Mapa do Mundo Helênico
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Brandão, Junito de Souza, 1926-1995.
Mitologia grega, vol. I / Junito de Souza Brandão. 26. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.
Bibliografia.
8ª reimpressão, 2021.
Mitologia grega - História I. Título.
CDD-292.0809
06-9289
Índices para catálogo sistemático:
1. Mitologia grega : História 292.0809
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda.
SUMÁRIO
Nota à sétima edição
Prefácio
Introdução
As famílias divinas
I. Mitologia grega: preliminares
II. Mito, rito e religião
III. A Grécia antes da Grécia e a chegada dos Indo-Europeus
IV. Dos Jônios à Ilha de Creta
V. Os Aqueus e a Civilização Micênica: a maldição dos Atridas
VI. Troia histórica, Troia mítica e as invasões dos dórios
VII. Homero e seus poemas: deuses, mitos e escatologia
VIII. Hesíodo, trabalho e justiça: Teogonia, Trabalhos e Dias
IX. A primeira fase do Universo: do Caos a Pontos
X. A Primeira Geração Divina: de Úrano a Crono
XI. Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (De Nix
ao Leão de Nemeia)
XII. Ainda a Primeira Geração Divina: filhos e descendentes (Do Rio
Nilo a Hécate)
XIII. A Segunda Geração Divina: Crono e sua descendência
XIV. A Terceira Geração Divina: Zeus e suas lutas pelo poder
Apêndice: Deuses gregos e latinos
Bibliografia
NOTA À SÉTIMA EDIÇÃO
A sétima edição do Volume I de Mitologia grega apresenta-se
bastante alterada. Raramente uma página deixou de sofrer alguma
emenda. Procuramos, de um lado, corrigir, tanto quanto possível, os
erros tipográficos (e os nossos) e, de outro, aprimorar a redação de
alguns tópicos importantes, enriquecendo-os com o que há de mais
atual em mito e religião, de 1986 até o momento.
A novidade maior, todavia, encontra-se na parte etimológica. É
que, na redação dos dois volumes do Dicionário mítico-etimológico
da mitologia grega (Petrópolis, Vozes, 1991), tivemos a oportunidade
de compulsar dicionários bem mais especializados em etimologia
greco-latina, o que permitiu melhorar e até mesmo retocar alguns
étimos.
Agradecendo a grande aceitação dos três volumes de Mitologia
grega, esperamos, agora, que os estudiosos os complementem com os
dois indispensáveis volumes do Dicionário mítico-etimológico.
Rio de Janeiro, 10 de julho de 1991.
Junito Brandão
PREFÁCIO
Através do conceito de arquétipo, C.G. Jung abriu para a Psicologia
a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos
simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido,
todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas
instituições são marcos do grande caminho da humanidade das
trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos
são as crenças, os costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento
científico, os esportes, as festas, todas as atividades, enfim, que
formam a identidade cultural. Dentre estes símbolos, os mitos têm
lugar de destaque devido à profundidade e abrangência com que
funcionam no grande e difícil processo de formação da Consciência
Coletiva.
Os pais ensinam aos filhos como é a vida, relatando-lhes as
experiências pelas quais passaram. Os mitos fazem a mesma coisa
num sentido muito mais amplo, pois delineiam padrões para a
caminhada existencial através da dimensão imaginária. Com o
recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência
o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos
hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através
da tragédia os grandes perigos do processo existencial.
Todavia, os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma
os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte
que os realimenta. Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de
comportamento
humano,
para
vivermos
criativamente,
permanecem através da história como marcos referenciais através
dos quais a Consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar.
A obra de Jung demonstrou fartamente que o Inconsciente não é
somente a origem da Consciência, mas, também, a sua fonte
permanente de reabastecimento. Da mesma forma que a noite
permite às plantas prepararem-se para cada novo dia e o sono
descansa e reabastece o corpo, assim, também, o Inconsciente renova
a Consciência. Das trevas fez-se a luz, que, através delas, se mantém.
De noite, por meio dos sonhos; de dia, através da fantasia, os
arquétipos produzem e revigoram os símbolos. A interação do
Consciente com o Inconsciente Coletivo, através dos símbolos,
forma, então, um relacionamento dinâmico, extraordinariamente
criativo, cujo todo podemos denominar de Self Cultural. Os mitossão,
por isso, os depositários de símbolos tradicionais no funcionamento
do Self Cultural, cujo principal produto é a formação e a manutenção
da identidade de um povo.
A grande utilidade dos mitos, por conseguinte, está não só no
ensinamento dos caminhos que percorrem a Consciência Coletiva de
uma determinada cultura durante sua formação, mas também na
delineação do mapa do tesouro cultural através do qual a
Consciência Coletiva pode, a qualquer momento, voltar para
realimentar-se e continuar se expandindo. Mas, poderíamos
perguntar, qual a utilidade do conhecimento dos mitos de uma
cultura, tão diferente quanto a greco-romana, para a Consciência
Coletiva Brasileira?
Nosso país atravessa atualmente uma fase histórica da maior
importância para a busca de uma identidade a partir da sua
sociedade multicultural. Valorizando nossa ecologia, tentando
proteger o que resta das culturas indígenas, estudando as culturas
negras representantes da negritude em nosso meio, traduzindo os
rituais da cultura japonesa já pujantemente existente entre nós e
voltando-nos às nossas raízes ibéricas para acompanhar o
renascimento de Portugal e Espanha do interior do seu enigma
histórico, nós brasileiros caminhamos para descobrir quem somos.
Nesta tarefa, o conhecimento da cultura greco-romana muito pode
nos ajudar, tanto pela imitação quanto pela diferenciação. A imitação
nos permite buscar nossos símbolos e empregá-los como pontes
entre nossa Consciência e nossas raízes, da mesma forma que os
gregos o faziam. A diferenciação nos estimula a buscar nossa
maneira especial e única de viver com os nossos próprios símbolos.
Existe ainda algo extraordinário no estudo da Mitologia Grega,
para o que gostaria de motivar a atenção do leitor. Trata-se de
compreender a razão pela qual a Cultura Ocidental se voltou tão
intensamente para a Grécia durante o Renascimento, o que muitos
têm compreendido como um retrocesso ao paganismo e um
consequente desvirtuamento do cristianismo. No entretanto, lado a
lado com a intolerância da Inquisição e sua obra repressiva das
variáveis míticas (heresias), percebemos, no Renascimento, a
Consciência da fé cristã, não só com os símbolos da religião grecoromana e egípcia, como com toda a sorte de crenças, superstições e
magia. Foi nesta convivência entre religião, alquimia, astrologia e
superstição que nasceu o humanismo europeu, útero e berço da
ciência moderna. Não vejo nisso um retrocesso do cristianismo, e sim
um avanço. A árvore mítica judaico-cristã foi buscar em outras
culturas o material imaginário necessário para implantar a transição
patriarcal do Self Cultural e encontrou, na Mitologia Grega, uma
fonte inesgotável de símbolos de convivência com as forças da
natureza. O Ocidente reencontrou na Grécia não só uma cornucópia
de mitos matriarcais, como também inúmeros padrões mitológicos
de convivência destes símbolos matriarcais com os patriarcais. Estes
ingredientes foram indispensáveis para os gênios do Renascimento
constituírem a ciência moderna, a partir da busca da espiritualidade
judaico-cristã, aplicada às forças da natureza. Este mesmo fator pode
nos ajudar criativamente na interação entre, por um lado, nossas
raízes judaico-cristãs e a cultura japonesa de dominância patriarcal e,
por outro lado, as culturas indígenas e negras de dominância
matriarcal na busca da construção da identidade brasileira, a partir
de nossa sociedade multicultural.
Para encerrar, uma palavra diretamente sobre este livro e seu
autor. Esta obra nos traz o tesouro simbólico da cultura grega através
de alguém que se dedicou ao seu estudo e ao seu ensino por mais de
trinta anos. Quem já teve o privilégio de frequentar os cursos deste
mestre, teve certamente a oportunidade de perceber que a delicadeza
e o carinho com que transmite seus ensinamentos se respaldam na
força do estudo, da pesquisa e da erudição. Junito de Souza Brandão,
em sua vida dedicada ao ensino de culturas antigas, principalmente
da greco-romana, tem expressado entre nós a essência do arquétipo
do professor que tempera aquilo que transmite aos seus alunos com o
amor que ele próprio sente pelo conhecimento transmitido. Ao
proceder assim, o mestre se transforma em sacerdote, pois os fatos
que ensina viram símbolos da atividade imemorial da humanidade
em direção à totalidade através da cultura. É o produto desta
dedicação de uma vida que temos à nossa frente. Desejo ao leitor bom
proveito.
Dr. Carlos Byington
Psiquiatra e Analista Junguiano
INTRODUÇÃO
Quando da gestão do Dr. Roberto Piragibe da Fonseca, em 1960,
como diretor da então Faculdade de Filosofia da PUC-RJ,
conseguimos, após muita insistência, introduzir no Currículo de
Letras a Cadeira de Mitologia grega e latina, que continua, até hoje,
em plena vitalidade, e até mesmo com número excessivo de alunos...
Ignoro se existe outra universidade, no Brasil,que mantenha regular e
curricularmente o Mito como disciplina, ao menos eletiva. Se não
existe, é de todo lamentável, porquanto não se pode, a meu ver,
estudar com profundidade a Literatura Greco-Latina e seu κόσμος
(kósmos), seu “universo” multifacetado, sem um sério embasamento
mítico, pois que o mito, nesse caso, se apresenta como um sistema,
que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o
homem. Opondo-se ao λόγος (lógos), “como a fantasia à razão, como
a palavra que narra à que demonstra”, λόγος (lógos) e μῦθος
(mythos) são as duas metades da linguagem, duas funções
igualmente fundamentais da vida e do espírito. O “lógos”, sendo um
raciocínio, procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade
de julgar. O “lógos” é verdadeiro, se é correto e conforme à lógica; é
falso, se dissimula alguma burla secreta (um “sóphisma”)1. O mito,
porém, não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele ou
não, à vontade, por um ato de fé, se o mesmo parece “belo” ou
verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-lhe crédito. Assim
é que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no
pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à
arte, em todas as suas criações. E talvez seja este o caráter mais
evidente do mito grego. Verificamos que ele está presente em todas
as atividades do espírito. Não existe domínio algum do helenismo,
tanto a plástica como a literatura, que não tenha recorrido
constantemente a ele. “Para um grego, um mito não conhece limites.
Insinua-se por toda parte [...]. Reserva de pensamento, o mito acabou
por viver uma vida própria, a meio caminho entre a razão e a fé. [...]
Até os filósofos, quando o raciocínio atingiu o seu limite, recorreram
a ele como a um modo de conhecimento capaz de comunicar o
incognoscível”2.
De outro lado, sendo uma fala3, um sistema de comunicação, uma
mensagem, o mito é uma como que metalinguagem, já que é uma
segunda língua na qual se fala da primeira. Não sendo um objeto, um
conceito, uma ideia, o mito é um modo de significação, uma forma,
um sýmbolon, acrescentaríamos. Donde não se pode defini-lo
simplesmente pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como
a profere. “Metalinguagem” não é apenas a “literatura”, no caso em
pauta a greco-latina, que não se pode explicar sem o mito, mas
igualmente inúmeros fatos da língua. Se não mais é possível falar do
“rapto de Helena” por Alexandre ou Páris, a não ser buscando fundo
no mitologema quem era a “antiga deusa da vegetação” Helena e o
significado de rapto, ainda mais que perpetrado por um príncipe
outrora “exposto”; se não mais se poderia analisar a “Esfinge
inquiridora” do Édipo Rei de Sófocles, a não ser partindo-se de sua
morfologia primitiva de Íncubo, de demônio opressor erótico, e de
alma penada; se não mais teria sentido expor os Doze Trabalhos de
Héracles, impostos ao “herói” pela protetora dos “amores legítimos”,
Hera, se não se visse neles, entre muitos outros conteúdos, um longo
rito iniciático, coroado pela apoteose, como semelhantemente
aconteceu com Psiqué – assim também muitos fatos da língua
ficariam reduzidos a meras palavras, se não se buscasse esclarecê-los
através do mito e da religião. Como explicar, por exemplo, em latim,
contemplari, “olhar atentamente para” e considerare, “examinar com
cuidado e respeito”, desvinculados do sentido profundamente
religioso de templum, “templo”, e sidus, “constelação”? Uma coisa é
templum, templo, local onde se aninham as estátuas dos deuses;
outra, bem mais rica e nobre, é templum, espaço quadrado
delimitado pelo áugure no céu e no chão, espaço em cujo interior o
sacerdote tomava e interpretava os presságios. Donde contemplari,
“contemplar”, é observar atentamente se os pássaros voam da
esquerda para a direita (bom presságio) ou da direita para a esquerda
(mau presságio) . Sidus,-eris é constelação, donde considerare,
“considerar”, é “examinar atenta e respeitosamente os astros e
sondar-lhes as disposições”. Cícero já emprega a expressão sidera
natalícia (De Diu., 2,43,91), “astros que presidem aos nascimentos” e
determinam as sequências da vida dos que nascem sob sua tutela.
Pois bem, foi dentro desses cânones, que não são novos, buscando
no mito o que ele tem de “permanente” em todas as culturas, que
procuramos elaborar três volumes sobre Mitologia grega. Não
desprezamos os significantes de nenhum mito, mas investigamos
com afinco e persistência o sentido de seu conteúdo. Partindo de um
suporte meramente expositivo, mas podando-lhe com cuidado o
romanesco, e escolhendo com mais cautela ainda a ou as variantes
mais antigas e “autênticas”, tentamos ir bastante além, esmiuçandolhe o simbolismo e, quanto possível, as significações psicológicas.
Após Freud, Jung, Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, Mircea
Eliade, e isto para citar apenas alguns dos grandes pioneiros e seus
seguidores, o mito enveredou por caminhos bem mais legítimos e
genuínos: deixou de ser uma simples história da carochinha ou uma
ficção, “coisa inacreditável, sem realidade”, para, como acentua
Byington no Prefácio, “através do conceito de arquétipo, abrir para a
Psicologia a possibilidade de perceber diferentes caminhos
simbólicos para a formação da Consciência Coletiva”.
Se, a princípio, o estudo do mito nos interessou como um auxiliar
poderoso e indispensável para uma melhor compreensão das línguas
grega e latina e sobretudo de suas respectivas literaturas, a partir de
1982, quando começamos a trabalhar em dupla, em São Paulo e no
Rio de Janeiro, com o psiquiatra e analista Carlos Byington, é que
percebemos com mais clareza o peso do mito, esse inesgotável
repositório de símbolos, que realizam “a interação do Consciente
com o Inconsciente Coletivo”. É exatamente esse “tipo de mito” que
procuramos transmitir não só a nossos alunos de Departamentos
vários da PUC-RJ, e em cursos anuais em nossa cidade, mas
particularmente
a
universitários,
professores,
psicólogos,
psicanalistas, psiquiatras e analistas de São Paulo e da Unicamp, com
muitos dos quais, e prazerosamente, vimos trabalhando, há quatro
anos.
Na elaboração de Mitologia grega, Volume I, após os sete primeiros
capítulos, em que focalizamos mito e obra de arte, definição de mito
e religião, estudo da religião pré-helênica, chegada à Hélade dos
gregos indo-europeus e visão panorâmica dos poemas e deuses
homéricos, tivemos que fazer uma séria e difícil opção. Por onde
começar? Poderia ser por qualquer mito, já que este, além de não se
enquadrar no tempo, é totalmente ilógico. Mas, como Hesíodo, poeta
do século VIII a.C., portanto, cronologicamente, o segundo depois de
Homero, nos legou, conforme se comenta no capítulo VIII, duas
obras preciosas com vistas à mitologia grega, Teogonia e Trabalhos e
Dias, resolvemos, por dois motivos, iniciar por ele. Primeiro, porque o
poeta de Ascra colocou certa ordenação, ao menos genealógica, no
confuso mito grego; segundo, porque, inteligentemente, fez coincidir
o Caos, “massa confusa e informe”, que dá início à cosmoteofania, isto
é, ao aparecimento do mundo e dos deuses, com o caos social da Idade
de Ferro, em que vivia seu século. Nesse caso, o homem percorreu o
caminho inverso ao dos deuses: da Idade de Ouro degradou-se até a
Idade de Ferro... Temos, por conseguinte, dois “caos”. Partindo do
primeiro, o poeta há de fazer com que do Caos, das “trevas”, se chegue
a Zeus, “à luz” e sonha com a extinção do segundo: quem sabe se o
homem, apoiado em Zeus, símbolo da díke, da justiça, não há de
emergir do caos social para a luz? Da Idade de Ferro não há de
retornar à Idade de Ouro?
Nossa Mitologia grega, portanto, abrange três grandes momentos
do mito helênico: o Volume I, após os sete primeiros capítulos de que
já se falou linhas atrás, irá do Caos até as lutas de Zeus pelo poder; o
Volume II, mais denso, partirá de Zeus,já como deus cosmocrata e
“pai dos deuses e dos homens”, e se fechará no mito de Eros e Psiqué; o
Volume III será consagrado ao Mito dos heróis.
Na feitura de Mitologia grega usamos algumas obras altamente
especializadas no assunto, todas, por sinal, indicadas na Bibliografia
Geral. Gostaríamos, todavia, de destacar o nosso manuseio constante,
para interpretação da parte simbólica, do Diccionario de símbolos, de
J.E. Cirlot, do Dictionnaire des symboles, de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, e de Le symbolisme dans la mythologie grecque, de Paul
Diel. No que se refere à interpretação psicológica, nossos guias
principais foram Sigmund Freud, C.G. Jung, Erich Neumann e
Gaston Bachelard.
Mitologia grega deve muito a muita gente. Não apenas às pessoas
que tanto me incentivaram e até reclamaram de meu natural festina
lente, como a estimada amiga Rose Marie Muraro, que prefaciará o
segundo volume; o jovem psicólogo José Raimundo de Jesus Gomes;
colegas e alunos do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas também
àqueles que gentilmente me ajudaram manu laboriosa, como as
professoras Miriam Sutter Medeiros, Lea Bentes Cardoso e o
universitário Fred Marcos Tallman, que se encarregaram da parte
datilográfica; Silvia Elizabeth von Blücher, Augusto Ângelo Zanatta,
Valderes Barboza e o já consagrado Professor Synval Beltrão Jr., aos
quais fico devendo o penoso trabalho de organização dos índices do
primeiro volume.
Esperamos, por fim, que os três volumes de Mitologia grega
cumpram as duas finalidades únicas que tivemos em mira ao redigilos: cooperar para que as humanidades clássicas voltem
urgentemente ao lugar que lhes compete e servir não só aos que
lidam com a ciência da psiqué, mas também a quantos acreditam na
perenidade do mito, que não é grego nem latino, mas um farol que
ilumina todas as culturas.
Rio de Janeiro, 26 de abril de 1985
Junito de Souza Brandão
1. Σόφισμα (sóphisma), sofisma, aqui no caso, é um expediente enganoso e enganador.
2. GRIMAL, Pierre. La mythologie grecque. Paris: PUF, 1952, p. 8ss.
3. BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1972, p. 137ss.
AS FAMÍLIAS DIVINAS
CAPÍTULO I
Mitologia grega: preliminares
1
Os mitos gregos só se conhecem através da forma escrita e das
imóveis composições da arte figurada, o que, aliás, é comum a quase
todas as mitologias antigas. Ora, a forma escrita desfigura, por vezes,
o mito de algumas de suas características básicas, como, por
exemplo, de suas variantes, que se constituem no verdadeiro pulmão
da mitologia. Com isso, o mito se enrijece e se fixa numa forma
definitiva. De outro lado, a forma escrita o distancia do momento da
narrativa, das circunstâncias e da maneira como aquela se
converteria numa ação sagrada. Um mito escrito está para um mito
“em função”, como uma fotografia para uma pessoa viva. E se é
verdade que a forma escrita é uma característica das mitologias
antigas, a grega ainda está comprometida por outra particularidade.
Mitos existem, fora do mundo grego, que, mesmo em sua rígida
forma escrita, conservaram um nítido e indiscutível caráter religioso:
são aqueles cujo contexto tem um cunho ritual.
O Enûma Elîsh1, por exemplo, se reduz a um vasto repertório
ritual. Se dos mitos egípcios se conhece relativamente pouco, é
porque tudo quanto nos chegou de autêntico provém de textos
rituais, como os Textos das pirâmides, os Textos dos sarcófagos, o
Livro dos mortos... Análoga é a situação dos mais antigos textos
rituais da Índia.
Acontece, no entanto, que a Grécia antiga não nos legou um único
mito em contexto ritual, embora se pudesse, talvez, defender, ao
menos como parte de um rito, o que chegou até nós de alguns festejos
dionisíacos.
“A mitologia grega chegou até nós através da poesia, da arte
figurativa e da literatura erudita, ou seja, em documentos de cunho
‘profano’”2, se bem que profano aqui no caso deva ser tomado em
sentido muito lato, uma vez que poesia, arte figurativa e literatura
erudita tiveram por suporte o mito.
É claro que houve, na Grécia, um liame muito forte entre literatura,
arte figurativa e religião, mas, ao plasmar o material mitológico, os
poetas e artistas gregos não obedeciam tão somente a critérios
religiosos, mas também, e isso é fácil de se perceber, a ditames
estéticos. Toda obra de arte como todo gênero artístico e literário
possuem exigências intrínsecas. Entre narrar um mito, que é uma
práxis sagrada, em determinadas circunstâncias, para determinadas
pessoas, e compor uma obra de arte, mesmo alicerçada no mito, vai
uma distância muito grande. A famosa lei das três unidades (ação,
tempo e lugar), embora de formulação tardia, como teoria poética,
está presente na tragédia clássica. Tal lei não é válida para o mito,
que se desloca livremente no tempo e no espaço, multiplicando-se
através de um número indefinido de episódios. Para reduzir um
mitologema a uma obra de arte, digamos, a uma tragédia, o poeta terá
que fazer alterações, por vezes violentas, a fim de que a ação resulte
única, se desenvolva num mesmo lugar e “caiba” num só dia3. Não é
em vão que, as mais das vezes, a tragédia grega se inicia in medias res.
Édipo Rei de Sófocles começa quando termina o mito O flashback
fará o milagre de recompor o restante...
A redução do mito a uma obra de arte traz outra consequência com
vistas à documentação mitológica. O mito, como já se assinalou, vive
em variantes; ora, a obra de arte, de conteúdo mitológico, somente
pode apresentar, e é natural, uma dessas variantes. Acontece que,
dado o imenso prestígio da poesia na Grécia, a variante apresentada
por um grande poeta impunha-se à consciência pública, tornando-se
um mito canônico, com esquecimento das demais variantes, talvez
artisticamente menos eficazes, mas, nem por isso, menos
importantes do ponto de vista religioso.
2
As alterações sofridas pelos mitos gregos, todavia, não se
restringem aos poetas e artistas. Estes, conquanto reduzissem o mito
e o recriassem, alterando-o, para que o mesmo pudesse atender às
novas exigências artísticas, de qualquer forma o aceitavam e
mantinham.
Bem diferente é a atitude do pensamento racional, sobretudo dos
Pré-Socráticos, muitos dos quais tentaram desmitizar ou
dessacralizar o mito em nome do lógos, da razão. Acertadamente
afirma Mircea Eliade: “Em nenhuma outra parte vemos, como na
Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia e a
comédia (e acrescentaríamos o lirismo), mas também as artes
plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o
mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente
‘desmitizado’. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma
crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal qual é
expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas
europeias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o
proclamaram há vinte e cinco séculos”4.
A crítica dos filósofos jônicos não visava, na realidade, ao
pensamento mítico, à essência do mito, mas aos atos e atitudes dos
deuses, tais quais os concebiam Homero e Hesíodo. A crítica
fundamental era feita “em nome de uma ideia cada vez mais elevada
de Deus”. Um Deus verdadeiro jamais poderia ser concebido como
injusto, vingativo, adúltero e ciumento, como enfatiza Xenófanes
(576-480 a.C.), de Cólofon, na Ásia Menor: “No dizer de Homero e de
Hesíodo os deuses fazem tudo quanto os homens considerariam
vergonhoso: adultério, roubo, trapaças mútuas” (Frgs. B11, B12).
Repele a concepção de que os deuses tenham tido um princípio e se
assemelhem aos homens: “Mas os mortais acreditam que os deuses
nasceram, que usam indumentária e que, como eles, têm uma
linguagem e um corpo” (Frg. B14). O antropomorfismo, iniciado com
Homero e aperfeiçoado por Hesíodo, é violentamente censurado: “Se
os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com suas
mãos, pintar e produzir as obras que os homens realizam, os cavalos
pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, os bois
semelhantes a bois e a eles atribuiriam os corpos que eles próprios
têm” (Frg. B15).
Para Xenófanes, a ideia de Deus é algo mais sério: “Há um deus
acima de todos os deuses e homens: nem sua forma nem seu
pensamento se assemelham aos dos mortais” (Frg. B23).
A crítica racionalista veio num crescendo, e o mito recebeu com
Demócrito (520-440 a.C.) um duro golpe. Com efeito, o sistema
mecanicista do filósofo de Abdera, na Trácia, reduz tudo a um
entrechoque de partículas insecáveis, ingênitas, denominadas
ἄτομοι (átomoi), de ἄτομος (átomos, indivisível). “Por necessidade
da natureza, os átomos movem-se no vácuo infinito com movimento
retilíneo de cima para baixo e com desigual velocidade. Daí
entrechoques atômicos e formação de imensos vórtices ou turbilhões
de que se originam os mundos”5,os seres, a alma, os deuses, mas tudo,
porque tudo é matéria, está sujeito à lei da morte.
Assim, para Demócrito, os deuses vulgares e a mitologia nasceram
da fantasia popular. Os deuses existem, mas são entes superiores ao
homem, embora compostos também de átomos e, portanto, sujeitos à
lei da morte. “Deus verdadeiro e natureza imortal não existem”.
Dois outros sérios entraves para o mito foram a “dicotomização” e a
“politização”. A primeira teve por corifeu a um dos maiores e mais
religiosos poetas da Hélade, Píndaro (521-441 a.C.), com toda a justiça
cognominado o príncipe dos poetas e o poeta dos príncipes, o qual,
em nome da moral, começou a filtrar o mito. Para o gigantesco poeta
tebano, dentre as diversas variantes de um mitologema, somente
urna é verdadeira; as demais são coisas que possuem apenas o crédito
dos poetas: “O mundo está repleto de maravilhas e, não raro, as
afirmativas dos mortais vão além da verdade; mitos, ornamentados
de hábeis ficções, nos iludem... As Graças, a quem os mortais devem
tudo quanto os seduz, tributam-lhes honras e, as mais das vezes,
fazem-nos crer no incrível!”6E vai mais longe sua tesoura ética: “O
homem não deve atribuir aos deuses a não ser belas ações. Este é o
caminho mais seguro”7. E quantas vezes o maior dos líricos da Grécia
antiga não truncou, não podou e alterou o mito, para torná-lo
compatível com suas exigências morais.
Também Ésquilo (525-456 a.C.), o pai da tragédia, depurou o mito
para dele extrair tão somente a variante sadia, como já o
demonstramos em livro recente: “O dever do poeta, diz Ésquilo a
respeito do mito de Fedra, é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo
à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o
professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de
dizer somente coisas honestas”8.
Eurípides (480-406 a.C.), o trágico da solidão, seguiu as pegadas de
Xenófanes: sua concepção religiosa é alta e depurada, como
salientamos na longa Introdução que fizemos ao poeta e suas ideias
na tragédia Alceste9.
Outro perigo para a mitologia foi a “politização”, que, muitas vezes,
usando e abusando de deslocamentos do mito, particularmente do
mito dos heróis, fez que os mesmos tivessem por passagem
inevitável, viessem de onde viessem, a cidade de Atenas. A
peregrinação, como se pode ver na Introdução que fizemos ao mito
dos heróis, no terceiro volume, é uma característica típica dos heróis,
mas eleger Atenas como ponto obrigatório de convergência dos
mesmos só se pode atribuir a intenções políticas. O desejo de
defender a hegemonia política da cidadela de Atená levou seus
poetas a “depurarem” e a castrarem, com esse encontro marcado,
certos mitos de heróis locais, acrescentando-lhes gestas de heróis de
cidades vizinhas, fabricando-lhes genealogias espúrias, atribuindolhes importantes fatos históricos com total inversão da cronologia.
De modo inverso, as glórias e feitos dos heróis das cidades inimigas
foram denegridos e empanados. Não foi com outro intento que
desfilaram pelas ruas de Atenas Admeto da Tessália, Édipo de Tebas,
Adrasto de Sicione, Orestes de Argos, Castor e Pólux de Esparta...
Na realidade, a crítica racionalista entrou pelo século V a.C. e
acabou por fazer discípulos ilustres. Ao contrário do crédulo
Heródoto (480-425 a.C.), Tucídides (460-395 a.C.) baniu os deuses de
sua História da Guerra do Peloponeso. Nesta 1, 21, o adjetivo
μυθοῶδες (mythôdes), que significa “semelhante ao mito”, passou a
ter a acepção de “fabuloso”, na expressão "τό μὴ μυθοῶδες (tò mè
mythôdes), o que não é fabuloso, numa clara alusão ao mito. De
pouco adiantaram as chicotadas e a “xingologia” do maior dos
cômicos universais, Aristófanes (445-388 a.C.), contra os inovadores.
Os sofistas, mercê da atitude intelectual de alguns pensadores
precedentes, aproveitando-se das condições políticas e sociais do
tempo, abalaram, com sua teoria ancípite e demolidora, os nervos da
pólis. Prevalecendo-se do caminho já aplainado pelo ceticismo, entre
outras sérias “depurações”, procuraram varrer o mito da mente de
seus jovens discípulos, como tentamos demonstrar em As nuvens10.
3
Na realidade, a mitologia deixou o século V a.C. meio coxa,
“depurada” e cambaleante. De saída teve, no século IV a.C., um
encontro dramático com o Epicurismo. Epicuro (341-270 a.C.),
retomando o atomismo materialista de Demócrito, procurava
libertar o homem do temor dos deuses e da necessidade inexorável
da Moîra. Afinal, se os deuses, distantes e desinteressados do homem,
são também matéria, sujeitos, por conseguinte, à morte, já que
formados, como os homens, por entrechoques atômicos, por que
temê-los? O além, grande preocupação do homem grego, não existe.
Se tudo é matéria, deuses e alma, o bem supremo está no prazer
negativo, na ausência de dor para o corpo e de perturbação para a
alma. Deus ou os deuses não agem. De sua Ética nos ficou um
fragmento sombrio acerca da fragilidade e impotência divina face ao
problema do mal: “Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou
pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não
pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é
invejoso, o que, igualmente, é contrário a Deus. Se nem quer nem
pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e
quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém
então a existência dos males? Por que Deus não os impede?”
Parecia morta a mitologia. Os deuses agora não estavam apenas
desmitizados, mas também dessacralizados. Mas eis que, em pleno
século IV a.C., surgiram duas novas modalidades de interpretação do
mito, as quais, a seu modo, vão contribuir para “salvar uma certa
mitologia” e, como se há de ver mais adiante, para perpetuá-la no
“cristianíssimo” mundo ocidental. Alegorismo e Evemerismo, eis aí os
dois novos monstros sagrados. Trata-se, como argutamente percebeu
Mircea Eliade, comentando essas duas últimas novidades do
pensamento grego, não apenas de “uma crítica devastadora ao mito”,
mas de “uma crítica a qualquer mundo imaginário, empreendida em
nome de uma psicologia simplista e de um raciocínio elementar”11.
