos para consultar Apolo. A Pítia respondeu-lhe com um oráculo tipicamente “Lóxias”, proibindo-lhe “desatar a boca do odre antes de chegar a Atenas”. Não tendo conseguido decifrar o enigma, Egeu decidiu passar por Trezena, cidade de Argólida, onde reinava o sábio Piteu. Foi no decorrer do percurso Delfos-Trezena que o rei de Atenas aportou em Corinto, exatamente no momento em que Medeia, no relato de Eurípides, Medeia, 663ss, já decidida a matar Creonte, a princesa Creúsa e os próprios filhos, mas sem saber para onde fugir, resolveu tomar a decisão tremenda. É que tendo recebido do rei de Atenas a promessa de asilo, em troca de “fazê-lo gerar uma descendência, por meio de determinados filtros”, a desventurada esposa de Jasão encontrou, afinal, a saída tão ansiosamente esperada. Eis suas palavras de júbilo, após o juramento do soberano da cidade de Palas Atená. Ó Zeus, ó Justiça de Zeus, ó luz de Hélio! Agora, amigas, bela vitória teremos sobre meus inimigos, e já estamos a caminho. Agora tenho esperança de que meus adversários serão castigados: este homem surgiu quando estávamos a ponto de naufragar, como porto seguro de minhas resoluções, porto em que ataremos as cordas da popa, quando chegarmos à cidade e à acrópole de Palas (Med., 764-771). Egeu haveria de lamentar, um pouco mais tarde, como se verá, o asilo inviolável prometido à mágica da Cólquida! De Corinto o rei de Atenas navegou diretamente para Trezena. Piteu, após ouvir a recomendação da Pítia, compreendeu-lhe, de imediato, a mensagem2. Embriagou o hóspede e, mandando levá-lo para o leito, pôs junto dele sua filha Etra. Acontece, todavia, que, na mesma noite em que passara ao lado do rei de Atenas, a princesa tivera um sonho: aparecera-lhe Atená, ordenando-lhe que fosse a uma ilha bem próxima do palácio real, a fim de oferecer-lhe um sacrifício. Ali lhe surgiu pela frente o deus Posídon, que fez dela sua mulher. Foi desse encontro, nas horas caladas da noite, que Etra ficou grávida de Teseu, que o rei de Atenas sempre pensou tratar-se de um filho seu. Temendo seus sobrinhos, os palântidas, que lhe disputavam a sucessão, o rei, após o nascimento de Teseu, se preparou para retornar a Atenas, deixando o filho aos cuidados do avô, o sábio Piteu, e a um grande pedagogo, Cônidas, ao qual os atenienses, à época histórica, sacrificavam um carneiro, às vésperas das Θησεῖα (Theseîa), festas solenes em honra de Teseu. Antes de partir, entretanto, escondeu ritualmente, sob enorme rochedo, sua espada e sandálias, recomendando a Etra que, tão logo o menino alcançasse a adolescência, se fosse suficientemente forte para erguer a rocha, retirasse os objetos escondidos e o procurasse em Atenas. P. Diel oferece, a nosso ver, magnífica interpretação dessa primeira prova iniciática a que será submetido o futuro soberano da Ática. Depois de ponderar que, como filho de Posídon, no plano mítico, Teseu percorreria o roteiro trágico de todo herói, afirma o mestre francês: “Teseu não seria, por conseguinte, um herói, se porventura sucumbisse sem lutar, se não tivesse uma firme disposição espiritual, se o espírito, sob forma positiva, não fosse igualmente seu pai mítico. Consoante o processo simbólico, mais comumente seguido, Egeu representa simultaneamente o ‘pai corporal’ e o rei mítico, o espírito. Lega a seu filho as insígnias da sublimidade e da espiritualidade. Obrigado a retornar a Atenas, esconde sob um rochedo sua espada (a arma do herói, combatente espiritual) e suas sandálias (cuja função, na marcha através da vida, é ‘armar’, proteger o pé, símbolo da alma). Atingida a adolescência, Teseu se mostrou capaz de seguir o apelo do espírito. O entusiasmo da juventude lhe assegurou força suficiente para erguer a rocha, configuração do peso esmagador da terra (desejo telúrico). Empunhou a espada, calçou as sandálias e foi ao encontro do pai, seu ‘pai corporal’ e igualmente seu pai mítico. O herói partiu em busca do espírito”3. Na realidade, tão logo atingiu a adolescência, após oferecer, segundo o costume, parte de seu cabelo a Apolo, em Delfos, o jovem foi informado por Etra do segredo de seu nascimento e do esconderijo das sandálias e da espada paterna. Sem dificuldade alguma, como Artur ou Sigmund, que arrancaram sua Nothung, a (espada) “necessária”, de uma pedra ou de uma árvore, o herói ateniense ergueu a rocha e retirou os objetos “necessários” para as provas que iriam começar. Aconselhado pela mãe e pelo avô a dirigir-se a Atenas por mar, Teseu preferiu a rota terrestre, ao longo do Istmo de Corinto, infestado de bandidos, uma vez que, com o exílio de Héracles na Lídia, junto a Ônfale, salteadores e facínoras até então camuflados, haviam retomado suas atividades... Competia, pois, ao herói ático reiniciar a luta para “libertar-se” e libertar a Grécia de tantos monstros. 2 O primeiro grande encontro foi com Perifetes, um malfeitor cruel, filho de Hefesto e Anticleia. Coxo, apoiava-se numa muleta ou clava de bronze com que atacava os peregrinos que se dirigiam a Epidauro. Teseu o matou e fez da clava uma arma terrível na eliminação de tantos outros bandidos que encontraria pela vida. Comentando esta primeira vitória do filho de Posídon, Paul Diel faz uma observação deveras interessante: “esta arma simbólica, a maça de Perifetes, está destinada a exercer uma função precisa na história de Teseu. É necessário lembrar que o esmagamento sob o peso da terra, de que a clava é uma forma de expressão, pode significar tanto a ruína devida à perversidade quanto sua punição legal. A maça na mão do criminoso é a configuração da perversidade destruidora; manejada pelo herói, converte-se em símbolo da destruição e da perversidade. De posse da arma do malfeitor, Teseu a usará com mais frequência que a espada recebida de Egeu. A clava de Perifetes, porém, não poderá jamais substituir legitimamente a arma ‘outorgada pela divindade’. Embora nas mãos de um herói, ela continua a ser uma expressão da brutalidade. A troca de arma é o primeiro sinal de uma transformação secreta que toma corpo na atitude do filho de Etra. A vitória sobre o assassino de Epidauro traduz a advertência ainda latente de que a ligação filial com Posídon não tardará a manifestar-se. De outro lado, também Perifetes é filho de Posídon. Teseu vence e mata, por conseguinte, seu irmão mítico e simbólico; triunfa de seu próprio perigo, mas sua vitória permanece incompleta. Apossando-se da arma do assassino, prepara-se para exercer o papel do vencido4. A vitória sobre Perifetes, como o próprio nome indica, é a peripécia da vida de Teseu: esse triunfo marca o princípio da ruína do herói”5. O segundo encontro vitorioso do filho de Etra foi com o perigoso e cruel gigante Sínis que, com músculos de aço, vergava o tronco de um pinheiro até o solo e obrigava os que lhe caíam nas mãos a mantê-lo neste estado. Vencidos pela retração violenta da árvore, os infelizes eram lançados a grande distância, caindo despedaçados. Não raro, Sínis vergava duas árvores de uma só vez e amarrava a cabeça do condenado à copa de uma delas e os pés à outra, fazendo a vítima dilacerar-se. Submetido à primeira prova, Teseu vergou o pinheiro com tanta força, que lhe quebrou o tronco; e depois subjugou Sínis, amarrou-o e o submeteu à segunda prova, despedaçando-o no ar. Em honra do arqueador de pinheiros, como lhe chama Aristófanes, As Rãs, 966, que era igualmente filho de Posídon, Teseu teria instituído os Jogos Ístmicos, considerados como os agônes fúnebres de Sínis6. Acrescente-se que essa personagem tinha uma filha, chamada Perigune, que se escondera numa plantação de aspargo, enquanto seu pai lutava com Teseu. Unindo-se, depois, ao herói ateniense, foi mãe de Melanipo, que, por sua vez, foi pai de Ioxo, cujos descendentes tinham devoção particular pelos aspargos, aos quais, afinal das contas, deviam o fato de “ter nascido”. Prosseguindo em sua caminhada, o jovem herói enfrentou a monstruosa e antropófaga Porca de Crômion, filha de Tifão e Équidna e que se chamava Feia, nome de uma velha bruxa que a criara e alimentava. O filho de Egeu a eliminou com um golpe de espada. Consoante Chevalier e Gheerbrant, a Porca é o símbolo da fecundidade e da abundância, rivalizando, sob esse aspecto, com a vaca. Divindade selênica, a Porca é a mãe de todos os astros, que ela devora e devolve alternadamente, se são diurnos ou noturnos, para permitir-lhes viajar pela abóbada celeste. Desse modo, engole as estrelas, ao aproximar-se a aurora, e as pare novamente ao crepúsculo, agindo de maneira inversa com seu filho, o Sol. Vítima predileta de Deméter, a Porca simboliza o princípio feminino, reduzido à sua única prerrogativa de reprodução7. No caso em pauta, a Porca de Crômion configura o princípio feminino devorador. Tendo chegado às Rochas Cirônicas, Teseu enfrentou o assassino e perverso Cirão. Filho de Pélops ou Posídon, segundo alguns mitógrafos, instalou-se estrategicamente à beira-mar, nas terras de Mégara, nos denominados Rochedos Cirônicos, por onde passava a estrada, ladeando a costa; obrigava os transeuntes a lavarem-lhe os pés e depois os precipitava no mar, onde eram devorados por monstruosa tartaruga. Teseu, em vez de lavar-lhe os pés, o enfrentou vitoriosamente e jogou-lhe o cadáver nas ondas, para ser devorado pela tartarugagigante. Existe uma variante, segundo a qual Cirão era filho não de Pélops ou Posídon, mas de Caneto e Heníoque, filha de Piteu. Nesse caso, Cirão e Teseu eram primos germanos. Supunha-se, por isso mesmo, que, para expiar esse crime, Teseu fundara, não em honra de Sínis, mas em memória do primo, os Jogos Ístmicos. Para Paul Diel, Cirão é um símbolo muito forte: “Esse gigante monstruoso obrigava os que lhe caíam às mãos, os viajantes (da vida), a lavar-lhe os pés, isto é, forçava-os à servidão humilhante, na qual a banalização mantém os vencidos. O homem, escravo da banalização, é forçado a servir ao corpo, e a exigência de Cirão simboliza esta servidão em seu aspecto mais humilhante. ‘Lavar os pés’ é um símbolo de purificação. Mas esse ato de purificar a alma morta do monstro banal (banalização – morte da alma)8, em vez de significar uma autopurificação, vale apenas como um trabalho insensato, simples pretexto para eliminação da vítima. O monstro (a banalização), sentado no topo de um rochedo, enquanto sua infeliz vítima está absorvida na tarefa humilhante, precipita-a no abismo do mar profundo, onde será devorada por gigantesca tartaruga. O rochedo e os abismos marinhos são símbolos já suficientemente explicados. Quanto à tartaruga, seu traço mais característico é a lentidão de movimentos. Imaginada como monstruosa e devoradora, retrata o aspecto que é inseparável da agitação banalmente ambiciosa: o amortecimento de qualquer aspiração”. A quinta e arriscada tarefa de Teseu foi a luta com o sanguinário Damastes ou Polipêmon, apelidado Procrusto, isto é, “aquele que estica”. O criminoso assassino usava de uma “técnica” singular com suas vítimas: deitava-as em um dos dois leitos de ferro que possuía, cortando os pés dos que ultrapassavam a cama pequena ou distendia violentamente as pernas dos que não preenchiam o comprimento do leito maior. O herói ático deu-lhe combate e o matou, preparando-se para a sexta vitória contra o herói eleusino Cércion, filho de Posídon ou de Hefesto e de uma filha de Anfíction. O gigante de Elêusis obrigava os transeuntes a lutarem com ele e, dotado de força gigantesca, sempre os vencia e matava. Teseu o enfrentou: levantouo no ar e, lançando-o violentamente no solo, o esmagou. Cércion é apenas mais um primo liquidado por Teseu, mas Procrusto merece um ligeiro comentário: reduzindo suas vítimas às dimensões que desejava, o “monstro de Elêusis” simboliza “a banalização, a redução da alma a uma certa medida convencional”. Trata-se, no fundo, como asseveram, com propriedade, Chevalier e Gheerbrant, da perversão do ideal em conformismo. Procrusto configura a tirania ética e intelectual exercida por pessoas que não toleram e nem aceitam as ações e os julgamentos alheios, a não ser para concordar. Temos, assim, nessa personagem sanguinária, a imagem do poder absoluto, quer se trate de um homem, de um partido ou de um regime político9. 3 Vencida a primeira etapa, derrotados os monstros que a ele se opuseram, do Istmo de Corinto a Elêusis, o herói chegou aos arredores de Atenas. Com tanto sangue parental derramado, Teseu dirigiu-se para as margens do rio Cefiso, o pai de Narciso, onde foi purificado pelos Fitálidas, os ilustres descendentes de um herói epônimo ateniense, Fítalo. Coberto com uma luxuosa túnica branca e com os cabelos cuidadosamente penteados (na realidade indumentado femininamente, como se comentou no capítulo I, 5), o herói foi posto em ridículo por uns pedreiros que trabalhavam no templo de Apolo Delfínio. Sem dizer palavra, Teseu ergueu um carro de bois e atirou-o contra os operários. Feito isto, penetrou incógnito na sede de seu futuro reino, mas, apesar de não se ter identificado, precedia-o uma grande reputação de destruidor de monstros, pelo que o rei temeu por sua segurança, pois que Atenas vivia dias confusos e difíceis. Medeia, que se exilara na cidade, com o fito de dar a Egeu uma “bela descendência”, fizera uso de filtros diferentes: casara-se com o rei e propriamente se apossara das rédeas do governo. Percebendo logo de quem se tratava, a mágica da Cólquida, sem dar conhecimento a Egeu de quanto sabia, mas, pelo contrário, procurando alimentar-lhe o medo com uma rede de intrigas em torno do recém-chegado, facilmente o convenceu a eliminar o “perigoso estrangeiro”, durante um banquete que lhe seria oferecido. Com pleno assentimento do marido, Medeia preparou uma taça de veneno e colocou-a no lugar reservado ao hóspede. Teseu, que ignorava a perfídia da madrasta, mas querendo dar-se a conhecer de uma vez ao pai, puxou da espada, como se fosse para cortar a carne, e foi, de imediato, reconhecido por Egeu. Este entornou o veneno preparado pela esposa, abraçou o filho diante de todos os convivas e proclamou-o seu sucessor. Quanto a Medeia, após ser repudiada publicamente, mais uma vez foi execrada e exilada, dessa feita, para a Cólquida10. Existe uma variante, certamente devida aos trágicos, no que se refere ao reconhecimento de Teseu pelo pai. Conta-se que, antes de tentar o envenenamento do enteado, Medeia o mandou capturar o touro gigantesco que assolava a planície de Maratona e que não era outro senão o célebre Touro de Creta, objeto do sétimo Trabalho de Héracles. Apesar da ferocidade do animal, que lançava chamas pelas narinas, o herói o capturou e, trazendo-o peado para Atenas, ofereceu-o em sacrifício a Apolo Delfínio. Ao puxar a espada para cortar os pelos da fronte do animal, como estipulavam os ritos de consagração, foi reconhecido pelo pai. O episódio da captura do Touro de Maratona é significativo para Diel: capturando e matando o animal, símbolo da dominação perversa, Teseu dá provas de que pode governar e, por isso mesmo, é convidado a compartilhar do trono com Egeu, “seu pai corporal, símbolo do espírito”. Foi durante a caçada desse touro que se passou a estória de Hécale, assunto de um poema homônimo de Calímaco de Cirene (310-240 a.C.). Hécale era uma anciã, que habitava o campo e teve a honra de hospedar o herói na noite que precedeu a caçada ao Touro de Maratona. Havia prometido oferecer um sacrifício a Zeus, se Teseu regressasse vitorioso de tão arrojada empresa. Ao retornar, tendo-a encontrado morta, o filho de Egeu instituiu em sua honra um culto a Zeus Hecalésio. Se bem que marcado, aliás como todo herói, pela hýbris e por um índice normal de enfraquecimento, Teseu, com a captura e morte do Touro de Maratona, provará dentro em breve a todos os seus súditos que a força que subsiste nele resulta de sua timé e areté, vale dizer, de sua ascendência divina. Com o espírito bem armado e a alma protegida, o filho de Posídon soube e saberá, graças à inocência de sua juventude, ultrapassar todas as barreiras que ameaçavam barrarlhe a caminhada para o “trágico e para a glória”. Uma vez reconhecido pelo pai e já compartilhando do poder, teve logo conhecimento da conspiração tramada pelos primos e, de imediato (o herói nasceu para o movimento e para as grandes e perigosas tarefas) se aprestou para a luta. Os Palântidas, que eram cinquenta, inconformados com a impossibilidade de sucederem a Egeu no trono de Atenas, resolveram eliminar Teseu. Dividiram suas forças, como bons estrategistas, em dois grupos: um atacou a cidade abertamente e o outro se emboscou, procurando surpreender pela retaguarda. O plano dos conspiradores foi, todavia, revelado por seu próprio arauto, Leos, e Teseu modificou sua tática: massacrou o contingente inimigo emboscado e investiu contra os demais, que se dispersaram e foram mortos. Relata-se que, para expiar o sangue derramado de seus primos, o herói se exilou, passando um ano em Trezena. Esta é a versão seguida por Eurípides em sua tragédia, belíssima por sinal, Hipólito Porta-Coroa. Mas, como o poeta ateniense acrescenta que Teseu levara em sua companhia a Hipólito, o filho do primeiro matrimônio com Antíope, uma das Amazonas, já falecida, bem como a segunda esposa, Fedra, que se apaixonara pelo enteado, dando origem à tragédia, segue-se que a “cronologia” foi inteiramente modifica-da por Eurípides. Com efeito, colocar a expedição contra as Amazonas antes do massacre dos Palântidas é contrariar toda uma tradição mítica. Em todo caso, como diz Horácio, Epist., 2,3,9-10: Pictoribus atque poetis quidlibet audendi semper fuit aequa potestas. – Os pintores e os poetas sempre gozaram do direito de usar quaisquer liberdades... 4 Foi por “essa época” que Teseu se viu no dever de enfrentar novo e sério problema. Com a morte de Androgeu, filho de Pasífae e Minos, rei de Creta, morte essa atribuída indiretamente a Egeu – que, invejoso das vitórias do herói cretense nos Jogos que mandara celebrar em Atenas, o enviara para combater o Touro de Maratona – eclodiu uma guerra sangrenta entre Creta e Atenas. A morte de Androgeu se deveria, narra uma variante, não a Egeu, mas aos próprios atletas atenienses, que, ressentidos com tantas vitórias do filho de Minos, mataram-no. Haveria, por outro lado, um motivo político, pois que Androgeu teria sido assassinado por suas ligações com os Palântidas. De qualquer forma, Minos, com poderosa esquadra, após apossar-se de Mégara, marchou contra a cidade de Palas Atená. Como a guerra se prolongasse e uma peste (pedido de Minos a Zeus) assolasse Atenas, o rei de Creta concordou em retirar-se, desde que, anualmente, lhe fossem enviados sete moços e sete moças, que seriam lançados no Labirinto, para servirem de pasto ao Minotauro. Teseu se prontificou a seguir para Creta com as outras treze vítimas, porque, sendo já a terceira vez que se ia pagar o tributo ao rei cretense, os atenienses começavam a irritar-se contra Egeu. Relata-se ainda que Minos escolhia pessoalmente os quatorze jovens e dentre eles o futuro rei de Atenas, afirmando que, uma vez lançados inermes no Labirinto, se conseguissem matar o Minotauro, poderiam regressar livremente à sua pátria. O herói da Ática partiu com um barco ateniense, cujo piloto, Nausítoo, era da ilha de Salamina, uma vez que Menestes, neto de Ciro, rei desta ilha, contava-se entre os jovens exigidos por Minos. Entre eles estava também Eribeia ou Peribeia, filha de Alcátoo, rei de Mégara. Uma variante insiste que Minos viera pessoalmente buscar o tributo anual e na travessia para Creta se apaixonara por Peribeia, que chamou Teseu em seu auxílio. Este desafiou ao rei de Cnossos, dizendo-lhe ser tão nobre quanto ele, embora Minos fosse filho de Zeus. Para provar a areté do príncipe ateniense, o rei de Creta lançou no mar um anel e ordenou ao desafiante fosse buscá-lo. Teseu mergulhou imediatamente e foi recebido no palácio de Posídon, que lhe devolveu o anel. Mais tarde, Teseu se casou com Peribeia, que se celebrizou muito tempo depois como mulher de Télamon, pai de Ájax, personagem famosa da Ilíada e da tragédia homônima de Sófocles. À partida, Egeu entregou ao filho dois jogos de vela para o navio, um preto, outro branco, recomendando-lhe que, se porventura regressasse vitorioso, içasse as velas brancas; se o navio voltasse com as pretas, era sinal de que todos haviam perecido. Comentando a imposição tirânica do rei de Cnossos em relação às vítimas que eram devoradas pelo Minotauro, diz Paul Diel: “na Antiguidade, Minos foi sempre muito festejado por sua proverbial sabedoria. O mito relata que o rei de Creta venceu os atenienses com o auxílio de Zeus, o que expressa a justiça da causa. Após a vitória, porém, traindo sua habitual sabedoria, impôs a Atenas condições tirânicas, obrigando-a a enviar sete moços e sete moças para serem devorados pelo monstruoso Minotauro, que habitava um Labirinto subterrâneo. [...] Raramente o alcance psicológico do sentido secreto de um mito aparece com tanta clareza através do frontispício fabuloso. Minotauro significa o touro de Minos. Associando ao nome o símbolo do ‘Touro’, chega-se, através de Minotauro, à dominação perversa exercida por Minos. Obtém-se assim, por simples substituição, a chave para a tradução do episódio, pois se o Minotauro represen-ta a dominação perversa exercida por Minos – pormenor que reflete um estado psíquico do rei – todos os outros aspectos ocultos devem derivar desta interpretação e contribuir para colocá-la em evidência. Ora, esta dominação monstruosa (o Minotauro) é produto de Pasífae e Posídon (legalidade da perversão). O Minotauro é pois ‘o filho’ da perversão de Pasífae. A dominação perversa de Minos é gerada pela perversão de Pasífae, o que significa, no plano psicológico, que Minos é levado pela esposa a esquecer sua proverbial sabedoria. Mas Pasífae não pode influenciar o rei a não ser por seus conselhos, donde resulta como sentido, tão inesperado quanto evidente, um dado psicológico muito simples, mas que revela, com respeito a razões de Estado e acontecimentos mundiais, uma causa secreta que em vão se procurará nos tratados de história: foi por insistência e conselhos de sua mulher que Minos impôs aos atenienses condições de paz, cuja injustiça tirânica é simbolizada pelos jovens destinados a servir de pasto ao monstro. Poder-se-ia dizer, e até com certa razão, que a dominação perversa se nutre de carne humana. Em outros termos: Posídon, sob forma de touro, e portanto a perversão, sob forma de dominação tirânica, inspira a Pasífae os conselhos perversos que fazem nascer o Minotauro, a injustiça despótica de Minos. Este, no entanto, envergonha-se do monstro gerado por sua mulher e o esconde aos olhos dos homens. Minos e Pasífae repelem a verdade monstruosa, a dominação perversa do rei que é habitualmente sábio. Escondem a vontade monstruosa no inconsciente: aprisionam o Minotauro no Labirinto. O construtor do Labirinto foi Dédalo; o que significa que Dédalo, atilado e pérfido, teceu a intriga que anulou a sabedoria de Minos. Por um enganoso raciocínio, deu respaldo aos conselhos de Pasífae, conseguindo assim vencer a resistência e as hesitações do rei. Este raciocínio, ilusório mas aparentemente válido, é uma construção complicada, labiríntica. No labirinto do inconsciente a dominação perversa de Minos, o Touro de Minos, continua a viver. O rei, no entanto, é incessantemente obrigado a opor-se à sua sabedoria, a ‘nutrir’ sua atitude monstruosa com base em motivos falsos e a ‘alimentar’ seu remorso obsedante, seu arrependimento não confessado, por um raciocínio ilusório, o que o torna incapaz de reconhecer seu erro e renunciar às condições infligidas aos atenienses. As condições tirânicas realmente impostas encontram-se, nesse caso, substituídas pelo tributo simbólico destinado a alimentar o monstro: o sacrifício anual dos jovens inocentes de Atenas. [...] O ilogismo do mito, os símbolos ‘Minotauro’ e ‘Labirinto’ tornam-se assim reduzidos à verdade psicológica, à realidade, frequente e banal, de uma intriga palaciana. Esta tradução do sentido oculto do nascimento do monstro e da história de sua prisão se patenteia na medida em que se mostra válida para traduzir igualmente o episódio central do mito, isto é, o combate do herói contra o monstro. [...] Teseu decide, pois, combater o Minotauro, isto é, resolve opor-se à dominação exercida por Minos sobre os atenienses, abolindo a imposição tirânica. Mas, pelo mesmo fato de o Labirinto, em que está escondido o monstro simbólico, ser o inconsciente de Minos, este adquire, de per si, uma significação simbólica: retrata o “homem” mais ou menos secretamente habitado pela tendência perversa da dominação. Até mesmo o rei Minos, até mesmo o homem dotado de sabedoria (da justa medida) pode sucumbir à tentação dominadora. Esta generalização representativa estende-se igualmente ao herói convocado para lutar contra o monstro. Teseu não se curvará à opressão provinda de outrem, mas enfrentando-a, mesmo vitoriosamente, corre o risco de se tornar prisioneiro da fraqueza banal inerente à natureza humana: a vaidade de acreditar que o descomedimento da justa medida nas relações humanas seria uma prova de força, e assim justificar a tentação de reprimir seus semelhantes com medidas injustas. É pois muitíssimo significativo que o monstro acantonado no Labirinto do inconsciente, sendo irmão mítico de Teseu por descendência de Posídon, constitui o perigo essencial para o herói. Como todo herói que combate um monstro, Teseu, ao se defrontar com o Minotauro, luta contra sua própria falta essencial, contra a tentação perversa que o habita secretamente. [...] Dois perigos inerentes a esta situação de natureza psíquica aguardam o herói: deverá enfrentar o monstro (a dominação de Minos, que é seu próprio perigo) e terá, se vitorioso, que encontrar o caminho que o conduza para fora do Labirinto, símbolo, lato sensu, do perigo das aberrações inconscientes de todo ser humano e, portanto, igualmente de Teseu. Para triunfar, ao mesmo tempo, do adversário e da ameaça de seu inconsciente, Teseu não deve enfrentar a dominação de Minos apoiado em sua própria tentação dominadora (astúcia e mentira), mas na força heroica: a franqueza e a pureza. Sendo o Minotauro símbolo da ação perversa de Minos e das razões inconscientes que lhe toldam o discernimento, o combate para vencer o touro de Minos só pode ser a ação sublime do herói, exatamente o oposto do raciocínio repressor de Minos: a força vitoriosa de um raciocínio válido, suscetível de fazer renascer a sabedoria do rei. Em síntese: nessas forças positivas – na sabedoria de Minos parcialmente persistente e na pureza das intenções de Teseu – reside a única oportunidade de êxito”11. Uma vez em Creta, Teseu e os treze jovens foram, de imediato, encerrados no Labirinto, uma complicada edificação construída por Dédalo, com tantas voltas e ziguezagues, corredores e caminhos retorcidos, que, quem ali penetrasse, jamais encontraria a saída. O amor, porém, torna todo impossível possível! Ariadne, talvez a mais bela das filhas de Minos, se apaixonara pelo herói ateniense. Para que pudesse, uma vez no intrincado covil do Minotauro, encontrar o caminho de volta, dera-lhe um novelo de fios, que ele ia desenrolando, à medida que penetrava no Labirinto. Conta uma outra versão que o presente salvador da princesa minoica fora não um novelo, mas uma coroa luminosa, que Dioniso lhe oferecera como presente de núpcias. Uma terceira variante atesta que a coroa luminosa, que orientou e guiou Teseu nas trevas, lhe havia sido dada por Afrodite, quando o herói desceu ao palácio de Anfitrite para buscar o anel de Minos. Talvez a junção fio e coroa luminosa, “fio condutor e luz”, seja realmente o farol ideal para espancar trevas interiores! Ariadne condicionou seu auxílio a Teseu: livre do Labirinto, ele a desposaria e levaria para Atenas. Derrotado e morto o Minotauro, o herói escapou das trevas com todos os companheiros e, após inutilizar os navios cretenses, para dificultar qualquer perseguição, velejou de retorno à Grécia, levando consigo Ariadne. O navio fez escala na ilha de Naxos. Na manhã seguinte, Ariadne, quando acordou, estava só. Longe, no horizonte, o navio de velas pretas desaparecia: Teseu a havia abandonado. Esta é a versão mais conhecida e seguida inclusive por Ovídio, nas Heroides, 10,3-6: Quae legis, ex illo, Theseu, tibi litore mitto, unde tuam me uela tulere ratem; in quo me somnusque meus male prodidit, et tu, per facinus somnis insidiate meis. – O que lês, Teseu, envio-te daquela praia, donde, sem mim, as velas levaram teu barco; onde o sono perverso me traiu, de que perversamente tu te aproveitaste. Há variantes: uns afirmam que Teseu abandonou a filha de Minos porque amava outra mulher, Egle, filha de Panopleu. Outros acham que o herói foi forçado a deixá-la em Naxos, porque Dioniso se apaixonara por ela ou até mesmo a teria raptado durante a noite; e, após desposá-la, a teria levado para o Olimpo. Como presente de núpcias o deus lhe teria dado um diadema de ouro, cinzelado por Hefesto. Tal diadema foi, mais tarde, transformado em constelação. Com >Dioniso, Ariadne teria tido quatro filhos: Toas, Estáfilo, Enópion e Pepareto. De Naxos Teseu navegou para a ilha de Delos, onde fez escala, a fim de consagrar num templo uma estátua de Afrodite, com que Ariadne o havia presenteado. Ali ele e seus companheiros executaram uma dança circular de evoluções complicadas, representando as sinuosidades do Labirinto. Tal rito subsistiu na ilha de Apolo por muito tempo, ao menos até a época clássica. Triste com a perda de Ariadne, ou castigado por havê-la abandonado, ao aproximar-se das costas da Ática o herói se esqueceu de trocar as velas negras de seu navio, sinal de luto, pelas brancas, sinal de vitória. Egeu, que ansiosamente aguardava na praia a chegada do barco, ao ver as velas negras, julgou que o filho houvesse perecido em Creta e lançou-se nas ondas do mar, que recebeu seu nome. Relata-se ainda que o rei esperava o filho no alto da Acrópole, exatamente no local onde se ergue o templo da Vitória Aptera. Ao ver de longe o navio com as velas negras, precipitou-se do penhasco e morreu. Consoante, mais um vez, a interpretação simbólica de Diel, “a vitória só poderia ser definitiva para o herói na medida em que tivesse sobrepujado seu próprio perigo, quer dizer, após a destruição do monstro existente nele próprio. Diante de tarefa tão essencial, Teseu fracassou. Triunfou tão somente da perversidade de Minos, atacando apenas o monstro no adversário. Um pormenor do combate simbólico, negligenciado até o momento como de pouca importância, mas capaz de esclarecer toda a situação psicológica e resumir-lhe todas as consequências, é o fato de Teseu haver liquidado o Minotauro com a clava que pertencera ao facínora Perifetes. Este traço simbólico mostra que o herói, aceitando o auxílio de Ariadne, usa de uma arma pérfida: seu amor pela princesa é somente pretexto e cálculo, comportando-se ele próprio realmente como um facínora. A arma da vitória, a clava de Perifetes, faz prever que seu triunfo sobre o monstro não traduz um ato de coragem e nem trará benefícios. Se o herói, graças ao poder do amor, soube derrotar a Minos, não se aproveitará, todavia, da vitória conseguida por esse poder, uma vez que este não lhe pertence. Longe de ser heroico, o triunfo sobre o Minotauro não passa de uma façanha perversa, uma traição. Explorou o amor de Ariadne para atingir seus objetivos e logo depois a traiu. Ora, o ‘fio de Ariadne’ deveria conduzi-lo não apenas para fora do dédalo inconsciente de Minos, mas igualmente para fora do labirinto de seu próprio inconsciente. Teseu se perde e esse extravio há de decidir toda sua história futura”12. Seu amor pela irmã de Ariadne, Fedra, de que se falará mais abaixo, lhe trará sérias consequências. O príncipe ateniense não deixa Creta como herói, mas como um bandido e traidor. Abandonando a Ariadne, apesar da vitória sobre o Touro de Minos, seu êxito se converte em derrota essencial. Em sua traição a Ariadne se acham conjugados tanto os signos da perversidade dominadora quanto os da perversão sexual. As velas negras, sinal de luto, com que Teseu partiu, tornam-se o símbolo da perversão, insígnia das forças das trevas. O herói navegará de agora em diante sob seu império. Não penetra em Atenas como vencedor e, fato importante, de uma significação mítica profunda, o herói se esquece de içar as velas brancas, que lhe traduziriam a vitória. Egeu, contemplando as velas negras, precipita-se no mar. O rei, enquanto pai corporal, mata-se de desespero, persuadido de que o filho havia corporalmente perecido. O rei, pai mítico, lançando-se nas profundezas das águas, simboliza algo de muito sério: o herói será doravante e definitivamente abandonado pelo espírito, que está introjetado nas profundezas marinhas, símbolo do inconsciente. Outro pai mítico, Posídon, passará a comandar o destino do herói. 5 Após a morte de Egeu, Teseu assumiu o poder na Ática. Realizou o célebre συνοικισμóς (synoikismós), sinecismo, isto é, reuniu em uma só pólis os habitantes até então disseminados pelo campo. Atenas tornou-se a capital do Estado. Mandou construir o Pritaneu13e a Bulé, o Senado. Promulgou leis; adotou o uso da moeda; instituiu a grande festa das Panateneias, símbolo da unidade política da Ática. Dividiu os cidadãos em três classes: eupátridas, artesãos e camponeses. Instaurou, miticamente, em suas linhas gerais, a democracia. Conquistou a cidade de Mégara e anexou-a ao estado recém-criado; na fronteira entre a Ática e o Peloponeso, mandou erigir marcos para separar o território jônico do dórico; e reorganizou em Corinto os Jogos Ístmicos, em honra a seu “pai” Posídon. Executadas essas tarefas políticas, o rei de Atenas retomou sua vida “heroica”. Como Etéocles houvesse expulso de Tebas a seu irmão Polinice, este, casando-se com Argia, filha de Adrasto, rei de Argos, conseguiu organizar sob o comando do sogro a célebre expedição dos Sete Chefes (Adrasto, Anfiarau, Capaneu, Hipómedon, Partenopeu, Tideu e Polinice). A expedição foi um desastre: somente escapou Adrasto, que se pôs sob a proteção de Teseu. Este, que já havia acolhido como exilado a Édipo, como nos mostra Sófocles no Édipo em Colono, marchou contra Tebas e, tomando à força os cadáveres de Seis Chefes, deu-lhes condigna sepultura em Elêusis. A tradição insiste numa guerra entre os habitantes da Ática e as Amazonas, que lhes teriam invadido o país. As origens da luta diferem de um mitógrafo para outro. Segundo uns, tendo-se engajado, como se viu no capítulo anterior, na expedição de Héracles contra as Amazonas, Teseu recebera, como prêmio de suas proezas, a amazona Antíope, com a qual tivera um filho, Hipólito. Segundo outros, Teseu viajara sozinho ao país dessas temíveis guerreiras e tendo convidado a bela Antíope para visitar o navio, tão logo a teve a bordo, navegou a toda a vela de volta à pátria. Para vingar o rapto de sua irmã, as Amazonas invadiram a Ática. A batalha decisiva foi travada nos sopés da Acrópole e, apesar da vantagem inicial, as guerreiras não resistiram e foram vencidas por Teseu, que acabou perdendo a esposa Antíope. Esta, por amor, lutava ao lado do marido contra as próprias irmãs. Para comemorar a vitória de seu herói, os atenienses celebravam, na época clássica, as festas denominadas Boedrômias. Existe ainda uma outra variante. A invasão de Atenas pelas Amazonas não se deveu ao rapto de Antíope, mas ao abandono desta por Teseu, que a repudiara, para se casar com a irmã de Ariadne, Fedra. A própria Antíope comandara a expedição e tentara, à base da força, penetrar na sala do festim, no dia mesmo do novo casamento do rei de Atenas. Como fora repelida e morta, as Amazonas se retiraram da Ática. De qualquer forma, o casamento de Teseu com Fedra, que lhe deu dois filhos, Ácamas e Demofoonte, foi uma fatalidade. Hipólito, filho de Antíope e Teseu, segundo já se assinalou, consagrara-se a Ártemis, a deusa virgem, irritando profundamente a Afrodite. Sentindo-se desprezada, a deusa do amor fez que Fedra concebesse pelo enteado uma paixão irresistível. Repudiada violentamente por Hipólito, e temendo que este a denunciasse a Teseu, rasgou as próprias vestes e quebrou a porta da câmara nupcial, simulando uma tentativa de violação por parte do enteado. Louco de raiva, mas não querendo matar o próprio filho, o rei apelou para “seu pai” Posídon, que prometera atender-lhe três pedidos. O deus, quando Hipólito passava com sua carruagem à beira-mar, em Trezena, enviou das ondas um monstro, que lhe espantou os cavalos, derrubando o príncipe. Este, ao cair, prendeu os pés nas rédeas e, arrastado na carreira pelos animais, se esfacelou contra os rochedos. Presa de remorsos, Fedra se enforcou. Existe uma variante, segundo a qual Asclépio, a pedido de Ártemis, ressuscitara Hipólito, que foi transportado para o santuário de “Diana”, em Arícia, na Itália. Ali, o filho de Teseu fundiu-se com o deus local, Vírbio, conforme se pode ver em Ovídio, Metamorfoses, 15,544. Eurípides compôs duas peças acerca da paixão de Fedra por Hipólito. Na primeira Hipólito, da qual possuímos apenas cerca de cinquenta versos, a rainha de Atenas, num verdadeiro rito do “motivo Putifar”, entrega-se inteira à sua paixão desenfreada, declarando-a ela própria ao enteado. Repelida por este, caluniou-o perante Teseu, como se disse linhas atrás, e só se enforcou após a morte trágica de seu grande amor. Na segunda versão, Hipólito Porta-Coroa, uma das tragédias mais bem elaboradas por Eurípides, do ponto de vista literário e psicológico, Fedra confidencia à ama sua paixão fatal e esta, sem que a rainha o desejasse, ou lhe pedisse “explicitamente”, narra-a a Hipólito, sob juramento. Envergonhada com a recusa do jovem príncipe e temendo que este tudo revelasse ao pai, enforca-se, mas deixa um bilhete ao marido, em que mentirosamente acusa Hipólito de tentar seduzi-la. A imprudente maldição de Teseu provoca a terrível desdita do filho, acima descrita, mas a verdade dos fatos é revelada por Ártemis ao infortunado pai. Com o filho agonizante nos braços, Teseu tem ao menos o consolo do perdão de Hipólito e a promessa de que este há de receber honras perpétuas em Trezena! As jovens, antes do casamento, lhe ofertarão seus cabelos e “o amor de Fedra jamais cairá no esquecimento”! De fato, esse grande amor foi muitas vezes invocado, sobretudo na Phaedra de Lúcio Aneu Sêneca e na Phèdre de Jean Racine... Seja como for, o que se evidencia no mito transmutado em tragédia por Eurípides é a superlativação do “páthos da paixão”. A respeito especificamente de Fedra e Teseu acentua Paul Diel: “Teseu se perde [...]. Apaixona-se pela irmã de Ariadne, Fedra. Sua fraqueza de espírito sacrifica o amor benéfico à sedução perversa e a arrasta a seu destino. Fedra simboliza a escolha perversa e impura. Não é, como Medeia, a mulher demoníaca, a feiticeira, que embruxa e devora o homem. Fedra representa um outro tipo de sedução perversa e impura: mulher nervosa, histérica, incapaz de um sentimento justo e ponderado, cujo amor-ódio, ora exaltado, ora inibido, usa a força do espírito em função da natureza caprichosa e questionadora de suas exigências. O mito representa esse tipo de mulher frequentemente sob a forma de uma amazona, que luta contra o homem, que lhe mata o espírito”14. Para Diel, por conseguinte, o abandono de Ariadne e o casamento posterior de Teseu com Fedra intensificam e apressam-lhe o fim trágico: “O restante do mito é apenas uma ilustração do castigo. Aqui, como em toda parte, a punição não é exteriormente anexada à derrota (à culpa), tornando-se-lhe tão somente a consequência manifesta (a justiça inerente). Ora, a derrota é o começo da banalização do herói; o castigo será a banalização manifesta [...]. Viuse que a derrota culposa de Teseu é caracterizada por dois aspectos típicos da perversão banal: a intriga (dominação perversa) e a falsa escolha (sexualidade pervertida). Estes mesmos aspectos determinam, aliás, o destino do casal Minos-Pasífae. O herói ateniense teve, em suma, a mesma sorte que Minos e é por isso que sua vitória sobre o Minotauro foi apenas efêmera. A sabedoria do rei foi arruinada pela influência de Pasífae; o impulso heroico de Teseu será definitivamente destruído pelo que aconteceu com Fedra [...]. O mito do castigo se inicia logo após o retorno do herói. Morto Egeu, o vencedor do Minotauro assume o poder. As consequências da influência de Fedra, ilustradas anteriormente pela ascendência de Pasífae sobre Minos, somente irão surgir depois de certo tempo de incubação. A força heroica do jovem rei de Atenas ainda lhe mantém a auréola de sábio. Ele criou instituições públicas, mas essas realizações intelectuais não poderão substituir o combate do espírito abandonado daqui por diante. A despeito da organização da vida exterior, a corrupção interna do herói há de tornar-se, dentro em pouco, o flagelo da Ática”15. 6 Alguns episódios da maturidade de Teseu estão intimamente ligados à sua grande amizade com o herói lápita Pirítoo16. Conta-se que essa fraterna amizade entre o lápita e o ateniense se deveu à emulação de Pirítoo. Tendo ouvido ruidosos comentários acerca das façanhas de Teseu, o lápita quis pô-lo à prova. No momento, porém, de atacá-lo, ficou tão impressionado com o porte majestoso e a figura do herói da Ática, que renunciou à justa e declarou-se seu escravo. Teseu, generosamente, lhe concedeu sua amizade para sempre. Com a morte de Hipodamia, Pirítoo passou a compartilhar mais de perto das proezas de Teseu. Duas das aventuras mais sérias dessa dupla famosa no mito foram o rapto de Helena e a catábase ao Hades, no intuito de raptar também a Perséfone. Os dois episódios, aparentemente grotescos, traduzem ritos muito significativos: o rapto de mulheres, sejam elas deusas ou heroínas, fato comum na mitologia, configura, como se comentou no capítulo VI, 4, p. 119s, do Vol. I, não só um rito iniciático, mas também o importante ritual da vegetação: chegados a seu termo os trabalhos agrícolas, é necessário “transferir a matriz”, a Grande Mãe, para receber a nova porção de “sementes”, que hão de germinar para a colheita seguinte. A catábase ao Hades, igualmente assinalada no capítulo III, 3, deste Volume, simboliza a anagnórisis, o autoconhecimento, a “queima” do que resta do homem velho, para que possa eclodir o homem novo. Voltando ao rapto e à catábase, é bom assinalar que os dois heróis, por serem filhos de dois grandes deuses, Posídon e Zeus, resolveram que só se casariam dali em diante com filhas do pai dos deuses e dos homens e, para tanto, resolveram raptar Helena e Perséfone. A primeira seria esposa de Teseu e a segunda, de Pirítoo. Tudo começou, portanto, com o rapto de Helena. O herói estava, “à época”, com cinquenta anos e Helena nem sequer era núbil. Assustados com a desproporção da idade de ambos, os mitógrafos narraram diversamente esse rapto famoso. Não teriam sido Teseu e Pirítoo os raptores, mas Idas e Linceu, que confiaram Helena a Teseu, ou ainda o próprio pai da jovem espartana, Tíndaro, que, temendo que Helena fosse sequestrada por um dos filhos de Hipocoonte, entregara a filha à proteção do herói ateniense. A versão mais conhecida é aquela em que se narra a ida dos dois heróis a Esparta, quando então se apoderaram à força de Helena, que executava uma dança ritual no templo de Ártemis Órtia. Os irmãos da menina, Castor e Pólux, saíram-lhes ao encalço, mas detiveram-se em Tegeia. Uma vez em segurança, Teseu e Pirítoo tiraram a sorte para ver quem ficaria com a princesa espartana, comprometendo-se o vencedor a ajudar o outro no rapto de Perséfone. A sorte favoreceu o herói ateniense, mas, como Helena fosse ainda impúbere, Teseu a levou secretamente para Afidna, demo da Ática, e colocou-a sob a proteção de sua mãe Etra. Isto feito, desceram ao Hades para conquistar Perséfone. Durante a prolongada ausência do rei ateniense, Castor e Pólux, à frente de um grande exército, invadiram a Ática. Começaram a reclamar pacificamente a irmã, mas como os atenienses lhes assegurassem que lhe desconheciam o destino, tomaram uma atitude hostil. Foi então que um certo Academo lhes revelou o lugar onde Teseu a retinha prisioneira. Eis o motivo por que, quando das inúmeras invasões da Ática, os espartanos sempre pouparam a Academia, o jardim onde ficava o túmulo de Academo. Imediatamente os dois heróis de Esparta invadiram Afidna, recuperaram a irmã e levaram Etra como escrava, como já se falou no Vol. I, p. 118. Antes de abandonar a Ática, colocaram no trono de Atenas um bisneto de Erecteu, chamado Menesteu, que liderava os descontentes, particularmente os nobres, irritados com as reformas de seu soberano, sobretudo com a democracia. Muito bem recebidos por Plutão, Teseu e Pirítoo, foram, todavia, vítimas de sua temeridade. Convidados pelo rei do Hades a participar de um banquete, não mais puderam levantar-se de suas cadeiras. Héracles, quando desceu aos Infernos, tentou libertá-los, mas os deuses somente permitiram que o filho de Alcmena “arrancasse” Teseu de seu assento, para que pudesse retornar à luz. Pirítoo há de permanecer para sempre sentado na Cadeira do Esquecimento. Conta-se que, no esforço feito para se soltar da cadeira, Teseu deixou na mesma uma parcela de seu traseiro, o que explicaria terem os Atenienses cadeiras e nádegas tão pouco carnudas e salientes... O erro fatal dos dois heróis foi o terem se sentado e comido no mundo dos mortos. Como se mostrou no Vol. I, p. 323s, e no Vol. II, p. 257-258, se o comer configura fixação, o sentar-se implica em intimidade e permanência. As duas atitudes simbolizam, pois, uma inadvertência desastrosa cometida pelo lápita e pelo ateniense. Deveras grotesca é a interpretação evemerista dessa catábase, relatada por Pausânias. Segundo tal variante, Teseu e Pirítoo, em vez de terem descido ao Hades, haviam realizado uma simples viagem ao Epiro, à corte do rei Hedoneu, cujo nome teria sido confundido com o de Hades... Por “coincidência”, a esposa do rei do Epiro chamava-se Perséfone e a filha do casal, Core. Um cão feroz guardava-lhe o palácio: seu nome era Cérbero! Os heróis apresentaram-se a Hedoneu e pediram-lhe a mão de Core, acrescentando que se casaria com ela aquele que vencesse ao cão Cérbero. Na realidade, o que desejavam, uma vez adquirida a confiança do rei, era raptar-lhe a esposa e filha. Percebendo-lhes as intenções, o soberano mandou metê-los na prisão. Pirítoo, por ser considerado mais desavergonhado e cínico, foi lançado a Cérbero, que o devorou de uma só bocada. Teseu continuou preso. Certo dia, tendo Héracles, grande amigo de Hedoneu, passado pelo Epiro, solicitou ao rei a liberdade de Teseu, que, de imediato, foi solto e regressou a Atenas... Para Paul Diel, Pirítoo é um aventureiro fanfarrão, que, “prestes a enfrentar Teseu, se declara, por enleio, um seu escravo [...]. Tomandoo por amigo inseparável, o herói de Atenas deixa claro que sua própria ‘queda’ está próxima e será definitiva [...]. Juntos raptam Helena, mas tratam-na como se fora um espólio, o produto de uma caçada, e é pela sorte que decidem a quem a mesma pertencerá. [...] Teseu, como êmulo de Pirítoo, comporta-se como um autêntico bandido. E não o faz como no episódio de Minos, em que deixa patente a malícia de suas intenções secretas, quando fica bem claro o ruidoso cinismo de seus crimes. A partir desse momento é impossível recuar. A íngreme encosta inclina-se para o abismo. Teseu fracassará no mais profundo dos abismos, o Hades, símbolo da legalidade do inconsciente”17. Se Pirítoo fica emaranhado na própria cadeira em que se sentou, Teseu é “salvo”, graças a Héracles. Todo o esforço do filho de Alcmena, no entanto, foi em vão: reconduz apenas um “espírito morto” ao mundo dos vivos. A liberação foi passageira. O herói de Atenas desperta unicamente para sucumbir em definitivo. A falsa escolha de Teseu, Fedra, torna-se o instrumento de sua punição. Omitindo a figura de Pirítoo, o Dr. Henderson é menos severo com o herói ateniense. Comentando-lhe a “descida” ao Labirinto, a morte do Minotauro e o rapto de Ariadne, escreve o psiquiatra norteamericano: “Teseu e Perseu tiveram que vencer seu medo aos demoníacos poderes inconscientes maternos e libertar dos mesmos a uma jovem figura feminina. Perseu cortou a cabeça da Górgona Medusa, que com o olhar terrível transformava em pedra a quantos contemplasse. Em seguida venceu o dragão que guardava Andrômeda. Teseu representa o jovem espírito patriarcal ateniense que arrostou os terrores do Labirinto com seu Minotauro, o qual possivelmente simboliza a decadente Creta matriarcal. Em todas as culturas o labirinto configura uma representação intrincada e confusa do mundo da consciência matriarcal: somente pode atravessá-lo quem está disposto a uma iniciação especial no mundo misterioso do inconsciente coletivo. Após levar de vencida esse perigo, Teseu resgatou Ariadne, donzela sequestrada. Tal resgate simboliza a liberação da anima do aspecto devorador da imagem materna. Enquanto não se consegue tal proeza, o homem não pode alcançar sua verdadeira capacidade para relacionar-se com o sexo oposto”18. 7 Retornando da outra vida, o herói encontrou Atenas dilacerada por lutas internas e pelas facções políticas. Entristecido com seus concidadãos e sem mais vigor para lutar, desistiu de tentar reassumir as rédeas do poder. É precisamente sob esse aspecto que se tem que concordar com Paul Diel: onde estão a timé e a areté do filho de Posídon? Esgotaramse no triste abandono de Ariadne e no trágico acidente de Fedra ou dissolveram-se nas trevas do Hades? A catábase teria deixado de ser uma escalada para a luz? Assim parece, realmente. Após o abandono criminoso de Ariadne e o funesto casamento com Fedra, Teseu, cego pela calúnia e pelo medo de perder o trono, torna-se tão tirânico, que faz perecer seu próprio filho. Repete-se o sacrifício monstruoso, outrora praticado por Minos contra os atenienses. Tentando extingui-lo, o herói acaba por renová-lo. É a derrocada irremediável. Desistindo, pois, de lutar, o rei de Atenas, após enviar secretamente seus filhos para Eubeia, onde reinava Elefenor, amaldiçoou Atenas e retirou-se para a ilha de Ciros. O rei local, Licomedes, aliás parente do herói, temendo que Teseu reivindicasse a posse da ilha, onde possuía muitos bens, levou-o ao cume de um penhasco, à beira-mar, sob o pretexto de mostrar-lhe o panorama da ilha, e o precipitou, pelas costas, no abismo. A morte trágica de Teseu, como é de praxe no mundo heroico, talvez configure o regressus ad uterum do filho de Etra, que, a essas alturas, como escrava de Helena, fora levada para Troia. Lançado do píncaro de um rochedo ao mar, domínio de seu pai Posídon, o herói teve sua catarse final. Curiosamente, a morte traiçoeira de seu rei não provocou da parte dos atenienses nenhuma reação... Menesteu, como desejavam os Dioscuros, continuou a reinar em Atenas. Os dois filhos do herói, Ácamas e Demofoonte, participaram da Guerra de Troia como simples combatentes. Com a morte de Menesteu, regressaram a Atenas e retomaram o trono, que de direito lhes pertencia. Um herói, como já se disse na Introdução, só é, as mais das vezes, condignamente reconhecido após a morte, quando se torna daímon, um verdadeiro héros, um intermediário entre os imortais e os homens. O rei de Atenas, mais cedo do que se esperava, mostrou a seus ingratos concidadãos que continuava a ser herói. Durante a batalha de Maratona, em 480 a.C., contra os persas invasores, como igualmente se comentou na Introdução, os hoplitas atenienses perceberam que um herói, de porte gigantesco, combatia à sua frente. Era o eídolon de Teseu que, mais uma vez, defendia sua Atenas. Após as guerras greco-pérsicas, o Oráculo de Delfos ordenou aos atenienses que recolhessem as cinzas do herói e lhes dessem sepultura no interior da Pólis. Tão honrosa tarefa coube ao grande general de Atenas, Címon. Este, tendo conquistado a ilha de Ciros, viu uma águia que, pousada sobre um montículo, rasgava a terra com suas unhas aduncas. O general compreendeu bem a significação do prodígio. Mandou escavar o túmulo e encontrou a ossada de um homem de altura gigantesca e junto da mesma uma lança de bronze e uma espada. Essas relíquias foram solenemente transportadas para Atenas e, em meio a grandes festas, se lhes deu sepultura condigna. Seu túmulo magnífico, na cidade de Palas Atená, tornou-se abrigo inviolável dos escravos fugitivos e dos oprimidos. É que Teseu, em vida, fora o campeão da democracia, o refúgio e o baluarte dos injustiçados. Em conclusão, muitos dos episódios descritos da saga de Teseu são provas iniciáticas: a penetração no Labirinto e sua luta com o Minotauro são um tema exemplar das iniciações heroicas. Sua união com Ariadne, hipóstase de Afrodite, é, na realidade, uma hierogamia. A catábase ao Hades é o exemplar típico de um regressus. Tomadas em bloco, as gestas do décimo rei de Atenas são transposições de um ritual arcaico que marcava o retorno dos efebos à cidade, após as provas iniciáticas a que eram submetidos no campo, nas montanhas ou nas florestas. 2. Segundo alguns intérpretes, a resposta oracular significava que Apolo proibia que o rei, antes de retornar a Atenas, tivesse qualquer contato sexual fosse com que mulher fosse. 3. DIEL, Paul. Le symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1966, p. 182. 4. Diel faz uma aproximação etimológica, aliás indevida e arbitrária, entre Perifetes (o que muito fala ou o muito célebre) e peripécia (a passagem de um estado a outro contrário). Em todo caso, o objetivo do autor é chamar a atenção para a transformação, a “peripécia” de Teseu. 5. Ibid., p. 184s. 6. Veja-se Introdução, cap. 1,7. 7. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 980. 8. Ibid., p. 183. Importa lembrar que o termo “banalização”, conforme apontou Gaston Bachelard em seu prefácio ao Symbolysme dans la mythologie grecque, é empregado por Diel para refletir “o esquecimento das necessidades da alma em favor exclusivo das necessidades do corpo”. 9. Ibid., p. 786. 10. A atitude de Medeia em relação a Teseu, embora não se possa justificar, pode ser explicada: temendo, de um lado, que o amor do marido fosse repartido com o filho (Medeia sempre viveu em desamor) e receando, de outro, perder o poder, coisa de que a mulher é muito ciosa, quando o detém, resolveu novamente tomar uma atitude extrema. Quanto ao destino da exesposa de Jasão e Egeu, pouco se conhece. Sabe-se, apenas, que, tendo retornado à Cólquida, matou a seu tio Perses, que lhe havia destronado o pai Eetes, que ela, aliás, recolocou no trono. 11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 188ss. 12. Ibid., p. 190 e 191. 13. Pritaneu era um edifício público de Atenas, uma espécie de “Lareira Comum”, onde se homenageavam atenienses e embaixadores estrangeiros. 14. Ibid., p. 191s. 15. Ibid., p. 194. 16. Pirítoo é um herói lápita, filho de Zeus e Dia, ou, segundo outros, de Ixíon e da mesma Dia. Desde a Ilíada, I, 262ss, Pirítoo, juntamente com Teseu e outros heróis, é considerado como o vencedor dos Centauros, aliás seus meios-irmãos, desde que se adote a variante de sua genealogia como filho de Ixíon, já que este último era igualmente pai dos Centauros com o eídolon de Hera, segundo se mostrou no cap. XIII, 2, p. 298s, do Vol. I. Presentes ao casamento de seu meio-irmão com Hipodamia, os Centauros, excitados pelo vinho, tentaram raptar-lhe a noiva, o que deu origem à luta sangrenta entre os lápitas, comandados por Pirítoo, Teseu e outros grandes heróis, e os monstruosos Centauros. A vitória decisiva dos lápitas selou ainda mais a amizade entre Teseu e Pirítoo. 17. Ibid., p. 194s. 18. JUNG, C.G. et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1969, p. 125. CAPÍTULO V Jasão: o Mito dos Argonautas 1 JASÃO, em grego Ἰάσων, provém etimologicamente, consoante Carnoy, da raiz indo-europeia eis-, is-, que expressa a ideia de curar: com efeito, Ἶασις (íasis) é cura. Como discípulo de Quirão, acentua o filólogo belga, sejam quais forem as aventuras posteriores do herói, Jasão1está, ao menos do ponto de vista etimológico, ligado à medicina. O mesmo, aliás, se poderia dizer de seu pai Esão, em grego Αἴων (Aíson), “o que cura, reanima”. Filho de Esão2 e de Polímede ou Alcímede, muito menino ainda, sofreu as amarguras do exílio. É que seu pai, legítimo herdeiro do reino de Iolco, fora destronado e condenado à morte por seu meioirmão usurpador Pélias, filho de Tiro e Posídon. Narra uma outra versão que Esão, já idoso, havia confiado o reino a Pélias, até que Jasão atingisse a maioridade. Educado pelo centauro Quirão, foi instruído, entre outras artes, na iátrica. Completada a iniciação, no aprazível monte Pélion, o herdeiro do trono de Iolco, já com vinte anos, deixou o mestre, desceu o monte e retornou à cidade natal. Sua indumentária era estranha: coberto com uma pele de pantera, levava uma lança em cada mão e tinha apenas o pé direito calçado com uma sandália. O rei, que no momento se preparava para oferecer um sacrifício, o viu e, embora não o tivesse reconhecido, ficou muito assustado, porque se lembrou de um oráculo segundo o qual “deveria desconfiar do homem que tivesse apenas uma sandália”, isto é, de um μονοσάνδαλος (monosándalos), como diz Apolodoro. Jasão permaneceu cinco dias com o pai e no sexto apresentou-se ao tio e reclamou o trono, que, de direito, lhe pertencia. Pélias concordou, desde que Jasão lhe trouxesse da Cólquida o Velocino de Ouro, que estava em poder de Eetes. Consoante uma variante, foi o próprio herói que se obrigou a tão grande empresa. Segundo outras versões, a tarefa imposta a Jasão pelo tio obedeceria a outras razões: quando o herói se apresentou a Pélias para reclamar o trono, o soberano, observando que o sobrinho usava tão somente uma sandália, compreendeu que o perigo anunciado pelo oráculo era iminente. Mandou que Jasão se aproximas-se e perguntou-lhe que castigo infligiria, se fosse rei, à pessoa que o ameaçasse. O jovem respondeu que a mandaria conquistar o velocino de ouro; ao que o soberano, de imediato, o despachou para realizar tamanho empreendimento, pois era ele próprio que punha em risco a vida do soberano. Alguns mitógrafos posteriores, mas sobretudo poetas, julgam que a ideia da conquista do precioso velocino fora sugerida ao herói pela deusa Hera que, profundamente irritada com Pélias, porque este não lhe prestava as honras devidas, queria encontrar um meio de trazer Medeia, a fim de que a mágica da Cólquida o matasse. Seja qual for o móvel da expedição, o filho de Esão ordenou que um arauto convocasse príncipes e heróis para o magno cometimento. 