Já que os mitos não eram mais compreendidos literalmente,
buscavam-se neles as ύπόνοιαι (hypónoiai), isto é, as suposições, as
significações ocultas, os subentendidos. Foi isto que, a partir do século
I d.C., se denominou alegoria, que significa, etimologicamente, “dizer
outra coisa”, ou seja, o desvio do sentido próprio para uma acepção
translata, ou mais claramente: alegoria é “uma espécie de máscara
aplicada pelo autor à ideia que se propõe explicar”. Teágenes de
Régio, já no século VI a.C., tentara fazer uma exegese da poesia
homérica com base na ύπόνοια (hypónoia), mas somente no século
IV a.C. é que a alegoria descobriu que os nomes dos deuses
representavam sobretudo fenômenos naturais.
Assim é que o estoico Crisipo reduziu a mitologia a postulados
físicos ou éticos. Homero e Hesíodo estão “salvos”; “salva” está a
poesia e a arte, que poderão continuar a beber na fonte inesgotável
do mito, embora alegorizado.
Não foi, todavia, só a alegoria que “salvou” a mitologia helênica.
Um pouco mais tarde, lá pelos fins do século IV a.C. e inícios do III
a.C., o filósofo alexandrino Evêmero publicou uma obra, de que nos
restam alguns fragmentos, intitulada Ἱερὰ' Αναγραϕή (Hierà
Anagraphé), História Sagrada, que, com o mesmo título, foi
traduzida para o latim pelo poeta Quinto Ênio (239-169 a.C.). Tratase de uma espécie de romance sob forma de viagem filosófica, no
qual afirma Evêmero haver descoberto a origem dos deuses. Estes
eram antigos reis e heróis divinizados e seus mitos não passavam de
reminiscências, por vezes confusas, de suas façanhas na terra.
O Evemerismo, por conseguinte, nada mais é do que a tentativa de
explicar o processo de apoteose de homens ilustres. Embora
teoricamente antípoda do alegorismo, o Evemerismo muito
contribuiu também para “salvar” a mitologia, injetando-lhe uma
dose de caráter “histórico” e humano. Afinal, os deuses não passavam
de transposições, através da apoteose e de reminiscência, um tanto
desordenada, das gestas de reis e de heróis primitivos, personagens
autenticamente históricas... O próprio Evêmero, aliás, diz ter
encontrado na Ilha dos Bem-Aventurados um templo dedicado a
Zeus. Neste templo se conservava uma coluna de ouro em que o
próprio deus, quando ainda vivia como simples mortal, gravara a
história da humanidade! Era a total desmitização...
4
Após batalhas tão ingentes contra a carência de documentos
rituais; contra as reduções introduzidas pela própria literatura e arte
figurativa, mercê de suas exigências estéticas; contra o lógos
desmitizador dos pré-socráticos; contra a dicotomização e a
politização; contra o sistema mecanicista de Demócrito e depois de
Epicuro; contra a depuração da scaenica philosophia de Eurípides;
contra o mythôdes de Tucídides; contra a lavagem cerebral dos
Sofistas; contra o Alegorismo, tão aplicado pelos Estoicos; contra o
Evemerismo... seria o momento de se perguntar: morreu a mitologia?
A resposta é: ainda não.
Com efeito, ao longo de todas essas refregas, dos fins do século VII
aos fins do século I a.C., a mitologia, sem desmitização e sem
dessacralização, se bem que bastante ferida, manteve-se viva e
atuante. A fórmula de tal sobrevivência é facilmente explicável. Se a
tenacidade e o vigor, com que os pré-socráticos bem como alguns
outros pensadores e “reformadores” combatiam o mito, se tivessem
imposto integralmente à consciência grega, a tradição mitológica
teria desaparecido por completo. Mas tal não aconteceu, porque os
ataques desfechados contra o mito partiram sempre da elite
pensante, de filósofos, de poetas e de escritores (com muitas e
poderosas exceções) e se uma parcela dessa mesma elite pensante
descobriu, sobretudo no Oriente, “outras mitologias” capazes de
alimentar-lhe o espírito, a massa iletrada, tradicionalista por vocação
e indiferente a controvérsias sutis, a alegorismos e a evemerismos,
agarrava-se cada vez mais à tradição religiosa.
De outro lado estava a religião oficial, estatal, que, embora se
apresentasse, não raro, como uma liturgia sem fé, tinha interesses
óbvios em defender seus deuses, outrora destemidos paladinos da
pólis. Mas a grande trincheira da mitologia foram as religiões dos
Mistérios, em particular dos Mistérios de Elêusis, dos Mistérios
Greco-Orientais, da secular autoridade religiosa do Oráculo de
Delfos, do culto do deus do êxtase e do entusiasmo, Dioniso, de modo
particular nas Antestérias, de que falaremos no segundo volume, e
das Confrarias Órfico-Pitagóricas12. A tudo isso somaram-se as
chamadas soteriologias ou doutrinas da salvação, verdadeiras
“mitologias da alma”, propagadas pelo neopitagorismo,
neoplatonismo, gnosticismo e hermetismo, a cujo lado se
expandiram mitologias solares, astrais e funerárias, bem como a
magia e a bruxaria.
E se o cristianismo lutou tanto para impor-se e teve primeiro que
“fertilizar” tantas arenas com o sangue de seus mártires, a oposição à
nova e autêntica experiência religiosa não teve origem na religião e
mitologias clássicas, de resto já agonizantes, alegorizadas e
evemerizadas, mas na oposição tenaz das religiões de Mistérios, das
soteriologias e dos diversos tipos de mitologias e religiões populares,
que nem mesmo os decretos do Imperador Teodósio (346-395 d.C.),
fechando e destruindo templos, conseguiram eliminar. A “extinção
religiosa” do paganismo se haveria de conseguir por outros meios,
sem repressão e sem violências. E se o cristianismo, sem nenhuma
conivência, sem nenhuma alteração de sua doutrina, adotou da
mitologia tantos significantes e tantos símbolos, o fez ad captandam
beneuolentiam, isto é, com o fito de atrair os pagãos para a
verdadeira fé e para o escândalo da cruz. Se, até hoje, muitos
estranham e se espantam com “as múltiplas semelhanças” do culto
cristão com “fatos mitológicos”, isto se deve não apenas à prudente
cristianização de significantes da mitologia grega, oriental e romana,
mas sobretudo ao Espírito de Deus, que sopra onde lhe agrada. Sob
muitos aspectos o cristianismo salvou a mitologia: dessacralizou-a
de seu conteúdo pagão e ressacralizou-a com elementos cristãos,
ecumenizando-a. Quando se pensa na homologação, por parte do
cristianismo, das tradições religiosas populares é que os fatos se
tornam mais nítidos. “Cristianizados, deuses e locais de culto da
Europa inteira, na feliz expressão de Mircea Eliade, receberam eles
não somente nomes comuns, mas também reencontraram, de certa
forma, seus próprios arquétipos e, por conseguinte, seu prestígio
universal. Uma fonte da Gália, sagrada desde a pré-história, por
causa da presença de uma figura divina local ou regional, torna-se
santa para toda a cristandade, após ser consagrada à Virgem Maria.
Os matadores de dragões são assimilados a São Jorge ou a um outro
herói cristão; os deuses das tempestades o são a Elias. De regional e
provincial, a mitologia tornou-se universal. É de modo especial pela
criação de uma nova ‘linguagem mitológica’ comum a toda a
população rural, que permaneceu presa à terra, e portanto na
iminência de se isolar em suas próprias tradições, que o papel
civilizador do cristianismo se tornou considerável. Cristianizando a
antiga herança religiosa europeia, ele não apenas a purificou, mas
ainda fez ascender a uma nova etapa religiosa da humanidade tudo
quanto merecia ser ‘salvo’ entre as velhas práticas, crenças e
esperanças do homem pré-cristão”13.
Talvez não fosse de todo fora de propósito recordar uma verdade
que o grande Cardeal Jean Daniélou gostava de repetir, verdade que
atesta a perenidade da cultura clássica, de que o mito não é parte
menos importante: “Uma coisa é a revelação, outra, as representações
sob as quais os escritores sacros no-la transmitiram, hauridas, em
grande parte, nas civilizações antigas”14.
Em conclusão: foi graças ao alegorismo e ao evemerismo e
sobretudo porque a literatura grega e as artes plásticas se
desenvolveram cimentadas no mito que os deuses e heróis da Hélade
sobreviveram ao longo processo de desmitização e dessacralização,
mesmo após o triunfo do cristianismo, que acabou por absorvê-los,
porque já então estavam esvaziados por completo de “valores
religiosos viventes”.
“Camuflados sob os mais inesperados disfarces”, evemerizados e
despojados de suas formas clássicas, deuses e heróis conseguiram,
embora a duras penas, atravessar toda a Idade Média.
Na Renascença, porém, recobertos com sua roupagem de gala,
regressaram triunfantes, de corpo inteiro, para não mais se esconder.
Salva pelos poetas, artistas, filósofos e pelo cristianismo, a herança
clássica converteu-se em tesouro cultural: Camões, Fernando Pessoa
e Carlos Drummond de Andrade, apenas para citar o triângulo maior
da poesia em língua portuguesa, estão aí para prová-lo.
Estamos de acordo com Georges Gusdorf: “A consciência mítica,
embora reprimida, não está morta. Afirma-se mesmo entre os
filósofos e sua persistência secreta encoraja-lhes talvez os
empreendimentos no que estes têm de melhor. Não se trata, por
conseguinte, de uma simples arqueologia da razão. O interesse pelo
passado constitui-se aqui na preocupação com o atual”15.
1. Enûma Elîsh são as duas primeiras palavras do grande poema babilônico e que significam
“Quando, no alto...” O poema é inexatamente denominado Poema da criação, assunto que
ocupa uma parte mínima da narrativa. Melhor seria chamá-lo Poema da exaltação de
Marduc.
2. BRELICH, Angelo. Gli eroi greci. Roma: Edizioni dell’Ateneo e Bizzarri, 1978, p. 33ss.
3. Veja-se BALDRY, H.C. The Dramatization of the Theban Legend. Greece and Rome, s. 2, v.
3, p. 24ss.
4. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 130. [Tradução de Pola
Civelli].
5. FRANCA, Leonel, S.J. Noções de história da filosofia. 13. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1952, p.
40ss.
6. Olímpicas, 1,28-33.
7. Ibid., 35.
8. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: TAB, 1980, p.
46ss.
9. EURÍPIDES. Alceste. Rio de Janeiro: Bruno Buccini Editor, 1968, 3. ed., p. 19ss [Tradução de
Junito de Souza Brandão].
10. ARISTÓFANES. As nuvens. Rio de Janeiro: Grifo, 1976, p. 20ss [Introdução e Tradução de
Junito de Souza Brandão].
11. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 133.
12. Veja-se a respeito dos Mistérios Gregos e Orientais a obra monumental de Joseph
HOLZNER, AutourdeSaintPaul, cap. V: “Les Mystères grecs et l’idée du salut”. Paris: Éditions
Alsatia, 1953, p. 75-123.
13. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 230.
14. CHAUCHARD, Paul et al. La survie après la mort. Paris: Éditions Labergerie, 1868, p. 24.
15. GUSDORF, Georges. Mythe et métaphysique. Paris: Flammarion, 1953, p. 8.
CAPÍTULO II
Mito, rito e religião
1
É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o
mito1, que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda2,
invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem
as sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas culturas
primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais.
Em outros termos, mito, consoante Mircea Eliade, é o relato de uma
história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore,
quando, com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente
um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal
ou vegetal, um comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de
uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.
Em síntese:
MITO
história
verdadeira
nova realidade:
cosmoantropofania
ocorrida no
tempoprimordial
(total ou parcial )
intervenção de entes
sobrenaturais
De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva,
transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação
do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra “revelada”, o
dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nível da
linguagem, “ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa
um acontecimento”3. Maurice Leenhardt precisa ainda mais o
conceito: “O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e
formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o
acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança,
antes de fixar-se como narrativa”4.
O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência
é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós
através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o
mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode
ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a
todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é,
pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes, o mito não pode,
consequentemente, “ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é
um modo de significação, uma forma”5. Assim, não se há de definir o
mito “pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere”.
2
É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como
expressão de fantasia, de mentiras, daí mitomania, mas não é este o
sentido que hodiernamente se lhe atribui.
O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora
significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como
qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que
esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma
verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho
de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão
que o mesmo contém. Muitos veem no mito tão somente os
significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das
aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o
sentido profundo.
Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav
Jung, como a conscientização dos arquétipos do inconsciente
coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente
coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se
manifesta.
Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências
das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo
expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o
lugar onde tenham vivido.
Arquétipo, do grego arkhétypos, etimologicamente, significa
modelo primitivo, ideias inatas. Como conteúdo do inconsciente
coletivo foi empregado pela primeira vez por Jung. No mito, esses
conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade é impossível
determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas
exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre
culturas primitivas ainda existentes. Normalmente, ou
didaticamente, se distinguem dois tipos de imagens:
a) imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam
a experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser
explicadas pela anamnese individual;
b) imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não
podem ser incorporados à história individual. Correspondem a
certos elementos coletivos: são hereditárias.
A palavra textual de Jung ilustra melhor o que se expôs: “Os
conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência
individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são
arquétipos que existem sempre e a priori”6.
Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da
dispersão por migrações, casos há e muito numerosos em que essas
imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente
coletivo7. Mas, como este não é verbal, quer dizer, não podendo o
inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz
através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego
sýmbolon, do verbo symbállein, “lançar com”, arremessar ao mesmo
tempo, “comjogar”. De início, símbolo era um sinal de
reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e
confronto permitiam aos portadores de cada uma das partes se
reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de
equivalência. Assim, para se atingir o mito, que se expressa por
símbolos, é preciso fazer uma equivalência, uma “conjugação”, uma
“reunião”, porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que
representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado
evidente e imediato.
Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos princípios.
“Traduzem” a origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de
uma gesta, a economia de um encontro.
Na expressão de Goethe, os mitos são as relações permanentes da
vida.
Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida através de
várias gerações e que relata uma explicação do mundo, então o que é
mitologia?
Se mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela
tradição e mitema as unidades constitutivas desses elementos,
mitologia é o “movimento” desse material: algo de estável e mutável
simultaneamente, sujeito, portanto, a transformações. Do ponto de
vista etimológico, mitologia é o estudo dos mitos, concebidos como
história verdadeira.
3
Quanto à religião, do latim religione, a palavra possivelmente se
prende ao verbo religare, ação de ligar, o que parece comprovado
pela imagem do grande poeta latino Tito Lucrécio Caro (De Rerum
Natura, 1,932): Religionum animum nodis exsoluere pergo – esforçome por libertar o espírito dos nós das superstições – onde o poeta
epicurista joga, como está claro, com as palavras religio e nodus,
religião (“ligação”) e nó (uma outra ligadura).
Religião pode, assim, ser definida como o conjunto de atitudes e
atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta
sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como
sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido mais estrito,
pode-se dizer que a religião para os antigos é a reatualização e a
ritualização do mito. O rito possui, no dizer de Georges Gusdorf, “o
poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar o mito”8.
Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de
todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual
realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse
caso, “o sentido de uma ação essencial e primordial através da
referência que se estabelece do profano ao sagrado”9. Em resumo: o
rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito
comemora.
Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio
de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os
heróis fizeram “nas origens”, porque conhecer os mitos é aprender o
segredo da origem das coisas. “E o rito pelo qual se exprime (o mito)
reatualiza aquilo que é ritualizado: recriação, queda, redenção”10. E
conhecer a origem das coisas – de um objeto, de um nome, de um
animal ou planta – “equivale a adquirir sobre as mesmas um poder
mágico, graças ao qual é possível dominá-las, multiplicá-las ou
reproduzi-las à vontade”11. Esse retorno às origens, por meio do rito, é
de suma importância, porque “voltar às origens é readquirir as forças
que jorraram nessas mesmas origens”. Não é em vão que na Idade
Média muitos cronistas começavam suas histórias com a origem do
mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo
primordial e as bênçãos que jorraram illo tempore.
Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece
um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade
do sagrado. É o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: “Um
objeto ou um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que
repetem um arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente
pela repetição ou participação; tudo que não possui um modelo
exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade”12.
O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em
verbo, sem o que ela é apenas lenda, “legenda”, o que deve ser lido e
não mais proferido.
4
À ideia de reiteração prende-se a ideia de tempo. O mundo
transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e
reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas
não aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano
e recupera o tempo sagrado do mito. É que, enquanto o tempo
profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível (pode-se
“comemorar” uma data histórica, mas não fazê-la voltar no tempo), o
tempo mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre sobre si
mesmo. É precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do
peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de
abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O
profano é o tempo da vida; o sagrado, o “tempo” da eternidade.
J.B. Barruel de Lagenest tem uma página luminosa acerca da
dicotomia do profano e do sagrado. Para o teólogo em pauta, o
profano e o sagrado podem ser enfocados subjetiva e objetivamente:
“Se considerarmos a experiência sensível como o elemento mais
importante da atitude religiosa, a percepção do sagrado [...] será valor
determinante da vida profunda de um indivíduo ou de um grupo.
Diante da divindade a criatura só se pode sentir fraca, incapaz,
totalmente dependente.
Esse sentimento se transforma em instrumento de compreensão,
pois torna aquele que o vive capaz de descobrir, como que por
intuição, o eterno no transitório, o infinito no finito, o absoluto
através do relativo. O sagrado é, assim, o sentimento religioso que
aflora.
No entanto, também é possível ver no sagrado um modo de ser
independente do observador. Na medida em que o sobrenatural
aflora através do natural, não é mais o sentimento que cria o caráter
sagrado, e sim o caráter sagrado, preexistente, que provoca o
sentimento. Deste ponto de vista, não há solução de continuidade
entre a manifestação da divindade através de uma pedra, de uma
árvore, de um animal ou de um homem consagrados. Nesse caso,
nem a pedra, nem a árvore, nem o animal, nem o homem são
sagrados e sim aquilo que revelam: a hierofania faz que o objeto se
torne outra coisa, embora permaneça o mesmo [...]. Um objeto ou uma
pessoa não são ‘apenas’ aquilo que se vê; são sempre ‘sacramento’,
sinal sensível de outra coisa; e, por isso mesmo, permitem o acesso ao
sagrado e a comunhão com ele”13.
Nada mais apropriado para encerrar este capítulo que as palavras
de Bronislav Malinowski, o grande estudioso dos costumes indígenas
das Ilhas Trobriand, na Melanésia. Procura mostrar o etnólogo que “a
consciência mítica”, embora rejeitada no mundo moderno, ainda está
viva e atuante nas civilizações denominadas primitivas: “O mito,
quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a
satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz
reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos
de ordem social e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações
primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele
exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e impõe os
princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras
práticas para a orientação do homem. O mito é um ingrediente vital
da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao
contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não
é, absolutamente, uma teoria abstrata ou uma fantasia artística,
masuma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria
prática”14.
1. Claro que a palavra mito tem múltiplos significados, mas, como diz Roland Barthes, o que
se tenta é definir coisas, não palavras.
2. Mito se distingue de lenda, fábula, alegoria e parábola. Lenda é uma narrativa de cunho,
as mais das vezes, edificante, composta para ser lida (provém do latim legenda, o que deve
ser lido) ou narrada em público e que tem por alicerce o histórico, embora deformado.
Fábula é uma pequena narrativa de caráter puramente imaginário, que visa a transmitir um
ensinamento teórico ou moral. Parábola, na definição de Monique Augras, em A dimensão
simbólica, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 15, “é um mito elaborado de maneira intencional”. Tem,
antes do mais, um caráter didático. “Os evangelhos evidenciam o caráter didático da
parábola, que tende a criar um simbolismo para explicar princípios religiosos”, consoante a
mesma autora. Alegoria, etimologicamente dizer outra coisa, é uma ficção que representa
um objeto para dar ideia de outro ou, mais profundamente, “um processo mental que
consiste em simbolizar como ser divino, humano ou animal, uma ação ou uma qualidade”.
3. VAN DER LEEUW, G. L’homme primitif et la religion. Paris: Alcan, 1940, p. 131.
4. LEENHARDT, Maurice. Do Kamo. Paris: N.R.F., 1947, p. 247.
5. BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1970, p. 130.
6. JUNG, C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 6.
[Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, O.S.B.].
7. Veja-se, para maiores esclarecimentos, a obra de C.G. JUNG e Ch. KERÉNYI. Introduction à
l’essence de la mythologie. Paris: Payot, 1953, p. 95ss.
8. GUSDORF, Georges. Op. cit., p. 24.
9. Ibid., p. 25.
10. LAGENEST, J.P. Barruel de. Elementos de sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 1976, p.
25.
11. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 19. [Tradução de Pola
Civelli].
12. ELIADE, Mircea. Citado por Georges GUSDORF. Op. cit., p. 26.
13. LAGENEST, J.P. Barruel de. Op. cit., p. 17s.
14. MALINOWSKI, Bronislav. Citado por Mircea ELIADE. Op. cit., p. 23.
CAPÍTULO III
A Grécia antes da Grécia
e a chegada dos Indo-Europeus
1
Por uma questão de clareza, não se pode falar do mito grego sem
antes traçar, embora esquematicamente, um esboço histórico do que
era a Grécia antes da Grécia, isto é, antes da chegada dos IndoEuropeus ao território da Hélade.
Vamos estampar, de início, como já o fizera Pierre Lévêque1, um
quadro, um sistema cronológico, com datas arredondadas, sujeitas
portanto a uma certa margem de erros. A finalidade dos dados
cronológicos, que se seguem, é apenas de orientar o leitor e chamarlhe a atenção para o “estado religioso” da Hélade pré-helênica e ver
até onde o antes influenciou o após no curso da mitologia grega.
Neolítico I
Neolítico II
Bronze Antigo ou Heládico Antigo
Primeiras invasões gregas (Jônios) na Grécia
~ 4500-3000
~ 3000-2600
~ 2600-1950
~ 1950
Novas invasões gregas (Aqueus e Eólios?)
~ 1950-1580
~ 1580
Bronze Recente ou Heládico Recente ou
Período Micênico
~ 1580-1100
Bronze Médio ou Heládico Médio
~ 1200
Últimas invasões gregas (Dórios)
Se os restos paleolíticos são muito escassos e de pouca importância,
no Neolítico I o solo grego é coberto por uma série de “construções”,
obra, ao que parece, de populações oriundas do Oriente Próximo
asiático. A transição do Neolítico I para o Neolítico II é marcada, na
Grécia, pela invasão de povos, cuja origem não se pode determinar
com segurança. O sítio neolítico mais bem conhecido é Dimini, na
Tessália, e que corresponde ao Neolítico II. Trata-se de uma acrópole,
de uma cidade fortificada, fato raro para a época. O reduto central
contém um mégaron, ou grande sala, o que revelaria uma
organização monárquica. Trata-se, e é isto que importa, de uma
civilização agrícola. O homem cuida dos rebanhos e a mulher se
encarrega da agricultura, o que patenteia a crença de que a
fecundidade feminina exerce uma grande e benéfica influência
sobre a fertilidade das plantas. A divindade soberana do Neolítico II,
na Grécia, é a Terra-Mãe, a Grande Mãe, cujas estatuetas, muito
semelhantes às cretenses, representam deusas de formas volumosas
e esteatopígicas. A função dessas divindades, hipóstases da TerraMãe, é fertilizar o solo e tornar fecundos os rebanhos e os seres
humanos.
2
Na virada do Neolítico II para o Bronze Antigo ou Heládico Antigo,
~
2600-1950, chegam à Grécia novos e numerosos invasores,
provenientes da Anatólia, na Ásia Menor. Cotejando a civilização
anterior com o progresso trazido pelos anatólios, o mínimo que se
pode dizer é que se trata de uma grande civilização, cujo centro mais
importante foi Lerna, na Argólida, cujos pântanos se tornariam
famosos, sobretudo por causa de um dos Trabalhos de Héracles. Uma
das contribuições mais sérias dessa civilização foi a linguística: a
partir do Bronze Antigo ou Heládic1o Antigo, montes, rios e cidades
gregas recebem nome2, o que permite acompanhar o
desenvolvimento e a extensão da conquista anatólia, que se prolonga
da Macedônia, passando pela Grécia continental, pelas Cíclades, e
atingem a ilha de Creta, que também foi submetida pelos anatólios.
O grande marco dessa civilização, no entanto, foi a introdução do
bronze, início evidentemente de uma nova era.
De outro lado, a existência comprovada de palácios fortificados
denuncia uma sólida organização monárquica. Em se tratando de
uma civilização agrícola, a divindade tutelar continua a ser a Grande
Mãe, dispensadora da fertilidade e da fecundidade. As estatuetas,
com formas também opulentas e esteatopígicas, adotam, por vezes,
nas Cíclades, uma configuração estilizada de violino, o que, aliás, as
tornou famosas. As tumbas são escavadas nas rochas ou se
apresentam em forma de canastra. As numerosas oferendas nelas
depositadas atestam a crença na sobrevivência da alma.
3
Nos fins do segundo milênio, entre ~ 2000-1950, ou seja, no apagar
das luzes da Idade do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, a
civilização anatólia da Grécia propriamente desapareceu, com a
irrupção de novos invasores. Desta feita, eram os gregos3que
pisavam, pela primeira vez, o solo da futura Grécia.
Os gregos fazem parte de um vasto conjunto de povos designados
com o nome convencional de Indo-Europeus. Estes, ao que parece, se
localizavam, desde o quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os
Cárpatos e o Cáucaso, sem jamais, todavia, terem formado uma
unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma
civilização material comum. Talvez tenha existido, isto sim, uma
certa unidade linguística e uma unidade religiosa. Pois bem, essa
frágil unidade, mal alicerçada num “aglomerado de povos”, rompeuse, lá pelo terceiro milênio, iniciando-se, então, uma série de
migrações, que fragmentou os Indo-Europeus em vários grupos
linguísticos, tomando uns a direção da Ásia (armênio, indo-iraniano,
tocariano, hitita), permanecendo os demais na Europa (balto, eslavo,
albanês, celta, itálico, grego, germânico). A partir dessa dispersão,
cada grupo evoluiu independentemente e, como se tratava de povos
nômades, os movimentos migratórios se fizeram no tempo e no
espaço, durante séculos e até milênios, não só em relação aos diversos
“grupos” entre si, mas também dentro de um mes-mo “grupo”. Assim,
se as primeiras migrações indo-europeias (indo-iranianos, hititas,
itálicos, gregos) estão séculos distantes das últimas (baltos, eslavos,
germânicos...), dentro de um mesmo grupo as migrações se fizeram
por etapas. Desse modo, o grupo itálico, quando atingiu a Itália, já
estava fragmentado, “dialetado”, em latinos, oscos e umbros,
distantes séculos uns dos outros, em relação à chegada a seu
habitatcomum. Entre os helenos o fato ainda é mais flagrante, pois,
como se há de ver, os gregos chegaram à Hélade em pelo menos
quatro levas: jônios, aqueus, eólios e dórios e, exatamente como
aconteceu com o itálico, com séculos de diferença entre um grupo e
outro. Para se ter uma ideia, entre os jônios e os dórios medeia uma
distância de cerca de oitocentos anos!
Se não é possível reconstruir, mesmo hipoteticamente, o império
indo-europeu e tampouco a língua primitiva indo-europeia, pode-se,
contudo, estabelecer um sistema de correspondências entre as
denominadas línguas indo-europeias, mormente, e é o que importa
no momento, no que se refere ao vocabulário comum e, partindo
deste, chegar a certas estruturas religiosas dessa civilização.
O vocabulário comum mostra a estrutura patrilinear da família, o
nomadismo, uma forte organização militar, sempre pronta para as
conquistas e os saques. Igualmente se torna claro que os indoeuropeus conheciam bem e praticavam a agricultura; criavam
rebanhos e conheciam o cavalo.
Os termos mais comuns, consoante Meillet4, são, resumidamente,
os que indicam: • Parentesco – pai, mãe, filho, filha, irmã; • grupo social
– rei, tribo, aldeia, chefe da casa e da aldeia; • atividades humanas –
lavrar, tecer, fiar, ir de carro, trocar, comprar, conduzir (= casar); •
animais – boi, vaca, cordeiro, ovelha, bode, cabra, abelha, cavalo,
égua, cão, serpente, vespa, mosca e produtos: leite, mel, lã, manteiga; •
vegetais – álamo, faia, salgueiro, azinheira; • objetos – machadinha,
roda, carro, jugo, cobre, ouro, prata; • principais partes do corpo; nomes
distintos para os dez primeiros números; nomes das dezenas; a
palavra cem, mas não mil.
O vocabulário religioso é extremamente pobre. São pouquíssimos
os nomes de deuses comuns a vários indo-europeus.
Básico é o radical *deiwos, cujo sentido preciso, segundo Frisk, é
alte Benennung des Himmels, quer dizer, “antiga denominação do
céu”5, para designar “deus”, cujo sentido primeiro é luminoso, claro,
brilhante, donde o latim deus, sânscrito devâh, iraniano div, antigo
germânico tîvar. Este mesmo radical encontra-se no grande deus da
luz, o “deus-pai” por excelência: grego Zeús, sânscrito Dyauh, latim
Iou (de *dyew-) e com aposição de piter (pai), tem-se Iuppiter, “o pai
do céu luminoso”, Júpiter, bem como o sânscrito Dyauh pitâ, grego
Zeùs patér, cita Zeus-Papaios, isto é, Zeus Pai.
Zeus é, portanto, o deus do alto, o soberano, “o criador”. Cosmogonia
e paternidade, eis seus dois grandes atributos6.
Além de Zeus, para ficar apenas no domínio grego, podem citar-se
ainda “o deus solar” Hélios (Hélio), védico Sûrya, eslavo antigo
Solnce, e o “deus-Céu”, grego Ouranós (Úrano), sânscrito Varuna, a
abóbada celeste.
De qualquer forma, como acentua Mircea Eliade, “os IndoEuropeus tinham elaborado uma teologia e uma mitologia
específicas. Praticavam sacrifícios e conheciam o valor mágicoreligioso da palavra e do canto (*Kan). Possuíam concepções e rituais
que lhes permitiam consagrar o espaço e ‘cosmizar’ os territórios em
que se instalavam (essa encenação mítico-ritual é atestada na Índia
antiga, em Roma, e entre os celtas), as quais lhes permitiam, de mais
a mais, renovar periodicamente o mundo (pelo combate ritual entre
dois grupos de celebrantes, rito de que subsistem traços na Índia e no
Irã)”7. Eliade conclui, mostrando que a grande distância que separa as
primeiras migrações indo-europeias das últimas, como já
assinalamos, impossibilita a identificação dos elementos comuns no
vocabulário, na teologia e na mitologia da época histórica.
Essas longas e lentas migrações, por outro lado, face ao contato
com outras culturas e mercê dos empréstimos, sincretismos e
aculturação, trouxeram profundas alterações ao acervo religioso
indo-europeu. E se muito pouco nos chegou de autêntico dessa
religião, esse pouco foi brilhantemente enriquecido, sobretudo a
partir de 1934, pelas obras excepcionais de Georges Dumézil.
Partindo da mitologia comparada, mas sem os exageros e erros de
Max Müller e sua escola, apoiado em sólida documentação, Dumézil
fez que se compreendesse melhor toda a riqueza acerca do que se
possui do mito e da religião de nossos longínquos antepassados. Uma
de suas conclusões maiores foi a descoberta da estrutura trifuncional
da sociedade e da ideologia dos indo-europeus, estrutura essa
fundamentada na tríplice função religiosa dos deuses8.
Não há dúvida de que é entre os indo-iranianos, escandinavos e
romanos que a “trifunção” está mais acentuada, mas entre os gregos,
ao menos da época histórica, a mesma estrutura pode ser observada,
ao menos como hipótese:
Indo-Iranianos
Escandinavos
Romanos
Gregos
Soberania
(Sacerdotes)
Força
(Guerreiros)
Fecundidade
(Campônios)
– Varuna e
Mitra
Indra
Nasátya
– Odin e Tyr
Tor
Freyr
– Iuppiter
Mars
Quirinus
– Zeús
Ares
Deméter
No que tange à Hélade, esta divisão há de perdurar, religiosamente,
até o fim.
Eis aí, em linhas gerais, o que foi a Grécia antes da Grécia e a
primeira contribuição religiosa dos indo-europeus gregos à sua
pátria, nova e definitiva.
Voltemos, agora, aos invasores indo-europeus e ao destino da
mitologia grega.
1. LÉVÊQUE, Pierre.La aventura griega. Barcelona: Labor, 1968, p. 6. Obs.: ~
=Aproximadamente.
2. Os nomes com sufixo-nthos, como Kórinthos (Corinto), Tíryns, Tírynthos (Tirinto),
Hyákinthos (Jacinto), ou nomes em-ss,-tt, reduzidos ou não a-s,-t, como Knosós (Cnossos),
Nárkissos (Narciso), muito comuns, quer na toponímia, quer na antroponímia grega, são,
provavelmente, de origem anatólia, o que, do ponto de vista religioso, é importante para se
estabelecer a procedência de determinados mitos.
3. Grego é um adjetivo (graikós, é, ón) e, como substantivo, hoi Graikoí, os gregos, a
denominação somente apareceu tardiamente, após Aristóteles, substituindo, por vezes, a
Héllenes, os helenos. A extensão do termo grego e sua aplicação a todos os helenos se deveu,
ao que parece, aos romanos. Na realidade, os gregos chamavam-se mínios, aqueus e, depois,
em definitivo, helenos.
4. MEILLET, Antoine. Aperçu d’une histoire de la langue grecque. Paris: Hachette, 1935, p.
3ss.
5. FRISK, Hjalmar. Griechisches Etymologisches Wörterbuch. Heidelberg: Carl Winter, 1958,
verbete Zeús.
6. Deus em grego se diz theós, mas este, segundo H. FRISK, Op. cit., verbete theós, significa
espírito, alma: a ideia de theós como deus é recente e teria se desenvolvido a partir da
divinização dos mortos ou talvez o vocábulo signifique, a princípio, cipo, estela.
7. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,
tomo I, vol. II, p. 15. [Tradução de Roberto Cortes de Lacerda].
8. DUMÉZIL, Georges. Ouranós – Varuna, étude de mythologie comparée indo-européenne.
Paris: A. Maisonneuve, 1934, passim; e Jupiter Mars Quirinus, essai sur la conception indoeuropéenne de la société et sur les origines de Rome. Paris: Gallimard, 1941.
CAPÍTULO IV
Dos Jônios à Ilha de Creta
1
Ao apagar das luzes do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, por
volta de ~ 2600-1950, os primeiros gregos, os jônios, atingiram a
Hélade, através dos Bálcãs, e ocuparam violentamente a Grécia
inteira, levando de vencida os anatólios, que foram, ao que tudo
indica, escravizados. Guerreiros e com sólida organização social do
tipo militar, obedeciam em tudo a seus chefes. Instalavam-se em
palácios em acrópole, fortificados com grandes muralhas, portas de
entrada estreita, reforçada com torres, como se pôde observar nas
escavações efetuadas em Egina, Tirinto e Micenas pré-aqueias. Não se
trata ainda de palácios com o conforto e a beleza de Cnossos, em
Creta, nem tampouco das futuras e gigantescas fortalezas aqueias da
Grécia continental, mas, mesmo assim, os palácios jônicos atestam o
caráter belicoso desses indo-europeus.
Mercê da forte organização social desses primeiros gregos, o povo,
ao que parece, “tinha uma vida igualitária”, com a terra dividida em
glebas equivalentes entre os vários chefes das famílias de que se
compunha cada uma das quatro tribos em que já se dividiam os
jônios.
Muitos arqueólogos e historiadores opinam que os primeiros indoeuropeus gregos, antes de penetrarem na Hélade, teriam passado
primeiro pela “civilizada” Ásia Menor, o que explicaria sua refinada
técnica em cerâmica, a chamada cerâmica mínia, já anteriormente
bem conhecida naquela região, inclusive na denominada Troia VI
dos arqueólogos.
Se, em relação ao Bronze Antigo ou Heládico Antigo, ~ 2600-1950,
as contribuições jônicas, no que tange à agricultura, foram somenos,
o mesmo não se pode afirmar, como já se enfatizou, com referência à
cerâmica, com os estilizados vasos mínios, de cor cinza e, em seguida,
amarelos, encontrados no Peloponeso e na Beócia.
A metalurgia não conheceu grandes progressos e seguiu o caminho
do bronze, já mencionado na fase anterior. Em compensação surge o
cavalo, há longo tempo conhecido dos indo-europeus, o que
representa um marco importante para a época.
Em matéria de religião, o primeiro ponto a ser observado é o
deslocamento do processo de inumação, das necrópoles exteriores
para dentro dos núcleos urbanos, mas as escassas oferendas
encontradas nos túmulos mostram um enfraquecimento na crença
em relação à imortalidade da alma ou ao menos no que se refere ao
intercâmbio entre vivos e mortos. Santuários construídos em
acrópole, como o de Egina, evidenciam a implantação da religião
patrilinear indo-europeia na Grécia, o que explica o desaparecimento
quase total das estatuetas e do culto da Grande Mãe nessa época, pelo
menos nos núcleos “urbanos”.
Em síntese, a Hélade dos jônios propriamente submergiu na
barbárie e fechou-se ao comércio com o Mediterrâneo. É bem
verdade que no Heládico Antigo já se encontram barcos jônicos na
ilha de Melos, nas Cíclades e em contato com os cretenses, mas esse
intercâmbio é esporádico e nem sempre amistoso. Representa, no
entanto, algo importante: o grande batismo dos pastores nômades
nas águas de Posídon, embora ainda faltasse muito para que o mar se
tornasse o eterno namorado da Hélade.
2
Da barbárie jônica, que sufocara os anatólios da Grécia, passamos à
ilha de Creta, onde, por sinal, luzia intensamente essa mesma
civilização anatólia, que até o momento mantivera contatos mais ou
menos pacíficos com os povos da Grécia continental.
Antes de se abordar, se bem que sumariamente, a história e o
destino da ilha de Minos, impõe-se uma pergunta: qual é a origem
dos cretenses? Há os que simplesmente escamoteiam o problema,
ignorando-lhes o passado e iniciando a história da Ilha pelo Minoico
Antigo, isto é, a partir de ~ 2800, quando, possivelmente, lá chegaram
os anatólios. Outros, todavia, remontam além do Minoico Antigo e,
partindo da linguística, procuram demonstrar que a língua cretense,
tradicionalmente denominada pelásgico, não representa o substrato
mediterrâneo anterior à chegada dos Indo-Europeus. Isolando do
vocabulário grego os raros vestígios do pelásgico, seria possível
reconstruir um “substrato cretense”, enriquecido com inúmeros
topônimos e, através desse substrato, provar que o pelásgico teria
certo parentesco com a língua indo-europeia, principalmente com os
dialetos luvita e hitita. Neste caso, os cretenses seriam proto-indoeuropeus, aparentados portanto com os gregos, mas que,
anteriormente a estes, se teriam separado do tronco comum indo-
europeu. Hipótese sedutora, mas hipótese apenas. Os anatólios
teriam vindo bem depois...
Outra observação é que muito do pouco que se conhece de Creta,
“este livro de imagens sem texto”, deve-se ao labor, às fadigas e à
competência do verdadeiro descobridor de Cnossos, o sábio Sir
Arthur Evans (1851-1941). Se o dinâmico investigador de Troia e
Micenas, Heinrich Schliemann, por causa da instabilidade política
de Creta, ainda submetida à dominação turca, não pôde prosseguir
suas escavações, iniciadas em 1886, Evans foi mais feliz: desde 1894
já o encontramos na ilha de Ariadne, onde permaneceu quase até o
fim da vida. A publicação de sua obra monumental sobre Cnossos
ainda é o ponto de partida para estudos sobre Creta e o Palácio do rei
Minos1.
A história de Creta, a partir de aproximadamente 2800, costuma
ser dividida em três grandes fases:
Minoico Antigo
Minoico Médio
Minoico Recente
~ 2800-2100;
~ 2100-1580;
~ 1580-1100.
Por volta de 2800, povos anatólios ocuparam-na. Terra fértil e rica,
aberta para o Mediterrâneo e suas ilhas, para o continente grego, para
o Egito e para o Oriente, sem ter sofrido as invasões que
ensanguentaram a Hélade, teve um desenvolvimento político,
econômico, social e religioso muito mais rápido do que o verificado
no continente helênico. Uma longa paz permitiu que ali florescesse
uma civilização próspera e opulenta, chamada indiferentemente
minoica, egeia, mediterrânea ou cretense, centrada nos palácios de
Cnossos, Festo e Mália. Lá, por volta de 1700, estes três soberbos
monumentos foram destruídos ou por um terremoto ou, como opina
a maioria, pelos gregos jônios, que lá teriam aportado numa vasta
expedição de pilhagem.
Com a reconstrução dos palácios, entre 1700-1400, começa o
grande esplendor da civilização cretense sob a liderança política,
econômica e cultural de Cnossos, que se tornara, sob o rei Minos
(talvez um nome dinasta, como Faraó Ptolomeu, César), o centro de
uma singular potência monárquica. Já conhecedores de um
determinado tipo de hieróglifos, acabaram por transformá-los numa
escrita silábica mais estilizada a que Arthur Evans denominou
Linear A, ainda infelizmente não decifrada, e de que derivará mais
tarde, por iniciativa dos gregos aqueus, como se verá, a Linear B.
Império marítimo, suas naus dominaram o Egeu e as ilhas
vizinhas. Uma sólida agricultura, uma pecuária muito rica e
sobretudo uma indústria muito avançada para a época fizeram de
Creta a mais adiantada civilização do Ocidente, entre 1580-1450.
O comércio minoico, ativo e corajoso, transpôs as fronteiras das
ilhas do Egeu, muitas das quais já estavam sob o domínio de Cnossos,
levando os produtos de Creta e sua arte até a Ásia Menor, Síria, Egito
e Grécia. A extraordinária prosperidade da ilha de Minos pode
também ser observada em sua arte apurada, com magníficos
afrescos, relevos, estatuetas, pedras preciosas, sinetes de ouro,
cerâmica decorada com motivos vegetais e animais; os palácios
gigantescos, com belas colunas, afunilando para a base e com
engenhosas soluções para a iluminação interior, os cognominados
“poços de luz” e já com um rudimentar, mas eficiente sistema de
esgotos.
3
De uma civilização tão requintada, com um sentido de beleza tão
agudo, era de se esperar um aprimorado sistema religioso. Na
realidade, esse “requinte” no trato com o divino deve ter existido, mas
a carência de documentos “decifrados” (como é o caso dos hieróglifos
mais antigos e da Linear A) e de uma teogonia faz que o estudo da
religião cretense somente possa ser feito indiretamente, através dos
descobrimentos arqueológicos, da pintura, da escultura (embora esta
seja bem mais pobre), da cerâmica e sobretudo da influência
exercida sobre a religião grega posterior. É uma religião que se estuda
com os olhos, dada a impossibilidade de se “ler nas almas”.
“Um belo livro de imagens sem texto”, para repetir a feliz
expressão de Charles Picard.
A decifração da Linear B, em 1952, pelo jovem arquiteto inglês
Michael Ventris, prematura e tragicamente desaparecido,
assessorado pelo filólogo John Chadwick, não trouxe quase nada de
novo acerca da religião da ilha de Creta2. Assim, só se pode ter da
mesma uma visão arqueológica e indireta e esta através da religião
grega, como já se assinalou.
Para se estabelecer uma certa ordem na desordem com que o
assunto costuma ser enfocado pelos especialistas e na multiplicidade
de hipóteses que cada um deles (Arthur Evans, Charles Picard, G.
Glotz, P. Faure, M.P. Nilsson, R. Pettazzoni, Mircea Eliade, Jean
Tulard, Pierre Lévêque, J. Chadwick... ) se acha no direito de emitir, o
que se deve ao modus como a religião cretense chegou até nós, vamos
dividir o assunto em:
a) locais do culto e as cerimônias;
b) o culto dos mortos;
c) as sacerdotisas e seus acólitos;
d) a Grande Mãe e suas hipóstases;
e) o grande mito cretense.
As escavações arqueológicas permitem detectar os locais de culto
na ilha de Creta através de grande quantidade de oferendas neles
depositadas, como armas, esculturas, joias e do mobiliário religioso:
mesas para libações, tripés, vasos sagrados. Inicialmente, são as
grutas e cavernas que servem de “santuário” e de cemitério. Diga-se,
de caminho, que vários mitos associados a esses primitivos locais de
culto integraram-se mais tarde à religião grega, como a gruta de
Amniso, porto bem próximo de Cnossos, onde estava, consoante
Homero, Odiss., XIX, 188, a caverna de Ilítia, deusa pré-helênica dos
partos e, mais tarde, hipóstase de Hera.
No monte Dicta havia uma gruta célebre, onde, para fugir a Crono,
que devorava os filhos ao nascerem, Reia deu à luz o grande Zeus. A
partir do Minoico Médio, ~ 2100-1580, já se encontram modestas
instalações para o culto, localizadas nos cumes das montanhas: tratase de pequenos recintos em torno de uma árvore, rochedo ou fonte,
como atestam vestígios encontrados nos montes Palecastro e Iucta,
bem como em Gúrnia e Mália. Ainda nesse período surgem as
“capelas” no interior das habitações. No palácio de Festo havia um
recinto com três peças: uma mesa para oferendas, uma fossa para
sacrifícios e um banco sobre o qual se colocavam os objetos de culto.
Um pouco mais tarde, ~ 1700-1580, esses recintos sagrados tiveram
um grande impulso, como se pode ver pelo palácio de Cnossos: salas
abertas na direção leste, dispositivo tripartite, como em Festo,
colunas sagradas, ornamentadas com a lábrys e com os cornos de
consagração. Em todas as residências reais há um dispositivo
análogo com santuário e câmara de purificação. De qualquer forma,
a ilha de Creta não conheceu templos.
4
Antes de abordarmos as cerimônias do culto, uma palavra sobre
determinados objetos sagrados acima mencionados.
As grutas e cavernas desempenhavam um papel religioso muito
importante, não apenas na religião cretense, mas em todas as
culturas primitivas. A descida a uma caverna, gruta ou labirinto
simboliza a morte ritual, do tipo iniciático. Neste e em outros ritos da
mesma espécie, passava-se por “uma série de experiências” que
levavam o indivíduo aos começos do mundo e às origens do ser,
donde “o saber iniciático é o saber das origens”. Esta catábase é a
materialização do regressus ad uterum, isto é, do retorno ao útero
materno, donde se emerge de tal maneira transformado, que se troca
até mesmo de nome. O iniciado torna-se outro.
Na tradição iniciática grega, a gruta é o mundo, este mundo, como o
concebia Platão (República, 7,514 ab): uma caverna subterrânea,
onde o ser humano está agrilhoado pelas pernas e pelo pescoço, sem
possibilidade, até mesmo, de olhar para trás. A luz indireta, que lá
penetra, provém do sol invisível: este, no entanto, indica o caminho
que a psiqué deve seguir, para reencontrar o bem e a verdade. Todos
os espectros, que lá se movem, representam este mundo, esta caverna
de aparências de que a alma deverá se libertar, para poder
recontemplar o mundo das Ideias, seu mundo de origem.
O neoplatônico Plotino (Enéadas, 4,8,1) compreendeu
perfeitamente o sentido simbólico da caverna platônica, quando
afirmou que esta para o autor do Fédon bem como o antro para
Empédocles traduziam o nosso mundo, onde a caminhada para a
inteligência, isto é, para a verdade, só há de ser possível quando a
alma quebrar os grilhões do corpo e libertar-se da gruta profunda.
À ideia de caverna está associado o labirinto. Embora as
escavações arqueológicas em Cnossos não revelem nenhum
labirinto, este figura nas moedas cretenses e é mencionado em
relação a outros locais da Ilha. Ao que parece, “os labirintos” em Creta
foram reais: trata-se, provavelmente, de cavernas profundas
artificialmente abertas pelo próprio homem, junto ou entre pedreiras
para fins iniciáticos3.
O famoso labirinto de Cnossos (labýrinthos, “construção cheia de
sinuosidades e meandros”) designaria o próprio palácio. Neste caso,
fazendo-se uma aproximação etimológica, mesmo de cunho popular,
entre labýrinthos, labirinto, e lábrys, machadinha de dois gumes, o
primeiro seria “o palácio da bipene”, cujo simbolismo religioso será
explicado depois.
Numa visão simbólica, o labirinto, como as grutas e cavernas,
locais de iniciação, tem sido comparado a um mandala, que tem
realmente, por vezes, um aspecto labiríntico. Trata-se, pois, como
querem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “de uma figuração de
provas iniciáticas discriminatórias, que antecedem à marcha para o
centro oculto”4.
Assim, em termos religiosos cretenses, o Labirinto seria o útero;
Teseu, o feto; o fio de Ariadne, o cordão umbilical, que permite a
saída para a luz.
Acerca da construção de Cnossos e dos mitos que o envolvem há
de se falar mais adiante.
Eram múltiplas as cerimônias na religião cretense. Segundo
Diodoro Sículo, “os cretenses afirmavam que as honras outorgadas
aos deuses, os sacrifícios e a iniciação nos mistérios eram invenções
suas e que os outros povos os haviam imitado”5. Se o todo da
pretensão cretense não é verídico, fica ao menos atestada a
importância concedida pelos minoicos às cerimônias do culto. Estas
se iniciavam pelas purificações, que se reduziam, em princípio, a
uma simples aspersão das mãos, exceto nas cerimônias solenes,
quando se descia às salas de lustração, preparadas para essa
finalidade.
Os sacrifícios sangrentos de bois, cabras, ovelhas e porcos se
faziam ao ar livre. O touro possuía uma peculiaridade: normalmente
era sacrificado apenas em efígie, mercê de sua alta sacralidade.
Num sarcófago dos séculos ~ XIII-XII, exumado em Háguia Tríada,
vê-se um touro preso a uma mesa, enquanto seu sangue escorre num
vaso.
O sacrifício sangrento era acompanhado de oferendas de frutos e
grãos, que representavam as primícias das colheitas, depositadas em
vasos denominados kérnê, isto é, vasos de cerâmica com numerosos
compartimentos. As escavações mostraram que turíbulos para
fumigações e recipientes vários para brasas, sobre os quais se
colocavam substâncias aromáticas e especiais, tinham certamente
por finalidade provocar o êxtase e o entusiasmo nos fiéis.
Os jogos eram parte intrínseca do culto, como as célebres touradas
sagradas, nas quais o animal não era sacrificado. É muito provável
que as acrobacias, que se realizavam sobre o mesmo por jovens de
ambos os sexos, fizessem parte de uma dokimasía, quer dizer, de uma
prova iniciática, uma vez que, como demonstraram Arthur Evans e
Charles Picard, pular sobre um touro na corrida é um rito iniciático
por excelência. “Muito provavelmente, como pensa Mircea Eliade, a
lenda dos companheiros de Teseu, sete rapazes e sete moças,
‘oferecidos’ ao Minotauro, reflete a lembrança de uma prova
iniciática desse gênero. Infelizmente ignoramos a mitologia do touro
divino e o seu papel no culto. É provável que o objeto cultual
especificamente cretense, denominado ‘chifre de consagração’,
represente a estilização de um frontal de touro. A sua onipresença
confirma a importância de sua função religiosa: os chifres serviam
para consagrar os objetos colocados no interior”6, a saber, no interior
desses mesmos cornos, e talvez ainda servissem de proteção mágica
ao Palácio de Cnossos.
As touradas atuais, diga-se de passagem, sobretudo as espanholas,
em que se mata e se devora o touro, simbolizariam uma comunhão
com o animal, uma aquisição de seu mana, de sua enérgueia, já que o
touro, seja o Minotauro, seja o feroz Rudra do Rig Veda, é portador de
um sêmen abundante que fertiliza abundantemente a terra.
Ao culto em favor dos vivos estava indissoluvelmente ligado o
culto em benefício dos mortos. Estes eram inumados e não cremados.
Os cadáveres eram introduzidos pelo alto em salas mortuárias
profundas, providas de oferendas e de objetos da vida comum:
indumentárias, armas, talismãs, vasos e até archotes, o que mostra
que para os minoicos a vida no além continuava muito semelhante
àquela que tiveram neste mundo. As oferendas eram renovadas e até
mesmo sacrifícios eram oferecidos aos mortos, sem que se possa
afirmar com certeza que estes fossem divinizados. É bem verdade
que o túmulo do rei-sacerdote de Cnossos tinha um formato especial:
talhado na rocha, possuía uma cripta de pilares, com o teto pintado
de azul, simbolizando a abóbada celeste; na parte de cima se havia
erguido uma capela muito parecida com os santuários da Grande
Mãe, mas isto não prova a deificação do morto. É mais provável que o
santuário traduzisse apenas o fato de que o culto funerário ao rei
falecido se fizesse sob os auspícios da Deusa-Mãe.
A todos esses cultos presidiam sacerdotisas, hipóstases da Grande
Mãe e não sacerdotes, o que parece normal numa sociedade
essencialmente matrilinear, como já demonstrara Bachofen7, e que
fizera da mulher “divinizada” a maior das divindades de seu Panteão.
Tal preeminência se encontra também em certos cultos anatólios,
principalmente em Éfeso, em torno de Ártemis. As sacerdotisas são
facilmente reconhecíveis pela coloração branca do rosto e pela
indumentária: um bolero aberto no peito combinado com uma saia
comprida, confeccionada de pele, pintada e guarnecida com uma
cauda de animal, ou um vestido longo, normalmente em forma de
sino; pelo uso da tiara e pelo fato de carregarem a bipene. O elemento
masculino apareceu tardiamente no sacerdócio e, assim mesmo,
como réplica da junção de um deus à Grande Mãe. Com exceção do
rei, que é o grande sacerdote do Touro, seu papel é apenas de
assistente e acólito das sacerdotisas. Nada se sabe de concreto a
respeito do recrutamento desses dignitários, de sua posição social e
reputação moral. A única informação certa é que eles eram muito
respeitados na Grécia arcaica e que os gregos recorriam
constantemente à cultura e à ciência dos mesmos.
5
Se pouco se conhece do culto cretense, menos ainda se sabe acerca
de seu Panteão. Uma coisa, todavia, é certa: a religião cretense estava
centrada no feminino, representado pela Grande Mãe, cujas
hipóstases principais, em Creta, foram Reia e a Deusa das Serpentes.
Claro que se poderiam multiplicar os nomes, as projeções e as
hipóstases da Grande Mãe em todas as culturas8, mas esta
permaneceu sempre e invariavelmente como algo acima e além das
apelações: mãe dos deuses, mãe dos homens e de tudo quanto existe
na terra, a Grande Mãe é um arquétipo.
“O traço mais original da religião cretense, escreve Jean Tulard,
parece ter sido sua predileção pelos símbolos. Tal simbolismo atribui
um valor emblemático a todo material sagrado e, como o símbolo é
suficiente para criar a ambiência divina, não se torna necessário que
o deus seja visível. Esse simbolismo de um caráter particular, no
entanto, se casa perfeitamente com um incontestável
antropomorfismo”9. Desse modo, na expressão de Charles Picard, a
religião cretense duplicou as representações icônicas de seus deuses
com o paralelismo dos símbolos.
É assim, exatamente, que se apresenta a Grande Mãe minoica.
Deusa da natureza, reina sobre o mundo animal e vegetal. Sentada
junto à árvore da vida, está normalmente acompanhada de animais,
como serpentes, leões ou de determinadas aves. Armada, e de
capacete, simboliza a deusa da guerra, representação da vida e da
morte. Para reinar sobre a terra, desce do céu sob a forma de pomba,
símbolo da harmonia, da paz e do amor. Domina o céu, a terra, o mar
e os infernos, surgindo, assim, sob as formas de pomba, árvore,
âncora e serpente. E uma coisa é certa: a primazia absoluta das
divindades femininas na ilha de Creta atesta a soberania e a
amplitude do culto da Grande Mãe. Em geral, essas divindades
femininas se apresentam sob a forma de ídolos do tipo esteatopígico
em terracota ou bronze inicialmente de cócoras e depois em pé, com
os braços abertos. As formas exageradas, com seios proeminentes,
flancos largos, traseiro exuberante e umbigo enorme são a própria
imagem da fecundidade. Pouco importa, portanto, que deusas
tipicamente cretenses, como Reia, Hera, Ilítia, Perséfone, Britomártis,
meras transposições da Grande Mãe, tenham sido assimiladas pelos
gregos, com funções, por vezes, diferentes das que exerciam em
Creta, porque um traço comum sempre as prenderam ao velho tema
minoico: a fecundidade.
Hera tornou-se a “mãe dos deuses”, mas teve um culto especial,
como Grande Mãe, na Lacônia, Arcádia e Beócia. Ilítia, sempre ligada
a Hera, tornou-se a deusa dos partos. Perséfone recebeu mãe grega:
Deméter, deusa da vegetação. Britomártis, “a doce virgem”, fez jus a
um pequeno, mas elucidativo mito cretense: perseguida durante
nove meses pelo rei Minos, acabou lançando-se ao mar, onde foi
salva pelas redes dos pescadores, recebendo, por isso mesmo, o
epíteto de Dictnia, “a caçadora com redes”. Assimilada a Ártemis,
tornou-se, como esta, deusa da caça e deusa-Lua, mãe noturna da
vegetação. A grande Reia converteu-se em esposa de Crono.
Mesmo determinados “objetos cultuais”, de que ainda não se falou,
como a pedra sagrada, o pilar, o escudo bilobado, a árvore e certos
animais sagrados, como otouro, aserpente, oleãoe determinadas aves,
considerados por alguns simples fetichismo ou zoolatria, devem ser,
na verdade, interpretados como outras tantas representações das
divindades minoicas e, particularmente, da Grande Mãe.
Os bétilos, por exemplo, caídos do céu, os estalactites e
estalagmites, encontrados nas grutas, são símbolos da presença
divina em todas as culturas, como o Bet-’el, o Betel (Casa de Deus), de
Jacó; a pedra negra de Cibele e aquela encaixada na Caaba, tornandose, portanto, a pedra o substituto do divino. O pilar simboliza, de um
lado, o poder estabilizador das divindades cretenses, susceptível de
substituir a forma humana dos deuses e, de outro, a relação entre os
diversos níveis do universo e o canal por onde circula a energia
cósmica, constituindo-se num centro irradiador dessa mesma
energia. O escudo bilobado, que figura, as mais das vezes, ao lado da
bipene, é a arma passiva, defensiva e protetora, como a Grande Mãe.
A árvore tem uma importância muito grande: traduz a própria deusa
da vegetação, já que representa a vida em perpétua evolução. O touro
é o mais privilegiado animal sagrado de Creta: símbolo da força
genésica, confundiu-se mais tarde com Zeus, que, sob a forma de
touro, raptou Europa, e também com o monstruoso Minotauro. A
serpente é o animal ctônio por excelência: entre suas múltiplas
significações e símbolos, destaquemos, por agora, ser ela uma ponte
entre o mundo de baixo, ctônio, e o mundo de cima, uma guardiã das
sementes, projeção da Terra-mãe. O leão é a encarnação do poder, da
sabedoria e da justiça, e retrata, de certa forma, o rei Minos, cujas
características e virtudes se mencionarão um pouco mais adiante. As
aves possuem também papel relevante, seja como símbolos das
hierofanias, isto é, das aparições divinas, seja como “acompanhantes”
das deusas, destacando-se a pomba, como já se mencionou.
A existência de deuses do sexo masculino na civilização minoica
está mais do que comprovada. O culto ao escudo bilobado, a
importância dos ritos de fecundidade, das hierogamias, do touro e
mesmo do galo mostram claramente a existência de um princípio
masculino em Creta, embora se tenha de admitir que “esses deuses”
eram tão somente divindades associadas à Grande Mãe, como o deus-
galo Velcano, sem lhe terem jamais ameaçado o poder e a soberania.
Trata-se, na realidade, de filhos ou amantes seus. Todo esse feminino
cretense reflete talvez, como quer Bachofen10, uma primitiva e
longínqua matrilinhagem, que se apoia na crença fundamental que
une a mulher às potências geradoras da vida.
Não se quer dizer com isto que a mulher tenha sido o “cabeça do
casal” na célula familiar e que tenha havido em Creta uma
ginecocracia, stricto sensu. Minos é o rei e a história da civilização
minoica não nos revela figura alguma feminina análoga à rainhamãe dos Hititas. Na realidade, nada prova, até o momento, que a
cretense exercesse efetivamente um papel político. Sua
preponderância foi social e religiosa. Longe de estar enclausurada no
gineceu, a mulher participa de todas as atividades da “pólis”:
trabalha, caça, é toureira, diverte-se, ocupa o lugar de honra nos
espetáculos públicos, aliás maravilhosamente bem vestida, enfim
tem e exerce direitos iguais aos dos homens... Religiosamente, a
supremacia da mulher cretense é inegável e óbvia; ela é a sacerdotisa:
os sacerdotes surgiram mais tarde e apenas como acólitos. Afinal, a
augusta divindade de Creta é a Grande Mãe... Não foi por ironia que
Plutarco afirmou que os cretenses chamavam a seu país não de
pátria (de patér, pai), mas de mátria (de máter, mãe). Na ilha de
Minos a mulher não governava, mas reinava.
Os gregos, que tanta influência tiveram da civilização minoica,
esqueceram-se de herdar-lhe a dignidade da mulher!
6
O grande mitologema cretense do rei Minos está
indissoluvelmente ligado ao palácio de Cnossos e a seu labirinto,
bem como ao arquiteto Dédalo, ao Minotauro e ao mito de Teseu e
Ariadne.
Se, do ponto de vista histórico, Minos foi um nome dinasta, que
governou Creta, ao menos como rei suserano de Cnossos,
miticamente a coisa é bem diversa. Filho de Zeus e Europa (que Zeus
raptara sob a forma de Touro) ou do rei cretense Astérion e da
mesma Europa, Minos tinha dois irmãos, Sarpédon e Radamanto,
com os quais disputou o poder sobre Creta, eco evidentemente de
lutas reais pela supremacia de Cnossos sobre Festo e Mália, dois
outros grandes centros políticos e econômicos da Ilha. Minos alegou
que, de direito, Creta lhe pertencia por vontade dos deuses e, para
prová-lo, afirmou que estes lhe concederiam o que bem desejasse.