2 Antes de se comentar a Expedição dos Argonautas, vamos abrir um parênte-se para explicar a origem e o destino do velocino de ouro. Éolo, filho de Hélen e da ninfa Orseis e, por conseguinte, neto de Deucalião e Pirra, tinha doze filhos, um dos quais Átamas, segundo se pode constatar no quadro genealógico no final do capítulo V. Átamas era rei de Orcômeno ou mesmo de Tebas. Seu mito se tornou matéria-prima de várias tragédias, enriquecendo-se, desse modo, com episódios complexos, não raro contraditórios. Casou-se três vezes e é a história desses casamentos que serviu de pretexto para desdobramentos romanescos, de um mito mais antigo. Na versão mais conhecida e que certamente remonta à tragédia Frixo de Eurípides, hoje perdida, o rei beócio uniu-se em primeiras núpcias a Néfele, que lhe deu um casal de filhos, Frixo e Hele. Tendo repudiado a primeira esposa, casou-se com Ino, filha de Cadmo, lendário fundador de Tebas. Ino foi mãe igualmente de dois filhos, Learco e Melicertes. Enciumada com os filhos do primeiro matrimônio de Átamas, concebeu o projeto de eliminá-los. Para tanto convenceu as mulheres tebanas que, às escondidas dos maridos, grelhassem todos os grãos de trigo existentes. Semeados estes, não houve brotação. Face a semelhante prodígio, o rei mandou consultar o Oráculo de Delfos. Ino subornou os mensageiros, para que dissessem que a Pítia, para fazer cessar tão grande castigo, exigia o sacrifício de Frixo e, segundo outras fontes, deste e de Hele. Já os dois se encaminhavam para o altar, quando Zeus, ou, conforme outras fontes, Néfele, lhes enviou um carneiro voador de velo de ouro, filho de Posídon e presente de Hermes, que conduziu Frixo até a Cólquida, porque Hele, por causa de uma vertigem, caiu no mar, no estreito chamado, por isso mesmo, Helesponto, isto é, Mar de Hele, fato imortalizado por Ovídio, Fastos, 3,857s. Tendo chegado à corte de Eetes, na Cólquida, Ásia Menor, foi muito bem recebido pelo soberano, que lhe deu a filha Calcíope em casamento. Antes de retornar à Hélade, Frixo sacrificou o carneiro a Zeus e ofereceu o velo de ouro ao rei, que o consagrou ao deus Ares, cravando-o num carvalho, no bosque sagrado do deus da guerra. Uma outra versão, devida a Higino, conta que Eetes matou a Frixo, seja em função da auri sacra fames, seja porque um oráculo lhe havia predito a morte nas mãos de um descendente de Éolo. De qualquer forma, é esse velocino de ouro que vai dar origem à famosa expedição dos argonautas3. 3 Convocados por um arauto através da Grécia inteira, apresentaram-se mais de cinquenta heróis para participar da arriscada missão. Diferentes Catálogos, que, na realidade, diferem muito uns dos outros, conservaram os nomes dos valorosos componentes da expedição. Dois dentre eles são muito importantes, o de Apolônio de Rodes e o de Apolodoro, não só porque fixam o número dos heróis entre cinquenta e cinquenta e cinco, mas sobretudo porque, além de serem independentes entre si, arrolam um número apreciável de nomes, o que refletiria o fundo mais estável e possivelmente mais antigo do mitologema. Além de Jasão, que comandava a expedição, aparecem Argos, filho de Frixo, ou de Arestor, segundo outros, como construtor do navio, e Tífis, como piloto. Este último recebeu tão honrosa função por ordem de Atená, que lhe ensinou a arte da navegação, até então desconhecida. Com a morte do piloto nas terras dos Mariandinos, na Bitínia, seu posto foi ocupado por Ergino, filho de Posídon. Vinha, em seguida, o músico e cantor da Trácia, Orfeu, cuja função não era apenas a de dar cadência aos remadores, mas ainda, e principalmente, a de evitar, com sua voz divina, a sedução do canto das sereias. Dentre tão célebres protagonistas destacam-se também os adivinhos Ídmon, Anfiarau e, no Catálogo de Apolodoro, o lápita Mopso. Desejosos e preparados para quaisquer agônes a nau Argo4levava ainda a bordo muitos outros heróis destemidos como Zetes e Cálais, Castor e Pólux, Idas e Linceu e o arauto da expedição, Etálides, um dos filhos de Hermes. Dentre os heróis de “menor porte” é bastante citar Admeto, Acasto, filho de Pélias, Periclímeno, Astério, o lápita Polifemo, Ceneu, Êurito, Augias, Cefeu... Em ambos os Catálogos figura Héracles, mas ligado apenas a um episódio da viagem, o rapto de seu jovem companheiro Hilas pelas ninfas, na Mísia, o que acarretou o desespero do herói, que não mais prosseguiu na expedição. O navio Argo foi lançado ao mar, na praia de Págasas, na Tessália, em cerimônia solene e concorrida. Após um sacrifício a Apolo, Jasão içou a vela e Argo singrou em direção à Cólquida. Os auspícios eram favoráveis, pressagiava Ídmon, segundo quem apenas ele dentre os grandes heróis pereceria no trajeto, retornando todos os demais. A primeira escala foi na ilha de Lemnos, onde se uniram às lemníades, dando-lhes filhos, uma vez que estas haviam assassinado todos os maridos, conforme se comentou no Vol. I, p. 233s. Navegaram, em seguida, em direção à ilha de Samotrácia, e aí, a conselho de Orfeu, todos se iniciaram nos Mistérios dos Cabiros5. Penetrando no Helesponto, chegaram à cidade de Cízico, na terra dos Dolíones. O rei, homônimo da cidade, os recebeu hospitaleiramente, oferecendo-lhes, além de muitos presentes, um grande banquete. Na noite seguinte os argonautas partiram, mas uma grande tempestade fê-los retornar a Cízico. Os Dolíones, não tendo reconhecido os seus hóspedes da véspera e julgando tratar-se de piratas pelasgos, que frequentemente lhes pilhavam a cidade, atacaram-nos com todos os seus homens disponíveis. Travou-se uma grande batalha. Cízico, tendo corrido em defesa dos seus, foi morto por Jasão, que lhe atravessou o peito com a lança. A carnificina continuou, até que, com o nascer do dia, ficou esclarecido o terrível equívoco. Jasão mandou organizar funerais suntuosíssimos em memória de Cízico e, durante três dias, os argonautas entoaram lamentações fúnebres e fizeram jogos em sua honra. Tendo a jovem rainha Clite se enforcado, por causa da morte do esposo, as ninfas a choraram tão intensamente, que de suas lágrimas se formou a fonte Clite. Como nova borrasca os impedisse de partir, os marinheiros de Argo (tal é a etimologia de argonauta, de Ἀργώ [Argo], Argo e ναύτης [naútes], marinheiro) ergueram sobre o monte Díndimon, a cavaleiro de Cízico, uma estátua de Cibele, a Grande Mãe oriental, a mãe dos deuses, a fim de que esta lhes propiciasse um bom tempo. Navegando mais para leste, chegaram às costas da Mísia. Enquanto recebiam presentes de hospitalidade da acolhedora população e preparavam o almoço, Héracles, que havia quebrado o remo, tal a força com que feria as águas, dirigiu-se a uma floresta vizinha, a fim de preparar um outro. O lindíssimo Hilas, que o acompanhava na expedição, se afastou igualmente com a finalidade de procurar água doce para preparar os alimentos e não mais retornou. É que tendo se aproximado de uma fonte, as ninfas náiades, extasiadas com a beleza do jovem, o arrastaram para as profundezas das águas, talvez para imortalizá-lo. Polifemo, tendo-lhe ouvido o grito, correu em seu auxílio. Encontrando a Héracles, que retornava da floresta, ambos se puseram a procurar Hilas. Durante a noite inteira erraram nos bosques e nas florestas e, pela manhã, quando Argo partiu, os dois não estavam a bordo. O destino não permitiu que os dois heróis participassem da conquista do velocino de ouro. Polifemo fundou nas vizinhanças a cidade de Cios e Héracles retornou sozinho às suas grandes tarefas. Argo, após uma longa travessia, aportou na terra dos bébricos, cujo rei Âmico, um gigante, filho de Posídon, era miticamente o inventor do pugilato. Atacava os adventícios que passassem pela Bitínia e os matava a soco. Tão logo chegaram os argonautas, o brutamontes os desafiou. Pólux aceitou a justa, cujo preço era a vida do vencido. Apesar da estatura e da força brutal de Âmico, Pólux, usando de extrema habilidade e astúcia, o venceu. Não lhe tirou a vida, mas fêlo prometer, sob juramento, que doravante respeitaria os estrangeiros. Consoante outras versões, houve uma batalha geral entre os argonautas e os bébricos, que, derrotados, fugiram em todas as direções. Na manhã seguinte Argo retomou seu caminho, mas impelida por grande borrasca, antes de penetrar no Bósforo, a nau ancorou nas costas da Trácia, isto é, na margem europeia do Helesponto, onde reinava Fineu, o mântico cego, filho de Posídon e cujo mito foi narrado no Vol. I, p. 249-250. Os argonautas, após a vitória de Cálais e Zetes sobre as Harpias, foram bem instruídos por Fineu acerca do perigo que para eles representavam as temíveis Ciâneas, os Rochedos Azuis, também denominados Sindrômades ou Simplégades, vale dizer, “que se entrechocam”. Tratava-se, disse-lhes Fineu, de dois recifes móveis, que, à passagem de qualquer coisa entre ambos, fechavam-se violentamente, esmagando fosse o que fosse. Era necessário, aconselhou-lhes o mântico, fazer-se preceder por uma pomba: se esta cruzasse os terríveis Rochedos Azuis, era sinal de que a Moîra lhes permitiria igualmente transpô-los; caso contrário, que desistissem da empresa. Seguindo à risca a advertência de Fineu, ao se aproximarem das Simplégades, soltaram uma pomba, que conseguiu ultrapassá-las, mas, assim mesmo, ao se fecharem, as Ciâneas cortaram as pontas das penas maiores da cauda da ave. Os argonautas esperaram que os rochedos novamente se abrissem e remaram com todas as forças, logrando atravessá-los. Apenas a popa de Argo, como a cauda da pomba, foi ligeiramente atingida. Após essa passagem vitoriosa, as Simplégades se imobilizaram, porquanto a Moîra havia determinado que, no dia em que um navio lograsse passar entre elas, as Sindrômades jamais se fechariam. Penetrando, desse modo, no Ponto Euxino, no Mar Negro, os heróis da nau Argo chegaram à região dos Mariandinos e foram muito bem recebidos pelo rei Lico. Foi lá que, numa caçada, morreu o adivinho Ídmon, ferido por um javali. Faleceu também, entre os Mariandinos, o piloto Tífis, sendo, de imediato, substituído, como já se mencionou, por Ergino. Prosseguindo em sua viagem, os argonautas atingiram a foz do rio Termodonte, junto ao qual, dizia-se, residiam as Amazonas. Contornando o Cáucaso, navegaram diretamente para a Cólquida, na embocadura do rio Fásis, que marcava o fim de sua viagem de ida... Antes de se passar às gestas de Jasão na Cólquida, uma palavra sobre a pomba, que logrou primeiro transpor o que até então nada havia conseguido ultrapassar, e um ligeiro comentário sobre os Rochedos Azuis. Consoante J. Chevalier e A. Gheerbrant, a pomba é fundamentalmente um símbolo de pureza, de simplicidade e, quando se torna portadora do ramo de oliveira a Noé, configura igualmente a paz, a harmonia, a esperança, o reencontro da felicidade. Como a maioria das representações de animais alados na mesma área cultural, pode-se afirmar que a pomba traduz a sublimação do instinto e, especificamente, de éros. Numa acepção pagã, que valoriza diferentemente a noção de pureza, ela não se opõe ao amor carnal, pois que, como ave de Afrodite, representa a plenitude amorosa de tudo quanto o amante oferece ao objeto de seu desejo. Todas essas significações, diferentes apenas na aparência, fazem que a pomba acabe por traduzir o que existe de imortal no homem, o sopro vital, a psiqué, a alma. Em alguns vasos funerários gregos a ave de Afrodite é representada bebendo num pequeno recipiente, que simboliza a fonte da memória. Na iconografia cristã, além da simplicidade, da doçura e da pureza, a pomba simboliza igualmente a alma. O inesquecível cardeal Jean Daniélou, citando S. Gregório de Nissa, diz que “na medida em que a alma se aproxima da luz, torna-se mais bela e toma a forma de uma pomba”6. Logrando transpor o vão mortal das Simplégades, a pomba traduz o aprimoramento de um outro nível, a vitória sobre a morte, se bem que algo ainda falte, porquanto as penas maiores foram “queimadas” pelo entrechoque ígneo dos rochedos. A popa de Argo também danificada, embora levemente, pelas Sindrômades, atesta que os heróis ainda não atingiram o nível iniciático desejável. Quanto às Simplégades, recifes móveis, que se entrechocam, configuram um perigo mortal: ultrapassá-las é fixá-las, vencê-las para sempre, embora, nessa ultrapassagem, sempre se deixe um “pouco do pelo”. Mas a ameaça mortal, configurada pelas Ciâneas, e cuja transposição é incerta e irregular, traduz algo fortemente anxiógeno. “O rochedo, o túnel, estão na categoria do terrificante, como o relâmpago, o trovão e a tempestade. A imagem desses rochedos móveis, frequente nos sonhos, traduz o medo de um fracasso, de uma agressão, de uma dificuldade e expressa uma angústia. Esta, no entanto, como prova o mito dos argonautas, pode ser debelada por uma inteligência justa e precavida, pela descoberta da solução e pela aceitação prévia de que se corre um risco, ao menos de deixar “alguns pelos” pelo caminho... A consciência refletida pode, destarte, vencer o terror inconsciente. Cumprida a operação, a causa da angústia se dissipa. As Simplégades simbolizam, pois, as dificuldades que podem ser dominadas por uma decisão e uma coragem inteligente. Símbolo paradoxal, como o túnel e tantos outros, mostra simultaneamente a dificuldade e a solução, a travessia pelo interior de um obstáculo e ilustra a dialética simbólica, tão frequentemente evocada por Mircea Eliade, da coincidência dos opostos7. 4 Atingida a Cólquida, os argonautas puderam, finalmente, respirar por alguns dias em paz. A grande tarefa, a conquista do velocino de ouro, cabia ao herói Jasão. Este, de imediato, dirigiu-se à corte de Eetes, irmão de Circe e Pasífae, e pai de Calcíope, Medeia e Apsirto, dando-lhe ciência da missão que o trazia à Ásia. O rei, para livrar-se de um importuno, prontificou-se a devolver-lhe o precioso velocino, desde que o pretendente ao trono de Iolco executasse quatro tarefas, que, diga-se logo, nenhum mortal poderia sequer iniciar, a não ser que a grande faísca de eternidade, o amor, que transmuta impossíveis em possíveis, aparecesse! As provas impossíveis para qualquer ser humano eram as seguintes: pôr o jugo em dois touros bravios, presentes de Hefesto a Eetes, touros de pés e cornos de bronze, que lançavam chamas pelas narinas, e atrelá-los a uma charrua de diamante; lavrar com eles uma vasta área e nela semear os dentes do dragão morto por Cadmo na Beócia, presentes de Atená ao rei; matar os gigantes que nasceriam desses dentes; eliminar o dragão que montava guarda ao Velocino, no bosque sagrado do deus Ares. Perplexo face às tarefas impostas, que teriam que ser realizadas num só dia, de sol a sol, o herói estava pronto para retornar a Iolco, quando surgiu Medeia, mágica consumada, que, apaixonada por ele, talvez por artimanhas da deusa Hera, comprometeu-se a ajudá-lo a vencer todas as provas. Sob juramento solene de casamento e de levá-la para a Grécia, repetindo-se, desse modo, o episódio de Ariadne e Teseu, Jasão recebeu de Medeia todos os recursos necessários para uma vitória completa. Deu-lhe a filha de Eetes um bálsamo maravilhoso com que o herói untou o corpo e as armas, tornando-os invulneráveis ao ferro e ao fogo. Recomendou-lhe ainda que, tão logo nascessem os gigantes dos dentes do dragão, atirasse, de longe, uma pedra no meio deles. Os monstros começariam a se acusar mutuamente do lançamento da pedra, o que os levaria a lutar uns contra os outros, até se exterminarem por completo. Tudo aconteceu conforme desejava a paixão de Medeia. Restava apenas vencer o dragão no bosque de Ares. A mágica fê-lo adormecer com seus sortilégios e Jasão o atravessou com sua lança, apossandose do velocino de ouro. Face à recusa de Eetes, que se negou a cumprir a promessa feita, e ainda ameaçou incendiar a nau Argo, Jasão fugiu com Medeia, que levara seu jovem irmão Apsirto como refém. Quando o rei descobriu a fuga de Jasão e Medeia com o velocino, pôs-se imediatamente ao encalço da nau Argo. Medeia, que previra essa perseguição, esquartejou Apsirto, espalhando-lhe os membros em direções várias. Eetes perdeu muito tempo em recolhê-los e, quando terminou a dolorosa tarefa, era tarde demais para perseguir a “ligeira” nau Argo. Assim, com os membros ensanguentados do filho, Eetes velejou até o porto mais próximo, o de Tomos, na foz do rio Íster, e ali os enterrou. Antes de regressar à Cólquida, porém, enviou vários navios em perseguição dos argonautas, advertindo seus tripulantes de que, se regressassem sem Medeia, pagariam com a vida em lugar dela. Segundo uma outra versão, Eetes enviara Apsirto com um exército em perseguição dos fugitivos, mas tendo-se este adiantado muito, deixando o exército para trás, Jasão o teria assassinado, traiçoeiramente, com auxílio de Medeia, no templo de Ártemis, na embocadura do Íster, isto é, do Danúbio inferior. Seja como for, os argonautas navegaram em direção ao Danúbio e, subindo o majestoso rio, chegaram ao Adriático, pois, à época da elaboração dessa variante do mito, o Íster era considerado como uma artéria fluvial, que ligava o Ponto Euxino ao Adriático. Zeus, irritado com a morte de Apsirto, enviou uma grande tempestade, que desviou a Argo de sua rota. Foi então que a nau começou a falar e revelou a cólera do deus, acrescentando que esta perseguiria os argonautas, até que fossem purificados por Circe. Foi assim que a nau subiu o rio Erídano (Pó) e o Ródano, através da região dos lígures e dos celtas. De lá, retomou o Mediterrâneo e, costeando a Sardenha, chegou à ilha de Eeia, reino de Circe. A mágica e tia de Medeia purificou os argonautas e manteve uma longa entrevista com a sobrinha, mas se recusou peremptoriamente a hospedar Jasão em seu palácio. Da ilha de Circe, Argo retomou seu curso errante, mas a partir de então, guiada por Tétis, a pedido de Hera, atravessou sem incidentes maiores o Mar das Sereias. É que Orfeu entoou ao som de sua lira uma canção tão bela, que os argonautas não lhes deram a menor atenção ao canto mavioso e mortal. Apenas Butes se deixou “encantar” e a nado chegou aos rochedos dessas mágicas antropófagas. Afrodite, todavia, o salvou e transportou para Lilibeu, na costa ocidental da Sicília. Passando por Cila e Caribdes, chegaram à ilha de Corcira, hodiernamente Corfu, reino dos Feaces, governado por Alcínoo e sua esposa Arete. Lá, algo de sério e grave aguardava os argonautas. Uma nau, enviada por Eetes, em perseguição aos fugitivos, chegara antes de Argo à ilha de Alcínoo. Os súditos de Eetes, sobretudo porque estavam com a vida em jogo, pressionaram violentamente o rei, para que lhes entregasse Medeia. O soberano, após consultar Arete (ao que parece, como se pode observar “mais tarde” na Odisseia, o regime vigente em Corcira era bem matriarcal), respondeu-lhes que entregaria a filha de Eetes, desde que ela, uma vez examinada, ainda fosse virgem. Mas, se a mesma já fosse mulher de Jasão, deveria permanecer com ele. Arete, secretamente, fez saber a Medeia a decisão do casal real e Jasão se apressou em fazer da noiva sua mulher. Desse modo, Medeia permaneceu com o esposo. Os nautas da Cólquida, não ousando retornar à pátria, radicaram-se em Corcira e os argonautas retomaram os caminhos do mar. Tão logo deixaram a ilha dos Feaces, violenta borrasca os lançou contra os Sirtes, dois perigosos recifes na costa norte da África. Tiveram, com isso, que transportar sobre os ombros a nau Argo até o lago Tritônis. Graças ao deus do Lago, Tritão, os destemidos marinheiros encontraram uma saída pelo mar e navegaram em direção a Creta. Na ilha de Minos, os nautas de Argo foram, a princípio, impedidos de desembarcar pelo monstruoso gigante Talos, de que se falou no Vol. I, p. 184s, só o conseguindo graças aos sortilégios de Medeia, que, tendo descoberto o ponto vulnerável do corpo do monstro, provocou-lhe a morte. Para agradecer a vitória sobre Talos, ergueram um santuário a Atená minoica e, ainda pela manhã, voltaram ao bojo macio do mar. Repentinamente, porém, foram envolvidos por uma noite escura e misteriosa e ninguém mais tinha noção de onde estava. Jasão implorou Febo Apolo para que lhes mostrasse a rota em meio à total escuridão. O deus ouviu-lhe a súplica e lançou uma fresta de luz que, como um farol, guiou a nau Argo até uma das ilhas Espórades, onde lançaram âncora. A essa ilha deram o nome de Ἀνάφη (Anáphe), nome interpretado em etimologia popular como ilha da “Revelação”. A derradeira escala de Argo foi na ilha de Egina. Daí, contornando a ilha de Eubeia, chegaram finalmente a Iolco, completando um périplo de quatro meses. De imediato, Jasão levou a nau Argo para Corinto e a consagrou a Posídon, como ex-voto. O mitologema de Jasão e dos argonautas, cuja redação é anterior à da Odisseia, como se depreende das palavras de Circe a Ulisses, ao descrever-lhe o perigo que representavam as Πλαγκταί (Planktái), as Planctas (Odiss., XII, 59-61), os ameaçadores recifes errantes, que só a altaneira nau Argo, que todos celebram, conseguiu atravessar, em seu regresso do reino de Eetes (Odiss., XII, 69-70), acabou por tornarse muito popular, formando um vasto ciclo. Como os poemas homéricos, as gestas dos bravos argonautas serviram de matéria-prima a poemas épicos como as Argonáuticas, em quatro cantos, do poeta da época alexandrina Apolônio de Rodes (295-215 a.C.) e Argonautica, igualmente poema épico, em oito cantos, do vate latino da época imperial, sécuxxlo I, d.C., Caio Valério Flaco Setino Balbo8, a poemas de cunho lírico, como as cartas 6 e 12 das Heroides de Ovídio e as tragédias, como a portentosa Medeia de Eurípides (séc. V a.C.). 5 Consagrada, em Corinto, a nau Argo a Posídon, Jasão retornou a Iolco e enxxtregou o velocino de ouro a Pélias. A partir desse momento são muitas as tradixxções e variantes. Afirmam alguns mitógrafos que Jasão assumiu o poder em Iolxxco, em lugar do tio, e viveu tranquilamente em seu reino, tendo com Medeia apenas um filho, Medeio, conforme a Teogonia, 1001, o qual foi entregue aos cuidados de Quirão. Outros atribuem-lhe uma filha, Eriópis, a de “olhos grandes”. A tradição trágica nomeia dois, Feres e Mérmero. Diodoro aumenta o número para três: Téssalo, Alcímenes e Tisandro. A versão mais seguida, no entanto, é a que aponta Medeia como a grande “vingadora de Iolco”. A mola mestra da ação criminosa da mágica da Cólquida seria seu amor por Jasão. Pélias lhe ofendera gravemente o marido: usurpara o trono, que de direito lhe pertencia; induzira-lhe o pai Esão ao suicídio, obrigara-o a buscar o velocino de ouro e, conforme algumas versões, recebido este, recusara-se a devolver-lhe o trono, como havia prometido. Para vingar os crimes e ultrajes de Pélias, a terrível mágica resolveu eliminá-lo. Convenceu as filhas do usurpador, menos a Alceste, ainda muito menina, de que poderiam facilmente rejuvenescer o pai, já muito avançado em anos, se o fizessem em pedaços e o deitassem a ferver num caldeirão de bronze em meio a uma composição mágica, cujo segredo somente ela conhecia. Para provar sua arte, Medeia tomou um velho cordeiro (outros afirmam que foi Esão) e, usando o processo acima descrito, transformou-o num cordeirinho ou o velho pai de Jasão num Esão jovem e robusto. As pelíades, sem hesitar, despedaçaram o pai e cozinharam-lhe os pedaços, conforme a receita de Medeia. Como Pélias não ressuscitasse, transidas de horror, fugiram para a Arcádia. Com a morte do rei, Jasão e Medeia, com os filhos do casal, Feres e Mérmero, foram banidos de Iolco por Acasto. Há uma variante, segundo a qual Medeia, disfarçada numa sacerdotisa de Ártemis, deixou sozinha a nau Argo e dirigiu-se a Iolco. Tendo convencido as filhas de Pélias a cozinhar-lhe os membros, fez vir Jasão, que entregou o trono a Acasto, uma vez que este o acompanhara, contra a vontade do pai, na perigosa expedição dos argonautas. A seguir tal versão, o exílio em Corinto foi voluntário. Eetes, filho de Hélio e da oceânida Perseida, recebera do pai o reino de Corinto, mas deixou o trono vacante para reinar na Cólquida, cuja capital era Fásis, às margens do rio do mesmo nome. Eetes se casara com Eurilite ou com a nereida Neera, com a oceânida Idíia ou ainda, segundo algumas versões, com sua própria sobrinha, a terrível Hécate. Seja como for, filha de Hécate ou sobrinha de Circe, Medeia conhecia profundamente os segredos da bruxaria e dos sortilégios. “À época” em que se passa o “drama de Medeia”, Corinto é governada por Creonte, filho de Liceto, que é preciso não confundir com o segundo Creonte, o tebano, filho de Meneceu, e irmão da infortunada Jocasta. Jasão e Medeia, expulsos de Iolco, viviam em paz em Corinto, quando o rei Creonte concebeu a ideia de casar sua filha Glauce ou Creúsa com o herói dos argonautas. Jasão, sem tergiversar, aceitou o enlace real e repudiou Medeia, que foi banida de Corinto pelo próprio soberano. Implorando-lhe o prazo de um só dia, sob o pretexto de se despedir dos filhos, a feiticeira da Cólquida teve tempo suficiente para preparar a mortal represália. Enlouquecida pelo ódio, pela dor e pela ingratidão do esposo, resolveu vingar-se tragicamente, enviando à noiva de Jasão, por intermédio de seus filhos Feres e Mérmero, um sinistro presente de núpcias. Tratava-se de um manto ou de um véu e de uma coroa de ouro, impregnados de poções mágicas e fatais. A própria Medeia, na tragédia homônima de Eurípides9, deixa bem claro o poder terrível de semelhantes adornos: Se ela aceitar estes atavios e com eles se engalanar, perecerá horrivelmente e, com ela, quem a tocar: tal o poder dos venenos com que ungirei meus presentes (Med., 787-789) Vaidosa, Glauce, sem hesitar, não apenas aceitou, mas igualmente se ataviou com o lindíssimo véu e a coroa de ouro, prenúncio da coroa real, que, em breve, luziria sobre sua fronte jovem e bela... A princesa, todavia, teve apenas tempo de se ornamentar. De imediato, um fogo misterioso começou a devorar-lhe as carnes e os ossos. O rei, que correra em socorro da filha, foi envolvido também por esse incêndio inextinguível, que os transformou rapidamente num monte de cinzas. Não parou aí a vindita louca da filha de Eetes. Também os filhos morrerão pelas mãos da própria mãe, para que Jasão sofra uma solidão mais aterradora do que aquela que lhe desejara: Mas aqui mudo minha maneira de falar e gemo sobre o que terei de fazer a seguir: matarei meus filhos queridíssimos e ninguém pode salvá-los. E, quando tiver aniquilado toda a família de Jasão, sairei desta terra, expulsa pelo assassinato de meus filhos queridos, e pelo crime horrendo que tiver ousado cometer. (Med., 790-796). Mortos Creonte e Creúsa e incendiado o palácio real, Medeia assassinou os próprios filhos no templo de Hera e, num carro alado, presente de seu avô Hélio, o Sol, puxado por dois dragões ou duas serpentes monstruosas, fugiu para Atenas. Este exílio na pólis de Palas Atená, prodigalizado por Egeu, conforme se mostrou no capítulo anterior, acabou igualmente de maneira dolorosa para o rei de Atenas e para a própria princesa da Cólquida. É que Medeia, em tudo que fazia, sempre colocou a paixão como fio condutor de suas ações. Ela própria o afirma na tragédia euripidiana: θυμὸς δέ κρείσσων τῶν ἐμῶν βουλευμάτων (thymòs dè kreísson tôn emôn buleumáton) – a paixão é mais forte em mim do que a razão (Med., 1079). Existe uma versão segundo a qual a morte dos filhos pela própria mãe teria sido uma “criação” de Eurípides. Na realidade, a tradição mais seguida no mito é a de que Feres e Mérmero teriam sido lapidados pelos habitantes de Corinto pelo fato de terem levado a Glauce os presentes fatídicos de Medeia. Uma variante, certamente tardia, atesta que Medeia, após matar, na Cólquida, a seu tio Perses e repor Eetes no trono, segundo se viu igualmente no capítulo anterior, não teria morrido; mas transportada para os Campos Elísios ou para a Ilha dos BemAventurados, se teria consorciado com o divino Aquiles. É bem verdade que, após gravitar na Odisseia entre os εἴδωλα (eídola) abúlicos do Hades, o grande herói da Ilíada fora também promovido à Ilha dos Bem-Aventurados. Aí o encontramos casado ora com Ifigênia ora com Helena (e mais uma vez o pacífico Menelau ficou solitarius) ou ainda com a filha de Hécuba, Políxena, imolada sobre o túmulo do herói, mas sua união com Medeia é estranha. Seria um par sumamente antitético! Quanto a Jasão, desejoso de regressar a Iolco, se aliou a Peleu, inimigo figadal de Acasto, por culpa da esposa deste, Astidamia, a que se fez referência na Introdução, 5, e, com auxílio dos Dioscuros, destruiu a cidade, assumindo o poder, que, logo depois, passou para seu filho Téssalo. O frágil e indeciso Jasão, todavia, não foi esquecido. Ovídio, nas Heroides, fez que duas apaixonadas suspirassem de saudades e de ódio pelo conquistador do velocino de ouro. A carta 6, Hypsipyle Iasoni, de “Hipsípila a Jasão”, é o desabafo da rainha das Lemníades, a quem o herói seduzira e deixara grávida de gêmeos na passagem pela ilha de Lemnos em direção à Cólquida10. Hipsípila exprobra a Medeia, “feia e estrangeira, estrangeira cruel”, que lhe roubara o amante. Apesar de tudo, ainda acredita na força do amor, já que “o amor crê em tudo”: credula res amor est (Her., 6,21). Embora tenha feito promessa solene de voltar a Lemnos, a rainha sabe que “ele é volúvel e mais indeciso que as auras primaveris” e que não cumprirá o compromisso assumido. Em todo caso, serve-lhe de lenitivo o saber que “Medeia lhe ganhou o namorado com ervas feiticeiras, quando o amor deve ser conquistado com beleza e dignidade”: Male quaeritur herbis, Moribus et forma conciliandus, amor (Her., 6,93-94). Ameaça vingar-se, “prometendo ser para Medeia mais cruel do que a própria Medeia”: Medeae Medea forem... (Her., 6,151). Mas a promessa de vingança fica apenas na promessa. Na citada edição das Heroides o Prof. Walter Vergna acentua que “Mais uma vez a vingança, através de ameaças, é ofuscada pela força do amor”; e transcreve a seguir dois versos que em algumas edições antecedem o texto original. Trata-se de um dístico muito significativo, que põe a descoberto o grande amor da neta de Dioniso pelo ingrato e volúvel herói dos argonautas: Lemnias Hypsipyle, Bacchi genus, Aesone nato Dicit, et in uerbis pars quota mentis erat. – Hipsípila de Lemnos, descendente de Baco, dirigese ao filho de Esão e em cada palavra põe um pedaço de sua alma. A carta 12, Medea Iasoni, de “Medeia a Jasão”, é uma missiva bem ao estilo da tragédia euripidiana: a princesa da Cólquida, abandonada pelo marido, que se enamorou de Creúsa ou do trono de Corinto, explode primeiro em saudades e paixão... Depois contrapõe seu amor total à ingratidão do marido e passa dos gemidos às mais terríveis ameaças: enquanto houver ferro, fogo e ervas venenosas sua ira e vingança não se extinguirão. Em suas palavras, os vocábulos “fogo e chamas” mudam de acepção, quando soprados pelo amor ou pelo ódio: Est aliqua ingrato meritum exprobrare uoluptas; Hac fruar: haec de te gaudia sola feram (Her., 12,2122). – É como que um prazer censurar o ingrato pelo prazer recebido; deixa-me gozar este prazer, o único que ainda obterei de ti. Apesar de tudo, apesar de todo ressentimento, o amor e as chamas não se apagam, porque não se podem ocultar: Perfide, sensisti, quis enim bene celat amorem? Eminet indicio prodita flamma suo (Her., 12,37-38). – Tu, infame, percebeste minha paixão. Quem é capaz de ocultar o amor? É uma chama que irrompe, traída por seus próprios indícios. Tudo fizera por ele: traiu o pai, abandonou mãe e irmã, matou o próprio irmão. E mais: entregou-se a ele. O marido, que ela salvara, agora está sendo acariciado por outra mulher. É contra Glauce primeiramente que se ergue a ira de Medeia, mas, enquanto existirem chamas e ervas venenosas, ninguém escapará a seu ódio e vingança: Rideat et Tyrio iacet sublimis in ostro: Flebit et ardores uincet adusta meos! Dum ferrum flammaeque aderunt sucusque ueneni, Hostis Medeae nullus inultus erit (Her., 12,179-182). – Que ela se ria e permaneça sobranceira na púrpura de Tiro. Um dia chorará, consumida por um fogo mais abrasador do que este que me devora! Enquanto houver ferro, chamas e ervas venenosas, nenhum inimigo de Medeia escapará à sua vingança! E jura, por fim, que irá até onde o ódio puder conduzi-la: Quo feret ira sequar... Viderit ista deus, qui nunc mea pectora uersat (Her., 12,209-211). – Irei até onde me arrastar o ódio, seja disto testemunha o deus que agora revolve os tormentos no meu peito! Consoante alguns mitógrafos, Jasão pereceu tragicamente em Corinto. Um dia de muito calor, descansava sob a nau Argo, que havia sido retirada do mar para conserto e uma viga da nau, caindo sobre ele, o matou. Duas ilhas, certamente, o choraram: Lemnos e Avalon... 6 Comentando o mito dos argonautas, Yves Bonnefoy faz duas observações importantes: a primeira sobre o espaço geográfico percorrido pela nau Argo e a segunda acerca de Medeia. Vamos sintetizá-las, antes de se passar com Paul Diel a uma visão simbólica do conjunto, sobretudo a um enfoque de Jasão e Medeia. Para o poeta e mitólogo francês, “a história dos argonautas oscila entre a Demanda do Graal e as Instruções Náuticas, mas ambas acabam por confundir-se no emaranhado das narrativas de caráter erudito, através das quais seguimos as gestas de Jasão na leitura das epopeias de Apolônio de Rodes ou de Valério Flaco. A análise estatigráfica discute a quantidade de recifes, desde as vias comerciais pré-helênicas, assinaladas pelos arqueólogos, do Ponto Euxino ao Báltico, até as crônicas da derradeira colonização que empreenderam as cidades gregas em direção ao horizonte de Tânais, isto é, do rio Don, o maior mercado dos bárbaros além de Panticapeion, como afirma Estrabão, 7,4,5. As viagens de Ulisses recordam a altaneira nau Argo, conhecida de todos e, quando a mágica Circe traça para o herói da Odisseia e seus companheiros o longo caminho do retorno, o terror das Planctas já havia feito congelar o sangue nas veias dos argonautas e foi com o auxílio de Hera que Jasão conseguiu ultrapassar a passagem tortuosa, a via intransponível, onde se confundem água e fogo, céu e terra. A geografia, no entanto, não possui no mito dos argonautas um plano de significação, que seria, aliás, hipertrofiado: a busca do velocino de ouro se inscreve num périplo, num percurso de espaço em que a viagem de retorno estrutura o itinerário de ida e estimula o trabalho da memória, que assinala para cada gesta o seu local exato e sua posição no espaço organizado”11. Quanto a Medeia, Bonnefoy tem a respeito da mesma um enfoque muito original. “A proteção de Hera ao herói se exerce através de Medeia, sem a qual Jasão não teria executado as tarefas impostas pelo rei da Cólquida. Filha de Eetes, confundem-se nela o poder de Hélio, o Sol, e as forças da noite. A princesa da Cólquida pertence a um elenco de mulheres versadas em magia e em poderes ocultos. Como Agamede, Hecamede ou Perimede, é imaginosa, dotada de uma inteligência solerte e astuciosa, graças à qual todas as forças, por maiores que sejam, são vencidas. Uma inteligência que age não por dissimulação ou embustes, visando à eficácia imediata, mas pelos meandros da magia, pelo emprego de ervas e de filtros, pela mobilização dos poderes da noite. Medeia é uma mulher com a força da métis, mas sua aliança com Jasão não é o casamento de Zeus com Métis, sua primeira esposa, que lhe outorgou o poder. As magias de Medeia abrem a Jasão o caminho para a conquista do velocino de ouro, talismã cuja perda significa para Eetes a destruição do poder real (Diodoro, 4,47), mas que não confere de imediato ao herói o acesso ao poder, usurpado por Pélias. Sem Medeia, porém, Jasão jamais reporia o trono de Iolco nas mãos dos filhos de Éolo. A aliada, todavia, pode tornar-se uma inimiga tanto mais perigosa quanto para ela o casamento é algo contra a natureza. Em algumas tradições (Diodoro, 4,45s) Medeia tem por mãe Hécate, filha de Perses, nascida nas montanhas do Tauro e que sempre viveu longe da cultura e da civilização, nas extensões desérticas, perseguindo o homem e recolhendo mil ervas venenosas, geradas pela terra. Como sua mãe, que é igualmente a de Circe, Medeia só pode reinar nos desertos, nas montanhas, nas florestas selvagens. As terras incultas são o domínio que lhe fornece os instrumentos de seu poder: venenos e remédios. Trata-se de uma feiticeira, dotada de uma violência inquieta, de paixões que queimam, de mudanças súbitas de humor, de uma constante melancolia e de uma duplicidade criminosa, que se volta contra aqueles aos quais ela mais ama. Uma das características mais salientes desta mágica é a de dedicarse a perigosas operações culinárias. Seu instrumento de trabalho, sua arma, no entanto, não é o espeto, mas o caldeirão, a panela, onde se colocam para ferver os pedaços de carne que se separam da vítima do sacrifício. A contradição, porém, é dupla: primeiramente, porque na Grécia a preparação da carne não era ofício de mulher; segundo, porque só os homens podiam ser cozinheiros e sacrificadores; a panela pertence, portanto, àquele que possui o espeto e a faca. Medeia, desse modo, arroga-se um privilégio masculino. Sua cozinha tem uma aparência de altar de sacrifício, mas se apresenta sob a forma inversa do local em que se abate um animal. É a vida que deve sair de seu caldeirão, como de um ventre feminino, uma vida renovada, como aquela que ela própria prometeu às filhas de Pélias, mostrando-lhes um cordeirinho saído do caldeirão de bronze, onde fora colocado em pedaços. O caldeirão, todavia, foi o meio usado para matar a Pélias e escondê-lo no ventre da terra. Assim como a feiticeira é uma cozinheira perigosa, da mesma maneira ela parece incapaz de gerar. Em Corinto, a filha de Hécate se apresenta como a Errante, a que se deixa levantar nos ares, como se o ter vindo de um mundo selvagem lhe interditasse qualquer fixação, qualquer afinidade com a terra cultivada e o espaço consagrado à família. Seus filhos são feridos de maldição: a mãe os escondeu no santuário de Hera, ou, antes, eles já nasceram mortos, ou, por outra, cada vez que Medeia dava à luz um filho, ela se apressava em enterrá-lo. O degolamento dos meninos na versão de Corinto renova o sacrifício monstruoso de seu irmão Apsirto”12. Como fez com relação a Teseu, segundo se mostrou no capítulo anterior, Paul Diel analisa as façanhas e o comportamento de Jasão como uma progressiva banalização (veja-se, no que respeita à significação deste termo, a nota 8 da p. 164 supra). Em outras palavras: buscando o velocino de ouro, símbolo do poder espiritual, o herói acabou por destruir-se, porque, usando egoística e cinicamente do poder mágico de Medeia, voltou-se para a intriga e para a perversão. Apegou-se aos valores da terra em vez de buscar os méritos do espírito. Reprimiu-se ao invés de purificar-se, substituindo a anagnórisis pela hýbris. Vejamos, com alguns enxertos nossos, o que mais tem Paul Diel a dizer sobre a interpretação do mito de Jasão13. Observa o autor citado que na busca do velocino de ouro está congregada a maioria dos heróis ameaçados de banalização. Entre eles se destacam Orfeu, Héracles, Teseu e Jasão. Embora nenhum deles apresente a vaidade excessiva dos heróis sentimentais, a ameaça que pesa sobre os mesmos é o impulso da dominação perversa e a intemperança, isto é, a incapacidade de escolha justa e de ligação durável. É exatamente esse perigo que, sobressaltando a cada um em particular, os uniu numa empresa comum de liberação. A importância do cometimento encontra-se expressa no significado do próprio nome argonautas, “marinheiros de Argo” e, sendo Argo a nave branca, este símbolo branco, a pureza, deveria conduzi-los à catarse, à purificação. Reunindo, pois, o ouro do velocino e o branco de Argo, tem-se que o objetivo da empresa é a conquista da força do espírito, a verdade, e da pureza da alma. Some-se ao dourado e ao branco o carneiro, que é o mesmo que o cordeiro, configuração da ternura, da bondade, do amor e também da pureza em seu mais alto grau. O velo de ouro está suspenso numa árvore, imagem da vida, mas é guardado por um dragão: é preciso matar a perversão, para que se tenha a posse do tesouro sublime. O dragão é um monstro que possui a força brutal do leão ou do touro. Aos indícios de vaidade e de perversão, que lhe são inerentes, acrescente-se a perversão sexual: com frequência o monstro aparece como guardião de uma virgem ou está prestes a devorá-la. Para conquistar a força da alma que determina uma escolha justa, indício de uma ligação duradoura, o herói terá que superar o seu “dragão interno”, o perigo existente nele mesmo, a exaltação imaginária dos desejos dispersos, ameaça configurada externamente pelo dragão, que impede o acesso à virgem. Constantemente no mito o dragão é também o guarda de um tesouro. No símbolo “tesouro” se reencontra a significação sublime do dourado, o que faz que, no mito dos argonautas, o ouro-tesouro seja substituído pelo velo de ouro. A cor dourada é um símbolo solar, mas o ouro-moeda é um sinal de perversão, da exaltação impura dos desejos. Matando o dragão, o herói poderá encontrar o tesouro sublime, mas pode igualmente arrebatá-lo sob sua significação perversa. Em síntese, é assim que se apresenta o tema secreto em torno do qual se encontram centrados todos os índices simbólicos do mito. Enfrentando o dragão fabuloso, em busca do velo de ouro, os argonautas devem superar suas próprias ameaças, retratadas pelo monstro ou, apesar de uma vitória aparente, correrão o risco de cair na tentação que deveriam combater. Substituindo o velo de ouro, imagem da pureza, pelo símbolo mais geral do tesouro em sua significação equívoca, surge claramente a ameaça: os argonautas exporse-ão ao fracasso quanto ao plano essencial de sentido oculto e, ao invés de conquistarem o tesouro sob sua configuração sublime, encontrá-lo-ão em seu significado pervertido. O chefe dos heróis da Argo é Jasão. Seu objetivo inicial não é a busca do velo de ouro. Essa demanda é somente uma condição a ser cumprida, a fim de recuperar o trono de seu pai. Mas, se o velo é de ouro, surge, de imediato, um problema: conquistado o “tesouro”, com que espírito o herói exercerá o poder? Se encontrar o velocino de ouro sob seu sentido sublime, purificando-se de sua aspiração dominadora, seu reinado será justo; se, ao revés, descobri-lo sob seu signo pervertido, isto é, se ceder à tentação perversa, seu reino será marcado pela injustiça. Do êxito ou do fracasso essencial do herói dependerá a sorte de seu país e este é, sob o plano simbólico, a configuração do mundo inteiro. Jasão, pretendente ao trono, torna-se, desse modo, uma figura representativa, um símbolo, cuja significação é de importância fundamental: a sorte do mundo entregue ao governo dos homens, cujas atitudes podem ser justificáveis ou injustificáveis, uma vez avaliadas de acordo com as exigências essenciais da vida. O reino injusto e injustificável se apresenta diante do espírito, do ponto de vista simbólico, como uma usurpação e a tarefa heroica de Jasão pode ser assim formulada: combater de modo sublime o usurpador, buscando o velo de ouro, a fim de não tornar-se ele próprio um tirano. Esão, o rei legítimo, foi destronado por Pélias. Ainda menino, salvo do tio intruso, foi entregue ao centauro Quirão, símbolo da banalização. Adulto, o herói retornou a Iolco, com o fito de recuperar o trono, ocupado por um rei usurpador. A situação do jovem príncipe é análoga à de Édipo: quer governar o mundo, apesar de sua tendência à banalização, devida em parte à sua educação. O oráculo havia predito ao rei que desconfiasse do homem que usasse apenas uma sandália. Com um pé descalço, Jasão apresentouse ao tio. A sandália que falta é a tradução do espírito desprotegido, de uma incompletude. O pé descalço do herói é uma nova imagem do homem “coxo”, deformado pela educação. Assim caracterizado, não poderá ele ascender ao poder legítimo, a não ser que supere essa carência. Pélias declara-se disposto a abdicar, desde que o sobrinho lhe traga o velo de ouro, símbolo da banalidade vencida. Tal exigência do rei significa que o herói deverá provar que é digno do poder a que aspira. Deverá superar a “desordem física”, o pé descalço, e adquirir a insígnia da vitória espiritual e sublime. É verdade que a exigência de Pélias, que é um usurpador, estabelece tal condição por deslealdade, pois espera que o sobrinho morra na empresa, mas a conquista do troféu possui um aspecto simbolicamente sublime. Na realidade, a incumbência imposta corresponde a uma dupla significação do rei: se Pélias nada exigisse além de uma tarefa qualquer, supostamente perigosa e irrealizável, estaria se declarando apenas um tirano usurpador, o homem intrigante. O trabalho exigido, todavia, é o combate heroico, que em todos os mitos é impingido pelo rei simbólico, o espírito. O rei Pélias, que por traição estabelece tal prova, apresenta-se, no plano mítico, substituído pela exigência sublime, suscetível de caracterizar a situação essencial. Não se sentindo suficientemente forte para realizar sozinho o feito excepcional, Jasão mandou convocar outros heróis e, sobre a nau Argo, navegaram rumo à Cólquida. Mas o caminho do mar é a rota da vida e os perigos estão à vista. A nau Argo deverá encontrar exatamente o centro, ao atravessar as terríveis Simplégades, ou dois recifes móveis, que se chocam contra tudo que ouse passar entre eles. As Sindrômades são o Cila e o Caribdes da existência. A terra esmagadora, estampada no rochedo, sendo o símbolo da banalização, os dois recifes espelham a dupla ameaça que paira sobre qualquer empresa: a intemperança e a tirania. A nau Argo escapa por pouco da emboscada, mas, presságio funesto, uma parcela da popa é arrancada. Eetes, soberano da Cólquida, novo representante do rei mítico, recebe Jasão cordialmente, mas condiciona a entrega do velo de ouro à vitória sobre o dragão. A autorização para enfrentar o monstro, todavia, está subordinada a tarefas preliminares, que esclarecem ainda mais a situação do herói e a natureza do empreendimento. O rei entrega ao herói os dentes de um dragão, o primeiro a ser eliminado por Cadmo, um herói vencedor. Jasão deverá atrelar a uma charrua dois touros de pés de bronze, que vomitam chamas pelas narinas e com eles arar um campo, onde serão semeados os dentes do dragão de Cadmo. A colheita dessa semeadura só podendo ser funesta, o herói deverá mostrar-se capaz de dominar o perigo. O conjunto destas tarefas preliminares representa uma imagem bem específica da luta contra a tendência à dominação perversa, de que o aspirante ao trono terá primeiro que purificar-se. O herói deverá mostrar não apenas que tem méritos para se apossar do velo de ouro e assumir o poder, mas ainda, em razão da força que o anima, de permanecer como um digno detentor do troféu conquistado. Desse modo, o comportamento do pretendente ao trono na realização dessas provas simbólicas há de caracterizar-lhe não somente a atitude atual, mas também suas intenções secretas que, sublimes ou perversas, nortearão sua vida inteira e seu reino futuro. “Arar a terra” significa “torná-la fecunda”, quer dizer, governar de maneira fecunda a terra, o país. “Arar a terra com a ajuda de touros domados” significa fazer prova de força sublime, de sabedoria, que por si só assegura o reino fecundo, uma vez que a sabedoria “doma” o perigo e a tentação do abuso brutal, inerentes ao poder. Representações da força brutal, os touros traduzem a dominação perversa. Seu sopro é a chama devastadora. O atributo “bronze acrescentado ao símbolo pé” é uma imagem constante no mito grego, que serve para espelhar um estado anímico. Atribuídos aos touros, os pés de bronze retratam o traço marcante da tendência dominadora, a ferocidade e o endurecimento do espírito. Com auxílio de Medeia, que por ele se apaixonara, como Ariadne por Teseu, e que lhe deu um bálsamo maravilhoso, que o tornou invulnerável, o que configura o próprio amor da princesa, Jasão consegue domar os touros, arar a terra e semear os dentes do dragão. O amor converteu o impossível em possível, mas é necessário examinar as “intenções” de Jasão para com Medeia. Prometeu-lhe casamento, mas até onde se confundiriam no herói o amor e o “servir-se” do amor? As tarefas ainda a serem executadas responderão a essa inquietante interrogação. De outro lado, a filha de Eetes e de Hécate é uma bruxa, uma feiticeira, ligada à noite e aos poderes malignos da terra, às ervas venenosas. Com essa união, com esse tipo de sizígia, o egoísmo e a intriga perversa conjugados aos poderes ctônios, o reino de Jasão é o prenúncio de um grande fracasso da justiça e do espírito e seu casamento com a princesa da Cólquida pressagia a tragédia. Dotado de forças heroicas, mas com o respaldo das “forças ctônias”, Jasão domina os touros, mas a prova só está cumprida pela metade e, a fim de traduzir com exatidão as intenções e as atitudes do herói, o mito repete a exigência sublime expressa em sua totalidade por nova imagem. O reino futuro do filho de Esão só será fecundo na medida em que ele procure assegurar-lhe a paz e a justiça. A força sublime do herói, ainda não manifestada, deverá vencer não apenas a força brutal dos touros, mas igualmente a dos gigantes, dos “homens de ferro” que nascerem dos dentes semeados do dragão. Todo reino, uma vez estabelecido e governado com justiça, tornase inevitavelmente objeto de ciume, “semeia” a inveja, os dentes do dragão. Desta semente nasce a colheita monstruosa, os “homens de ferro”, que se erguem contra o pacificador, ansiosos por estabelecer a dominação perversa à custa do governante. Semelhante tendência se revelará tanto mais ameaçadora quanto mais marcado pela sabedoria for o reino: a justa medida e a moderação dele emanadas são interpretadas como fraqueza, suscetível de encorajar os adversários. Semeando os dentes do dragão, outrora heroicamente vencido, e liquidando os “homens de ferro”, Jasão deverá provar que está igualmente capacitado para tornar-se um rei vencedor e que tem fibra para usar de energia e justiça contra qualquer germe de desordem e sedição. Mas, prognóstico sinistro, o herói se mostra combalido nesta terceira parte das provas. Seu triunfo sobre a evidência ameaçadora não se concretiza graças à sua força sublime. Em lugar da justiça, ele usa, aconselhado pelo poder ctônio de Medeia, a intriga. Faz o que em todos os tempos realizaram os tiranos com o fito de vencer os adversários: dividir e desunir para reinar. O mito expressa bem o fato, narrando que Jasão lançou uma pedra no meio dos gigantes, que não tardaram a se massacrar, alegando cada um estar sendo atacado pelo outro. O símbolo traduz a mais diáfana das realidades: a pedra, a terra petrificada, o rochedo são igualmente símbolos da banalização, consequência da exaltação intrigante das aspirações terrenas. Os adversários são surpreendidos pelo obstáculo imprevisto, indício das falsas promessas que, “lançadas” com astúcia, exasperam a inveja. Nesse fogo de massacre, cada um se sente ameaçado pela inveja exaltada do outro, esperando cada qual tirar proveito da querela nascente. Não é raro que adversários temíveis, mordidos de raiva e de emulação, se lancem uns contra os outros e se destruam. Semelhante vitória de “intrigante”, de Jasão, que arremessa as pedras ou que, consoante a significação oculta, se propõe a assegurar o reino futuro pela intriga, uma tal vitória possui apenas um valor efêmero e banal. A maquinação não pode vencer a violência em caráter definitivo. Trata-se de um emaranhado perverso que reina sobre o mundo e que, incessantemente, conduz às explosões de violência. A ideia que se tem das três tarefas iniciais é a de que Jasão percorreu muito rapidamente o caminho que, da intenção sublime, ameaça arrastá-lo para uma futura realização banal. A advertência que desde o início pesa sobre suas façanhas tornou-se clara sobretudo na vitória duvidosa do herói sobre os “homens de ferro”. O perigo que o ronda, no entanto, não se tornou insuperável, uma vez que as três provas preliminares têm unicamente o sentido de um presságio em relação ao comportamento futuro e não o determinam em definitivo. A derrota essencial do filho de Esão, que encerrou as tarefas iniciais, se apresenta sob o aspecto de um êxito exterior, o que lhe assegura o direito de tentar apoderar-se do velocino de ouro. As portas para a vitória decisiva e essencial continuam abertas. Tudo depende da maneira como ele há de enfrentar o último prélio. Vencendo em combate heroico o monstro, guardião que impede qualquer aproximação com a sublimidade, bem como sua fraqueza secreta, a tentação dominadora do dragão não mais poderá se realizar. É que, sendo ele o símbolo supremo de sua própria perversidade, se morto heroicamente, há de transformar-se no símbolo da libertação total. Jasão, todavia, se limitará uma vez mais a lutar contra o monstro com o expediente da astúcia. O mito não faz referência alguma a armas que lhe tenham sido emprestadas pelas divindades, imagens da força da alma, para sua justa com o dragão. Nada indica também que o herói tenha solicitado o concurso de seus companheiros. Confiando muito pouco em suas próprias forças, recorre mais uma vez ao auxílio da mágica Medeia. Semelhante consórcio nem é uma escolha justa nem tampouco uma ligação da alma. A impureza se escamoteia nesse episódio sob a forma de cálculo. Unindo-se à feiticeira, o argonauta deixa-se subjugar pelas forças ctônias. É exatamente esse tipo de dominação que ele deveria evitar a qualquer preço. Sucumbindo aos sortilégios da mágica e à tentação de lutar com sua ajuda, o herói prepara-se para assegurar o reino e a autoridade, com o respaldo das forças “demoníacas” de seu inconsciente e não pelo combate da purificação. A partir dessa resolução, o resultado do empreendimento está fadado à ruína. Enfraquecido, o pretendente ao trono não mata o monstro em luta heroica, imagem de sua própria perversão, que ele deveria vencer. Medeia, com seus filtros, o adormece e ingloriamente Jasão o liquida e se apossa do velo de ouro. O poder mágico detido e utilizado por Medeia é a imagem da insolência face ao espírito e às suas exigências, bem como a pretensão de realizar as intenções mais exaltadas, a perversão dominadora, graças ao desencadeamento inescrupuloso dos desejos. Diametralmente oposto à vitória heroica, este êxito perverso implica, falando de maneira simbólica, um “pacto” com os demônios, aos quais é preciso vender a alma. O sentido da expedição converteu-se num gracejo. O troféu que confere o direito ao trono é subtraído, em vez de ser conquistado com denodo. Aparentemente, em sentido verbal, Jasão cumpriu as tarefas impostas, mas, em sentido simbólico, ele se esquivou do trabalho interior e heroico: a catarse. O fecho do mito só pode traduzir esse estado interior culpável do herói decaído. As imagens finais materializam o castigo. Eetes, exigindo as tarefas-provas, configurou o rei mítico e, como tal, nega a Jasão o direito de levar o troféu da sublimidade. Rebelando-se contra o interdito real, foge com Medeia, conduzindo o velo de ouro. O rei acossa os ladrões do tesouro espiritual, mas, sendo ele um símbolo do espírito vingador, a perseguição simbólica, consoante sua verdade profunda, não se passa no plano exterior: realiza-se espiritualmente no foro íntimo de Jasão, como um sentimento de culpabilidade. Seguindo esta linha de raciocínio, a fuga diante de Eetes significa a repressão da culpa, pois o recalque nada mais é do que a escusa face ao espírito acusador. Tal significação se ajusta igualmente ao rapto do velo de ouro. “Recalcar sua falta” é sinônimo de se vangloriar com a sublimidade imerecida, extorquida. Todos os pormenores da imagem simbólica da fuga devem contribuir para ratificar este significado oculto: a culpa e sua repressão. Para ajudar o falso herói a escapar, Medeia usa de uma astúcia monstruosa: assassina seu próprio irmão Apsirto e lança-lhe os pedaços no mar. Eetes, ocupado em recolhê-los, se atrasa na perseguição aos fugitivos. Na medida em que o rei da Cólquida configura o espírito acusador, Apsirto traduz simbolicamente o “filho do espírito”, que é a verdade. Na imagem da fuga, a verdade em pauta concerne ao estado da alma de Jasão e esse estado é a culpa e a tentativa de reprimi-la. O homicídio de Apsirto é uma variante do símbolo típico do “filho sacrificado”. O sacrifício expiatório do “filho do espírito” é uma imagem de extrema complexidade, que encontra sua expressão mais alta no relato histórico cristão, quando o mundo inteiro, configurado no povo eleito e culpado, sacrificou criminosamente o “filho do espírito”, o homem inocente, espelho da verdade, cuja vida era sentida como uma censura insuportável. É claro que o mito em questão nada possui em comum com a verdade cristã, infinitamente mais vasta e profunda, a não ser o fato de espelhar igualmente a iniquidade que reina no mundo. Não se trata de estabelecer um paralelismo, que só poderia ser artificial, mas unicamente de ressaltar que o episódio da fuga do casal assassino contém uma alusão ao sacrifício monstruoso. Este não é mais executado pelo mundo culpado, que vive sob o reino do demônio, mas pela feiticeira, inspiradora das tentações “demoníacas” do inconsciente e que se mostra ansiosa por assegurar o reino do herói humilhado, como aliás, diga-se de caminho, agiu com o rei de Atenas, Egeu. Medeia arrasta o amante a sacrificar o inocente, o filho do espírito acusador, a verdade. Culpado, o herói humilhado não se curva ao espírito da verdade, não toma conhecimento de sua falta, não sacrifica ao espírito sublime. Lança e projeta sua culpa sobre o inocente que deve resgatá-la como bode expiatório. Espera, desse modo, poder escapar, por força dessa evasiva imaginária, às consequências de seus atos. Medeia corta o “filho” assassinado, a verdade sacrificada, em pequenos pedaços: fragmenta a verdade sobre a culpa de Jasão e oferece ao espírito acusador um punhado de pequenas escusas mentirosas, imagens da repressão, acreditando, destarte, retardar a “perseguição” e silenciar o delito do amante, através de seus conselhos e encorajamentos. A mágica incita-o a usar, excessiva e monstruosamente, de processos perversos de evasão, isto é, a projeção de culpa e a repressão. Assim agindo, consegue destruir-lhe o espírito sob a forma de remorso, o único que poderia salvá-lo, condenando-o, em definitivo, à perdição. Assim como o simbolismo dos trabalhos escamoteados retratam a futura atitude perversa de Jasão, que há de caracterizar-lhe o reino, igualmente a fuga traduz, em sua verdade profunda, os efeitos da derrota essencial da expedição catártica, consequências que hão de marcar toda a vida futura do herói humilhado. Jasão entrega o velo de ouro a Pélias e assume o poder. Suas falhas e deficiências no cumprimento das condições impostas fazem prever a natureza perversa e dominadora de seu reino, o que não impede a possível realização externa de uma hábil administração, ao menos por algum tempo. A história testemunha, através de inúmeros exemplos, aliás sempre repetidos, o sentido secreto do mito, cujo herói mais representativo é Jasão. Sua perversidade converte-se, no plano essencial, em flagelo que devasta o país, o mundo: as astúcias, de que tanto se aproveitou, voltaram-se contra ele próprio. Vítima de intrigas, foi afinal expulso de Iolco. Todo o seu governo, no entanto, foi caracterizado pela influência nefasta e crescente da feiticeira, símbolo da perversão banal. Os delitos se acumularam. É bastante relembrar aquele bem conhecido, que tanto concorreu para acelerar o fim desastroso do herói derrotado. Para fugir à bruxaria funesta, Jasão tentou abandonar Medeia. A mágica, transmutada em Erínia, matou seus próprios filhos. Já que todas as personagens do mito possuem, em última análise, valor simbólico, pode-se ver nesse crime hediondo, consoante o simbolismo “criança, fruto da atividade sublime ou perversa”, a imagem da desolação e do aniquilamento, que são os únicos a subsistir, uma vez passada a dominação pervertida. Configurando as forças destruidoras do inconsciente, a mágica, de que Jasão se quis servir para alcançar a vida sublime, é o instrumento fatal de sua punição e de seu sofrimento. Jasão morreu quando descansava sob a nau Argo, atingido por uma viga, caída do próprio barco, que deveria tê-lo conduzido a uma vida heroica. A nau é o símbolo das promessas juvenis de sua vida, das gestas de aparência heroica, que lhe conquistaram a glória. O herói vencido desejou repousar à sombra de sua glória, por acreditar que ela seria suficiente para justificar-lhe a vida inteira. Caindo em ruínas, a Argo, símbolo da esperança heroica da juventude de Jasão, converte-se em símbolo da ruína final de sua vida. A viga é uma transformação da clava. É o esmagamento sob o peso morto, o castigo da banalização. Ao passar em revista o pensamento de Diel sobre o mito de Jasão, convém insistir em que o mito é um feixe de símbolos e uma interpretação é apenas uma das interpretações. Outras que surjam só podem concorrer para o enriquecimento do mitologema, neste caso tão vasto e tão doloroso. 