Um dia, quando sacrificava a Posídon, solicitou ao deus que fizesse
sair um touro do mar, prometendo que lhe sacrificaria, em seguida, o
animal. O deus atendeu-lhe o pedido, o que valeu ao rei o poder, sem
mais contestação por parte de Sarpédon e Radamanto. Minos, no
entanto, dada a beleza extraordinária da rês e desejando conservarlhe a raça, enviou-a para junto de seu rebanho, não cumprindo o
prometido a Posídon. O deus, irritado, enfureceu o animal, o mesmo
que Héracles matou mais tarde (ou foi Teseu?) a pedido do próprio
Minos ou por ordem de Euristeu. A ira divina, todavia, não parou aí,
como se verá. Minos se casou com Pasífae, filha do deus Hélio, o Sol,
da qual teve vários filhos, entre os quais se destacam Glauco,
Androgeu, Fedra e Ariadne. Para vingar-se mais ainda do rei perjuro,
Posídon fez que a esposa de Minos concebesse uma paixão fatal e
irresistível pelo touro. Sem saber como entregar-se ao animal, Pasífae
recorreu às artes de Dédalo, que fabricou uma novilha de bronze tão
perfeita, que conseguiu enganar o animal. A rainha colocou-se
dentro do simulacro e concebeu do touro um ser monstruoso, metade
homem, metade touro, o Minotauro. Esse Dédalo era ateniense, da
família real de Cécrops, e foi o mais famoso artista universal,
arquiteto, escultor e inventor consumado. É a ele que se atribuíam as
mais notáveis obras de arte da época arcaica, mesmo aquelas de
caráter mítico, como as estátuas animadas de que fala Platão no
Mênon. Mestre de seu sobrinho Talos, começou a invejar-lhe o
talento e no dia em que este, inspirando-se na queixada de uma
serpente, criou a serra, Dédalo o lançou do alto da Acrópole. A morte
do jovem artista provocou o exílio do tio na ilha de Creta. Acolhido
por Minos, tornou-se o arquiteto oficial do rei e, a pedido deste,
construiu o célebre Labirinto, o grandioso palácio de Cnossos, com
um emaranhado tal de quartos, salas e corredores, que somente
Dédalo seria capaz, lá entrando, de encontrar o caminho de volta.
Pois bem, foi nesse labirinto que Minos colocou o horrendo
Minotauro, que era, por sinal, alimentado com carne humana.
Ora, se o rei já estava profundamente agastado com seu arquiteto,
por haver construído o simulacro da novilha, estratagema através do
qual sua mulher fora possuída pelo Touro, ficou colérico ao saber
que Dédalo havia também planejado, com Ariadne, a libertação de
Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas. É que, com a morte de Androgeu,
filho de Minos, morte essa atribuída indiretamente a Egeu, que,
invejoso das vitórias do jovem cretense nos jogos por aquele
mandados celebrar em Atenas, enviara o atleta para combater o
Touro de Maratona, onde perecera, eclodiu uma guerra longa e
penosa entre Creta e Atenas. Como a luta se prolongasse e uma peste
(pedido de Minos a Zeus) assolasse a cidade, Minos concordou em
retirar-se, desde que, de nove em nove anos, lhe fossem enviados sete
rapazes e sete moças, que seriam lançados no Labirinto, para
servirem de pasto ao Minotauro. Teseu se prontificou a seguir para
Creta com as outras treze vítimas, porque, sendo já a terceira vez em
que se ia pagar o terrível tributo ao rei de Creta, os atenienses
começavam a irritar-se contra seu rei. Lá chegando, foi instruído por
Ariadne, que por ele se apaixonara, como se aproximar do monstro e
feri-lo. Deu-lhe ainda a jovem princesa, a conselho de Dédalo, um fio
condutor, para que, após a vitória, pudesse sair da formidável teia de
caminhos tortuosos de que era constituído o Labirinto. Livre deste e
do Minotauro, Teseu fugiu com seus companheiros, levando consigo
Ariadne, cujo destino será estudado, quando se tratar do mito de
Dioniso e sobretudo do mito dos heróis.
Louco de ódio pelo acontecido, Minos descarregou sua ira sobre
Dédalo e o prendeu no Labirinto com o filho Ícaro, que tivera de uma
escrava do palácio, chamada Náucrates. Dédalo, todavia, facilmente
encontrou o caminho da saída e, tendo engenhosamente fabricado
para si e para o filho dois pares de asas de penas, presas aos ombros
com cera, voou pelo vasto céu, em companhiade Ícaro, a quem
recomendara que não voasse muito alto, porque o sol derreteria a
cera, nem muito baixo, porque a umidade tornaria as penas assaz
pesadas. O menino, no entanto, não resistindo ao impulso de se
aproximar do céu, subiu demasiadamente. Ao chegar perto do sol, a
cera fundiu-se, destacaram-se as penas e ele caiu no mar Egeu, que,
daí por diante, passou a chamar-se Mar de Ícaro.
Este episódio tão belo foi narrado vibrante e poeticamente pelo
grande vate latino Públio Ovídio Nasão (43 a.C.-18 d.C.) em suas
Metamorfoses, 8,183-235.
Dédalo chegou são e salvo a Cumas, cidade grega do sul da Itália.
Perseguido por Minos, fugiu para a Sicília, onde o rei Cócalo o
acolheu. O rei de Creta, porém, foi-lhe ao encalço. Pressionado,
Cócalo prometeu entregar-lhe o engenhoso arquiteto, mas,
secretamente, encarregou suas filhas de matarem o poderoso Minos,
durante o banho, com água fervendo, ou, segundo uma variante,
Cócalo substituiu a água do banho por pez fervente, talvez por
instigação do próprio Dédalo, que havia imaginado um sistema de
tubos, em que a água era repentinamente substituída por uma
substância incandescente. Foi este, miticamente, o fim trágico do
grande rei de Creta.
A interpretação dessa cadeia de mitos, já bastante enriquecidos
pelo sincretismo creto-micênico, não parece muito difícil.
Minos é “um rei sacerdote”, para usar da expressão de Arthur
Evans, ou seja, é a personificação do deus masculino da fecundidade.
Identifica-se ainda com o senhor do raio e da chuva, associando-se à
Deusa-Mãe, que personifica a Terra. A influência egípcia parece
clara: encarnação do Touro, Minos lembra o touro Ápis, de Mênfis:
sua união com Pasífae e o nascimento do Minotauro evocam as
tríadas egípcias.
Minos não é o representante da divindade na terra, mas seu filho.
Filho piedoso e submisso: de nove em nove anos, o rei se recolhia no
mais temível e intrincado dos labirintos, no monte Iucta, para uma
“entrevista secreta” com seu pai Zeus, a quem prestava contas de
“suas atitudes” e de seu governo. Se descontente com o rei, este
permanecia no labirinto; se satisfeito, Zeus o reinvestia no poder
para mais um período de nove anos. Historicamente, o tributo
novênio cobrado a Atenas parece refletir, desde o Minoico Médio, ~
2100-1580, a penetração e o domínio cretense na costa oriental do
Peloponeso e na Arcádia, onde se instala a dinastia de Dânao; na
Lacônia, dominada pela de Lélex; na Beócia, conquistada por Cadmo,
e na Ática, onde os agentes de Minos cobravam um tributo, em
espécie ou em homens. Do ponto de vista religioso, no entanto, “o
sacrifício” de catorze atenienses ao Minotauro simbolizaria “um
estado psíquico, a dominação perversa de Minos, mas, se o monstro é
filho de Pasífae, a rainha cretense estaria também na raiz da
perversidade do rei: ela refletiria um amor culpado, um desejo
injusto, uma dominação indevida e a falta, reprimidos no
inconsciente do labirinto. Os sacrifícios ao monstro são outras tantas
mentiras e subterfúgios para adormecê-lo e outras tantas faltas que
se acumulam. O fio de Ariadne, que permite a Teseu voltar à luz,
representa o auxílio espiritual necessário para vencer a iniquidade.
No seu conjunto, o mito do Minotauro simboliza a luta espiritual
contra a repressão”11, uma espécie de luta entre Antígona e Creonte!
O retiro de Minos, de nove em nove anos, no labirinto do monte
Iucta, é uma clara alusão ao processo iniciático, comum a reis e
sacerdotes, periodicamente. A união de Teseu com Ariadne é um
hieròs gámos, um casamento sagrado, com vistas à fecundidade e à
fertilidade da terra.
Dédalo e Ícaro representam também algo de sério...
Dédalo é a engenhosidade, o talento, a sutileza. Construiu tanto o
labirinto, onde a pessoa se perde, quanto as asas artificiais de Ícaro,
que lhe permitiram escapar e voar, mas que lhe causaram a ruína e a
morte.
Talvez se deva concordar com Paul Diel em que Dédalo, construtor
do labirinto, símbolo do inconsciente, representaria, “em estilo
moderno, o tecnocrata abusivo, o intelecto pervertido, o pensamento
afetivamente cego, o qual, ao perder sua lucidez, torna-se imaginação
exaltada e prisioneiro de sua própria construção, o inconsciente”12.
Quanto a Ícaro, ele é o próprio símbolo da hýbris, da démesure, do
descomedimento. Apesar da admoestação paterna, para que
guardasse um meio-termo, “o centro”, entre as ondas do mar e os
raios do sol, o menino insensato ultrapassou o métron, foi além de si
mesmo e se destruiu. Ícaro é o símbolo da temeridade, da volúpia
“das alturas”; em síntese: a personificação da megalomania.
Se, na verdade, as asas são o símbolo do deslocamento, da
libertação, da desmaterialização, é preciso ter em mente que asas não
se colocam apenas, mas se adquirem ao preço de longa e não raro
perigosa educação iniciática e catártica. O erro grave de Ícaro foi a
ultrapassagem, sem o necessário gnôthi s’autón, o indispensável
“conhece-te a ti mesmo”.
Para fechar este capítulo, uma derradeira palavra sobre a ilha de
Minos. A influência cretense sobre a Grécia foi grande e benéfica.
Aos minoicos devem os gregos aqueus uma parte de suas obras de
arte e de suas técnicas, e do ângulo em que a civilização cretense nos
interessa no momento, isto é, o religioso, a presença de Creta foi
muito importante para o desenvolvimento da religião helênica.
Mircea Eliade é taxativo: “Com efeito, a cultura e a religião helênicas
são resultado da simbiose entre o substrato mediterrâneo e os
conquistadores indo-europeus, descidos do Norte”13.
A influência religiosa minoica não se restringe apenas à
“importação” pura e simples de deuses, como alguns já citados,
Velcano, Britomártis, Reia, Ilítia, Perséfone, e ao salutar sincretismo
que se seguiu, mas também, e isto é importante, os gregos devem a
Creta uma parte do mito de Zeus, algumas modalidades de jogos, os
ritos agrários e certamente o culto de Deméter. E, se a capela cretomicênica, com sua tríplice divisão interna, teve seu prolongamento
no santuário grego, o culto cretense do lar há de ter continuidade nos
palácios micênicos.
No que tange especificamente a Deméter, as origens de seu culto
são atestadas em Creta e o santuário de Elêusis data da época
micênica.
O sueco Martin P. Nilsson diz que “certas disposições,
arquitetônicas ou de outra espécie, dos templos de mistérios
clássicos, parecem derivar, mais ou menos, das instalações
constatadas na Creta pré-helênica”14.
É possível que Nilsson não tenha exagerado, ao afirmar que de
quatro grandes centros religiosos da Hélade, Delos, Delfos, Elêusis e
Olímpia, os três primeiros foram herdados dos micênicos, que, por
sua vez, os receberam dos cretenses.
Sem omitir, nem tampouco esquecer o quanto a Hélade deve ao
Egito e à Ásia Menor em matéria de religião, cabe, no entanto, a Creta
um lugar de destaque nesse quadro de influências. Bastaria, para
confirmá-lo, lembrar que a rainha do Hades grego é a cretense
Perséfone e que, dos três juízes dos mortos, dois, Radamanto e Minos,
tiveram por berço a ilha de Minos...
Talvez da Grécia em relação a Creta se pudesse repetir, mutatis
mutandis, o que disse o extraordinário poeta latino Quinto Horácio
Flaco (65-8 a.C.) de Roma em relação à Grécia:
Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit
agresti Latio (Epist., 2, 1, 157).
– A Grécia conquistada conquistou seu feroz vencedor
e introduziu suas artes no Lácio inculto.
É tempo, porém, de voltarmos à Hélade. Temos um encontro
marcado com os aqueus.
1. EVANS, Arthur. The Palace of Minos at Cnossos. 6 vols. London: Oxford, 1921-1936.
2. Chama-se Linear B a escrita silábica creto-micênica, derivada certamente da Linear A e
elaborada pelos aqueus entre 1450-1400, como veículo de comunicação entre os gregos
aqueus e os cretenses de Cnossos, uma vez que, em relação a Creta, somente na Cidade de
Minos se usava esse tipo de escrita. O importante é que a língua das tabuinhas de argila
endurecidas pelos incêndios, que devoraram os grandes palácios aqueus no continente e
Cnossos, é um dialeto aqueu arcaico, muito semelhante ao dialeto homérico da Ilíada e da
Odisseia. Lamentavelmente as tabuinhas de argila de Linear B encontradas em Cnossos,
Micenas e, de modo particular, em Pilos, traduzem numa linguagem fria tão somente
documentos administrativos e comerciais, inventários, listas de funcionários, de sacerdotes
e alguns nomes de deuses. Nenhum texto literário, histórico, religioso ou jurídico figura na
Linear B.
3. Veja-se, a esse respeito, FAURE, P. Spéléologie crétoise et humanisme. In: Bulletin de
l’Association Guillaume Budé. Paris: 1958, p. 27-50.
4. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont,
Jupiter, 1982, p. 554.
5. DIODORO SÍCULO (séc. I d.C.). Biblioteca histórica, 73,3.
6. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 163.
7. BACHOFEN, Johann Jakob. Das Mutterrecht. Stuttgart: Krais und Hoffmann, Erste
Auflage, 1975, p. 112ss. O Autor usa as formas patriarcal e matriarcal, que foram
substituídas por patrilinear e matrilinear.
8. Otto von EISSFELDT, em Éléments orientaux dans la religion grecque ancienne (Paris:
PUF, 1960, c. VII, “Aspects du culte et de la Légende de la Grande Mère dans le Monde Grec”),
demonstrou que, se em Creta a hipóstase da Grande Mãe é particularmente Reia, e se esta,
na Grécia, com o sincretismo creto-micênico, tornou-se apenas “atriz de um drama
mitológico”; se a Geia de Hesíodo é, em última análise, a Terra cosmogônica, enquanto
Deméter é a Terra cultivada, onde estaria a Grande Mãe? Estaria num arquétipo, acima de
nomes, de hipóstases e de sincretismos, mas para cuja composição muito concorreu a
Grande Mãe frígia, Cibele, que, se não teve muita projeção na Grécia arcaica, foi a Grande
Mãe (Magna Mater) do Império Romano, ao menos a partir de 204 a.C., quando o Senado
mandou buscar a pedra negra que simbolizava a deusa.
9. TULARD, Jean. Histoire de la Crète. Paris: PUF, 1962, p. 50-51.
10. BACHOFEN, Johann Jakob. Op. cit., p. 123ss.
11. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 635.
12. DIEL, Paul. Citado por J. CHEVALIER & A. GHEERBRANT. Op. cit., p. 345.
13. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 158.
14. NILSSON, Martin P. The Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion.
Lund, 1950, p. 142.
CAPÍTULO V
Os Aqueus e a Civilização Micênica:
a maldição dos Atridas
1
Por volta de 1600-1580 a.C., a Hélade recebe nova onda de
invasores indo-europeus: trata-se dos aqueus, nome genérico que
Homero, logo nos dois primeiros versos da Ilíada, estendeu a todos os
gregos que lutaram em Troia. Embora pouco numerosos, esses novos
invasores eram aguerridos e rapidamente conquistaram o
Peloponeso, empurrando os jônios para a costa asiática, onde se
instalaram à margem do golfo de Esmirna. Na Grécia continental, os
jônios permaneceram, ao que parece, apenas na Ática, na ilha de
Eubeia, em Epidauro e Pilos, de onde, mais tarde, sairiam os nelidas
(nome proveniente de Neleús, pai de Nestor) para colonizarem a
Jônia. Falavam um dialeto grego muito semelhante ao jônico, o que
pressupõe um habitat comum para jônios e aqueus, ao longo de sua
lenta peregrinação em direção à Grécia.
Teria sido por essa mesma época que também chegaram à pátria
de Sófocles os chamados eólios? Ou seriam esses últimos tão somente
um “ramo” dos aqueus, que ocuparam a Beócia e a Tessália?
Seja como for, o mapa étnico da Hélade, à época aqueia, ~1580-1100
a.C., está “provisoriamente” montado: o Peloponeso, ocupado pelos
aqueus; os jônios, encurralados na Ática e na Eubeia; os eólios
dominando a Tessália e a Beócia.
2
Como se viu no capítulo anterior, os aqueus, desde ~ 1450 a.C., são
os senhores absolutos de Creta, sobretudo após a destruição, em ~
1550 a.C., dos palácios de Festo, Háguia Tríada e Tilisso. É bem
verdade que também o palácio de Cnossos sucumbiu, devorado por
um incêndio, por volta de 1400 a.C., mas ainda se ignoram as causas
de tamanho desastre. O palácio foi incendiado e destruído em
consequência de uma revolta popular contra o domínio aqueu ou por
um terremoto? Até o momento nada se pode afirmar com certeza. O
fato em si não importa muito: os aqueus, de ~ 1450 a ~ 1100 a.C., serão
os senhores de Creta. Dessa fusão nascerá a civilização micênica,
assim denominada porque teve por centro principal o gigantesco
Palácio de Micenas, na Argólida, e durante os dois séculos seguintes a
civilização minoica, ou, melhor dizendo, já agora a civilização cretomicênica, brilhará intensamente na Grécia continental.
Após as escavações realizadas sobretudo em Tirinto e Micenas por
Heinrich Schliemann (1822-1890), continuadas mais tarde, entre
outros, pelos arqueólogos gregos Stamatákis, Tsúntas, Keramápullos,
Papadimitríu e pelo britânico Wace, abriram-se novas perspectivas
para uma melhor compreensão do mundo grego arcaico e de sua
civilização.
As fontes básicas para um estudo da civilização micênica são a
arqueologia e os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia. No tocante a
estes últimos, como “fonte história”, é preciso levar em consideração
que Homero é antes de tudo um poeta genial e que a obra de arte
possui suas exigências internas, não se coadunando muitas vezes
com relatos históricos. Além do mais, os poemas homéricos foram
“compostos” ou ao menos reunidos, após existirem como tradição
oral, sujeitos portanto a inúmeras alterações, vários séculos após os
acontecimentos neles relatados. Fatores, aliás, que levaram o
competente e sério Denys Page a ressaltar, talvez com certo exagero,
que os documentos escritos no alfabeto Linear B demonstram que “os
poemas homéricos preservaram muito pouco do verdadeiro quadro
do passado micênico”1. Tomado em bloco, Homero tem em seus
poemas bastante de micênico! Com as necessárias precauções, isto
sim, é possível estabelecer, partindo-se do II canto da Ilíada, na parte
relativa ao Catálogo das Naus, em que o maior dos poetas épicos
rememora os tempos heroicos da Guerra de Troia, a dimensão do
mundo aqueu, que se estende, ao norte, desde a Tessália até o extremo
sul do Peloponeso, abrangendo, além de Creta, várias outras ilhas,
como Ítaca, Egina, Salamina, Eubeia, Rodes e Chipre. Não se trata,
evidentemente, de um império, mas de vários reinos, alguns
territorialmente diminutos, mas independentes entre si, preludiando
já no século XVI a.C. o que seria a Grécia clássica, uma Grécia
fragmentada em cidades-estados, não raro antagônicas e que
dificilmente se congregam até mesmo contra o inimigo comum,
como aconteceu nas guerras greco-pérsicas. Pois bem, esses reinos,
pequenos e grandes, cuja hegemonia parece ter sido de Micenas, estão
todos centralizados em grandes palácios, como Pilos, Micenas,
Esparta, Tebas... São, na realidade, independentes, mas ligados por
interesses comuns. Em sua ânsia pelo poder, o que exige sua coalizão,
aceitam, se bem que não muito de bom grado, a autoridade do rei
mais importante e poderoso entre eles, como se pode ver na Ilíada.
Agamêmnon, rei de Micenas, logo no início do poema, I,7, é chamado
ánaks andrôn, o rei dos heróis, o que deixa claro ser ele o chefe
supremo dos reis aqueus confederados contra Troia, embora isto não
impeça que o comandante-em-chefe tenha por vezes que fazer valer
sua autoridade contra os recalcitrantes heróis aqueus. Aliás, os
deuses homéricos, como se verá, agirão exatamente assim com Zeus,
o deus supremo do Olimpo! Os deuses homéricos se constituem, não
raro, como simples projeção social do mundo heroico dos micênicos.
Dentre os grandes palácios que fizeram da Grécia do século XV ao
XII a.C. uma soberba fortaleza, destaca-se o monumental palácio de
Micenas, “um verdadeiro ninho de águias” numa acrópole, que
culmina a 278 metros de altura. Trata-se, no conjunto, de um recinto
de novecentos metros de perímetro, com poderosas fortificações de
muros ciclópicos, aberto a oeste pela Porta dos Leões, encaixada em
sólido baluarte, e, ao norte, por uma saída secreta. No interior desse
formidável bastião ficava o palácio, cuja arquitetura, como a de suas
réplicas em Tirinto e Pilos, é radicalmente diversa da de Cnossos. Ao
labirinto minoico, Micenas opõe um conjunto rigorosamente
ordenado em três partes: uma vasta sala do trono, um santuário e,
como elemento básico, um mégaron (grande salão). Também este é
constituído de três compartimentos: um vestíbulo exterior, um
pródomos ou vestíbulo interior e o mégaron propriamente dito, com
uma lareira no centro.
O palácio servia apenas de residência para o rei e, segundo se crê,
para alguns dignitários. A verdadeira aglomeração humana ficava
numa cidade baixa, a sudoeste da fortaleza.
3
Com base na Linear B, nos poemas homéricos e na arqueologia, é
possível delinear um panteão micênico, embora se tenha de proceder
com grande prudência. Nas tabuinhas de argila da Linear B são
pouquíssimas as informações acerca dos deuses: estes se reduzem a
poucos nomes, a meras informações onomásticas. A Ilíada e a
Odisseia, elaboradas a partir do século IX a.C., têm que ser
manuseadas com muita cautela, porque, se de um lado estampam
uma “mitologia remoçada de quatro a cinco séculos”, em relação à
civilização creto-micênica, de outro, sofreram indubitavelmente
adições posteriores. Quanto aos monumentos artísticos, estes são
sempre objeto de interpretações divergentes.
Para um estudo da religião desse período há que se partir de uma
evidência: houve, sobretudo após o domínio de Creta pelos aqueus,
um sincretismo religioso creto-micênico.
De seu mundo indo-europeu os gregos trouxeram para a Hélade
um tipo de religião essencialmente celeste, urânica, olímpica, com
nítido predomínio do masculino, que irá se encontrar com as
divindades anatólias de Creta, de caráter ctônio e agrícola, e portanto
de feição tipicamente feminina. Temos, pois, de um lado, um panteão
masculino (patrilinhagem), de outro, um panteão, onde as deusas
superam de longe (matrilinhagem) aos deuses e em que uma
divindade matronal, a Terra-Mãe, a Grande Mãe, ocupa o
primeiríssimo posto, dispensando a vida em todas as suas
modalidades: fertilidade, fecundidade, eternidade. Desses dois tipos
de religiosidade, desse sincretismo, nasceu a religião micênica. Digase, de passagem, que esse encontro do masculinohelênico com o
femininominoico há de fazer da religião posterior grega um
equilíbrio, um meio-termo, muito a gosto da “paideia” grega
posterior, entre a patrilinhagem e a matrilinhagem.
Outras influências, particularmente egípcias, muito importantes
para os hábitos funerários, enriqueceram ainda mais o patrimônio
religioso creto-micênico.
Vejamos mais de perto esse sincretismo. As tabuinhas de Pilos e
Creta estampam alguns nomes de deuses e deusas2, por onde se pode
observar que “a fusão”, por vezes, se realizou entre elementos muito
heterogêneos.
Zeus se apresenta com uma equivalência feminina Dia (Py. 28),
que não se pode identificar com a cretense Hera, a qual já aparece
associada a Zeus, como deusa da fertilidade, em algumas tabuinhas
de Cnossos (Kn. 02) e de Pilos (Py. 172). Ventris e
Chadwick3pensaram ser Dia uma hipóstase da Magna Mater, a
Grande Mãe cretense, isto é, Reia, que Píndaro4saudou com o título
de @En a*ndrw~~n e@n qew~~n gevnor, “mãe única dos deuses e dos
homens”, passagem aliás “mal compreendida e mal traduzida”5na
excelente edição Les Belles Lettres.
De outro lado, o mesmo Zeus, sob denominação desconhecida, se
apresenta em Creta, muito antes do sincretismo de que estamos
falando, sob a forma de um jovem belo e sadio, cuja origem cretooriental, independente do Zeus grego, é defendida por Charles
Picard6. Trata-se do Zeus cretágeno, isto é, originário de Creta e que
vai surgir em Roma com o nome de Veiouis, Véjove, o Júpiter
adolescente de cabelos anelados. Além do mais, a ligação de Zeus
com a ilha de Creta, após o sincretismo, sempre foi muito estreita.
Para evitar que o pai Crono lhe devorasse também o caçula, Reia,
grávida de Zeus, fugiu para a ilha de Minos e lá, no monte Dicta ou
Ida, deu à luz secretamente o filho, que foi amamentado pela cabra
cretense Amalteia.
Apolo aparece apenas com um de seus epítetos clássicos, Peã (Kn.
52), o deus protetor dos guerreiros. Na mesma tabuinha encontramse também Atená, Posídon, Hermes, Ártemis e Eniálio, o belicoso,
cujas funções serão mais tarde inteiramente assimiladas por Ares,
cujo nome não está claramente determinado na Linear B. A cretense
Ilítia, que posteriormente se tornará hipóstase de Hera, como deusa
dos partos, e Deméter, “a terra cultivada”, a Grande Mãe, lá estão
inteiras (Py. 114). Dioniso (Py. 10) é outra presença importante e
garantida e cujo culto já era muito difundido em Creta, bem antes do
aparecimento do deus na Ilíada de Homero.
Causa realmente estranheza a ausência de nomes de deuses
autenticamente cretenses, como Reia, Britomártis ou Dictina,
Velcano, o deus-galo, e Perséfone.
Como se vê, com a inestimável cooperação cretense, o futuro
panteão grego da época clássica, se bem que terrivelmente
miscigenado, já estava pronto no século XIV a.C. Falou-se em
cooperação cretense porque, dentre os deuses citados, são
considerados como minoicos (posto que ainda se discuta a respeito
de um ou outro) os seguintes: Atená, Hera, Ilítia, Perséfone, Reia; os
secundários Eniálio, Velcano, Britomártis ou Dictina e talvez
Hermes. Se Dioniso, Ártemis, Apolo e Afrodite são seguramente
divindades asiáticas, sobra muito pouco de autenticamente indoeuropeu entre os futuros doze grandes do Olimpo, pois que, acerca da
origem de Hefesto, não se chegou ainda a uma conclusão
convincente, nem mesmo do ponto de vista etimológico (V.
Dicionário mítico-etimológico).
É de notar-se, todavia, como já se disse, que o sincretismo cretomicênico fez que as divindades helênicas tivessem um caráter
essencialmente composto, miscigenado e heterogêneo, o que explica
a multiplicidade de funções e um entrelaçamento de mitos em
relação a uma mesma divindade.
O Zeus indo-europeu, deus da luz, segundo a própria etimologia da
palavra, deus da abóbada luminosa do céu, do raio e dos trovões, irá
fundir-se com o jovem “Zeus” cretense, apresentando-se, por isso
mesmo, também como um adolescente imberbe, deus dos mistérios
do monte Ida, deus da fertilidade e deus ctônio, o Zeùs Khthónios de
que fala Hesíodo. Ora, o Zeus barbudo e majestoso do Olimpo, no
esplendor da idade, é inteiramente diverso do jovem deus dos
mistérios cretenses e, no entanto, se fundiram numa única
personalidade.
Hermes, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, é a divindade
por excelência da sociedade campônia aqueia. Pois bem, enriquecido
pelo mito cretense, Hermes tornou-se mais que nunca o
“companheiro do homem”. Deus da pedra sepulcral, do umbral, do
hérmaion e das “hermas”, guardião dos caminhos, protetor dos
viajantes – cada transeunte lançava uma pedra, formando um
hérmaion, literalmente, lucro inesperado, descoberta feliz,
proporcionados por Hermes – e, assim, para se obterem “bons lucros”
ou agradecer o recebido, se formavam verdadeiros montes de pedra à
beira dos caminhos. Possuidor de um bastão mágico, o caduceu, com
que tangia as almas para a outra vida, tornou-se o deus psicopompo,
quer dizer, condutor de almas, sem o que estas não poderiam
alcançar a eternidade e felicidade que a religião cretense prometia
aos iniciados. Deus dos pastores, cujo mito estava ligado ao carneiro
de velo de ouro, “verdadeiro talismã das riquezas aqueias e garantia
de fecundidade”, Hermes transformou-se no mensageiro dos
imortais do Olimpo, em deus psicopompo e em deus das ciências
ocultas.
Quanto às divindades femininas aqueias, todas elas são herdeiras
de deusas cretenses. Hera, a Senhora, também uma pótnia therôn, a
“senhora das feras”, uma deusa da fertilidade, na civilização
micênica converter-se-á na protetora de uma instituição aqueia
fundamental, o casamento.
Atená, genuinamente cretense, está, em princípio, associada à
árvore e à serpente, como deusa da vegetação. Na civilização aqueia é
uma virgem guerreira, como aparece, em Micenas, numa medalha de
estuque pintado, em que a deusa está com um enorme escudo, que
lhe cobre todo o corpo, e rodeada de deuses que lhe prestam
homenagem. Atená aqueia é, por excelência, a protetora das
acrópoles em que se erguem os palácios micênicos, como mais tarde
será a senhora da Akrópolis de Atenas. Seu nome duplo, Palas Atená,
Atená defensora, mostra bem o resultado do sincretismo.
A dupla formada por Deméter e Core é uma junção muito
frequente em Creta, de uma deusa mãe e de uma jovem (Core
significa jovem) filha. O rapto de Core por Plutão, rei do Hades, e a
busca da filha pela mãe relembram as cenas de rapto muito
frequentes no culto cretense da vegetação. A junção, todavia, de Core,
a semente de trigo lançada no seio da Mãe-Terra, Deméter, com a
lúgubre Perséfone, rainha do Hades, é deveras estranha, mas ambas,
mercê do sincretismo, constituem a mesma pessoa divina.
Seria inútil multiplicar os exemplos. Os deuses aqueus, por força
da herança egeia, tornaram-se semigregos e semicretenses.