1. As principais informações e referências dos autores gregos e latinos acerca de Jasão encontram-se em Homero, Ilíada, VII, 469; XXI, 41; Odisseia, XII, 72; Hesíodo, Teogonia, 992s; Píndaro, Píticas, 4 passim; Nemeias, 3,93; Eurípides, Medeia, passím; Apolônio de Rodes, Argonáuticas, l,5ss; Apolodoro, Biblioteca, 1,8,2; l,9,16.18.2324s; 3,7s; 13; Pausânias, Descrição da Grécia, 2,3,8s; 5,9,10.17; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 4,40s; Ovídio, Heroides, 6 e 12; Higino, Fábulas, 12 e 13. 2. E são, como Amitáon e Feres, segundo se estampa no quadro genealógico 5, era filho de Creteu e Tiro. Casado com Polímede, filha de Autólico, era, nesse caso, tio-avô de Ulisses, mas outras versões lhe dão por esposa Alcímede, filha de Fílaco. Tinha como irmão, do lado materno, a Pélias. Este, após apoderar-se do reino de Iolco, que, de direito pertencia a Esão, enviou-lhe o filho em busca do Velocino de Ouro. Ouvindo dizer que os argonautas haviam perecido, livre portanto de Jasão, tentou eliminar-lhe o pai. Esão pediu ao rei para escolher seu próprio gênero de morte e envenenou-se com o sangue de um touro. Uma variante, sobretudo atestada em Ovídio, narra que Esão reviu o retorno do filho e dos argonautas e foi rejuvenescido pelos encantamentos de Medeia. 3. A respeito particularmente dosArgonautase de sua arriscada expedição em busca do Velocino de Ouro as fontes e referências principais são as seguintes: Apolônio de Rodes, Argonáuticas, cantos 1 e 2; Ovídio, Metam., 7,1-158; Valério Flaco, Argonautica, cantos 1 a 8; Higino, Fábulas, 14 a 23. 4. Ἀργώ (Argó), Argo, palavra derivada de άργός (argós), “rápido, ágil, branco”, é a rápida, a brilhante. A nau foi construída no porto de Págasas, na Tessália, pelo filho de Frixo, Argos, auxiliado por Atená. O madeirame procedia do monte Pélion, mas, para construir a proa, Atená trouxera uma peça tirada do carvalho sagrado de Dodona, à qual a deusa concedeu o dom da palavra e até da mântica. 5. Κάβειροι (Kábeiroi), os Cabiros, consoante a tradição mais comum, eram quatro e passavam por filhos de Hefesto e Cabiro ou, segundo outras versões, Hefesto, unindo-se a Cabiro, foi pai de Cadmilo, tendo este gerado os outros três: Axiero, Axioquersa e Axioquerso, identificados respectivamente com Hermes, Deméter, Perséfone e Hades. Seus principais santuários se encontravam na Samotrácia e em Lemnos, Imbros e perto de Tebas. Divindades de “mistérios” não podiam ser invocados impunemente, a não ser por iniciados. Integravam, normalmente, o cortejo de Hera, a protetora dos amores legítimos, já que o ápice de uma iniciação, τέλος γάμος (télos ho gámos) é exatamente o casamento. Após a época clássica, os Cabiros se tornaram, como os Dioscuros, protetores da navegação, daí o conselho de Orfeu, para que os Argonautas se iniciassem nos Mistérios da Samotrácia. Um estudo luminoso sobre os Cabiros se encontra na obra já por nós citada de Károly KERÉNYI, Miti e misteri, p. 158ss. 6. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 269. 7. Ibid., p. 913. 8. O poeta latino da época dos Flávios, Caio Valério Flaco (45-88 d.C., datas prováveis), deixou incompleto seu poema épico Argonautica, que possivelmente abrangeria dez ou doze cantos. Chegaram até nós oito cantos (5.593 versos hexâmetros), mas o oitavo se interrompe bruscamente no meio, exatamente no verso 467, no momento da fuga de Jasão e Medeia. A respeito do poeta escreveu Quintiliano (Inst. Or., 10,1): Multum in Valerio Flaco nuper amisimus, “recentemente perdemos muito com a morte de Valério Flaco”, testemunho que, de um lado, mostra que o poeta deve ter falecido durante o reinado de Vespasiano e, de outro, que a obra de Valério não era considerada, como por vezes se apregoa, uma fria imitação de Apolônio de Rodes. 9. Veja-se a análise que fizemos desta tragédia de Eurípides em Teatro grego: Tragédia e comédia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 63ss. 10. O roteiro e quase todos os trechos traduzidos que estampamos nesta carta são extraídos da edição das Heroides do prof. Walter Vergna, por nós prefaciada e mais de uma vez citada. 11. BONNEFOY. Yves et al. Dictionnaire des mythologies, 2 vols. Paris: Flammarion, 1981, p. 65. 12. Ibid., p. 66. 13. DIEL, Paul. Op. cit., p. 171ss. Quadro 5 Quadro 6 CAPÍTULO VI Belerofonte e a luta contra Quimera 1 BELEROFONTE, em grego Βελλεροφόντης (Bellerophóntes), significaria, etimologicamente, segundo Albert Carnoy, “aquele que é cheio de força”. O primeiro elemento bel- seria uma raiz indoeuropeia com o sentido geral de potência vigor, como o sânscrito bala-, que teria o mesmo significado. Tal acepção poderia ainda ser verificada através do comparativo grego βελτίων (beltíon), “mais forte, melhor”. A final -φόντης (phóntes) equivaleria, talvez, a “abundante, cheio de”. Proveniente da casa real de Corinto, o herói é filho de Posídon, seu godfather, mas tem por “pai humano” a Glauco, filho de Sísifo, conforme se pode verificar no quadro genealógico1da página seguinte. Sua mãe, quer se chame Eurímede ou Eurínome, é uma das filhas de Niso, rei de Mégara. Após os ritos iniciáticos de praxe, o herói iniciou suas aventuras, mas a primeira delas foi trágica. Matou, sem o querer – é o tema do famoso φόνος ἀκούσιος (phónos akúsios), de que se falou mais de uma vez – a seu próprio irmão, cujo nome varia muito nas tradições: uns chamam-no Delíades, outros Píren, 1. As fontes antigas para um melhor conhecimento do herói são basicamente as seguintes: Ilíada, VI, 155-205; 216-226; Píndaro, Olímpicas, 13,87s; Ístmicas, 7,44s; Apolodoro, Biblioteca, 1,9,3; 3,lss; Pausânias, Descrição da Grécia, 2,2,3-5; 4,1-3; 27,2; 3,18,13; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 6,7; Higino, Fábulas, 56; 157; 243; 273; Horácio, Odes, 4,11,25ss; 1,27,24; 3,7,13ss. Quadro 7 epíteto que estaria etimologicamente relacionado com a fonte de Pirene2, e ainda Alcímenes ou Bélero. Este último nome serve de base para a etimologia popular de Belerofonte, o assassino (phóntes) de Bélero, que, neste caso, seria um tira-no de Corinto. Exilado, segundo o costume, dirigiu-se a Tirinto, onde foi purificado pelo rei local, Preto. Foi durante sua permanência na corte de Tirinto que lhe aconteceu terrível desventura. A esposa do rei, Anteia, como lhe chama Homero, Il., VI, 160, ou Estenebeia, consoante os trágicos, se apaixonou perdidamente pelo hóspede. No relato homérico, Il., VI, 160-180, bastante dramático por sinal, a rainha “deixou-se dominar por uma paixão furiosa” (ἐπεμήνατο – epeménato) por Belerofonte. Repelida por este, Estenebeia acusou falsamente o filho de Glauco de tentar violentá-la (outro exemplo do motivo Putifar). Tal era o furor eroticus da rainha, que chegou mesmo a ameaçar a Preto, caso o rei não matasse o “sedutor”. Embora enfurecido com o hóspede, o soberano de Tirinto teve escrúpulo em eliminar aquele a quem havia purificado. Enviou-o, pois, a seu sogro Ióbates, rei da Lícia, com uma carta em que solicitava desse morte ao portador. Não desejando violar a sagrada hospitalidade e porque também já havia sentado à mesa para comer com ele, o que estabelecia para os antigos uma profunda identidade, submeteu-o às já conhecidas tarefas, cuja finalidade é a purificação e a consequente individuação do efebo. Pouco importa se as “provas iniciáticas” são apresentadas, no mito, como um meio de se castigar, afastar ou de se eliminar o herói, como fez Euristeu com Héracles, Pélias com Jasão e tantos outros exemplos: a finalidade dos Trabalhos impostos é sempre a catarse, “a sujeição do invólucro carnal”, como diria Plotino. Para não manchar suas mãos e, ao mesmo tempo, desejando satisfazer e cumprir a mensagem do genro, Ióbates ordenou a Belerofonte que matasse Quimera. Em grego, Χίμαιρα (Khímaira) significa, ao que parece, cabra, mas uma cabra que teve apenas um “inverno”, χεῖμα (kheîma), isto é, cabritinha. Como se mostrou no Vol. I, p. 254, Tifão e Équidna, além do cão Ortro, de Cérbero, Hidra de Lerna, Fix e Leão de Nemeia, geraram também a Quimera. Trata-se de um monstro híbrido, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e, segundo outros, de três cabeças: uma de leão, a segunda de cabra e a terceira de serpente e que lançava chamas pelas narinas. Criada por Amisódaro, rei da Cária, vivia em Patera, devastando o país e sobretudo devorando os rebanhos. Certo de que o herói jamais retornaria de tão perigosa missão, Ióbates ficou tranquilo em relação, principalmente, ao pedido de seu genro Preto. Os deuses, no entanto, vieram em auxílio do inocente filho de Glauco. Segundo a versão mais seguida, Atená entregara-lhe, já selado, o cavalo Pégaso, a cujo respeito já se falou no mesmo Vol. I, p. 253s. Outras tradições, porém, relatam que o cavalo alado fora um presente de Posídon ao herói, ou ainda que este encontrara o animal bebendo na fonte de Pirene. De qualquer forma, foi cavalgando Pégaso que Belerofonte obteve sua primeira grande vitória: o cavalo divino elevou-se no ar e, de um só golpe, o jovem paladino matou Quimera. Ióbates enviou-o então contra os Sólimos, como narra Homero, Il., VI, 184s. Estes Sólimos habitavam nas vizinhanças da Lícia e, como filhos de Ares, eram ferozes e belicosos. Facilmente o herói os venceu. O rei, dessa feita, deu-lhe incumbência bem mais séria e arriscada: defrontar-se com as temíveis Amazonas. Montando Pégaso, o filho de Glauco dirigiuse para o país das perigosas guerreiras e fez um grande massacre. Face a tão retumbantes vitórias, o soberano da Lícia reuniu um numeroso grupo dos mais bravos de seus guerreiros e ordenou-lhes que fizessem uma emboscada e liquidassem o aguerrido cavaleiro. Nenhum dos soldados regressou à corte: Belerofonte matou-os a todos. Reconhecendo, afinal, que seu hóspede era de origem divina e admirando-lhe as gestas, mostrou ao herói a carta de Preto, solicitando-lhe, ao mesmo tempo, que permanecesse em seu reino. Deu-lhe a filha Filônoe em casamento e, ao morrer, legou-lhe o trono. Um herói, quando caluniado ou injustamente punido, jamais deixa de vingar-se, pois que a represália faz parte intrínseca de sua natureza, de sua timé aviltada. Não podia ser diferente com Belerofonte. Assim que terminou as quatro tarefas impostas por Ióbates, voou com Pégaso para Tirinto. Preto procurou ganhar tempo, a fim de que sua esposa Estenebeia pudesse fugir, furtando o cavalo alado. A rainha cavalgou pouco tempo, porque Pégaso a lançou fora do arnês, atirando-a no mar. Seu corpo, recolhido por pescadores, não muito distante da ilha de Melos, foi trasladado para Tirinto. Uma outra tradição narra que, ciente do retorno do herói, a esposa de Preto se fez matar. É lamentável que se tenha perdido a tragédia de Eurípides, Estenebeia, que dramatizava precisamente esse fecho das aventuras de Belerofonte, após suas retumbantes vitórias na Lícia. 2 Com Filônoe o herói teve três filhos, Isandro, Hipóloco e Laodamia. Esta, unindo-se a Zeus, foi mãe do grande Sarpédon3. O mais cruel e terrível infortúnio do herói não foram as provas, as tarefas, os trabalhos com que foi sobrecarregado. Afinal, “as provas” visavam a temperá-lo para a vida, mas, por uma espécie de fatalidade, essas mesmas tarefas, uma vez concluídas vitoriosamente, despertam-lhe o monstro latente adormecido em seu interior, a hýbris, que o levou inexoravelmente à ultrapassagem do métron, ao descomedimento. E a pior das h×breis é aquela em que o herói, sob o impulso de sua timé e areté, que afinal são outorga de um deus, seu godfather, seu ancestral, se lança na competição com o divino ou até mesmo na loucura de desejar ultrapassá-lo! O “conhecete a ti mesmo” e o “ser o sonho de uma sombra” da poesia pindárica não foram gravados ou escritos para os heróis, para os ándres, mas para os simples mortais, os thnetói, que não conhecerão a Ilha dos Bem-Aventurados, mas as “trevas e lama” do Hades, onde patinarão como eídola, como fantasmas abúlicos! Belerofonte sonhou alto demais. Cavalgando seu corcel alado, o herói ferido de orgulho, após tantas vitórias memoráveis, conquistadas com o respaldo divino, tentou nada mais nada menos que escalar o Olimpo. Zeus, que vela pela ordem cósmica, fulminouo, lançando-o por terra, fazendo-o regredir ao telúrico, à “banalização”. Se, ao revés, enquanto herói, Belerofonte guardasse a moderação, estaria munido da bússola que o guiaria para a ilha de Avalon, donde, tranquilamente, poderia escalar qualquer Olimpo... Ainda bem que a Lícia e Corinto honraram-no como herói, como dáimon, como intermediário entre os homens e os deuses. Apesar do silêncio do mito, é bem possível que Belerofonte, “recuperando os sentidos”, tenha escalado, como Héracles, um monte bem mais acessível, um Eta e, extinta a chama da hýbris na chama da dor, tenha sido convidado por seu godfather a ocupar alguma outra Ilha Branca, onde a dor e os sofrimentos não se justificam mais. Quanto a Pégaso, por ser um cavalo alado, símbolo, portanto, do desnivelamento, da “imaginação criativa e de sua elevação sublime”, foi arrebatado aos céus e metamorfoseado em constelação. 3 Paul Diel comenta o mito de Belerofonte em duas partes, aparentemente distintas, mas que se integram, já que uma é, as mais das vezes, o corolário da outra. Começa pela vitória do herói sobre Quimera e conclui com a “conquista da virgem”, o casamento do grande paladino com a filha de Ióbates. Vamos seguir-lhe o roteiro, fazendo aqui e ali algumas achegas e digressões. “Poder-se-ia ter a impressão”, afirma Diel, “de que a imaginação exaltada, causa primeira da deformação psíquica, não encontraria exemplo mais claro do que o estampado no mito de Ixíon”4; este, pensando ter junto a si a deusa Hera, apertou em seus braços um fantasma de nuvens, à imagem da esposa de Zeus, o que traduz a exaltação para uma sublimidade sem consistência. “O símbolo da imaginação exaltada, no entanto, é bem mais concentrado e bem mais evidente ainda no mito de Belerofonte, que, sob muitos aspectos, se assemelha ao mitologema de Ixíon, servindo-lhe de parte complementar. O herói deveria lutar contra um monstro terrível: a Quimera, cujo nome já define bem essa figura mítica. Seria impossível compreender, com mais clareza, que o perigo maior a combater por parte do homem, e que o mito externa sob a forma de um monstro casualmente encontrado, é, na realidade, o inimigo quimérico, algo muito sério que ameaça toda a nossa vida: a imaginação perversamente exaltada, o perigo monstruoso que todo ser humano possui latente dentro de si mesmo. É mais do que evidente que ‘Quimera’ e ‘imaginação perversa’ são sinônimos. O fato de que, neste mito, Belerofonte deve pelejar contra o monstro quimérico, imagem transparente da deformação psíquica, evidencia com nitidez uma verdade: os inimigos combatidos pelos heróis míticos são os monstros que povoam o inconsciente. É graças, porém, a este símbolo ‘Quimera’, que se podem elucidar a natureza da imaginação perversa e sua completa definição. Psicologicamente falando, a imaginação perversa se compõe de desejos exaltados, provenientes das três pulsões ampliadas. Ora, em Quimera encontram-se conjugadas, pela primeira vez, as formas diferentes com que se pode revestir a exaltação imaginativa. A Quimera com o corpo de cabra ou bode e com as cabeças de leão, bode e serpente, coloca-nos diante de símbolos típicos. O mito não poderia exprimir com mais clareza as três formas de perversão imaginativa: a vaidade – perversão espiritual configurada na serpente –, a perversão sexual, representada pelo bode, e a perversão social com tendência dominadora, cujo símbolo é o leão. A perversão dominadora, expressa pela vez primeira no mito por um dos símbolos mais típicos, desempenhará um papel predominante, não apenas neste mitologema, mas ainda como ameaça exterior dirigida contra o herói, como um perigo que lhe é inerente: a forma específica de sua vaidade, da revolta final contra o espírito, razão de sua queda definitiva. A história que precede o relato mítico não apresenta Belerofonte como alguém culpado, mas como um homem inocente, vítima da perversão do mundo, da intriga dominadora. Ora, essa intriga não é mais que a exaltação imaginativa e quimérica, que faz com que a luta do herói, inicialmente inocente, seja simbolizada por sua vitória passageira sobre Quimera. O triunfo, no entanto, não poderia envaidecê-lo e, com isso, condená-lo à derrocada final, se, a despeito de sua aparente inocência, o vencedor do monstro não trouxesse inoculado em si mesmo o gérmen da perversão, pronto para eclodir, apesar de todos os seus esforços de elevação e de seu êxito efêmero. Trata-se de uma situação humana, que, certamente, pode ser considerada como típica, encontrando-se a mesma sublinhada por um traço simbólico: o pai mítico de Belerofonte é Posídon, o que significa que as emanações psíquicas projetadas no herói pelo deus são muito fortes. Este deus, conforme já se mostrou no mito de Teseu, e se há de ver mais claramente, configura a legalidade da perversão. Pela legalidade psíquica, um homem como Belerofonte sucumbe à perversão: é que o filho de Glauco, vencedor, quando se lhe oferece oportunidade, é combatente fervoroso do espírito, tem tudo para resistir à dominação perversa do mundo, mas é muito facilmente arrastado a ultrapassar a força legítima, a medida sensata, o que o torna incapaz de dominar em definitivo o ‘monstro’ essencial, a vaidade culposa. É que a sombra de Posídon pesava demasiadamente forte sobre o condutor de Pégaso. A intriga do mundo, que ameaça o herói ainda inocente, é relatada no próprio mito. Hostil a Belerofonte e temendo-o por ciumes, Preto o enviou para a Lícia, com uma mensagem em que solicitava a Ióbates que matasse o portador. Não querendo violar as leis da hospitalidade, o rei o mandou combater Quimera, que lhe devastava o reino, certo de que seu hóspede pereceria na luta. Vencedor da primeira prova e de outras três, supracitadas, desposou a filha do soberano e, mais tarde, assumiu as rédeas do governo. A história do monstro que devasta um país é frequente no mito: simboliza o reino nefasto de um governante pervertido, tirânico ou fraco. Substituindo-se Quimera pela significação psicológica, a exaltação imaginativa sob as duas formas já mencionadas, isto é, a intriga do mundo circundante e a pureza ameaçada de Belerofonte, tem-se como resultado o sentido oculto que, no início da grande gesta, mercê de sua inocência, o fez levar de vencida a intriga arquitetada contra ele. Mas, com a perda de sua força essencial e com o servir-se da força perversa, a violência e a intriga, a fim de manterse no poder, o herói acabou por ceder à imaginação. Esse tipo de história, certamente sob múltiplas formas, existe nos mitos de todos os povos: um jovem herói estrangeiro chega à corte de um rei, liberta o país de seus inimigos internos e externos e desposa a filha do soberano. O acontecimento mítico possui tantas semelhanças com os hábitos daqueles tempos recuados, que não se pode deixar de atribuir-lhe um lastro histórico. A história, entretanto, satisfaz ainda mais às possibilidades da alma humana, quando a mesma relata que, uma vez no poder, o herói perde sua simplicidade, o sentimento da σωφροσύνη (sophros×ne), do meio-termo, da justa medida e, envaidecido com suas vitórias, deixa-se arrastar para os loucos empreendimentos de conquista. Quando não perece na guerra, é destituído do poder e consome o resto de seus dias no tormento estéril do remorso pelos erros cometidos e pela loucura. Menos prolixo que a história, que transborda em pormenores acidentais, o mito se concentra nos motivos recônditos dos relatos intemporalmente típicos e põe a descoberto alguns temas sempre significativos para a alma humana, graças à força condensadora de sua expressão simbólica. A dificuldade maior do combate, para o qual Belerofonte é convocado, está enfatizada no seguinte índice simbólico: todo homem muito imprudente, ao aproximar-se do monstro quimérico, é por ele devorado, o que realmente não se pode negar, quando se trata da exaltação imaginativa. Os deuses, todavia, enviaram ao herói o cavalo alado Pégaso, certamente o auxílio mais eficaz ou talvez o único eficiente na peleja contra Quimera, a imaginação perversa, porquanto Pégaso configura a imaginação sublime e objetiva que eleva o homem a regiões mais altas. O cavalo é a imagem da impetuosidade dos desejos, mas, se se tratasse apenas de exprimir a impetuosidade, a simbolização poderia ter escolhido muitos outros animais. Um símbolo é uma condensação expressiva e precisa. O cavalo traduz os desejos exaltados, porque é o quadrúpede sobre que se senta o homem, como os desejos muito facilmente exaltados são o assento biológico, o fundamento da animalidade do ser espiritual, que é o homem. Se este doma e dirige o cavalo, deve ser capaz, igualmente, de refrear os desejos. A façanha da liberação das paixões pode, neste contexto, ser traduzida por uma outra imagem: abandonar a ‘besta’, descer do cavalo, para ficar ereto sobre seus próprios pés. Pôr-se em pé seria então sinônimo de ‘força da alma’. O equilíbrio, mercê da posição ereta, é um dos traços mais característicos do homem. O pé convertese, desse modo, em símbolo da alma, significação que será atestada, em seguida, em muitas passagens. O ser humano inseparavelmente ligado ao cavalo é, antes do mais, um monstro mítico: o Centauro. Mas, a ter que se separar temporariamente do animalesco (da impetuosidade dos anseios que aniquilam o espírito), melhor seria recuperar a energia primitiva desses mesmos desejos, purificando e elevando-os ao nível sublime, o que é simbolicamente representado pelas asas, que permitem ao cavalo erguer-se no ar. O cavalo alado traduz o oposto da imaginação perversa, quer dizer, o pensamento criativo e sua real ascensão. Nessa escalada, o homem, esquecendo suas necessidades imediatas e corporais, aspira somente a satisfazer seu desejo essencial. É a sublimação dessas necessidades ou, ao menos, de sua impetuosidade, que impede, ‘que combate’ a multiplicação quimérica dos apetites e, por conseguinte, também a exaltação imaginativa a respeito dos mesmos. Atená, imagem da combatividade sublime, enviando Pégaso a Belerofonte para combater Quimera, mostra que o homem não está em condições de vencer sozinho a exaltação imaginativa, a não ser com o respaldo de energias espirituais e sublimes que o elevem acima do perigo da perversão. É sobre o cavalo alado que o herói luta contra Quimera. Sua inspiração realmente sublime e sua inocência ingênua permitem-lhe o triunfo sobre o perigo que o ameaça. A elevação sublime, porém, é apenas um estado passageiro da alma humana. O homem deve descer à terra. Seus desejos corporais assim o exigem. Ocupando-se com eles, ei-lo, porém, novamente ameaçado pelo perigo quimérico que o incita a exaltá-los. O verdadeiro herói é o que sabe resistir nesta luta contínua, equilibrando-se nos dois planos: o nível da elevação sublime e o plano da vida concreta. Eis aí o ideal grego da harmonia dos desejos”5. Mas, por haver atingido a sublimidade nos momentos de elevação, o herói, acreditando-se um ser extraordinário, convertese, por isto mesmo, em presa fácil da exaltação quimérica. O espírito vitorioso, em função mesmo de seu triunfo, está sempre ameaçado de transformar-se em espírito vencido. A timé e a areté, sufocadas pela hýbris, fazem do herói vencedor uma vítima da vaidade e da exaltação quimérica. Foi desse modo que a mais estupenda das vitórias transformou-se para Belerofonte na mais arrogante das loucuras. O herói revoltou-se contra o espírito. Teve a audácia de querer conquistar o Olimpo, a sede do espírito, pela força das armas, escudando-se em Pégaso. Embriagado por suas vitórias e conquistas, acreditou-se mais forte que Zeus e todos os deuses reunidos, os quais simbolizam a lei que impõe ao ser humano o métron, a sophros×ne, a medida justa de suas aspirações e esforços. O orgulho de Ixíon foi matizado de perversão sexual, a vaidade de Belerofonte o foi de perversão dominadora, sob sua forma mais arrogante e audaciosa. 4 Paul Diel não fecha sua análise na “conduta” de Belerofonte. Amplia-a um pouco mais, para captar um outro ângulo muito importante do mito de muitos heróis: a “conquista da virgem”. Na realidade, o casamento de um vencedor de grandes e difíceis tarefas com a jovem princesa, exposta ou não a um monstro, aparece, sob variações e camuflagens diversas, em vários mitos importantes, bastando citar os de Héracles, Jasão, Perseu, Teseu, Belerofonte... Em todas as lendas6 e mitos, seus respectivos heróis, após gestas atrevidas e perigosas, podem ou sucumbir em definitivo, como Siegfried na lenda nórdica, ou vencer espetacularmente. Nas lendas, porque estas alimentam as esperanças da vida e compensam deficiências psíquicas, os heróis normalmente se consagram como grandes campeões e tudo acaba em lua-de-mel, sob as bênçãos generosas de Afrodite; nos mitos, ao revés, por serem estes expressão simbólica da vida real, raros são os triunfadores. Mesmo que o herói, por uma vitória passageira, liquide o monstro e despose a virgem, pode perfeitamente perecer, decorrido, por vezes, um lapso de tempo, como é o caso de Teseu, Jasão, Belerofonte... Assim como o monstro configura não apenas a ameaça latente no estado pervertido do mundo circundante, mas sobretudo o perigo intrínseco da psiqué, a perda da pureza, de igual maneira a virgem simboliza não só a pureza a conquistar, mas também uma união da alma com o ser feminino, parceiro da vida. A escolha adequada deste último é traduzida pela verdade mítica como condição decisiva de uma existência sadia. Desse modo, diz Paul Diel, “o tema do jovem par, herói em missão e virgem a conquistar” se inserem na ilustração mítica não somente como sentido da vida do homem e da mulher, mas também como uma abrangência de todos os aspectos da existência. Aos combates espirituais do homem-herói, cujo significado é a elevação na medida de suas forças (pulsão evolutiva), se aglutina o auxílio fecundante que lhe traz ou deveria trazer o impulso do amor (pulsão sexual), a fim de lhe encorajar a resistência às seduções e ameaças circundantes (pulsão social). No mito em pauta, o monstro da impureza, que Belerofonte deve matar para conquistar a filha do rei-hospedeiro, está retratado por Quimera; mas é claro que esse tipo de monstro pode ser representado por muitas outras figuras míticas, que traduzem a imaginação exaltada, a perversão psíquica. Dentre elas, uma das mais frequentes é o dragão, que se tornou também uma imagem típica das lendas, até mesmo cristãs, como a de S. Jorge, o Perseu batizado, o cavaleiro andante, vencedor de monstros e libertador de virgens cativas. “O elo significativo entre o monstro que se deve eliminar e a virgem a ser libertada aparece com frequência reforçado, graças à imagem do dragão, guarda da virgem e do tesouro. Pode, todavia, acontecer que o perigo psíquico, a exaltação monstruosa, permaneça subentendida e não esteja estampada na história mítica pela imagem explícita do monstro-dragão. Levando-se em conta a multiplicidade dos elementos, poder-se-á encontrar a urdidura desse tema mítico fundamental até mesmo em Ixíon e Tântalo. No primeiro caso, a ‘virgem a ser conquistada’ é substituída por Hera, a esposa de Zeus, rei-hospedeiro; no mitologema de Tântalo, a mesma é representada pelo filho ‘a ser sacrificado’. Tais substituições são simbolicamente consequentes, porquanto a luxúria de Ixíon e o sacrifício de Tântalo7traduzem a impureza de seus heróis, sua incapacidade de conquistar a virgem. Igualmente no mito de Édipo, a ‘filha virgem’ aparece substituída pela mãe, símbolo da terra, terra-mater, matéria, que é incestuosamente desejada, imagem da exaltação dos desejos terrestres. A dupla homem-mulher, o par herói-virgem terá que se unir na pureza. A sizígia da combatividade e da pureza, todavia, não se reduz apenas à garantia do desenvolvimento do casal, pois que este há de prolongar-se no filho. Com efeito, o par, plenamente realizado, converte-se nos ‘pais míticos’ do filho, como verdadeiros forjadores da alma pura e do espírito destemido da criança. Assim, esse tema fundamental dos mitos, o ‘herói em missão’ e a ‘virgem a conquistar’, em luta com o espírito pervertido do mundo, configurado pelo rei que governa, transmuta-se amplamente na expressão simbólica não só da vida de um indivíduo, mas igualmente do desenvolvimento histórico através das gerações. Cada vez que brota uma vida nova, surge a esperança heroica e cada adolescente, em graus diferentes de intensidade, a agasalha em si. Ferido, todavia, pela impureza da exaltação quimérica, alimentada por pais incapazes de exercer o papel mítico de educadores da alma, a esperança perde sua força de resistência, estiola-se e não resiste aos assaltos do mundo intrigante e da inércia da perversão”8. O exemplo sublime da combatividade pura tem sua mais alta e profunda expressão no cristianismo. O “herói” divino foi enviado pelo rei dos Céus, o Deus único, imagem do ideal supremo. Não foi ele mandado para libertar este ou aquele país, mas o universo inteiro. Filho de Deus, o “filho do homem” travou e venceu o combate definitivo contra todas as perversões, configuradas pelo “príncipe do mundo”, Satã, símbolo supremo da exaltação quimérica. Sendo Ele a pureza perfeita e absoluta, não teve necessidade de conquistar a virgem-esposa, símbolo igualmente da pureza. Este novo “rei”, que fez esquecer todos os heróis, é puro por sua própria essência e puro por seu nascimento, o que se exprime pela verdade da virgem-mãe. O mito grego, ao contrário, não alcançou o ideal da elevação perfeita. Bastou-lhe descobrir, através da história simbólica do herói vencedor, o meio de exprimir seu ideal, o ideal da justa medida, do meio-termo, da sophros×ne e da harmonia das pulsões. Já foi muito, mas faltou-lhe o fecho. 2. O mito explica diversamente a origem da célebre fonte de Pirene em Corinto. Pirene, filha do deus-rio Asopo, unindo-se a Posídon, foi mãe de Leques e Quêncrias, heróis epônimos dos dois portos da grande cidade marítima. Mas, como Ártemis, acidentalmente, matara a Quêncrias, Pirene chorou tanto, que suas lágrimas formaram a fonte de seu nome. Existe uma variante: a fonte de Pirene teria sido um presente do rio Asopo a Sísifo, como recompensa de um grande benefício que este lhe prestara segundo se mostrou no capítulo XI, 1, do Vol. I, p. 238. É que Sísifo revelara a Asopo a identidade do raptor de Egina, filha do deus-rio, sequestrada por Zeus. 3. Existe, no mito, uma certa dificuldade “cronológica” para se identificar Sarpédon, uma vez que há três personagens, que talvez se possam reduzir a duas, com o mesmo nome. O primeiro é um herói do ciclo cretense, um gigante, filho de Posídon e morto por Héracles. O segundo é o filho de Zeus e Europa e, por conseguinte, irmão de Minos e Radamanto. Deixando Creta, certamente em companhia da mãe, emigrou para a Ásia Menor, onde fundou Mileto e reinou. O terceiro é o Sarpédon da Ilíada, chefe de um grupo de lícios que lutaram bravamente ao lado dos Troianos, até que seu comandante perecesse às mãos de Pátroclo, tendo-se travado um grande combate em torno de seu cadáver. Para distinguir o Sarpédon cretense daquele que participou da Guerra de Troia, Diodoro Sículo construiu uma nova genealogia: Sarpédon, o cretense, filho de Europa, emigrou para a Lícia. Um filho seu, chamado Evandro, casou-se com uma filha de Belerofonte, Deidamia ou Laodamia; desse enlace nasceu o segundo Sarpédon, neto do primeiro e que lutou em Troia. 4. A respeito de Ixíon e de seu terrível engano com Hera, já se falou no capítulo XIII, 2, do Vol. I, p. 298s. 5. DIEL, Paul. Op. cit., p. 88ss. 6. Veja-se, no capítulo II, l e nota, do Vol. I, p. 37ss a diferença estabelecida entre lenda e mito. 7. O mito de Tântalo, que sacrificou a seu próprio filho Pélops, foi exposto no capítulo V, 4, do Vol. I, p. 83ss. 8. DIEL, Paul. Ibid., p. 89ss. CAPÍTULO VII Faetonte: uma ascensão perigosa 1 O mito de Faetonte está estreitamente vinculado ao de seu pai Hélio, a cujo respeito já se falou, de passagem, no Vol. II, p. 87. Hélio, que provém da raiz indo-europeia â-suel-io, “brilhante”, donde o latim sol, que postula, certamente, uma forma *swôl1, para os antigos configurava o Sol divinizado. Segundo alguns, era um deus, segundo outros, um dáimon, um “demônio”. É que, como se verá, assimilado por Apolo, tornou-se um simples intermediário entre os deuses e os mortais. Filho de Hiperíon, isto é, do que “olha mais de cima” e de Teia, conforme se pode ver no quadro genealógico do Vol. II, p. 19, o deus Sol pertence à geração dos Titãs. Trata-se, pois, de uma divindade muito antiga, mas sem grande projeção no mito, talvez mesmo por ser um titã. Já na Odisseia, XII, 127ss, o deus aparece tão somente como senhor, na ilha Trinácria, de rebanhos de vacas e ovelhas, que de tão gordas nem mais se reproduziam. Tendo os companheiros de Ulisses devorado algumas dessas vacas, Hélio não teve forças para castigá-los e, por isso mesmo, pediu a Zeus que o fizesse, Odisseia, XII, 377ss, ameaçando, sem muita convicção, deixar de espargir sua luz sobre o mundo para iluminar os mortais. Tinha por irmãos a Eos (Aurora) e Selene (Lua). Com Perseis, filha de Oceano e Tétis, foi pai da mágica Circe, de Eetes, pai de Medeia, de Pasífae e de Perses. De sua união com Clímene nasceram as helíades2e Faetonte3. Representado como um jovem de grande beleza com a cabeça cercada de raios, percorria o céu num carro de fogo ou numa taça gigantesca, como se viu no mito de Héracles, capítulo III, 3, de incrível velocidade, tirada por quatro cavalos: Pírois, Eoo, Éton e Flégon, isto é, fogo, luz, chama e brilho. Cada manhã, precedido pelo carro da Aurora, avançava impetuosamente, derramando a luz sobre o mundo dos vivos. Chegava, à tarde, ao Oceano, ao “poente”, onde banhava seus fatigados corcéis. Repousava num palácio de ouro e, pela manhã, após ter-se purificado no bojo do mar, recomeçava pelo “oriente” seu trajeto diário. Jung descreve esse itinerário e a luta de Hélio com o dragão-monstro do mar de maneira simples e profunda. “Todas as manhãs um herói-deus nasce do mar; conduz o carro do sol. No ocidente, a grande mãe o aguarda e o herói-deus é por ela devorado, ao cair da noite. No ventre de um dragão, ele atravessa as profundezas do mar da meia-noite. Após terrível combate com a serpente da noite, ele renasce, novamente, na aurora”4. De certa forma Rank complementa a observação de Jung: “Se o herói se identifica com o Sol, não é somente porque este nasce a cada dia, mas também porque desaparece diariamente tragado pelas entranhas da terra, o que corresponde ao desejo primordial de união com a mãe-noite”5. Muito cedo, entretanto, Hélio se tornou uma divindade secundária e foi, aos poucos, sendo substituído por Febo Apolo, transformando- se o descendente dos Titãs num mero serviçal dos deuses. Tal fato se deve, em parte, a antigas concepções sobre a forma do mundo. A taça de Hélio, deslocando-se da Índia, sobrevoava o Oceano que cercava a Terra, o que se constituía numa caminhada bem mais curta. Os progressos da astronomia estabeleceram para o percurso do Sol o trajeto diurno, que percorre a abóbada celeste, bem mais longo e difícil. Com isto os cavalos de Hélio foram aposentados e Febo Apolo assumiu o comando da Luz. 2 FAETONTE, em grego Φαέθων (Phaéthon), provém, tudo faz crer, de φάος (pháos), “luz”, como se pode deduzir através de ϕαεινός (phaeinós), “brilhante”, que remonta à raiz bhâ, bhau, “faiscar, brilhar”. Filho de Hélio e Clímene, segundo se mencionou acima, Faetonte foi educado pela mãe, em total desconhecimento de quem era seu pai. Ao atingir os inícios da adolescência, a mãe contou-lhe que seu genitor era Hélio, o Sol. Querendo certificar-se da revelação materna, dar uma resposta condigna aos que dele zombavam por dizer-se filho do Sol e sobretudo desejoso de conhecer o pai, resolveu procurálo. Ovídio, em suas Metamorfoses, 2,1-328, nos deixou em tom majestoso e dramático o relato dessa busca, do juramento temerário de Hélio e sobretudo do descomedimento e morte trágica de Faetonte. Vamos seguir, de maneira mais ou menos livre, o texto das Metamorfoses, encaixando-lhe, aqui e ali, algumas citações da obra criativa de Edith Hamilton6. Começaremos pela descrição do palácio do Sol e pela acolhida de Hélio ao filho; passaremos, em seguida, à audaciosa gesta do herói e fecharemos com sua morte violenta nas mãos de Zeus. Logo depois estamparemos a análise de Paul Diel. O palácio de Hélio era realmente fulgurante: brilhava o ouro, cintilava o marfim, reluziam as portas de prata. “Por dentro e por fora tudo dardejava luz, resplandecia e tremeluzia. Era sempre meiodia; a meia luz sombria nunca turvava a claridade; a escuridão e a noite eram desconhecidas. Muito poucos mortais poderiam resistir durante algum tempo àquele brilho imutável de luz, mas também apenas poucos teriam conseguido descobrir o caminho que levava até lá”. O mortal Faetonte, na ânsia de conhecer o pai, o conseguiu. Escalando árduas e longas encostas, viu-se repentinamente mergulhado na luz. Parou, porque o esplendor do palácio paterno o cegava e queimava. Sentado num trono de esmeraldas, Hélio, que tudo vê, divisou na luz o próprio filho e lhe falou com ternura: “Que vens fazer aqui, que buscas, Faetonte, meu filho e minha glória?” O jovem herói respondeu ofegante: “Luz do imenso universo, Hélio, pai, se me permites assim falar, se minha mãe Clímene não me contou ficções, dá prova de que és verdadeiramente meu pai, para que a incerteza em que vivo, aqui se acabe”. Tendo retirado a coroa de luz incandescente, para que o jovem pudesse se aproximar, abraçou-o longamente, acrescentando: “Tu és meu filho e Clímene disse-te a verdade, mas, para que não duvides de minha palavra, pede-me o que quiseres. Tomo por testemunha de minha promessa aquele por quem juram os deuses, o Estige, o rio infernal, que nunca vi”. Faetonte, sem hesitar, pediu-lhe para reger, por um dia, o Carro do Sol. Arrependeu-se o pai do juramento feito: “Falei temerariamente; confesso que esta é a única coisa que gostaria de te recusar. Perigoso é teu desejo. Pedes algo imenso, muito superior às tuas forças, uma carga pesada em demasia para teus tenros anos. Tu és mortal e imortal é aquilo a que aspiras. Desejas o que ainda não foi concedido aos deuses! O próprio senhor do Olimpo, que lança os raios com sua destra, jamais rolou pelos céus a taça do Sol! De saída, filho, a estrada aérea é tão árdua e íngreme, que os próprios cavalos, frescos, da noite, com grande dificuldade a escalam. A meio do percurso, a altitude é tanta, que o mar e as terras, quando de lá os contemplo, me assustam e o coração se me aperta no peito. E a descida é tão precipitada, e é preciso tão grande firmeza, que lá embaixo, nas ondas, a tremer, Tétis me espera. E pensas que lá em cima encontrarás bosques, cidades de imortais e ricos templos? Viaja-se através de perigos e de monstros. Terás que passar pelo cornígero Touro, pelo arco tessálio do Sagitário, pelas garras do fero Leão, pelas tesouras do Escorpião e pelos curvos braços de Câncer. Nem penses ser fácil governar meus indômitos corcéis, que lançam chamas pela boca e pelas ventas!” Todas as sensatas e realistas ponderações de Hélio de nada valeram. Faetonte ardia em aspirações e perspectivas arrojadas e gloriosas: guiaria em triunfo ginetes fogosos que nem o próprio Zeus seria capaz de controlar... Pela manhãzinha, quando a Aurora de dedos cor-de-rosa abriu as portas purpurinas do rútilo Oriente, quando o tropel das estrelas já ia fugindo da Estrela da manhã e a lua desmaiada deixou o céu inteiramente livre, as Horas prepararam os insofridos corcéis. Refeitos pela ambrosia, os quadrúpedes mastigavam o freio de ouro, inquietos e prontos para a partida. Hélio arrancou do coração alguns conselhos: não uses chicote, meu filho. Controla os animais na rédea, com toda a firmeza de que fores capaz: por si mesmos são ágeis e frenéticos. Ungiu o rosto do filho com um unguento sagrado, para que as chamas não o crestassem, e colocou-lhe na fronte a coroa radiosa. Era o momento da última advertência: não corras rasteiro à terra, nem levantes voo até o céu. Caso contrário, incendiarás o planeta ou abrasarás o céu. Voa no meio e correrás seguro! Faetonte subiu à taça imensa, que mal sentiu o peso juvenil. De pé, ufano, o herói empunhou as rédeas. Os velozes frisões de Hélio, rinchando sôfregos, feriam o chão com os cascos. Tétis, desconhecendo o destino do neto, abriu-lhes toda a amplidão do céu. Os cavalos partiram, rasgando as névoas e ferindo o ar. O peso, todavia, era muito leve e diferente daquele a que estavam habituados a arrastar pelo campo azul do firmamento. Percebendo que não a guiava a mão segura de um deus, a quadriga deixou a rota costumeira e precipitou-se desordenada para baixo e para cima, para a esquerda e para a direita. “O próprio Vento do Oriente foi ultrapassado e deixado para trás, as patas dos cavalos voavam por entre as nuvens baixas, sobre o Oceano, como se atravessassem uma névoa marítima, e, depois sempre para cima, sempre mais para cima, nos ares límpidos, subindo às alturas máximas do céu. De repente, porém, operou-se uma alteração – o carro começou a guinar fortemente para um lado e para o outro; a velocidade era cada vez maior; Faetonte perdera o controle!...” O mísero e incauto jovem empalideceu e um súbito pavor lhe entorpeceu os membros. Seus olhos banhados em luz contemplavam a noite. Que poderia fazer agora? Deixava atrás desi vastos céus e céus mais vastos se desdobravam diante dele. Com as mãos esmorecidas nem segurava nem soltava as rédeas. Estremeceu, ao divisar as feras imensas espetadas no céu! Vendo o horrendo Escorpião alastrar seus braços curvos pelo espaço, gotejando sua peçonha mortal, e contemplando- lhe o serpear hostil da aguçada cauda, deixou, por fim, tombar as rédeas das mãos. Os corcéis dispararam. Abalroaram as estrelas e atropelaram os montes! Alastrou-se um vasto incêndio. Inflamaramse as nuvens e fenderam-se as terras. Arderam cidades, rios, montes e florestas. A Faetonte agora só era dado ver fogo e fumo. Como se se encontrasse no bojo de uma fornalha voraz, o herói foi envolvido dentro da taça por um calor insuportável. Cobriu-o um manto imenso de fumo e de cinzas. A Terra, no entanto, a grande deusa, a mãe de tudo, pávida e convulsa, pediu a Zeus o fim de tão grande catástrofe. O pai dos deuses e dos homens, que vela dia e noite pela estabilidade da ordem cósmica, ouviu-lhe o pranto e a prece. Com a anuência de todos os imortais, subiu ao píncaro do Olimpo e de lá desferiu seu raio certeiro contra o insolente auriga, lançando-o morto no espaço em cataclismo. Extinguiu-se o fogo no próprio fogo! Espantaram-se os indômitos ginetes e, sacudindo o jugo, fizeram em pedaços o Carro de Hélio. Rédeas, bridões e rodas em chamas espalharam-se no vasto espaço incandescente. Como um rasto de estrela cadente, Faetonte desceu de roldão pelo ar. Longe da terra natal, o herói tombou em chamas no caudaloso Erídano7que lhe extinguiu as labaredas e arrefeceu-lhe o corpo mutilado. As náiades da Hespéria condignamente o sepultaram. recolheram-lhe o cadáver No túmulo colocaram a seguinte inscrição: Hic situs est Phaethon, currus auriga paterni Quem si non tenuit, magnis tamen excidit ausis. – Aqui repousa Faetonte, o condutor audaz do carro paterno, ao qual se não pôde guiar, ao menos pereceu e em gesta gloriosa. Por um dia, mergulhado na dor, Hélio teria deixado a terra mergulhada nas trevas, não fora o clarão das labaredas que ainda crepitavam. Suas irmãs, as helíades, choraram-no tanto, que nesse mesmo local, às margens do Erídano, foram metamorfoseadas em choupos, Onde, embora árvores, continuam a chorar e cada lágrima, ao cair, enrijecida pelo sol, transforma-se em âmbar. Às lágrimas e soluços das helíades ajuntaram-se as do jovem rei da Ligúria, Cisne, que, saudoso de seu íntimo amigo Faetonte, encheu de lamentações e gemidos as margens verdejantes, as correntes e as florestas que circundavam o Erídano. Aos poucos, no entanto, se lhe adelgaçou a voz, seus cabelos converteram-se em alvas penas e o corpo todo se emplumou. Ei-lo agora uma ave. Chamou-se a si mesmo cisne. Temeroso dos raios de Zeus, seu voo não alcança as alturas do céu. Prefere a branda fresquidão dos vastos lagos, a água que afoga e extingue os coriscos divinos. 3 O mito de Faetonte talvez possa servir de padrão significativo para as terríveis consequências da hýbris descontrolada, da suprema démesure, da perigosa ultrapassagem do métron. Não é outro o “tom” da análise elaborada por Paul Diel a respeito desse auriga embriagado de descomedimento. “Faetonte é filho de Hélio, deus do sol. Para bem se compreender o sentido dessa filiação, que desvenda o significado oculto do mito, é necessário levar em conta o que representa especificamente o deus Hélio. Todas as qualidades positivas são retratadas por deuses solares. Existem, todavia, na Grécia, duas divindades que simbolizam mais explicitamente o sol: Hélio e Apolo. Ambos o representam, mas sob dois aspectos diferentes. Hélio simboliza o sol real, que preside ao ciclo das estações, à vegetação, à fecundação e à produtividade do solo. O sol, entretanto, não é adorado somente como astro real, que ajuda a provocar a eclosão dos frutos da terra. A simbolização mítica é caracterizada por uma tendência geral em transpor a produtividade exterior e vegetativa para um plano psíquico e moral. Desse modo, os frutos da terra convertem-se no símbolo dos ‘frutos’ da alma, dos desejos e de sua espiritualização-sublimação. Sob esse enfoque, o sol transmuta-se em índice da produtividade da alma, da harmonia das aspirações. Ora, o mito grego retrata a força suprema do espírito e da alma, a verdade e o amor através de duas divindades supremas: Zeus e Hera. Como consequência, miticamente falando, os filhos dessas qualidades excelsas são a sabedoria e a harmonia, estampadas em Atená e Apolo. O fato de ser filho de Hélio deixa entrever que Faetonte não buscará a riqueza espiritual, a harmonia e o saber, mas uma produtividade extrovertida. O mito do filho de Hélio enfocará um tipo de homem bem diferente de Tântalo. Este aspira à fecundidade interior, ao desenvolvimento das potencialidades. Seu erro foi a busca excessiva, sem levar em conta suas forças limitadas. No mitologema de Tântalo, embora o herói tivesse em mira a tarefa essencial, a formação do caráter, a ausência da ajuda simbólica de Apolo e Atená se explica pela carência no herói, no plano psicológico, do saber e da harmonia. Faetonte, ao contrário, por não ser descendente de Apolo, mas de Hélio, não ambiciona a harmonia espiritual, mas a fecundidade exterior, em proveito do mundo. Essa obra exteriorizada, no entanto, será de origem espiritual, uma vez que toda divindade solar, enquanto pai mítico de um homem, configura uma qualidade do espírito. É exatamente isto que se elucidará mais abaixo. Relata o mito que Faetonte, ao saber de sua origem divina, saiu em busca de seu pai Hélio. Quer dizer: no momento em que se lhe despertou o espírito, naquela idade do entusiasmo, quando o adolescente se conscientiza de seus atributos, quando aquele que possui a qualidade positiva configurada pela divindade reconhece pela vez primeira ser seu ‘filho’, é que Faetonte foi à procura do pai. Em outros termos: o herói se apresta em usar de suas qualidades produtivas. Há, todavia, no mito um aspecto significativo: para Faetonte a busca do ‘Pai’ não obedece a motivação alguma interna, mas à indignação contra aqueles que o censuravam de vangloriar-se inoportunamente, dizendo-se ‘filho do Sol’, homem-espírito. O herói visa à ‘produtividade’, tentando comprovar sua identidade. Não é, pois, uma decisão interna, o amor por seu pai-espírito, que lhe fundamenta a decisão, mas esta, desde o início, é movida pela necessidade de brilhar e de impor-se. Faetonte se apressa em tornarse espiritualmente produtivo, a fim de provocar a admiração por sua origem e seus feitos. A vaidade o espreita, desde a partida. A alegria, ao ver o filho, faz que Hélio jure atender-lhe a qualquer pedido. O filho do Sol não julga exagerado solicitar ao pai que lhe permita guiar-lhe o carro, mesmo durante um só dia. Todo o intuito secreto de Faetonte está condensado no simbolismo deste pedido e a tradução da imagem é a chave para se compreender o caráter do herói e, por conseguinte, a explicação psicológica do mito. A solicitação do jovem filho de Clímene não possui a obscuridade analógica habitual dos símbolos, mas parece, à primeira vista, conter a nitidez de uma simples metáfora poética. O sol prodigaliza à terra a fertilidade e a luz, donde, para o herói – filho de uma divindade solar –, fecundar e iluminar o mundo são um desejo natural, mas que não pode ser exaltado. Segundo a dimensão natural de suas qualidades, o filho de Hélio se julga fadado a ser portador da iluminação espiritual. Mas, pelo fato mesmo de ser mortal, ele próprio terá necessidade de receber primeiro a luz, símbolo da verdade. Seu espírito seria, por assim dizer, apenas um espelho da verdade, apto a captar-lhe, quando muito, os raios esparsos, a fim de concentrá-los e refleti-los, isto é, tornar-se fecundo dentro das limitações de seus próprios atributos. Faetonte não aceita, porém, o esforço paciente de elucidação progressiva, que é tarefa própria do espírito humano. Seu pedido expressa o mais insensato dos projetos: alicerçado em suas próprias forças, pretende garantir ao mundo a fonte mesma de toda a luz. Não duvida que possa mostrarse à altura da ‘qualidade’ ideal, cujo símbolo é seu pai, guia do carro solar. A presunção do herói é substituir a seu genitor mítico, figura imortal, porque símbolo do processo ininterrupto de iluminação e de fecundação. Não satisfeito com os limites de ‘filho’ mortal, pretendeu fazer-se de deus, igualando-se à divindade. Aí está, sob novo aspecto, a falta de Tântalo. O pedido de Faetonte configura o excesso de vaidade, cuja vítima, bem mais cedo do que se esperava, foi ele próprio. Esse tipo de vaidade que ambiciona iluminar espiritualmente a vida, quer dizer, combater o erro a ponto de pretender salvar o mundo, é um dos aspectos mais frequentes da exaltação, relativamente ao espírito. À medida que se remexe a psiqué doente até os recônditos da motivação secreta, essa tarefa exaltada pode ser detectada em diversos níveis de intensidade e de disfarce em um bom número de estados de deformação psíquica e encontra sua explosão manifesta em certas formas megalômanas de vaidade delirante. Desse modo, como ficou bem claro no mito de Tântalo, o perigo fundamental será sempre a exaltação insensata no que diz respeito à mais essencial das ‘produções’ no decorrer da formação do caráter, que é a formação da individualidade. De outro lado, é precisamente na medida em que esta circunstância primordial de toda produtividade fecunda se acha negligenciada, que a busca da obra exterior se transforma facilmente em manifestação de vaidade. O desejode Faetonte exprime bem o fato, desde que, em lugar de enfocá-lo sob a luz diáfana da metáfora poética, seja o mesmo analisado em toda a sua profundidade simbólica. O cavalo, já se viu, traduz a impetuosidade dos desejos, tornando-se, destarte, a imagem dos anelos indômitos, um reflexo da imaginação perversa. O cavalo alado, ao revés, retrata a sublimação dos mesmos. Antes de subir no carro do Sol e empunhar as rédeas dos fogosos ginetes, o herói deveria ter aprendido primeiro a dominá-los, a sublimar ele próprio os seus anelos. Somente esta sublimação poderia tê-lo preservado das consequências de seu pedido insensato e perigoso. Apesar das súplicas de Hélio, o filho se recusou peremptoriamente a ouvir as ponderações do deus solar, do espírito. Repugna-lhe submeter-se aos conselhos paternos. Seu escopo é aparecer e realizar obra deslumbrante e desmesuradamente grande. Segundo o mito, Hélio se comprometeu sob juramento; consoante o sentido oculto, a qualidade espiritual, quando obliterada pela exaltação, torna-se impotente face a aspirações absurdas. Faetonte se apossa do Carro, atrela os ginetes e faz sair o sol, a luz, do palácio de ouro de seu pai. Muito rapidamente, porém, tornou-se manifesta sua incapacidade de controlar a quadriga. A taça gigantesca desvia-se da rota. O sol-luz, a verdade que o herói governa, deixa seu caminho pré-fixado. Desgovernada, erra ao acaso. O roteiro traçado por Faetonte é o do erro. A taça, conduzida à deriva, deixa a região sublime e se aproxima em demasia da terra: vale dizer, a verdade de que se faz guia o filho de Hélio está contaminada de desejos terrestres, de impurezas. A luz brilhante transmuta-se em chama devoradora. Em vez de fecundar, abrasa a terra. Zeus, símbolo supremo do espírito, restabelece a ordem. Lançando seu raio contra Faetonte, põe-lhe fecho à obra destruidora. Trata-se de nova simbolização do tema central. O relâmpago iluminador, o esclarecimento espiritual, inflama o homem de maneira sublime, suscita-lhe entusiasmo e alegria produtiva; a afronta ao espírito, porém, a exaltação insensata do atributo espiritual transforma o dom em punição, a claridade em raio. Lançado fora do carro, longe do caminho do espírito-sol, Faetonte é arremessado sobre a terra, envolto nas chamas destruidoras por ele próprio ateadas. No mito do filho de Hélio, cujo tema, consoante seu sentido oculto, é a elaboração vaidosa, que transforma a verdade em erro, o culpado não é o único a ser punido. A chama devoradora se espalha e atinge todos os mortais. Este simbolismo realça um aspecto capital da perversão do espírito. O fogo destruidor traduz o castigo que é inevitavelmente inerente à corrupção vaidosa da verdade, ao delito culposo. O que, na realidade, se difunde é a culpa; e por suas consequências funestas (a chama destruidora) são atingidos quantos participaram do delito do herói (autor do crime), deixando-se influenciar pela falta provocada pelo mesmo. O delito essencial, o erro sobre o sentido da vida (a única de que falam os mitos), disseminado pelo espírito falso, se enraíza na psiqué de seus semelhantes e os ofusca com falsos julgamentos, vale dizer, com razões pseudoespirituais. Esses engodos explodem sob formas insensatas e até mesmo absurdas. O erro separa, exalta subjetivamente, isola as pessoas, ou as reúne, parcialmente, no calor do entusiasmo falso e destrutivo, como é o fanatismo. As razões perversas, vaidosamente justificadas, inconscientemente ocultas e convertidas em culpabilidade recalcada e obsedante, manifestam-se sob a forma de acusações mútuas. Disto resulta o desprezo recíproco, o ódio, a agressão. É, desse modo, que a falta essencial, criada pela exaltação sentimental do falso herói do espírito e por sua incapacidade qualitativa, transforma-se pela terra inteira. Forma-se, destarte, um círculo vicioso, que não é apenas intrapsíquico, mas que abrange igualmente o mundo e suas gerações”8. Acrescente-se, para fecho deste capítulo, que o Carro do Sol simboliza, desde tempos pré-históricos, segundo acentuam Chevalier e Gheerbrant9, o deslocamento do astro ao longo de uma curva que liga, através da abóbada celeste, as duas linhas opostas do horizonte, nascente e poente. Este carro, puxado por cavalos velocíssimos, tornar-se-á o de Hélio, Mitra, Átis, quando estas e outras divindades se identificarem com o deus solar. Para a religião monoteísta judaica, tudo quanto evocasse antigos cultos e ritos solares deveria ser destruído. Quando o piedoso rei Josias “renovou a aliança com o Senhor”, tornou ainda mais radical sua reforma iniciada anteriormente e empreendeu uma verdadeira caçada aos ídolos, altares e santuários consagrados aos deuses dos gentios. O carro e os cavalos do Sol merecem uma referência precisa em 2Rs 23,11: Josias “tirou também os cavalos que os reis de Judá tinham consagrado ao sol, à entrada do templo do Senhor, perto da pousada do eunuco Natanmelec, que estava em Farurim, e queimou as carroças do sol”. Sobrou da catástrofe o carro de Apolo, que, ultimamente, voltou a circular pilotado por novos heróis... 1. ERNOUT, A. & MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. 4. ed. Paris: Klinc-ksieck, 1959, verbete sol. 2. As helíades, quer dizer, filhas de Hélio, eram cinco: Mérope, Hélie, Febe, Etéria, Dioxipe ou Lapécia. 3. Acerca de Hélio e seu filho Faetonte, as informações mais antigas estão na Odisseia, III, 1; X, 138; XII, 127ss; 260ss; 374ss; Hesíodo, Teogonia, 371ss; 957; 986ss; Píndaro, Olímpicas, 7,58; Eurípides, Troianas, 439; Apolodoro, Biblioteca, 1,2,2; 4,3; 6; 9,1; 25; 3,1,2; 14,4; Pausânias, Descrição da Grécia, 1,4,1; 2,3,2; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 5,23,56; Higino, Fábulas, 152, 154, 156, 183, 250; Ovídio, Metamorfoses, 2,1-381; 4,167ss. 4. JUNG, C.G. citado por Patrick MULLAHY. Édipo: Mito e complexo. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 175s [Tradução de Álvaro Cabral]. 5. RANK, Otto. The Trauma of the Birth. London: Routledge and Kegan Paul, 1947, p. 150. 6. HAMILTON, Edith. A Mitologia. 3. edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, p. 187ss [Tradução de Maria Luísa Pinheiro]. 7. Rio mais ou menos fabuloso, localizado no extremo oeste ou norte da Europa, por vezes identificado com o rio Pó. 8. DIEL, Paul. Op. cit., p. 72ss. 9. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 209. 242 CAPÍTULO VIII Os Labdácidas: o Mito de Édipo 1 LABDÁCIDAS1é um termo genérico para designar os descendentes de Lábdaco, antigo rei de Tebas, em grego Λάβδακος (Lábdakos), que se procura explicar etimologicamente pela raiz lep, do verbo λέπειν (lépein), “esfolar”. Segundo uma tradição, o rei de Tebas fora despedaçado pelas Mênades ou Bacantes. O étimo é discutível, e Marie Delcourt sugere outra explicação, conforme se mostrará mais adiante. Para se chegar a Lábdaco e a seu desditoso neto Édipo é preciso recuar um pouco. Como no Vol. II, p. 247ss, já se falou do rapto de Europa por Zeus e da procura desta por seus irmãos, o que levaria à fundação de Tebas, vamos resu1. As fontes mais antigas que se conhecem acerca de cada um dos labdácidas, exceto as que se referem a Édipo, são as que se seguem. AGENOR: Heródoto, Histórias, 2,44; 4,147; 6,46ss; Apolodoro, Biblioteca, 2,1,4; 3,1; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 5,59,lss; Pausânias, Descrição da Grécia, 5,25,12; Ovídio, Metamorfoses, 2,838; 3,51.97.257; Higino, Fábulas, 6; 178; 179. CADMO: Homero, Odisseia, V, 333ss; Hesíodo, Teogonia, 935ss; Píndaro, Píticas, 3,152ss; Olímpicas, 2,38ss; Heródoto, Id., 4,147; Eurípides, Fenícias, 822ss; 930ss; Bacantes, 1330ss; Apolônio de Rodes, Argonáuticas, 4,516ss; Apolodoro Id., 3,1,1; 4,1; 5,2; 5,4ss; Diodoro Sículo, Id., 4,2,lss; 5,47ss; 48; 49; 5,59,2ss; Estrabão, Geografia, 1,46; 7,326; Nono, Dionisíacas, l,140ss; 350ss; Pausânias, Id., 3,1,8; 15,8; 24,3; 4,7,8; 7,2,5; 9,5,lss; 10,1; 12,lss; 16,3ss; 26,3-4; 10,17,4; 35,5; Ovídio, Id., 3,6ss; 4,563ss; Higino, Id., 6; 178; 179. POLIDORO: Hesíodo, Id., 978; Heródoto, Id., 5,59; Eurípides, Fenícias, 8; Bacantes, 43; 213; Apolodoro, Id., 3,4,2; 3,55; Diodoro Sículo, Id., 4,2; 19,53; Nono, Id., 5,210ss; 46,259; Pausânias, Id., 2,6,2; 9,5,3ss; Higino, Id., 179. LÁBDACO: Sófocles, Édipo em Colono, 221; Antígona, 594; Heródoto, Id., 5,59; Eurípides, Fenícias, 8; Apolodoro, Id., 3,5,5; Pausânias, Id., 2,6,2; 9,5,4ss; Higino, Id., 76. LAIO: Sófocles, Édipo Rei, passim; Heródoto, Id., 5,59ss; Eurípides, Fenícias, passim; Apolodoro, Id., 3,5,5; 7ss; Plutarco, Vidas Paralelas, 33; Pausânias, Id., 4,8,8; 9,2,4; 5,6-12; 15; 26,3-4; 9,5,2.3.5.6; 10,5,3-4; Estácio, Tebaida, 7,354ss; Higino, Id., 9; 66; 76. Quadro 8 mir e realçar aqui apenas os dados principais, a fim de que se tenha uma visão global do mitologema. Com o rapto de Europa por Zeus-Touro, Agenor, rei da Fenícia, ignorando a identidade de quem lhe arrebatara a filha, ordenou a seus três filhos mais velhos, Fênix, Cílix e Cadmo que a procurassem por todo o mundo conhecido e que não regressassem sem ela. Os três príncipes iniciaram imediatamente a busca, mas, decorrido algum tempo, percebendo que sua tarefa era inútil e como não pudessem regressar à corte paterna, em Tiro ou Sídon, começaram a fundar colônias, onde se estabeleceram. Cadmo fixou-se na Trácia com sua mãe Telefassa. Morta esta, o herói consultou o oráculo e este lhe ordenou que abandonasse em definitivo a procura da irmã e fundasse uma cidade. Para tanto deveria seguir uma vaca até onde ela caísse de cansaço. Pondo-se a caminho, Cadmo, após atravessar a região da Fócida, encontrou uma vaca, marcada nos flancos com um disco branco, configuração da Lua. Seguiu-a por toda a Beócia e, quando o animal se deitou de fadiga, compreendeu que se cumpria o oráculo. Mandou os companheiros a uma fonte vizinha, consagrada a Ares, em busca de água para as abluções, mas um dragão os matou. O filho de Agenor conseguiu liquidar o monstro e, a conselho de Atená, semeou-lhes os dentes, do que nasceram gigantes ameaçadores, aos quais deu o nome de Spartói, os “Semeados”. Cadmo atirou pedras no meio deles e os gigantes, ignorando quem os provocava, acusaram-se mutuamente e se mataram. Sobreviveram apenas cinco: Equíon (que mais tarde se casou com Agave, filha de Cadmo), Udeu, Ctônio, Hiperenor e Peloro, os quais, juntamente com Cadmo, formarão o núcleo ancestral da aristocracia tebana. A morte do Dragão, símbolo do próprio deus Ares, tinha que ser expiada: Cadmo, futuro rei de Tebas, durante oito anos serviu ao deus como escravo. Terminado o rito iniciático, Zeus lhe deu como esposa Harmonia, filha do mesmo Ares. Desse enlace nasceram Ino (Leucoteia), Agave, Sêmele e Polidoro. Já idosos, Cadmo e Harmonia abandonaram Tebas em condições misteriosas. O trono teria sido ocupado por Polidoro, mas, consoante a tradição mais seguida, Cadmo deixara o reino a seu neto Penteu, filho de Agave e do Spartós Equíon. De qualquer forma, é do casamento de Polidoro e Nicteis (ou Antíope) que nasce Lábdaco, pai de Laio e avô de Édipo. Lábdaco é, através de sua mãe Nicteis ou Antíope, filha de Nicteu, neto de Ctônio, um dos Spartói. Como o futuro rei de Tebas tivesse apenas um ano quando lhe faleceu o pai Polidoro, o trono foi ocupado interinamente por Nicteu. Este, tendo-se matado, seu irmão Lico assumiu o poder, até a maioridade do filho de Nicteis. O reinado de Lábdaco foi marcado por uma guerra sangrenta contra o rei de Atenas, o célebre Pandíon I, pai de Procne e Filomela, em cujo governo Dioniso e Deméter tiveram permissão para ingressar “miticamente” na Ática. Na luta contra Lábdaco, por uma questão de fronteiras, Pandíon, com o precioso auxílio do rei da Trácia, Tereu, desbaratou as tropas tebanas. Como recompensa, Tereu obteve por esposa a filha do rei de Tebas, Procne, cujas desventuras já se narraram no Vol. II, p. 42. Consoante uma tradição conservada por Apolodoro, Lábdaco foi, como Penteu, despedaçado pelas Bacantes, por se ter também oposto à introdução do culto de Dioniso em Tebas. Com a morte prematura de Lábdaco, seu filho Laio, por ser ainda muito jovem, não pôde assumir as rédeas do governo e, mais uma vez, Lico tornou-se regente; mas, dessa feita, por pouco tempo, porque foi assassinado por seus sobrinhos Anfião e Zeto2. Laio, com a morte violenta do tio, fugiu precipitadamente de Tebas e buscou asilo na corte de Pélops, o amaldiçoado filho de Tântalo, consoante se mostrou no Vol. I, p. 89. Laio, todavia, herdeiro não apenas do trono de Tebas, mas sobretudo de algumas mazelas de “caráter religioso” de seus antepassados, particularmente de Cadmo, que matou o Dragão de Ares, e de Lábdaco, que se opôs ao deus do êxtase e do entusiasmo, cometeu grave hamartía na corte de Pélops. Desrespeitando a sagrada hospitalidade, cujo protetor era Zeus, e ofendendo gravemente Hera, guardiã severa dos amores legítimos, raptou o jovem Crisipo, filho de seu hospedeiro. Agindo contrariamente ao κατά τὸ ὀρθόν (katà to orthón), ao que é “justo e legítimo”, para empregar a expressão de Heródoto (1,96), o futuro rei dos Tebanos acabou ferindo os deuses e praticando um amor contra naturam. Miticamente, a pederastia se iniciava na Hélade. Segundo uma variante, Édipo matara conscientemente a seu pai Laio, porque ambos disputavam a preferência do belo filho de Pélops. Este execrou solenemente a Laio, o que, juntamente com a cólera incontida de Hera, teria gerado a maldição dos Labdácidas. Crisipo, envergonhado, matou-se. O reinado de Anfião e Zeto foi um desastre, em função especificamente da hýbris de ambos. Tendo desposado Níobe, filha de Tântalo, Anfião terminou seus dias nas mãos de Apolo, que o liquidou juntamente com os filhos. Conforme uma variante, com a morte dos filhos por Apolo e Ártemis, Anfião enlouquecera e tentara incendiar um templo de Apolo. O deus o atravessou com uma flecha. Quanto a Zeto, por seu vigor físico e violência, causas comuns da ultrapassagem do métron e da hýbris, teve certamente um fim tão ou mais trágico que seu irmão gêmeo, pois que, segundo o mito, morreu de “desgosto pungente” ao saber que seu filho único perecera igualmente às mãos de Apolo. 2 Com o desaparecimento dos usurpadores Anfião e Zeto, Laio finalmente subiu ao trono de Tebas. Segundo a tradição, o novo soberano se teria casado com Epicasta, nome que já aparece na Odisseia, XI, 271ss, como mãe e desditosa esposa de Édipo3. O nome Jocasta, filha de Meneceu, aparece a partir de Sófocles, Édipo Rei, 950ss. Segundo as variantes, os pulmões do mito, Jocasta não foi a primeira esposa de Laio. O rei de Tebas se teria casado em primeiras núpcias com Euricleia, filha de Ecfas, e dela tivera Édipo. Epicasta foi a segunda esposa. Donde, a seguir tal versão, “viva e atuante” no mito, Édipo, após a morte de Laio, desposou a madrasta Epicasta e não sua própria mãe, que aliás já havia falecido... Pelo texto de Homero não consta igualmente que Édipo rasgara os olhos, tivera filhos com Jocasta e fora levado por Antígona para o bosque sagrado das Eumênides, em Atenas. O texto traduzido de Homero mostra ao revés que, morta Epicasta, Édipo continuou a reinar sobre os Cadmeus. Mas todos esses fatos, enfoques e variantes serão comentados mais abaixo, inclusive a união do filho de Laio com a própria mãe. Desejamos, tão somente, mais uma vez, e à guisa de “memento”, observar, como se frisou no Vol. I, cap. I, p. 26, que sempre houve um liame muito forte, na Grécia, entre mito e literatura, já que esta, por motivos que não interessa repisar aqui, tinha por matéria-prima, não raro obrigatória, o mitologema. E como já acentuamos no capítulo supracitado, ao plasmar o material mítico, o poeta ou artista não se pautava unicamente por critérios religiosos, mas obedecia também, e isso é fácil de compreender, a ditames estéticos. As obras de arte, e entre elas as obras literárias, impõem exigências específicas. Muitas vezes, entre narrar um mito, que é uma práxis sagrada, e compor uma obra de arte, ainda que alicerçada no mito, vai uma enorme distância. Mas a redução do mito a uma 'obra literária tem outra consequência no que respeita à documentação mitológica: o mito vive em variantes, e nelas se contém; e a obra de arte de conteúdo mitológico forçosamente reflete apenas uma dessas variantes. Dado o imenso prestígio alcançado pela poesia na Hélade, a versão do poeta, ao narrar o mito, impunha-se à consciência pública: instituía-se dessarte o mito canônico, com abandono das demais variantes, talvez de menor eficácia do ponto de vista artístico, mas nem por isso de menor importância do ponto de vista religioso. E foi isto exatamente o que aconteceu com o mito de Édipo. Dada a beleza da tragédia Édipo Rei e a autoridade olímpica de Sófocles, o mito por ele poetizado passou a ser a cartilha por onde se reza e se psicanalisa! Temos consciência plena de que o mito de Édipo não deixou de existir, por ter sido revestido de arco-íris pelo gênio poético de Sófocles. Não se está acusando ou condenando a obra de arte. Ao contrário: ao passar pela ourivesaria das musas sofocleanas, o mito do filho de Laio tornou-se mais uma pedra preciosa que se engastou no anel urobórico do mitologema de Édipo. Sabemos que mythus idem est, que o mito continua o mesmo, mas, e isto é importante, continua como uma das variantes que o grande vate ateniense privilegiou. Assim, e é o que se irá fazer, não nos basearemos apenas na tragédia Édipo Rei para expor-lhe o mito. Se assim fizéssemos (e é o que mais comumente se vê) seria reduzir o mitologema a uma única variante, por sinal vestida a rigor pela arte incomparável de Sófocles. Dela nos serviremos também, mas encaixaremos igualmente na exposição do mito as demais versões, por certo muito pouco poéticas, mas, por isso mesmo, tão ou mais importantes do que a utilizada e genialmente recriada pelo trágico ateniense. Como acertadamente observou Lévi-Strauss, o mito deve ser definido “pelo conjunto de todas as suas versões”, uma vez que o mesmo se compõe do conjunto de suas variantes4. Laio é, pois, o rei de Tebas e, após a morte da primeira esposa, uniuse a Epicasta. Na versão sofocleana, todavia, encontramo-lo casado com Jocasta. A partir desse momento, o mito de Laio e Jocasta confunde-se com o de Édipo, que está condenado antes mesmo de nascer, ao menos nas tradições anteriores a Sófocles, a matar o pai e desposar a própria mãe. 3 LAIO, em grego Λάιος (Láios), talvez possa se aproximar etimologicamente de λαιός (laiós), “esquerdo”, desajeitado, cambaio. Teria o rei alguma deformação física? O fato é que não apenas a etimologia de Laio, mas também a de Lábdaco, nos interessam muito, porque contribuem para explicar a de Édipo, que nos leva diretamente ao problema da criança exposta. Consoante Marie Delcourt5, a exposição de recém-nascidos tem sua origem num rito que visa à exclusão de seres maléficos, bem como a provas iniciáticas. Esses seres natos ou nascituros são considerados maléficos, porque constituem uma ameaça ao rei, à pólis e à comunidade inteira. Em todo caso, a exposição no mar ou numa montanha, segundo se verá depois, obedece a um ordálio, a um juízo divino: o herói se livra da morte e, de bode expiatório nas origens – exposto que foi para sanar hamartía ancestral –, convertese em salvador de seu povo. É necessário, porém, conforme acentua Delcourt, não reduzir tanto a temática dos mitos de crianças expostas. Na maioria destas o caráter maléfico não aparece ou é introduzido mais tarde com o fito de justificar psicologicamente cada um dos aspectos de que se compõe o mitologema. De um lado, pois, está a criança deformada, que, considerada como maldição, é exposta para conjurar desgraças futuras ou afastar a esterilidade; de outro, o recém-nascido, que, embora perfeito fisicamente, é exposto no mar ou num monte, porque, segundo um oráculo, sua existência ameaçaria o rei ou a cidade. Acrescente-se, por fim, que o tema do mergulho no mar ou da educação na montanha deve remontar a antigas provas iniciáticas, cuja significação mais comum é a introdução do jovem na classe dos adultos. Simbolicamente, a inclusão num cofre ou a exposição na montanha é um rito iniciático que implica um regressus ad uterum, um novo nascimento com nome novo e um acréscimo de poder. O herói salvo, uma vez crescido, assume uma atitude hostil e vitoriosa contra a família que o expôs. Esta ligeira introdução ao longo tema da criança exposta (assunto, aliás, já desenvolvido em parte no Vol. I, p. 89) objetiva ligar etimologicamente Édipo à sua exposição, que, por sinal, é uma espécie de herança. Com efeito, Lábdaco, segundo Delcourt, significaria coxo, pois que seu nome estaria ligado a Labda, mera variante de lambda (l, nome da décima primeira letra do alfabeto grego). Labda, consoante Heródoto, Hist. 5,92, era filha de Anfíon, rei de Tebas, e mãe de Cípselo, tirano de Corinto. Ora, Cípselo é assim chamado por etimologia popular, porque fora exposto numa κυψέλη (kypséle), “cofre, vaso cilíndrico”, denominado mais tarde “o cofre de Cípselo”. Com respeito à etimologia de Labda (Lábdaco) temos uma pista preciosa no Etymologicum Magnum, verbete βλαισός (blaisós), “com os pés voltados para fora”: “labda: cambaio, paralisado: aquele que tem os pés voltados para fora, semelhante à letra L. É por isso que a mulher de Eécion, mãe de Cípselo, rei de Corinto, era chamada Lambda”6. Na realidade, Labda e Lábdaco eram certamente alcunhas, que, pela própria forma, atestam não apenas sua origem popular, mas também designam uma anomalia7. Labda e Lábdaco são, pois, respectivamente, a mãe e o avô de dois recém-nascidos, considerados maléficos mesmo antes do nascimento, e por isso mesmo condenados à morte. Desse modo Labda, Lábdaco, Cípselo e Édipo não seriam nomes, mas cognomes, que designariam, para os dois primeiros, uma deformidade, e, para os dois últimos, um episódio relativo à sua libertação. E era assim, frisa Delcourt, que “os gregos compreendiam e interpretavam K×pselos e Oidípus”. O mito de Cípselo e Édipo, pensa a autora, se origina do hábito de se exporem os recém-nascidos deformados. Mas, acrescenta ela, como ambos são vitoriosos e os antigos não podiam admitir que seus heróis fossem fisicamente deficientes, atribuiu-se o defeito físico maléfico a um antepassado próximo: no caso do rei de Corinto, a Labda, e no do rei de Tebas, a Lábdaco e Laio, cuja etimologia popular traduziria “o esquerdo, o cambaio”. Fica, pois, justificada, ao menos do ponto de vista “religioso e etimológico”, a exposição de Édipo. Voltemos ao casamento de Laio e Jocasta. As tradições arcaicas relativas ao oráculo que anunciava a morte de Laio por Édipo são desconhecidas. A mais antiga delas se encontra em Ésquilo, na tragédia Os Sete contra Tebas, encenada em 476 a.C., bem antes, portanto, de Édipo Rei. Em Os Sete contra Tebas, 745-748, diz-se apenas que “por três vezes, em Pito, seu santuário profético, centro do mundo, Apolo revelara a Laio que ele deveria morrer sem filhos, se quisesse salvar a cidade (Tebas)”. A predição de Delfos nada diz a respeito do casamento de Édipo com Jocasta. Igualmente, em Eurípides, na tragédia Fenícias (408 a.C.?), cujo assunto é o mesmo que em Os Sete contra Tebas, o oráculo pítico prevê a morte de Laio e a luta dos filhos de Édipo pelo reino de Tebas; mas não há referência oracular alguma ao casamento deste com a mãe. Na realidade, em Édipo Rei há dois oráculos: um nos versos 711ss, em que Jocasta narra ao filho e esposo como um “falso oráculo” predissera a Laio que ele seria assassinado pelo próprio filho; e outro nos versos 791ss, em que Édipo diz a Jocasta que o mesmo Febo Apolo lhe vaticinara que ele desposaria a mãe e mataria o pai. Como se observa, a distância entre as duas predições da Pítia é de cerca de vinte e um anos, porquanto a primeira foi feita a Laio, após o nascimento do filho, e a segunda diretamente a Édipo, pouco antes de matar o pai e casar-se com a mãe, tornando-se rei de Tebas. Cronologicamente, o primeiro a reunir os dois vaticínios, superpondo-os anacronicamente e atribuindo-os a uma revelação de Apolo a Laio, mas antes do nascimento de Édipo, foi Nicolau de Damasco (séc. IV d.C.), em cujo Frag. 15 se lê: “O deus diz a Laio que ele teria um filho que o mataria e se casaria com a própria mãe”. Embora ameaçado por três vezes pelo Oráculo de Delfos, conforme se mostrou linhas atrás, Laio assim mesmo resolveu ter um filho com Jocasta. Nascido o menino, o rei, lembrando-se do veto de Apolo, apressou-se em livrar-se do mesmo. Há duas versões bem diferentes na exposição de Édipo. Na primeira, o futuro rei de Tebas é colocado num cofre e lançado ao mar, mas salva-se porque o λάρναξ (lárnaks) chegou a Corinto ou Sicione. Parece ser esta uma das tradições mais antigas, de resto bem atestada na cerâmica, num escólio aos versos 26 e 28 das Fenícias de Eurípides e na Fábula 66 de Higino8. Acrescente-se, além do mais, como faz notar agudamente Delcourt, que a exposição na água deve ser a mais antiga das duas, primeiro porque não é mencionada pelos poetas trágicos; segundo, ela não se presta para explicar o nome do exposto. A exposição sobre um monte, no caso específico de Édipo, tornou-se a preferida, já que, através da mesma, se passou a ter um sinal específico (os pés inchados ou os calcanhares perfurados) para um reconhecimento futuro e um aítion, um motivo, que lhe explicasse o nome. Na segunda, ele é simplesmente abandonado no monte Citerão. Na versão de Sófocles, Édipo Rei, 718s, Laio ligou os pés do menino e mandou expô-lo num monte deserto, que sabemos pela própria tragédia ter sido o Citerão. Curioso é que Sófocles não menciona o motivo da exposição, mas Ésquilo e Eurípides o explicitam. O autor de Os Sete contra Tebas, 742s, fala da falta antiga e Eurípides diz ainda com mais clareza que se trata do amor criminoso de Laio por Crisipo. Em Sófocles, Édipo Rei, 718, Laio amarrou o menino pelos tornozelos antes de mandar expô-lo. Em outras versões a criança tem os calcanhares perfurados por um gancho e os pés atados por uma correia. De qualquer forma, seguindo ainda o raciocínio de Marie Delcourt, “os pés inchados se constituem num absurdo, qualquer que seja o ângulo de análise. Um recém-nascido abandonado no mar ou num monte está sujeito à morte, com os pés amarrados ou livres. Vários gramáticos antigos pressentiram o problema e tentaram solucioná-lo: um escólio ao v. 26 das Fenícias explica que os pais de Édipo o mutilaram, a fim de que o menino não fosse recolhido e educado. Com efeito, na época histórica, pessoas às quais não se podia atribuir qualquer intenção filantrópica recolhiam entre os meninos abandonados os que lhe pareciam perfeitos e robustos, e entre as meninas as que prometiam ser belas”9. Os “pés inchados” ou “furados” até Sófocles jamais serviram de sinal de identificação. Na Odisseia, como se viu, os deuses revelam a Epicasta a identidade do marido, mas não se fala em sinais que levassem a semelhante reconhecimento. A verdade é que somente a partir de Sófocles (Édipo Rei, 10301036) é que surgem as cicatrizes como sinal de reconhecimento e justificativa etimológica. Em versões tardias da tragédia atribui-se o nome de Forbas ao Mensageiro, o pastor de Corinto, que recolhe o filho de Jocasta e mais tarde lhe vai revelar o significado das cicatrizes que trazia nos calcanhares. Vale a pena lembrar uma ponta do diálogo entre o Mensageiro e Édipo: Mensageiro (“Forbas”) – Naquele dia, meu filho, eu fui teu salvador. Édipo – De que desgraça era vítima, quando me recolheste? Mensageiro – As junturas de teus pés poderiam testemunhá-lo. Édipo – Ai de mim! Para que relembrar tão antiga ignomínia? Mensageiro – Fui eu quem soltou os ferros que atravessavam teus pés. Édipo – Certamente carrego desde a infância tão vergonhosa afronta. Mensageiro – A semelhante circunstância deves o nome que tens. (Édipo Rei, 1030-1036) Após Sófocles, Oidípus, “Pé-Inchado” (ou “Pés-Inchados”?), “exibe ainda suas cicatrizes como sinal de reconhecimento em dois resumos, sem indicação de fonte”10. O primeiro é a Fábula 230 do chamado Segundo Mitógrafo do Vaticano, cujo teor é o seguinte: “um dia, quando Édipo se calçava, sua mãe viu-lhe as cicatrizes e, reconhecendo o filho, gemeu desesperadamente”. O segundo é a Fábula 67 de Higino: “O velho Menetes11, que havia exposto Édipo, reconheceu-o como filho de Laio pelas cicatrizes nos tornozelos”. No denominado “Resumo de Pisandro”, de época tardia, Jocasta reconhece primeiro o assassino pelas armas de Laio, e em seguida seu filho Édipo, pelas fraldas e colchetes encontrados com o palafreneiro de Sicione, que salvou o menino, que lá chegara num cofre. Seja como for, a não ser no plano simbólico, o sinal dos pés inchados ou perfurados de Édipo constituem um absurdo em matéria de reconhecimento. Não é possível que Jocasta, após tantos anos de casamento, não tivesse visto os pés deformados do filho e marido! Somente a literatura tardia os viu e valorizou... Mas, como acentua Delcourt, quando um grande artista ou dramaturgo como Sófocles repete um episódio simultaneamente absurdo e supérfluo como este, é que o fato lhe deve ter sido imposto por uma mitopeia anterior12. 4 Criado pelo pastor de Corinto, segundo uma variante, o qual o recebera do pastor de Laio no monte Citerão, ou encontrado por Peribeia junto às praias do mar em Corinto e levado para a corte de seu marido e rei local Pólibo, ou ainda conduzido para a mesma corte pelo pegureiro Forbas, o fato é que Édipo, na maioria das versões, foi criado e educado na corte de Corinto como filho de Pólibo e Mérope (nome de Peribeia na versão de Sófocles, Édipo Rei, 775, 990), que não tinham descendentes. Observe-se, de caminho, que Pólibo em outras versões aparece como rei ora de Corinto, ora de Sicione ou Atédon e ainda de Plateias. Uma infância e adolescência tranquilas prenderam o “futuro” sucessor de Pólibo à corte de Corinto; mas, tão logo atingiu a maioridade, o jovem príncipe, por motivos que variam muito, abandonou seus pais adotivos. A tradição mais antiga é a de que Édipo saíra de Corinto em busca de uns cavalos que haviam sido furtados do reino de seu pai. Mais tarde os trágicos introduziram motivos psicologicamente mais complicados. A mais conhecida é a de Édipo Rei, 779ss: num banquete, um dos convivas, após ingerir muito vinho, chamou-lhe πλαστός (plastós), vale dizer, um filho postiço. Apesar da indignação dos “pais” pelo insulto, Édipo não se conformou e, às escondidas, partiu para Delfos. Em vez de receber da Pítia uma resposta à pergunta que lhe fizera, a sacerdotisa de Apolo o expulsou do templo sagrado, vaticinando-lhe algo terrível: ele estava condenado a matar o pai e unir-se à própria mãe. Não mais regressando a Corinto, por terror de que o oráculo se cumprisse, dirigiu-se, guiado pelos astros, para algum lugar da terra onde jamais se cumprissem as tremendas profecias de Apolo... Foi exatamente nesse percurso para algum lugar, ao atingir um trívio (Édipo Rei, 1398s) na encruzilhada de Pótnias, marco de separação entre Delfos e Dáulis, que Édipo se encontrou com uma carruagem que lhe vinha em sentido contrário. Tratava-se de Laio com sua comitiva. Ao todo, de acordo com o texto de Édipo Rei, 152, cinco pessoas: o rei, o arauto, um cocheiro e dois escravos. O cocheiro e o próprio rei, no relato de Édipo, quiseram afastá-lo do caminho, com o emprego de violência (πρός βίαν [pròs bían], diz o texto, Édipo Rei, 805]. Como se estivesse fora de si, tomado pela cólera ( διὀργῆς [di’orguês], Édipo Rei, 807), Édipo, usando seu terceiro pé, o bastão, o que permitia a um deformado ficar “em pé”, feriu mortalmente o cocheiro; o rei, que estava à espreita, golpeou-o duas vezes na cabeça com o aguilhão. A reação foi instantânea: com um só golpe de bastão o herói prostrou a Laio. Em seguida liquidou os demais componentes da comitiva real... Isto ele pensava! Um dos escravos, exatamente aquele que outrora o conduzira ao Citerão, salvou-se com a fuga. Jocasta recebeu por ele a notícia da morte do esposo, mas recebeu-a totalmente incorreta e mentirosa: o rei e três de seus acompanhantes haviam sido mortos por salteadores. O escravo que fugiu, permitindo que um forasteiro matasse a todos os outros da comitiva, mentiu por vergonha, adulterando o acidente; e, para ocultar sua covardia, afirmou que a carruagem fora atacada por bandoleiros. Seus recalques pesaram-lhe tanto, que suplicou à rainha que o mandasse para o campo, a cuidar do rebanho. Existe uma variante veiculada por Nicolau de Damasco, talvez no Frag. 15, segundo a qual Laio partira para Delfos em companhia de Epicasta e encontrou casualmente em Orcômeno a Édipo, que vinha de Corinto, de onde partira ἐπὶ ζήτησιν ἵππων (epì dzétesin híppon), a fim de recuperar os cavalos furtados a Pólibo. Os dois viajantes disputaram a passagem. O “filho de Pólibo” matou o arauto e a Laio, que veio em socorro de seu servidor, mas poupou a Epicasta. Em seguida, o príncipe se escondeu nas montanhas. A rainha enterrou ali mesmo os mortos e retornou a Tebas. Édipo, após algum tempo, seguiu de Orcômeno para Corinto, entregando a “seu pai” a carruagem e os animais pertencentes a Laio. O restante do mito segue a versão tradicional. Uma parte do Oráculo de Delfos estava cumprida. Faltava a segunda para formar o σύμβολο (s×mbolon), o “encaixe”. Antes, porém, de se prosseguir com Édipo em sua busca, voltemos a Tebas. Lá deixamos o casal Laio-Jocasta. O rei já recebeu seu quinhão, mas vamos ver por que se dirigia ao Oráculo de Delfos e pela quarta vez. Tudo parecia tranquilo em Tebas, após a “morte” de Édipo, quando repentinamente a cidade é assolada por um monstro, a Esfinge, que se postara às portas de Tebas e devorava a quantos não lhe decifrassem o enigma, ou, segundo outros, dois enigmas. Como a flor da juventude tebana estivesse sendo destruída diariamente pelo flagelo, Laio resolveu ir a Delfos para saber como livrar a cidade de tamanha desgraça. Foi essa viagem que ensejou o encontro mortal com o filho outrora exposto. Antes de retornar em definitivo a Édipo, teremos que resolver, ou melhor, completar o comentário a dois problemas sérios: a justa mortal entre Laio e seu filho e a vitória deste sobre a Esfinge. Acerca da luta entre o rei de Tebas e Édipo, isto é, entre o filho e o velho rei pela posse do trono, já se falou bastante amplamente no Vol. I, p. 86-88. Vamos, por agora, apenas reiterar as ideias centrais e ampliar um pouco as que nos parecem mais significativas. O mesmo faremos ao abordar a vitória do herói sobre a Esfinge, o casamento com Jocasta e o desfecho do mito no Édipo em Colono. O mito de Édipo como um todo simbólico será focalizado no fim do presente capítulo. Nossos guias aqui e lá serão particularmente Sófocles, M.A. Potter, Marie Delcourt e as variantes mais significativas do mitologema. Consoante a pesquisadora belga, uma vez mandado expor pelo pai, Édipo certamente haveria de desforrar-se do mesmo. Os poetas, no entanto, e, acrescentemos, sobretudo os trágicos, disfarçaram o caráter vingativo do acontecimento: primeiro, lançaram pai e filho numa luta, numa justa, sem se conhecerem; segundo, minimizaram a responsabilidade do herói no momento do golpe fatal, uma vez que Laio o agredira primeiro. Além do mais, insiste a autora, os poetas “poderiam ter ido ainda longe nesse mascaramento, fazendo com que Édipo, por exemplo, matasse a Laio, como Perseu a Acrísio, isto é, de maneira desastrada e inteiramente involuntária. Tal fato não diminuiria a responsabilidade do herói em face dos deuses, porque para estes o que conta não é a intenção criminosa, mas o ato em si. De outro lado, se isto acontecesse, o encadeamento psicológico dos acontecimentos seria mais facilmente admitido. Ora, se os poetas não agiram assim, é porque o tema do parricídio lhes foi imposto por uma tradição mais antiga, que estampava entre pai e filho uma hostilidade bem mais forte do que aquela que subsiste nas obras do século V a.C. Semelhante conflito não se encaixa na moldura dos mitos de exposição. Provém, isto sim, de um contexto mítico diferente, a luta entre Pai e Filho”13. Esse antagonismo está presente em inúmeros mitologemas de todas as culturas. Potter, aliás citado por Delcourt, numa obra de longo fôlego14, tentou encontrar um denominador comum para essa rivalidade secular. Segundo o pesquisador britânico, esta se origina de costumes primitivos: exogamia, matriarcado, poliandria, poligamia, liberdade sexual pré-matrimonial e divórcio, que, uma vez deixados para trás, reaparecem como extraordinários e se inscrevem num contexto histórico. Desse modo, pai e filho podem defrontar-se incognitamente. Só após a morte de um deles é que o sobrevivente, por meio de algum sinal, toma conhecimento da identidade do adversário. Assim, as circunstâncias acessórias são amplamente analisadas pelos mitógrafos, com a finalidade de tornar verossímil a criação do filho longe do pai. Consoante Potter, é normalmente este que se afasta da mulher grávida, tornando-se mais raro que se separe a criança quando ainda muito pequena. A seguir tal esquema, a história tem seu ponto de partida no próprio âmbito familiar. Desse modo, a luta que termina com a morte do pai ou do filho resulta simplesmente de um estado social anterior àquele que foi posteriormente elaborado no seio da família. Embora concorde em parte com a argumentação de Potter, Delcourt acha que o núcleo do problema foi omitido: o conflito de gerações, a cujo respeito falamos no supracitado Capítulo V do Vol. I, p. 86-88. Em síntese, o problema para Delcourt se equaciona da seguinte maneira: o velho antagonismo, quer seja entre pai e filho, avô e neto ou entre pai e pretendente à mão da princesa é sempre uma luta pelo poder, cujo desfecho é invariavelmente a vitória do mais jovem. Essa disputa entre pai e filho, ao que tudo indica, fazia parte de um rito, o combate de morte que, nas sociedades primitivas, permitia ao jovem rei suceder ao velho rei. Mas, desde que a sucessão patrilinear se tornou a norma vigente, surgiu o contexto familiar com todos os problemas morais que lhe são inerentes. Destarte, na justa de morte que se travava pela sucessão, todas as atenuantes possíveis foram introduzidas, a fim de mitigar o impacto dos combates primitivos. Jamais um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. Se Édipo mata a Laio e Telégono a Ulisses, a ação é simplesmente o resultado do cumprimento de um oráculo. No caso específico de Édipo, os trágicos, julgando que a atenuante oráculo era insuficiente, transformaram a morte de Laio num acidente de caminho. Desse modo, o parricídio ou é substituído por um simples destronamento, ou é realizado, mas como resultante de um erro, embora se tenha o respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, porém, os poetas evitam colocar em cena o mais horrendo dos crimes aos olhos da patriarcal sociedade grega. A despeito, no entanto, de seu horror pelo parricídio, os trágicos tiveram muitas vezes que tratar em público de uma hostilidade de fato entre homens de gerações diferentes, o que patenteia a importância que possuíam a sucessão por morte na pré- história grega e o peso das velhas tradições. Os testemunhos mais curiosos desse rito arcaico se encontram nas teogonias, de onde a morte está ausente porque os deuses eram imortais, mas nas quais há sangue, mutilação e violência, conforme tentamos mostrar nas p. 200-203 e 354-356 do Vol. I. A luta de morte entre o velho e o novo rei reflete o simbolismo da fecundação. Em verdade, um rei envelhecido já é, de certo modo, um soberano deposto, pois a função do rei, por ser ele de origem divina, é fecundar e manter viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor físico, ou não mais funcionando a força mágica, o rei terá que ceder seu posto a um jovem capaz de manter acesa a chama da fecundação e da fertilidade dos campos, uma vez que, num plano mágico, o poder fecundador do monarca está ligado à fertilidade da terra. Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A razão, repita-se, é de ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la à natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei. Eis, em síntese, a visão, a leitura deste mitema por parte de M.-A. Potter e Marie Delcourt. Com semelhante enfoque, que aliás é lógico do ponto de vista da autora, ela aproveita para discordar de Sigmund Freud e dizer que o método de abordagem do mito de Édipo por parte do pai da psicanálise é inteiramente diverso daquele de Potter. Enquanto este estuda os episódios periféricos do mitologema, o psiquiatra austríaco se coloca de cheio e de imediato no coração do problema, que é o conflito. Para uma ideia mais clara da extensão e profundidade das consequências de semelhante conflito, passemos em revista o que Freud tem a dizer a este respeito. “Se para os modernos o Édipo Rei tem o mesmo fascínio que para os contemporâneos de Sófocles, o fato decorre não do contraste entre o destino e a vontade humana, mas da natureza toda particular do material temático revelador dessa oposição. Talvez em nosso íntimo se faça ouvir uma voz que nos manda aceitar o poder arrebatador do destino em Édipo, poder que não nos comove em tragédias outras como Die Ahnfrau15. Haveria de fato, na trama de Édipo, um motivo capaz de explicar a força daquele comando: somos levados a imaginar que a sina de Édipo poderia ter sido a nossa, e que a maldição do oráculo recaísse sobre nós. É possível que o primeiro impulso sexual da criança se dirija para a mãe, como para o pai se volta o primeiro sentimento de ódio, conforme atestam os sonhos. Édipo, que mata o pai e desposa a mãe, realiza um dos sonhos de nossa infância. Mas nós outros, mais felizes do que ele, na medida em que não nos tornamos neuróticos, logramos desviar do alvo materno os impulsos sexuais e nos libertamos do ciúme em relação ao pai. A nós adultos nos repele o confronto com uma personagem que realizou um desejo interdito, mas que foi nosso na infância; e tal repulsa se faz com o mesmo ímpeto com que foram recalcados os anseios infantis. O poeta, desvendando a falta cometida por Édipo, nos faz voltar os olhos para o nosso íntimo e reconhecer os impulsos, que sobreexistem, ainda que recalcados. E o contraste na fala do coro nos atinge, fere o nosso orgulho e abala as certezas que acalentamos desde a infância: ‘Eis Édipo, que decifrou os famosos enigmas, poderoso e invejado de todos. Em que terrível abismo de infortúnio sucumbiu!’ Como o próprio Édipo, vivemos inscientes dos desejos que ferem nossas convicções éticas, aos quais nos sujeita a natureza. Conhecendo-os, preferimos apagar da memória as cenas de nossa infância”16. Comentando essa passagem de Freud, acrescenta Erich Fromm: “A concepção do Complexo de Édipo, tão magnificamente apresentada por Freud, tornou-se uma das pedras angulares de seu sistema psicológico. Aí está, segundo ele, a chave de uma autêntica compreensão da história e da evolução da religião e da ética. Assegurava que o Complexo de Édipo constitui o mecanismo fundamental do desenvolvimento da criança, e que nele estão a causa do desenvolvimento patológico e o ‘cerne das neuroses’. A referência aqui é ao mito de Édipo, tal como o apresenta a tragédia de Sófocles Édipo Rei”17. Carl Gustav Jung, sem negar a teoria do Complexo de Édipo, deulhe outra dimensão. “Embora reconhecendo o muito que devia a Freud”, Jung recusou-se a aceitar in totum a importância exclusiva que o pai da psicanálise atribuía ao trauma infantil, à preponderância da sexualidade ou à universalização de suas implicações psicológicas. Na realidade, a diferença entre as concepções junguiana e freudiana do Complexo de Édipo decorre, entre outros fatores, da revisão da teoria da libido. Vejamos o que nos diz Mullahy ao tratar dessa revisão: “Em The Psychology of the Unconscious, surgida em 1912, Jung advoga uma completa revisão do conceito de libido. Uma visão ‘descritiva’ ou freudiana é posta em confronto com uma interpretação ‘genética’ ou junguiana. Pelo prisma descritivo, o instinto sexual é apenas um entre muitos, porém dotado de caráter especial. Neste sentido, a libido pode ser ‘deslocada’; e, quando represada, é capaz de refluir para outros canais. Os instintos não sexuais podem receber ‘afluxos’ da libido. Pela interpretação ‘genética’ considera-se que os múltiplos instintos, inclusive o sexual, são oriundos de uma como unidade, a ‘libido primordial’. A teoria da evolução sustenta que um semnúmero de funções complexas, hoje destituídas de qualquer caráter sexual, eram originalmente derivações do impulso geral de propagação da espécie. Na ascensão ao longo da escala zoológica ocorreu um importante desvio de energia do instinto de procriação. Assim, por exemplo, uma parte da energia despendida na produção de óvulos e de esperma foi ‘transposta’ para a criação de mecanismos de atração e proteção da prole. Tais mecanismos mantêm-se graças a uma libido diferenciada especial. Classificar de sexual esta energia deslocada e ‘dessexualizada’ seria tão impróprio quanto pretender que a catedral de Colônia, por exemplo, seja uma ‘formação mineralógica’ só porque se utilizaram pedras em sua construção”18. E mais adiante acrescenta que, “tendo chegado a tal conceito de libido, Jung rejeita categoricamente a ideia de que atividades tais como a sucção do seio materno tenham qualquer caráter sexual. Em vez disso, sustenta que durante a lactância só ocorre a função nutritiva, que a um tempo proporciona alimento e prazer. E posto que o sugar o seio materno proporciona satisfação e prazer, é petição de princípio afirmar-se que a sucção tenha caráter sexual. A experiência do prazer, qualquer que seja ele, não é sinônima de sexualidade ou de prazer sexual. Se supusermos que o sexo e a fome coexistem lado a lado, estaremos projetando a psicologia dos adultos na vida mental e na experiência da criança. E se existe algum instinto sexual nessa quadra da vida, deve tratar-se sem dúvida de um instinto embrionário. Afirmar que o impulso do prazer tem caráter sexual equivale a dizer que a fome é também um desejo sexual só porque ‘busca’ o prazer através da satisfação”19. Insistindo em que a sexualidade do inconsciente é tão somente um símbolo, e que sua referência é prospectiva e não retrospectiva, Jung não atribui uma significação muito grande ao incesto como tal. Refere ele que, “em princípio, a coabitação ‘com uma velha’ dificilmente seria preferida às relações sexuais com uma mulher jovem. A mãe só psicologicamente parece ter adquirido significação incestuosa”20. A base mesma do desejo incestuoso tem sua origem no anelo de regredir à infância, ou seja, de retornar ao aconchego da proteção paterna e confundir-se com o organismo materno para voltar a nascer. Assim, se a um objetivo real “retirarmos” a libido sem nenhuma compensação “real”, isto é, sem nada oferecer que ocupe o lugar da libido – processo esse que Jung chama de introversão –, as consequências serão graves e inevitáveis para o indivíduo. A libido, uma vez recalcada, irá reativar formas prematuras de adaptação à vida. E o adulto, dessa forma, não irá necessariamente encontrar muitas dificuldades na vida antes que sejam despertadas as suas mais antigas, inigualadas e imperecíveis recordações infantis: a primeira e fundamental relação por ele experimentada com respeito aos pais. Afirma-se ainda que a religião organizada oferece uma reanimação regressiva e sistematizada da imagem dos pais, ao mesmo tempo proporcionando uma paz e proteção cuja origem está na experiência pregressa com os pais. A par disso, os sentimentos místicos religiosos envolvem vivências e recordações inconscientes aureoladas de ternura que remontam à primeira infância. O fato de a Escola de Zurique não atribuir ao incesto um significado especial, como o fez a Escola de Viena, ou de reinterpretá-lo, não quer dizer que Jung não o aceite. Muito pelo contrário, ele insiste em que não abandonamos o desejo incestuoso. “Na religião”, diz ele, “e através dos símbolos religiosos, cometemos inconscientemente o incesto. A religião já não representa mais um ideal ético; seus símbolos, ritos e cerimônias consubstanciam uma transformação inconsciente do desejo de incesto. Céu e terra convertem-se em pai e mãe. O povo existente na terra aparece como filhos, irmãos e irmãs. E assim permanecemos crianças e satisfazemos, sem o saber, os nossos anseios incestuosos. A humanidade não se conforma, sem renitência, em ser despojada da certeza esperançosa da infância, quando as pessoas vivem como apêndices dos pais, inconsciente e instintivamente, sem noção consciente do eu. O homem também reagiu com profunda animosidade à interrupção brutal da harmonia que caracteriza a existência animal, na qual não vigoram interdições morais de qualquer espécie. E tal interrupção foi marcada, entre outras coisas, pela proibição do incesto e pelas leis do casamento”21. Eis, em síntese, o que pensa Jung sobre o incesto. Não se trata, portanto, na psicologia analítica junguiana, de se negar o Complexo de Édipo, mas de atribuir-lhe uma nova dimensão. Já Erich Fromm é por demais severo no julgamento da teoria freudiana. Indaga ele se Freud “teria razão ao sustentar que o mito (o de Édipo Rei na versão de Sófocles) confirma a tese de que todo menino acalente desejos incestuosos inconscientes, com o corolário do ódio ao pai, de modo a confirmar-se a teoria e justificar-se a denominação de Complexo de Édipo. Um exame mais detido da questão, no entanto, levanta algumas dúvidas sobre o postulado freudiano. A questão mais pertinente é a seguinte: sendo justa a interpretação freudiana, seria de esperar que o mito nos dissesse que Édipo encontrou Jocasta sem a saber sua mãe, que se tomou de amores por ela e em seguida matou a quem desconhecia ser o próprio pai. Mas o mito nada revela nesse sentido, nem nos fornece qualquer indicação de que Édipo tenha sido atraído por Jocasta ou que por ela se haja apaixonado. A única razão apontada para o casamento de Édipo e Jocasta é que a rainha, por assim dizer, estava ligada ao trono. Será lícito, portanto, admitir que um mito cujo tema central é a relação incestuosa entre mãe e filho omita totalmente o elemento de atração que deveria aproximar os dois protagonistas? De todos os pontos é esse o mais importante, sobretudo se nos lembrarmos que, nas versões mais antigas do oráculo, a predição do casamento de Édipo só aparece mencionada uma única vez: na versão de Nicolau de Damasco, que no parecer de Karl Robert tem por base uma fonte relativamente recente. Ademais, Édipo é descrito como o herói intrépido e sábio que se converte em benfeitor de Tebas. Como entender que esse mesmo Édipo pudesse cometer o que aos olhos de seus contemporâneos era o mais odioso dos crimes? Tem-se respondido que a essência mesma da concepção grega de tragédia está em que os fortes e os poderosos são de súbito abatidos pelo infortúnio. Resta examinar se a presente interpretação é satisfatória ou se outra melhor se nos oferece. A questão que acabamos de examinar é suscitada por uma meditação sobre o Édipo Rei. Se limitarmos o nosso exame a apenas essa tragédia, sem levar em conta as duas outras peças da trilogia de Sófocles – Édipo em Colonoe Antígona–, não chegaremos a qualquer resposta decisiva. Mas pelo menos nos será possível formular legitimamente uma hipótese: a de que o mito pode ser entendido não como o símbolo do amor incestuoso entre mãe e filho, mas como símbolo da revolta do filho contra a autoridade paterna na família patriarcal; e que o enlace de Édipo e Jocasta vale apenas como elemento secundário, como indicação da vitória do filho que, ao assumir o lugar do pai, assume também todas as prerrogativas paternas (grifos na presente transcrição). A validade desta hipótese pode ser comprovada por um estudo do mito de Édipo em suas múltiplas versões, e particularmente na versão apresentada por Sófocles nas duas outras peças que perfazem a trilogia: Édipo em Colono e Antígona”22. Prosseguindo em sua análise do mito de Édipo em sua crítica à teoria freudiana do Complexo de Édipo, mas agora com base na “trilogia”, Erich Fromm argumenta que o tema fundamental nas três tragédias é o conflito entre pai e filho, devendo-se, por isso mesmo, descartar a interpretação freudiana de que o antagonismo entre ambos em Édipo Rei seja a rivalidade inconsciente provocada pelos “anelos incestuosos de Édipo”. Com efeito, se em Édipo Rei este mata a Laio, que tentara tirar-lhe a vida; se em Édipo em Colono o mesmo Édipo dá livre curso a seu ódio e rancor contra os filhos Etéocles e Polinice; se em Antígona está presente o conflito entre Hêmon e seu pai Creonte; se não existe nenhum vislumbre de incesto entre os filhos de Édipo e Jocasta e entre Hêmon e sua mãe Eurídice, deve-se concluir que também em Édipo Rei o verdadeiro problema é a controvérsia entre pai e filho, e não o incesto. Aplicando à sua análise a tese brilhante de Johann Jakob Bachofen, Das Mutterrecht, “O Matriarcado”, em que se estuda o matriarcado como força político-social da ginecocracia, isto é, do poder senhorial feminino, Fromm infere que a hostilidade pai-filho, que é realmente uma constante na “trilogia” sofocleana, deve ser compreendida como uma investida da derrotada ordem matriarcal, representada por Édipo, Hêmon, Antígona..., contra a vitoriosa sociedade patriarcal, alicerçada em Laio, Jocasta, Creonte... Personagens claramente ligadas às deusas-mães ctônias, aos lugares a estas consagrados, como o santuário de Deméter na cidade beócia de Eteono, onde havia igualmente um santuário dedicado a Édipo; ao bosque sagrado das Erínias, agora convertidas em Eumênides, em Colono, onde por sinal Édipo desaparecerá tragado pela Terra-Mãe; e ainda à caverna, símbolo do útero materno, aonde Antígona foi lançada viva. Não há dúvida de que a segunda parte do comentário de Fromm está correta quando conclui com Bachofen que o antagonismo e a hostilidade entre pai e filho (que podem ser igualmente entre avô e neto, como entre Acrísio e Perseu) devem ser entendidos como um conflito de gerações, como a luta entre o velho e o novo rei, e sobretudo como uma contestação do matriarcado agonizante pelo patriarcado vitorioso. Também aplicamos esta análise à trilogia esquiliana Orestia e à “trilogia” de Sófocles acima citada, aliás com base em Bachofen e no próprio Erich Fromm23. Este é, igualmente, o ponto de vista da erudita Marie Delcourt, conforme vimos expondo. Esta é mais uma leitura entre as muitas que se podem fazer do Édipo Rei, vale dizer, apenas uma das possíveis interpretações do mito na tragédia, e não uma análise psicológica. Conrad Stein, que faz preceder a obra de Delcourt, Oedipe ou la Légende du conquérant, de um estudo sobre o Édipo Rei segundo Freud, fala com muita argúcia da “subordinação da coisa literária à coisa analítica”24, já que se está fazendo uma análise psicológica, no caso elaborada por Freud. Parece que Fromm confundiu as duas coisas. No tocante à primeira parte da apreciação do mesmo autor a respeito do Complexo de Édipo, há uma pergunta que é considerada por ele como muito significativa. Trata-se, o que é verdade, da ausência total, no mito, de uma atração de Édipo por Jocasta: se a interpretação de Freud fosse correta, como explicar que o herói se apaixonou pela rainha de Tebas sem saber que a mesma era sua mãe? Para se responder a esta pergunta basta que se faça do mito uma leitura sincrônica. Desaparecendo a ideia de tempo linear, o mito surgirá como uma totalidade e, admitindo-se que “os primeiros impulsos sexuais sejam dirigidos à mãe”, teremos um “Édipo permanente”. Além do mais, Jocasta figura na análise psicológica como um τόπος συμβολικός (topos symbolikós), como um “lugar simbólico”, o que, de resto, neutraliza outra observação sem muito sentido: a de que o herói, vencedor da Esfinge, teria preferido uma jovem a uma mulher já meio idosa... Feito este corte, aliás um pouco longo, mas necessário para se posicionarem divergências e convergências no tocante ao conflito pai-filho e suas consequências, voltemos à argumentação de Delcourt. Opondo-se radicalmente à teoria freudiana, a pesquisadora belga vai bastante além: insurge-se contra a tese que postula para o mito uma elaboração inconsciente. Talvez se possa ver em semelhante atitude uma reação contra a tendência invasora e a popularidade crescente da interpretação psicanalítica em matéria de mitologia. Suas afirmações, nesse sentido, são contundentes: “Seja-me permitido dizer, por agora, que, se as tendências psíquicas fizeram que se fixassem certos temas míticos, por lhes ter dado vivacidade e uma popularidade excepcionais, eu não acho que essas tendências psíquicas os tenham criado. Em segundo lugar, em vez de insistir acerca do ciume sexual do menino, julgo que se deveria dar ênfase à impaciência com que o filho adulto suporta a tutela de um pai envelhecido. A hostilidade entre ambos me parece muitas vezes provocada menos por uma libido recalcada do que pela vontade de governar. Se isto é correto, temos o direito de associar ao mito de Édipo outros contos, como o de Pélops, em que um pai luta contra o pretendente de sua filha. E o tema central, no caso em pauta, não é mais a justa entre pai e filho, mas um conflito de gerações”25. Quando, mais tarde, a temática penetrou no âmbito da família organizada, criaram-se todas as atenuantes possíveis para transportar o antagonismo entre pai e filho num duelo de desconhecidos: a criança fora exposta e a morte do pai passou, por isso mesmo, a ter o respaldo de um oráculo... Já é tempo, entretanto, de retomarmos com Édipo a sua (ou nossa?) caminhada fatídica. 