Pierre Lévêque mostra de modo preciso o resultado dessa fusão:
“Com um mesmo nome grego (Zeus, Deméter), ou com um nome
minoico (Hera, Atená) e, inclusive, com nome duplo (Core e
Perséfone, Palas e Atená), os deuses aqueus têm uma personalidade
complexa, híbrida, em que se fundiram elementos heterogêneos e, às
vezes, contraditórios. Não houve uma justaposição de duas séries de
deuses em um panteão único, mas sínteses estranhas propiciaram a
criação de divindades que não eram nem indo-europeias, nem
minoicas, mas sim aquéias”7. Destarte, para um estudo em
profundidade dos deuses aqueus, é mister separar o que é indoeuropeu do que é cretense e oriental. Seja como for, desde o século
XIV a.C., a futura religião grega já estava delineada e inteiramente
distinta de suas coirmãs védica, latina e germânica, que puderam
conservar melhor o patrimônio comum indo-europeu, sobretudo a
organização tripartite e trifuncional da hierarquia divina, uma vez
que, por motivos de ordem política e cultural, não se deixaram
contaminar tanto por elementos estranhos ao mundo indo-europeu.
4
Se a influência cretense na elaboração do panteão helênico foi
grande e séria, mais destacada ainda foi a sua influência no que se
refere ao culto dos deuses e dos mortos.
Como acentua o supracitado Pierre Lévêque, os sacerdotes da ilha
de Minos são constantemente citados na Linear B e sua missão mais
importante era a de consagrar as oferendas, fossem elas as primícias
das colheitas ou os sacrifícios sangrentos. Num texto de Pilos faz-se
menção de trigo, vinho, um touro, queijos, mel, quatro cabras, azeite,
farinha e duas peles de cordeiro que deveriam ser sacrificados aos
deuses. As peles fazem certamente parte da vestimenta litúrgica de
sacerdotes de categoria inferior, denominados diphtheráporoi, quer
dizer, “portadores de uma indumentária de pele”, como se pode ver
no sarcófago de Háguia Tríada.
Os locais de culto, como em Creta, estão inteiramente ligados à
vida familiar. No santuário palatino de Micenas encontrou-se uma
pequena escultura em marfim, representando as “duas deusas”,
Deméter e Core, com o “menino divino”, Triptólemo, a seus pés. No de
Ásina, na Argólida, descobriram-se várias estatuetas em terracota.
Nas casas particulares havia sempre um local destinado ao culto: era
a lareira, centro do culto doméstico e que nos grandes palácios, como
Micenas e Tirinto, ocupava o centro do Mégaron. O altar,
propriamente dito, em geral oco, modelo portanto do bóthros grego
(fenda, buraco onde se derramava o sangue das vítimas), era erguido
normalmente no pátio do palácio, como se pode observar em Tirinto.
Nas escavações realizadas em Micenas descobriu-se grande
quantidade de estatuetas, a maioria em terracota. Trata-se, em sua
quase totalidade, de ídolos femininos vestidos à maneira cretense; os
poucos masculinos encontrados representam um jovem deus
despido. Pois bem, essas estatuetas, muito semelhantes às cretenses,
representam, na realidade, certas divindades ligadas à Terra-Mãe,
mas têm, segundo se acredita, que ser interpretadas como oferenda
aos deuses e não como objeto de culto, o que só aparecerá no século
seguinte.
Também os hábitos funerários e o culto dos mortos são
relativamente bem conhecidos na época micênica, graças a
numerosos túmulos descobertos pelos arqueólogos.
As sepulturas cretenses e, posteriormente, as micênicas, embora
tenham sofrido algumas modificações e transformações no decurso
do segundo milênio, não só quanto ao local em que eram enterrados
os mortos, mas sobretudo quanto à forma das mesmas, possuem uma
característica que permaneceu inalterável: os corpos eram inumados
e não incinerados. Durante o Heládico Médio, ~ 1950-1580 a.C., os
cemitérios eram construídos dentro do perímetro urbano, junto às
habitações e as tumbas tinham a forma de um cesto e normalmente
não se depositavam oferendas para os mortos. No Heládico Recente, ~
1580-1100 a.C., surgem as necrópoles separadas das aglomerações
humanas e construídas a oeste das mesmas, certamente por
influência do Egito, que considerava o Ocidente como o mundo dos
mortos. As covas funerárias, a princípio, simples fossas, à imitação
das sepulturas em forma de cesto, evoluíram para um formato de
habitação, um túmulo, que acabou por dar origem aos thóloi
(rotundas, pequenas construções de forma abobadada). Os corpos
eram colocados em ataúdes, junto aos quais se depositava um rico
mobiliário: máscaras, armas luxuosas, vasos, joias... Em Micenas
encontraram-se oficialmente nove thóloi, aos quais se deram nomes
convencionais, como o Túmulo de Clitemnestra, o Túmulo de Egisto...,
destacando-se entre todos o Túmulo de Agamêmnon, o chamado
Tesouro do Atreu, que representa, sem dúvida, a mais bem
construída e a mais bela sala abobadada da Antiguidade. Curioso
para a época é um túmulo encontrado em Mideia, na Argólida, sem
vestígio de sepultamento. Trata-se, ao que tudo indica, de um
cenotáfio, “túmulo vazio”, construído para “atrair” a alma de pessoas,
em tese, falecidas fora da pátria e plausivelmente não sepultadas ou
que não houvessem recebido as devidas honras fúnebres, uma vez
que o eídolon só poderia ter paz e penetrar no Hades quando o corpo
descesse ritualmente ao seio da Mãe-Terra. O cenotáfio tinha, pois,
por escopo, desde a mais alta Antiguidade, substituir
simbolicamente a real sepultura, condição suficiente para descanso
da alma, o que demonstrava também a crença dos aqueus na
sobrevivência da mesma. Se é verdade que todos os mortos tinham
direito a um culto, existem aqueles que, por circunstâncias especiais,
fazem jus a honras peculiares e a um culto singular. Trata-se dos
heróis, assunto que será bem desenvolvido em nosso Volume III. Para
o momento, basta acentuar que o herói, normalmente “senhor” de
um palácio, como na época micênica, goza na outra vida de um
destino particular. Em se tratando de um culto a antepassados,
outorgado pela família reinante, a ele deve associar-se toda a
comunidade, porque o herói acaba por tornar-se um intermediário
entre os homens e os deuses. Na época micênica, esse culto foi muito
difundido e praticado, ultrapassando mesmo a civilização que, na
Grécia, viu seu nascimento.
Dentre todos os heróis micênicos vamos destacar, por ora, apenas
Agamêmnon, o grande rei de Micenas e que, como o rei de Creta,
Minos, parece ter sido um nome dinasta. O que dá relevo ao “rei dos
reis” não é apenas o fato de Agamêmnon ter sido o chefe dos
exércitos gregos congregados contra Troia, mas sobretudo a
hamartía que pesava sobre o génos dos atridas.
Antes de entrarmos no mito que transformou o gigantesco palácio
de Micenas num “alcáçar de crimes e horrores”, uma palavra sobre
hamartía e génos.
Sem desejar entrar em longas discussões de ordem etimológica,
linguística e literária acerca do vasto campo semântico de hamartía,
que, na realidade, tem várias “conotações” no curso do pensamento
grego, porque não é aqui o local apropriado, é melhor começar pelo
verbo grego hamartánein que já aparece em diversas passagens da
Ilíada, V, 287; VIII, 311; XI, 233; XIII, 518 e 605; XXII, 279... onde
significa mais comumente errar o alvo. Dos trágicos a Aristóteles,
apesar da ampliação do campo semântico do verbo, também este
sentido de errar o alvo é encontrado, alargado com o de errar, errar o
caminho, perder-se, cometer uma falta... Donde se pode concluir que
o vocábulo hamartía, que é um deverbal de hamartánein, nunca
poderá ser traduzido até os Septuaginta por “pecado”. Diga-se, aliás,
de passagem, que também o latim peccatum, fonte de “pecado”,
jamais possui, até o cristianismo, tal significado: peccatum em latim é
“erro, falta tropeço”8, abstração feita de culpa moral. Assim hamartía
deve-se traduzir por “erro, falta, inadvertência, irreflexão”, existindo,
claro está, uma “graduação” nessas faltas ou erros, podendo ser os
mesmos mais leves ou mais graves, como já observara Marco Túlio
Cícero (106-43 a.C.)9.
Acrescente-se, por último, que, na Grécia antiga, as faltas eram
julgadas de fora para dentro: não se julgavam intenções, mas fatos,
reparações, indenizações à vítima, se fosse o caso.
Quanto a génos, pode o vocábulo ser traduzido, em termos de
religião grega, por “descendência, família, grupo familiar” e definido
como personae sanguine coniunctae, quer dizer, pessoas ligadas por
laços de sangue. Assim, qualquer falta, qualquer hamartía cometida
por um génos contra o outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente
vingada. Se a hamartía é, dentro do próprio génos, o parente mais
próximo está igualmente obrigado a vingar o seu sanguine
coniunctus.
Afinal, no sangue derramado está uma parcela da vida, do sangue
e, por conseguinte, da alma do génos inteiro. Foi assim que,
historicamente falando, até a reforma jurídica de Drácon ou Sólon,
famílias inteiras se exterminavam na Grécia. É mister, no entanto,
distinguir dois tipos de vingança, quando a hamartía é cometida
dentro de um mesmo génos: a ordinária, que se efetua entre os
membros, cujo parentesco é apenas em profano, mas ligados entre si
por vínculo de obediência aos gennêtai, quer dizer, aos chefes
gentílicos, e a extraordinária, quando a falta cometida implica em
parentesco sagrado, erínico, de fé – é a hamartía cometida entre pais,
filhos, netos, por linha troncal e, entre irmãos, por linha colateral.
Esposos, cunhados, sobrinhos e tios não são parentes em sagrado, mas
em profano ou ante os homens. No primeiro caso, a vingança é
executada pelo parente mais próximo da vítima e, no segundo, pelas
Erínias.
A essa ideia do direito do génos está indissoluvelmente ligada a
crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida
por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre
todos os parentes e seus descendentes “em sagrado” ou “em profano”.
Esta crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na
hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos
homens, pois a encontramos desde o Rig Veda até o nordeste
brasileiro, sob aspectos e nomes diversos. No citado Rig Veda, o mais
antigo monumento da literatura hindu, composto entre 2000 e 1500
a.C., encontramos esta súplica: “Afasta de nós a falta paterna e apaga
também aquela que nós próprios cometemos”.
A mesma ideia era plenamente aceita pelos judeus, como
demonstram várias passagens do Antigo Testamento, como está em
Êxodo 20,5: “Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a
iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me
odeiam”.
Talvez não fosse inoportuno lembrar que há uma grande diferença
entre o homem de lá e o homem de cá: o viver coletivo e o nosso viver
individual.
Fechado o parêntese, voltemos à machina fatalis, a máquina
obrigatoriamente fatal que, por causa da hamartía de Tântalo e da
consequente maldição familiar, há de esmagar todo o génos maldito
dos atridas, cuja ninhada fatídica pode ser sintetizada no seguinte
quadro:
Tântalo
Dione (ou
Eurianassa)
Pélops, Dáscilo, Níobe
Pélops
Hipodamia
Atreu, Tieste, Plístene, Crisipo
Tieste
uma
Concubina
Plístene II, Tântalo II, Pelopia
Tieste
sua própria
filha Pelopia
Egisto
Atreu
Aérope
Agamêmnon, Menelau
Menelau
Helena
Hermíona, Nicóstrato
Agamêmnon
Clitemnestra
Ifigênia (Ifianassa), Electra (Laódice), Crisótemis, Orestes
Tudo começou com a hamartía de Tântalo, filho de Zeus e Plutó, o
qual reinava na Frígia ou Lídia, sobre o monte Sípilo. Extremamente
rico e querido dos deuses, era admitido em seus festins. Por duas
vezes Tântalo já havia traído a amizade e a confiança dos imortais:
numa delas revelou aos homens os segredos divinos e, em outra
oportunidade, roubou néctar e ambrosia dos deuses, para oferecê-los
a seus amigos mortais. A terceira hamartía, terrível e medonha, lhe
valeu a condenação eterna. Tântalo, desejando saber se os Olímpicos
eram mesmo oniscientes, sacrificou o próprio filho Pélops e
ofereceu-o como iguaria àqueles. Os deuses reconheceram, todavia, o
que lhes era servido, exceto Deméter, que, fora de si pelo rapto da
filha Perséfone, comeu uma espádua de Pélops. Os deuses, porém,
recompuseram-no e fizeram-no voltar à vida.
Tântalo foi lançado no Tártaro, condenado para sempre ao
suplício da sede e da fome. Mergulhado até o pescoço em água fresca
e límpida, quando ele se abaixa para beber, o líquido se lhe escoa por
entre os dedos. Árvores repletas de frutos saborosos pendem sobre
sua cabeça; ele, faminto, estende as mãos crispadas, para apanhá-los,
mas os ramos bruscamente se erguem. Há uma variante de grande
valor simbólico: o rei da Frígia estaria condenado a ficar para sempre
sobre um imenso rochedo prestes a cair e onde ele teria que
permanecer em eterno equilíbrio.
O tema mítico de Tântalo, na luta interior contra a vã exaltação,
simboliza a elevação e a queda. Seu suplício corre paralelo com sua
hamartía: o objeto de seu desejo, a água, os frutos, a liberdade, tudo
está diante de seus olhos e infinitamente distante da posse. No fundo,
Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido, sempre
insaciável, porque está na natureza do ser humano o viver sempre
insatisfeito. Quanto mais se avança em direção ao objeto que se
deseja, mais este se esquiva e a busca recomeça...
O grande poeta paulista Vicente Augusto de Carvalho (1866-1924)
nos oferece a topografia utópica dessa busca:
Velho Tema
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Níobe foi a primeira vítima da hamartía paterna. Casada com
Anfíon, teve, consoante a maioria dos mitógrafos, catorze filhos: sete
meninos e sete meninas. Na tradição homérica são apenas doze10,
mas na hesiódica são vinte. Orgulhosa de sua prole, Níobe dizia-se
superior a Leto, que só tivera dois: Apolo e Ártemis. Irritada e
humilhada, Leto pediu aos filhos que a vingassem. Com suas
flechadas certeiras, Apolo matou os meninos e Ártemis, as meninas.
Urna variante mais recente do mito narra que dos catorze se
salvaram dois, um menino e uma menina. Esta, todavia, aterrorizada
com o massacre dos irmãos, se tornou tão pálida, que foi chamada
Clóris, a verde. Mais tarde, Clóris foi desposada por Neleu.
A infeliz Níobe, desesperada de dor e em prantos, refugiou-se no
monte Sípilo, reino de seu pai, onde os deuses a transformaram num
rochedo, que, no entanto, continua a derramar lágrimas. Do rochedo
de Níobe, por isso mesmo, corre uma fonte.
A metamorfose em rochedo, como a de Eco, Níobe... pode ser
interpretada como o símbolo da regressão e da passividade, que
podem ser um estado apenas passageiro, precursor de uma
transformação. Na realidade, Níobe é uma antiga deusa lunar
asiática, mas é a lua negra, a outra face de Leto, a lua cheia. Seus
filhos são mortos por Apolo (o sol) e por Ártemis (a lua cheia).
Pélops é apenas mais uma engrenagem da machina fatalis... Após
sua “recomposição e ressurreição”, o herói foi amado por Posídon, que
o levou para o Olimpo e fê-lo seu escanção. Apesar de haver
retornado ao nível telúrico, porque Tântalo dele se servia para furtar
néctar e ambrosia aos deuses e oferecê-los aos homens, o deus do mar
continuou a protegê-lo, dando-lhe de presente cavalos alados e
ajudando-o na terrível disputa contra Enômao pela posse de
Hipodamia.
Após a guerra movida pelo Ilo, o lendário fundador de Ílion ou
Troia, contra Tântalo, a quem acusava de ser responsável pelo rapto
de seu filho Ganimedes, Pélops deixou a Ásia Menor, onde nascera, e
refugiou-se na Hélade.
Sabedor de que Enômao, rei de Pisa, na Élida, só daria a filha
Hipodamia em casamento a quem o vencesse numa corrida de
carros, Pélops, herói que era, aceitou, como tantos outros já o haviam
feito, o desafio do rei.
Esse Enômao, que reinava na Élida, era filho de Ares e de uma filha
do deus-rio Asopo, Harpina. Como não quisesse que sua filha
Hipodamia se casasse, ou por estar apaixonado por ela ou por lhe ter
anunciado um oráculo que seria morto pelo genro, punha como
condição que o pretendente o ultrapassasse numa corrida de carros.
Enquanto sacrificava um carneiro a Zeus, deixava que o competidor
tomasse a dianteira. Como os cavalos de Enômao fossem de sangue
divino, facilmente o rei levava de vencida o “pretendente” e o
matava, antes que atingisse a meta final, que era o altar de Posídon,
em Corinto. O rei de Pisa já havia eliminado doze pretendentes,
quando Pélops se apresentou. Apaixonada por ele, Hipodamia
ajudou-o a corromper o cocheiro real, Mírtilo, que concordou em
serrar o eixo do carro de Enômao. Aos primeiros arrancos dos
animais, a peça partiu-se e o monarca foi arremessado ao solo e
pereceu despedaçado.
Pélops se casou com Hipodamia e, para silenciar Mírtilo, o
vencedor de Enômao lançou-lhe o cadáver no mar. O cocheiro real,
antes de morrer, amaldiçoou a Pélops...
O nome de Pélops está intimamente ligado à fundação mítica dos
jogos Olímpicos, que, a princípio, segundo parece, limitavam-se a
corridas de carros. Pélops os teria instituído, mas, como houvessem
caído no esquecimento, Héracles os ressuscitou em honra e em
memória do fundador. As competições olímpicas eram ainda não
raro consideradas como Jogos Fúnebres em memória de Enômao.
À hamartía de Tântalo somam-se agora as do próprio Pélops e a
maldição de Mírtilo. A machina fatalis tem combustível para
funcionar por várias gerações! Antes, porém, que suas engrenagens
voltem a girar, uma palavra sobre a morte do rei e sua substituição
por Pélops no trono da Élida.
Marie Delcourt, em sua obra famosa sobre Édipo11, comentando e
discordando de uma passagem do pai da psicanálise12, opina que não
se deve insistir sobre “a concupiscência dissimulada” do menino pela
mãe e, em relação ao pai, sobre o sentimento ambivalente do mesmo,
marcado de um lado pela admiração e afeição e, de outro, pelo ódio e
ciume. Assim, consoante a autora, em lugar de se acentuar o ciume
sexual do menino, melhor seria chamar a atenção para a impaciência
com que o filho adulto suporta a tutela de um pai envelhecido. A
hostilidade entre ambos seria provocada menos por uma libido
reprimida do que pelo desejo do poder. Se isto é verdadeiro, pode-se
perfeitamente fazer uma aproximação entre o mito de Édipo, que
mata a seu pai Laio, e outros mitologemas, como o de Pélops, em que
um pai luta contra o pretendente da filha; como os de Telégono e
Ulisses, Teseu e Egeu, em que os filhos matam direta ou
indiretamente a seus pais; como o de Perseu e Acrísio, em que a
vítima é o avô, no caso em pauta, Acrísio; como o de Anfitrião que
assassina a seu sogro Eléctrion e, para não alongar a lista, o de
Admeto e Feres, em que o pai Feres, envelhecido, “abre mão do trono,
em favor de seu filho Admeto, tendo havido, no entanto, entre
ambos, violentíssima altercação, como atesta a tragédia Alceste13.
Seguindo essa linha de raciocínio, o tema essencial não é bem o
duelo entre pai e filho, porque este pode ser entre sogro e genro
(Enômao e Pélops, Eléctrion e Anfitrião) ou entre avô e neto (Acrísio
e Perseu)..., mas um conflito de gerações.
O antagonismo, todavia, quer seja entre pai e filho, avô e neto, ou
entre pai e pretendente, é sempre um combate pelo poder, cujo
desfecho é a vitória do mais jovem. Ao que parece, essa luta, de início,
entre pai e filho, fazia parte de um rito, o combate de morte que, nas
sociedades primitivas, permitia ao Jovem Rei suceder ao Velho Rei.
Todo o contexto familiar, com os problemas morais que o mesmo
comporta, foi acrescentado mais tarde, quando a sucessão patrilinear
se tornou a norma vigente. Assim, na luta de morte, que se travava
pela sucessão, todas as atenuantes possíveis foram introduzidas para
mitigar o impacto das “justas” primitivas. Jamais um poeta trágico
pôs em cena um parricídio consciente. Se Édipo mata a Laio,
Telégono a Ulisses, Perseu a Acrísio e Pélops a Enômao, a ação é
simplesmente o resultado do cumprimento de um oráculo, e mais: os
dois primeiros ignoravam tratar-se de seus próprios pais e Perseu
não sabia que Acrísio era seu avô. Julgando que a atenuante, oráculo,
era insuficiente, os trágicos transformaram a morte de Laio num
acidente decaminho... Quanto a Teseu, é bom não esquecer que foi
por um erro, por um engano fatal que o herói de Atenas se tornou o
responsável pela morte de seu pai Egeu!
Desse modo, o parricídio ou é substituído por um simples
destronamento, ou é realizado, mas como resultante de um erro,
embora se tenha o respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, os
poetas evitam colocar em cena o mais horrendo dos crimes aos olhos
da sociedade grega. A despeito, porém, de seu horror pelo parricídio,
tiveram muitas vezes que tratar em público de uma hostilidade de
fato entre homens de gerações diferentes, o que patenteia a
importância existente na sucessão por morte na pré-história grega. Os
testemunhos mais curiosos desse rito arcaico se encontram, como se
verá, nas teogonias.
Para encerrar, uma pergunta: por que o Velho Rei deve ser
substituído?
Na Odisseia, XI,494ss, Aquiles, quando da visita de Ulisses ao país
dos mortos, mostra-se preocupado com a sorte de seu pai Peleu e
pergunta-lhe se ele não é desprezado pelos mirmidões, uma vez que a
velhice lhe entorpece os membros. Na realidade, um rei envelhecido
não é apenas um soberano demissionário, mas sobretudo um ser
maltratado e menosprezado. É que a função do rei, já que o mesmo é
de origem divina, é fecundar e manter viva e atuante sua força
mágica. Perdido o vigor físico, tornando-se impotente ou não mais
funcionando a força mágica, o monarca terá que ceder seu posto a um
jovem, que tenha méritos e requisitos necessários para manter acesa
a chama da fecundação e a fertilidade dos campos, uma vez que,
magicamente, esta está ligada àquela.
Na expressão de Westrup, “o mérito pessoal é uma condição
necessária para se subir ao trono dos antigos e a persistência da
energia ativa é indispensável para conservar o poder real”14. Donde
se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no princípio da
incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A razão é de
ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la à
natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei.
Terminada esta longa digressão, necessária para que se possam
compreender tantas sucessões violentas dentro do mito, voltemos à
violência, à hýbris das hamartíai dos atridas.
De Pélops e Hipodamia, conforme esquema já exposto, nasceram,
entre outros, Atreu, Tieste e Crisipo.
Consoante o mito, os persidas (filhos ou descendentes de Perseu)
foram os primeiros a reinar sobre a Argólida em geral e sobre
Micenas em particular. Esta, fundada por Perseu, foi governada
depois por seu filho Estênelo e seu neto, Euristeu. Em seguida, o
poder passou para os pelópidas, também denominados atridas. É que
a maldição paterna empurrara Atreu e Tieste para Micenas, onde se
refugiaram. Essa maldição se deve ao fato de Atreu e Tieste terem
assassinado o irmão Crisipo. Mais uma maldição que se vai somar a
tantas outras...
Aliás, Crisipo, como engrenagem da machina, já havia contribuído
para aumentar-lhe a potência fatídica. Quando Laio, ainda muito
jovem, se viu obrigado a fugir de Tebas, porque Zeto e Anfião se lhe
haviam apoderado violentamente do trono, refugiou-se na corte de
Pélops, na Élida.
Esquecendo-se dos laços sagrados da hospitalidade, Laio deixou-se
dominar por uma paixão louca por Crisipo e, com o consentimento
deste, o raptou, inaugurando, destarte, na Grécia, ao menos
miticamente, a pederastia. Pélops amaldiçoou a Laio, e Hera, a
protetora dos amores legítimos, anatematizou a ambos. O resultado
dessa dupla maldição há de se traduzir também na Maldição dos
labdácidas, com Laio, Jocasta, Édipo, Etéocles, Polinice e Antígona...
Voltemos a Atreu e Tieste. Falecido Euristeu, sem deixar
descendentes, os micênios, dando crédito a um oráculo, entregaramlhes o trono. Foi pela disputa do reino de Micenas entre os dois
irmãos que surgiu o ódio mais terrível, alimentado por traições,
adultério, incesto, canibalismo, violência e morte. Atreu, que havia
encontrado um carneiro de velo de ouro, prometera sacrificá-lo a
Ártemis, mas guardou-o para si e escondeu o tosão de ouro num
cofre. Aérope, que era mulher de Atreu, mas amante de Tieste,
entregara a este secretamente o velocino. No debate entre ambos
diante dos micênios, Tieste propôs que ocuparia o trono o que
mostrasse à assembleia um tosão de ouro. Atreu aceitou, de imediato,
a proposta, pois desconhecia a traição da esposa e a perfídia do
irmão. Tieste seria fatalmente o vencedor, não fora a intervenção de
Zeus, que, por meio de Hermes, aconselhou a Atreu fazer uma nova
proposta: o rei seria designado por um prodígio. Se o sol seguisse seu
curso normal, Tieste seria o rei, se regressasse para leste, Atreu
ocuparia o trono. Aceito o desafio, todos passaram a observar o céu.
O sol voltou para o nascente e Atreu, por proteção divina, passou a
reinar em Micenas, expulsando Tieste de seu reino.
Sabedor um pouco mais tarde da traição de Aérope, fingiu uma
reconciliação com o irmão, convidou-o a participar de um banquete
e serviu-lhe como repasto as carnes de três filhos que Tieste tivera
com uma náiade: Áglao, Calíleon e Orcômeno. Após o banquete,
Atreu mostrou-lhe as cabeças de seus três filhos e, mais uma vez, o
baniu. Tieste refugiou-se em Sicione, onde, a conselho de um oráculo,
se uniu à própria filha Pelopia e dela teve um filho, Egisto. Pelopia
seguiu para Micenas e lá se casou com o próprio tio Atreu. Egisto foi,
pois, criado na corte deste último e, como ignorasse que Tieste era seu
pai, recebeu do padrasto a ordem de matá-lo. Egisto, todavia,
descobriu a tempo quem era seu verdadeiro pai. Retornou a Micenas,
assassinou Atreu e entregou o trono a Tieste.
Agamêmnon e Menelau, filhos de Atreu e de Aérope! Que se
poderia esperar destes condenados e marcados por tantas misérias e
crimes? Agamêmnon surge no mito como o rei por excelência,
encarregado na Ilíada do comando supremo dos exércitos gregos que
sitiavam Troia. Consoante a designação de seus ancestrais, é
chamado atrida, pelópida ou tantálida. Reinava sobre Argos,
Micenas e até mesmo sobre toda a Lacedemônia. Era casado com
Clitemnestra, irmã de Helena, ambas filhas de Tíndaro e Leda. Para
obter Clitemnestra, que era casada, Agamêmnon iniciou logo sua
carreira por um crime duplo: matou-lhe o marido, Tântalo, filho de
Tieste, e a um filho recém-nascido do casal. Perseguido pelos
Dioscuros, Castor e Pólux, irmãos de Clitemnestra e Helena,
refugiou-se na corte de Tíndaro.
Desse casamento com Clitemnestra, que se ligara a Agamêmnon
contra a vontade, nasceram três filhas: Crisótemis, Laódice e
Ifianassa e um filho, Orestes. Tal é o primeiro estágio do mito. Surge
depois Ifigênia ao lado de Ifianassa e Laódice é substituída pelos
poetas trágicos por Electra, totalmente desconhecida de Homero.
Desta ninhada fatídica os trágicos conheciam principalmente
Ifigênia, Electra e Orestes.
Quando uma verdadeira multidão de pretendentes à mão de
Helena assediava a princesa, Tíndaro, a conselho do solerte Ulisses,
ligou-os por dois juramentos: respeitar a decisão de Helena na
escolha do noivo, sem contestar a posse da jovem esposa e se o
escolhido fosse, de qualquer forma, atacado, os demais deviam
socorrê-lo. Quando o príncipe troiano Páris ou Alexandre raptou
Helena, Menelau, a quem ela escolhera por marido, pediu auxílio a
seu irmão Agamêmnon, o poderoso rei de Micenas, que também
estava ligado a Menelau por juramento. Agamêmnon foi escolhido
comandante supremo da armada aqueia, seja por seu valor pessoal,
seja porque era uma espécie de rei suserano, dada a importância de
Micenas no conjunto do mundo aqueu, quer por efeito de hábil
campanha política. Convocados os demais reis ligados por
juramento a Menelau, formou-se o núcleo da grande armada
destinada a vingar o rapto de Helena e atacar Troia, para onde Páris
levara a princesa.
Os chefes aqueus reuniram-se em Áulis, cidade e porto da Beócia,
em frente à ilha de Eubeia. De início, os presságios foram favoráveis.
Feito um sacrifício a Apolo, uma serpente surgiu do altar e,
lançando-se sobre um ninho numa árvore vizinha, devorou oito
filhotes de pássaros e a mãe, ao todo nove, e, em seguida,
transformou-se em pedra. Calcas, o adivinho da vida militar, como
Tirésias o era da religiosa, disse que Zeus queria significar que Troia
seria tomada após dez anos de luta. De acordo com os Cantos Cíprios,
poemas que narram fatos anteriores à Ilíada, os aqueus, ignorando as
vias de acesso a Troia, abordaram na Mísia, Ásia Menor e, depois de
alguns combates esparsos, foram dispersados por uma tempestade,
regressando cada um a seu reino. Oito anos mais tarde, reuniram-se
novamente em Áulis. O mar, todavia, permaneceu inacessível aos
navegantes por causa de uma grande calmaria. Consultado mais
uma vez, Calcas explicou que o fato se devia à cólera de Ártemis,
porque Agamêmnon, matando uma corça, afirmara que nem a deusa
o faria melhor que ele. A cólera de Ártemis poderia se dever também
a Atreu, que, como se viu, não lhe sacrificara o carneiro de velo de
ouro ou ainda porque o rei de Micenas prometera oferecer o produto
mais belo do ano, que, por fatalidade, havia sido sua filha Ifigênia.
Agamêmnon, após alguma relutância, terminou por consentir no
sacrifício de Ifigênia, ou por ambição pessoal, ou por visar ao bem
comum. De qualquer forma, esse sacrifício agravou profundamente
as queixas já existentes e o desamor de Clitemnestrapelo esposo.
Sacrificada a jovem Ifigênia, partiu finalmente a frota grega em
direção a Troia, fazendo escala na ilha de Tênedos. Na ilha de
Lemnos, Agamêmnon, a conselho de Ulisses, ordenou que se deixasse
Filoctetes (sem cujas flechas, herdadas de Héracles, Troia não
poderia ser tomada), de cuja ferida, provocada pela mordida de uma
serpente em Tênedos, exalava um odor insuportável.