5 Temendo que a previsão da Pítia se cumprisse, horrorizado com a ideia de “matar o pai” e se unir à própria mãe, por via das dúvidas, “o filho de Pólibo e Peribeia” (Mérope, segundo Sófocles) resolveu não mais regressar a Corinto e tomou resolutamente o caminho de Tebas. Esta, no momento, estava assolada por um grande flagelo. Um monstro, a Esfinge, postada no monte Fíquion, às portas da cidade, devorava a quantos não lhe decifrassem o enigma, que mais tarde se transformou em dois enigmas, corno se verá, embora só um tenha sido proposto a Édipo. Muitos jovens tebanos, inclusive Hêmon, filho de Creonte, irmão de Jocasta e regente do trono desde a morte de Laio, já haviam servido de pasto à “cruel cantora”, assim chamada não propriamente porque formulasse os enigmas em versos hexâmetros, mas por ser uma alma-pássaro, segundo se mostrou no Vol. I, p. 260, ela cantava para encantar. A respeito da Esfinge já se disse o suficiente no Vol. I, p. 258-266. Ampliaremos um ou outro aspecto e enfatizaremos unicamente alguns dados, para que se possa dar unidade ao mitema. Como se viu no supracitado Vol. I, p. 258, houve uma aproximação devida à etimologia popular entre a Fix hesiódica e “tebana” e a Esfinge. É que, a par de Φίξ (Phíks), Fix, parece ter existido uma forma Σφίξ (Sphíks), Sfix, que, muito cedo, por etimologia popular, à base da simples sonoridade, passou a fazer parte da família de σφιγγειν (sphínguein), “envolver, apertar, comprimir, sufocar”, donde o substantivo Σφίγξ (Sphínks), Esfinge26. Esta aproximação “etimológica” contribuiu muito para fazer da Esfinge um monstro opressor, um pesadelo, um íncubo, função que complementa sua atribuição primitiva que era de alma penada. Consoante Marie Delcourt, o ser mítico (monstro feminino com rosto e, por vezes, seios de mulher, peito, patas e cauda de leão e dotado de asas) que os gregos denominaram Esfinge, foi por eles criado com base em duas determinações superpostas: a realidade fisiológica, isto é, o pesadelo opressor, e o espírito religioso, quer dizer, a crença nas almas dos mortos representadas com asas. Estas duas concepções acabaram por fundir-se, uma vez que possuíam e ainda possuem certos aspectos comuns, principalmente o caráter erótico e a ideia de que, quando se dominam os pesadelos, os íncubos e fantasmas, o vencedor recebe, como dádivas dos mesmos, tesouros, talismãs, reinos e uma consorte real. A Esfinge é, pois, a junção de dois aspectos: o pesadelo opressor e o terror infundido pelas almas dos mortos. Na realidade, a Esfinge pertence simultaneamente a duas categorias de seres, que correspondem a dois enfoques diferentes: irmã de Efialtes, o monstro é um pesadelo, um demônio opressor; irmã das Sereias, a “cruel cantora” é uma alma penada. Com efeito, Sereias, Queres, Erínias, Harpias, as Aves do Lago de Estinfalo... são, em princípio, almas dos mortos. Assim como existem várias Sereias, teria havido várias Esfinges. O mito de Édipo, no entanto, privilegiou de tal forma uma delas, que as demais caíram no esquecimento. E, por isso mesmo, graças à literatura, todas as imagens mais ou menos diferentes, relativas à Esfinge, cristalizaram-se em torno da mulherleão alada... Pois bem, todos esses seres possuem um traço comum: são ávidos de sangue e de prazer erótico. Nos monumentos mais recentes, todavia, a Esfinge aparece sempre associada a Édipo, uma vez que, nos mais antigos, segundo se mostrou na mesma p. 259s do Vol. I, ela surge sempre como demônio devorador, erótico e opressor. Foi graças à literatura que a “cruel cantora” perdeu seu caráter de íncubo. Uma nota da Suda, no entanto, uma passagem de Os Sete contra Tebas de Ésquilo e uma referência de Pausânias ainda nos mostram alguns vestígios do antigo monstro erótico opressor: na Suda, verbete Μεγαρικαὶ σφίγγειν (Megarikaì sphíngues), “Esfinges megáricas”, lê-se: “Esfinges megáricas: é assim que são chamados os prostituídos. Daí talvez o nome de esfinctes com que são designados os efeminados”. Na tragédia de Ésquilo Os Sete contra Tebas, 541-543, assim é descrito o escudo de Partenopeu (um dos sete chefes) que estampava uma Esfinge: A Esfinge devoradora de carne crua, cuja imagem, cinzelada em relevo e fixada por pregos, brilha intensamente: a Fix tem sob ela um dos Cadmeus. Devoradora e sob ela definem perfeitamente o caráter antigo do monstro: devorador e íncubo. Pausânias, na Descrição da Grécia, 5,11,2, comentando uma composição que decorava os pés do trono de Zeus em Olímpia, assim se expressa: “sob cada um dos pés dianteiros (do trono de Zeus) jazem crianças tebanas arrebatadas pelas Esfinges”. Como se vê, foi a literatura que transformou a Fix num monstro inquiridor, sem tirar-lhe, todavia, o apetite... A presença hostil da Esfinge às portas de Tebas é diversamente explicada. Consoante Eurípides, nas Fenícias, 810, foi o deus Hades ou Plutão quem a colocou ali, fato que lhe marcaria apenas o funesto aspecto da morte; talvez o responsável tenha sido o violento Ares, ainda irritado com a morte do Dragão por Cadmo; outros dizem, segundo dois escólios das Fenícias, 934 e 1031, que foi Dioniso, que jamais perdoou a oposição de Penteu e dos Cadmeus, “seus irmãos”, à penetração do culto do “êxtase e do entusiasmo” em Tebas... A explicação mais aceita, entretanto, e é a adotada por Apolodoro, Biblioteca, 3,5,8, e pelo “Resumo de Pisandro”, é de que o flagelo fora enviado pela deusa Hera, a fim de punir o amor contra naturam de Laio por Crisipo. Desse modo a protetora dos amores legítimos teria imposto aos Tebanos um παράνομος ἔρως (paránomos éros), a saber, um outro “amor criminoso”, um íncubo-papão, que só comia jovens, desde que fossem belos, como foi o caso de Hêmon, filho de Creonte. De qualquer forma, a Esfinge devorava a quantos não lhe respondessem ao enigma proposto. Com respeito a enigma, em grego αἴνιγμα (aínigma), do v. αἰνίσσεσθαι (ainíssesthai), “falar por meios-termos, dizer veladamente, dar a entender”, significa, etimologicamente, “o que é obscuro ou equívoco”. Consoante Delcourt, o que é uma realidade, os gregos tinham verdadeira fascinação por enigmas, cuja decifração se transformava nas reuniões sociais numa demonstração de habilidade e talento. Ateneu (séc. II-III d.C.) consagrou todo o livro X do Dipnosofistas (Banquete de sábios) à interpretação de adivinhas. No tocante à origem, admite-se que o enigma seja um tema muito antigo, que certamente estava relacionado com um casamento, já que existem numerosos contos em que o herói conquista a princesa com resposta precisa a uma questão difícil; mas, assim mesmo, o enigma seria a terceira etapa, já depurada, de algo muito mais violento. A primeira seria um corpo-a-corpo com o monstro; a segunda, a posse sexual, presumindo-se, não obstante, uma luta prévia; e a terceira seria o enigma. Qualquer das três “provas”, todavia, vencido o monstro, dava ao herói a posse de tesouros, de um reino e a mão da Princesa. Marie Delcourt acha que talvez a ordem da luta do “íncubo contra o ‘conquistador’ deveria ser outra: o sexo, os golpes e a inquirição e acrescenta que é inútil investigar qual a realidade mais arcaica que se esconde sob o questionamento imposto a Édipo”. Tal interrogatório “faz parte da mitopeia primitiva, que era bem mais rica do que aquela a que os poetas deram colorido e beleza. Igualmente, o tema do corpo-a-corpo não é, como eu havia pensado, mais recente que o amplexo aplicado ao jovem pelo íncubo e mais antigo que o enigma. As velhas tradições ofereciam certamente as três variantes. Os poetas escolhiam aquela que melhor satisfizesse a seus desígnios”27. E, mais adiante, pondera que o adversário monstruoso é uma soma de significados superpostos e, no caso específico da Esfinge, essas significações são claras. Quer se trate de um íncubo ou de uma inquiridora, a Esfinge é simultaneamente uma alma penada. As asas, o talento musical, a ciência e a insaciabilidade estabelecem sua ligação com o mundo das sombras. Quanto ao combate entre o jovem e o monstro, Delcourt acredita tratar-se de uma reminiscência de provas iniciáticas por que passava todo adolescente, reservando-se as mais terríveis e difíceis para os futuros chefes28. De qualquer forma, e esta é a communis opinio, o tema da Esfinge questionadora só aparece a partir do mito tebano de Édipo e sua vulgarização se deveu à literatura, particularmente à grande tragédia de Sófocles, Édipo Rei. Em geral os monstros, segundo Delcourt, questionam mais a memória do que a inteligência de seu interlocutor. Perguntam, as mais das vezes, determinados nomes ou segredos e, não raro, o herói ou inimigo, para não morrer, deve conhecer “o nome esotérico de certos seres ou coisas”. Frequentemente o questionado deve saber o nome de seu questionador. Aquele, porém, dificilmente pode ser retido na memória e é necessário que se tenha muita sorte ou a intervenção de seres sobrenaturais, para que as sílabas mágicas possam ser lembradas. Mas, se seu nome for corretamente pronunciado, o monstro desaparece ou é reduzido à impotência. No mito de Édipo acontece algo de significativo: a Esfinge não pergunta ao filho de Laio pelo nome dela, mas pelo dele. Recordemos o enigma29: “Existe um bípede sobre a terra e quadrúpede, com uma só voz, e um trípode, e de quantos viventes que vagueiam sobre a terra, no ar e no mar, é o único que contraria a natureza; quando, todavia, se apoia em maior número de pés, a rapidez se enfraquece em seus membros”. A segunda versão, bem mais simples, é a seguinte: “Qual o animal que, possuindo voz, anda, pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com três?” Respondendo corretamente que era o homem, Édipo está muito sutilmente fornecendo não seu nome individual, mas o de sua espécie. Que significaria essa resposta? Marie Delcourt chama a atenção para o fato de que na palavra Oidípus em grego compreenderia dípus, “dois pés” e, desse modo, o nome próprio do iniciando expressaria o nome comum da espécie. Existe igualmente uma tradição segundo a qual Édipo decifrara o enigma sem pronunciar a resposta: à pergunta da Esfinge ele tocou a fronte e o monstro compreendeu que o jovem se designava a si próprio para responder à questão proposta. Nos versos 533-535 dos Trabalhos e Dias, Hesíodo compara o homem idoso e portanto arqueado a uma trípode, τρίπουδ (trípus), de três pés, que é o homem no seu entardecer: Então os mortais, semelhantes a um tripé, com o dorso arqueado e os olhos fincados na terra, vagueiam curvados para escapar à branca neve. É bem possível que a adivinha acerca de que são dois, três, quatro tenha circulado por longo tempo antes de penetrar no mito de Édipo, em função da assonância Oι̉δίπoυς (Oidípus), δίπους (dípus), τρίπους (trípus), τετράπους (tetrápus), isto é, Édipo, de dois, três, quatro pés30. É bom relembrar que Oι̉δίπoυς (Oidípus), “o de pés inchados”, o deformado, já é um homem τρίπους (trípus), “de três pés”, por apoiar-se num bordão. Jogando com seu próprio nome, Édipo conseguiu vencer a Esfinge. De um ponto de vista simbólico, o enigma pode ser interpretado como uma prova iniciática, uma vez que, sendo o íncubo uma alma penada, tudo o que tange à outra vida, apesar do pouco que se conhece dos Mistérios, comporta uma série de perguntas e respostas. O iniciado deverá conhecer o segredo dos nomes e das coisas, a fim de que possa, em seu longo caminhar através das emboscadas das trevas, sair para a luz. Outros veem no aínigma a transposição da agonia que acompanha certos pesadelos e determinados sonhos: como se luta, às vezes, para sacudir o monstro constritor ou para encontrar, nos sonhos, a palavra certa, decifrar textos ilegíveis e responder a determinadas perguntas! O alívio do despertar seria a resposta correta... Não parece fora de propósito acrescentar que existem, em todas as culturas denominadas impropriamente primitivas, enigmas relativos apenas à conquista de uma bela esposa, como se a mulher já não fosse de per si um aínigma, aliás καγὸν αἴνιγμα! Estão neste caso as questões propostas ao rei Salomão pela rainha de Sabá “que foi experimentá-lo com enigmas” e “não houve nenhum que o rei ignorasse e sobre o qual lhe não respondesse” (1Rs 10,1-3). Ignora-se, infelizmente, o conteúdo desses enigmas. Sem sair da Sagrada Escritura, pode-se afirmar que, em geral, os enigmas do Antigo Testamento são propostos sob a forma de parábola, quer dizer, uma equação entre uma imagem e uma ideia abstrata, muito semelhantes a sonhos que se devem interpretar, como os que se encontram em Ez 17, Dn 8, Gn 40–41. “Nos tempos modernos”, o mais significativo conjunto de enigmas, com vistas à mão da princesa, é o que a bela Turandot propunha a seus pretendentes. A quarta narrativa das Sete Imagens de Mohammed-Yusuf, chamado Nizami de Gangia, autor do século XII, relata a história da lindíssima Turandot, encerrada num castelo encantado. Seus pretendentes deveriam reunir quatro condições para tê-la como esposa: ser honestos, vencer os guardas misteriosos do castelo, apoderar-se de um talismã e conseguir o consentimento do pai da futura mulher. Muitos já haviam tentado e seus crânios enfeitavam as ameias do castelo... Um corajoso príncipe, no entanto, orientado pelos conselhos do pássaro Simurg, conseguiu vencer as três primeiras dificuldades. O pai consentiu no casamento, desde que o pretendente resolvesse três enigmas que a princesa lhe proporia. Turandot enviou ao pretendente duas pérolas. De imediato, este compreendeu a simbologia: “A vida se assemelha a duas gotas de água” e mandou de volta as pérolas com três diamantes, o que significava que “a alegria podia prolongar-se”. Turandot devolveu as duas pérolas com os três diamantes, mas acrescentou-lhes açúcar. A interpretação do herói foi a seguinte: “a vida é uma mistura de desejos e prazeres”. Adicionou leite na caixa em que estavam as joias e a reenviou à futura esposa com o enigma inteiramente solucionado: “como o leite absorve o açúcar, assim o verdadeiro amor absorve o desejo”. E Turandot deu-se por vencida. Acerca desse tema Carlo Gozzi (1720-1806) escreveu uma peça tragicômica em cinco atos, que há de servir de inspiração à composição musical de Karl M. Weber (1786-1826) e às óperas Turandot de Ferruccio Busoni (1866-1924) e de Giacomo Puccini (1858-1924), esta última, aliás, terminada por Franco Alfano e Vicenzo Tommasini. Édipo derrotou, pois, a Esfinge com a resposta: é o homem. A vitória do herói tebano não teve o auxílio dos deuses: ele a eliminou sozinho. Perseu, na luta contra as Górgonas, além do cavalo Pégaso e de armas e talismãs que lhe emprestaram os deuses, teve o respaldo das ninfas; Héracles, na busca dos pomos de ouro do Jardim das Hespérides, foi assistido por Nereu e Prometeu. Belerofonte o foi por Atená ou Posídon. Édipo, ao revés, sem a assistência de qualquer deus ex machina, venceu a Esfinge de Tebas, não porque recebera qualquer auxílio divino, não porque adivinhava, não porque podia, mas porque sabia. E “sabia demais”. Esse tipo de saber, aliás, provocar-lheá a derrocada. Para se justificar, todavia, o saber de Édipo não é necessário construir etimologia por assonância como fazem o seguro Michel Foucault31et al., postulando como primeira parte do composto Oἰδίπoυς (Oidípus) a forma οἶδα (oîda), denominado “perfeito segundo” de εἴδω (eído), “eu vejo, eu sei”, com cujo infinitivo (Ϝ)ιδεῖν ((F)ideîn), “ver, saber” se relaciona o latim uidere, “ver”. O primeiro elemento do substantivo Οἰδί-πους (Oidípus), Édipo, tem por base o v.oi*dei~n (oideîn), “inchar” e nada tem a ver com oîda, “eu sei”. O próprio título da grandiosa tragédia de Sófocles, Oι̉δίπoυς τύραννoς (Oidípus T×rannos), Édipo Rei, conforme acentua Foucault32, já é um índice de que Édipo, através do saber, chegou a τύραννoς (t×rannos)33, isto é, ao poder. O saber de Édipo é um saber de iniciação e o iniciado triunfa pelo que sabe e não pelo que pode. Derrotada, a “cruel cantora” precipitou-se no abismo. Outras versões dão-lhe um fim diferente: no lécito (vaso pequeno) chamado de Boston, Édipo liquida o monstro a golpes de clava ou talvez com seu bordão; num aríbalo (vaso pequeno semelhante a uma bolsa), encontrado na ilha de Chipre, a Esfinge, caída aos pés do herói, recebe o golpe de misericórdia; em Apolodoro, 3,5,7,8 e Diodoro, 4,6 ela se mata de desespero. Com a morte trágica de Laio, já que o trono não poderia ser ocupado por mulher, no caso Jocasta, Creonte, irmão da rainha, assumiu o poder. Mas, como a luta e a vitória sobre um monstro são coroadas com a conquista de um reino e o casamento com a princesa ou rainha, “o povo tebano” exigiu que o destruidor da Esfinge, como salvador de Tebas, ocupasse o trono dos Labdácidas. Creonte facilmente abriu mão do sólio tebano, ou porque se sentisse mais à vontade e exercesse de igual maneira o poder juntamente com Édipo e Jocasta, sem as preocupações e apreensões impostas pelo cetro, como ele próprio confessa em Édipo Rei, 581 e 584ss, ou por gratidão ao vencedor da “cruel cantora”, que lhe devorara o filho Hêmon. Ao trono se seguiu o casamento com a rainha... Nas Fenícias de Eurípides, 47ss, Jocasta narra como seu irmão Creonte lhe prometera a mão àquele que decifrasse o enigma da virgem engenhosa e como, por acaso, fora Édipo quem compreendera os cantos da Esfinge. Durante anos Édipo e Jocasta viveram felizes. Se no relato homérico o casal não possuía filhos, em Édipo Rei tem quatro: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene. Uma família tranquila, se as Erínias o tivessem permitido... Foi então que novo e terrível flagelo se abateu sobre a pólis dos Labdácidas. E as Erínias de Laio, as terríveis punidoras do sangue parental derramado, por que demoraram tanto a manifestar-se? Como agudamente observa Marie Delcourt, se nas versões mais antigas do mito deve ter havido uma luta encarniçada entre Laio e Édipo, como se explica que este último não tenha sido perseguido pelas Erínias de seu pai, como o foi Fênix (Il., IX, 454ss), pelo simples fato de haver, a pedido de sua mãe enciumada, possuído a amante do pai? Em Homero, segundo se mostrou, só funcionam as Erínias maternas, mas Píndaro, nas Olímpicas, 2,3,45ss (o que parece ser uma crítica ao bardo da Ilíada e da Odisseia) faz que as Vingadoras liquidem para sempre os descendentes masculinos dos Labdácidas: A terrível Erínia viu o parricídio e fez perecer uma raça destemida: os filhos de Édipo reciprocamente se deram a morte. “É que entre Homero e Píndaro a concepção das Erínias evoluiu: no primeiro elas parecem perseguir apenas aqueles contra os quais são invocadas; no segundo, converteram-se em potências morais”34, que punem o sangue parental derramado. Desse modo, “o tema da cólera do morto, a qual não aparece em Homero, mas que é formalmente sugerida por Píndaro, ocupa todo o início de Édipo Rei. Por que Tebas novamente é assolada por uma peste? Simplesmente porque o assassino de Laio não foi punido. Mas quem é o criminoso? A temática da peça é precisamente a busca do parricida. O incesto é descoberto por acréscimo. Religiosamente falando, o mesmo não desempenha papel algum importante na tragédia”35. No auge de sua realeza e poder, Édipo é convocado pelo povo para novamente salvar a cidade. O soberano, cônscio de suas responsabilidades, já enviara seu cunhado Creonte a consultar o Oráculo de Delfos. A resposta de Apolo foi direta e incisiva: a nódoa que mancha Tebas é o assassino de Laio, cuja busca e captura são energicamente ordenadas pelo rei com imprecações aterradoras. Afinal, o assassino do antigo rei de Tebas é igualmente séria ameaça à pessoa do rei atual e portanto ao poder. Aliás, no áspero diálogo que Édipo mantém com o adivinho cego Tirésias, o que sabe, e com seu cunhado Creonte, a ideia fixa do vencedor da Esfinge é de que Tirésias serve de instrumento a Creonte: ambos desejam tomar-lhe o poder! É que, não tendo como descobrir quem matou a Laio, Édipo, a conselho de seu cunhado, mandou vir o mántis, o adivinho de Tebas, que, mergulhado na escuridão de sua cegueira, tudo sabia por dádiva de Zeus, embora Sófocles a atribua a Apolo. Tirésias procura esquivar-se do cerrado interrogatório do marido de Jocasta e só à custa dos insultos recebidos, acusado que foi de mentor da morte de Laio e de aspirar ao poder juntamente com Creonte, é que acabou revelando a dolorosa verdade: Édipo matara o próprio pai e vive em sórdida comunhão com os seres que lhe são mais caros. Em outros termos, está casado com a própria mãe e é pai de seus irmãos... O diálogo com Creonte ainda é mais violento. A tônica é sempre a mesma: a ambição, o mando, a sede do poder cegaram o irmão de Jocasta! Como judiciosamente enfatiza Foucault “somente em Édipo em Colono se verá um Édipo cego e miserável gemer ao longo da peça, dizendo: ‘Eu nada sabia, os deuses me pegaram em uma armadilha que eu desconhecia’. Em Édipo Rei ele não se defende de maneira alguma ao nível de sua inocência. Seu problema é apenas o poder. Poderá guardar o poder? É este poder que está em jogo do começo ao fim da peça”36. Guindado ao trono, sem direito “consanguíneo” ao mesmo, mas com respaldo do povo, por causa de alguma façanha memorável, o t×rannos, detentor do saber, não admite ser despojado do poder, que acaba por cegá-lo, extirpando-lhe o saber. Foi necessária a intervenção enérgica da rainha para que o marido e o irmão interrompessem o violento duelo verbal em que se empenhavam “acerca do poder”, o ponto nevrálgico da insegurança de Édipo. Procurando tranquilizar o marido, Jocasta põe em dúvida o saber de Tirésias: afinal o Oráculo não predissera que Laio seria assassinado pelo próprio filho? Se este, tão logo nasceu, foi exposto, e se o rei foi morto num trívio por bandoleiros, onde está a veracidade dos adivinhos, porta-vozes do Oráculo? E acrescenta enfática: “Dessa feita Apolo não realizou a predição: nem o menino matou o pai, nem Laio foi assassinado pelo filho, algo terrível que tanto temia” (Édipo Rei, 720-722). A fala da rainha, no entanto, em vez de aquietar, incendiou a alma do esposo: o rei fora assassinado num trívio... E mais adiante outros pormenores fornecidos por Jocasta levam Édipo a um quase desespero: a chacina tivera por cenário a Fócida, na encruzilhada de Delfos e Dáulis; Laio estava, na ocasião do crime, com uma idade equivalente à de Édipo no momento, era alto, muito parecido com o rei atual; viajava numa carruagem com uma escolta de cinco homens e tudo se passara pouco antes de o herói ter sido proclamado rei: as coincidências eram muito claras: o pavor transtornou a fisionomia do vencedor da Esfinge! Só lhe restava uma saída, uma derradeira esperança, como ele próprio confessa (Édipo Rei, 771): o fato fora narrado à rainha e aos Tebanos por um servo que fugira ao massacre e ele afirmara que o rei e o restante de sua comitiva haviam sido mortos por salteadores estrangeiros. Se o escravo confirmasse a versão, o rei de Tebas estaria fora de quaisquer suspeitas. O rei, porém, não se tranquiliza: quer ver de imediato e interrogar pessoalmente o escravo de Laio, que estava longe, no campo, pastoreando os rebanhos. A partir da concisa, mas clara narrativa de Jocasta, Édipo não mais buscou o assassino de Laio, mas passou a buscar-se a si próprio.Mordido pela inquietação e o remorso, desfilou para a rainha um longo flashback, desde sua infância feliz na corte de Pólibo, em Corinto, até o dia em que, chamado de filho postiço por um bêbado, decidiu buscar a verdade no Oráculo de Delfos, que lhe vaticinou o assassinato do pai e o casamento com a própria mãe... Afastando-se o mais possível de Corinto, matou no trívio a pessoa descrita pela esposa, bem como a seus acompanhantes... Se o escravo não confirmasse que o rei de Tebas fora morto por vários assaltantes, estaria condenado a matar seu pai Pólibo e a se casar com sua mãe Mérope! Por instantes o negro céu de Tebas tornou-se azul. Um mensageiro de Corinto (o mesmo que o recolhera no Citerão) vem anunciar a morte de Pólibo e dizer que o Istmo inteiro fizera do rei de Tebas o seu rei. E os Oráculos, para que serviam? Pólibo está morto e não foi pelas mãos do rei dos Tebanos! O júbilo de Édipo é incontido, mas persiste uma certa preocupação: Mérope, sua mãe, ainda vive, Jocasta o reanima: Quanto a ti, não deves temer o conúbio com tua mãe: quantos mortais já não compartilharam em sonhos o leito materno. (Édipo Rei, 980-982) Édipo, todavia, não precisava temer uma possível união com Mérope, pois que esta, segundo o mensageiro de Corinto, não era a mãe do herói... Jocasta se retirou. Tudo estava demasiado claro para ela: enforcou-se no palácio. Édipo foi até o fim. Só depois deacharsenos pungentes diálogos com os dois pastores, o de Tebas, que o expusera, e o de Corinto, que o recolhera, é que se deu por vencido: Ai de mim! Tudo se desvendou. Ó luz, oxalá possa contemplar-te pela última vez! Ficou bem claro que eu não deveria ter nascido de quem nasci, Não deveria viver com quem vivo e matei a quem não deveria matar! (Édipo Rei, 1182-1185) Como um louco, penetrando no palácio, onde pendia o corpo de sua mãe e esposa e, arrancando-lhe das vestes os alfinetes de ouro com que a rainha se adornava, com eles rasgou os próprios olhos. Sua súplica derradeira a Creonte foi que este o exilasse imediatamente. Eis em síntese a lindíssima versão poética de Sófocles. É oportuno acrescentar que em outras variantes do mito Jocasta não reconhece o filho-esposo através da narrativa do escravo de Corinto, mas, segundo o “Resumo de Pisandro”, pelo boldrié e pela espada de Laio, que estavam em poder do mesmo. É sabido que o vencedor se apossava das armas do vencido, não pelo valor que estas possuem, mas pelo mana que das mesmas irradia. O infortunado filho de Jocasta, no relato homérico, segundo se viu, “despojou” a Laio. Outras variantes insistem em que o reconhecimento se fizera através das cicatrizes dos pés inchados e deformados de Édipo. No que tange à morte trágica da rainha, Marie Delcourt defende uma hipótese sumamente interessante: o suicídio da filha de Meneceu teria sido um ato de vingança contra Édipo. Para a autora, com efeito, “Epicasta parece ter-se matado para vingar-se do filho e não por desespero, como a Jocasta trágica. Como se explicaria tal fato? Um ódio tão grande implica uma mitopeia diferente da que é relatada pelos trágicos. A Jocasta de Sófocles é antes mulher de Édipo que viúva de Laio; Epicasta, ao revés, fica ao lado de Laio contra o filho. Quando se examina mais atentamente o texto homérico, observa-se que Epicasta desposou o filho sem conhecê-lo, mas nada se diz a respeito da ignorância de Édipo”37. Este, na Odisseia, é caracterizado como “vencedor maldito”, que reina sobre Tebas “pela vontade funesta dos deuses”, mas cujo destino é “sofrer muitos males”. O suicídio de heróis e particularmente de heroínas por ódio e vingança é fato comum no mito: Ájax, que se matara por vergonha e ódio, se recusa, por rancor a Ulisses, a dirigir-lhe a palavra, quando da invocação dos mortos (Odisseia, XI, 563ss); igualmente Dido, em Vergílio, Eneida, 6, 469ss, faz ouvidos moucos às ternas palavras e desculpas de Eneias, cena que parece ser uma imitação da narrativa homérica citada; também Fedra, por ódio, vergonha e vingança contra Hipólito, se mata, arrastando o jovem e inocente filho de Teseu a um fim trágico (Eurípides, Hipólito, 1286ss). Embora, no relato homérico, Édipo não se cegue e continue a reinar sobre os Tebanos, em Sófocles, além do exílio solicitado a Creonte e imposto pelas próprias imprecações do herói no início da tragédia, o filho de Jocasta (Édipo Rei, 1270ss) vazou os próprios olhos, a fim de que os mesmos não mais lhe testemunhassem as misérias e crimes. Do ponto de vista simbólico, todavia, a cegueira que Édipo se infligiu possui um sentido mais profundo. As trevas externas geram a luz interna. A ἀναγνώρισις (anagnórisis), “a ação de reconhecer” e de reconhecer-se começa efetivamente a existir quando se deixa de olhar de fora para dentro e se adquire a visão de dentro para fora. Mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou. Se Édipo, porque sabia, conquistou o poder, a hipertrofia desse mesmo poder sufocou-lhe o saber. Sua cegueira estabeleceu em definitivo a ruptura entre o saber e o poder: cego, o herói agora sabe, mas não pode. Não mais, como deixa claro Foucault, estamos na época dos t×rannoi, dos tiranos, mas na era de Péricles, no século da democracia, que não sabe, mas pode. Tanto que em Édipo Rei os únicos a saber, além dos deuses e os adivinhos, são os humildes, os pastores, que não podem, mas sabem38. Por isso mesmo, em sua tragédia Antígona, que é um confronto entre a consciência individual e o despotismo sofístico, Sófocles mostrou com muita clareza que a característica básica de sua personagem central, Antígona, é o direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade. Voltemos, porém, a Édipo. Cego e condenado ao exílio, mercê de suas próprias imprecações lançadas contra o “assassino de Laio”, o príncipe permaneceu ainda em Tebas por algum tempo. O poder passou a ser exercido por Etéocles e Polinice, que, por duas vezes, o tendo desacatado e injuriado, acabaram por ser amaldiçoados pelo pai. Este, além do mais, vaticinou que ambos morreriam violentamente, lutando um contra o outro, assunto já tratado na Tebaida e que Ésquilo retomará em sua tragédia Os Sete contra Tebas. Expulso da cidade pelos filhos, Édipo, guiado por Antígona, errou por longo tempo através da Grécia, até que um dia, na lindíssima tragédia imaginada por Sófocles, Édipo em Colono, chegou ao demo de Colono, onde nascera o grande dramaturgo ateniense. Como nesse “bairro” de Atenas houvesse um bosque consagrado às Eumênides, o peregrino reconheceu que era este o local apontado pelo Oráculo como o término de seus sofrimentos e humilhações. Inteligentemente, Sófocles fez coincidir a chegada de Édipo ao demo ático de Colono com o início da famosa expedição dos Sete contra Tebas39. Como a presença do herói decidiria, consoante o Oráculo, o êxito da luta, Creonte, em nome dos Tebanos, e Polinice, vêm pedir o auxílio de Édipo. Ao primeiro o filho de Jocasta repele, tendo a Teseu por protetor, e ao segundo rechaça e amaldiçoa mais uma vez. Após prometer a Teseu, que lhe concedera asilo, a proteção de Atenas contra toda e qualquer invasão tebana (Édipo em Colono, 605623 e 1533-1536), uma vez que possuir o sepulcro do herói significava ter uma muralha inexpugnável contra os inimigos externos, Édipo se prepara para o grande mergulho. “Troveja Zeus ctônio”. Após trocar a indumentária, fazer as abluções rituais e recomendar as filhas a Teseu, encaminhou-se, acompanhado apenas pelo rei de Atenas, para seu leito de morte: a terra se abriu suavemente e Édipo retornou ao seio materno. A uma pergunta do corifeu, o Mensageiro dá a seguinte resposta (Édipo em Colono, 1583-1584): Corifeu – Morreu o infortunado? Mensageiro – Saiba que Édipo conquistou uma vida que não tem fim. Sofrer para compreender, diria Ésquilo. O Citerão foi redimido por Colono. É difícil “coordenar” o mito de Édipo, por ser ele um daqueles que chegaram até nós em “transposições literárias”. Claude Lévi-Strauss viu bem e assim expressou o problema: “O mito de Édipo chegou-nos em redações fragmentárias e tardias, que são todas transposições literárias, mais inspiradas por um cuidado estético ou moral do que pela tradição religiosa ou o uso ritual, se é que tais preocupações tenham alguma vez existido a seu respeito”40. De qualquer forma, o mito continua! Édipo é o herói que se encontrou na fuga. Perfazendo uma longa caminhada, o filho de Laio e Jocasta fechou o mandala: de Tebas ao Citerão, deste a Corinto, da corte de Pólibo a Delfos, do Oráculo de Apolo ao trívio, da morte de Laio ao monte Fíquion, da vitória sobre a Esfinge ao casamento com Jocasta e do reencontro com o saber ao mergulho final no seio da Grande Mãe, Édipo completou o círculo urobórico. Everardo Rocha escreveu com propriedade a esse respeito: “Se quisermos visualizar o percurso traçado pelo caminho de Édipo, fugindo do destino e reencontrando-o para dolorosamente cumprilo, podemos perceber que Édipo acaba por dar uma volta completa num círculo. Sua vida pode ser expressa num esquema circular que demonstra o paradoxo de sua existência: quanto maior a tentativa de fuga, mais próximo está o encontro”41. O autor estampou, em seguida, o que denominou “O Caminho de Édipo” e que nós chamaríamos o Uróboro Iniciático de Édipo: Quadro 9 6 O Mito de Édipo42tem merecidamente recebido múltiplas interpretações. Desde Sófocles, em que a tragédia “política” Édipo Rei visaria “também à condenação do t×rannos sofista, passando pela versão de Bachofen, em que se chocam o matriarcado agonizante e o vitorioso patriarcado até as “versões mais modernas” do ódio e do amor em Sigmund Freud, da libido primordial em Jung, do mito da origem em Lévi-Strauss, da busca da verdade em Michel Foucault, o fato é que o mito de Édipo tem sempre alguma coisa que ainda não foi dita. Basta ler estudos bem recentes, como os que se estampam em O Enigma em Édipo Rei43e nos Cadernos de Psicanálise44, para se concluir que Édipo se transforma como Proteu e se remitifica sempre que abordado. Cresce, avoluma-se e cada tradução se transmuta em novo mito. Se Édipo decifrou o enigma da Esfinge, “o homem” ainda não conseguiu desvendar o enigma de Édipo. Algo se disse acerca dos enfoques sobretudo de Freud, Jung, Erich Fromm e Michel Focault, mas deixamos, de propósito, para encerrar este capítulo, a visão panorâmica do mito de Édipo elaborada por Paul Diel. Apresentaremos, pois, uma síntese da interpretação de Diel45, introduzindo-lhe, todavia, para efeito de maior clareza, algumas alterações e acréscimos. “O Oráculo de Delfos predisse a Édipo que ele mataria o pai e desposaria a própria mãe. A primeira parte de tão funesto presságio já está presente (substituindo-se pai por avô) no mito de Perseu; e tudo quanto se disse àquele respeito é válido igualmente para o mito do infortunado filho de Laio. Por ser o Oráculo equívoco, isto é, ‘lóxias’, Édipo matará seu pai carnal e toda a fabulação dramática se baseia neste fato. O herói, todavia, assassinará também seu pai mítico e é sobre tal simbolismo que se fundamenta o sentido oculto do mitologema. Existe, no entanto, uma diferença fundamental entre Édipo e Perseu. A mãe do primeiro, Jocasta, não foi fecundada por Zeus. Édipo não é descendente do pai dos deuses e dos homens, o ‘enviado’ do espírito. A Pítia não diz que ele será um vingador mítico: a predição permanece equívoca sob esse aspecto, tornando-se impossível deduzir de imediato se o herói matará o pai mítico sob sua significação positiva ou negativa. Mas Laio, advertido por Apolo e temendo que o filho, uma vez adulto, o depusesse do trono e o assassinasse, mandou expô-lo num monte, com o fito de eliminá-lo. A exposição, que afasta a criança de seus verdadeiros pais, é o primeiro índice da importância que os pais míticos, o pai-espírito e a mãe-terra possuirão para elucidar o sentido velado do mitologema. Uma outra diferença considerável entre Édipo e Perseu é que Laio, antes de abandonar o filho no monte Citerão, mandou cortar-lhe os tendões ou perfurar-lhe os calcanhares”. Já se viu no Vol. I, p. 355, que também Tifão cortou os tendões dos pés de Zeus, inutilizando-o por completo. Símbolo típico, o pé configura a alma: seu estado e sua sorte. O mito compara, destarte, o caminhar do homem pela vida com sua atitude psíquica. Com efeito, os atributos “ferido, calçado com uma única sandália” como Jasão, acrescentam ao símbolo uma qualidade particular que lhe orienta, de modo preciso, a interpretação. É o caso de Aquiles, cujo pé vulnerável configurava a vulnerabilidade de sua alma: a propensão do herói à cólera causou-lhe, por fim, a ruína. Toda a força e violência do gigante Talos, conforme se viu no Vol. I, p. 184s, terminaram por completo, quando Medeia, descobrindo-lhe o ponto vulnerável, cortou-lhe uma pequena veia na parte inferior da perna. Os tendões cortados do herói tebano traduzem, pois, um enfraquecimento dos recursos da psiqué, uma deformação psíquica que há de caracterizar a vida inteira da personagem. Diferentemente de Zeus, Édipo permanecerá um mutilado. Sua alma somente poderá ser curada pela força de Zeus, pai mítico de todos os homens. O filho de Laio só se reerguerá através do impulso da espiritualização. Diga-se aliás, de passagem, que esse reencontro consigo mesmo, essa espiritualização tão almejada, o herói os conquistou, ao menos dramaticamente, na tragédia de Sófocles Édipo em Colono. Certamente o “sofrer para compreender” esquiliano produziu através do autor de Édipo Rei seu esperado efeito catártico. Veremos isto no fecho desta exposição. A importância da mutilação na história do filho de Jocasta encontra-se estampada no próprio nome do herói. Como se mostrou, Oι̉δίπoυς (Oidípus) significaria o de pés inchados, supostamente por lhe terem mutilado os tendões. “Ora, esse pé inchado retrataria a psiqué inflada pela vaidade, daí a impossibilidade que tem Édipo de perfazer com tranquilidade a caminhada através da existência: sua alma permanecerá ferida. Ora, o homem psiquicamente mutilado é o neurótico. Édipo, conforme se verá, é o símbolo heroico do homem em geral, mais ou menos psiquicamente deformado, oscilando entre neurose e banalização; e o preço da vitória sobre esta é a queda nas garras da neurose”. Caracterizado como um odd number, um aleijado, a situação do herói está perfeitamente definida. O homem psiquicamente mutilado, cuja psiqué ferida se inclina para a neurose, é esmagado entre as engrenagens das duas possibilidades que o Oráculo de Delfos deixou bem claras. Édipo, na realidade, desejava combater e levar de vencida o espírito negativo, mas seu temor excessivo em face da inclinação perversa fê-lo fracassar e cair no erro que procurava evitar. Não ousando reconhecer e confessar a própria fraqueza, atacá-la de frente e sublimá-la, o herói a recalcou e somatizou. “Sacrificou o espírito positivo, o espírito da verdade, a verdade em função de si mesmo. O neurótico cometeu, assim, um erro trágico: tentando fugir do destino, o cumpriu. Símbolo do neurótico, Édipo converte-se igualmente em vítima do erro trágico: seu pai real, Laio, possui, do ponto de vista do plano simbólico, o significado da banalização. O herói o mata por excesso de neurose e converte-se em culpado para com o espírito positivo. Perdendo-se cada vez mais na aventura da existência, ‘desposando a Terra-Mãe’, desencadeando, com isso, seus desejos neuroticamente exaltados, ele não encontra outra saída para escapar ao somatório de culpas, a não ser ‘matar’ seu pai mítico sob sua forma verídica: o espírito”. O que esperava ser o meio de escapar à culpabilidade, vale dizer, não matar seu pai real e mítico, transforma-se no motivo que o conduz ao parricídio. Esperando fugir à Moîra, não mais regressando para junto do pastor de Corinto, para não matar o próprio pai, acabará por cumprir inelutavelmente as predições da Pítia. O símbolo dos tendões cortados permite, desse modo, precisar a postura espiritual e mítica do herói, anunciada pelo oráculo. Mas tal configuração traduz igualmente a atitude de Édipo em relação a seu pai real. “Uma das causas típicas da neurose é o comportamento dos pais que, incapazes de detectar as carências psíquicas dos filhos, preparam-lhes as enfermidades da alma. O mito enfatiza suficientemente a insensibilidade de Laio. Ora, a indiferença dos pais e, em consequência, o sentimento de abandono por parte da criança, são precisamente os índices típicos da educação deficiente que altera os dotes da alma, quer dizer, que ‘corta os tendões’. Em cada neurótico as causas da deficiência se estampam codeterminadas pela história de sua primeira infância. Édipo, já se mostrou através de uma variante do mito, foi educado fora do lar paterno por um pastor que o encontrou e adotou como filho. Seu verdadeiro pai, pela tentativa mesma de fazê-lo perecer, tornou-se responsável e está na raiz da enfermidade psíquica do filho. Havendo o mito indicado com clareza a marca indelével deixada por Laio no filho, e tendo sido suficientemente elucidada pelos símbolos a situação da criança neurótica, pode-se concluir que o pastor não é mais que o substituto do rei de Tebas. Seu papel de educador não passa de um fato real sem importância para a simbolização, deixando a fabulação de insistir sobre o assunto. Édipo já adolescente, instruído pelo oráculo da sina que o aguardava e, convencido de que o pastor era seu pai, o abandonou, temendo ser coagido pela fatalidade a cumprir a predição. Dirigiu-se para Tebas, onde reinava Laio”. A região se encontrava devastada pela Esfinge, que devorava a quantos não lhe decifrassem o enigma. Como todo monstro ou flagelo que assola uma cidade, a Esfinge traduz os resultados funestos para os domínios de um rei perverso. Laio, ignorando que a solução do enigma haveria de apontá-lo como culpado, promete considerável recompensa a quem libertasse a cidade do monstro que a destruía. Caminhando em direção a Tebas, o herói resolveu enfrentar a “cruel cantora”. As circunstâncias portanto de sua decisão não o caracterizam como herói libertador. Miticamente falando, ele não é um “enviado da divindade”, pois que, além de ambicionar a recompensa prometida por Laio, não está revestido da armadura suprema simbolicamente outorgada pelo divino: a força da espiritualização-sublimação. Sua arma de confiança é a sutileza do intelecto. Antes de chegar a Tebas, porém, fugindo ao destino, Édipo está prestes a cumpri-lo. Passando por um trívio, encontra-se com uma carruagem que lhe barra a passagem. Profundamente irritado com a ordem de desviar-se, num acesso de raiva, o herói mata com seu bastão de peregrino o condutor do carro. A façanha está longe de ser heroica. Édipo ignora que a vítima é o rei de Tebas. Continuando seu caminho, vai ao encontro da Esfinge; e, consequência muito clara do reino nefasto, o monstro sobrevive ao rei. “O encontro de Édipo com Laio merece um comentário mais preciso. Mesmo que se levasse em conta apenas o relato mítico, sem aprofundá-lo simbolicamente, a vaidade de Édipo está bem retratada. A ordem de afastar-se para que a carruagem do rei pudesse passar o põe de tal maneira colérico, que o futuro rei de Tebas perde completamente o controle. É de se supor que o rei viajasse sem as insígnias do poder; caso contrário, Laio estaria acompanhado de sua guarda e a ação criminosa teria sido repelida ou vingada. Nesse encontro fatídico, por conseguinte, o rei aparece como ‘um qualquer’, o que naturalmente intensifica ainda mais a cólera do jovem príncipe. Em função de seus pés mutilados, o vencedor da Esfinge não pôde afastar-se com a rapidez ordenada. A enfermidade contraída em seus primeiros dias de vida desperta com toda a amargura acumulada e com toda a vaidade gerada pelo recalque da consciência de sua mutilação e de sua supercompensação imaginativa. Além do mais, ter que ceder sempre ‘o caminho’ a nãoimporta-quem, a todos, enfim, deve ter sido o tormento e a humilhação mais profunda da criança adotada, mais ou menos tolerada. Se se substitui o estado de pé mutilado, que impede o filho de Jocasta de ceder rapidamente o caminho pelo simbolismo da significação psicológica, aparece com nitidez a situação de um neurótico, não importa qual. Seu ódio latente é alimentado por sua psiqué mutilada desde a juventude. A incapacidade de movimentarse livremente pela estrada da vida, ‘a enfermidade’, torna-se suportável tão somente pelo consolo falso e imaginativo da vaidade. Sua alma machucada, no entanto, apresenta-se vulnerável a toda e qualquer afronta e nada fere mais profundamente a psiqué doentia de um neurótico que ser tratada, não importa por quem, sem a devida consideração. Eis por que Édipo não permitirá ser tratado com desprezo e responderá a semelhante ofensa com incrível violência, em razão de um motivo suplementar, que, por mais decisivo que seja, reflete apenas o outro lado de sua hipersensibilidade nervosa. Tendo decidido confrontar-se com a Esfinge, Édipo se deleita em sua imaginação por desempenhar o papel de herói, persuadido de que fadado a escalar o mais alto grau de realização espiritual: acredita-se um libertador da cidade, símbolo do mundo. Este é um traço marcante, talvez o mais característico do neurótico adolescente: reprimido e sofredor em função de sua própria deficiência, projeta sua enfermidade psíquica no meio circundante, exagerando assim, através da denúncia, a insatisfação sempre atual da vida humana. Transformando a própria incapacidade em autossuficiência, arvorase em um predestinado reformador do mundo. Explica-se, destarte, por que o herói não cedeu espaço à carruagem de Laio nem permitiu que o menosprezassem. Afinal, alimenta secretamente o projeto de realizar o que ninguém tentara antes: defrontar-se com a Esfinge, libertar a cidade e o mundo do flagelo que os oprimia. Na medida em que o monstro configura a culpa do soberano de Tebas, torna-se patente que ‘rei e Esfinge’ são, do ponto de vista simbólico, duas figuras que desenvolvem um mesmo tema. O mito, que o estampa, frisa-lhe a importância por uma repetição que permite enfatizar a atitude claudicante do herói. Assim, sua vitória, primeiro sobre o rei, e depois sobre a Esfinge, é um triunfo aparente. O crime cometido no trívio e a investida furiosa contra o pai configuram, num plano simbólico, uma primeira alusão ao propósito vaidoso de Édipo de decifrar o enigma da Esfinge: a culpa de Laio, o erro banal do mundo [...]”. Como toda e qualquer cavidade (antro do dragão, inferno) o trívio é o símbolo do inconsciente e a luta que ali se trava é projeção de um combate que se desencadeia no inconsciente de Édipo. Ora, todo conflito psíquico se reduz à discórdia inicial entre o espírito e a matéria, sublimação e perversão. Semelhante conflito se resolve no plano da consciência e da função harmonizante, traduzida pelas divindades olímpicas, pelo auxílio que as mesmas prodigalizam ou recusam, consoante o mérito do ser humano, isto é, segundo sua escalada em busca da espiritualizaçãosublimação. “O crime perpetrado no trívio, porém, mostra que Édipo está longe de resolver conscientemente seu conflito intrapsíquico: este, de natureza inconsciente, permanece, por enquanto, insolúvel. A discórdia inicial, reduzida a um conflito inconsciente, degrada-se, por efeito da força da exaltação imaginativa, colocando-se entre dois polos antagônicos: a materialização e a espiritualidade exaltadas, a primeira pela banalização e a segunda pela neurose. Todo neurótico carrega secretamente consigo esse conflito, que se pode traduzir pela elevação exaltada (recalque dos desejos) e queda banal (desencadeamento dos mesmos). O encontro com Laio configuraria esse conflito ‘assassino’, a ambivalência perversa que dilacera a alma do ‘coxo’, do neurótico? É preciso não perder de vista que a arma empregada nos combates míticos, no caso em pauta, a arma do crime, possui uma significação simbólica: a arma caracteriza tanto o herói quanto o inimigo com que se luta. Uma vez que o adversário mítico reflete o perigo interior do herói, a arma torna-se representativa da situação conflituosa como as asas para Ícaro, o escudo para Perseu. A arma do crime assinala claramente a problemática de Édipo: coxo, o herói precisa de um bastão para permanecer de pé ou caminhar. Ver-se-á mais adiante, no ‘combate’ com a Esfinge, que é uma repetição significativa da luta com Laio, a grande importância desse ‘permanecer de pé’. O bastão serve de apoio ao herói. A muleta corrige de maneira inábil a enfermidade do pé mutilado: a vaidade, muleta psíquica, é o corretivo desajeitado da alma mutilada. Édipo, por conseguinte, o neurótico, só permanece psiquicamente de pé, apoiando-se na muleta de sua vaidade e é esta que o torna agressivo: usa do bastão-muleta, a vaidade, tanto para atacar quanto para suprimir em si mesmo, para recalcar, para ‘matar’ seu próprio adversário interior, sua própria tentação banal”. Com efeito, a arma assassina torna-se igualmente característica para o adversário assassinado. Usado para matar, o bastão se equivale à clava, que traduz simbolicamente a ruína da banalidade. O rei assassinado com o bastão-clava é o tirano banal. As desgraças que devastam a região de Tebas, configuradas pela Esfinge, são a submissão aflitiva e a sedição, bem como os índices da desordem pública, isto é, a devassidão e a vaidade banal com suas consequências: o embrutecimento, a preguiça e a intriga. “Simbolicamente, a violência contra o rei Laio é apenas a caricatura de uma luta heroica, retratando tão-somente um combate mítico, partícipe de uma significação típica que faz do perigo interior o monstro ou inimigo exteriormente combatido. A tradução do mitologema deve eliminar essa exteriorização simbólica, já que, em virtude desta, qualquer personagem da fabulação perde sua individualidade. As ações individuais, quer sejam do herói ou de seus adversários, são apenas um meio com que se expressa a perspectiva geral do funcionamento psíquico. O rei-pai converte-se em pai mítico sob sua forma negativa. Mutilador da alma, ele é o símbolo da alma mutilada do herói. Representante da banalidade convencional, torna-se a configuração generalizada da tendência à banalização. Adversário de Édipo, Laio espelha a adversidade interior do mesmo. O rei-pai, assassinado no trívio, não em virtude de um combate heroico, mas de um crime, representa a tendência inconsciente de Édipo, do neurótico, que se inclina para uma desinibição banal. O crime traduz a atitude do neurótico relativamente à tentação que o atormenta (que o tiraniza) e que o mesmo deseja suprimir (matar) por força de sua exaltação vaidosa para com o espírito. O verdadeiro crime de Édipo tem um valor simbólico. Ele mata o pai não apenas sob seu aspecto real, mas sob a forma do pai mítico negativo e o assassina como um coxo de alma, usando seu bastão-vaidade. O herói torna-se, destarte, culpado para com o espírito e prepara-se para cumprir o oráculo, não só conforme a aparência da fabulação (a morte do pai real), mas ainda segundo seu simbolismo profundo. Disposto a resolver perversamente o conflito de sua alma, desejando ‘matar’ sua contratentação culposa (que sobreviverá como sobreviveu o enigma da culpa do rei, a Esfinge), o herói avança em direção à aventura decisiva de sua vida. A fim de escapar ao tormento de sua culpabilidade crescente, não lhe resta afinal outra saída, se não cumprir integralmente o oráculo de eliminar em si mesmo o espírito acusador, a saber, o pai mítico sob sua forma positiva”. Após a morte de Laio, um novo elemento de predição oracular, cujo cumprimento é uma consequência do desaparecimento do rei, domina o mitologema: Édipo desposará sua própria mãe. Espalha-se a notícia da morte do soberano. Sem sucessor, o trono e a mão de Jocasta são prometidos a quem libertar a cidade do monstro, liberando-a simultaneamente da desordem e do flagelo. “Matando em Laio o reino da perversidade, o herói já venceu a Esfinge, mero símbolo duplicado da perversidade do rei, configurado em toda a sua monstruosidade. A Esfinge, metade mulher metade leão, traduz, desse modo, a devassidão e a dominação perversa. Em certas representações, a cauda do monstro termina em forma de cabeça de serpente, espelhando assim, como Quimera, a deformação das três pulsões. Diferencia-as o fato de que esta última reproduz a exaltação imaginária dos desejos que destroem a psiqué, enquanto a Esfinge exprime esta mesma exaltação sob sua forma ativa, ou melhor, banalmente agitada, convertendo-se no perigo que assola o mundo. Todos os atributos da ‘cruel cantora’ são índices de banalização: só pode ser vencida pelo intelecto, pela sagacidade, contraponto do embrutecimento banal. Sentada num rochedo, símbolo da terra, prende-se ao mesmo, como se estivesse fixada nele, traduzindo não somente a ausência de elevação, mas igualmente a indolência e languidez banal [...]. Apesar das asas, ao contrário das de Pégaso, que traduzem a perversão sublimada, as da Esfinge de nada lhe servem. Uma vez derrotada pelo intelecto, decifrado o enigma, a brutalidade não mais dispõe de assento e a Esfinge é obrigada a lançar-se do alto do rochedo e esmagar-se contra a terra e, como o mito o relata, o monstro é tragado pelo abismo, outros tantos símbolos da banalização vencida [...]”. O enigma, conhecido de todos, é muito simples: “Qual o ser que anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem mais pernas?” O enigma da perversidade só poderia ter uma solução: o homem, porquanto é a única criatura suscetível de perversão. É significativo que no enigma da Esfinge o homem é considerado como animal. A banalização reduz o homem a seus instintos mais abjetos, visualizando-o como simples irracional. A brutalização banal reconduz o homem à besta. Característica de grande importância é que o enigma, cuja solução é proposta a Édipo, diga respeito ao pé, símbolo da alma, tema central do mito. O próprio enigma da banalização, do espírito que morre, deixa claro que o homem deveria estar de pé, acima da animalidade. Ora, Édipo, em função da enfermidade psíquica, configuração de sua deficiência física, deve ter-se arrastado por longo tempo, na infância, sobre os quatro membros; e mesmo na idade adulta não conseguia manter-se de pé. “Mais que homem-herói, um jovem envelhecido, estado típico de todo neurótico, o filho de Jocasta defronta-se com a Esfinge e seu enigma da vida, apoiando-se num bastão, seu terceiro pé. A inquirição do monstro é formulada a cada ser humano, mas é adaptada particularmente a Édipo: o enigma da banalização alude à enfermidade do príncipe, índice de sua neurose. As duas deformações psíquicas são interdependentes e cada uma delas só se torna compreensível em função de seu complemento. Explicaria tal fato a solução dada por Édipo, ao menos sob sua forma verbal, ao enigma da vida proposto pela Esfinge, obrigando-a a precipitar-se do rochedo? A verdade é que todo neurótico pressente o perigo da banalização, mas só o entrevê afetivamente por excesso de aversão canalizada sobretudo contra a banalização convencional. O conhecimento afetivo encontra-se em todo neurótico mais ou menos intelectualizado e delineia com frequência os fundamentos de sua concepção de vida. Nada exaspera tanto o neurótico quanto o comportamento do homem convencionalmente banal e coisa alguma realça e infla tanto o potencial de sua vaidade quanto o cotejo permanente de si mesmo com sua ‘contraimagem’ perversa, desagradável e igualmente desvalorizada. O neurótico, ao mesmo tempo em que condena o banalizado, ataca e ‘mata-o’ incessantemente pelo excesso de sua desvalorização. Esse conhecimento íntimo do enigma da banalização, atribuído à clarividência parcial da aversão excessiva, tem seu fecho na percepção puramente verbal e intelectual, desprovida de qualquer força de liberação [...]”. Édipo, o neurótico, não percebe que o enigma da Esfinge alude à sua própria deformação, não se dando conta de que ele mesmo é o homem que deve ficar de pé, para que se chegue à verdadeira solução da pergunta da Esfinge. Para compreender perfeitamente não apenas o enigma da banalização, bem como a mais enigmática verdade da vida oculta no mesmo, era necessário que o herói tivesse uma visão mais penetrante do que a de sua afetividade intelectualizada, vale dizer, o espelho do espírito, arma outorgada simbolicamente pela divindade, a força da espiritualização-sublimação. “Só a clarividência do espírito poderia revelar a Édipo que o enigma da Esfinge é o reflexo de sua própria fraqueza, de sua falta vital. Dela o herói permanecerá vítima, apesar de sua vitória aparente sobre a banalização convencional e seus reflexos: o rei culpado e a imagem monstruosa do mesmo, a Esfinge”. Com a morte de Laio, o trono de Tebas está vago. Por força da vitória aparente sobre o monstro, o herói adquire o direito de ocupálo, como libertador de Tebas. Assumindo o poder, Édipo se casa com Jocasta. Realizou-se, no mito, a segunda parte da predição oracular. “Consoante o sentido latente, no entanto, o cumprimento do oráculo não se teria devido a um simples acidente, mas ao desenvolvimento da atividade sublime ou perversa do herói. O incidente ‘casar-se com a mãe’ é unicamente o índice simbólico dessa atividade, o índice revelador de sua sublimidade ou perversidade. No plano simbólico, a rainha-mãe deve possuir uma significação miticamente profunda. Se Laio configura o pai mítico sob forma negativa, o espírito pervertido, Jocasta espelha a mãe mítica, a terra, mas igualmente sob forma simbolicamente negativa. ‘Desposar a mãe’ torna-se sinônimo de apego excessivo à terra. Édipo liga-se à Terra-Mãe, símbolo, no caso, dos desejos exaltados. Elevado ao poder, o herói defronta-se com a alternativa secreta de sua vida: o enigma subjacente de toda a sua existência, o conflito intrapsíquico entre a neurose e a banalização não pode tardar a encontrar sua solução perversa ou sublime. O simbolismo da mãe desposada denuncia a natureza perversa da solução. Uma vez no trono, o filho de Laio julga que poderia realizar o sonho de sua adolescência: acredita-se o libertador sublime da cidade, símbolo do mundo. Seduzido, todavia, pelo poder, concretiza apenas o sonho perverso, conseguindo liberar unicamente seus próprios desejos. Fracassa, desse modo, precisamente numa perversidade que, por estar carregada de traços dionisíacos e titanescos, é apenas uma forma dessa mesma banalização que o ímpeto da juventude desejou combater. Desposando a Terra-Mãe, ele continuará a matar o pai mítico, o espírito: esta é a significação legal do oráculo e o caminho para sua realização integral. Édipo, entretanto, não resiste à tentação do poder. Abraçando-o em sua mãe, tradução dos prazeres, não o fará como Laio, homem banal, mas como alguém inibido por sua própria culpabilidade recalcada. A desordem e o flagelo continuarão a prosperar na cidade. Discórdia e ciume a devastarão, não mais semeados pela intriga banal, mas pelo capricho, a instabilidade, a carência de continuidade e unidade de direção, características do neurótico. O monstro vencido é substituído por novo flagelo. A peste assola a cidade, símbolo das consequências funestas da perversão, que arruma o país”. Tirésias proclama que a peste, que dizima a cidade, aponta para um grande criminoso oculto. A opinião do vidente é mais de ordem mágica que mítica e não abrange em toda a sua profundidade a significação latente e psicológica. A culpa de um só homem, por mais grave que seja, não provoca a desgraça de um país, a não ser que o culpado seja o soberano e a mazela uma consequência de seu governo. Cego por sua vaidade, o rei não pode e não quer compreender uma verdade tão clara e terrível. Para salvar a cidade, ordena a busca do criminoso. Através desse ato, a história de Laio se repete e se reflete na história do filho. O comportamento de Édipo é apenas uma variante do de Laio, em idêntica situação. Foi este último quem propôs uma recompensa àquele que decifrasse o enigma. “Este é comparável ao ‘espelho da verdade’, em que todo homem deveria se reconhecer. A Esfinge, aparentada com a Quimera, lembra igualmente Medusa. A solução de seu enigma chama-se ‘homem’, todos os homens, inclusive Laio e Édipo. O enigma de cada uma das formas da perversão, retratada pelos monstros míticos, visa em primeiro lugar a um homem preciso, aquele que desejaria vencer o monstro e que, seduzido e cego pela vaidade, será devorado. Para ser psicologicamente concreta e vitalmente eficaz, a solução adequada não é o homem em geral, nem tampouco todos os homens. O enigma aponta pessoalmente para cada ser humano. A solução é ‘eu mesmo’. Cada homem em diferentes níveis é presa do espírito perverso, a vaidade cega. ‘Resolver o enigma’ converte-se destarte em sinônimo de ‘conhece-te a ti mesmo’. É a significação do sorriso da Esfinge, simultaneamente misterioso e irônico. Como outrora diante do enigma da Esfinge, Édipo, agora, face ao novo flagelo, a peste, desconhece a alusão pessoal que o designa em primeiro lugar. A exemplo de Laio, o novo rei deixa a outrem a tarefa de esclarecer o novo enigma. Ao contrário, porém, do banalizado convencional, o neurótico, mesmo quando se banaliza, prossegue, do mais recôndito de sua psiqué, a sofrer com sua culpa. Recalcada, esta conserva uma certa tendência a escalar novamente o consciente e exigir sua própria dissolução. A história mítica do neurótico seria incompleta se ela negligenciasse o mais significativo dos conflitos, a luta entre a tendência ao recalque e a tendência à sublimação. A psiqué neurótica mantém-se, em realidade, ininterruptamente atormentada por causa da indecisão desse conflito. Segundo sua própria natureza, o mito, imagem condensada da realidade, concentra essa luta no episódio final do desfecho. As pesquisas realizadas não tardam em se orientar e a apontar o verdadeiro culpado. Começa então o processo de Édipo, processo psicológico de transformação da culpa secreta em verdade exteriorizada, que coloca o herói diante de sua plena responsabilidade”. Surgem indícios de todas as partes, acusando a Édipo. O tormento da culpabilidade começa a manifestar-se gradualmente, revelandose ao herói sob sua forma monstruosa. A visão de seu próprio erro se lhe impõe tão subitamente, que o rei de Tebas se torna incapaz de suportar a terrível verdade. Se, na realidade, ele era um filho adotivo, segundo afirma o pastor que o socorreu, se o homem assassinado no trívio era seu pai, a rainha desposada seria sua mãe e o oráculo se teria realizado por acaso e ele seria, ao menos, uma vítima inocente. Mas o que o rei não pode admitir, mercê do estado enfermo e aterrorizado de sua alma e da vaidade cega, é a culpabilidade essencial, cujo símbolo é sua sorte exterior. Conforme este sentido profundo, o destino do filho de Jocasta não é um mero acaso, mas consequência de uma falta. A verdadeira causa do horror e do desespero que dele se apossaram se deve ao fato de que tudo aquilo que lhe foi revelado, abstração feita da cortina simbólica, resultou de sua própria vontade: Édipo matou o espírito, a fim de usufruir os prazeres terrenos. Traiu o que julgava ser a mola-mestra da vida: as aspirações de sua juventude. O adivinho Tirésias, representante da verdade, porque enviado do espírito, acusa publicamente o rei e obriga-o a reconhecer os próprios delitos, para que a cidade se purifique e se livre da peste. Édipo o expulsa. A mãe-esposa Jocasta, em face da tremenda revelação, se enforca. Do ponto de vista simbólico, a morte da TerraMãe, configuração dos desejos exaltados, significa que os prazeres terrenos abandonam a Édipo, que, inibido pelo horror, não mais consegue usufruí-los. O rei, no entanto, continua a questionar e recusa não mais a realidade de sua falta, mas o reconhecimento da mesma. Teima em fechar os olhos do espírito. “O espelho da verdade é colocado diante dele, mas, em vez de reconhecer o erro, o herói rasga os próprios olhos. Este gesto, expressão do desespero levado ao paroxismo, é ao mesmo tempo a recusa definitiva de ver. Estanca-se a visão interior. A falta é recalcada em lugar de ser sublimada. O remorso e o pânico não mais puderam transformar-se em arrependimento salutar. A cegueira vaidosa é completa, a luz interior se extingue, morre o espírito. Édipo mata o pai mítico, não apenas sob forma negativa e de maneira simbólica, como fez com Laio; mas, liquidando em si mesmo a visão da verdade, o herói aniquila o espírito positivo e o assassina realmente. O filho de Jocasta mata o ‘pai de todo homem’ assim chamado pelo mito, porque é o espírito que dá sentido e direção à vida humana. É somente neste momento que, consoante seu significado profundo, o oráculo se realizou plenamente”. A profunda verdade psicológica do oráculo, porém, não se esgotou no cumprimento de uma das duas soluções possíveis da situação conflitante do neurótico. A história mítica deste último permaneceria incompleta se ele espelhasse unicamente o quadro dos estados sucessivos da perversão, negligenciando a possibilidade de saná-la. Édipo realizou exteriormente o destino predito, mas trata-se de um neurótico que continua a viver e a sofrer. É precisamente a amplitude de seu desespero em face dos erros cometidos que se mostra propícia a estimular o retorno para um impulso sublime, o único capaz de fornecer o remédio. A condição da cura é a transformação do remorso estéril em arrependimento salutar, da cegueira recalcada em lucidez interior. Como já se viu muitas vezes, o mito costuma concentrar duas significações em uma só imagem. A interpretação deve, por isso mesmo, para evitar arbitrariedade, seguir métodos extremamente precisos. Não só a introdução de duplo sentido deve partir da imagem mítica, mas, além disso, as duas significações devem ser diametralmente opostas, completando-se pela analogia de contraste. Mais que tudo, a introdução do significado complementar há de seguir a exigência indiscutível de um índice fornecido pelo mito. Todas essas condições se acham perfeitamente realizadas no simbolismo dos olhos vazados, havendo assim necessidade de inversão da situação primeira. Configurando o remorso estéril e a cegueira recalcada, o símbolo do vazamento dos olhos exprime com precisão igualmente o significado oposto de um despertar do arrependimento salutar e da lucidez introvertida. Nessa acepção, Édipo fura os olhos por arrependimento sublime de se ter abandonado, de haver assassinado o espírito e de haver desposado a terra, cujos olhos contemplam tão somente a sedução. Cega-se para afastar-se do mundo e de suas seduções, para mergulhar em si mesmo, a fim de se reconciliar com o espírito traído. Esta segunda interpretação é indiscutivelmente exigida pela variante do mito que relata ter sido Édipo, cego, conduzido por Antígona para Colono, onde se encontrava o santuário das Eumênides. A configuração do refúgio no bosque dessas divindades é, em sentido profundo, a repetição do motivo simbólico dos olhos vazados. Tal reiteração enfatiza a importância da dupla significação. Essas deusas “benevolentes” traduzem, na realidade, um aspecto simbólico de dupla interpretação, cujo significado oculto torna-se idêntico àquele dos olhos furados. O aspecto complementar da imagem “Eumênides” é representado pelas Erínias. Aquelas são Erínias, sob o aspecto benfazejo. As Erínias espelham a culpa recalcada e destrutiva, o tormento do remorso; as Eumênides traduzem esta mesma culpa, mas conscientizada e assumida, convertida em sublimidade produtiva e arrependimento liberador. O simbolismo que substitui aquele dos olhos furados assinala pois que o doente da alma, o neurótico, cego pelo recalque, atormentado pela culpa, perseguido pelas Erínias, não pode curar-se a não ser que se torne cego para as seduções ese conscientize da culpa. Em termos simbólicos, o culpado liberta-se da culpa, das Erínias, refugiando-se junto às Eumênides, cujo santuário em Atenas possuía omesmo poder salutar que o templo de Apolo com sua divisa: Conhece-te a ti mesmo. A imagem mítica, colocando Édipo em Colono, mostra que o herói, embora simbolicamente cego para o mundo, tornou-se realmente lúcido em função de si próprio. Vencedor perverso da perversidade, acabou por triunfar de maneira sublime do próprio perigo, a perversão. Refugiado em Colono, mata o pai mítico em si mesmo, o espírito perverso, e desposa a mãe mítica sob sua forma inocente. Sobrepuja a determinação oriunda das circunstâncias de sua infância e supera o destino anunciado pelo oráculo, realizando simultaneamente a predição, compreendida como símbolo mítico, em toda a amplitude de sua significação oculta. Símbolo do neurótico e de seus conflitos, bem como do homem capaz de desvario e de regeneração, Édipo, arrastado por sua fraqueza na queda, mas arrancando deste mesmo desmoronamento a força da elevação, acabou por tornar-se uma imagem de herói vencedor. Mergulhando no seio da Grande Mãe, Édipo afinal se encontrou. De flagelo de Tebas transformou-se em Ἔρως (Héros), em “protetor”, em defensor de Atenas. “Os deuses gregos não eram bons nem justos, eram belos”, diz com muita profundidade o Dr. Paulo Blank. Quem sabe, porém, se esses mesmos deuses, quando o mortal se encontra, deixam de ser apenas belos, para se tornarem também bons e justos? 