Nove anos de lutas diante da cidade de Príamo, de acordo com os
presságios, já se haviam passado, quando surgiu grave dissensão
entre Agamêmnon e o principal herói aqueu, Aquiles. É que ambos,
tendo participado de diversas expedições de pilhagem contra
cidades vizinhas, lograram se apossar de duas belíssimas jovens:
Briseida, que se tornou escrava de Aquiles, e Criseida, filha do
sacerdote de Apolo, Crises, foi feita cativa de Agamêmnon.
Crises, humildemente, dirigiu-se à tenda do rei de Micenas e tentou
resgatar a filha. O rei o expulsou com ameaças. Apolo, movido pelas
súplicas de seu sacerdote, enviou uma peste terrível contra os
exércitos gregos.
É neste ponto que começa a narrativa da Ilíada. Talvez não fosse
fora de propósito dizer, e o faremos, de caminho, que a Ilíada não
relata a Guerra de Troia, mas apenas um episódio do nono ano da
luta, exatamente a ira de Aquiles e suas consequências funestas.
Quando o poema termina, com os funerais de Heitor, Troia continua
de pé.
Vendo o exército assolado pela peste, Aquiles convocou uma
assembleia. O adivinho Calcas, consultado, respondeu ser necessário
devolver Criseida. Após violenta altercação com Aquiles,
Agamêmnon resolveu devolver a filha de Crises, mas, em
compensação, mandou buscar a cativa de Aquiles, Briseida. Este,
irritado e como fora de si, porque gravemente ofendido em sua timé,
em sua honra pessoal, coisa que um herói grego prezava acima de
tudo, retirou-se do combate. Zeus, a pedido de Tétis, mãe do herói,
consentiu em que os troianos saíssem vitoriosos, até que se fizesse
condigna reparação a Aquiles. Para isso, Zeus enviou ao rei um sonho
enganador para o empenhar na luta, fazendo-o acreditar que poderia
tomar Troia sem o concurso do filho de Tétis. Além do mais, um
antigo oráculo havia predito a Agamêmnon que a cidadela de
Príamo cairia, quando houvesse séria discórdia no acampamento dos
aqueus.
Sem Aquiles, o rei de Micenas interveio pessoalmente no combate e
muitos foram seus feitos gloriosos, mas os aqueus, após duas grandes
batalhas, foram sempre repelidos. Diante de uma derrota iminente,
Agamêmnon, a conselho do prudente e sábio Nestor, dispôs-se a
devolver Briseida e comprometeu-se ainda a enviar presentes a
Aquiles. Ájax e Ulisses foram procurá-lo, mas o herói não aceitou a
reconciliação. Face à audácia dos troianos, comandados por Heitor,
que ousaram até mesmo chegar junto aos navios gregos e incendiálos, Aquiles permitiu que seu fraternal amigo Pátroclo se revestisse
de suas armas, mas somente para repelir os Troianos. Pátroclo foi
além dos limites, além do métron: quis escalar as muralhas de Troia e
foi morto por Heitor. Somente a dor imensa pela morte do amigo e o
desejo alucinado de vingança fizeram o herói, após receber todos os
desagravos por parte do comandante dos aqueus, voltar à cruenta
refrega e não descansou enquanto não matou Heitor. Assim, a partir
do canto XVIII da Ilíada, a figura de Agamêmnon se ofuscou diante
dos lampejos do escudo e dos coriscos da espada de Aquiles.
As epopeias posteriores ao século IX a.C. enumeram outras gestas
do rei de Micenas, após a morte de Heitor e Aquiles, e suas
intervenções na grave querela entre Ájax e Ulisses pela posse das
armas do maior dos heróis aqueus.
Na Odisseia se narra que, após a queda de Ílion, Agamêmnon
tomou como uma de suas cativas e amantes a filha de Príamo, a
profetisa Cassandra, que lhe deu dois gêmeos, Teledamo e Pélops. O
retorno da Tróada do chefe supremo dos Aqueus ensejou também
outras narrativas épicas. Os Nóstoi, ou poemas dos Retornos, contam
que, no momento da partida, o eídolon, a “imagem” de Aquiles
apareceu ao esposo de Clitemnestra e procurou retê-lo na Ásia,
anunciando-lhe todas as desgraças futuras e exigindo-lhe, ao mesmo
tempo, o sacrifício de Políxena, uma das filhas de Príamo, cuja esposa
Hécuba fazia também parte, juntamente com Políxena, do quinhão
de Agamêmnon, como está na tragédia Hécuba de Eurípides.
Quando este chegou aos arredores de Micenas, Egisto, que se
tornara amante de Clitemnestra, fingindo uma reconciliação,
ofereceu ao primo um grande banquete e, com o auxílio de vinte
homens, dissimulados na sala do festim, matou a Agamêmnon e a
todos os acompanhantes do rei. Outras versões atestam que
Clitemnestra participou do massacre e pessoalmente eliminou a sua
rival Cassandra.
Píndaro acrescenta que, no ódio contra a raça do esposo, a amante
de Egisto quis também matar seu filho Orestes. Nos trágicos, as
circunstâncias variam: ora Agamêmnon, como está em Homero, foi
morto durante o banquete, ora o foi durante o banho, no momento
em que, embaraçado na indumentária que lhe dera a esposa, e cujas
mangas ela havia cosido, o rei não pôde se defender.
Consoante Higino (século I a.C.), e suas informações devem basearse em fontes antigas, o instigador do crime foi Éax, irmão de
Palamedes, cuja lapidação havia sido ordenada por Agamêmnon.
Éax teria contado a Clitemnestra que o esposo pretendia substituí-la
por Cassandra. Esta, com afiada machadinha, assassinou não só o
marido, quando o mesmo fazia um sacrifício, mas igualmente a
Cassandra.
Egisto, outro amaldiçoado, é, como já se assinalou, filho de Tieste e
da própria filha deste, Pelopia. Tieste, banido pelo irmão Atreu, vivia
longe de Micenas, em Sicione, e buscava com todas as forças um
meio de vingar-se de seu irmão, que lhe havia massacrado os filhos.
Um oráculo lhe anunciou que o vingador almejado só poderia ser um
filho que ele tivesse de sua própria filha. Certa noite, em que Pelopia
celebrava um sacrifício, Tieste a estuprou, mas a jovem conseguiu
arrancar-lhe a espada e a guardou. Sem o saber, Atreu se casou com a
sobrinha e mandou procurar por Sicione inteira a criança, que, ao
nascer, Pelopia havia exposto15. O menino foi encontrado entre
pastores que o haviam recolhido e alimentado com leite de cabra,
daí, em etimologia popular, o nome de Egisto, em grego Aígistos, uma
vez que aíks, aigós é cabra. Aproveitemos o momento para um corte:
normalmente a criança exposta é salva e direta ou indiretamente
alimentada por um pássaro ou animal. Semíramis, a rainha da
Babilônia, o foi por pombas; Gilgamex, por uma águia; Télefo, por
uma corça; Páris, por uma ursa; Rômulo e Remo, por uma loba...
Provas iniciáticas desse tipo parecem ter por origem longínqua as
denominadas crenças zoolátricas: prova-se que “o exposto” pertence
ao clã, se o animal do clã pode se aproximar dele, sem fazer-lhe mal.
Trata-se, em todo caso, de um duplo ordálio (juízo de um deus): a
criança sobrevive em condições em que normalmente deveria
perecer; é reconhecida por um animal do clã e por meio dele ou
diretamente pelo mesmo é alimentada. Ao sair dessa prova dupla, o
exposto está destinado a “grandes feitos”. Observe-se, portanto,
nesses ordálios menos um rito familiar que um rito político, capaz de
habilitar “o desconhecido” a ser recebido num grupo social que
normalmente o repeliria. As práticas acobertadas pelo mito da
criança exposta deviam se aplicar a pessoas que, de um modo ou de
outro, eram intrusas, ou ainda a homens que tinham que lutar para
conquistar uma posição a que primitivamente ou “aparentemente”
não tinham direito algum.
Voltemos a Egisto. Criado como filho por Atreu, este um pouco
mais tarde mandou-o procurar Tieste, prendê-lo e trazê-lo à sua
presença.
Egisto cumpriu a missão e Atreu lhe ordenou que matasse Tieste.
Quando este viu a espada com que deveria ser assassinado, a
reconheceu de imediato. Perguntou a Egisto onde ele a obtivera.
Respondeu-lhe o jovem que tinha sido uma dádiva de sua mãe
Pelopia. Tieste mandou chamar a filha e lhe revelou o segredo do
nascimento de Egisto. Tomando a espada, Pelopia se traspassou com
ela. Vendo a lâmina toda ensanguentada, Atreu se rejubilou com “a
morte do irmão”. Egisto, então, de um só golpe, o prostrou. Em
seguida, Tieste e Egisto reinaram em Micenas. Tendo seduzido
Clitemnestra, com ela passou a viver. Após a morte de Agamêmnon,
Egisto ainda reinou em Micenas por sete anos, até que chegou o
vingador.
Orestes, com todo o fardo das hamartíai de dois génê, paterno e
materno, já é conhecido desde as epopeias homéricas como “o
vingador de Agamêmnon”, embora não se fale do assassinato de
Clitemnestra, praticado pelo filho. É só a partir de Ésquilo e sua
Oréstia que Orestes se tornou uma figura de primeiro plano. O
primeiro episódio de sua vida situa-se no mito troiano, quando, na
primeira expedição grega, a armada foi dar na Mísia, no reino de
Télefo. Tendo sido este ferido por Aquiles, não podia ser curado,
segundo o oráculo, senão pela lança do filho de Tétis. Algum tempo
depois, quando da segunda tentativa aqueia de navegar para a
Tróada, Télefo foi ter a Áulis, em busca de cura, pois ali estava
acampado o exército grego. Preso como espião, Télefo agarrou o
pequeno Orestes e ameaçou matá-lo, se o maltratassem. Conseguiu,
assim, ser ouvido e obteve a cura.
Quando do regresso de Agamêmnon a Micenas e de seu assassinato
por Egisto e Clitemnestra, Orestes escapou do massacre graças à sua
irmã Electra, que o enviou clandestinamente para a Fócida, onde foi
criado como filho na corte de Estrófio, casado com Anaxíbia, irmã de
Agamêmnon e pai de Pílades. Explica-se, desse modo, a lendária
amizade que uniu para sempre os primos Orestes e Pílades. O mérito,
todavia, da salvação de Orestes das mãos sangrentas de Clitemnestra
tem outras versões no mito: o menino teria escapado, graças à
presteza de sua ama, de seu preceptor ou sobretudo de um velho
servidor da família. Atingida a idade adulta, Orestes recebeu de
Apolo, deus essencialmente patrilinear, a ordem de vingar o pai,
matando Egisto, e sua amante. Acompanhado de Pílades, Orestes
chega a Argos e dirige-se ao túmulo de Agamêmnon, onde consagra
uma madeixa. Electra, que vem fazer libações sobre o túmulo do pai,
reconhece o sinal deixado pelo irmão e combina com o mesmo a
morte de Egisto e Clitemnestra. Claro está que variam bastante de
um poeta trágico para outro os sinais de reconhecimento entre os
irmãos e os estratagemas que se planejaram para o morticínio dos
então reis de Micenas. Mas tragédia é obra de arte! O mito, no entanto,
continua o mesmo...
Iniciando seu plano de vingança, Orestes se apresenta como um
viajante vindo da Fócida e encarregado por Estrófio de anunciar a
morte de Orestes e de saber se as cinzas do morto deveriam
permanecer em Cirra, sede do reino de Estrófio, ou ser transportadas
para Argos. Clitemnestra, livre do medo de ver seus crimes punidos,
deu um grito de júbilo e mandou, de imediato, avisar Egisto, que
estava no campo. O rei regressou pressuroso e foi o primeiro a
tombar sob os golpes do vingador. Clitemnestra, com suas súplicas,
conseguiu abalar o filho, mas Pílades lembrou-lhe a ordem de Apolo
e o caráter sagrado da vingança. Assassinando a própria mãe, Orestes
é, imediatamente, envolvido pelas Erínias, as punidoras do sangue
parental derramado, segundo se mostrou páginas acima, tema aliás
amplamente desenvolvido na análise que fizemos da tragédia
grega16.
Orestes buscou asilo no omphalós (“umbigo”, pedra que marcava o
centro do mundo) do Oráculo de Delfos, onde foi purificado por
Apolo. Essa purificação, no entanto, não o libertou das Erínias,
tornando-se necessário um julgamento regular, que se realizou numa
pequena colina de Atenas, mais tarde denominada Areópago,
tribunal onde se julgavam os crimes de sangue. Como o julgamento
terminasse empatado, Atená, que presidia o tribunal, deu seu voto,
“Voto de Minerva”, em favor do matricida.
Libertado “exteriormente” da perseguição das Erínias, Orestes
pediu a Apolo uma indicação do que deveria fazer a seguir. A Pítia
respondeu-lhe que, para se livrar em definitivo da manía, da loucura,
da “opressão interna” provocada pelo matricídio, deveria dirigir-se a
Táurida, na Ásia Menor, descobrir e apossar-se da estátua de Ártemis.
Acompanhado de Pílades, Orestes chegou a seu destino, mas foram
ambos aprisionados pelo rei Toas, que costumava sacrificar os
estrangeiros à sua deusa. Foram levados a Ifigênia, de quem se falará
mais abaixo, a qual era a sacerdotisa do templo e encarregada de
sacrificar os adventícios. Interrogados por esta a respeito de onde
vinham e a que país pertenciam, a filha de Agamêmnon descobriu
logo de quem se tratava, pois Orestes era seu irmão. Contou-lhe este
por que motivo procurara a Táurida e qual a ordem que recebera de
Apolo. Disposta a facilitar o roubo da estátua de Ártemis, de que era
guardiã, Ifigênia planejou fugir com Orestes. Para tanto persuadiu o
rei Toas de que não se poderia imolar o estrangeiro, que fugira da
pátria por ter assassinado a própria mãe, sem primeiro purificá-lo,
bem como a estátua da deusa, nas águas do mar. O rei deu crédito à
sacerdotisa, que se dirigiu para a praia com Orestes, Pílades e a
estátua de Ártemis. Sob o pretexto de que os ritos eram secretos,
distanciou-se dos guardas e fugiu com os dois e a estátua no barco do
irmão.
Desde menino, Orestes era noivo de Hermíona, filha de Menelau e
Helena, mas, em Troia, o rei de Esparta prometera a filha a
Neoptólemo, filho de Aquiles. No regresso da Táurida, Orestes foi
para junto de Hermíona, enquanto Neoptólemo se encontrava em
Delfos. Raptou-a e depois matou-lhe o marido. Com ela teve um filho
chamado Tisâmeno. Reinou em Argos e, em seguida, também em
Esparta, como sucessor de Menelau. Pouco tempo antes de sua morte,
uma grande peste devastou-lhe o reino.
Ifigênia, a filha mais velha de Agamêmnon e Clitemnestra, como
se viu, foi reclamada por Ártemis como vítima para que cessasse a
calmaria e a frota aqueia pudesse chegar à Tróada. No momento
exato em que ia ser degolada, Ártemis a substituiu por uma corça e,
arrebatada, Ifigênia foi transportada para Táurida, onde se tornou
sacerdotisa de Ártemis.
O sacrifício do primogênito é um tema comum no mito. Em todas
as tradições encontra-se o símbolo do filho ou da filha imolados, cujo
exemplo mais conhecido é o “sacrifício” de Isaac por Abraão. O
sentido do sacrifício, todavia, pode ser desvirtuado: é o caso de
Agamêmnon, imolando Ifigênia, em que a obediência ao oráculo, por
intermédio de Calcas, dissimula, certamente, outras intenções, como
a vaidade pessoal e o desejo de vingança, camuflados sob o disfarce
de “bem comum”.
O sacrifício de Abraão é inteiramente diferente. Embora, de certa
forma, Isaac fosse mais um filho de Deus que de Abraão, pois que
Sara o concebera já em idade avançada, por bondade de Deus,
quando, normalmente, não tinha mais possibilidade de fazê-lo, a
exigência de Javé se coloca em outra dimensão. Isaac foi concebido
em função da fé: ele se tornou o filho da promessa e da fé. Se bem que
o sacrifício de Abraão se assemelhe a todos os sacrifícios de recémnascidos do mundo antigo, a diferença entre ambos é total. Se nas
culturas primitivas um tal sacrifício, não obstante seu caráter
religioso, era exclusivamente um hábito, um rito, cuja significação se
tornava perfeitamente inteligível, no caso de Abraão é um ato de fé.
O Patriarca não compreende por que uma tal ordem lhe é imposta,
mas ele se dispõe a cumpri-la, porque o Senhor o exigiu. Por este ato,
aparentemente absurdo, Abraão inaugura uma nova experiência
religiosa: a substituição de gestos arquetípicos por uma religião
implantada na fé.
Talvez valesse a pena repetir, a esse respeito, a fórmula comovente
de São Paulo: contra spem in spem credidit, contra toda a esperança,
ele acreditou na esperança...
Voltando ao assunto. No mundo paleo-oriental, o primeiro filho
era, não raro, considerado como filho de deus. É que no Oriente antigo
as jovens tinham por norma passar uma noite no templo e
“conceber” do deus, representado, evidentemente, pelo sacerdote ou
por um seu enviado, o estrangeiro. Pelo sacrifício desse primeiro
filho, do primogênito, restituía-se à divindade aquilo que, de fato, lhe
pertencia. O sangue jovem restabelecia a energia esgotada do deus,
porque as divindades da vegetação e da fertilidade exauriam-se em
seu esforço espermático para assegurar a opulência do kósmos e
manter-lhe o equilíbrio. Tinham elas, pois, necessidade de se
regenerarem periodicamente. Movendo-se numa economia do
sagrado, que será ultrapassada por Abraão e seus sucessores, os
sacrifícios no mundo antigo, para utilizar da expressão de
Kierkegaard, pertenciam ao geral, quer dizer, eram fundamentados
em teofanias arcaicas, cuja tônica era, tão somente, a circulação da
energia sagrada no kósmos: da divindade para a natureza; da
natureza para o homem e do homem, através do sacrifício,
novamente para a divindade, num ciclo ininterrupto.
Na época histórica esses sacrifícios reais foram substituídos por
urna “provação” como o de Isaac ou por um ato de submissão, como o
de Ifigênia, mas cuja execução não mais se consumava: Isaac foi
substituído por um carneiro e Ifigênia, por uma corça.
Trata-se, no paganismo, ao que tudo faz crer, de uma repressão
patrilinear: obtida a submissão, o ato se dá por cumprido e o opressor
por satisfeito.
Electra, a destemida irmã de Orestes, não é mencionada nas
epopeias homéricas. Nos poetas posteriores, sobretudo a partir de
Ésquilo, Electra substituiu de tal maneira a Laódice, que esta “filha
canônica” de Agamêmnon acabou por desaparecer do mito. Após o
assassinato do pai por Egisto e Clitemnestra, a princesa, não fora a
intervenção da mãe, teria sido também eliminada pelo padrasto. Na
realidade, por seu apego incondicional ao pai Agamêmnon (o
Complexo de Electra está aí para perpetuá-lo), “a jovem indomável”
odiava Egisto e não perdoava a Clitemnestra a coautoria no massacre
de seu amado pai. Segundo algumas versões, salvou de morte certa ao
pequeno Orestes, confiando-o, em segredo, como já se viu, a um velho
preceptor, que o levou para longe de Micenas. Por tudo isto, era
tratada no palácio como escrava. Temendo que a enteada tivesse um
filho, que, um dia, pudesse vingar a morte de Agamêmnon, Egisto fêla casar com um pobre camponês, residente longe da cidade. O
marido, todavia, respeitou-lhe a virgindade. Por ocasião do retorno
de Orestes, a jovem princesa trabalhou incansavelmente na
preparação da grande vingança e tomou parte ativa no duplo
assassinato. Quando, após a morte de Egisto e Clitemnestra, Orestes
foi envolvido e “enlouquecido” pelas Erínias, ela colocou-se a seu
lado e cuidou do irmão até o julgamento final no Areópago de
Atenas. Na tragédia de Sófocles, intitulada Aletes (que era filho de
Egisto), hoje infelizmente perdida, Electra figurava como
personagem principal. Como Orestes e Pílades houvessem partido
para Táurida em busca da estátua de Ártemis, anunciou-se em
Micenas que ambos haviam perecido às mãos de Ifigênia. De
imediato Aletes apossou-se do trono de Micenas. Como louca, Electra
partiu para Delfos e lá, encontrando Ifigênia, que retornara com
Orestes e Pílades, arrancou do altar de Apolo um tição ardente e
quase cegou a irmã, não fora a pronta intervenção de Orestes.
Voltando a Micenas com o irmão, cooperou mais uma vez com ele no
assassinato de Aletes.
Após as núpcias de Orestes com Hermíona, Electra casou com
Pílades. E a maldição dos filhos de Atreu continuou...
O ciclo da fatalidade dos atridas serviu de banquete trágico a nove
grandes tragédias que chegaram até nós:
de Ésquilo (525-456 a.C.): Oréstia (Agamêmnon, Coéforas,
Eumênides);
de Sófocles (496-405 a.C.): Electra;
de Eurípides (480-406 a.C.): Electra, Helena, Ifigênia em Áulis,
Ifigênia em Táurida, Orestes.
É tempo de se voltar a Micenas. No capítulo seguinte há de se
abordar histórica e miticamente a última grande façanha de
Micenas, A Guerra de Troia, com o rapto da esposa de Menelau,
Helena. Depois, as trevas dóricas descerão sobre as ruínas de Hélade...
1. LLOYD-JONES, Hugh et al. O mundo grego. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, cap. I, p. 18
[Tradução de Waltensir Dutra].
2. Todos esses deuses e deusas terão seus mitos relatados e comentados nos capítulos
subsequentes e sobretudo no Vol. II.
3. VENTRIS, Michael & CHADWICK, John. Documents in Mycenaean Greek. London:
Cambridge University Press, 1956, p. 125-126.
4. Nemeias, VI, 1ss.
5. PICARD, Charles. Monum. Piot., t. 49, p. 41ss.
6. PICARD, Charles et al. Éléments orientaux dans la religion ancienne. Paris: PUF, 1960, p.
16ss.
7. LÉVÊQUE, Pierre. Op. cit., p. 69ss.
8. O grande poeta latino Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) nos dá, Epist., 1,1,9, o sentido exato,
“físico”, de peccare:
Solue senescentem mature sanus equum ne
peccet ad extremum ridendus et ilia ducat:
“Tem o bom-senso de desatrelar a tempo teu cavalo, que envelhece, a fim de que ele, em
meio ao riso, não venha a tropeçar e perder o fôlego”.
9. Parad., 3,1: Alius magis alio uel peccat uel recte facit: “Há uma graduação nas nossas faltas
como em nossos méritos”.
10. Doze é um número redondo homérico, inseparável de sua perspectiva cósmica. No
gigantesco túmulo de Pátroclo, construído sobre uma base quadrada, Aquiles sacrificou
doze jovens troianos. Trata-se do número da “totalidade”.
11. DELCOURT, Marie.Oedipe ou la légende du conquérant. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p.
66ss.
12. FREUD, Sigmund.Totem et Tabou. Paris: Payot, 1924. A passagem de que fala Marie
Delcourt está na p. 197: “O sentimento de culpabilidade do filho gerou os dois tabus
fundamentais do totemismo, que, por este motivo, devem se confundir com os dois desejos
reprimidos do complexo de Édipo”.
13. EURÍPIDES. Alceste. Rio de Janeiro: Bruno Buccini Editor, 1968, vs. 615-740. [Tradução de
Junito de Souza Brandão].
14. WESTRUP, C.W. Le roi dans l’Odissée. In: Mélanges Fournier. Paris: 1929, p. 772.
15. A respeito do tema Criança exposta (L’enfant exposé), cf. Marie DELCOURT, Op. cit., p.
365.
16. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: Tragédia e comédia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 2235.
CAPÍTULO VI
Troia histórica, Troia mítica e as
invasões dos dórios
1
A esplendorosa civilização micênica, que, lato sensu, se estendeu do
século XVI ao XII a.C., e cuja expansão colonizadora já havia atingido
o litoral asiático, culminou com a histórica Guerra de Troia. “Dez
anos míticos” de um assédio sangrento teriam posto fim à gloriosa
Ílion ou Troia. Hodiernamente, não se põe mais em dúvida não
apenas a existência de Troia, que deve ter sido uma superposição de
cidadelas muito importantes, desde o terceiro milênio até o século
XII a.C., mas sobretudo a sua destruição histórica pelos aqueus. O
primeiro grande passo para o descobrimento da “Troia homérica” foi
dado por Heinrich Schliemann, que, a partir de 1870, fazendo
escavações na colina de Hissarlik, na atual Turquia, a noroeste da
Ásia Menor, encontrou várias cidades sobrepostas, nada menos que
sete, a que seu extraordinário ajudante, o arqueólogo Wilhelm
Dörpfeld, acrescentou mais duas. Schliemann, a princípio, pensou
que a Troia II fosse a homérica, mas a cultura e a experiência de
Dörpfeld fizeram-no inclinar-se para a Troia VI, que possuía restos
de cerâmica muitíssimo semelhantes à de Micenas e Tirinto. Por este
e outros indícios conclui-se que a Troia VI fora erigida ~ em 1900 a.C.,
por um povo sem dúvida proveniente também do mundo indoeuropeu para a Ásia Menor. Cultivando a cerâmica mínia, esse povo
não apenas mantinha um comércio ativo com os micênicos, mas, o
que é mais importante, devia ter um possível parentesco com os
primeiros gregos. Trata-se, segundo todas as probabilidades, dos
hititas1. Cercada por magnífica muralha, Troia VI era uma cidade
opulenta, cuja prosperidade se baseava na fertilidade de seu solo, na
pecuária e na criação de cavalos. Os troianos são chamados
comumente por Homero de “domadores de cavalos”, como atesta o
último verso da Ilíada, em que o maior dos heróis de Troia recebe
este epíteto:
– Assim, eles (os Troianos) fizeram os funerais de Heitor, domador
de cavalos (Il., XXIV, 804).
As escavações em Ílion ou Troia terminaram sob a direção de W.
Blegen e, consoante o grande mestre da Universidade de Cincinnati,
Troia VI foi destruída por um tremor de terra, seguindo-lhe, sem
nenhuma solução de continuidade nem de cultura, embora sem a
opulência da anterior, Troia VIIa2com todas as possibilidades de ser
a cidade de Príamo, a Troia homérica, a Troia histórica. Aliás, alguns
outros fatos rigorosamente históricos, relacionados por Page3,
confirmam a historicidade da Guerra de Troia. Há registros hititas de
uma aliança de cidades da Ásia Menor, entre as quais aparece Ílion
ou Troia4, contra uma coligação de reinos aqueus, ~ pelo século XIII
a.C., exatamente no momento do grande poderio de Micenas, e,
coincidentemente, da destruição de Ílion, que deve ter-se processado
~ entre 1230 e 1225 a.C., segundo os arqueólogos americanos, com
uma diferença de poucos decênios em relação à data tradicional da
Guerra de Troia. Esta, consoante o geógrafo e philologus alexandrino
do século III a.C., Eratóstenes de Cirene, fora em 1183 a.C.
A Ilíada funde, pois, o fausto da Troia VI com a ruína da Troia
VIIa. Com a VI, que trouxera consigo o cavalo, se dera início a uma
civilização diferente da anterior. Troia VIII, que ainda se sobrepôs à
Troia VIIa, culturalmente nada apresenta de importante e Troia IX é
de data muito tardia.
Discutem-se ainda as causas dessa guerra. Uma vasta operação de
pilhagem ou uma bem planejada operação de expansão imperialista,
para se apossar de vastos domínios territoriais no Mediterrâneo
oriental e assegurar o monopólio aqueu de um grande e rico
empório? Na realidade, é grande o número deobjetos micênicos
encontrados nas margens do Mediterrâneo, o que atesta a sua
expansão comercial. Para o agressivo comércio helênico não
bastavam, porém, as “praças” conquistadas no Mediterrâneo oriental.
Avançaram também em direção ao Egito, com o qual mantiveram
excelentes relações comerciais. Descobrimentos arqueológicos
mostraram inúmeros objetos egípcios chegados à Grécia nos séculos
XIV e XIII a.C. e, em contrapartida, desenterram-se no país dos
Faraós numerosos vasos micênicos, principalmente em Tell-elAmarna, a célebre Akhetaton, a efêmera capital do “herético”
Akhnaton ou Amenófis IV. Disputaram com o Egito e os hititas, já
em decadência, as praças da Síria e da Fenícia. Penetrando pelo
interior, chegaram até Jericó... Os aqueus, por conseguinte, não se
satisfizeram com a ocupação de Creta, Rodes e Chipre, mas
conquistaram estabelecimentos comerciais em toda a costa do
Mediterrâneo oriental, desde Tróada até o Egito e isto sem falar em
sua “expansão ocidental”, que atingiu, comprovadamente, Tarento e
Siracusa. Ora, um tal império marítimo haveria, mais cedo ou mais
tarde, que chocar-se com interesses de outros povos. E foi
exatamente o que aconteceu. Os micênicos, que já se haviam
instalado em Mileto e Cólofon e que tinham em Troia um excelente
cliente, para a qual vendiam punhais de bronze, pontas de flecha,
mármore, objetos de marfim e sobretudo vasos, acabaram chocandose com o império hitita e com o reino vassalo de Asuwa. Daí,
possivelmente, a supracitada coligação de vinte e duas cidades da
Ásia Menor, entre as quais se alinhava Troia, contra os aqueus. Esta é,
em síntese, a tese de Denys Page.
Pierre Lévêque, apoiado em outros autores, julga que seria um
método muito estranho o empregado pelos aqueus, para ampliar seu
negócio: destruir precisamente uma cidade que com eles mantinha
um comércio ativo e regular. Opina o ilustre professor de Besançon
que a Guerra e a consequente destruição de Ílion se deveram
simplesmente “a uma gigantesca operação de pilhagem”5. É mister,
no entanto, não esquecer que a riquíssima cidadela de Troia (as
escavações o mostraram), no momento, fazia parte de uma coligação
contra os micênicos. Estes, astutamente, teriam aproveitado a
oportunidade para destruir um inimigo e confiscar-lhe as riquezas.
De qualquer forma, a Guerra de Troia foi o canto de cisne do
“império” aqueu. A derradeira expedição em que heróis destemidos se
congregaram para impor-se no Mediterrâneo oriental. Tudo não teria
passado de mais uma gesta, certamente heroica, não fora a epopeia
homérica, que imortalizou o arrojo e o arrebatamento de Aquiles, a
astúcia e a “nostalgia” de Ulisses, a fidelidade de Penélope, a
dignidade de Heitor e a ternura de Andrômaca!
Mais um pouco e as trevas dórias descerão sobre a Hélade.
2
A civilização micênica havia pois atingido seu clímax, quando lá
pelos inícios do século XII a.C. chegaram à Hélade as últimas levas
de invasores indo-europeus, tradicionalmente denominados dórios. É
inteiramente impossível, todavia, localizar no tempo um movimento
que se processou lentamente e ao longo dos séculos. Uma coisa,
porém, parece indiscutível: o incêndio de Hatusa, capital do império
hitita na Ásia Menor, com o consequente desmoronamento deste
mesmo império; a ameaça que pesou sobre o Egito por parte dos
povos do mar, contida com dificuldade por Ramsés III, bem como a
destruição dos grandes centros da civilização micênica, seguida de
uma completa ruptura e desagregação política, religiosa e cultural do
mundo aqueu, devem-se à erupção violenta dos dórios. Partindo do
Danúbio ou da Ilíria, esses “gregos” já conhecedores do ferro,
aguerridos e violentos, penetraram em vagas sucessivas pelo Epiro e,
através da Macedônia e da Tessália, lograram apossar-se, grosso
modo, de toda a Grécia continental, bem como de várias ilhas,
principalmente de Creta, chegando até Rodes.
Dessa grande calamidade sobraram, ao que parece, as ilhas de
Eubeia, Chipre e a Ática, com sua Atenas eterna, talvez deixada de
lado pela pobreza de seu pequeno território.
Ao apagar das luzes do século XI a.C., chegou ao fim a catástrofe
que submergiu toda a civilização micênica.
Exatamente como as invasões dórias, as migrações aqueias, jônicas
e eólicas, fugindo ao vencedor, se fizeram paulatinamente, no tempo
e no espaço, em direção à Ásia Menor. Essas migrações, é bom
acentuar, que já haviam começado em plena época micênica, bem
antes portanto das invasões dórias e que prosseguiram durante e por
causa das mesmas, tiveram continuidade, por motivos outros,
sobretudo de ordem política e econômica, até o século IX a.C.
Assim, a época da provável “composição” da Ilíada (século IX a.C.),
a Grécia da Ásia, reduzida a um esquema muito simples, apresentase seccionada em três zonas étnicas: ao norte, a Eólida, com as ilhas
de Tênedos e Lesbos; ao centro, a Jônia, com as grandes cidades de
Mileto, Cólofon, Foceia, Éfeso e as ilhas de Samos e Quios; ao sul, a
Dórida, com as cidades de Halicarnasso, Cnido e as ilhas de Cós e
Rodes.
As invasões dórias, do ponto de vista mítico, coincidem com o
chamado Retorno dos Heraclidas, isto é, lato sensu, todos os filhos e
descendentes de Héracles até a geração mais remota, mas, no mito,
denominam-se Heraclidas particularmente os filhos do herói com
Dejanira e os descendentes destes que colonizaram o Peloponeso,
conforme está resumido neste quadro genealógico:
Héracles
Dejanira
Hilo, Ctesipo, Gleno, Hodites e
Macária
Cleodeu
Aristômaco
Têmeno
Após a morte trágica de Héracles no monte Eta e sua gloriosa
apoteose, os filhos fugiram do Peloponeso, temendo a cólera de seu
primo Euristeu, que impusera ao herói os célebres Doze Trabalhos.
Após uma curta permanência na corte do rei Cêix, em Traquine,
refugiaram-se em Atenas, onde Teseu, sem recear a pressão e as
ameaças de Euristeu, lhes deu hospitalidade. Este declarou guerra
aos atenienses, mas na batalha perdeu os cinco filhos. Perseguido por
Hilo, Euristeu foi morto junto dos Rochedos Cirônicos, no Istmo de
Corinto. A vitória, de acordo com a previsão do oráculo, se deveu ao
sacrifício de uma das filhas de Héracles, Macária, que se ofereceu
voluntariamente para morrer pelo bom êxito de Atenas e dos
Heraclidas contra o despotismo de Euristeu.
Com o desaparecimento deste e dos filhos, Hilo com seus irmãos e
descendentes apoderou-se do Peloponeso. Ao cabo de um ano,
porém, uma peste se abateu sobre a região e o oráculo revelou que a
mesma era consequência da cólera divina, porque os Heraclidas
haviam retornado antes do tempo fixado pela Moîra. Obedientes,
voltaram para a Ática, fixando-se na planície de Maratona. Desejoso,
porém, de regressar à pátria, Hilo, a essa época, já casado com Íole,
outrora concubina de seu pai, e ao qual os irmãos consideravam
como o verdadeiro herdeiro da tradição paterna, voltou a consultar o
oráculo de Delfos. A Pítia lhe respondeu que a aspiração dos
Heraclidas só poderia ser alcançada “após a terceira colheita”. À
frente dos seus, “após a terceira colheita”, Hilo avançou contra o
Peloponeso, mas se chocou com as tropas de Équemo, rei de Tégea,
cunhado dos Dioscuros, de Helena e Clitemnestra. Tendo-o
desafiado para um combate singular, Hilo foi vencido e morto. Seu
neto Aristômaco voltou a consultar a Pítia que lhe respondeu: “Os
deuses te darão a vitória, se atacares pela via estreita”. Aristômaco
interpretou que “a via estreita” era o Istmo de Corinto. Atacou
novamente a Équemo, mas foi morto e, mais uma vez, os Heraclidas
foram vencidos. Têmeno, filho de Aristômaco e bisneto de Hilo, fez
mais uma tentativa junto a Apolo. Este se limitou a repetir e a
renovar as respostas anteriores. Têmeno observou à Pítia que seu pai
e bisavô, tendo seguido escrupulosamente as determinações do
oráculo, foram vencidos e mortos. Replicou-lhe Apolo que a culpa
havia sido deles, que não haviam sabido interpretar corretamente o
oráculo: por “terceira colheita” se deveria entender “terceira geração”
e, por “via estreita”, “a via do mar e os estreitos entre a costa da Grécia
continental e a do Peloponeso”.
Têmeno formava com seus irmãos a terceira geração após Hilo, e,
tendo compreendido agora o oráculo, pôs-se a construir uma
verdadeira frota em Naupacto, na costa da Lócrida, mas a morte do
adivinho Carno por um dos Heraclidas fez que uma imensa
tempestade dispersasse a frota e houve uma fome tão grande, que
todos debandaram. Mais uma consulta a Apolo. O deus respondeu
que as calamidades se deviam ao assassinato de Carno e que a vitória
dependia do banimento do homicida por dez anos e de “um guia de
três olhos”. O assassino foi expulso e, um dia, apareceu no
acampamento dos descendentes de Héracles “um ser de três olhos”:
um caolho montado num cavalo. Esse caolho era Óxilo, rei da Élida,
de onde fora expulso por um ano, por causa de um homicídio
involuntário.
O rei se dispôs a guiá-los, desde que tivesse o apoio dos mesmos
para recuperar o trono. Travada a batalha, a vitória, dessa feita, foi da
“terceira geração”. O rei do Peloponeso, Tisâmeno, filho de Orestes,
foi morto e suas tropas destroçadas. O Peloponeso foi, a partir de
então, dividido em três reinos básicos: Argólida, Lacônia e Messênia.
A Élida teve seu rei Óxilo de volta e a Arcádia permaneceu nas mãos
de seus primitivos habitantes. Um século após a morte de Héracles,
seus descendentes voltaram ao Peloponeso.
O retorno dos Heraclidas reflete as lutas sangrentas travadas pelos
invasores dórios contra os aqueus e o auxílio que àqueles foi prestado
“por guias” e chefes de um clã aqueu no exílio.
3
Com as invasões dórias houve, já se disse, uma completa ruptura e
desagregação política, social, religiosa e cultural do mundo aqueu.
Durante séculos se afirmou que os dórios haviam “criado” na
Hélade duas novidades de importância capital: a metalurgia do ferro
e a cerâmica geométrica e que a conquista do Peloponeso se devera à
superioridade das armas de ferro dórias sobre o armamento de
bronze dos aqueus. Quanto ao ferro, não foi o mesmo “inventado”
nem tampouco usado pela vez primeira pelos dórios. A metalurgia
do ferro já se conhecia bem antes na Anatólia e seu monopólio
pertencia aos hititas. Com a ruína do império centrado em Hatusa, o
uso do ferro se difundiu pela Palestina e Creta, e depois pela Grécia,
possivelmente, isto sim, através dos dórios. A cerâmica geométrica,
que predominou na Hélade de ~ 1100 a 750 a.C., não é também uma
criação dória: surgiu, na realidade, da arte micênica e,
coincidentemente, alcançou seu maior esplendor em terras não
dominadas pelos dórios: Atenas e a ilha de Chipre.
As grandes “novidades” dórias foram no plano social e religioso.
Fortemente organizados em torno de seus chefes militares, os
invasores estavam ainda muito presos e ligados à primitiva e
belicosa sociedade indo-europeia. Reinava entre eles uma
patrilinhagem feroz, dada a superioridade do homem como
guerreiro. Houve, nesse sentido, um retrocesso muito sério em
relação aos reinos aqueus, onde a mulher, mercê da influência
matrilinear cretense, gozava de uma liberdade, de uma estima e de
um respeito, que nunca mais ela terá, ao menos na Grécia
continental. Vivendo em comunidades, indissoluvelmente ligados
pela camaradagem bélica, os homens prolongavam na vida diária
essa convivência íntima, própria da guerra em que estavam de
contínuo empenhados. Desse modus uiuendi originaram-se,
certamente, dois hábitos, que se hão de perpetuar no helenismo: a
nudez do atleta e a pederastia6.
Estrabão (~ 63 a.C.-19 d.C.), misto de filósofo estoico, historiador e
geógrafo, nos fala em sua Geografia, 10,483, de certos hábitos
cretenses herdados dos dórios: o jovem, em plena adolescência, antes
de ser admitido na classe dos adultos, era raptado por um mais velho
e com este passava dois meses no campo. Ao retornar, recebia do
amante uma armadura completa e tornava-se seu companheiro
inseparável no combate. Só então, após esse “rito iniciático”, era o
adolescente admitido no ἀνδρεῖον, (andreîon), isto é, no clube dos
homens.
No plano religioso, o retrocesso dório foi responsável também por
algumas transformações bem acentuadas. O equilíbrio
“patriomatrilinear” conquistado a duras penas pela civilização
micênica, mercê da influência cretense, acentue-se mais uma vez, foi,
no mundo dório, inteiramente rompido. As deusas, hipóstases da
Grande Mãe, foram alijadas e instaurou-se uma sociedade divina de
feição patrilinear, à imagem e semelhança da sociedade viril dória,
uma vez que a mulher espartana, abandonando a dança e a música,
tão cotadas na educação micênica, transformou-se em “atleta”. A
graça e a feminilidade de outros tempos foram substituídos por uma
concepção utilitarista e crua: a mulher tinha o dever sagrado, antes
do mais, de se preparar para ser mãe fecunda de filhos robustos. Por
outra: a mulher espartana tornou-se matriz sadia, uma espécie de
laboratório eugênico, como aconteceu, guardadas as devidas
proporções, com a juventude dos estados totalitários do tipo fascista,
na Gioventù fascista, na Hitlerjugend e continua a acontecer nos
milenarismos utópicos...
Dodona e Olímpia, outrora possessão de deusas-mães, são
solenemente ocupadas por Zeus. Delfos, outrora domínio de Geia e
da serpente Píton, é, a sangue e fogo, ocupado por Apolo, que, não
satisfeito, expulsa de Amiclas, cidade muito próxima de Esparta, a
Jacinto, jovem herói pré-helênico da vegetação.
Em síntese, ao equilíbrio entre patrilinhagem e matrilinhagem que
caracterizava o sincretismo creto-micênico sucedeu o mais
grosseirodomínio masculino.
Sofreram igualmente transformações os hábitos funerários. A
inumação, que era o processo universalmente praticado em toda a
Hélade, foi substituída, a partir dos dórios, pela cremação.
De qualquer forma, as invasões dórias foram um desastre. Nos
inícios do século XII a.C., a civilização micênica foi varrida do solo
helênico. Micenas, Tirinto, Tebas, Pilos foram destruídas e
incendiadas. A escrita, embora de caráter administrativo,
desapareceu ou deixou de ser usada. O contato e o comércio com o
mundo exterior foram reduzidos a quase nada. A extraordinária arte
micênica entrou em franca decadência. Durante pelo menos três
séculos “a Grécia ficou isolada, empobrecida, paroquial”. Era a Idade
de Ferro. Um caos cultural envolveu em trevas dórias a Grécia
continental.
Jônios, eólios, mas sobretudo os aqueus, tangidos pelos invasores,
voltaram à Ásia Menor, não mais como conquistadores: eram agora
suplicantes. Não formavam, certamente, grupos naturais, compactos
e fortes; não eram portadores do fogo sagrado de seus lares, nem os
guiavam seus deuses nacionais.
O génos estava definitivamente rompido. Eram tão somente
refugiados e indigentes, sem deuses, sem pátria, sem lar. A pouco e
pouco, todavia, começaram a fundir-se com seus antigos e
esquecidos irmãos de outrora. Multiplicam-se os casamentos. Até
mesmo o poder político dividiu-se, muitas vezes, entre os plutocratas
senhores da Ásia Menor grega e os imigrados. Bem mais rápido do
que era de se esperar, os dinastas da Jônia vangloriavam-se de sua
origem continental. Eis aí como se apresenta a situação da Jônia, à
época em que nasceu a Ilíada, situação que deveria ter sido outra,
cerca de quatro séculos antes. Aportaram à Ásia Menor como
imigrantes, mas esta situação era contrabalançada por um grande
orgulho: a lembrança do império aqueu, de sua opulência e de suas
conquistas. O passado era sua riqueza: viviam em póthos, na doce
lembrança da presença de uma ausência. Herdeiros da raça da idade
dos heróis, tinham na lembrança que esta terra a que chegavam
como suplicantes, seus ancestrais haviam-na pisado como
conquistadores. A glória de uma de suas derradeiras façanhas, a
destruição de Ílion, mantinha-lhes a coragem, quando forçados a
combater para conquistar um lugar ao sol. Seus poetas e aedos,
rememorando-lhes este passado, alimentavam-lhes o sentimento e o
orgulho de serem descendentes de uma idade heroica7.
4
Falou-se de uma Ílion histórica, de uma guerra histórica, mas
existe também uma Troia mítica, com sua guerra gigantesca de dez
anos. Tudo começou com o rapto de Helena, mulher de Menelau, um
dos filhos amaldiçoados de Atreu. Vamos mostrar o mito e suas
consequências, desde os primórdios.
Tétis (Thétis), que é preciso não confundir com a titânida Tétis
(Tethýs), era a mais bela das nereidas, filha do Velho do Mar, Nereu, e
de Dóris. Zeus e Posídon queriam conquistá-la, mas um oráculo de
Têmis revelou que o filho nascido do enlace da nereida com um dos
dois seria mais poderoso que o pai.
De imediato os dois deuses desistiram de seu intento e, para afastar
qualquer ameaça, apressaram-se em conseguir para ela um marido
mortal. Outros mitógrafos atribuem o oráculo a Prometeu, que havia
predito que o filho de Zeus e Tétis se tornaria o senhor do mundo,
após destronar o pai. O centauro Quirão, sem perda de tempo,
começou a orientar seu discípulo Peleu no sentido de conquistar a
filha imortal de Nereu. Apesar de todos as sucessivas metamorfoses
de Tétis, o que é próprio das divindades do mar, em fogo, água, vento,
árvore, pássaro, tigre, leão, serpente e, por fim, em verga, Peleu,
orientado por Quirão, a segurou firmemente e a deusa, embora
contra a vontade, deu-se por vencida. Para as bodas solenes de Tétis e
Peleu, no monte Pélion, compareceram todos os deuses. As Musas
cantaram o epitalâmio e todos os imortais ofereceram lembranças
aos noivos. Entre as mais apreciadas e notáveis destacam-se uma
lança de carvalho, dádiva de Quirão, e o presente de Posídon, dois
cavalos imortais, Bálio e Xanto, os mesmos que, na Guerra de Troia,
serão atrelados ao carro do bravo Aquiles.
O casamento do discípulo de Quirão com a filha de Nereu foi um
desastre. Já haviam tido seis filhos, mas, na ânsia de imortalizá-los,
Tétis sempre acabava por matá-los. Assim foi, até que Peleu lhe
tomou das mãos o sétimo, o caçula Aquiles, no momento em que a
nereida, na tentativa de imortalizá-lo, segurando-o pelo calcanhar
direito, o temperava ao fogo. Outra versão assevera que Tétis,
segurando-lhe o mesmo calcanhar, o mergulhava nas perigosas
águas do rio infernal Estige, que tinham o dom de tornar
invulnerável tudo que nelas fosse introduzido. Na realidade, Aquiles
era invulnerável, menos no local por onde a mãe o segurou...
Tétis, inconformada com a atitude do marido, a quem, aliás, não
amava, o abandonou para sempre. Embora confiando ao pai o filho
caçula, jamais deixou de ajudá-lo e protegê-lo por todos os meios a
seu alcance, como se pode ver através de toda a Ilíada. A Moîra,
porém, tem os seus desígnios e Aquiles perecerá muito jovem,
exatamente pelo calcanhar não temperado pelo fogo ou não
banhado pelas águas do Estige.
De qualquer forma, foi durante as núpcias de Tétis e Peleu que Éris,
a Discórdia, com certeza “convidada a não comparecer” ao monte
Pélion, deixou cair entre os deuses a maçã de ouro, o Pomo da
Discórdia, destinado à mais bela das três deusas ali presentes: Hera,
Atená e Afrodite. In continenti se levantou uma grande disputa e
altercação entre as três. Não se atrevendo nenhum dos deuses a
assumir a responsabilidade da escolha, Zeus encarregou Hermes de
conduzir as três imortais ao monte Ida, na Ásia Menor, onde seriam
julgadas pelo “pastor” Páris ou Alexandre.
Antes de se lhe conhecer a decisão, uma palavra sobre o extenso
mito do pastor do monte Ida. Páris ou Alexandre era o filho caçula de
Príamo, rei de Troia, e de sua esposa Hécuba. Esta, nos últimos dias
de gravidez, sonhou que estava dando à luz uma tocha que
incendiava a cidade. Príamo consultou a seu filho bastardo Ésaco e
obteve como resposta que o nascituro seria a ruína de Ílion. O rei, por
isso mesmo, mandou matar a criança, tão logo nasceu, mas Hécuba o
entregou ao pastor Agesilau, para que o expusesse no monte Ida. O
servo assim fez, mas, regressando cinco dias depois, encontrou uma
ursa amamentando o menino. Impressionado, Agesilau o recolheu e
criou ou, segundo uma variante, o entregou aos pastores do Ida, para
que o fizessem. Páris cresceu forte e belo, tornando-se um pegureiro
corajoso, que defendia o gado contra os ladrões e os animais
selvagens, recebendo, por isso mesmo, o nome de Alexandre, isto é, “o
protetor dos homens”, e, numa interpretação mais popular e mítica,
“o que protege” o rebanho ou “o homem protegido”, por não ter
perecido no monte Ida.
Certo dia, os servidores de Príamo foram buscar no rebanho, que
Alexandre guardava, um touro pelo qual o pastor tinha particular
estima. Inconformado com o fato de que o animal seria o prêmio do
vencedor nos Jogos Fúnebres em memória do filho de Príamo, quer
dizer, em honra do próprio Páris, que os pais reputavam morto, o
valente zagal seguiu os servidores do rei, resolvido a participar do
certame e recuperar seu animal favorito. Alexandre participou das
provas e venceu-as todas, competindo contra os próprios irmãos, que
não sabiam quem era ele. Deífobo, um deles, irritado, quis matá-lo
com a espada, mas o vencedor refugiou-se no altar de Zeus. Sua irmã,
a profetisa Cassandra, o reconheceu e Príamo, feliz por ter
reencontrado o filho, que julgava morto, acolheu-o e deu-lhe o lugar
que lhe cabia no palácio real.
Pois bem, foi a este Páris, quando ainda era pastor no monte Ida,
que Zeus enviou Hermes com as três deusas que disputavam, com
sua beleza, a maçã de ouro, a grande provocação de Éris, a Discórdia.
Ao ver as divindades, o pastor teve medo e quis fugir, mas Hermes o
persuadiu a funcionar como árbitro, em nome da vontade de Zeus.
As imortais expuseram então seus argumentos e defenderam sua
própria causa e candidatura, oferecendo-lhe cada uma sua proteção e
dons particulares, se fosse por ele declarada vitoriosa. Hera
prometeu-lhe, se vencedora, o império da Ásia; Atená, a sabedoria e a
vitória em todos os combates; Afrodite assegurava-lhe tão somente o
amor da mulher mais bela do mundo: Helena, mulher de Menelau,
rainha de Esparta. Alexandre decidiu que a mais bela das três era
Afrodite. Até o dia desse julgamento fatídico, que provocará a Guerra
de Troia, Páris amava uma ninfa do Ida, chamada Enone.
Conhecedora do futuro e hábil curandeira, ambos dons de Apolo,
tudo fez para que Páris não a abandonasse. Ao ver que suas previsões
e súplicas eram inúteis, disse-lhe, na despedida, que, se fosse ferido,
voltasse, pois só ela poderia curá-lo.
Da cidadela de Ílion, em companhia de Eneias, partiu Alexandre
para Esparta, em busca de Helena. Heleno e Cassandra, filhos de
Príamo, e ambos dotados de poder divinatório (manteía), previram o
desfecho trágico da aventura, mas ninguém lhes deu ouvido.
No Peloponeso, Páris e Eneias foram acolhidos pelos Dioscuros,
Castor e Pólux, irmãos de Helena, que os conduziram ao palácio real.
Menelau os recebeu dentro das normas da sagrada hospitalidade e
lhes apresentou Helena. Dias depois, tendo sido chamado a Creta,
para assistir aos funerais de seu padrasto Catreu, o rei entregou os
hóspedes à solicitude da esposa. Bem mais rápido do que se esperava,
a rainha foi conquistada por Páris: era jovem, belo, cercava-o o fausto
oriental e tinha a ajuda indispensável de Afrodite. Helena,
apaixonada, reuniu todos os tesouros que pôde e fugiu com
Alexandre, levando várias escravas, inclusive a cativa Etra, mãe de
Teseu, mas deixando em Esparta sua filha Hermíona, com apenas
nove anos. Regressando a Troia, Páris foi bem acolhido por Príamo e
toda a casa real, não obstante as terríveis profecias de Cassandra.
Sabedor de sua desgraça por Íris, mensageira dos imortais, o
monarca voltou apressadamente a Esparta e, para tentar resolver
pacificamente o grave problema, Menelau e Ulisses foram como
embaixadores a Ílion. Reclamaram Helena e os tesouros carregados
pelo casal. Páris se recusou a devolver tanto Helena quanto os
tesouros e ainda tentou convencer os troianos a matarem o rei de
Esparta, que foi salvo por Antenor, companheiro e prudente
conselheiro do velho Príamo. Com a recusa de Páris e sua traição a
Menelau, a guerra se tornou inevitável.
Reunidos todos os reis e heróis, que haviam prestado juramento de
solidariedade a Tíndaro, por ocasião do casamento de Helena, de que
já se falou, deu-se início aos preparativos da grande expedição contra
Troia.
Consultado o Oráculo de Delfos acerca da oportunidade de se
iniciar uma expedição militar contra Ílion, aquele respondeu que se
oferecesse a Atená Prónoia, Atená “Providência”, porque era preciso
tê-la in bono animo, um colar que Afrodite outrora dera a Helena.
Hera pôs-se, de imediato, ao lado de Menelau e tudo fez para reunir
os heróis aqueus contra Páris, seu inimigo pessoal. É curioso, aliás,
como os deuses se dividiram, militarmente, nessa refrega, tendo cada
um, evidentemente, seus motivos e interesses pessoais. Se ao lado dos
helenos se alinharam Atená, Hera, Tétis, Posídon e Hefesto, nas
fileiras troianas pelejavam Afrodite, Ares, Apolo e Ártemis. Alguns
deles foram até mesmo feridos em combate, como Ares e Afrodite.
Tem-se, não raro, a impressão, na leitura da Ilíada, de que a Guerra de
Troia, em determinados momentos, foi mais uma teomaquia, uma
luta de deuses, do que uma andromaquia, um confronto de heróis.
Zeus posicionou-se como árbitro, não de todo isento: dependia, por
vezes, do tom da voz feminina que lhe chegasse aos ouvidos... Em
todo caso, pesava os destinos, confundindo-se, muitas vezes, com a
própria Moîra e, no fundo, sabedor de que a vitória final seria dos
aqueus, soube retardá-la, para dar-lhe um brilho maior.
Concluída a digressão, é mister voltar aos preparativos para a
sangrenta seara de Ares. Não foi fácil convocar alguns dos chefes e
heróis indispensáveis para a vitória dos gregos. É o caso, entre outros,
de Aquiles, sem cuja presença, consoante a profecia de Calcas, Troia
não poderia ser conquistada. É que o herói fora escondido pela
própria mãe. Tendo ciência de que o fim de Troia coincidiria com a
morte do filho, Tétis vestiu-o com hábitos femininos e o conduziu
para a corte do rei Licomedes, na ilha de Ciros, onde o herói passou a
viver disfarçado no meio das filhas do rei, com o nome de Pirra, isto
é, ruiva, porque o herói tinha os cabelos louro-avermelhados. Sob
esse disfarce feminino, Aquiles se uniu a uma das princesas,
Deidamia, e deu-lhe um filho, Neoptólemo, o mesmo que, mais tarde,
tomará o nome de Pirro. Tendo conhecimento do esconderijo do filho
de Tétis, Calcas o revelou aos atridas, que enviaram Ulisses e
Diomedes para buscá-lo. Mesmo assim o maior dos heróis aqueus
teve uma oportunidade de escolha, pois Tétis preveniu o filho do
destino que o aguardava: se fosse a Troia, teria uma fama
retumbante, mas sua vida seria breve; se, ao contrário, ficasse, viveria
por longo tempo, mas sem glória. Aquiles escolheu a vida breve e
gloriosa. O historiador latino Caio Salústio Crispo (86-~35 a.C.),
muitos séculos depois, ainda faria ecoar a opção de Aquiles: ...et
quoniam uita ipsa, qua fruimur, breuis est, memoriam nostri quam
maxume longam efficere... (De Coni. Cat., 1,3): “e, já que a vida que
desfrutamos é breve, devemos fazer por deixar de nós a mais longa
memória”. E Marco Túlio Cícero (106-40 a.C.) parece ter-lhe
completado o sentido: Breue enim tempus aetatis, satis longum est ad
bene honesteque uiuendum (De Sen., 19,70): “Curto, na verdade, é o
tempo de nossa vida, mas é bastante longo para se viver bem e
honradamente”.
Congregados, por fim, os grandes heróis, Aquiles, Ulisses, Ájax,
Filoctetes, Diomedes, Agamêmnon, Menelau, Nestor... os aqueus
partiram para a Tróada. Apaziguada, como já se relatou, a cólera de
Ártemis em Áulis, a gigantesca frota aqueia chegou a seu destino.
Eram, ao todo, conforme o Catálogo das Naus, Il., II, 494-769, mil
cento e noventa e três naus! Nos dois primeiros cantos da Ilíada o
combate propriamente ainda não começara. No terceiro ainda existia
uma possibilidade de se resolver a grave situação, sem grande
derramamento de sangue: a proposta foi do próprio Páris, que
sugeriu um combate singular entre o ofendido, Menelau, e o ofensor,
ele, Páris. Com o vencedor ficariam Helena e os tesouros. Travou-se a
luta entre os dois heróis e, quando Menelau estava prestes a liquidar
a Páris, Afrodite interveio. Envolveu o troiano num manto de nuvens
e o transportou para os braços de Helena, aliás o campo de batalha
predileto de Alexandre, que, como herói e guerreiro, deixa muito a
desejar! Agamêmnon reclamou a vitória de Menelau, mas nada
conseguiu. Houve, a seguir, um pequeno intervalo de tréguas, que
foram logo rompidas por um aliado dos troianos, o lício Pândaro, que
atirou uma seta contra Menelau. A partir desse momento começou
realmente a cruenta refrega pela posse de Ílion, que só foi tomada e
destruída, após a morte de seu ínclito herói Heitor e, assim mesmo,
graças a um genial estratagema inspirado por Atená, materializado
por Epeu e que “um dia o divino Ulisses introduziu na cidadela,
pejado de guerreiros, que saquearam Ílion”. Trata-se do Cavalo de
Troia. A grande cilada grega já aparece no canto VIII da Odisseia
pelos lábios do aedo Demódoco, e que foi magnificamente
desenvolvida e enriquecida sete séculos depois no canto 2 da Eneida
do mais inspirado poeta latino, Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.).
Fingindo uma retirada, canta Homero na Odisseia (VIII, 500-520),
pela voz de Demódoco, parte dos aqueus, após incendiar as tendas,
embarcou em suas naus, enquanto outros sentavam-se silenciosos
em torno de Ulisses, dentro do Cavalo, que os troianos haviam
arrastado para dentro de Ílion. Grande era a querela dos vassalos de
Príamo a respeito do que fazer com o gigantesco simulacro de
madeira. Três eram as propostas: abrir-lhe o bojo com o bronze;
arremessá-lo do cimo dos rochedos ou poupar o grande simulacro
como oferta propiciatória aos deuses. A terceira foi a vencedora,
“porque era destino da cidade que fosse arruinada, quando tivesse
dentro o grande Cavalo de Madeira, onde se escondiam todos os mais
valentes dos argivos, que levavam aos troianos carnificina e morte. E
o aedo cantava como os filhos dos aqueus, após saírem do cavalo e
deixarem o bojo do monstro, destruíram Troia”.
Foram dez anos de ódio, de terror, de lágrimas, de vilania e de
bravura indomável, de morte e de carnificina. No fim, tudo acabou.
Ílion era um monte de cinzas e de pedras calcinadas. Milhares de
heróis, bravos e destemidos, transformaram Troia num silencioso
dormitório de mortos.
Aquiles, cujo destino estava traçado, foi morto ingloriamente por
uma flecha disparada por Páris, que, escondido atrás da estátua de
Apolo, o alvejou. A flecha, guiada pelo deus, atingiu o herói na única
parte vulnerável do corpo, o calcanhar direito. Mas também o raptor
de Helena estava com seus momentos cronometrados pela Moîra: foi
mortalmente ferido por uma flechada de Filoctetes. Procurou
desesperadamente o auxílio de Enone, a ninfa que ele abandonara no
monte Ida, pois somente ela poderia curá-lo. Enone, a princípio, se
recusou a atendê-lo, ainda amargurada com a ingratidão e
infidelidade de Páris. Quando, por fim, resolveu socorrê-lo, era tarde
demais. Após a morte de Alexandre, Helena se casou com Deífobo,
também filho de Príamo e Hécuba. Menelau, porém, foi ao encalço
do casal e liquidou Deífobo. Quando levantou a espada para matar
Helena, esta se lhe mostrou seminua e ressurgiram no rei de Esparta
as chamas do antigo amor! Certamente, ao levantar a espada para
descarregá-la na esposa infiel, Menelau estava irritado com o peso do
capacete empenachado de crinas e outros enfeites que lhe cobriam a
cabeça... O retorno do casal, agora reconciliado, foi uma odisseia.
Tempestades, naufrágios, calmarias, fome e uma permanência
forçada de cinco anos no Egito marcaram-lhe o difícil regresso.
Finalmente, após oito anos de sofrimentos, abriram-se de novo para
o rei Menelau e a rainha Helena as altas portas do palácio de Esparta,
onde Telêmaco, filho de Ulisses, em suas peregrinações em busca do
pai, irá encontrá-los felizes e sorridentes!
Nestas alturas dos acontecimentos, os deuses já se haviam
esquecido de Troia, perpetuando, no Olimpo, sua imortalidade com o
néctar e a ambrosia, num sorriso interminável!