2. Lico, segundo se viu linhas acima, era irmão de Nicteu e, portanto, tio da lindíssima Antíope, a quem Zeus, sob forma de sátiro, fez mãe dos gêmeos Anfião e Zeto. Grávida e porque temia a cólera de Nicteu, fugiu de casa e refugiou-se em Sicione, na corte do rei Epopeu. Desesperado com a fuga da filha, Nicteu, após encarregar a seu irmão de vingá-lo, matou-se. Lico marchou contra Sicione, matou Epopeu e levou Antíope de volta a Tebas. Foi na viagem de Sicione a Tebas, em Elêuteras, que as crianças nasceram. O regente de Tebas mandou expô-las numa elevada montanha, mas os pastores locais as recolheram e criaram. Em Tebas, Antíope foi acorrentada e era tratada como escrava. Certa noite, no entanto, as correntes caíram-lhe misteriosamente das mãos e a princesa foi em busca dos filhos e os encontrou numa humilde choupana. Não a tendo reconhecido, entregaram-na a Dirce, esposa de Lico, a qual lhe fora ao encalço. Um dos pastores, que os havia recolhido, reveloulhes a identidade de Antíope; e os gêmeos, após libertarem a mãe, assassinaram a Lico e Dirce, apossando-se do trono de Tebas. Por causa da morte de Dirce, Dioniso enlouqueceu Antíope, que, ferida da manía báquica, percorreu a Grécia inteira, até que foi curada e desposada por Foco, herói epônimo da Fócida. 3. Na evocação dos mortos, Odisseia, XI, 271-280, Ulisses, entre muitos outros eídola, viu também o da mãe de Édipo. Vale a pena traduzir os dez hexâmetros de Homero: Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta. Ela, sem o saber, cometeu um grande crime, casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai. Os deuses rapidamente fizeram que a notícia circulasse entre os homens. Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos deuses, continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. Ela, porém, desceu à mansão de Hades, de sólidas portas, depois de atar, dominada pela dor, um laço a uma alta viga, deixando ao filho, como herança, inúmeros sofrimentos com que as Erínias punem os delitos cometidos contra uma mãe. 4. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural Um. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 250. 5. DELCOURT, M. Oedipe ou la Légende du conquérant. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 19ss. 6. λάβδα. βλαισός, παραλυτικός ὁ τοὺς πόδας ἐπὶ τὰ ἔξω διεστραμμένος καὶ τῷ Λ στοιχείω ἐοικώς διὰ τοῦτο καὶ Λάμβδα ἐκαλεῖτο ἡ γυνὴ μὲν Ήετίωνος. μήτηρ δἐ Κυψέλου τοῦ Κορίνθου τυράννου. 7. DELCOURT, M. Op. cit., p. 20, citando M. Fohalle e confirmando-lhe a opinião com a autoridade de Antoine Meillet (Introduction à l’étymologie comparée des langues indoeuropéennes, p. 99), lembra que a vogal a, relativamente rara em indo-europeu, figura principalmente em nomes de caráter popular, e, em particular, em nomes de enfermidades. 8. O escólio (comentário para esclarecer um texto clássico) aos versos 26 e 28 das Fenícias diz: “Relata-se que lançaram Édipo no mar, após ter sido colocado num cofre; ele chegou a Sicione e lá foi criado” (v. 26). “Contam alguns (mitógrafos) que, lançado no mar dentro de um cofre, o menino foi dar nas praias de Corinto” (v. 28). A Fábula 66 de Higino reza assim: “Periboca, esposa do rei Pólibo, quando estava lavando roupa junto ao mar, recolheu, com o consentimento do marido, a Édipo que havia sido exposto”. 9. Ibid., p. 24. 10. Ibid., p. 24. 11. Esse Menetes ou Menécio talvez fosse uma personagem do Édipo de Eurípides e figurasse em alguma mitopeia influenciada por Édipo Rei, porque raramente os trágicos dão nomes a personagens episódicas, cuja presença serve apenas à economia da peça, exceto, como frisa Delcourt, se esses nomes equivalem a um adjetivo, como Copreu ou Lico. 12. Ibid., p. 26. 13. Ibid., p. 66s. 14. POTTER, M.A. Sohrab and Rustem. The epic theme of a combat between father and son, a study of its genesis and use in literature and popular tradition.London: Oxford University Press, 1902, passim. 15. Die Ahnfrau, “A Avó”, peça em cinco atos do dramaturgo austríaco Franz Grillparzer (1791-1872). Trata-se do que se convencionou chamar drama fatalista (Schicksalstragödie). Nessas tragédias fatalistas, o deus ex machina, uma espécie de fatalidade cega, como a Moîra grega, pesa sobre as personagens como verdadeira maldição. Na peça em apreço estão presentes todos os ingredientes do gênero: “a falta, o parricídio, o incesto possível, o bandido cavalheiresco e, mais que tudo, o espectro de uma avó que aparece cada vez que uma desgraça atinge a família”. Trata-se, com efeito, de terrível flagelo que atingiu a família dos Condes de Borotin. Uma antiquíssima avó do último Conde de Borotin foi surpreendida pelo marido e apunhalada nos braços do amante e, por isso mesmo, todos os seus descendentes, até o último, pagarão pelo adultério cometido. O fantasma da avó não descansará, enquanto toda a família não for exterminada. 16. O texto de Sigmund Freud está em La Science des rêves. Paris: Presses Universitaires de France, p. 198-199, citado por Erich Fromm. In: Le langage oublié – Introduction à la compréhension des rêves, des contes et des mythes. Paris: Payot, 1953, p. 159-160 [Tradução de Simone Fabre]. 17. FROMM, Erich. Op. cit., p. 162 (v. nota 16). 18. MULLAHY, Patrick. Oedipus – Myth and Complex. New York: Hermitage, 1952, p. 131132. 19. Ibid., p. 133. 20. JUNG, C.G.ThePsychologyoftheUnconscious.New York: Dodd, Mead & Company, 1927, p. 145. 21. Ibid., p. 260-267. 22. Só se pode falar de trilogia aqui no caso, latissimo sensu, ao menos cronologicamente, uma vez que Antígona talvez tenha sido encenada entre 442-441 a.C.; Édipo Rei talvez após 430 a.C. e Édipo em Colono o foi em 401 a.C., após a morte do poeta. Ordenando as três tragédias “tematicamente” em Édipo Rei, Antígona, Édipo em Colono, poder-se-ia, assim mesmo, lato sensu, chamá-las uma trilogia. Veja-se a análise que fizemos desta “trilogia” em Teatro grego, Tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 45ss. 23. FROMM, Erich. Op. cit., p. 162-163 (v. nota 188). 24. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Tragédia e comédia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 45ss. 25. DELCOURT, Marie. Op. cit., XIX. 26. Ibid., p. 68. 27. Existem ainda outras formas em grego, atestadas por Hesíquio (séc. VI d.C.) em seu Ονοματολόγος (Onomatológos), Catálogo, verbete Βίκας (Bíkas), conforme a Suda, verbete, e por uma passagem de Platão, Crátilo, 414a, que diz o seguinte: “Como também a Esfinge: em lugar de Fix, chamam-na Esfinge”. 28. Ibid., p. 128. 29. Ibid., p. 140. 30. Vamos apresentar duas versões do célebre enigma: a primeira, dos inícios do séc. IV a.C., é a mais antiga de que se tem notícia até o momento; a segunda, tardia, é uma redução didática da anterior. No século IV a.C., Teodectes, poeta que se tornou famoso na época, substituiu em sua tragédia Édipo o enigma das fases da vida pelo do Dia e da Noite, segundo o testemunho de Ateneu, Dipnosofistas, 10,451f: “São duas irmãs: a primeira gera a segunda e esta, que a gerou, é gerada pela primeira”. A resposta é o Dia e a Noite, devendo-se, porém, recordar que Ήμέρα (Heméra), Dia, e Νυξ (Nyks), Noite, são femininos em grego e que, na Teogonia de Hesíodo, segundo se mostrou no cap. IX, p. 191, do Vol. I, o Diaé gerado pela Noite e esta, em seguida, é parida pelo Dia. 31. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos da PUC, n. 16. Rio de Janeiro: Divisão de Intercâmbio e Edições, 1974, p. 32. 32. Ibid., p. 32ss. 33. τύραννoς (T×rannos), fonte de nosso vocábulo tirano, não possuía em grego a conotação que adquiriu posteriormente em outras línguas. O tirano era, as mais das vezes, um líder de índole democrática que, proveniente da aristocracia, se unia à classe média e ao povo para protegê-los contra os nobres. A julgar por Atenas (Pisístrato), Corinto (Cípselo), Siracusa (Hierão) e Samos (Polícrates), a tirania incentivou a agricultura; despendeu grandes somas em construções públicas, dando oportunidade de trabalho a centenas de operários; apoiou as competições, incentivou a formação musical e atlética do povo grego, acolheu em suas luxuosas cortes poetas e artistas. Psicologicamente, no entanto, como se verá, no caso de Édipo, a insegurança do poder acabará por destruir o saber do tirano. 34. Ibid., p. 73. 35. Ibid., p. 73. 36. Ibid., p. 33. 37. Ibid., p. 74. 38. Ibid., p. 40s. 39. Etéocles e Polinice haviam combinado que cada um ocuparia alternadamente por um ano o trono de Tebas. Findo o primeiro ano, Etéocles se recusou a entregar o poder a seu irmão Polinice, originando-se daí a chamada expedição dos Sete contra Tebas. Sob o comando de Adrasto, sogro de Polinice, sete heróis empreenderam uma expedição contra Tebas, na qual, como profetizara Édipo, morreram lutando um contra o outro Etéocles e Polinice. 40. Ibid., p. 245. 41. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 59s. 42. Acerca especificamente de ÉDIPO, as referências e fontes mais antigas são basicamente as citadas no corpo do capítulo. Vamos reuni-las para efeito apenas de consulta. Homero, Il., XXIII, 676ss; Od., XI, 271ss; Píndaro, Olímpicas, 2,42ss; Ésquilo, Os Sete contra Tebas, 745ss; Heródoto, Histórias, 5,59; Sófocles, Édipo Rei, passim; Édipo em Colono, passim; Eurípides, Fenícias, 7ss; 940ss; Apolodoro, Biblioteca, 3,5,7ss; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 4,64ss; Estrabão, Geografia, 8,380; Pausânias, Descrição da Grécia, 1,28,7; 30,4; 2,20,5; 36,8; 4,3,4; 8,8; 5,19,6; 9,2,4; 5,10ss; 9,5; 18,3ss; 25,2; 26,2; 4; 10,5,3s; 17,4; Higino, Fábulas, 66; 67; Estácio, Tebaida, 1,61; Ateneu, Dipnosofistas, 10,456b. 43. BRANDÃO, Jacyntho Lins et al. Op. cit., passim. 44. Édipo Revisitado. In: Cadernos de Psicanálise. Ano VII, n. 5. Rio de Janeiro: Semente, 1985, passim. 45. DIEL, Paul. Op. cit., p. 154ss. CAPÍTULO IX Ulisses: o Mito do Retorno 1 A Guerra de Troia não se fechou com os funerais de Heitor, domador de cavalos (Il., XXIV, 804). Após a morte do grande herói de Ílion por Aquiles, a luta ainda se arrastou miticamente por mais um ano. Ainda havia muito sangue para correr e muitas lágrimas para se derramarem. Para se conquistar em definitivo a rica fortaleza da Ásia Menor, três dentre outras providências eram urgentes: obter os ossos de Pélops, talismã indispensável à vitória; arrancar das entranhas da cidadela o Paládio e convencer Filoctetes a reintegrar-se aos aqueus, porque, sem as flechas de Héracles, que estavam em poder daquele, Troia jamais poderia ser tomada, consoante as predições de Heleno1. Segundo se falou no capítulo I, 8, como os despojos dos heróis, contrariamente ao costume geral, são sepultados no interior da pólis, para santificá-la e defendê-la, apossar-se de seus ossos é debilitar e desguarnecer a cidade. Quanto ao Paládion, como se acentuou no Vol. II, p. 25, era uma estatueta de Atená, que, durante dez anos, apesar da inimizade da deusa pela cidade de Troia, a defendeu das investidas dos gregos. Foi, pois, necessário que Ulisses e Diomedes a subtraíssem, com a cumplicidade do silêncio de Helena, que os vira penetrar na fortaleza. Filoctetes, o grande herói da Tessália e herdeiro das flechas de Héracles, fora abandonado na ilha de Lemnos, a conselho de Ulisses, por ter sido vítima de uma ferida aparentemente incurável, provocada pela mordidela de uma serpente na ilha de Tênedos, conforme se mostrou no Vol. I, p. 87. O herói estava profundamente magoado com os helenos e foi tarefa muito difícil levá-lo de volta aos combates contra a cidade de Heitor. A missão, no relato da tragédia Filoctetes de Sófocles, foi confiada a Ulisses e Neoptólemo, filho de Aquiles, que, com o auxílio do deus ex machina Héracles, conseguiram convencê-lo a prestar seus serviços novamente ao exército aqueu. Em outras versões, Ulisses e Diomedes apoderaram-se de suas armas pela astúcia e, desse modo, inerme, o herói foi obrigado a acompanhá-los. Conta-se ainda que se apelou para seu patriotismo e dever, prometendo-se-lhe, ao mesmo tempo que, uma vez em Troia, seria curado da repugnante ferida pelos filhos de Asclépio, Macáon e Podalírio, o que, de resto, aconteceu. Nessas alturas, Aquiles já fora morto por uma flecha de Páris, aliás guiada por Apolo, e o raptor de Helena, logo depois, ferido mortalmente, desceu à mansão de Hades para explicar lá embaixo por que fora tão pouco herói na Guerra de Troia... Satisfeitas todas as condições, os aqueus se prepararam para conquistar e destruir a grande Ílion. Com o fito de evitar derramamento de sangue heleno, Ulisses, inspirado por Atená, imaginou o genial estratagema do cavalo de madeira, introduzido na cidade, “pejado de guerreiros, que saquearam Troia”. Trata-se do gigantesco Cavalo de Troia, cuja descrição sumária nos dá Homero (Od., VIII, 493-520), mais tarde comoventemente ampliada por Públio Vergílio Marão em sua Eneida, 2,13-2672. Era o décimo ano da sangrenta Guerra de Troia. Destruída e incendiada a opulenta cidadela de Ílion, os heróis gregos se aprestaram para o longo e difícil regresso a seus respectivos reinos. Entre eles estava o solerte Ulisses. 1. Heleno, filho de Príamo e Hécuba, era irmão gêmeo de Cassandra e possuía o dom divinatório, que lhe fora outorgado por Apolo. Quando da morte de Páris, Deífobo, seu irmão mais jovem, se casou com Helena. Heleno, que a amava, retirou-se para o monte Ida. O adivinho do exército grego, Calcas, tendo predito que só Heleno poderia anunciar de que modo Troia poderia ser tomada, Ulisses conseguiu, com sua solércia costumeira, apoderarse do mántis de Ílion e obrigá-lo a indicar as condições para a derrota da cidade. Uma delas, prognosticara Heleno, era a presença de Filoctetes com as flechas de Héracles. 2. A respeito do Cavalo de Troia veja-se o Vol. I, p. 110s. Quadro 10 2 Claro está que o vocábulo grego Όδυσσεύς (Odysseús) não poderia ser a fonte primeira de nosso Ulisses. É que, a par de Odysseús, existe em grego a forma dialetal Οὐλίξης (Ulíkses), que, através do latim Ulixes, nos deu Ulisses3.Como todo herói, o rei de Ítaca teve um nascimento meio complicado. Desde a Odisseia a genealogia de Odisseu é mais ou menos constante: é filho de Laerte e de Anticleia, mas as variantes alteraram-lhe sobremodo os antepassados mais distantes. É assim que, do lado paterno, seu avô, desde a Odisseia, chamava-se Arcísio, que era filho de Zeus e de Euriodia. Do lado materno o herói tinha por avô a Autólico, donde seu bisavô era nada mais nada menos que Hermes, segundo se pode observar no quadro genealógico no início deste capítulo, embora o mesmo se apresente com algumas variantes, o que é comum no mito. Se bem que desconhecida dos poemas homéricos, existe uma tradição segundo a qual Anticleia já estava grávida de Sísifo4, quando se casou com Laerte. Ulisses nasceu na ilha de Ítaca, sobre o monte Nérito, um dia em que sua mãe fora ali surpreendida por um grande temporal. Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Όδυσσεύς (Odysseús), cuja interpretação estaria contida na frase grega κατά τὴν ὁδὸν ὕσεν ὁ Ζεύς (Katà tèn hodòn h×sen ho Dzeús), ou seja, “Zeus chovia sobre o caminho”, o que impediu Anticleia de descer o monte Nérito. A Odisseia, XIX, 406409, no entanto, cria outra etimologia para o pai de Telêmaco: o próprio Autólico, que fora a Ítaca visitar a filha e o genro e lá encontrara o neto recém-nascido, “por ter-se irritado (ὀδυσσάμενος) com muitos homens e mulheres que encontrara pela terra fecunda”, aconselhou aos pais que dessem ao menino o nome de Όδυσσεύς (Odysseús), uma vez que o epíteto lembra de fato o verbo ὀδύσσομαι (od×ssomai), “eu me irrito, eu me zango”. Na realidade, ainda não se conhece com precisão a etimologia de Odysseús, apesar dos esforços de Albert Carnoy5, que, isolando a finaleus, frequente nos nomes de heróis, postula o radical λυκϳο(lykjo-), derivado de λυκ-, que significa luminoso, o que justificaria semanticamente o sacrifício das vacas do deus Hélio (Sol), bem como o cegamento do ciclope Polifemo com um tronco de oliveira incandescido, como fez o Lug céltico com Balor. Desse modo, conclui o filólogo belga, seria possível identificar λυκϳο- (lykjo-) com o deus germânico Loki, cuja vinculação com o fogo é evidente: a base etimológica seria então o indo-europeu lug-io a par de luk-io6. Filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de Autólico, o maior e mais sabido dos ladrões e ainda bisneto de Hermes, o deus também dos ardis e trapaças, o trickster por excelência, Ulisses só poderia ser mesmo, ao lado da inteligência exuberante, da coragem e da determinação, um herói πολύμητις (pol×metis), cheio de malícia e de habilidade e um πολύτροπος (pol×tropos), um solerte e manhoso em grau superlativo. Educado, como tantos outros nobres, pelo centauro Quirão, ainda muito jovem o herói de Ítaca deu início às suas aventuras. Durante uma curta permanência na corte de seu avô Autólico participou de uma caçada no monte Parnaso e foi ferido no joelho por um javali. A cicatriz, pouco acima do joelho, produzida pela mordidela da fera, se tornou indelével e servirá como sinal de reconhecimento, quando o egrégio neto de Autólico regressar a Ítaca (Od., XIX, 392ss). Pausânias relata com precisão que a luta entre o herói e o javali, com o consequente ferimento daquele, se passara exatamente no local em que se construiu o Ginásio de Delfos, igualmente no monte Parnaso. A mando de Laerte, Ulisses dirigiu-se a Messena, para reclamar uma parte do rebanho de seu pai, que lhe havia sido furtada. Na corte do rei Orsíloco, tendo-se encontrado com Ífito, filho de Êurito e herdeiro do famoso arco paterno, os dois heróis resolveram, como penhor de amizade, segundo já se relatou no capítulo III, 5, trocar de armas. O futuro rei de Ítaca presenteou Ífito com sua espada e lança e este deu a Ulisses o arco divino com que o esposo de Penélope matará mais tarde os soberbos Pretendentes. Completada a δοκιμασία (dokimasía), as primeiras provas iniciáticas, traduzidas na morte do javali, símbolo da aquisição do poder espiritual e da obtenção do arco, imagem do poder real e da iniciação dos cavaleiros, Ulisses recebeu de seu pai Laerte – que se recolheu, certamente por inaptidão ao poder – o reino de Ítaca, com todas as suas riquezas, consistentes sobretudo em rebanhos. O rei, obrigatoriamente, no entanto, se completa no casamento. Cortejou, por isso mesmo, em primeiro lugar, a Helena, filha de Tíndaro; mas, percebendo que o número de pretendentes era excessivo, voltou-se para a prima da futura esposa de Menelau, Penélope, filha de Icário. Esta união lhe traria tantas vantagens (Ulisses sempre foi um homem prático) quantas lhe proporcionaria a união com Helena. A mão de Penélope foi conseguida ou por gratidão de Tíndaro, como se verá em seguida, ou, como é mais provável, por uma vitória obtida pelo herói numa corrida de carros instituída por seu futuro sogro entre os pretendentes da filha. De qualquer forma, o pai de Helena sempre foi muito grato a Ulisses por um conselho que este lhe dera. Como o número de pretendentes à mão de Helena fosse muito grande, o rei de Ítaca sugeriu a Tíndaro que os ligasse por dois juramentos, como se viu no Vol. I, p. 90s: respeitar a decisão de Helena, quanto à escolha do noivo, ajudando-o a conservá-la; e se o eleito fosse, de alguma forma, atacado ou gravemente ofendido, os demais deveriam socorrê-lo. Pressionada pelo pai a permanecer em Esparta com o marido, Penélope, dando provas de seu amor conjugal, preferiu, como era desejo de Ulisses, seguir com ele para Ítaca. Diga-se, aliás, de passagem, que, apesar de Esparta ter sido considerada sobretudo à época clássica como a cidade das mulheres virtuosas e corretas e de Penélope, através da Odisseia, ser apontada como símbolo da fidelidade conjugal, existem outras versões, como veremos, que a acusam formalmente de haver traído o marido tanto antes quanto após o retorno do mesmo. Seja como for, do casamento com o rei de Ítaca, Penélope foi mãe de Telêmaco. Este ainda estava muito novinho, quando chegou ao mundo grego a triste notícia de que Páris raptara Helena e de que Menelau, valendo-se do juramento dos antigos pretendentes à mão de sua esposa, exigia de todos o cumprimento da solene promessa, para que pudesse vingar-se do príncipe troiano. Embora autor intelectual do famoso juramento, o rei de Ítaca, não por falta de coragem, mas por amor à esposa e ao filho, procurou de todas as maneiras fugir ao compromisso assumido. Quando lhe faltaram argumentos, fingiu-se louco. Em companhia de seu primo, o astuto e inventivo Palamedes, Menelau dirigiu-se a Ítaca. Lá encontra-ram Ulisses, que havia atrelado um burro e um boi a uma charrua e abria sulcos nos quais semeava sal. Outros dizem que tentava arar as areias do mar. Palamedes, todavia, não se deixou enganar com o embuste e colocou o pequenino Telêmaco diante das rodas do arado. Ulisses deteve os animais a tempo de salvar o menino. Desmascarado, o herói dedicou-se inteiro à causa dos atridas, mas nunca perdoou a Palamedes e no decurso da Guerra de Troia vingou-se cruel e covardemente do mais inteligente dos heróis da Hélade7. Acompanhado de Miisco, que Laerte lhe dera como conselheiro, e com a missão de velar sobre o filho em Troia, Ulisses se engajou na armada aqueia. De saída, acompanhou Menelau a Delfos para consultar o oráculo e, logo depois, em companhia do mesmo Menelau e de Palamedes, participou da primeira embaixada a Troia com o fito de resolver pacificamente o incidente do rapto de Helena. Em seguida foi em busca de Aquiles, que sua mãe Tétis havia escondido, mas cuja presença e participação, segundo o adivinho Calcas, eram indispensáveis para a tomada de Ílion. Conforme se mostrou no Vol. I, p. 114s, e no capítulo I, 4, do presente Volume, Tétis, sabedora do triste destino que aguardava seu filho, levou-o secretamente para a corte de Licomedes, na ilha de Ciros, onde o herói passou a viver como linda donzela “ruiva” no meio das filhas do rei, com o nome falso de Pirra, já que o herói tinha os cabelos louro-avermelhados. Disfarçado em mercador, o astuto Ulisses conseguiu penetrar no gineceu do palácio de Licomedes. As moças logo se interessaram pelos tecidos e adornos, mas Pirra, a “ruiva”, tendo voltado sua atenção exclusivamente para as armas, Ulisses pôde com facilidade identificá-lo e conduzi-lo para a armada aqueia. Conta uma outra versão que o filho de Tétis se deu a conhecer porque se emocionou, ouvindo os sons bélicos de uma trombeta. Ainda como embaixador, o rei de Ítaca foi enviado juntamente com Taltíbio, arauto de Agamêmnon, à corte de Chipre, onde reinava Cíniras, que, após o incesto involuntário com sua filha Mirra, conforme se viu no Vol. I, p. 229s, fora exilado de Biblos e se tornara o primeiro rei da grande ilha grega do mar Egeu, onde introduziu, aliás, o culto de Afrodite. Cíniras prometeu enviar cinquenta naus equipadas contra os Troianos, mas, usando de um estratagema, mandou apenas uma. Reunidos finalmente os reis helenos, a armada velejou rumo a Tróada, mas, não conhecendo bem a rota, a grande frota, sob o comando de Agamêmnon, abordou em Mísia, na Ásia Menor e, dispersados por uma grande tempestade, os chefes aqueus regressaram a seus respectivos reinos. Somente oito anos mais tarde congregaram-se novamente em Áulis, porto da Beócia. O mar, no entanto, permanecia inacessível aos audazes navegantes, por causa de prolongada calmaria. Consultado, o adivinho Calcas explicou que o fenômeno se devia, conforme se falou no Vol. I, p. 229, à cólera de Ártemis, porque Agamêmnon, matando uma corça, afirmara que nem a deusa o faria melhor do que ele. A ultrapassagem do métron por parte do rei de Micenas era grave e, para suspender a calmaria, Ártemis exigia, na palavra do adivinho, o sacrifício da filha primogênita do rei, Ifigênia. Foi nesse triste episódio, maravilhosamente repensado por Eurípides em sua tragédia Ifigênia em Áulis, que Ulisses continuou a mostrar sua inigualável astúcia e capacidade de liderança. Agamêmnon, a conselho de seu irmão Menelau e de Ulisses, enviara à esposa Clitemnestra, em Micenas, uma mensagem mentirosa, solicitando-lhe que conduzisse Ifigênia a Áulis, a fim de casá-la com o herói Aquiles. Mas, logo depois, horrorizado com a ideia de sacrificar a própria filha, tentou mandar uma segunda missiva, cancelando a primeira. Menelau, todavia, interceptou-a e Clitemnestra, acompanhada por Ifigênia e o pequenino Orestes, chega ao acampamento aqueu. O solerte rei de Ítaca, percebendo as vacilações de Agamêmnon e os escrúpulos de Menelau no tocante ao cumprimento do oráculo, excitou os chefes e a soldadesca aqueia contra os atridas, que se viram compelidos a sacrificar a jovem inocente. Não fora a pronta intervenção de Ártemis, que substituiu Ifigênia por uma corça, fato comum no mito do sacrifício do primogênito, Agamêmnon, Menelau e Ulisses teriam agravado ainda mais sua hýbris, já bastante intumescida. Ainda bem que, no mundo antigo, se levavam em conta os atos e não as intenções! Uma derradeira intervenção da argúcia e bom senso do herói, antes da carnificina de Troia, pode ser detectada na correta interpretação do oráculo relativo à cura de Télefo8por Aquiles. O esposo de Penélope demonstrou com precisão absoluta que o restabelecimento da saúde do rei de Mísia teria que ser operado “pela lança e não pelo filho de Tétis”. Este colocou um pouco da ferrugem de sua arma predileta sobre o ferimento de Télefo, que imediatamente o teve cicatrizado. 3 Consoante o Catálogo das Naus (Il., II, 637) Ulisses levou a Troia doze navios lotados com heróis, soldados e marujos provenientes das ilhas de Cefalênia, os magnânimos cefalênios; de Ítaca, de Nérito, de Egílipe, de Zacinto e de Same...9 Considerado por todos como um dos grandes heróis, sempre participou do conselho dos chefes que sitiariam Ílion. Na rota para Troia aceitou o desafio do rei de Lesbos, Filomelides, e o matou na luta. Esse episódio, recordado pela Odisseia, IV, 343s, foi reinterpretado posteriormente como um verdadeiro assassinato cometido por Ulisses e seu parceiro inseparável em tais casos, o violento Diomedes. Em Lemnos, durante um banquete dos chefes aqueus, ainda segundo a Odisseia, Ulisses e Aquiles discutiram asperamente: o primeiro elogiava a prudência e o segundo exaltava a bravura. Agamêmnon, a quem Apolo havia predito que os aqueus se apossariam de Troia, quando reinasse a discórdia entre os chefes helenos, viu no episódio o presságio de uma rápida vitória. Os mitógrafos posteriores deturparam o fato e atribuíram a querela a Agamêmnon e Aquiles, primeiro sintoma da grave contenda entre estes dois heróis, o que se constituirá no assunto da Ilíada. Foi ainda em Lemnos ou numa ilhota vizinha, chamada Crises, que, a conselho de Ulisses, os chefes aqueus resolveram abandonar Filoctetes, segundo já se comentou no início deste capítulo. Um outro acontecimento desconhecido pelos poemas homéricos é a denominada segunda missão de paz a Troia: tendo a frota grega chegado à ilha de Tênedos, bem em frente à fortaleza de Príamo, Menelau e Ulisses dirigiram-se novamente a Ílion na tentativa de resolver o grave problema do rapto de Helena de maneira pacífica e honrosa. Dessa feita, porém, foram muito mal recebidos, porque Páris e seus partidários não só recusaram quaisquer propostas de paz, mas ainda, por intermédio de seu amigo Antímaco, o raptor de Helena tentou amotinar o povo para que matasse a Menelau e certamente também a Ulisses. Salvou-os o prudente Antenor, conselheiro de Príamo e amigo de alguns chefes aqueus. Com isso a guerra se tornou inevitável. Foi ainda por sugestão do pacifista Antenor que se tentou obter a decisão acerca da permanência em Troia de Helena e dos tesouros roubados à corte de Menelau ou de seu retorno a Esparta por meio de um combate singular entre Páris e Menelau. Mas, como nos mostra a Ilíada, III, 347ss, no momento em que o atrida estava para liquidar o inimigo, Afrodite o envolveu numa nuvem e o levou de volta para o tálamo perfumado de Helena! Pândaro, aliado dos Troianos, rompe sacrilegamente as tréguas e lança uma seta contra Menelau. Recomeçou a sangrenta seara de Ares, que haveria de se prolongar por dez anos. Pois bem, por todo esse tempo o heroísmo e a astúcia de Ulisses brilharam intensamente. Durante todo o cerco de Ílion o rei de Ítaca mostrou extraordinário bom senso, destemor, audácia, inteligência prática e criatividade. Convocavam-no para toda e qualquer missão que demandasse, além de coragem, sagacidade, prudência e habilidade oratória. Πολυμήχανος (Polymékhanos), “industrioso, fértil em recursos”, é o epíteto honroso, que lhe outorga Atená logo no canto segundo: Il., II, 173. É assim que sua solércia e atividade diplomática se desdobram desde os primeiros cantos do poema. Foi o comandante da nau que conduzia uma hecatombe a Apolo e levava a bela Criseida de volta a seu pai Crises; organizou o combate singular entre Páris e Menelau; na assembleia dos soldados reduziu Tersites10 ao silêncio e, com um discurso inflamado, revelando um grande presságio, persuadiu os aqueus a permanecerem em Tróada, quando o desânimo já se apossara de quase todos eles (Il., II, 284-332). Participou igualmente, acompanhado de Fênix e Ájax, da embaixada junto a Aquiles, para que este, uma vez desagravado por Agamêmnon, voltasse ao combate (Il., IX, 163-170), o que, ainda dessa feita, não aconteceu, apesar do belo e convincente discurso do rei de Ítaca (Il., 225-306). Em parte através da Odisseia e sobretudo de poetas posteriores, ficamos sa-bendo de outras missões importantes do mais astuto dos Helenos. Como a guerra se prolongasse além do esperado, Ulisses, em companhia de Menelau, dirigiu-se à corte de Ânio, rei e sacerdote de Delos, como atesta Vergílio na Eneida, 3,80. Esse Ânio, filho de Apolo e de Reá, a “Romã”, era pai de três filhas: Elaís, Espermo e Eno, cujos nomes lembram, respectivamente, óleo, trigo e vinho. Como houvessem recebido de seu ancestral Dioniso o poder de fazer surgir do solo esses três produtos indispensáveis, os chefes aqueus, dado o prolongamento da guerra, mandaram buscá-las. De bom grado as filhas do rei de Delos acompanharam os embaixadores gregos, mas, já cansadas de uma tarefa incessante, fugiram. Perseguidas pelos Helenos, pediram proteção a Dioniso, que as metamorfoseou em pombas. Por isso mesmo, na ilha de Delos, era proibido matar pombas. Além da já citada incumbência de trazer Filoctetes de volta às fileiras aqueias, Ulisses, juntamente com Fênix ou Diomedes, foi encarregado de trazer da ilha de Ciros a Neoptólemo, filho de Aquiles e de Deidamia, segundo se comentou no Vol. I, capítulo VI, p. 109s, e cuja presença, após a morte de Aquiles, era também imprescindível para a queda de Ílion, segundo vaticinara Heleno. Os feitos do rei de Ítaca durante a Guerra de Troia não se reduzem, todavia, a embaixadas. Audacioso, destemido e sobretudo caviloso, o herói arriscou muitas vezes a vida em defesa da honra ofendida da família grega. Numa sortida noturna e perigosa, ele e Diomedes, no chamado episódio da Dolonia (Il., X, 454-459), obtêm dupla vitória. Dólon, espião troiano, é aprisionado pelos dois heróis aqueus. Após revelar tudo quanto os dois desejavam saber, Diomedes, impiedosamente, apesar das súplicas de Dólon, cortou-lhe a cabeça. Guiados pelas informações do troiano, penetraram no acampamento inimigo e surpreenderam dormindo o herói trácio Reso, que viera em auxílio dos Troianos no décimo ano da guerra. Mataram-no e levaram-lhe os brancos corcéis, rápidos como o vento (Il., X, 494-514). Conta-se que a audaciosa expedição dos dois bravos aqueus contra Reso fora inspirada pelas deusas Hera e Palas Atená, pois um oráculo predissera que, se Reso e seus cavalos bebessem da água do rio Escamandro, o herói trácio seria invencível. O tema da morte desse herói foi retomado no séc. IV a.C. na tragédia Reso, que durante longo tempo foi erradamente incluída entre as peças de Eurípides. Desejando penetrar como espião em Ílion, para não ser reconhecido, fez-se chicotear até o sangue por Toas, filho de Andrêmon e chefe de um contingente etólio, consoante o Catálogo das Naus. Ensanguentado e coberto de andrajos, apresentou-se em Troia como trânsfuga. Conseguiu furtivamente chegar até Helena, que, após a morte de Páris, estava casada com Deífobo e a teria convencido a trair os Troianos. Relata-se igualmente (o que certamente faz parte do romanesco) que Helena teria denunciado a Hécuba, rainha de Troia, a presença de Ulisses, mas este, com suas lágrimas, suas manhas e palavras artificiosas, teria convencido a esposa de Príamo a prometer que guardaria segredo a seu respeito. Desse modo foi-lhe possível retirar-se ileso, matando antes as sentinelas que vigiavam a entrada da fortaleza. Quando da morte de Aquiles e da outorga de suas armas ao mais valente dos aqueus, Ájax Télamon, o Grande Ájax, o mais forte e destemido dos gregos, depois do filho de Tétis, disputou-as com Ulisses nos jogos fúnebres em memória do pelida. Face ao embaraço de Agamêmnon, que não sabia a qual dos dois premiar, Nestor, certamente por instigação de Ulisses, aconselhou que fossem interrogados os prisioneiros troianos; e estes, por unanimidade, afirmaram que o rei de Ítaca fora o que mais danos causara a Troia. Inconformado com a derrota, aliás injusta, e ferido em sua timé, Ájax, num acesso de loucura, massacrou um pacífico rebanho de carneiros, pois acreditava estar matando os gregos, que lhe negaram as armas do pelida. Voltando a si, compreendeu ter praticado atos de demência e, envergonhado, mergulhou a própria espada na garganta. Outra versão, talvez mais antiga, atesta que, após a queda de Ílion, Ájax pediu a morte de Helena como pena de seu adultério. Tal proposta provocou a ira dos atridas. Ulisses, com sua solércia, salvou a princesa e conseguiu que a mesma fosse devolvida a Menelau. Logo após este acontecimento, o destemido Ájax solicitou, como parte dos despojes, que lhe fosse entregue o Paládio, a pequena estátua de Atená, dotada de propriedades mágicas. Por instigação, mais uma vez, de Ulisses, os atridas não lhe atenderam o pedido. O filho de Télamon fez-lhes, então, graves ameaças. Assustados, Agamêmnon e Menelau cercaram-se de guardas, mas, no dia seguinte, pela manhã, Ájax foi encontrado morto, varado com a própria espada. Sófocles, em sua tragédia Ájax, sem inocentar Ulisses, procura desviar o infortúnio da personagem para sua hýbris, seu descomedimento intolerável, sobretudo em relação a Atená, que pune o filho de Télamon com a loucura. Dessa maneira, a grande deusa estaria prestando homenagem a seu protegido Ulisses. Este, porém, porta-se com mais dignidade que a deusa da inteligência. Quando esta, para mostrar a extensão da desgraça de Ájax e o poder dos deuses, pergunta a Ulisses se, porventura, conhece um herói mais judicioso e valente, a resposta do filho de Laerte não se faz esperar: Não, não conheço nenhum e, embora seja meu inimigo, lamento seu infortúnio. Esmaga-o terrível fatalidade. Em seu destino entrevejo meu próprio destino. Todos quantos vivemos, nada mais somos que farrapos de ilusão e sombras vãs. (Ájax, 121-126) Que se julgue neste passo de Sófocles a Ulisses, o mortal, e a imortalidade de Palas Atená! O maior cometimento de Ulisses na Guerra de Troia foi, sem dúvida, o já referido e genial estratagema do Cavalo de Troia, objeto das descrições de Homero (Od., VIII, 493-520) e Públio Vergílio Marão (Eneida, 2,13-267). Não se esgotam aqui, todavia, as gestas e a crueldade do sagaz Ulisses. Foi o primeiro a sair da machina fatalis, a fim de acompanhar Menelau, que apressadamente se dirigiu à casa de Deífobo, para se apossar de Helena; e, segundo uma versão, o rei de Ítaca impediu o atrida de assassinar ali mesmo sua linda esposa. Conforme outra variante, Ulisses salvou-a da morte certa: escondeua e esperou que a cólera dos helenos se mitigasse, evitando que a rainha de Esparta fosse lapidada, como desejavam alguns chefes e a soldadesca. Foi um dos responsáveis diretos pela morte do filho de Heitor e Andrômaca, o pequenino Astíanax, que, no saque de Troia, foi lançado de uma torre. Por instigação de Ulisses, a filha caçula de Príamo e Hécuba, Políxena, foi sacrificada sobre o túmulo de Aquiles por seu filho Neoptólemo ou pelos comandantes gregos. Tal sacrifício, complementar do de Ifigênia, teria por finalidade proporcionar ventos favoráveis para o retorno das naus aqueias a seus respectivos reinos. Consoante outra versão, Aquiles, que amara Políxena em vida, apareceu em sonhos ao filho e exigiu o sacrifício da filha de Príamo. Na tragédia de Eurípides, Hécuba11, Políxena arrancada dos braços da rainha por Ulisses, aliás com anuência da própria vítima, que preferia a morte à escravidão (Hécuba, 346-378), é degolada por Neoptólemo sobre o túmulo paterno. 4 Ainda fumegavam as cinzas de Troia, quando os reis aqueus, que haviam sobrevivido aos fios da Moîra, aprestaram-se para o νόστος (nóstos), o longo “retorno” ao lar. Uns eram aguardados com sofreguidão, com lágrimas de júbilo e com muita saudade; outros, pela instigação vingativa de Náuplio ou pelos próprios acontecimentos que precederam ou se seguiram à guerra, eram esperados com ódio e com as lâminas afiadas de machadinhas homicidas. Penélope e sua prima Clitemnestra são o termômetro da polaridade desse imenso πόθος (póthos), desse insofrido “desejo da presença de uma ausência”. Dada a controvérsia entre os dois atridas a respeito do momento propício para o regresso, Menelau, apressado e desejoso de afastar Ílion de sua memória, partiu primeiro com sua Helena e com o velho e sábio Nestor (Od., III, 141-145). As naus de Ulisses singraram na esteira branca e salgada dos navios dos dois heróis aqueus. Na ilha de Tênedos, porém, como se malquistasse com ambos, retornou a Tróada e se reuniu a Agamêmnon, que lá permanecera por mais uns dias, a fim de conciliar com presentes as boas graças da sensível deusa Atená. Quando Agamêmnon desfraldou suas velas, o prudente Ulisses o seguiu, mas uma grande borrasca os separou e o filho de Laerte abordou na Trácia12, na região dos Cícones13. Penetrando em uma de suas cidades, Ísmaro, o herói e seus marujos, numa incursão digna de piratas, a pilharam e passaram-lhe os habitantes a fio de espada. Somente pouparam a um sacerdote de Apolo, Marão, que, além de muitos presentes, deu ao rei de Ítaca doze ânforas de um vinho delicioso, doce e forte. Com este precioso licor de Baco será embriagado o monstruoso ciclope Polifemo. Num contra-ataque rápido os Cícones investiram-se contra os gregos, que perderam vários companheiros. Novamente no bojo macio de Posídon, os aqueus singraram para o sul e dois dias depois avistaram o cabo Maleia, mas um vento extremamente violento, vindo do norte, lançou-os ao largo da ilha de Citera e durante nove dias erraram no mar piscoso, até que, no décimo, chegaram ao país dosLotófagos, que se alimentavam de flores (Od., IX, 82-84). Três marujos aqueus provaram do loto14, “o fruto saboroso, mágico e amnéstico”, porque lhes tirou qualquer desejo de regressar à pátria. É aquele que saboreava o doce fruto do loto, não mais queria trazer notícias nem voltar, mas preferia permanecer ali entre os Lotófagos, comendo loto, esquecido do regresso. (Od., IX, 94-97) A custo o herói conseguiu trazê-los de volta e prendê-los no navio. Dali partiram de coração triste, e chegaram à terra dos ciclopes, tradicionalmente identificada com a Sicília: Dali continuamos viagem, de coração triste, e chegamos à terra dos soberbos ciclopes, infensos às leis, que, confiados nos deuses imortais, não plantam, nem lavram, mas tudo lhes nasce sem semear nem lavrar. (Od., IX, 105-109) Deixando a maioria de seus companheiros numa ilhota, o experimentado rei de Ítaca, com apenas alguns deles, embicou sua nau para uma terra vizinha. Escolheu doze entre os melhores e resolveu explorar a região desconhecida, levando um odre cheio do vinho de Marão. Penetrou numa “elevada gruta, à sombra de loureiros”, redil de gordos rebanhos, e lá aguardou, para receber de quem quer que habitasse a caverna os dons da hospitalidade. Só à tardinha chegou o ciclope Polifemo: Era um monstro horrendo, em nada semelhante a um homem que come pão, mas antes a um pico alcandorado de altos montes, que aparece isolado dos outros. (Od., IX, 190-192) Polifemo15 já havia devorado seis de seus marujos, quando Ulisses, usando de sua costumeira solércia, embebedou-o com o vinho forte de Marão e vazou-lhe o olho único que possuía no meio da fronte. Sem poder contar com o auxílio de seus irmãos, que o consideraram louco, por gritar que Ninguém o havia cegado (foi este realmente o nome com que o astuto esposo de Penélope se apresentara ao gigante), o monstro, louco de dor e de ódio, postou-se à saída da gruta, para que nenhum dos aqueus pudesse fugir. O sagaz Ulisses, todavia, engendrou novo estratagema e, sob o ventre dos lanosos carneiros, conseguiu escapar com seus companheiros restantes do antropófago filho de Posídon16. Salvos do bronco Polifemo, os helenos navegaram em direção ao reino do senhor dos Ventos, a ilha Eólia, possivelmente Lípari, na costa oeste da Itália meridional: Chegamos então à ilha Eólia. Ali habitava Éolo, filho de Hípotes, caro aos deuses imortais, numa ilha flutuante, cingida em toda a volta por infrangível muralha de bronze... (Od., X, 1-4) Éolo17 acolheu-os com toda a fidalguia e durante um mês os hospedou. Na partida, deu ao rei aqueu um odre que continha o curso dos ululantes ventos. Em liberdade ficara apenas o Zéfiro que, com seu hálito suave, fazia deslizar as naus no seio verde de Posídon. Durante nove dias as naus aqueias avançaram alimentadas pelas saudades de Ítaca. No décimo já se divisavam ao longe os lumes que faiscavam na terra natal. O herói, exausto, dormia. Julgando tratar-se de ouro, os nautas abriram o odre, o cárcere dos perigosos ventos... Imediatamente terrível lufada empurrou os frágeis batéis na direção contrária. Ulisses, que despertara sobressaltado, ainda teve ânimo para uma reflexão profunda: Mas eu que despertara, refletia em meu irrepreensível espírito se devia morrer, lançando-me nas ondas ou se permaneceria em silêncio e continuaria entre os vivos. Resolvi sofrer e ir vivendo... (Od., X, 49-53) E voltou à ilha de Éolo. De lá expulso como amaldiçoado dos deuses, Ulisses retornou às ondas do mar e chegou no sétimo dia a Lamos, cidade da Lestrigônia, terra dos gigantes e antropófagos Lestrigões, povos que habitavam (o assunto é muito discutido) a região de Fórmias, ao sul do Lácio, ou o porto siciliano de Leontinos... Tribos de canibais, sob a ordem de seu rei, o gigante e antropófago Antífates, precipitaram-se sobre os enviados do herói de Ítaca, devorando logo um deles. Arremessando, em seguida, blocos de pedra sobre a frota ancorada em seu porto, destruíram todas as naus, menos a de Ulisses, que ficara mais distante: Depois, de cima dos rochedos, lançaram sobre nós pedras imensas. Levantou-se logo das naus o grito medonho dos que morriam e o estrépito das naus que se partiam. E os Lestrigões, cortando os homens como se fossem peixes, levavam-nos para um triste banquete. (Od., X, 121-124) Agora, com um único navio e sua equipagem, o herói fugiu precipitadamente para o alto-mar e navegou em direção à ilha de Eeia, cuja localização é totalmente impossível: identificá-la com Malta ou com uma ilha situada na entrada do Mar Adriático é contribuir para enriquecer a fantástica geografia mítica de Homero. Relata-nos o poeta (Od., X, 135ss) que, tendo chegado a esta ilha fabulosa, residência da feiticeira Circe, filha de Hélio e Perseida e irmã do valente Eetes, Ulisses enviou vinte e três de seus nautas para explorarem o lugar. Tendo eles chegado ao palácio deslumbrante da maga, esta os recebeu cordialmente; fê-los sentar-se e preparou-lhes uma poção. Depois, tocando-os com uma varinha mágica, transformou-os em animais “semelhantes a porcos”18. Escapou do encantamento apenas Euríloco que, prudentemente, não penetrara no palácio da bruxa. Sabedor do triste acontecimento, o herói pôs-se imediatamente a caminho em busca de seus nautas. Quando já se aproximava do palácio, apareceu-lhe Hermes, sob a forma de belo adolescente, e ensinou-lhe o segredo para escapar de Circe: deu-lhe a planta mágica móli (de cuja etimologia, simbologia e “cristianização” se falou no Vol. II, p. 194-195) que deveria ser colocada na beberagem venenosa que lhe seria apresentada. Penetrando no palácio, a bruxa ofereceu-lhe logo a bebida e tocou-o com a varinha. Assim, quando a feiticeira lhe disse toda confiante: Vai agora deitar com os outros companheiros na pocilga (Od., X, 320) grande foi sua surpresa, ao ver que a magia não surtira efeito. De espada em punho, como lhe aconselhara Hermes, o herói exigiu a devolução dos companheiros e acabou ainda usufruindo por um ano da hospitalidade e do amor da mágica. Diga-se logo que desses amores, conforme a tradição, nasceram Telégono e Nausítoo. Antes de se enfunarem novamente as velas da nau de Ulisses, dois breves comentários se fazem necessários. O primeiro se refere à transformação de seres humanos em animais, fato comum em todas as culturas. Verifiquemos o que nos diz Marie-Louise von Franz a esse respeito: “Em primeiro lugar, cumpre-nos examinar o que significa para um ser humano ser convertido em animal. Diferentes animais têm diferentes comportamentos instintivos; se um tigre se comportasse como um esquilo, chamar-lhe-íamos neurótico. Para um ser humano, ser transformado em animal significa estar fora de sua própria esfera instintiva, alienado dela, e devemos, portanto, atentar para o animal específico em questão. Vejamos o caso do asno: este é um dos animais do deus Dioniso. Na Antiguidade, ele era considerado um animal muito sensual, conhecido também por sua perseverança e pretensa estupidez. É um animal de Saturno e tem as qualidades saturninas. No final da Antiguidade, Saturno era considerado o deus dos judeus e, nas disputas entre cristãos e não cristãos, tanto os cristãos como os judeus eram acusados de adorar o asno. Por conseguinte, ser transformado em asno implicava ser dominado por tais qualidades, isto é, ter caído sob o impulso de um complexo específico que impõe tal comportamento. Na história de Apuleio19, é obviamente o impulso sexual que está em primeiro plano [...]. Assim, ser convertido num animal não é viver de acordo com os próprios instintos, mas ser parcialmente dominado por um impulso instintivo unilateral que perturba o equilíbrio humano”20. Assim, de acordo com a interpretação da Dra. von Franz, os companheiros de Ulisses, transformados em animais semelhantes a porcos, ficaram fora de sua órbita instintiva humana, assumindo os instintos dos animais diversos em que foram metamorfoseados, “cada um segundo as tendências profundas de seu caráter e de sua natureza”. Mas, como se tornaram semelhantes a porcos, ὥστε σύες (hóste s×es), como diz Homero (Od., X, 283), significa que os nautas aqueus estavam dominados pela gula, pela voracidade e pela luxúria exacerbada. Com efeito, o porco simboliza “as tendências obscuras sob todas as suas formas de ignorância, da gula, da luxúria, do egoísmo” e da imundície. A segunda observação refere-se à ingestão de determinadas plantas apotropaicas, como a célebre móli, o φαρμακον ἐοθλόν (phármakon esthlón), o “antídoto eficaz”, que evita seja o ser humano transformado em animal; ou de efeito terapêutico, como lírios e rosas, que atuam de modo inverso: o metamorfoseado em animal recupera sua forma humana. Consoante ainda à Dra. von Franz, “o tema do ser humano que se converte em animal e só pode ser redimido comendo flores aparece em todo o mundo. As flores podem ser lírios, não necessariamente rosas, dependendo do país onde a história é contada”21. No fecho das Metamorfoses de Apuleio, Lúcio, que havia se convertido em asno, recupera a forma humana comendo um ramo de rosas vermelhas que estava sendo levado por um sacerdote durante uma procissão de iniciados nos mistérios de Ísis e Osíris. Conforme enfatizam os autores do Dictionnaire des symboles, “S. João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e o buquê que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual”22. A flor é idêntica ao Elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. A rosa, particularmente, traduz a alma, o coração, o amor. É possível contemplá-la como um mandala e considerá-la como o centro místico. A rosa vermelha, por sua relação com o sangue derramado, converte-se na imagem de um renascimento místico. Comendo rosas vermelhas, Lúcio não apenas retomou sua forma humana, mas também se fez iniciar nos mistérios de Ísis e Osíris. Pode-se, desse modo, concluir que determinadas flores, por sua beleza e perfume, atuam como poderosa terapia catártica, fazendo com que “asnos e porcos”, ingerindo-as, retornem a seu estado primeiro, agora remoçados e mais altos, como diz Homero a respeito dos companheiros de Ulisses. Afinal, após um ano de ociosidade, Ulisses partiu. Não em direção a Ítaca, mas à outra vida, ao mundo ctônio. Todo grande herói, já o sabemos desde o capítulo I deste volume, não pode completar o Uróboro, sem uma κατὰβασις (katábasis), sem uma descida “real” ou simbólica ao mundo das sombras. Foi a conselho de Circe que Ulisses, para ter o restante de seu itinerário e o fecho de sua própria vida traçados pelo adivinho cego Tirésias, navegou para os confins do Oceano: Ali está a terra e a cidade dos Cimérios, cobertas pela bruma e pelas nuvens: jamais recebem um único raio do sol brilhante. (Od., XI, 14-16) A catábase do rei de Ítaca foi “simbólica”. Segundo se enfatizou no Vol. I, p. 136s, ele não desceu à outra vida, ao Hades. Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perséfone e, portanto, à beira-mar, andou um pouco para abrir um fosso e fazer sobre ele as libações e os sacrifícios rituais ordenados pela maga. Tão logo o sangue das vítimas negras penetrou no fosso, “os corpos astrais, os eídola abúlicos” (exceto o eídolon de Tirésias, que talvez guardasse lá embaixo seu nóos, seu “espírito perfeito”), recompostos temporariamente, vieram à tona: ...o sangue negro corria e logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se ajuntaram. (Od., XI, 36-37) O herói pôde, assim, ver e dialogar com muitas “sombras”, particularmente com Tirésias, que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e uma morte tranquila, longe do mar e em idade avançada... Antes de regressarmos ao mundo dos vivos, uma pergunta: onde ficaria, na geografia homérica, o país dos Cimérios, mergulhado numa bruma eterna? Consoante Ley e De Camp, “aquela bruma eterna, que, como consta, cobre a região, pode-nos levar a situá-la em certo trecho das costas marroquinas, conhecido por suas brumas espessas no verão e no outono, o mare tenebrosum de Plínio, ou, então, trata-se simplesmente do tempo que reina habitualmente no Atlântico [...]. Para um navegador acostumado aos verões mediterrâneos sem nuvens, o Atlântico com seu céu frequentemente coberto, seus furacões em todas as estações, pode parecer um domínio assustador...”23 Outros autores preferem brincar de esconder com a geografia fantástica do poeta grego e situam os Cimérios num extremo ocidente ou nas planícies que se estendem ao norte do Mar Negro... Assim é que, ora os Cimérios são tidos como ancestrais dos celtas ora dos citas da Rússia meridional. Outros julgam que se trata de um povo de mineiros, que vivia em galerias subterrâneas e que somente à noite saía para sua cidade, localizada quer na Europa central quer na Grã-Bretanha, quem sabe nas brumas de Avalon... Talvez tenha concorrido para esta última hipótese o fato, segundo consta, de os gregos receberem estanho da Inglaterra, naturalmente por meio de numerosos intermediários. Daí se teria gerado a confusão geográfica. De volta, ainda uma pequena permanência na ilha de Eeia e, após ouvir atento e aterrorizado as informações precisas de Circe acerca das sereias, dos monstros Cila e Caribdes e da proibição de se comerem as vacas e ovelhas de Hélio na ilha Trinácria, o esposo de Penélope partiu para novas aventuras, que vão arrastá-lo na direção do oeste. Seu primeiro encontro seria com os perigosos rochedos das sereias, cuja localização é extremamente difícil. Existem realmente três rochedos ao longo das costas italianas, na baía de Salerno. Segundo se diz, encontraram-se ossadas humanas em grutas existentes no interior desses penhascos, mas é preciso não esquecer que exatamente o maior deles, Briganti, foi durante os séculos XIII e XIV uma sólida base de piratas... É preferível, por isso mesmo, localizá-los, miticamente, no Mediterrâneo Ocidental, não muito distante de Sorrento! Circe preveniu bem o herói de que as sereias antropófagas, de que já se tratou no Vol. I, p. 258ss, tentariam encantá-lo com sua voz maviosa e irresistível: atirá-lo-iam nos recifes, despedaçando-lhe a nau e devorariam todos os seus ocupantes. Para evitar a tentação e a morte, ele e seus companheiros deveriam tapar os ouvidos com cera. Se, todavia, o herói desejasse ouvir-lhes o canto perigoso, teria que ordenar a seus nautas que o amarrassem ao mastro do navio e, em hipótese alguma, o libertassem das cordas. Quando a nau ligeira se aproximou do sítio fatídico, diz Homero, a ponto de se ouvir um grito, as sereias iniciaram seu cântico funesto e seu convite falaz: Aproxima-te daqui, preclaro Ulisses, glória ilustre dos aqueus! Detém a nau para escutares nossa voz. Jamais alguém passou por aqui, em escura nave, sem que primeiro ouvisse a voz melíflua que sai de nossas bocas. Somente partiu após se haver deleitado com ela e de ficar sabendo muitas coisas. Em verdade sabemos tudo... (Od., XII, 184-189) No Vol. I, p. 260ss, ao falar da Esfinge, deu-se uma ideia da “natureza” das sereias, mas nada se disse acerca de seu mito e de sua simbologia. Vamos, agora, resumidamente, preencher estas duas lacunas. Filhas do rio Aqueloo e de Melpômene ou de Estérope ou ainda, numa variante mais recente, nascidas do sangue de Aqueloo ferido por Héracles, na célebre disputa por Dejanira (Vol. I, p. 274s), as sereias eram, a princípio, duas: Partênope24e Lígia; depois, três: Pisínoe, Agláope e Telxiépia, também denominadas Partênope, Leucósia e Lígia; por último, quatro: Teles, Redne, Molpe e Telxíope. Jovens muito belas, participavam do cortejo de Core ou Perséfone. Quando Plutão a arrebatou, suplicaram insistentemente aos deuses que lhes concedessem asas, para que pudessem procurá-la na terra, no mar e no céu. Deméter, irritada, por não terem impedido o rapto de Perséfone, transformou-as em monstros. Segundo uma variante, Afrodite lhes tirou a esfuziante beleza e as metamorfoseou pelo fato de as mesmas desprezarem os prazeres do amor. Meio mulheres e meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e peixe da cintura para baixo, as Sereias tornaram-se demônios marinhos. Frias da cintura para baixo, por serem peixes, desejando o prazer, mas não podendo usufruí-lo, atraíam e prendiam os homens para devorá-los, o que, aliás, está de acordo com sua etimologia. Com efeito Σειρήν (Seirén), sereia, provém certamente de σειρά (seirá), “liame, nó, laço, cadeia”. Hábeis músicas e cantoras (Partênope dedilha a lira; Leucósia canta e Lígia toca flauta), cantavam para encantar, tornando-se, como a Esfinge, um pesadelo opressor, um cauchemar. Certamente sob a influência da religião egípcia, que representava a alma dos mortos sob a forma de um pássaro com cabeça humana, a sereia era considerada como a alma do morto que não “completou seu destino”, transmutando-se, por isso mesmo, numa Seelenvogel, numa alma-pássaro, num vampiro opressor. Embora as especulações escatológicas pós-clássicas tenham feito delas divindades da outra vida, que encantavam com sua música e voz os eleitos da Ilha dos Bem-Aventurados, e é sob este aspecto que elas figuram sobre alguns sarcófagos, a tradição foi mais forte: as sereias simbolizam a sedução mortal. Cotejando-se a vida com uma viagem, as sereias traduzem as emboscadas, provenientes dos desejos e das paixões. Como se originam de elementos indeterminados do ar (pássaros) ou do mar (peixes), configuram criações do inconsciente, dos sonhos alucinantes e aterradores em que se projetam as pulsões obscuras e primitivas do ser humano. Foi necessário, por isso mesmo, que Ulisses se agarrasse à dura realidade do mastro, que é o centro do navio e o eixo vital do espírito, para escapar das ilusões da paixão. Falando mais especificamente da transformação de seres humanos em animais e da lenda de determinadas sereias na Irlanda, assim se expressa a Dra. von Franz: “Penso que, numa civilização cujas linhas dominantes são as religiões budista e judaico-cristã, é provável que certos instintos sejam reprimidos para o nível animal, já que existe uma tendência para destruir certos aspectos; por exemplo, a anima aparece como um animal porque não é aceita”25. Vencida a sedução das sereias, os aqueus remaram a toda velocidade para escaparem de dois escolhos mortais, Cila26e Caribdes27. A localização dos temíveis penhascos em que se escondiam os dois monstros é tradicionalmente defendida como o estreito de Messina, situado entre a Itália e a Sicília. Outros, porém, como Estrabão, acham que a difícil passagem é o estreito de Gibraltar, por contar “com uma quantidade de turbilhões verdadeiramente perigosos”. Seja como for, os formidáveis recifes, que ladeavam um dos dois estreitos, camuflavam as devoradoras Cila e Caribdes: quem escapasse de uma, fatalmente seria tragado pela outra. A conselho de Circe, para não perecer com todos os seus companheiros, o herói preferiu passar mais próximo de Cila. Mesmo assim, perdeu seis de seus melhores nautas. De coração triste, o herói navegou em direção à ilha de Hélio Hiperíon, identificada miticamente com Trinácria, isto é, com a Sicília, onde por força dos ventos permaneceu um mês inteiro. Acabada a provisão, os insensatos marinheiros, apesar do juramento feito, sacrificaram as melhores vacas do deus. Quando novamente a nau aqueia voltou às ondas do mar, Zeus, a pedido de Hélio, levantou uma imensa procela e terríveis vagalhões, que, de mistura com os raios celestes, sepultaram a nave e toda a tripulação no seio de Posídon. Apenas Ulisses, que não participara dos sacrílegos banquetes, escapou à ira do pai dos deuses e dos homens. Agarrando-se à quilha, que apressadamente amarrara ao mastro da nave, o rei de Ítaca deixou-se levar pelos ventos... Partindo dali errei por nove dias; na décima noite os deuses conduziram-me para a ilha de Ogígia, onde mora Calipso, de linda cabeleira... (Od., XII, 447-449) A ilha de Ogígia, como quase todas as paragens oníricas da Odisseia, tem sido imaginada quer na região de Ceuta, na costa marroquina, em frente a Gibraltar, quer na ilha da Madeira. Apaixonada pelo herói, a deusa o reteve por dez anos; por oito, segundo alguns autores; por cinco, consoante outros ou apenas por um... De seus amores teriam nascido dois filhos: Nausítoo (que também figura como filho do herói e Circe) e Nausínoo. Por fim, penalizado com as saudades de Ulisses, Zeus atendeu às súplicas de Atená, a protetora inconteste e bússola do peregrino de Ítaca, e enviou Hermes à ninfa imortal, para que permitisse a partida do esposo de Penélope. Embora lamentasse sua imortalidade, pois desejava morrer de saudades de seu amado, Calipso pôs-lhe à disposição o material necessário para o fabrico de pequena embarcação. No quinto dia, quando a Aurora de dedos cor-de-rosa começou a brincar de esconder no horizonte, Ulisses desfraldou as velas. Estamos novamente em pleno mar, guiados pela luz dos olhos garços de Atená. Posídon, no entanto, guardava no peito e na lembrança as injúrias feitas a seu filho, o ciclope Polifemo, e descarregou sua raiva e rancor sobre a frágil jangada do herói: Assim dizendo, Posídon reuniu as nuvens, empunhou o tridente e sacudiu o mar. Transformou todos os ventos em procelas e, envolvendo em nuvens a terra e o mar, fez descer a noite do céu. (Od., V, 291-294) Sobre uma prancha da jangada, mas segurando contra o peito um talismã precioso, o véu, que, em meio à borrasca, lhe emprestara Ino Leucoteia28, o náufrago vagou três dias sobre a crista das ondas. Lutou com todas as forças até que, nadando até a foz de um rio, conseguiu pisar terra firme. Derreado de fadiga, recolheu-se a um bosque e Palas Atená derramou-lhe sobre os olhos o doce sono... Havia chegado à ilha dos Feaces, uma como que ilha de sonhos, uma espécie de Atlântida de Platão. Chamavam-na Esquéria, mais tarde identificada com Corfu. Por inspiração de Atená, a princesa Nausícaa, filha dos reis de Esquéria, Alcínoo e Arete, dirige-se ao rio para lavar seu enxoval de casamento. Após o serviço, começou a jogar com suas companheiras. Despertado pela algazarra, o herói pede a Nausícaa que o ajude. Esta envia-lhe comida e roupa, pois o rei de Ítaca estava nu, e convida-o a visitar o palácio real. Os Feaces, que eram como os Ciclopes, aparentados com os deuses, levavam uma vida luxuosa e tranquila e, por isso mesmo, Alcínoo ofereceu ao herói uma hospitalidade digna de um rei. Durante um lauto banquete em honra do hóspede, o aedo cego Demódoco, por solicitação do próprio rei de Ítaca, cantou, ao som da lira, o mais audacioso estratagema da Guerra de Troia, o ardil do cavalo de madeira, o que emocionou profundamente o mais astuto dos aqueus. Vendo-lhe as lágrimas, Alcínoo pediu-lhe que narrasse suas aventuras e desditas. Com o famoso e convicto Εἴμ Όδυσσεύς (Eím’ Odysseús), eu sou Ulisses, o herói desfilou para o rei e seus comensais o longo rosário de suas gestas gloriosas, andanças e sofrimentos na terra e no mar, desde Ílion até a ilha de Esquéria. No dia seguinte, o magnânimo soberano de Esquéria fez com que seu ilustre hóspede, que recusou polidamente tornar-se seu genro, subisse, carregado de presentes, para uma das naus mágicas dos Feaces: Ela corria com tanta segurança e firmeza, que nem mesmo o falcão, a mais ligeira das aves, poderia seguila. (Od., XIII, 86-87) Com tal velocidade, os marujos de Alcínoo em uma noite alcançaram Ítaca, aonde o saudoso Ulisses chegou dormindo. Colocaram-no na praia com todos os presentes, que habilmente esconderam junto ao tronco de uma oliveira. Posídon, todavia, estava vigilante, e, tão logo a nau ligeira dos Feaces, em seu retorno, se aproximava de Esquéria, transformou-a num rochedo, para cumprir velha predição. 5 Aproveitemos o sono do herói e vejamos, nestes seus vinte anos de ausência, o que aconteceu e ainda acontecia na amada Ítaca, bem visível ao longe, onde se ergue o arborizado e esplêndido monte Nérito (Od., IX, 21-22). Quando Ulisses partiu para Troia, seu pai Laerte, presumivelmente ainda forte e válido, já não mais reinava. Com o falecimento da esposa Anticleia, consumida pelas saudades do filho, agora já alquebrado e amargurado com os desmandos dos pretendentes à mão de Penélope, passou a viver no campo, entre os servos e, numa estranha espécie de autopunição, a cobrir-se com andrajos, a dormir na cinza junto ao fogo, no inverno, e sobre as folhas no verão. Telêmaco, em grego Τηλέμαχος (Telémakhos), “o que combate, o que atinge à distância”, foi, na versão homérica, o único filho de Ulisses com Penélope. Ainda muito criança, quando o pai partiu para a guerra, ficou aos cuidados de Mentor, grande amigo do herói. Todos os episódios relativos à sua meninice e começos da adolescência se encontram nos quatro primeiros cantos da Odisseia e suas maquinações e luta ao lado do pai contra os soberbos candidatos à mão de Penélope se estendem do canto XV ao XXIV. Aos dezessete anos, percebendo que os pretendentes assediavam cada vez mais sua mãe e sobretudo dilapidavam impiedosamente os bens do rei ausente, tentou afastá-los. Atená, no entanto, agiu rapidamente, porquanto os pretendentes, por julgarem que o jovem príncipe era o grande obstáculo à decisão da rainha na escolha de um deles, tramavam eliminá-lo. Foi assim que, por conselho da deusa de olhos garços, Telêmaco partiu para a corte de Nestor, em Pilos, e depois para junto de Menelau e Helena, em busca de notícias do pai. Deixemo-lo, por enquanto, na corte do fulvo Menelau e retornemos a Ítaca. Após tantos anos de ausência, todos julgavam que o filho de Laerte não mais existia. Cento e oito pretendentes, nobres não apenas de Ítaca, mas oriundos igualmente de ilhas vizinhas, Same, Dulíquio, Zacinto, todas possessões de Ulisses. A princípio, de simples cortejadores da esposa do herói passaram a senhores de seu palácio e de sua fazenda. Arrogantes, autoritários, violentos e pródigos com os bens alheios, banqueteavam-se diariamente na corte do rei de Ítaca, exigindo o que de melhor houvesse em seu rebanho e em sua adega. Os subordinados do palácio, fiéis a Ulisses, eram humilhados e quase todas as servas foram reduzidas a concubinas. Penélope29 aparece, na realidade, bastante retocada na Odisseia. Tradições locais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muito diferente do que nos é apresentado no poema homérico. Neste ela desponta como o símbolo perfeito da fidelidade conjugal. Fidelidade absoluta ao herói, ausente durante vinte anos. Dentre quantas tiveram seus maridos empenhados na Guerra de Troia foi das únicas que não sucumbiu “aos demônios da ausência”, como diz expressivamente Pierre Grimal. Forçada pelos pretendentes a escolher entre eles um novo marido, resistiu o quanto pôde, adiando sucessivamente a indesejada eleição. Quando não lhe foi mais possível tergiversar, arquitetou um estratagema, que ficou famoso: prometeu que escolheria um deles para marido, tão logo acabasse de tecer a mortalha de seu sogro Laerte, mas todas as noites desfazia o que fizera durante o dia. O logro durou três anos, mas, denunciada por algumas de suas servas, começou a defender-se com outros ardis... Ulisses despertou de seu longo sono e Atená postou-se a seu lado. Disfarçado por ela em andrajoso e feio mendigo, o herói encaminhou-se para a choupana do mais fiel de seus servos, o porcariço Eumeu. Era preciso, por prudência, sem se dar a conhecer, ficar a par de quanto se passava em seu palácio. Telêmaco, guiado pela bússola da deusa de olhos garços, também está de volta. Pai e filho se encontram e se reconhecem na tapera do porcariço. Iniciamse os planos para o extermínio dos pretendentes. Se a fidelidade de Eumeu agradou tanto ao herói, não menos havia de emocioná-lo uma outra, de feição bem diversa e inesperada. Trata-se do cão Argos: E um cão, que estava deitado, erguendo a cabeça, eriçou as orelhas: era Argos que o paciente Ulisses havia criado antes de ir para a sagrada Ílion [...]. Abandonado na ausência de seu senhor, rolava diante do portal sobre os estrumes das mulas e dos bois. Ali estava deitado Argos, comido das carraças. Vendo aproximar-se Ulisses, agitou a cauda e baixou a cabeça. Faltaram-lhe forças para chegar até onde estava seu senhor. Este, voltando a cabeça, chorou... (Od., XVII, 291-304) Argos estava morto. Havia-o matado a saudade. A recepção dos humildes, Eumeu e Argos, contrastou profundamente com a grosseria com que o orgulhoso Antínoo, o mais violento dos pretendentes, recebeu no palácio de Ulisses ao mendigo Ulisses. Insultado e obrigado a lutar com o mendigo Iro para divertimento de todos, o herói teria sofrido novos vexames, não fora a intervenção segura de Telêmaco e a hospitalidade de Penélope, que o acolheu e com ele manteve um longo diálogo, temperado de fidelidade e de saudades de Ulisses: Saudades de Ulisses me consomem docemente o coração. Os pretendentes apressam minhas núpcias: eu me defendo com ardis. (Od., XIX, 136-137) O zelo da hospitalidade da rainha, todavia, quase pôs a perder o plano minuciosamente traçado por Ulisses e Telêmaco. A velha e fidelíssima ama do herói, Euricleia, ao lavar-lhe os pés, por ordem de Penélope, reconheceu-o por uma cicatriz na perna: Esta cicatriz, pois, reconheceu-a a anciã, tão logo o tocou e apalpou com a palma da mão e, largando-lhe o pé, a perna bateu na bacia: o bronze cantou e, inclinando-se a bacia, a água entornou-se... (Od., XIX, 467-470) Imposto silêncio à velha ama, Ulisses, depois de banhado e ungido, retomou o diálogo com a sensata Penélope. Aproximava-se, porém, a hora da vingança. Atená, a de olhos garços, inspirou à rainha de Ítaca a ideia de apresentar aos pretendentes o arco de seu esposo para celebração do certame que daria início ao morticínio. Ouçamos a proposta de casamento de Penélope: Escutai-me, ilustres pretendentes [...] não podeis apresentar outro pretexto, a não ser o desejo de me tomar por esposa. Ânimo, pois, pretendentes: o prêmio do combate está à vista! Apresentarei o grande arco do divino Ulisses e aquele que, tomando-o nas mãos, conseguir armá=lo mais facilmente, e fizer passar uma flecha pelo orifício dos doze machados, a este eu seguirei... (Od., XXI, 68-77) A conquista da esposa por parte de um herói jamais é gratuita. Como se mostrou no capítulo I, 5, deste volume, o “pretendente” deve superar grandes obstáculos e arriscar a própria vida, até mesmo para reaver sua metade perdida.Admeto, Pélops, Jasão, Menelau, Héracles e tantos outros são exemplos vivos de “pretendentes” que empenharam a própria alma na conquista de um grande amor. Chegou, pois, o momento culminante da prova do arco, que testaria o mérito dos candidatos à mão de Penélope. O orgulhoso Antínoo comanda o certame: Levantai-vos em ordem, companheiros, da esquerda para a direita. (Od., XXI, 141) Todos tentaram em vão... A insolência e a altivez dos soberbos pretendentes foram quebradas pelo arco de Ulisses: nenhum deles conseguiu, ao menos, retesá-lo. O arco obedeceria e se curvaria (e veremos por quê) apenas à vontade de seu senhor. Pela insistência de Penélope e a firmeza das palavras de Telêmaco, embora exasperados, os pretendentes se viram compelidos a permitir que o mendigo Ulisses experimentasse o inflexível arco: [...] o astuto Ulisses, contudo, apenas tomou e inspecionou em todos os sentidos o grande arco, armou-o sem dificuldade alguma. [...] Dos pretendentes, porém, se apossou uma grande mágoa e mudaram de cor... (Od., 404-412) O filho de Laerte disparou o dardo, que não errou nenhum dos machados, desde o orifício do primeiro. Despojando-se dos andrajos, despiu-se também o herói do homem do mar. Tem-se agora novamente o homem na guerra: começou o extermínio dos pretendentes. Antínoo foi o primeiro: A flecha atravessou-lhe a garganta delicada e saiu pela nuca. Ferido de morte, ele tombou de costas e a taça caiu-lhe das mãos. (Od., XXII, 15-18) E a negra morte desceu sobre os olhos de um a um dos príncipes de Ítaca e das demais possessões de Ulisses. Dos servos foram poupados tão somente quatro. Doze escravas impudentes que, na longa ausência do senhor, envergonharam-lhe o palácio, foram enforcadas: Elas só com os pés estrebucharam durante instantes, que, na verdade, não foram longos. (Od., XXII, 473) Não foi realmente para efeitos retóricos que Marco Túlio Cícero chamou de pintura a poesia de Homero!30 Ao paciente Ulisses faltava ainda uma prova. Penélope ainda resistia. O velho marinheiro, agora remoçado graças a um toque mágico de Atená, conhecia, somente ele e a esposa, alguns sinais desconhecidos dos outros mortais. Era a prova do reconhecimento do leito conjugal: [...] se realmente este é Ulisses que retorna ao lar, nós nos reconheceremos com mais facilidade que ninguém. (Od., XXIII, 107-109) De fato era Ulisses. O rei de Ítaca descreveu minuciosamente o leito conjugai, que ele próprio fizera e adornara. O grande sinal era o pé da cama, construído com um tronco de oliveira, na Grécia, “símbolo da força, da fecundidade, da recompensa, da paz”. Na tradição judaico-cristã a imagem da paz está configurada pela pomba que traz a Noé, no fim do dilúvio, um ramo de oliveira. Na linguagem medieval converteu-se também em tradução do ouro e do amor. Escreve Angelus Silesius: “Se me for dado contemplar em tua porta um tronco dourado de oliveira, chamar-te-ei imediatamente casa de Deus”. Axis mundi, eixo do mundo, árvore ancestral na tradição islâmica, a oliveira reflete o homem universal, o Profeta. Associado à luz, o azeite doce alimenta os candeeiros. Assim é que, no esoterismo ismaelita, a oliveira no cimo do Sinai espelha o Imã, convertendo-se simultaneamente no axis mundi, no Homem universal e na fonte da luz31. E realmente era Ulisses... [...] e a Penélope, no mesmo instante, desfaleceram os joelhos e o coração amante, reconhecendo os sinais que Ulisses dera sem hesitar. Correu direta para ele com as lágrimas nos olhos e lançou os braços em torno de seu pescoço... (Od., XXIII, 205-208) Talvez fosse prudente acrescentar que não mais estamos em pleno mar, mas em plena madrugada, no palácio de Ulisses, em Ítaca... E como uma só madrugada é muito pouco para matar saudades de vinte anos de ausência, Atená, a deusa de olhos garços, ante a ameaça da aproximação pouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa, deteve-a em pleno oceano e simplesmente prolongou a noite... Tangidas para o Hades pelo caduceu de Hermes as almas dos pretendentes, então Ulisses e Penélope... ainda não! Grande maioria dos habitantes de Ítaca levantou-se em armas para vingar seus filhos e parentes. O herói, seu filho Telêmaco, Laerte e mais uns poucos, capitaneados por Atená, enfrentaram os vingadores. A carnificina teria sido grande, não fora a intervenção da própria deusa: Filho de Laerte, da estirpe de Zeus Ulisses fecundo em recursos, suspende o combate [...]. Assim falou Atená e ele obedeceu de coração alegre. Depois, entre as duas partes, foi celebrado um pacto solene para os tempos futuros, obra de Palas Atená, filha de Zeus, portador da égide. (Od., XXIV, 542-547) Ulisses e Penélope... Bem, Ulisses e Penélope, como tudo neste vale de lágrimas, não foram felizes para sempre! É verdade que o adivinho Tirésias prognosticara um fim tranquilo e bem distante do mar para o rei de Ítaca; é igualmente exato que também na Odisseia tudo acaba na doce paz imposta por Palas Atená, mas estes dois enfoques não são os únicos. A épica, sobretudo, por sua própria estrutura, conduz o herói para um desfecho feliz. Homero, na Odisseia, fechou genialmente a longa nostalgia, peregrinações e lutas de seu protagonista com um hino ao amor, à fidelidade de Penélope e com um eloquente tratado de paz, mas o mito continua em outras variantes e tradições para além da epopeia. Retrata outro estado de coisas e prossegue pelos misteriosos labirintos da vida. Antes, porém, de retomar a caminhada com o grande herói, um ligeiro comentário a respeito de três sinais muito significativos que lhe marcam a identidade. Se, de um lado, o astuto e destemido personagem da Odisseia pode ser considerado como hábil marinheiro, ancestral dos nautas errantes dos mares do Ocidente, e suas gestas como um autêntico périplo iniciático, de outro, Ulisses é, em grau superlativo, o herói do mito do retorno do esposo, após prolongada e acidentada ausência. Um homem partiu para uma longa viagem... A esposa lhe permanecerá fiel e, após alguns incidentes, o reconhecerá. Eis que o marido retorna envelhecido, disfarçado, pouco importa. Embora com variações de uma versão à outra, três sinais lhe garantem e atestam a identidade. Vejamos a versão homérica: apenas o marido é capaz de armar o arco que possuía; somente ele sabe, em comum com a esposa, como foi construído o leito conjugal; enfim, o marido tem uma cicatriz de que unicamente a mulher tem conhecimento. Pois bem, o poeta grego utilizou os três sinais em três cenas de grande poder dramático, invertendo-lhes, todavia, a ordem, alterando o conteúdo, variando as circunstâncias. Apenas o sinal relativo ao leito nupcial foi empregado para reconhecimento do esposo. Os outros dois o foram, conforme já se viu, para outras finalidades. O primeiro destes é a cicatriz resultante da mordidela de um javali. A cicatriz é como se fora uma “minimutilação”, o que, em termos xamânicos, colocava seu portador bem próximo do sagrado e dos próprios deuses. Talvez nenhum herói homérico tenha sido tão bafejado pela amizade divina quanto Ulisses. Bastaria citar o respaldo e a proteção que lhe deram Hermes e Atená para se concluir que o rei de Ítaca era um valido dos imortais. Além do mais, a cicatriz se originou da mordidela de um javali, cujo simbolismo é antiquíssimo, segundo se mostrou no Vol. II, p. 67-68. O mito desse animal faz parte da tradição hiperbórea, onde o mesmo configura o poder espiritual, o que, de resto, estabelece uma união mais sólida entre o esposo de Penélope e os deuses. O sinal que aparece em segundo lugar na Odisseia é “o poder de armar o arco”, que, há vinte anos, dormia empoeirado e silencioso na câmara mais recôndita do palácio real de Ítaca. Após as tentativas frustradas de cento e oito pretendentes, o único que conseguiu retesá-lo foi Ulisses. A explicação é simples. Certas armas possuem um mana, uma energia poderosa que lhes advêm de sua origem. Além do mais, as coisas têm nome. E como se comentou no capítulo I, 4, passo em que citamos Luís da Câmara Cascudo, “o nome é a essência da coisa, do objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome, porque o nome é a forma e a substância vital. No plano utilitário as coisas só existem pelo nome”. Conhecer o nome de alguém ou da coisa é dispor da pessoaou da coisa. Aí está a segunda parte da explicação. Somente o herói conhecia o nome de seu arco e, por isso mesmo, pôde conversar com ele e facilmente armá-lo! Diz o texto homérico que Ulisses, ao receber o arco, “o inspecionou em todos os sentidos”, passando-o de mão em mão, isto é, dialogando com ele. Quanto ao mana e à energia que possuem as armas é oportuno lembrar com Marie Delcourt32que o objeto arrebatado ao inimigo ou a simples posse do mesmo confere uma dignidade a seu detentor, como as armas de Aquiles ou as flechas de Héracles, tornando-se a posse dos mesmos um símbolo de investidora. É que normalmente essas armas têm uma origem divina, como as de Héracles e as de Aquiles, forjadas por Hefesto. Desse modo, o caráter mágico das armas conquistadas ou possuídas tem uma larga implicação nos mitos em que a vitória é prometida não a este ou àquele herói, mas a seu arco ou à sua espada, seja quem for que tenha “forças” para dominá-los. Ora, o arco de Ulisses vinha de Êurito, que o recebera de Apolo. De origem divina, depositário, portanto, de uma energia poderosa, não apenas outorgava dignidade a quem o detivesse, mas sobretudo era fator de vitória para quem pudesse manejá-lo. Telêmaco deixa esse fato bem claro: se conseguisse armar o arco, sua mãe jamais sairia do palácio em companhia de um dos pretendentes33. A respeito do arco e da flecha a Dra. von Franz escreveu uma página brilhante que merece ser resumida: “Existe uma antiga lenda acerca da invenção do arco e da flecha, uma lenda ancestral. Contase que havia um antepassado do arco, cuja esposa era a corda, a qual com seus braços o rodeava sempre pelo pescoço, num abraço eterno. Eles assim se mostravam aos seres humanos e foi por isso que o homem aprendeu a fazer o arco e a flecha para atirar. Os dois desapareceram, então, na terra. Assim, para a invenção do instrumento completo, houve primeiro um material da fantasia arquetípica profundamente inconsciente e foi isso que, segundo conta a própria história, suscitou a invenção. Estou convencida de que a maioria das grandes invenções do homem foram deflagradas por semelhante material oriundo de fantasias arquetípicas. São sempre atribuídas a poderes e a magia divinos, não só a motivos utilitários, pois sabia-se que tinham sua origem nos impulsos do inconsciente. A maior parte das grandes criações do presente surgiu inicialmente através dos sonhos e de impulsos instintivos”34. Assim concebidos, o arco e a flecha refletem a sizígia do amor. É esta, com efeito, a conclusão da psiquiatra junguiana: “Laurens van der Post possui um pequeno arco-e-flecha feito pelos bosquímanos do deserto de Kalahari. Ali, se um jovem está interessado numa jovem, ele faz esse arco-e-flecha. Os bosquímanos podem armazenar gordura em suas nádegas, a qual forma uma saliência, e em épocas difíceis eles podem viver dessa reserva de gordura. O jovem dispara a flecha para atingir essa parte do corpo da moça. Ela retira-a e olha para ver quem a atirou; se aceita as atenções do rapaz, vai até ele e devolve-lhe a flecha, mas, caso contrário, quebra-a e calca-a aos pés. Eles ainda usam o arco de Cupido! Vemos por que razão Cupido, o deus do amor da Antiguidade, tinha um arco-e-flecha”.35 E semelhantemente compreendemos por que apenas Ulisses era capaz de armar seu arco e disparar as flechas, não só para liquidar os pretendentes, mas sobretudo para reconquistar seu grande amor. A análise da Dra. von Franz é realmente penetrante: “Podemos interpretar a flecha psicologicamente como uma projeção, o projétil. Se projeto o meu animus num homem é como se uma parte de minha energia psíquica fluísse para esse homem e, ao mesmo tempo, me sentisse atraída por ele. Isso atua como uma flecha, uma quantidade de energia psíquica que é muito penetrante. De súbito, ela estabelece uma conexão. A flecha dos bosquímanos do deserto de Kalahari diz à moça: ‘A libido da minha anima tocou em você’, e ela aceita ou não. Mas a jovem não guarda a flecha, ela devolve-a; isto é, ele tem de receber de volta a projeção, mas, através dela, uma relação humana foi estabelecida. Todo o simbolismo do casamento está aí contido”36. O terceiro sinal recai sobre o segredo da construção do leito conjugal. O grande mistério consistia, já se mencionou, num tronco de oliveira, árvore sagrada, configuração da fecundidade, que servia de suporte ao leito conjugal, cuja simbologia é uma real complexio oppositorum, uma reunião dos opostos. Para Chevalier e Gheerbrant o leito traduz “a restauração no sono e no amor, mas funciona igualmente como o local da morte. Leito do nascimento, leito conjugal e leito de morte são objeto de um cuidado todo especial e de uma espécie de veneração por serem o centro sagrado da vida em seu estágio fundamental”37. Consagrado aos Gênios38ancestrais, recebia, por isso mesmo, em Roma, o nome de lectus genialis, “leito nupcial”. Partícipe da dupla significação da vida, o leito comunica e absorve a vida. Em várias culturas primitivas colocavam-se sob o leito os grãos da sementeira e sobre o mesmo a mortalha. Configurando o elo entre a união sexual e o trabalho agrícola, o homem funciona em relação ao mesmo como o gênio da água, o dispensador da chuva, e a mulher como o receptáculo do sêmen caído do céu. No Antigo Testamento a conjugação entre leito nupcial, símbolo da vida, e leito de morte, é bem atestada: Rubem, meu primogênito, tu, a minha fortaleza, e o princípio da minha dor; o primeiro nos dons, o maior no império, tu te derramaste como a água, não crescerás, porque subiste ao leito de teu pai e profanaste o seu tálamo (Gn 49,3-4). Também Jacó, em seu leito de agonia, a fim de falar aos filhos, sentou-se e colocou os pés para fora do leito e tendo-se novamente deitado, expirou (Gn 49,32). Reconhecendo seu leito conjugal, o rei de Ítaca se reencontra com o gênio de seus ancestrais e continua a desempenhar a função sagrada da fecundação. 6 Na realidade, Ulisses e Penélope não foram felizes para sempre. Desvinculando os reis de Ítaca da idealização épica, vamos retomarlhes a trajetória mítica. Consoante uma velha tradição, para expiar o massacre dos pretendentes, Ulisses, após um sacrifício a Plutão, Perséfone e Tirésias, partiu a pé e chegou ao país dos Tesprotos, no Epiro. Ali, como lhe recomendara Tirésias, sacrificou a Posídon, a fim de apaziguar-lhe a cólera pelo cegamento de Polifemo. Acontece que a rainha da Tesprótida, Calídice, apaixonada pelo herói, ofereceu-lhe metade de seu reino. Da união “temporária” do esposo de Penélope com a rainha do Epiro nasceu Polipetes. Algum tempo depois, com a morte de Calídice, deixou o reino a Polipetes e retornou a Ítaca, para os braços de Penélope, que dele tivera um segundo filho, Poliportes. Existe uma variante, segundo a qual o herói, acusado veementemente pelos pais dos pretendentes, submeteu o caso à decisão de Neoptólemo, que, cobiçando-lhe as possessões, condenouo ao exílio. Refugiando-se na Etólia, na corte do rei Toas, desposoulhe a filha e faleceu em idade avançada, o que confirmaria a predição de Tirésias (Od., XI, 134-136). Esses banimentos que se seguem a um derramamento de sangue são fatos comuns e bem atestados no mito dos heróis, conforme se mostrou no capítulo I, 8, do presente volume. Visam, em última análise, a purificá-los de suas mazelas e de suas permanentes ultrapassagens do métron. A parte romanesca que, via de regra, se agrega ao mitologema, pertence ao mundo da fantasia, à criatividade dos mitógrafos antigos e, não raro, a tradições locais. Afinal, ter tido um herói do porte de Ulisses como rei, ancestral ou simplesmente como hóspede ou exilado, falava alto demais, para que se deixasse de formar um autêntico novelo de variantes e tradições locais. Uma delas, muito curiosa por sinal, nos conduz até a Itália em companhia do senhor de Ítaca. Este, no curso de suas longas viagens, ter-se-ia encontrado com o troiano Eneias que, sob a proteção de Afrodite, sua mãe, buscava erguer a Nova Troia, a futura pátria dos Césares. Reconciliaram-se os dois e Ulisses penetrou também na Itália, estabelecendo-se na Tirrênia, nos domínios etruscos, onde fundou trinta cidades. Com o epíteto de Nanos, que significaria Errante em língua etrusca, lutou denodadamente contra os nativos para consolidar seu reino. Teria falecido em idade provecta na cidade etrusca de Gortina, identificada na Itália com Cortona. A morte do herói, em sua terra natal, ter-se-ia devido a um engano fatal. É que, tendo sabido por Circe quem era seu pai, Telégono partiu à procura de Ulisses. Desembarcou em Ítaca e começou a devastar os rebanhos que encontrava. O velho e alquebrado herói saiu em socorro dos pastores, mas foi morto pelo filho. Quando este tomou conhecimento da identidade de sua vítima, chorou amargamente e, acompanhado de Penélope e Telêmaco, transportou-lhe o corpo para a ilha de sua mãe Circe. Lá, certamente, com suas magias, a senhora da ilha de Eeia fez que Telégono desposasse Penélope e, ela própria, Circe, se casou com Telêmaco... Afora esses desdobramentos, aliás bem pouco românticos, o que se deseja acentuar é não apenas a substituição do velho rei, impotente e destituído de seus poderes mágicos, pelo jovem soberano, cheio de vida e de energia, mas ainda a morte violenta do herói. No tocante à permuta do velho rei pelo jovem, uma vez que, da fecundação da rainha depende a fertilidade de todas as mulheres, da terra e do rebanho, já se tratou no Vol. I, p. 209. A respeito da morte violenta da maioria dos heróis, é conveniente enfatizar mais uma vez que, se o herói, por sua própria essência, tem um nascimento difícil e complicado; se sua existência neste mundo é um desfile de viagens perigosas, de lutas, de sofrimentos, de desajustes, de incontinência e de descomedimentos, o derradeiro ato de seu drama, a morte violenta, se constitui no ápice de sua prova final. Mas é exatamente esse desfecho trágico que lhe outorga o título de herói, transformando-o no verdadeiro “protetor” de sua cidade e de seus concidadãos, conforme se viu no capítulo I, 4 e 9 deste volume. É verdade que só se conhece oficialmente um santuário de Ulisses em Esparta, mas, se a mágica Circe, segundo uma tradição, colocou Penélope e Telégono na Ilha dos Bem-Aventurados, é bem possível que lá igualmente esteja Ulisses, certamente em companhia da maga de Eeia... Para encerrar este capítulo, uma palavra sobre Penélope. De acordo com as melhores referências, a rainha de Ítaca era filha de Icário e da náiade Peribeia. Seu casamento com o protagonista da Odisseia oscila entre duas tradições. A primeira delas se reporta à influência de Tíndaro, tio de Penélope, o qual, desejando recompensar Ulisses por seus hábeis conselhos por ocasião da disputa da mão de Helena, como se viu no Vol. I, p. 90s, fê-lo desposar a filha de Icário, seu irmão. Outra versão é a de que Penélope fora o prêmio outorgado ao herói por ter sido ele o vencedor numa corrida de carros. O amor da rainha de Ítaca pelo esposo, como já se viu, manifestou-se muito cedo: quando coagida a escolher entre residir junto ao pai em Esparta, uma vez que o casamento matrilocal era de praxe, e seguir o marido, preferiu partir para a longínqua ilha de Ítaca. Tão grande e decantada foi a fidelidade da princesa espartana ao esposo ausente por vinte anos, que, se ela mereceu a mais rica adjetivação feminina de Homero; e se de seus lábios saíram as mais duras palavras que os pretendentes poderiam ouvir de uma mulher (Od., XXI, 331ss), ele, em função dessa mesma lealdade, tornou-sedigno de um santuário em Esparta, famosa pela honradez de suas mulheres. A partir de Homero, a fidelidade de Penélope se converteu num símbolo universal, perpetuado pelo mito e sobretudo pela literatura. Públio Ovídio Nasão dedicou a primeira carta de amor de suas célebres Heroides à fidelidade da rainha de Ítaca. Após manifestar a solidão, as saudades que a consumiam e uma pontinha de ciúmes, escreveu o que muito deve ter inflado a vaidade masculina de Ulisses: seria dele para sempre! [...] tua sum, tua dicar oportet; Penelope coniux semper Ulixis ero. (Her., 1,83-84) Sou tua e faço questão de ser chamada tua. Penélope será sempre a esposa de Ulisses. Essa imagem de Penélope, contudo, está longe de corresponder a muitas tradições pós-homéricas. Na longa ausência do esposo, a rainha teria praticado adultério com todos os pretendentes e um deles seria pai do deus Pã. Outros mitógrafos julgam que Pã seria filho dos amores da esposa de Ulisses com o deus Hermes. Uma versão mais tardia insiste em que Ulisses, tendo sido posto a par da infidelidade da mulher, a teria banido. Exilada primeiramente em Esparta, seguiu depois para Mantineia, onde morreu e onde se lhe ergueu um belo túmulo. Uma variante atesta que o herói a matara para puni-la do adultério com o pretendente Anfínomo, pelo qual, mesmo na Odisseia, Penélope mostra acentuada preferência. Curioso no mito é que não se discute a fidelidade de Ulisses! O número dos filhos adulterinos do herói era tão grande, que os genealogistas, à época de M. Pórcio Catão, confeccionaram com eles títulos de nobreza para todas as cidades latinas da Itália... Possivelmente, àquela época, illo tempore, adultério era do gênero feminino! O retorno urobórico de Ulisses 3. São tantas as referências a Ulisses, que talvez fosse mais didático sintetizá-las e dividi-las em quatro fases, como o fez, entre outros, Pierre GRIMAL, Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine, Paris: PUF, 1979, p. 468s. Nascimento de Ulisses:Il., X, 266ss;Od., XI, 85; XV, 363ss; XVI, 119ss; XIX, 395; 416; 482s; XXIV, 270; 517; Sófocles, Ájax, 190; Filoctetes, 417; 448; 623s; Eurípides, Ciclope, 104; Apolodoro, Biblioteca, 1,19,16; Ovídio, Metamorfoses, 13,144ss; Higino, Fábulas, 200; 201; Ateneu, Dipnosofistas, 4,158d. Adolescência e Juventude: Od., II, 46ss; 172ss; IV, 689ss; XIX, 428ss; XXI, 2ss; Sófocles, Ájax, 1111ss; Xenofonte, Cineg., 1,2; Apolodoro, Biblioteca, 3,10,8ss; Ovídio, Metamorfoses, 13,36; Higino, Fábulas, 81; 95; 96. Guerra de Troia: Il., I, 308ss; 439ss; II, 637; III, 205ss; 206; IV, 329ss; 494ss; V, 669ss; VI, 30ss; IX, 169ss; X, 137ss; 272ss; 526-579; XI, 139ss; 310ss; 396ss; 767ss; Od., IV, 244ss; 271ss; 342ss; VIII, 75ss; 219ss; IX, 159; XI, 508ss; XVII, 133ss; Sófocles, Filoctetes, 5; Eurípides, Hécuba, 238ss; Aristóteles, Poética, 23; Ovídio, Met., 13,193ss; Higino, Fábulas, 101; 102. Retorno a Ítaca: Od., passim; Hesíodo, Teogonia, 111ss; Ésquilo, Agamêmnon, 814ss; Eurípides, Ciclope, 141; 412; 616; Dionísio de Halicarnasso, 1,72: 12,16; Ovídio, Met., 14,223ss; Íbis, 567ss; Higino, Fábulas, 125; 126; 127; Partênio de Niceia, Erótica, 2; 3; 12; Plínio, História Natural, 5,28. 4. Consoante o mito, Autólico, considerado o maior e o mais bem-sucedido larápio da Antiguidade, havia furtado uma parte do rebanho do mais inescrupuloso e astuto dos mortais, Sísifo. Foi durante a permanência deste na corte de Autólico, aonde fora reclamar seu rebanho, que Anticleia se entregara ao “hóspede” de seu pai. 5. CARNOY, Albert. Dictionnaire étymologique de la mythologie gréco-romaine. Louvain: Éditions Universitas, 1976. 6. Veja-se a opinião discordante de Walde-Hofmann. Lateinisches etymologisches Wörterbuch. Heidelberg: Carl Winter/Universitätsbuchhandlung, 1938, II, 811. 7. Palamedes, em grego Παλαμήδης (Palamédes) que Carnoy faz provir de παλαμο-μήδης (palamomédes) e este último elemento de μήδεσθαι (médesthai), “inventar, imaginar, ocupar-se de”, como o latim mederi, “cuidar de”, donde Palamedesé a inteligência inventivapor excelência. Filho de Náuplio e Clímene, foi educado pelo centauro Quirão. Dedicou-se aos atridas de maneira extremada antes e durante a Guerra de Troia. Além de haver participado de duas embaixadas a Ílion, a primeira com Menelau e Ulisses e a segunda com Menelau, Ulisses, Diomedes e Ácamas, no sentido de recuperar Helena e evitar a guerra, prestou inúmeros serviços à armada grega, sobretudo encorajando os soldados aterrorizados por presságios desfavoráveis, entre os quais um eclipse. Ulisses, todavia, não se esquecera do aviltamento que lhe impusera Palamedes. Tendo aprisionado um troiano, obrigou-o, sob ameaça, a escrever uma carta e apresentá-la como se tivesse vindo de Príamo. Dizia-se na missiva que Palamedes se oferecera ao rei de Ílion para trair os gregos. Subornou, além do mais, um escravo do herói para que colocasse grande quantidade de ouro sob o leito do acusado e, em seguida, fez que a carta chegasse às mãos de Agamêmnon. Este entregou o filho de Náuplio aos gregos, que o lapidaram ou, segundo outra versão, Ulisses e Diomedes convenceram-no a descer num poço e cobriram-no rapidamente com pedras e terra, esmagando o companheiro. A Antiguidade atribuía a Palamedes a invenção dos caracteres do alfabeto ou ao menos de alguns deles e a disposição dos mesmos na ordem em que ainda estão. Para criar o Y inspirou-se, conta-se, no voo dos grous. Diz-se igualmente que inventou os números, difundiu o uso da moeda, calculou a duração dos meses consoante a trajetória dos astros e criou o jogo de damas e o de dados. Seu pai Náuplio tudo fez para vingar-lhe a inocência: maquinou para que as mulheres dos principais chefes gregos se ligassem a amantes e, por meio de falsos sinais, conseguiu que o principal comboio aqueu, que regressava de Troia, se despedaçasse contra os rochedos nas vizinhanças do cabo Cafareu, ao sul da ilha de Eubeia. 8. Télefo, em grego Τήλεφος (Télephos), talvez de φαίνειν (pháinein), “aparecer, brilhar” ou um composto, cujo primeiro elemento seria o indo-europeu bha, “brilhar”. Trata-se, ao que parece, de uma antiga divindade luminosa. Filho de Héracles e de Auge, “a brilhante”, foi concebido num templo da deusa Atená. É que Áleo, rei de Tégea, pai de Auge, fora advertido por um oráculo de que, se a filha tivesse um filho, este mataria os tios, os aléadas, e reinaria em seu lugar. De imediato, o rei consagrou a filha à deusa virgem Atená e proibiu-lhe casar, sob pena de morte. Mas Héracles, passando por Tégea, a caminho do reino de Augias, embebedou-se num banquete que lhe fora oferecido por Áleo, e violentou-a no próprio templo da deusa. Quando o rei soube da gravidez da princesa, temendo a realização do oráculo, mandou que Náuplio, o grande navegante e pai de Palamedes, a expusesse no mar. Na viagem para Náuplia nasceu Télefo. Compadecido de Auge e do recém-nascido, Náuplio vendeu-os a um mercador de escravos, que os levou para Mísia. O rei local, Teutras, que não tinha filhos, desposou Auge e adotou Télefo. Segundo uma variante, somente Auge fora vendida e Télefo, exposto num monte da Arcádia, fora alimentado por uma corça, tendo, mais tarde, encontrado sua mãe em Mísia. Com a morte de Teutras, que lhe dera a filha Argíope em casamento, o filho de Héracles herdou-lhe o trono. Quando da primeira tentativa aqueia de velejar para Troia e de seu desembarque em Mísia, Télefo lutou bravamente contra os invasores, matando a muitos deles, mas acabou sendo ferido na coxa pelo grande Aquiles. Oito anos se haviam passado e agora os gregos estavam reunidos em Áulis; Télefo continuava, no entanto, padecendo dores terríveis, porque a ferida produzida pela lança de Aquiles não cicatrizara. Consultado o oráculo, Apolo declarou que “quem o tinha ferido o curaria”. Como os aqueus não soubessem como chegar a Tróada, Télefo, coberto de andrajos, foi-lhes ao encontro e prontificou-se a guiá-los, desde que Aquiles o curasse. Como o filho de Tétis não soubesse como agir, Ulisses interpretou sabiamente o oráculo: Télefo seria curado pelo instrumento que o ferira e não por quem o manejara. Curado pela ferrugem da lança de Aquiles, o rei de Mísia cumpriu a promessa: guiou a armada grega até Tróada, limitando-se a isto seu papel na Guerra de Troia. Na versão da tragédia Télefo (que tanto Aristófanes condena, As Rãs, 1080ss), de Eurípides, Télefo, tendo chegado a Áulis, foi preso como espião. A conselho de Clitemnestra, todavia, agarrou o pequenino Orestes e ameaçou matá-lo, se o maltratassem. Conseguiu assim ser ouvido e curado, segundo se mostrou no Vol. I, cap. V, p. 90. 9. A respeito das numerosas ilhas citadas por Homero, no Catálogo das Naus, e de sua difícil identificação, veja-se o magnífico trabalho de Thomas W. ALLEN, The Homeric Catalog of Ships. Oxford: Oxford University Press, 1921, p. 82ss. 10. Homero nos dá na Ilíada, II, 212-244, um retrato de corpo inteiro de Tersites, o mais feio, covarde e atrevido dos Helenos que lutaram em Troia. Tersites, em grego Θερσίτης (Thersítes), talvez provenha de Θερσος (thérsos), forma eólia de θρασύς (thras×s), e significaria “o impertinente, o descarado”. Era coxo, de pernas tortas, corcunda e calvo. Inimigo figadal dos reis aqueus, não lhes poupava críticas, justas e injustas. Quando Agamêmnon, para testar seus comandados, sugeriu levantar o cerco de Troia, Tersites não só acolheu prontamente a proposta, mas também, numa arenga violenta e cáustica contra o atrida, por pouco não disseminou a sedição e a desordem no acampamento grego. Ulisses, que procurava reanimar os chefes e os soldados, tendo-o ouvido, após responder-lhe ao discurso, surrou-o violentamente com seu cetro de ouro, batendo-lhe nos ombros e na corcunda, até esguichar o sangue. Tersites, apavorado, sentou-se e começou a chorar. A soldadesca explodiu em gargalhadas, o que muito serviu para desarmar os ânimos e aliviar a tensão. Em outra ocasião, quando a linda rainha das Amazonas, Pentesileia, caiu sob os golpes de Aquiles, ficou tão bela na morte, que o herói de Ftia se comoveu até as lágrimas. Tersites ridicularizou-lhe a ternura e ameaçou furar a ponta de lança os olhos da rainha morta. Aquiles, num acesso de raiva (coisa comum aos heróis), matou-o a murros, tendo depois que purificar-se na ilha de Lesbos. 11. Hécuba, em grego Έκάβη (Hekábe), para cuja etimologia se propõe um elemento ἑκα (héka) “à vontade, à farta”, e βοῦς (bûs), “vaca”, que, na linguagem familiar, se emprega, às vezes, por “mulher e mãe”, dada a fecundidade da rainha de Troia. Na Ilíada, XVI, 718-719, Hécuba, a segunda esposa de Príamo, é filha de Dimas, rei da Frígia, mas em Eurípides, que gostava muito de inovar também em matéria de genealogia, tornou-se filha de Cisseu, rei da Trácia, transformando-se esta última na preferida dos trágicos. Em Homero a figura de Hécuba é apagada e secundária: intervém, certa feita, para moderar o ímpeto bélico de Heitor, chorar sobre seu cadáver e suplicar à deusa Atená que afaste a desgraça iminente que ameaçava Troia. A partir das Epopeias Cíclicas, porém, e particularmente dos trágicos, Hécuba se agigantou, aparecendo como o símbolo da majestade e da dor. Célebre por sua fecundidade, conta-se que teve dezenove filhos, número que Eurípides ampliou para cinquenta, mas o prudente Apolodoro o reduziu a dezesseis. Entre eles os mais célebres e conhecidos foram: Heitor, o mais velho; Páris ou Alexandre, Deífobo, Heleno, Polidoro, Pâmon, Polites, Ântifo, Hipônoo, Troilo, Creúsa, Laódice, Políxena e Cassandra. Quando da queda da cidadela, Hécuba já havia perdido quase todos os filhos, mas um deles, Polidoro, com muito ouro de Troia, havia sido confiado por Príamo a Polimnestor, rei de Quersoneso da Trácia. Com a destruição de Ílion e a morte de seu rei, o rei de Quersoneso, para se apoderar da riqueza, matou Polidoro e lançou-lhe o cadáver nas ondas do mar. O corpo do jovem troiano, no entanto, foi arremessado pelas vagas nas praias da Tróada no momento em que Hécuba, que coubera por sorte a Ulisses na partilha dos escravos troianos, embarcava em direção a Ítaca. Tendo reconhecido o corpo do filho, a alquebrada rainha de Ílion decidiu vingar-se. Mandou um dos servidores chamar urgentemente Polimnestor sob o pretexto falso de que sabia onde se escondia um tesouro nas ruínas de Troia, o qual escapara à pilhagem dos conquistadores. Movido pela ganância, o rei acorreu inerme, acompanhado de dois filhos. Hécuba, auxiliada pelas cativas troianas, arrancou-lhe os dois olhos, enquanto as servas lhe matavam os filhos. Para punir a rainha, os aqueus resolveram lapidá-la e conta-se que, apesar de certa vez, como já se falou, ter sido salvo por ela, Ulisses atirou-lhe a primeira pedra. Mais tarde, sob o monte de pedras, em lugar de seu cadáver, encontraram uma cadela com olhos de fogo. Reza uma outra tradição que Hécuba foi transformada em cadela, quando fugia dos companheiros de Polimnestor, que procuravam vingá-lo ou ainda que a metamorfose se operou na nau de Ulisses, quando da viagem para Ítaca, tendo a cadela Hécuba se precipitado nas ondas do mar. O mito de Polidoro foi igualmente tratado por Vergílio, Eneida, 3,41ss. 12. O longo retorno de Ulisses que se pretende traçar é baseado na Odisseia, mas é conveniente não esquecer que o mito sofreu muitas alterações e foi enriquecido, ao longo do tempo, com muitas variantes e adições. Vamos tentar reuni-las e, na medida do possível, distribuí-las no corpo da exposição. 13. Os Cícones, Κίκονες (Kíkones), tribo belicosa da Trácia, tinham por herói epônimo a Cícon, filho de Apolo e de Ródope. Participaram da Guerra de Troia como aliados de Príamo, o que justifica a destruição de uma de suas cidades por Ulisses. Consoante o mito, foi entre eles que Orfeu se iniciou nos mistérios de Apolo e foi igualmente, mais tarde, despedaçado por suas mulheres. 14. Loto, em grego λωτός (lotós), é, segundo A. Carnoy, Dictionnaire étymologique des noms grecs de plantes, Louvain, Publications Universitaires, 1979, verbete lotos, um empréstimo ao semítico (hebraico lot, “mirra, suco odorífero”). Os gregos, não se sabe muito bem o motivo, usaram o termo lotós, “loto”, para designar uma série de vegetais muito diferentes. Parece que o “lódão” ou “lodo” (Celtis australis) representa o ponto de partida dessas várias designações. De um lado, o lódão segrega um óleo, como a jujubeira, o cinamomo, o cravoda-índia, denominados lotós; de outro, ele é uma excelente forragem, como o meliloto, o trevo (Lotus carniculatus) e o Trifolium fragiferum... Muitas dessas plantas possuem um suco odorífero e são usadas em medicina como emolientes, o que as aproxima da mirra. Quanto ao lótus do Egito (nenúfar), é bom acrescentar que o mesmo possuía tubérculos com um sabor doce como o fruto da jujubeira, mas nada tem a ver com o “loto homérico”: o primeiro é uma planta aquática que floresce nos pântanos, o segundo é um fruto saboroso. Seja como for, o país dos Lotófagos possivelmente se localizaria “em algum lugar” da costa da África do Norte. No tocante aos efeitos amnésticos do loto, só mesmo uma explicação evemerista da passagem poderia dar conta dos mesmos: após “nove dias” baloiçando nas vagas, os três companheiros de Ulisses, muito bem tratados pelos Lotófagos, tinham mesmo que esquecer, ao menos por algum tempo, a hora do regresso “às cascas de nozes” e à fúria de Posídon... 15. Como no Vol. I, cap. X, p. 214ss, já falamos dos ciclopes, do mito de Polifemo e de sua simbologia, aqui apenas complementamos o mitologema para dar unidade às gestas de Ulisses. 16. Acerca das aventuras de Ulisses na gruta de Polifemo, Eurípides nos deixou um bem elaborado drama satírico, O Ciclope (o único que chegou completo até nós), cuja tradução, com introdução e notas, publicamos recentemente com o título de Teatro grego. EurípidesAristófanes: O Ciclope, As Rãs, As Vespas. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. 17. A respeito dos Ventos e de sua belíssima simbologia já se falou no Vol. I, cap. XII, p. 283ss. 18. Na realidade, em momento algum Homero diz explicitamente que os nautas aqueus foram transformados em porcos. Na Od., X, 239-240, fala-se que os companheiros do herói “ficaram com a cabeça, voz, pelo e feitio de porco” e nos versos 282-283 se repete que os mesmos, “no palácio de Circe foram encerrados, como se fossem porcos, em seguras pocilgas”. Melhor talvez seria dizer que os afoitos marinheiros foram metamorfoseados em animais diversos, cada um de acordo com seus instintos. 19. A respeito da obra de Lúcio Apuleio, Metamorfoses, em que o jovem Lúcio é transformado em asno e em cujo bojo se encontra intercalada a novela de Eros e Psiqué, vejase o Vol. II, cap. VIII, Eros e Psiqué. 20. VON FRANZ, Marie-Louise. O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos de fadas. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 48s [Tradução de Álvaro Cabral]. 21. Ibid., p. 47. 22. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 447. 23. LEY, W. & De CAMP, Sprague. Da Atlântida ao Eldorado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961, p. 63 [Tradução de Iria Longo Renault]. 24. Partênope, em grego Παρθενόπη (Parthenópe), provém de παρθένος (parthénos), “virgem”. lançou-se ao mar juntamente com suas irmãs, mas seu corpo foi dar nas costas de Nápoles, onde se lhe ergueu um túmulo, tomando a cidade o nome de Partênope. Uma outra tradição conta que Partênope era uma jovem belíssima, originária da Frígia e que se apaixonara perdidamente por Metíoco. Não desejando romper o voto de castidade, para se punir cortou os cabelos e se exilou na Campânia, consagrando-se a Dioniso. Ofendida, a deusa Afrodite transformou-a em sereia. 25. Ibid., p. 73. 26. Na Odisseia, Cila passa por filha da deusa Crateis e do deus marinho Fórcis. Outras tradições dão-lhe por pais Forbas e Hécate ou ainda Tifão e Équidna. Pela lindíssima Cila apaixonou-se o imortal e feio Glauco. Como não fosse correspondido, solicitou a Circe que, por sua vez, o amava, um filtro de amor. A maga aproveitou a oportunidade para se vingar da rival: atirou ervas mágicas na fonte em que se banhava a jovem e esta imediatamente foi transformada num monstro de seis cabeças, com três fileiras de dentes cada uma, doze pés e com seis cães medonhos em torno da cintura. Habitava uma caverna tenebrosa sob um altíssimo rochedo e devorava a quantos lhe passassem ao alcance. 27. Frente a Cila estava Caribdes, filha de Geia e de Posídon, que era de uma voracidade insaciável. Quando Héracles passou pelo estreito que separa a Itália da Sicília com o rebanho de Gerião, Caribdes lhe roubou várias reses e as devorou. Zeus, como punição, após fulminá-la, lançou-a no mar, transformando-a num monstro, que habitava sob uma figueira brava junto a um penhasco. Três vezes por dia Caribdes absorvia grande quantidade de água, devorando tudo que nela estivesse ou flutuasse e outras tantas vezes vomitava apenas a água. 28. I no, segundo comentário feito no Vol. II, cap. IV, 3, era casada com o rei Átamas. Após o dramático nascimento de Dioniso, Hermes o recolheu e levou, às escondidas, para a corte desse rei. Irritada com a acolhida ao filho adulterino de Zeus, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou seu filho caçula, Melicertes, num caldeirão de água fervendo, enquanto o rei, com um venábulo, matava o mais velho, Learco, confundindo-o com um veado. Ino, em seguida, atirou-se ao mar com o cadáver de Melicertes. As divindades marinhas, todavia, apiedaram-se da infeliz e transformaram-na numa Nereida, com o nome de Leucoteia, “a Deusa Branca”, talvez a luz da manhã, Melicertes tornou-se igualmente deus, com o epíteto de Palêmon, convertendo-se mãe e filho em protetores dos navegantes, sobretudo quando em grandes procelas. 29. Albert CARNOY, op. cit., verbete Pénélope, acha que dificilmente se poderia separar Πηνελόπη (Penelópe), “Penélope”, de Πηνέλοψ (penélops), “um tipo de ave aquática de cores brilhantes”. Para o mestre de Louvain esse palmípede possui um nome visivelmente derivado de pano-: “pântano, brejo”, donde se poderia concluir pela existência de um laço íntimo entre Odysseús (deus do fogo) e Penélope, igualmente uma forma do deus do fogo indo-europeu (Hefesto), que era “filho das águas” (apâm napât). Penélope seria, pois, o fogo que nasceu da água. 30. Traditum est etiam Homerum caecum fuisse at eius picturam, non poesin uidemus (Tusc., 5,39,14). – Conta-se igualmente que Homero foi cego, mas seus poemas são antes pintura que poesia. 31. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 699. 32. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 71. 33. Od., XXI, 114ss. 34. VON FRANZ, Marie-Louise. Op. cit., p. 90. 35. Ibid., p. 92. 36. Ibid., p. 92. 37. Ibid., p. 578. 38. Genius, “Gênio” é uma noção, uma “entidade” muito difícil de se precisar. Em si, os gênios na mitologia romana são seres imanentes não apenas a cada indivíduo, mas a cada lugar, a cada instituição, como a cidade, a tribo, a sociedade. Surgem ao mesmo tempo que o homem, o lugar ou a coisa a que estão ligados e têm por função essencial conservar-lhes a existência. Protetores do nascimento, presidem ao casamento e, por isso mesmo, havia um gênio do leito nupcial com o fito de provocar a fecundidade do casal. Personificação do ser, o gênio pessoal acompanha cada homem como se fora seu duplo, seu demônio, seu anjo da guarda, seu conselheiro e sua intuição, a voz de uma consciência suprarracional. Mais que princípio da fecundidade (uma vez que genius, que é da mesma família etimológica que o grego gevnor, “guénos”, raça, nascimento, era interpretado como qui gignit, o que gera), o gênio, consoante Georges Dumézil, configurava a personalidade divinizada do homem, bem como um duplo do eu e até mesmo como um ser distinto que protege o ser. Foi preciso, no entanto, uma longa evolução da consciência para se chegar à conclusão de que o gênio ou os gênios eram aspectos da personalidade de cada ser humano com seus conflitos internos, tendências, pulsões e ideais. Curioso, entre os romanos, é que normalmente para a mulher o gênio era substituído por Juno: se para cada homem existia um gênio, para cada mulher havia uma Juno. CAPÍTULO X Uma heroína forte: Clitemnestra 1 No capítulo III do Vol. I de Mitologia grega, quando se falou da Grécia e de seu mito, mostramos que illo tempore, a saber, a partir do Neolítico II, entre 3000-2600 a.C., a divindade que lá imperava era a Grande Mãe, cujas estatuetas representavam deusas de formas volumosas e esteatopígicas. Iniciamos, portanto, e teríamos historicamente que fazê-lo, pelo feminino e gostaríamos de fechar nossos estudos sobre mito grego com o feminino, com uma heroína de personalidade forte, Clitemnestra, vítima como todas as mulheres helênicas de uma organização político-social e religiosa que remonta à família indo-europeia, em cujo seio imperava o despotismo machista. Sabemos melhor que ninguém quantas vezes já se mencionou essa heroína nos três volumes de Mitologia grega, mas o que agora pretendemos é juntar-lhe os membros esparsos, a fim de apresentá-la inteira, sofrida, mas grandiosa e destemida1. Κλυταιμνήστρα (Klytaimnéstra), Clitemnestra, etimologicamente representaria um composto: Κλυτή (klyté), “ilustre, famosa” e o elemento-mnêstra, compreendido como feminino de μνηστήρ (mnêstér) “a que corteja”, significando, pois, Clitemnestra a “famosa galanteadora”. Tal etimologia, defendida por Carnoy2, parece não estar muito de acordo com as atitudes da rainha de Micenas. Como existe a forma paralela Κλυταιμήστρα (Klytaiméstra), talvez se pudesse interpretar este último nome como a “célebre por sua habilidade”, como o faz Hofmann em seu Dicionário etimológico da língua grega (Etymologisches Wörterbuch des Griechischen, 193). Entre um nascimento complicado e uma morte tragicamente violenta, como é de praxe para a maioria dos heróis, decorre a vida agitada e sofrida da esposa de Agamêmnon. Como se mostrou no Vol. I, p. 117s, foi dos amores de Zeus-Cisne e de Nêmesis-Gansa ou de Leda que nasceu a rainha de Micenas. Nêmesis, a deusa da justiça distributiva, que traduz, por isso mesmo, a indignação pela injustiça praticada, símbolo, por conseguinte, da punição divina, despertou os desejos de Zeus. Para fugir ao pai dos deuses e dos homens, a deusa se metamorfoseou em gansa. O deus se transformou em cisne e a ela se uniu. Em consequência dessa conjunção, Nêmesis pôs um ovo que foi escondido num bosque inviolável. Encontrado por um pastor, foi entregue a Leda, esposa de Tíndaro, rei de Esparta. Desse ovo sagrado nasceu Helena. A tradição, no entanto, que faz da esposa de Tíndaro mãe de Helena, narra o mito de maneira análoga. Para escapar às investidas de Zeus, Leda se teria igualmente transformado em gansa, mas o senhor do Olimpo, sob a forma de cisne, a ela se uniu. Como já estivesse grávida de Tíndaro, Leda pôs dois ovos: do formado pela semente de Zeus nasceram Helena e Pólux, imortais, e do outro, Castor e Clitemnestra, mortais. Nesse caso, como é de praxe no mito, os chamados Διόσκουροι (Dióskuroi), os Dioscuros, “filhos de Zeus”, Castor e Pólux, bem como Helena e Clitemnestra teriam por pai a Tíndaro e por godfather a Zeus... Antes mesmo das núpcias solenes de Helena e Menelau, o rei e senhor de Micenas passou a cortejar Clitemnestra, que, à época, já estava casada com Tântalo II, filho de Tieste, inimigos mortais dos dois atridas Menelau e Agamêmnon. Este traiçoeiramente assassinou Tântalo e ao filho recém-nascido de Clitemnestra, obrigando-a, em seguida, a aceitá-lo como marido. Perseguido pelos Dioscuros, o despótico rei de Argos conseguiu refugiar-se na corte de seu sogro, o conciliador Tíndaro, que a custo conteve a sede de vingança dos filhos. A contragosto e profundamente magoada, Clitemnestra seguiu para Micenas. Desse enlace, que começou sob maus auspícios, vieram ao mundo Ifianassa e Laódice, mais tarde chamadas respectivamente Ifigênia e Electra; Crisótemis e Orestes3. Reinava a paz na Argólida. De repente, um fato grave abalou o reino de Esparta: o príncipe troiano Páris ou Alexandre raptara Helena, esposa de Menelau. Tendo outorgado o pomo da discórdia a Afrodite, que por ele competia com Hera e Atená, recebera como recompensa da deusa do amor a “paixão” incontrolável da filha de Zeus, segundo se expôs no Vol. I, p. 113. Apesar das tentativas do rei de Esparta de resolver de maneira pacífica a injúria perpetrada pelo filho de Príamo, exigindo tão somente o retorno de Helena e os tesouros levados para Ílion, nada se conseguiu e a guerra se tornou inevitável. Como todos os reis da Hélade estivessem ligados por juramento a Menelau, organizou-se uma formidável expedição, cujo comandante-em-chefe era o rei de Micenas, Agamêmnon. Numa primeira tentativa, a frota helênica não conseguiu chegar a Tróada, porque, dispersados por tremenda borrasca, os chefes aqueus tiveram que regressar a seus respectivos reinos. Foi no decorrer dessa malograda expedição dos heróis helênicos que Télefo, rei da Mísia, por onde passara a frota grega, foi ferido por Aquiles. Esse fato será mais tarde aproveitado por Clitemnestra num primeiro esboço de vingança contra Agamêmnon, segundo se verá mais abaixo. Oito anos depois reuniram-se novamente em Áulis, cidade e porto da Beócia, de onde partiriam para vingar a afronta a Menelau. O mar, todavia, repentinamente se tornou inacessível aos navegantes, mercê de uma estranha calmaria. Consultado o adivinho Calcas, este explicou que o fenômeno se devia à cólera da irascível Ártemis, porque Agamêmnon, numa caçada, tendo matado uma corça, afirmara que nem a deusa o faria melhor que ele ou, segundo uma variante, a corça morta era propriedade da irmã de Apolo. A única maneira de apaziguar a deusa e ter ventos favoráveis, prognosticara Calcas, era sacrificar-lhe Ifigênia, filha mais velha dos reis de Micenas. Tratava-se de uma exigência terrível. Menelau, no entanto,com a ideia fixa de recuperar a linda Helena, pressionava o irmão. A princípio,o rei parecia resistir: Não, não sacrificarei minha filha! Contra toda a justiça não obterás satisfação, castigando uma péssima esposa, enquanto eu me consumirei em lágrimas, dias e noites, culpando-me de um crime e de uma injustiça contra os filhos que gerei. (Eur., If. Ául., 396-399) Após muita relutância, o hesitante Agamêmnon, instigado por Ulisses e pelo frouxo e também indeciso Menelau, acabou por consentir no sacrifício da inocente Ifigênia. O bem comum o exigia! Estavam em jogo o prestígio, a reputação, e, mais que tudo, a vaidade do comandante-em-chefe, do ποιμὴν λαῶν (poimèn laón), na expressão homérica, “o pastor de povos” da imensa armada grega! Em Áulis recomeçam as dores de Clitemnestra. Uma mensagem mentirosa foi mandada à esposa: que se enviasse Ifigênia a Áulis para desposar Aquiles, o mais renomado dos heróis aqueus. Aguardavam-na, todavia, as núpcias da morte... As súplicas da filha dilaceraram o coração paterno: Aperto teu joelho, como se fora um ramo de suplicante, abraço-o com o corpo que minha mãe para ti deu à luz. Não me faças morrer antes da hora. É doce contemplar a luz. Não me obrigues a ver o que existe nas trevas. (If. Ául., 1216-1219) O rei de Micenas, porém, já estava por demais comprometido. Tomara a intempestiva decisão de imolar a filha, e agora, sob a pressão violenta da soldadesca, enlouquecida pela oratória do solerte Ulisses, já não mais poderia recuar. Banhada com as lágrimas da dor incomensurável de Clitemnestra, a jovem princesa foi sacrificada a Ártemis. Não importa que a deusa tenha substituído a vítima humana por uma corça: Ifigênia não mais retornaria ao lar, em vida de seus pais. O olhar de ódio e de repugnância com que a rainha fixa Agamêmnon, ele só o veria muitos anos depois, em Micenas... Ao pedido de Ifigênia para que não quisesse mal ao rei, pai e esposo, Clitemnestra respondeu secamente: É necessário que, por tua causa, ele corra perigos terríveis... (If. Ául., 1456) O sacrifício de Ifigênia em Áulis reacendeu o rancor e o desprezo da filha de Tíndaro por seu real consorte. As velas das naus aqueias se inflaram com o sangue de Ifigênia e as lágrimas de Clitemnestra! Os vingadores de Helena rasgaram o seio azul de Posídon em direção a Tróada, mas o destino de Agamêmnon, o poderoso atrida, “pastor de povos”, estava selado... Egisto, filho de Tieste com sua própria filha Pelopia, buscava há muito uma oportunidade para vingar-se dos filhos de Atreu, Agamêmnon e Menelau, seus primos e inimigos figadais. Esse rancor antigo remonta ao massacre dos filhos de Tieste por seu irmão Atreu. Massacre e banquete, porquanto Atreu serviu ao irmão as carnes dos filhos que Tieste tivera com uma náiade, segundo se mostrou no Vol. I, p. 89s. Também Náuplio, pai de Palamedes, inconsolável e profundamente ferido com a morte covarde do filho por ordem de Agamêmnon ou segundo outra versão nas mãos de Ulisses e Diomedes, tudo maquinava para vingar-lhe a inocência. Seu ódio se estendera a todos os chefes gregos e por isso mesmo engendrou primeiro um estratagema para perdê-los, quando regressavam de Troia: por intermédio de falsos sinais conseguiu que muitas naus aqueias se despedaçassem contra os rochedos nas vizinhanças do cabo Cafareu, ao sul da ilha de Eubeia. Não satisfeito, tudo fez para que todas as esposas dos heróis ausentes se ligassem amorosamente a outros príncipes, e eram muitos e antigos os pretendentes... Parece que só escapou Penélope! Ajudado por Náuplio, direta ou indiretamente, Egisto acabou conquistando a esposa de Agamêmnon. É bem verdade que Clitemnestra já algum tempo, ainda em Áulis, dera mostras de haver iniciado um plano meticuloso de desforra contra o marido. Quando da primeira expedição grega, a armada dispersada por uma tempestade chegou a Mísia, o rei Télefo lutou com bravura contra os aqueus em defesa de seus domínios, mas acabou sendo gravemente atingido por Aquiles. Como o oráculo declarasse que o soberano só poderia ser curado pela espada do filho de Tétis, o rei aguardou com paciência que os helenos se reunissem de novo em Áulis e para lá se dirigiu. Preso como espião, conseguiu, orientado por Clitemnestra, tomar como refém o pequenino Orestes, e ameaçou matá-lo, caso Agamêmnon não o mandasse libertar imediatamente e não convocasse o conselho para ouvi-lo. Engolindo em seco a humilhação, o poderoso rei de Micenas foi obrigado a satisfazer a todas as pretensões de Télefo, que afinal foi curado pela ferrugem da espada de Aquiles e regressou em paz a seu reino. Conta-se ainda que a decisão de unir-se a Egisto se deveu ao fato de Clitemnestra ter sido informada de que o esposo estava de tal modo apaixonado por Criseida, que provocara a ira de Apolo e o afastamento de Aquiles da luta contra Ílion. Uma outra variante dá conta da paixão do rei de Micenas por Cassandra. Ambas as versões podem ter cooperado para a deliberação da filha de Tíndaro e servido de respaldo, mas a decisão final eclodiu de um ódio amadurecido e desprezo profundo de Clitemnestra por Agamêmnon. Ela jamais perdoou ao marido o assassinato de Tântalo II, o massacre covarde de seu filho recém-nascido, um casamento despótico e violento e mais que tudo o sacrifício da jovem e inocente Ifigênia. Buscou, por isso mesmo, o apoio do atormentado e violento filho de Tieste, Egisto, que odiava ao rei Agamêmnon tanto quanto ela. 2 Como vimos, além de Ifigênia, Agamêmnon e Clitemnestra eram pais de Electra, Crisótemis e Orestes. Crisótemis já aparece na Ilíada, IX, 145 e 287, simplesmente como filha do rei de Argos: foi oferecida a Aquiles em casamento por Agamêmnon, a fim de que o filho de Tétis voltasse ao combate, proposta aliás que foi recusada, mas não está ligada à tempestade que desabará sobre o palácio de Argos. Na tragédia Electra de Sófocles, Crisótemis surge como participante do “drama”, mas comporta-se de maneira muito semelhante a Ismene de Antígona. Ambas, Crisótemis e Ismene, têm a mesma filosofia de vida: para se viver livremente é necessário curvar-se diante dos poderosos... Electra, como Antígona, é de outra têmpera. Dobrar-se, nunca! Seu ódio pela mãe e por Egisto fundamentava-se a princípio na repulsa pelo adultério de Clitemnestra e na repugnância que sentia por Egisto, que, além de inimigo antigo e irreconciliável, ocupava o trono de Agamêmnon, que, longe do lar, combatia em Troia. Esse rancor aumentou por força das reclamações da rainha, que acusava diariamente a filha de haver salvo a vida de Orestes, única ameaça futura à estabilidade dos amantes! Realmente Electra preservara o irmão de morte certa nas mãos de Egisto. É que o caçula dos Atridas, carregando o fardo das hamartíai, das faltas de dois géne, conforme se expôs no Vol. I, p. 95ss, estava destinado a vingar todos os descomedimentos dos novos reis de Micenas. Ora, essa ultrapassagem do métron, que já era ancestral, intensificara-se no presente com o adultério público e notório de Clitemnestra com Egisto. Temendo-o pelo passado, pelo presente e em função de planos futuros (o assassinato de Agamêmnon), Egisto, que dominara a alquebrada rainha, teria sem dúvida eliminado o menino, não fora a pronta intervenção de Electra, que o enviou clandestinamente para a Fócida, onde foi criado como filho na corte de Estrófio, cunhado de Agamêmnon. O antagonismo entre os reis de Micenas e a corajosa Electra chegara a tal ponto, que a jovem princesa passou a ser tratada no palácio como escrava, o que mais ainda lhe acendeu a cólera e o desejo de vingança. Após os dez longos anos da sangrenta Guerra de Troia, “o pastor de povos” foi um dos únicos chefes helênicos que atravessou incólume o cabo Cafareu e as tempestades que tragaram ou dispersaram pelo reino azul de Posídon tantas naus aqueias. Sua chegada a Micenas foi um triunfo. A seu lado, na carruagem, sentava-se num mutismo ameaçador uma das presas que lhe coubera na divisão do rico espólio de Troia, a profetisa Cassandra. Clitemnestra fingida e astutamente recebeu o rei com todas as honras devidas a um herói triunfador. Na belíssima recriação poética de Ésquilo, na primeira tragédia de que se compõe a trilogia Oréstia, a rainha acolhe o esposo com palavras perpassadas de cinismo, fazendo-o caminhar sobre um tapete de púrpura – símbolo do sangue que seria derramado – até o interior do palácio, onde, com a ajuda de Egisto, o sacrifica. Homero apresenta na Odisseia duas versões para a morte violenta do rei de Micenas. Na primeira, desejando inocentar os deuses das mazelas dos homens, atribui-a tão-somente a Egisto. Este, se bem que avisado por Hermes de que a morte de Agamêmnon provocaria a vingança de Orestes, teimou em executá-la: Ah! Grandes deuses! Como os homens incriminam os imortais. Afirmam que de nós procedem os males, quando eles, por sua própria loucura e contra a vontade do destino, sofrem calamidades, foi o que aconteceu a Egisto, que, contrariando o fado, uniu-se à legítima esposa do Atreu, a quem assassinou no regresso, apesar de saber que o aguardava morte violenta. (Od., I, 32-37) Na segunda versão, quem fala é o eídolon de Agamêmnon. Quando Ulisses, na evocação aos mortos, quis saber do rei de Micenas quem o levara tão vigoroso ainda para as trevas do Hades, o “pastor de povos” explicou-lhe que não perecera por vontade de Posídon nem tampouco em combates, mas por astúcia e perfídia de Egisto e Clitemnestra: Quem perpetrou minha morte e meu destino foi Egisto, que, com ajuda de minha perniciosa mulher, após me convidar a sua casa para um banquete, matou-me, como se abatesse um boi na manjedoura. (Od., XI, 409-411) Em seguida, continua Agamêmnon, Clitemnestra assassinou covarde e brutalmente a Cassandra,cujos gritos de dor jamais deixaram de ecoar-me nos ouvidos... Ésquilo, em sua tragédia Agamêmnon, já por nós citada, seguindo por certo uma outra variante, responsabiliza diretamente Clitemnestra pela morte de Agamêmnon: envolveu-o numa rede e vibrou-lhe dois golpes. O terceiro, com a vítima já abatida, ofereceu-o a Zeus salvador: Descarreguei-lhe dois golpes. Com dois gemidos ele caiu por terra. Apliquei-lhe então um terceiro, oferenda votiva a Zeus salvador dos mortos, o Zeus ctônio. (Ag., 1384-1387) Os anciãos, que formam o Coro da tragédia, ameaçam vingar golpe por golpe a morte do rei. A filha de Tíndaro responde altaneiramente em nome de Ate, a cegueira da razão, e das Erínias, as vingadoras do sangue parental derramado: a morte de seu esposo é uma resposta ao sacrifício de Ifigênia. Enquanto Egisto estiver a seu lado, não há o que temer! Com esta afirmação final a rainha de Argos reconhecia Egisto não apenas como seu legítimo esposo, mas ainda como o novo senhor do fatídico palácio de Micenas: Não, pela justiça que hoje vingou minha filha, por Ate e pelas Erínias, às quais sacrifiquei este homem, jamais o terror inquietante penetrará neste palácio, enquanto aqui estiver Egisto para acender o fogo de meu lar e manifestar-me como dantes a sua benevolência. (Ag., 1432-1436) A uma nova interpelação do Coro, ela ratifica sua atitude: Não creio indigna a sua morte. Não foi ele quem deu guarida em sua casa à morte pérfida? Minha filha, a filha que dele tive, minha Ifigênia tão chorada – o destino que lhe atribuiu, ele o mereceu. Que não se vanglorie, pois, no Hades. Pagou com a morte de espada o crime que cometeu primeiro. (Ag., 1521-1529) Segundo se mostrou em Teatro grego4, a Oréstia, no fundo, se constitui num vasto debate entre o Matriarcado, configurado principalmente por Clitemnestra e as Erínias, e o Patriarcado, traduzido sobretudo em Agamêmnon, Electra, Orestes, Apolo e Atená. Uma luta de morte entre as deusas-mães ctônias, as Erínias, e os deuses “novos” olímpicos, Zeus e Apolo. Um torneio dialético entre o Hades trevoso e o Olimpo, entre as Erínias e Apolo, coadjuvado por Atená, a que nasceu sem mãe, das meninges de Zeus... Para as Erínias a morte de Agamêmnon é de somenos importância: a rainha Clitemnestra não se ligava a ele pelo ius sanguinis, pelo direito consanguíneo e estava de outro lado vingando o sangue derramado de sua filha Ifigênia. A morte do rei, no entanto, do ponto de vista do patriarcado, foi um crime abominável, mercê da posição política, social e religiosa do homem. Tal fato justifica também, de um outro ângulo, o ódio e a sede de desforra de Electra. Ferido, o patriarcalíssimo Apolo ordena a Orestes, ainda, junto ao rei Estrófio, na Fócida, que mate a própria mãe e o amante dela, Egisto, adúltero e agora criminoso vulgar, porque se apossara, através de delitos graves, de um reino que de direito e de fato não lhe pertencia. Nas Coéforas, segunda tragédia da trilogia Oréstia, o Coro traduz a importância jurídica e religiosa do homem, quer dizer, do patriarcado: Quando se trata de um pai, a quem se deve a vida, a lamentação dos seus o persegue ampla, irresistível e esmagadoramente. (Coéf., 329-331) Orientado por Apolo, Orestes, acompanhado de seu primo Pílades, filho de Estrófio, encaminha-se resolutamente para Argos. Clitemnestra, assaltada por visões noturnas, provocadas pelo eídolon do esposo assassinado, ordena que Electra se dirija ao túmulo de Agamêmnon, onde deverá fazer libações para apaziguar a psiqué irritada do marido. Foi junto ao túmulo paterno que os irmãos se reencontraram e combinaram a sangrenta represália contra Clitemnestra e seu amante Egisto: É uma lei que as gotas de sangue espargidas no solo reclamam um novo sangue. O assassínio apela para as Erínias, a fim de que, em nome das primeiras vítimas, elas tragam nova vingança sobre a vingança. (Coéf., 400-404) Para conseguir seu intento, Orestes, com a ajuda e respaldo de Pílades e empurrado pelo ódio da irmã, emprega o conhecido estratagema mítico, em que o “morto” anuncia a própria morte. Iniciando seu plano de cumprimento da justiça patriarcal, apresentou-se à sua mãe como um “estrangeiro” vindo da Fócida e encarregado por Estrófio de anunciar a morte de Orestes. A rainha, livre do medo de ver seus crimes punidos pela inexorável lei do génos, rejubila-se numa irônica tristeza com a morte do filho: Agora é Orestes, cujos bons fados o arrancaram do lodaçal ensanguentado – Orestes a derradeira esperança de uma grande alegria, capaz somente ele de salvar o Palácio... aparece e se eclipsa... (Coéf., 696-699) Mandado informar de imediato pela esposa, Egisto, que estava no campo, acorre pressuroso ao palácio para se inteirar de tão auspiciosos acontecimentos. Foi o primeiro a tombar sob os golpes de Orestes: Ai! Ai de mim! Meu senhor foi morto. Ai! Três vezes Ai! Egisto não mais existe. Abri logo, tirai os ferrolhos das portas do gineceu. É de um homem forte que precisamos, mas não para socorrer a quem não mais existe. (Coéf., 875-880) A morte da rainha foi realmente dramática. Vale a pena transcrever uma ponta do diálogo final entre mãe e filho: Orestes – Buscava exatamente a ti. Este já prestou contas. Clitemnestra – Morreste, meu queridíssimo e corajoso Egisto? Orestes – Amavas este homem? Descansarás então no mesmo túmulo. Assim, nem mesmo na morte o trairás. Clitemnestra – Não faças isto, meu filho! Respeita, filho, o seio em que tantas vezes dormiste, sugando o leite com que te alimentavas! Orestes – Pílades, que devo fazer? Poderia matar minha mãe? (Coéf., 892-899) Tratava-se de uma ordem de Apolo. Empurravam-lhe o punhal, além do mais, o olhar imperativo e frio de Electra, bem como as palavras encorajadoras de Pílades. Orestes decidiu-se: cumpriria o mandato de Lóxias, recordando para quantos pudessem ouvi-lo a longa história da falência das Erínias, a vitória pela força do macho sobre a fêmea: Orestes – Segue-me. Quero degolar-te junto dele. Enquanto vivia, tu o preferiste a meu pai. Dorme, pois, com ele na morte: amaste este homem, odiando a quem devias amar. (Coéf., 904-907) Prestes a ser degolada, as palavras da rainha são uma terrível ameaça ao filho: Clitemnestra – Vê bem. Cuidado com as cadelas furiosas de uma mãe! (Coéf., 924) Essas “cadelas furiosas”, isto é, as Erínias, miticamente as vingadoras do sangue parental derramado, sintetizam o próprio eídolon da mãe assassinada que atua sobre o matricida de forma compulsivamente arrasadora. Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.), inspirado talvez em Ésquilo e Eurípides, mostra em sua Eneida que as Erínias traduziam a psiqué enfurecida de Clitemnestra: aut Agamemnonius scaenis agitatus Orestes, armatam facibus matrem et serpentibus atris cum fugit ultricesque sedent in limine Dirae. (En., 4,471-474) – ou como Orestes, filho de Agamêmnon, que se representa em cena fugindo de sua mãe armada de archotes e de negras serpentes, enquanto as Fúrias vingadoras o cercam nos limiares. Assassinando a própria mãe, Orestes é imediatamente “envolvido” pelas Erínias que só ele vê. Picado pelo aguilhão das “cadelas”, dirigese como um louco para o omphalós, o umbigo do Oráculo de Delfos, para ser purificado pelo patriarcalíssimo deus Apolo. Enquanto o matricida dialogava com Apolo no interior do templo, as Erínias caíram em sono profundo... Mas lá estava o infatigável eídolon de Clitemnestra para aferroá-las e despertá-las: Clitemnestra – Ouvi-me: nestes lamentos vai o grito de minha alma. Despertai, deusas ctônias. Do fundo de vossos sonhos sou eu Clitemnestra que vos chamo. (Eum., 114-116) Orestes não conseguira libertar-se das “cadelas”! Apolo tomou, por isso mesmo, a única providência cabível: instituiu um julgamento ultrapatriarcal para o matricida, cujo crime seria apreciado pelo Areópago, o augusto tribunal ateniense. Seus advogados seriam o próprio deus de Delfos e Atená, a que nasceu sem mãe, das meninges de Zeus... As Erínias (o eídolon de Clitemnestra) argumentaram ameaçadoramente e os votos dos doze íntegros magistrados atenienses terminaram empatados. Atená, a patriarcal, não se perturbou. Ela teria a palavra final. Seu discurso é tipicamente “falocrático”: Atená – A mim pertence a última palavra. Juntarei meu voto aos que são a favor de Orestes. Não tive mãe que me desse à luz. Sou a favor do homem, pelo menos até o casamento. Com todas as minhas forças sou pelo pai. Desse modo, não levarei em consideração o assassinato de uma mulher, que matou o esposo, guardião de seu lar. Para que Orestes seja absolvido, basta que haja empate nos sufrágios. (Eum., 734-741) E, com efeito, era bastante que os votos dos juízes humanos se igualassem, porque a deusa colocou na urna o calculus Mineruae, o “voto de Minerva”, capaz de dirimir quaisquer dúvidas em julgamentos... Livre “exteriormente” das Erínias, quitado da pena, mas não da culpa, o matricida atormentado por suas erínias internas pede orientação a Apolo acerca do que lhe caberia fazer a seguir. A Pítia respondeu-lhe que, para libertar-se da manía, da loucura, da “opressão interna” do eídolon de Clitemnestra, deveria dirigir-se a Táurida, na Ásia Menor. Lá teria que descobrir e apossar-se da estátua de Ártemis, cuja guardiã era Ifigênia, sua irmã, que fora arrebatada no momento de ser imolada por Agamêmnon. Não parece difícil, seguindo os meandros do mitologema, esboçar um juízo de valor acerca de Clitemnestra e Electra. Ambas são vítimas do despotismo patriarcal. A rainha de Micenas é coagida a desposar aquele que lhe trucidou o marido e o filho recém-nascido. Como se isso não bastasse, o novo senhor deixou-se arrastar pela hýbris e ofendeu a vingativa deusa Ártemis. No intento de apaziguar-lhe a cólera e ter ventos favoráveis para uma empresa gigantesca, onde brilharia a vaidade pessoal do comandante-em- chefe, atraiu mentirosamente a esposa até Áulis. Em vez de núpcias solenes com Aquiles, a rainha assistiu ao sacrifício de sua filha Ifigênia. A união Clitemnestra-Egisto não é apenas um ato de vindita de ambos contra Agamêmnon, mas, em relação à filha de Tíndaro, tem-se a impressão de tratar-se de uma busca desesperada de apoio e segurança para sua carência afetiva. Diga-se, de passagem, que a decisão de Clitemnestra de unir-se a Egisto custou muito caro à sua honorabilidade. Como sua irmã Helena, raptada por Páris, a esposa de Agamêmnon transformou-se na literatura em prostituta vulgar. Ainda no século I d.C., ao menos em Roma, o nome da rainha de Micenas era sinônimo de mulher fácil, que vendia por bagatela o próprio corpo. Marco Fábio Quintiliano (séc. I d.C.) , em sua obra De Institutione Oratoria (Formação do Orador), explicando o conceito de “alegoria”, afirma que o orador Célio, comparando Clódia5a Clitemnestra, dizia ser aquela uma quadrantariam Clytaemnestram (Inst. Orat., 8,53) isto é, uma Clitemnestra que se possui por um preço ínfimo. ELECTRA, em grego Ήλέκτρα (Eléktra), da raiz indo-europeia ulek, sânscrito ulkâ, “meteoro, incêndio”, é a brilhante, a que se incendeia e incendeia de ódio... Com seu temperamento forte rebelou-se contra a mãe por ter-se unido ao maior inimigo da família, e, fato grave, ainda em vida de Agamêmnon. Egisto, que dominara a angustiada Clitemnestra, transformou-lhe a filha numa verdadeira escrava do palácio. Na tragédia Electra, de Eurípides, a princesa de Argos é obrigada a casar-se com um humilde camponês. Além da repressão, a humilhação. Já que se está falando da intrépida irmã de Orestes, talvez não fosse de todo fora de propósito transcrever a interpretação de J. Chevalier e A. Gheerbrant a respeito do que Jung denominou Complexo de Electra: “O complexo de Electra, tal como o conceitua a psicanálise, corresponde ao complexo de Édipo, porém com matizes femininos. Não é Electra quem mata a própria mãe: ela induz o irmão Orestes ao matricídio, guiando-lhe a mão armada com o punhal. Depois de uma fase em que se fixa afetivamente sobre a mãe, na primeira infância, a menina apaixona-se pelo pai e tem ciumes da própria mãe. Em seguida, se o pai não lhe corresponde aos anseios, ou ela tende a virilizar-se para seduzir a mãe, ou então, repelindo o casamento, inclina-se para o homossexualismo. Como quer que seja, Electra simboliza uma paixão dirigida aos pais, até igualá-los pela morte. Neste como que equilíbrio fúnebre, implorando aos deuses ‘justiça contra a injustiça’, Electra recompõe o símbolo do mito e restaura a Harmonia requerida pelo Destino”6. De qualquer forma, com Clitemnestra se fecha simbolicamente o destino da mulher grega. Seu grande mérito, a partir de então, como gostosamente diz o meticuloso Iscômaco a Sócrates (Xenofonte, Econômico, 7,28,35) seria nada ver, nada ouvir a seu redor, nada comentar e muito menos perguntar... Alienada e submissa, sua função precípua era dar ao marido, o mais depressa possível, um herdeiro, óbvia e gramaticalmente do sexo masculino... 3 Como se está fechando este terceiro volume com uma heroína, a mulher Clitemnestra, creio não ser de todo improcedente fazer uma referência ao trabalho sério e profundo de Jean Shinoda Bolen7. Para esta arguta psiquiatra norte-americana cada uma das deusas é projeção dos arquétipos do sexo feminino, estampando, por isso mesmo, cada mulher uma ou mais características que aparecem em uma deusa ou em mais de uma. Para individualizar bem esses arquétipos, Shinoda divide as seis deusas olímpicas8em três grupos básicos, havendo, no entanto, indiscutíveis inter-relações entre eles. O primeiro conjunto é formado pelas três grandes deusas virgens, isto é, por Atená, Ártemis e Héstia. São as denominadas “deusas invulneráveis”, porque jamais se deixaram dominar e reprimir por seus pares masculinos olímpicos ou por quaisquer mortais. O segundo núcleo é constituído por Hera e Deméter-Core ou DeméterPerséfone9: são as “deusas vulneráveis”, por terem sido humilhadas, violentadas e raptadas por seus ilustres esposos e amantes. Afrodite fecha os “arquétipos”. Trata-se, na feliz caracterização da psiquiatra supracitada, de uma deusa “alquímica”, por estar sujeita a múltiplas transmutações. Vamos repassar brevemente cada uma das seis imortais e tentar com o auxílio indispensável da obra da Dra. Shinoda Bolen levantarlhes os arquétipos e trazê-los de volta às suas legítimas detentoras, as mulheres. Em seguida procuraremos “encaixar” nos mesmos as duas heroínas, as duas mulheres, de que vimos tratando neste capítulo: Clitemnestra e a indomável Electra. Comecemos pelas “vulneráveis”. Hera, a sétima esposa de Zeus, a “esposa canônica”, após trezentos anos de lua-de-mel, foi patriarcalmente vítima dos amores extraconjugais do marido. Uma pletora de amantes mortais e imortais preencheu a ociosidade dos dias intermináveis do senhor do Olimpo. De Deméter a Leto (entre outras) às ninfas e destas a simples “mortais” (ao menos no mito popular), como Dânae, Europa, Alcmena, Leda, Sêmele... nenhuma deusa, ninfa ou mortal, que Zeus desejou, pôde escapar-lhe ao furor eroticus. Tantas infidelidades fizeram de Hera, a guardiã dos amores legítimos, uma divindade de fisionomia séria, dura e de temperamento irritadiço e explosivo. Quanto mais humilhada e reprimida por seu real consorte, tanto mais ciumenta e vingativa se tornava, movendo tenaz perseguição contra as amantes e filhos adulterinos do pai dos deuses e dos homens. Companheira fiel e leal, não poderia admitir que seu marido lhe desonrasse o epíteto de protetora inconteste do casamento e, portanto, dos amores legítimos. A mulher que possui o arquétipo de Hera sente-se “incompleta”, desamparada e carente sem um companheiro. Casando-se, faz do marido, a quem é fiel em grau superlativo, o centro de todas as suas atenções. O trabalho dentro ou fora do lar não lhe diz muito: o tempo há que ser dedicado a seu rei, que se constitui para ela em prioridade absoluta. Excelente esposa, é excelente mãe, uma vez que os filhos lhe completam o universo doméstico. Como faz do casamento o dia mais feliz de sua vida e do marido o centro de sua existência, não pode admitir que qualquer contratempo lhe venha perturbar a doce paz do lar. A uma traição do cônjuge ela responde, as mais das vezes, não com outra, mas com uma profunda amargura. Torna-se, de imediato, mal-humorada, irritadiça e nervosa. A sequência de infidelidades ou a separação arrastam-na para a mais profunda depressão, que pode até mesmo provocar a tragicamente denominada Síndrome de Medeia, cuja vingança sangrenta contra os filhos por causa da perfídia de seu esposo Jasão se mostrou no capítulo V deste volume. A vulnerável Hera-mulher traduz, pois, a fidelidade consumada, mas que não desculpa arranhões em seu hieròs gámos, quer dizer, na sacralidade de seu matrimônio. Deméter e Core ou Perséfone complementam e completam o rol das vulneráveis. Após várias experiências matrimoniais, Zeus forçou Deméter a unir-se a ele. Dessa paixão unilateral nasceu Core ou Perséfone. Como se isto não bastasse, a deusa da terra cultivada, a deusa-mãe por excelência, foi cortejada por Posídon. Para fugir aos fogosos desejos do deus-cavalo, ela disfarçou-se em égua, mas o futuro deus do mar, tomando a forma de garanhão, fê-la mãe do cavalo Aríon e de uma filha (possivelmente um ser monstruoso), cujo nome só era conhecido pelos Iniciados nos Mistérios de Elêusis. O povo dava-lhe o simples epíteto de Δέσποτινα (Déspoina), a Senhora, conforme se narrou no Vol. I, p. 300. A grande dor e paixão de Deméter, todavia, foi o rapto de sua filha Core por Hades ou Plutão, rei do mundo das trevas, nas entranhas da terra, segundo se expôs no mesmo Vol. I, p. 305ss. Esse rapto provocará uma longa busca de Core por Deméter e, em seguida, uma total reclusão desta última até que a filha lhe fosse devolvida ao menos por oito meses a cada ano. Além da violência do rapto, Core sofreu uma outra no reino dos mortos: Plutão, para mantê-la no mundo das sombras, obrigou-a a comer uma semente de romã. Como já se falou exaustivamente no supracitado Vol. I, p. 284ss do mito das “duas deusas”, do rapto de Core e de seu simbolismo e consequências, vamos relembrar aqui apenas que Deméter é a terra rasgada pela charrua patriarcal. Em seu seio ferido será plantada a semente, mas Κόρη (Kóre), Core, o novo fruto, será raptada e levada para as trevas estéreis do Hades. Foi necessária uma atitude passiva, mas corajosa, a reclusão de Deméter, negando-se a gerar novos frutos, para que a “semente Perséfone”, escondida por certo tempo no seio da mãe-terra, dela emergisse para gerar novos e sadios rebentos. Como acentua com precisão Jean Shinoda Bolen, “estas três deusas (Hera, Deméter e Perséfone) em seus respectivos mitos foram raptadas, dominadas à força ou humilhadas por seus pares divinos. Cada uma sofreu as consequências dolorosas do rompimento ou da desonra de uma ligação amorosa. E cada uma reagiu a seu modo: Hera, com a violência, o ódio e o ciume; Deméter e Perséfone, com a depressão. Cada qual, porém, estampou sintomas que se podem caracterizar psicologicamente como doença. Mulheres em que se manifestam esses arquétipos são também vulneráveis”10. Deméter é indiscutivelmente o arquétipo materno. Traduz o instinto maternal realizado por inteiro na gravidez ou no esforço total para alimentar física, psicológica ou espiritualmente os seus semelhantes. Esse poderoso arquétipo pode delinear o caminho de uma mulher através da vida; pode se constituir num impacto significativo para os outros, mas pode de igual maneira predispô-la à depressão, quando sua necessidade de “nutrir” for impedida ou rejeitada. A mulher-Deméter se realiza de maneira concreta na maternidade, mas essa maternidade pode não ser biológica. Assim, esse tipo de mulher, quando não se casa ou não tem filhos, embala seus sonhos maternos profissionalmente como professora, assistente social, conselheira, terapeuta, pediatra, mas a ideia central é sempre a de estar “aleitando”. Quando Plutão raptou Core, Deméter se retraiu e a terra deixou logo de produzir seus frutos. De modo idêntico o aspecto destrutivo da terra-mãe consiste numa passiva retração, ao contrário de Hera e Ártemis, que ativamente comandam a vingança através do ódio e da perseguição implacável a seus opositores e inimigos. Deprimida, a mulher-Deméter “enclausura-se” e deixa sem “aleitamento” aqueles que a cercam ou que dela dependem. Core foi raptada, violentada e humilhada por Plutão. No Hades tornou-se Perséfone, quer dizer, uma deusa madura, como esposa de Hades e rainha dos mortos, mas sempre pronta para atender a quantos dela necessitassem. Diferente de Hera e Deméter, que traduzem padrões arquetípicos solidamente acoplados a uma ternura instintiva, Core-Perséfone, como uma personalidade-padrão, mostra-se muito submissa. Quando é Core-Perséfone que estrutura a personalidade, ela predispõe a mulher não para agir, mas para ser conduzida por outrem, vale dizer, para ser complacente na ação e passiva nas atitudes. Perséfone, enquanto Core, faz que a mulher tenha com frequência o comportamento de uma puella, de uma jovem, de uma menina. Na realidade, a filha de Deméter se polariza como Core, a jovem, e como Perséfone, a deusa madura, rainha do Hades. Esta dualidade está igualmente estampada em dois padrões arquetípicos: a Core-mulher, uma espécie de puella aeterna, e a Perséfone-mulher, mais adulta, mais amadurecida, sem deixar, porém, como filha de Deméter, de ser uma incansável prodigalizadora. Não raro, os dois aspectos se aglutinam numa só mulher. As três “invulneráveis”, como já se adiantou, são Atená, Héstia e Ártemis. ATENÁ, nascida das meninges de Zeus, “a filha do pai”, identifica-se como deusa da inteligência, da paz, das artes e dos artistas, sobretudo dos tecelões e artesãos. Era a única das olímpicas a aparecer armada: usava capacete, escudo e lança. Para manter a paz, configurada pela oliveira, árvore que lhe era consagrada, estava sempre pronta para ostensivamente defender a tranquilidade de sua querida cidade de Atenas e de todos os helenos. Estrategista, conservadora e apegada às soluções práticas, simboliza a mulher que se rege mais pela razão do que pelos arrebatamentos afetivos. Mais refletida que impulsiva, a mulher-Atená age mais como animus. Diferentemente de Ártemis e de Héstia, prefere a companhia dos homens, aos quais não raro serve de segura e discretíssima confidente. Atená protegia de preferência os grandes heróis, segundo nos é dado observar na Ilíada em relação a Aquiles; na Odisseia, onde se converte na bússola de Ulisses em seu longo e tumultuado retorno aos braços de Penélope e na Oréstia de Ésquilo, em que se postou ao lado de Orestes, para defendê-lo do assédio das Erínias. A mulher-Atená configura-se mais como amiga e íntima dos homens do que das mulheres. Tem uma forte atração pelo poder e pelo mando, o qual para ela é “o melhor afrodisíaco”, na expressão um pouco exagerada do ex-Secretário de Estado NorteAmericano Henry Kissinger, citado por Shinoda. Por isso mesmo, para esse tipo de mulher, o sexo, por vezes, é mais uma das funções físicas, quando não, um “ato calculado”. Desse modo, a mulherAtená, apesar de sua estreita ligação com os “heróis”, pode tornar-se com mais facilidade uma homossexual, característica que procura a todo custo mascarar com o sigilo. HÉSTIA é propriamente uma deusa anônima, por isso que ἑστία (hestía) designa aquilo que ela representa, a lareira. Como se mostrou no Vol. I, p. 291ss, Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou, por outra, é a personificação da lareira colocada como um verdadeiro mandala (antigamente a lareira era redonda) no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. Embora Afrodite, o amor que não se aquieta, tenha desencadeado os apetites de Apolo e Posídon, Héstia soube resistir-lhes e obteve de Zeus a prerrogativa de guardar a virgindade para sempre. Jamais foi estatuada ou pintada, por já estar retratada de corpo inteiro no lume vivo no centro da casa, do templo e da cidade. Héstia é uma espécie de presença tátil na chama que ilumina e aquece. Enquanto os outros deuses viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se solitária, silenciosa e extaticamente sedentária no vasto Olimpo. Nada, porém, é possível fazer sem ela. Era uma onipresença, do berço ao túmulo. Ao nascer, a criança era purificada sobre sua lareira; ao casar, as “tochas de Héstia” iluminavam o caminho dos nubentes, que, ao penetrar em seu novo lar, acendiam a lareira; ao morrer, o corpo era consumido catarticamente pelas chamas da mais pura das deusas. Em Roma, com o epíteto de Vesta, seu fogo sagrado, ciosamente guardado pelas Vestais, unia todos os cidadãos numa só e mesma família. A presença da deusa Héstia no lar e no templo era fundamental para a vida do dia a dia. Como presença arquetípica na personalidade da mulher, a deusa do fogo sagrado proporciona-lhe inteireza e totalidade, alicerçadas numa profunda experiência subjetiva. Solitária e tranquila, Héstia é o fogo que alimenta os “interiores”. Sua presença no arquétipo da mulher faz que esta execute suas tarefas domésticas mais como uma atividade significativa e prazerosa do que como uma incumbência árdua e desagradável. A boa ordem e arrumação de sua casa traduzem-lhe a profunda harmonia e equilíbrio interior. A mulher-Héstia foge às aglomerações, à política, aos aplausos, às disputas e querelas. Introvertida e amante da solidão, é autossuficiente, diferenciando-se singularmente, sob esse aspecto, de Core-Perséfone. Arredia e “monástica”, prefere sorrir “para dentro”. Como sabe cultivar o silêncio, tem grande facilidade para concentrar-se. Em geral é muito piedosa e pode consagrar a vida a ordens ou congregações religiosas, cuja norma básica sejam o silêncio, a reflexão e a meditação. O sexo para ela não é algo essencial. Quando existe, é necessário primeiro “iniciá-la”. Excelente dona-de-casa, ótima “companheira”, não considera as possíveis infidelidades do marido como um problema de crucial importância. ÁRTEMIS, filha de Zeus e Leto, é a irmã gêmea de Apolo. Do mito dos irmãos da ilha de Delos já se falou o suficiente no Vol. II, capítulo 2. Tendo nascido antes de Apolo e ajudado a mãe nos trabalhos de parto, ficou tão horrorizada com o que sofreu Leto, que pediu ao pai o privilégio de permanecer para sempre virgem. Deusa da caça e da lua, é representada com vestes curtas, pregueadas, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. Como Apolo, a quem muitas vezes está associada no mito e no culto, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e certeiras. Como deusa da lua, empunha tochas e, por vezes, tem a cabeça encimada pelo astro da noite e coroada de estrelas. Acompanhada pelas ninfas e pelas virgens hiperbóreas, percorre selvas e montanhas. De seu séquito fazem parte igualmente vários animais selvagens, que lhe simbolizam as qualidades: veados, corças, lebres, leoas, javalis... O urso traduz bem seu papel de protetora das moças. As jovens púberes consagradas à “deusa selvagem” eram chamadas ἄρκτοι (árktoi), ou seja, ursas, durante a adolescência. Ártemis, como deusa da caça e da lua, era a personificação da total independência do espírito feminino. O arquétipo por ela representado capacita a mulher a buscar seus objetivos em terreno de sua livre escolha, conferindo-lhe uma habilidade inata para, através da competição, afastar de seu caminho a quantos lhe desejam embargar os passos. A deusa caçadora é o protótipo da divindade que desconhece obstáculos. Embrenha-se nas florestas e vai em busca de sua presa. Vigorosa e destemida, a irmã de Apolo traduz qualidades idealizadas por mulheres ativas que não levam em conta as opiniões masculinas. A mulher-Ártemis, com frequência, se deixa atrair por homem que possua atributos estéticos, criativos e saudáveis ou pendores musicais, como seu irmão Apolo. Não se deixa, todavia, seduzir pelo patriarcal Me Tarzan, you Jane, como agudamente faz notar Shinoda. Prefere viver com um homem a casar-se com ele. Para ela o casamento espelha com precisão seu conteúdo semântico em latim, iugum, jugo, dependência, prisão... Para ela o sexo muitas vezes é mais um esporte recreativo e uma experiência física do que uma intimidade emotiva. Normalmente se frustra no casamento e separase, mas prossegue buscando seu Apolo, até que encontre alguém que lhe respeite o espírito independente, inquixeto, competitivo e compartilhe de seu temperamento contestador. O lar não lhe causa muita preocupação. Vive mais lá fora, lutando em quaisquer selvas por suas ideias e ideais. Excelente mãe, mas não exageradamente carinhosa, educa os filhos dentro de um enfoque de liberdade e independência, ensinando-lhes desde cedo como defender-se das múltiplas feras que encontrarão pelos camixnhos e descaminhos da vida. Sua independência, ditada por seu espírito feminista, predispõe-na a ser agixtada e participante de movimentos que visem a qualquer libertação. O homem, que não conseguiu desenvolver em si mesmo essas característixcas da mulher-Ártemis, fica fascinado com tanta energia, inteireza e força de vontade. “Coloca-a, por isso mesmo, num pedestal, em função de qualidades que ele não tem e julga incomuns no sexo feminino”11. A deusa do amor total encerra estes arquétipos. Para Homero AFRODITE é filha de Zeus e da ninfa Dione. Consoante Hexsíodo, porém, como se enfocou no Vol. I, p. 226ss, a deusa nasceu de uma espumarada, resultante do esperma de Úrano, mutilado por Crono. Essa origem duxpla da mãe de Eros não é estranha à diferenciação que se estabeleceu entre Afroxdite Urânia e Pandêmia, significando esta última etimologicamente a “venerada por todo o povo” e, em seguida, com discriminação filosófica e moral, “a popuxlar, a vulgar”. Platão, no Banquete, 180s, estabelece uma rígida dicotomia entre a Pandêmia, a vulgar, a inspiradora de amores comuns, carnais, e a Urânia, a celesxte, a inspiradora de um amor etéreo, superior. Esse “amor urânico”, desliganxdo-se da beleza do corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é partícipe do eterno. Para uma visão da grande divindade do amor como arquétipo, no entanto, essas distinções não têm, aqui no momento, maior importância. Afrodite é a deusa da beleza e do amor. Embora tenha características em coxmum, como não poderia deixar de ser, tanto com as deusas vulneráveis (Hera, Deméter-Core ou Deméter- Perséfone) quanto com as virgens, as invulneráveis (Atená, Héstia, Ártemis), a deusa do amor não pode ser classificada em nenhum dos dois grupos. A mãe de Eros assemelha-se às vulneráveis, porque também ela foi mãe, rasgada, por conseguinte, pela charrua patriarcal, e confraterniza com as invulneráveis, porque jamais se deixou dominar nem tampouco humilhar por seu marido ou amantes divinos e humanos. Afrodite, como observa Shinoda, é uma deusa alquímica, sujeita, por isso mesmo, a múltiplas transmutações. Com efeito, para chegar ao ouro, símbolo também do amor, é necessário que a matéria inferior se despoje das gangas impuras até atingir uma pureza total. Na realidaxde, o ouro é o “aperfeiçoamento de metais inferiores”. Pois bem, χρυσή (khrysé), áurea, de ouro, é um epíteto comum da deusa do amor, segundo se pode ver na Ilíada, III, 64 e em várias outras passagens dos poxemas homéricos. O arquétipo de Afrodite rege o fascínio da mulher pelo amor, a beleza, a senxsualidade, a sexualidade. Assim, sob o império de Eros, a mulher pode tornar-se criativa e fecunda. A mulher-Afrodite é ágil, alegre, expedita. Desse modo, tudo quanto não a envolve emocionalmente não lhe interessa. Ama o movimento e a versatilidade. Sua vocação está voltada para a arte: música, dança, literatura, teatro... Casa-se, via de regra, movida pela paixão e sexualidade, mas raramente suas uniões são estáveis. Vive buscando o homem ideal, o ouro afinal... Quando o enxcontra, segura-o e guarda-o só para si! Se ele “falha”, arma-se com o arquétipo de Hera e parte com destemor, segundo se mostrou no Vol. I, p. 229, para a vinxgança e a destruição de suas rivais. Apesar de ser considerada pelos filhos como “mãe carismática”, sente difixculdade em lhes dar a atenção merecida, pois a vida de uma mulher-Afrodite é uma espécie de moto-contínuo. Para ela Eros é práxis... Em síntese: se em Hera a ênfase deve recair na esposa; em Deméter, na mãe; em Core-Perséfone, numa extrema submissão e dependência; em Atená, no homem da casa; em Héstia, na pacífica e silenciosa guardiã do lar; em Ártemis, na rebeldia e participação, Afrodite pode ser etiquetada como o amor-em-ação. O que se procurou mostrar, de maneira sucinta, com base em Goddesses in Everywoman, é que as características fundamentais de cada mulher estão em coxnexão estreita com a deusa ou as deusas a que ela se assemelha. A Dra. Jean Shinoda Bolen, após estudar e analisar exaustivamente as seis grandes deusas olímpicas, encaixou-as em vários arquétipos, pois que a mulher não reflete apenas uma deusa e nem tampouco uma deusa reproduz apenas um arquétipo... A maior das feministas da Antiguidade clássica, Safo de Lesbos (séc. VII a.C.), já confessava: εὔκαμπτον γὰρ ἄει τὸ θῆλυ (eúkampton gàr áei to thêly) – Como é versátil a alma da mulher! (1,27,13). Públio Vergílio Marão (séc. I a.C.), sensível e bom conhecedor da psicologia feminina, como demonstrou sobretudo no canto quarto de sua Eneida (em que Dido se mata por amor a Eneias) é mais explícito: ... Varium et mutabile semper femina. (En., 4,569-570) – A mulher é sempre vária e instável... Assim sendo, vamos estampar com um ou outro retoque e dividindo-o em dois o “quadro arquetípico” elaborado pela Dra. Shinoda e, em seguida, tentarexmos “enquadrar” no mesmo Clitemnestra e Electra. Que cada uma depois busque por conta própria o seu espaço na tabela orgaxnizada pela psiquiatra norte-americana. Se alguém, no entanto, após se encaixar em um, dois ou mais arquétipos, quiser mudar e passar para arquétipos até mesxmo contrários, poderá fazêlo sem o menor risco e constrangimento... As deusas são muito compreensivas e, além do mais, elas próprias, como mulheres, já muxdaram tantas vezes de posição! Nesse verdadeiro emaranhado de padrões e características, que individualixzam deusas e mulheres, onde colocar Clitemnestra e Electra? Clitemnestra amava seu primeiro esposo Tântalo II, assassinado de maneira covarde por Agamêmnon. Coagida pela força, casou-se com o rei de Micenas e deu-lhe quatro filhos: Ifigênia, Crisótemis, Electra e Orestes. Foi-lhe fiel, até que atraída mentirosamente por Agamêmnon a Áulis, em vez de assistir às núpcias de Ifigênia, chorou-lhe amargamente a morte, pois “a noiva” foi sacrificada a Ártemis. Uniu-se então, e de certo por vingança, a Egisto, que acabou sendo por ela amado, segundo confissão da própria rainha de Micenas, ao chamar o amanxte, morto por Orestes, de meu queridíssimo e corajoso Egisto, conforme se mosxtrou neste mesmo capítulo. Face a todas estas humilhações, violências e represxsões, a esposa de Agamêmnon é uma vulnerável e partícipe inconteste dos arquéxtipos de Hera, com sinais bastante claros da Síndrome de Medeia. Alguns lampexjos dos arquétipos de Afrodite podem ser ainda observados na personalidade de Clitemnestra. Electra é a “virgem indomável”, que se rebelou contra a mãe por se ter unido a Egisto. Inconformada, passou a “caçá-los” dentro do próprio palácio com as flechas envenenadas de sua crítica ferina. Seu ódio e repugnância pelos novos reis chegaram ao clímax, quando, ajudada por Egisto, Clitemnestra assassinou traiçoeiramente Agamêmnon. O retorno de seu irmão Orestes incendiou-lhe ainda mais o desejo de vingança. Foi ela quem guiou com argumentos decisivos a espada com que o caçula dos atridas decapitou a rainha e o intruso Egisto. Electra traduz em larga escala os arquétipos de Ártemis: feroz, destemida e conxtestadora, luta sem desfalecimentos até a vitória final, mesmo que deixe pedaços de si mesma nos espinheiros e sarçais... Após uma longa odisseia que se iniciou no neolítico e terminou no Complexo de Electra, chegamos realmente à conclusão de que o mito é inesgotável. Fechando este terceiro e último volume de Mitologia grega, evocamos como testemunho dessa perenidade da Hélade e de seu mito a profunda reflexão de Murilo Mendes, poeta e prosador culto e versátil: “Mas, talvez acima de tudo, a Grécia possui uma força inesgotável: sua mitologia, que constitui ao mesmo tempo sistema cosmogônico, transposição figurada de fatos reais, reservatório sempre renovado de arquétipos e símbolos. Haverá nesta terra muitas coisas maiores que a mitologia grega, na sua capacidade de contaminar poetas e pensaxdores? Dai-me uma fábula grega, um ‘mitologema’, e eu recriarei o mundo”.12 1. As principais referências a Clitemnestra na literatura greco-latina encontram-se na Il., I, 113; IX, 142ss; Od., I, 32ss; III, 193ss; 303-305; IV, 529-537; XI, 404-434; Ésquilo, Oréstia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, passim; Sófocles, Electra, passim; Eurípides, Electra, Helena, Orestes, Ifigênia em Áulis, passim; Apolodoro, Biblioteca, 3,10,6ss; Pausânias, Descrição da Grécia, 2,16,7; 18,2; 22,3s; 31,4; 3,19,6; 8,34,1ss; Higino, Fábula, 77; Quintiliano, De Institutione Oratoria (Formação do Orador), 8,53. 2. Carnoy, A. Op. cit., verbete Klytaimnéstra. 3. Para se ter uma ideia completa do génos maldito dos atridas, veja-se o quadro genealógico esxtampado no Vol. I, p. 83. 4. BRANDÃO, J. de Souza.Teatro grego: Tragédia e comédia.3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 22ss. 5. Clódia, possivelmente irmã do caudilho P. Clódio, inimigo de Cícero, celebrizou-se em Roma não apenas por seu fausto e devassidão, mas ainda pelo grande número de amantes e maridos, a muitos dos quais matou, segundo consta, para herdar-lhes a fortuna. Foi a grande paixão do poeta Caio Valério Catulo (séc. I a.C.), que a imortalizou sob o pseudônimo (sem nenhuma conotação pejorativa) de Lésbia. Ao que parece, à época dos atormentados amores de Catulo por Clódia, esta ainda estava casada com M. Célio Rufo, a quem aliás tentou envenenar, conforme o discurso de Marco Túlio Cícero em defesa de Célio (Pro Caelio, 13, 15, 16, 20, 22, 23, 26, 29 e 32). 6. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. p. 394. 7. Goddesses in Everywoman. New York: Harper & Row, 1984. 8. É conveniente recordar que os grandes deuses olímpicos eram a princípio doze: seis deuses (Zeus, Hades, Posídon, Apolo, Ares, Hefesto) e seis deusas (Atená, Ártemis, Héstia, Hera, Deméxter-Core ou Deméter-Perséfone e Afrodite), o que patenteia um certo equilíbrio entre “patriarcaxdo e matriarcado”, expressão aliás que usamos apenas lato sensu. Mais tarde, todavia, o Olimpo foi “masculinamente” inflacionado: Hermes, Dioniso e até Héracles sentaram-se entre os imortais, desequilibrando a balança... 9. A junção Deméter-Core, ou Deméter-Perséfone, é uma consequência da conjunção mãefilha. Κόρη (Kóre), a jovem, é a semente (Perséfone), que, plantada no seio da terra (Deméter), dá vida a novos frutos num ciclo contínuo. 10. Op. cit., p. 132. 11. Ibid., p. 63. 12. MENDES, Murilo. Transístor – Antologia de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 231. Complementação bibliográfica dos volumes I e II Além da bibliografia estampada nos Volumes I e II, estamos acrescentando algumas obras por nós consultadas na redação de Mitologia grega e que, por um motivo ou outro, deixaram de figurar nos dois primeiros volumes. ADKINS, A.W.H. Merit and Responsibility. A Study in Greek Values. Oxford: Oxford University Press, 1960. ALLINSON, G. Francis. Menander. The Principal Fragments. Cambridge: Harvard University Press, 1951. AMANDRY, P. La mantique apollinienne à Delphes. Paris: E. de Boccard, 1950. BARDON, Henry. La littérature latine inconnue. Tomes I e II. Paris: Klincksieck, 1956. BAILEY, Alice. Les travaux d’Hercule. Genève: Edit. Lucis, 1982. BESSMERTNY, A. L’Atlantide. Exposé des hypothèses relatives à l’énigme de l’Atlantide. Paris: Payot, 1952. BOLEN, Jean Shinoda.GoddessesinEverywoman.New York: Harper and Row, 1984. BOUZON, Emanuel. As Leis de Eshnunna. Petrópolis: Vozes, 1981. BRANDÃO, Jacyntho Lins et al. O enigma em Édipo Rei. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1985. CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Cidade-Estado antiga. São Paulo: Ática, 1985. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1972. CASTELLI, E. La critica della demitizzazione. Padova: Cedam, 1972. CAUSSIN, J.J.A. L’expédition des Argonautes. Paris: Moutardier Libraire, 1976. COENEN, Lothar. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. 4 vols. São Paulo: Vida Nova, 1984. DEL CORRAL, L. Diez del. La función del mito clásico en la literatura contemporánea. Madrid: Gredos, 1952. CRAWFORD, M. & WHITEHEAD, D. Archaic and Classical Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. DANZEL, Th. W. Magie et science secrète. Paris: Payot, 1949. DAVIES, J.K. Democracy and Classical Greece. Glasgow: Collins, 1984. DELATTE, A. Le Cycéon. Paris: Les Belles Lettres, 1955. DELEBECQUE, E. Le cheval dans l’Iliade. Paris: Klincksieck, 1964. DEVEREUX, George. Reality and Dream. New York: A. Books, 1969. DIRAT, M. 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Réplica grega de uma estátua de bronze de Lisipo do século IV a.C. Mármore do século II a.C. Museu Nacional de Nápoles. Héracles vence e mata o Leão de Nemeia. Bandeja de prata. Biblioteca Nacional de Paris. Héracles apodera-se da Corça de pés de bronze. Vaso grego. Museu do Louvre Nacional de Paris. Héracles domina o Touro de Creta. Vaso grego. Museu do Louvre. Héracles luta com o Cão Cérbero. Ânfora de Andócides. Museu do Louvre. Héracles traz Cérbero do Hades e apresenta-o a Euristeu, que se esconde num vaso de bronze. Vaso de Cere (Cidade da Etrúria). Museu do Louvre. Héracles segura o Globo Terrestre, enquanto Atlas lhe traz os Pomos de ouro. Atená posta-se atrás do herói. Mármore de 470-460 a.C. Museu de Olímpia. Héracles luta com o Rio Aqueloo pela mão de Dejanira. Vaso grego. Héracles transportando os Cercopes para a corte de Ônfale. Héracles e o Centauro Nesso. Pintura mural de Pompeia. O Centro da Terra, marcado pelo Omphalós (Umbigo). Delfos. Umbigo 1 Umbigo 2 Umbigo 3 Umbigo 4 Umbigo 5 Umbigo 6 Umbigo 7 Umbigo 8 Umbigo 9 Umbigo 10 Umbigo 11 Umbigo 12 Umbigo 13 Teseu mata o Minotauro. Teseu é reconhecido por seu pai Egeu. Baixo-relevo de Vila Albani, Roma Ariadne abandonada por Teseu na ilha de Naxos. Pintura mural de Herculano. Museu Britânico. A construção da Nau Argo. Baixo-relevo antigo de Vila Albani, Roma. Medeia, rejuvenescendo um carneiro, mostra a Pélias como ele próprio poderia readquirir a juventude. Século VI a.C. Museu Britânico. Belerofonte, cavalgando Pégaso, mata a monstruosa Quimera. Meados do século V a.C. Museu Britânico. A Esfinge. Estátua arcaica, encontrada em Esparta. Museu Nacional de Atenas. Édipo e a Esfinge. Brasão etrusco. Cabeça de Ulisses. Mármore da época helenística, fins do século II ou inícios do século I a.C. Museu Arqueológico Nacional de Sperlonga. Ulisses obriga a mágica Circe a restituir a forma humana a seus companheiros. Urna funerária do século IV a.C. Museu de Orvieto. Ulisses vasa o olho do Ciclope Polifemo. Museu de Elêusis. Ulisses vasa o olho do Ciclope Polifemo. Museu de Elêusis. Euricleia lava os pés de Ulisses. Arte etrusca. Cassandra é assassinada por Clitemnestra. Arte grega. Junito de Souza Brandão , falecido em 15/05/96, aos 71 anos, foi professor titular de Língua e Literatura Grega e de Língua e Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa Úrsula e na Universidade Gama Filho. Era Licenciado em Letras Clássicas, tinha Doutorado e livre-docência em Literatura Grega. Ministrava, além de suas aulas normais nas universidades supracitadas, cursos regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica da mesma cidade.