Menelau, apesar de na Ilíada e mesmo nos Poemas Cíclicos8não ter
sido nenhum modelo de heroísmo e de apresentar-se como
personagem apagada, indecisa e sem personalidade, mereceu, já em
idade avançada, ser transportado em vida para a Ilha dos BemAventurados. Um “prêmio” dos Imortais, talvez por ter sido genro de
Zeus ou por sua rigorosa e pacífica fidelidade conjugal... Helena, por
motivos que se dirão logo a seguir, teria ficado por aqui mesmo, em
seus santuários, até mesmo porque, numa sociedade acentuadamente
patrilinear, como a enfocada por Homero, uma mulher, embora filha
de Zeus, dificilmente chegaria à Ilha de Avalon! Existe, porém, uma
variante mais tardia, segundo a qual a linda Helena se teria casado
com Aquiles (post mortem?) e o casal estaria vivendo no meio de
festins na Ilha Branca, no mar Negro, na foz do rio Danúbio (v.
Helena, o eterno feminino).
Falou-se, neste capítulo, do rapto de Helena. Tal fato merece um
ligeiro comentário. Helena não foi raptada apenas uma vez, mas
duas. O mito da esposa de Menelau é deveras confuso e complexo.
Inúmeras variantes posteriores a Homero parecem encobrir o
sentido primitivo do mitologema. Filha de Zeus e de Leda, na
epopeia homérica, seu pai “humano” era Tíndaro e seus irmãos os
Dioscuros, Castor e Pólux, e uma irmã, Clitemnestra. Muito cedo,
todavia, Helena tornou-se filha de Zeus e de Nêmesis. Esta, para fugir
à tenaz perseguição de Zeus, símbolo da fecundação, percorreu o
mundo inteiro, tomando todas as formas possíveis, até que, cansada,
no outono, se metamorfoseou em gansa. O deus se transformou em
cisne e a ela se uniu, em Ramnunte, perto de Maratona, na Ática. Em
consequência dessa união, Nêmesis pôs um ovo que foi escondido num
bosque sagrado, “a semente guardada no seio da terra”. O ovo,
encontrado por um pastor, foi entregue a Leda. Esta o guardou num
cesto e, no tempo devido, nasceu Helena, que Leda criou como sua
própria filha. A tradição que faz de Leda mãe de Helena narra o fato
de maneira análoga: para evitar que Leda lhe escapasse, certamente
metamorfoseada também em gansa, Zeus, sob a mesma forma de
cisne, fê-la pôr um ovo, de que nasceu Helena. Segundo outra versão,
eram dois ovos: de um nasceram Helena e Pólux, que foram
imortalizados pelo pai; do outro, Castor e Clitemnestra, ambos
“mortais”.
Pois bem, essa personagem mítica especial, Helena, foi raptada,
uma primeira vez, pelo herói ateniense Teseu, que a conduziu a
Afidna, na Ática, e a confiou à sua mãe Etra. Mas quando Teseu e seu
amigo inseparável, Pirítoo, desceram ao Hades para raptar Perséfone,
deusa essencialmente da vegetação, os Dioscuros atacaram Afidna,
levando de volta sua irmã e como cativa a mãe de Teseu, Etra, que,
como já se viu, foi conduzida para Troia por Helena, quando de seu
segundo rapto por Páris.
Ora, todos os fatos acima narrados acerca do nascimento da rainha
de Esparta, sempre tendo, de um lado, por pai um deus da
fecundação e por matriz um ovo, e, de outro, as fugas constantes de
“suas mães”, Nêmesis e Leda e “seus raptos” por Teseu e Páris,
parecem levar a uma só conclusão: Helena teria sido primitivamente
uma deusa ctônia e, por conseguinte, uma deusa da vegetação, uma
guardiã dos ovos, das sementes depositadas no seio da terra. Como
tal, uma vítima destinada ao rapto. Com o tempo, “a deusa Helena”,
suplantada por outras divindades da vegetação mais importantes,
teria caído no esquecimento e passado à classe das heroínas, fato
comum e bem atestado na mitologia.
Na realidade, o rapto de deusas, Perséfone, “Helena”; de heroínas,
caso de Europa, Leda ou das Sabinas... fazem parte integrante não
somente de um ritual de iniciação, mas também de um rito da
vegetação, como ainda se pode observar em culturas primitivas9.
Normalmente, o rapto se consuma no outono, “quando os trabalhos
agrícolas estão terminados”, os celeiros estão cheios e é, portanto, o
momento de se pensar e preparar a próxima colheita.
Na Grécia, no segundo ato do casamento, denominado pompé,
“ação de conduzir”, a noiva, seguida de uma procissão alegre e festiva,
é levada ou por arautos ou pelo marido, da casa paterna para seu
novo lar. Não podendo penetrar com seus próprios pés na nova
habitação, porque o fogo sagrado do lar ainda não fora aceso, a noiva
simula uma fuga e começa a gritar, pedindo o auxílio das mulheres
que a acompanham. O marido terá de raptá-la e com ela nos braços
atravessa a porta com todo o cuidado, para que os pés da esposa não
toquem na soleira. No casamento romano, muitíssimo semelhante ao
grego, não por imitação ou sincretismo, mas pela origem comum
indo-europeia dos dois povos, repete-se o mesmo ritual. A segunda
parte, denominada deductio in domum, ação de conduzir ao lar,
quando o cortejo para em frente à casa do marido, a noiva simula a
fuga e, raptada pelo marido, transpõe nos braços do mesmo a soleira.
O mundo moderno, embora tenha esquecido o valor iniciático e a
sacralidade da fertilização do ritual do rapto da esposa, ainda, por
vezes, sem o saber, o relembra. As noivas, ao menos as mais
“dietéticas”, têm ou “tinham” o direito de ser transportadas nos
braços “hercúleos” do marido para dentro do novo lar ou do quarto
da primeira noite de núpcias!
Na expressão de Joseph L. Henderson, “o casamento pode
considerar-se um rito de iniciação em que o homem e a mulher têm
que submeter-se mutuamente. Em algumas sociedades, todavia, o
homem compensa sua submissão ‘raptando’ ritualmente a noiva,
como fazem os dyaks da Malaia e Bornéu, Hoje em dia existe uma
reminiscência dessa prática no fato de o noivo cruzar a soleira da
porta com a noiva nos braços”.
Na realidade, como acrescenta ainda o mesmo Joseph L.
Henderson, “independentemente do medo neurótico de que mães ou
pais invisíveis podem estar espreitando atrás do véu do matrimônio,
até mesmo um jovem normal pode sentir-se apreensivo com o rito
matrimonial. O casamento é essencialmente um rito de iniciação da
mulher, em que o homem há de sentir-se tudo, menos um herói
conquistador. Por isso mesmo, não surpreende que se encontrem em
sociedades tribais ritos compensadores de semelhante temor como o
rapto ou a violação da noiva”10. A respeito desse último tema, aliás, a
violação da noiva, falaremos mais adiante.
1. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. Coimbra:
Atlântida, 1965, p. 56s.
2. BLEGEN, W. Troy and the Trojans. London: Thames and Hudson, 1963.
3. PAGE, D.L. The Trojan War. In: Journal of Hellenic Studies, 84, 1964, p. 1-20.
4. BLEGEN, W. Op. cit., p. 6, faz uma distinção entre Ílion e Troia: a primeira designaria a
fortaleza, a cidadela; a segunda, a região. Tal distinção parece não existir na Ilíada.
5. LÉVÊQUE, Pierre. Op. cit., p. 49.
6. MARROU, Henri-Irénée. Histoire de l’éducation dans l’Antiquité. Paris: Seuil, 1955, p. 55ss.
7. BRANDÃO, Junito de Souza. De Homero a Jean Cocteau. Rio de Janeiro: Bruno Buccini
Editor, 1969, p. 14.
8. Denominam-se Cíclicos poemas épicos antigos, com exceção da Ilíada e da Odisseia. Os
relativos à Guerra de Troia são basicamente os seguintes: Etiópida, de Arctino de Mileto (~
séc. VIII a.C.), é uma continuação da Ilíada, até o suicídio de Ajax.
Destruição de Ílion, do mesmo autor. O assunto é a destruição de Troia. É a fonte capital do
segundo canto da Eneida de Vergílio.
Pequena Ilíada, de Lesques de Mitilene, na ilha de Lesbos (~ séc. VII a.C.), que também é uma
continuação do poema homérico.
Cantos Cíprios, em grego “Kypria”, subentendendo-se épe: acontecimentos anteriores à
Ilíada:
Zeus suscitou a Guerra de Troia para que houvesse um equilíbrio demográfico. A terra
estava habitada por um excessivo número de homens.
Nóstoi, Regressos, de Ágias ou Hágias de Trezene (séc. VII a.C.): retorno à pátria dos grandes
heróis, afora Ulisses.
Telegonia, de Êugamon de Cirene (séc. VI), mera continuação da Odisseia.
9. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 104ss [Tradução de
Mariano Ferreira].
10. JUNG, Carl Gustav et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 134.
CAPÍTULO VII
Homero e seus poemas:
deuses, mitos e escatologia
1
Numa apresentação sumaríssima da epopeia homérica, já que o
objetivo deste livro não é a literatura, mas o mito, é conveniente
deixar claro um dado fundamental. A Odisseia, com os dez anos de
peregrinação de Odysseús, o nosso Ulisses1, em seu regresso ao lar, em
Ítaca, após a destruição de Troia, é bem diferente, do ponto de vista
“histórico”, da Ilíada. Opinam alguns estudiosos de Homero2, no
entanto, que essa diferença, quanto ao fundo histórico de ambos os
poemas, não deve ser excessivamente exagerada. A base histórica da
Odisseia seria a busca do estanho. Realmente o ferro era pouco e o
estanho absolutamente inexistente na Hélade. Possuindo o cobre,
mas necessitados e desejosos do bronze, os helenos dos “tempos
heroicos” organizaram a rota do estanho. É bem verdade que a
espada de ferro dos dórios havia triunfado do punhal de bronze dos
aqueus, mas, até pelo menos o século VIII a.C., o bronze há de ser o
metal nobre da nobre elite da pátria de Homero. Assim se poderia
defender que a temática do périplo fantástico de Ulisses teria sido o
mascaramento da busca do estanho ao norte da Etrúria, com o
descobrimento das rotas marítimas do Ocidente. Tratar-se-ia, desse
modo, de uma genial ficção, embora assentada em esparsos
fundamentos históricos, porque, no fundo, a Odisseia é o conto do
nóstos, do retorno do esposo, da grande nostalgia de Ulisses. Este seria
o ancestral dos velhos marinheiros, que haviam, heroicamente,
explorado o mar desconhecido, cujos mitos eram moeda corrente em
todos os portos, do Oriente ao Ocidente: monstros, gigantes, ilhas
flutuantes, ervas milagrosas, feiticeiras, ninfas, sereias e Ciclopes...
A Ilíada, ao revés, descreve um fato histórico, se bem que revestido
de um engalanado maravilhoso poético. Na expressão, talvez um
pouco “realista”, de Page, o que o poema focaliza “são os próprios
episódios do cerco de Ílion e ninguém pode lê-lo sem sentir que se
trata, fundamentalmente, de um poema histórico. Os pormenores
podem ser fictícios, mas a essência e as personagens, ao menos as
principais, são reais. Os próprios gregos tinham isso como certo. Não
punham em dúvida que houve uma Guerra de Troia e existiram, na
verdade, pessoas como Príamo e Heitor, Aquiles e Ájax, que, de um
modo ou de outro, fizeram o que Homero lhes atribui. A civilização
material e o pano de fundo político-social, se bem que não se
assemelhem a coisa alguma conhecida ou lembrada nos períodos
históricos, eram considerados pelos gregos como um painel real da
Grécia da época micênica, aproximadamente 1200 a.C., quando
aconteceu o cerco de Troia”3.
Um fato, porém, parece definitivo: uma realidade histórica está
subjacente ao mito na epopeia homérica, se bem que, glorificada e
transformada por vários séculos de tradição puramente oral que
precederam à composição definitiva elaborada por Homero (séculos
IX-VIII a.C.) e a fixação por escrito dos dois poemas (séc. VI a.C.).
A dificuldade maior no estudo da epopeia homérica está em isolar
o que realmente é micênico do que pertence a épocas posteriores,
como à Idade do Ferro, à Idade do Caos dório e ao ambiente histórico
em que viveu o próprio poeta. Sem dúvida, também sob o ângulo
político, social e religioso, os poemas homéricos são uma colcha de
retalhos com rótulos de civilizações diferentes no tempo e no espaço.
Não obstante todas estas dificuldades, alguns elementos micênicos
podem, com boa margem de segurança, ser detectados nos dois
grandes poemas.
Consoante Homero, o que parece autêntico, o mundo micênico era
um entrelaçamento de reinos pequenos e grandes, mais ou menos
independentes, centralizados em grandes palácios, como Esparta,
Atenas, Pilos, Micenas, Tebas..., mas devendo fidelidade, ou talvez
vassalagem, não se sabe muito bem por que, ao reino de
Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste aspecto político, há
outros a considerar. Maria Helena da Rocha Pereira alinha alguns
elementos aqueus presentes na epopeia homérica: “Ora, os Poemas
Homéricos descrevem, fundamentalmente, a civilização micênica,
embora ignorem a sua forte burocratização e a abundância de
escravatura, reveladas pelas tabuinhas de Pilos. Mas, entre os
principais elementos micênicos, podemos apresentar: as figuras e
seus epítetos; a riqueza de Micenas (“Micenas rica em ouro”); a
raridade do ferro, a noção de que ánaks é mais do que basileús4; o
fausto dos funerais de Pátroclo (embora seja cremado, como os
gregos da época histórica, e não inumado, como os Micênicos); a
arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron;
objetos como o elmo de presas de javali, a taça de Nestor, e a espada
de Heitor, com um aro de ouro”5.
2
Mas se comprovadamente existem elementos micênicos, de fundo
e de forma, nos poemas homéricos, como pôde o bardo máximo da
Hélade ter conhecimento, por vezes tão preciso, de um mundo que
ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois? A escrita já
existia, é verdade, e cinco séculos também antes do poeta, mas
aquela, a Linear B, era usada, como se falou no capítulo IV, sobretudo
em documentos administrativos e comerciais e não em textos de
caráter literário. Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu
julgavam indigno ou desnecessário que suas façanhas fossem
gravadas em tabuinhas de argila. E realmente não era necessário,
pela própria técnica poética da época. A poesia épica micênica é oral
e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida de geração a
geração. Uma poesia áulica, como quer Webster6, cheia de fórmulas
de caráter religioso e militar e cuja sobrevivência se deveu aos aedos
e rapsodos7.
O já citado Page sintetiza, com maestria, como o maior de todos os
vates pôde “compor” seus dois poemas épicos sem documento algum
escrito sobre o passado: “Todos concordam [...] que Homero viveu
centenas de anos depois dos fatos que descreveu e que não teve
documentos escritos sobre o passado. O que devemos perguntar,
portanto, não é ‘por que ele desconhece tanto sobre a Grécia
micênica?’, mas ‘como pôde ele ter sabido o que sabia?’ A resposta é
que a épica grega é uma poesia de tipo muito peculiar – é oral e
tradicional. Entendo, por oral, que era composta na mente, sem a
ajuda da escrita. E, por tradicional, entendo que era preservada pela
memória e transmitida oralmente de geração a geração. Jamais era
estática. Crescia e se modificava continuamente. AIlíadaé a última
fase de um processo de crescimento e desenvolvimento que começou
durante o sítio de Troia, ou pouco depois. Esse tipo de poesia (que
ocorre na poesia épica de muitas línguas além do grego) só pode ser
composto, só pode ser preservado, se o poeta tiver à sua disposição
um estoque de frases tradicionais – metade de versos, versos inteiros
e estrofes, já prontos para quase todas as finalidades concebíveis. O
poeta compõe, enquanto recita; não pode parar para pensar como
continuar; deve ter pronta toda a história, antes de começar, e deve
ter na memória a totalidade – ou quase totalidade – das frases de que
precisará para contá-la. Os poemas homéricos são, na verdade,
compostos dessa forma – não em palavras, mas em sequências de
frases feitas. Em 28.000 versos, há 25.000 frases repetidas, grandes
ou pequenas”8.
À sólida argumentação de Denys Page pode-se acrescentar ainda,
como processo mnemônico, na transmissão dessa poesia oral, o uso
dos epítetos, os famosos epítetos homéricos. As personagens mais
importantes e as divindades maiores “têm, em média, dez epítetos
que se repetem no poema todo centenas de vezes com alguma
variedade”9. São, ao todo, nos dois poemas, em estatística feita
pacientemente pelo saudoso amigo e mestre Marques Leite, 4.560
epítetos.
Os poemas homéricos resultam, pois, de um longo, mas
progressivo desenvolvimento da poesia oral, em que trabalharam
muitas gerações. Usando significantes dos fins do século IX e meados
do século VIII a.C., épocas em que foram, ao que parece, “compostas”,
na Ásia Menor Grega, respectivamente a Ilíada e a Odisseia, o poeta
nos transmite significados do século XIII ao século VIII a.C. O mérito
extraordinário de Homero foi saber genialmente reunir esse acervo
imenso em dois insuperáveis poemas que, até hoje, se constituem no
arquétipo da épica ocidental.
3
Esta ligeira introdução tem por objetivo mostrar que também a
religião homérica é uma colcha de retalhos, uma sequência de
pequenas e grandes rupturas, de pequenos e grandes sincretismos,
em que o Ocidente se fundiu com o Oriente.
As escavações arqueológicas comprovaram que havia na época
aqueia “uma religião dos mortos”, fato já bem salientado no capítulo
V, 5. A esse respeito desejamos somente chamar a atenção para dois
fatos. Os vastos túmulos encontrados particularmente em Micenas
com luxuoso mobiliário fúnebre, como o célebre Tesouro do Atreu,
em que o morto, “o rei Agamêmnon”, aparece com o rosto coberto por
rica máscara de ouro10, atestam dois pontos importantes: primeiro,
que o rei, chefe da tribo, do clã, do génos, da família enfim, torna-se,
após a morte, o que ele foi em vida, “o senhor”, quer dizer, o “herói”, o
protetor dos que lhe habitam o território, o reino; segundo, que, sendo
o culto dos mortos uma reli gião da família e do grupo, havendo, por
isso mesmo, necessidade de uma descendência para continuá-lo e
transmiti-lo, esse culto é essencialmente local, indissoluvelmente
ligado ao túmulo. Além da religião dos mortos, existia a religião dos
deuses, em sua maioria, deuses da natureza, cujo arquétipo era o deus
patrilinear indo-europeu do céu e da luz, Zeus.
Com as invasões dóricas e as migrações para a Ásia Menor, a vida
grega se dividiu entre as duas margens do Egeu. Entre a Europa e a
Ásia, não raro com apoio nas ilhas, começou a se plasmar o embrião
de uma nova e promissora cultura. Apagados os archotes da
civilização micênica, os emigrantes acenderam-nos em outra pira.
Distantes das vicissitudes da mãe-pátria, abriram-se a novas
influências.
Esse distanciamento, esse desenraizar-se, com todas as
consequências que sempre lhe são inerentes, desenvolveram-lhes a
independência e a liberdade de pensamento, bem como os
emanciparam de velhas e arraigadas tradições. Livres das opressões e
repressões das antigas crenças, prepararam-se com a mesma
liberdade de espírito para arrostar novos problemas de ordem
religiosa. A primeira grande consequência foi o enfraquecimento
generalizado da religião dos mortos. Tratava-se de um culto,
conforme se insistiu, essencialmente local e preso ao túmulo. Ora, o
túmulo dos ancestrais agora estava longe demais, o culto
interrompido, porque desvinculado da sepultura. Os ancestrais, os
senhores, os “heróis” sobreviveram apenas no mito e a tradição
religiosa não se renovou em torno dos novos senhores, mesmo
porque, na Ásia Menor, se praticava a cremação: a alma do morto,
separada para sempre do corpo, estava em definitivo excluída de seu
domicílio e da vida de seus descendentes, não havendo, portanto,
nada mais a temer nem a esperar da psiqué do falecido. De outro
lado, como jáse sabe, as migrações helênicas para seu novo domicílio
não se fizeram em bloco: as tribos deixaram a mãe-pátria
completamente fragmentadas, de acordo com as circunstâncias ou a
oportunidade. Estava, por isso mesmo, rompida a tribo, oclã, o génos,
a família. Pois bem, esses elementos díspares, de origens tribais e até
mesmo “dialetais” diversas, ao se encontrarem em seu novo “habitat”
com povos etnicamente diferentes, com outros hábitos e outra
língua, confraternizaram-se mais facilmente. Eram todos exilados e
a maneira mais prática de refazerem a vida era congregar o que
tinham em comum, deuses e o restante. E a nova
repercussãoreligiosa de mudança de meio fez que a religião dos
deuses prevalecesse inteiramente sobre a religião dos mortos,
determinando assim a formação de um autêntico politeísmo. Outro
fator, no entanto, deu sua contribuição valiosa a todas essas rupturas
e agregações: o recente espírito de independência face à tradição
criou um ambiente propício ao desenvolvimento da arte. E a arte que
floresceu, no momento, entre os gregos da Ásia Menor foi a Epopeia.
A arte épica deve ter tido considerável influência sobre a primeira
elaboração do politeísmo e sobre o destino posterior da religião
grega. É claro que o politeísmo já existia, mas embrionariamente, no
nome de deuses ou nas formas míticas elementares vinculadas aos
nomes divinos. O politeísmo é uma forma religiosa estreitamente
ligada ao mito. Só existe, com a multiplicidade de deuses que o
define, porque o mito criou esses deuses. Na realidade, o politeísmo
surge na história unido ao sentimento e à noção do divino na
natureza. Uma de suas grandes fontes é o mistério do mundo exterior
em que estamos mergulhados; a outra, mais profunda, encontra-se
num segundo mistério, que está em nós mesmos. A dar crédito a
Sexto Empírico (século II d.C.), filósofo grego, sistematizador do
estoicismo, Aristóteles teria esboçado uma teoria da religião
fundamentada no naturalismo e no humanismo: “A noção humana
da divindade decorre de dois princípios: dos fenômenos que se
produzem na alma e dos fatos meteóricos”11, isto é, de fenômenos da
natureza. O sentimento religioso naturalista se expressou, portanto,
primeiramente pelo mito. Este, por sua vez, se manifestará na
epopeia, que é poesia, arte e liberdade. O florescimento da epopeia na
“diáspora” grega para a Ásia Menor, onde foi sepultada a repressão do
tradicionalismo da mãe-pátria, coincidiu com o momento em que o
mito, libertando-se da esfera do sagrado, se emancipou da ação
sacramental, que o representava, e do hino divino, que o celebrava. O
canto, à medida em que se despojava dos elementos emotivos,
tornava-se objeto de narrativa12. Houve, assim, uma como que
segunda criação dos deuses. Claro está que esses deuses continuaram
a ser na Grécia da Europa e na Grécia da Ásia os deuses dos
ancestrais, mas o sortilégio, que, até então, os ligava estreitamente a
seu local de culto, estava para sempre rompido e a poesia acabou por
transfigurar em seus ideais esses deuses já bastante dessacralizados.
Seres ideais, tão vivos e verdadeiros, que, pela primeira vez, os
homens com eles se confraternizaram. Gigantes que se locomoviam
como raios entre o Olimpo e a terra, eram, todavia, humanos,
compensando com sua humanidade o que haviam perdido em
sacralidade.
Esse “humanismo divino” foi a marca da poesia, o sinal mágico de
uma obra através da qual o homem entalha e concebe os deuses à sua
imagem e semelhança.
Era o antropomorfismo. “O mundo grego com seus deuses é um
mundo do homem”, sintetiza magistralmente Kerényi13. Eis aí os
deuses de Homero, que é ele próprio o limite de uma evolução
secular. Evolução religiosa, evolução linguística, com os dialetos
jônico e eólio servindo-lhe de embasamento; evolução do verso, que,
a princípio, cantado, se adaptou à recitação; evolução do mito divino
e heroico, múltiplo e complexo, que acabará por se condensar num
esquema homogêneo na saga troiana; evolução dos costumes, com o
rito da cremação; evolução, enfim, da vida material, que assiste à
substituição do bronze pelo ferro. Esse feixe de evoluções se
concentra em Homero, assim como sua obra condensa três fases da
religião: a que reinava na Grécia continental, quando os micênicos a
deixaram; a que se desenvolveu na Ásia Menor, em condições bem
diversas e, finalmente, aquela que desabrochou sob a inspiração da
epopeia.
Homero fundiu estes três momentos culturais, mas não existe na
Ilíada e na Odisseia nem evocação escrupulosa do passado, nem
descrição exata do presente, mas a visão de um mundo ideal,
composto de um passado micênico da Europa e de um presente
homérico e asiático, amalgamados numa harmonia, que é realidade
sem ser realidade, quer dizer, poesia e nada mais. Com efeito, os dois
poemas homéricos, recheados de elementos religiosos, não são um
código de vida, nem um cânon de fé. Trata-se de um documento
religioso incomparável, mas imperfeito, porque omite; e parcial,
mercê da liberdade com que são tratados os deuses: Zeus, Hera,
Apolo, Atená... não passam, muitas vezes, de vagas reminiscências
daquilo que realmente foram14.
Além do mais, os deuses que passeiam, lutam e se divertem nos
poemas homéricos não são a totalidade dos deuses da Grécia e a
religião, que deles se ocupa, não é toda a religião, o que está
perfeitamente de acordo com o espírito da epopeia. Trata-se, com
efeito, de uma poesia burguesa, destinada a “reis” e heróis, a homens
de alto coturno, voltados para as armas e para o mar. Não há dúvida
de que é para um mundo aristocrático que o poeta compõe sua obra.
Fundindo o passado no presente, o período da realeza aqueia com a
aristocracia de seu século, Homero fazia-se compreender
perfeitamente por seu público, pois que o passado, vivendo na
tradição, era presença constante nos lábios dos aedos e rapsodos. Por
outro lado, o público de Homero era constituído, em síntese, por duas
aristocracias: a aristocracia política e a aristocracia militar, mas
ambas, as mais das vezes, de origem burguesa. Para elas o poeta
canta, prazerosamente, as gestas guerreiras e as astúcias do homem
no mar. Para elas celebra os jogos, onde o vigor se conjuga com a
nobreza. O preito da força e da beleza física, símbolos do herói,
contraiu, desde Homero, núpcias indissolúveis com as qualidades do
espírito: o kalón, o belo, e o agathón, o bom, eis aí a síntese de uma
visão humanística que remonta à Ilíada e à Odisseia. Pois bem, o
mundo dos deuses é a projeção dessa sociedade heroica e
aristocrática. À autoridade de Agamêmnon e, não raro, à sua
prepotência correspondem a soberania e o despotismo de Zeus,
assim como às revoltas dos heróis contra as arbitrariedades do
“senhor” e rei de Micenas corre paralelo a manifestação de
independência dos imortais contra a tirania do “senhor” e rei do
Olimpo. De outro lado, se o povo está presente nos poemas
homéricos apenas para servir, aplaudir e concordar nas assembleias,
os deuses humildes da vegetação teriam que esperar cerca de três
séculos para que, em Elêusis, se erguessem, repentinamente, em
plena escuridão, milhares de archotes para saudar “a luz nova” e
Dioniso, de tirso em punho, pudesse penetrar triunfalmente na pólis
democrática de Atenas... Também a humanidade esperou séculos e
séculos para que o grão de trigo, morrendo no seio da terra,
produzisse frutos em abundância!
De qualquer forma, alijando o localismo, a aristocrática epopeia,
por mais paradoxal que possa parecer, tendo-se tornado, com a
difusão pelos “mundos gregos”, um patrimônio comum,
democratizou a religião e os deuses olímpicos passaram a ser deuses
de todos. E se na Grécia continental, bem como em seus “pedaços”
plantados na Ásia, na Europa e na África, jamais existiu unidade
política, houve sempre, “em todas as Grécias”, graças à religião, uma
consciência de unidade racial. Ou se era grego ou se era bárbaro.
4
Vamos nos ocupar agora da religião homérica propriamente dita.
Não se falará sobre o mito de cada um dos deuses, a não ser de
passagem, nem tampouco sobre cada um dos heróis, que formigam e
dão vida às epopeias homéricas, porque cada um deles, ao menos os
mais importantes, terão direito a um estudo particular nos dois
volumes subsequentes e no Dicionário mítico-etimológico.
Para se ter uma ideia do conjunto, far-se-á, de início, uma síntese
dos cantos de que se compõem a Ilíada e a Odisseia. Comecemos pela
Ilíada.
Após uma breve proposição e invocação, o poema nos coloca ín
medias res, no centro dos acontecimentos, já que a Ilíada celebra,
como já se enfatizou, tão somente o nono ano da Guerra de Troia: a
ira de Aquiles e suas consequências funestas.
Canta, ó deusa, a ira funesta de Aquiles Pelida, ira
que tantas desgraças trouxe aos aqueus e fez baixar
ao Hades muitas almas de destemidos heróis, dando-
os a eles mesmos em repasto aos cães e a todas as aves
de rapina: cumpriu-se o desígnio de Zeus, em razão
da contenda, que, desde o início, lançou em discórdia o
atrida, príncipe dos guerreiros, e o divino Aquiles.
(Il., I, 1-7)
I – Crises, sacerdote de Apolo, avança até as naus dos aqueus, para
resgatar sua filha Criseida, cativa de Agamêmnon. Todos os chefes
desejam que assim se proceda, mas o atrida se recusa e insulta o
sacerdote. Crises regressa, mas suplica a Apolo que castigue os
aqueus. O deus envia uma peste, que dizima o exército. Aquiles pede
que se reúna a assembleia, para saber do adivinho Calcas a causa de
tão grande mal. Calcas responde ser necessário devolver Criseida
para apaziguar a cólera de Apolo. Depois de violenta altercação com
Aquiles, Agamêmnon devolve a filha de Crises, mas, em troca,
manda buscar Briseida, presa do filho de Peleu. Aquiles, ferido em
sua timé, em sua honra de herói, retira-se da luta e queixa-se à sua
mãe Tétis, que lhe promete pedir a Zeus que o desagrave. Com a
devolução de Criseida, cessa a peste. Zeus, a pedido de Tétis, consente
em que os troianos saiam vitoriosos, até que se faça condigna
reparação a Aquiles. Logo que a mãe do pelida se retira, trava-se no
Olimpo séria discussão entre Zeus e Hera, que percebeu o pedido da
deusa do mar e a promessa do esposo. O receoso Hefesto, filho de
ambos, com habilidade, consegue contornar a grave situação. Os
imortais, com um sorriso inextinguível, aproveitam para se divertir
com a azáfama de Hefesto, que manquitolava pelos salões do
Olimpo. E o dia terminou com um lauto banquete, ao som da cítara
de Apolo e da voz cadenciada das Musas. Com muito néctar e muita
ambrosia...
II – Zeus, em cumprimento de sua promessa a Tétis, envia um ûlos
Óneiros, um “Sonho funesto” e enganador a Agamêmnon para o
empenhar na luta. Óneiros surge sob a forma de Nestor e repreende
fingidamente o rei de Micenas, revelando-lhe que o próprio Zeus
deseja ação imediata e os imortais todos querem a vitória aqueia e a
ruína de Troia. Agamêmnon, enganado pelo Sonho, reúne então
todos os aqueus e é neste ponto que se introduz o Catálogo das Naus,
com os nomes dos “reinos”, que as enviaram, dos chefes e o número
de naus que cada herói comanda.
Nas 1.183 naus deveriam ter chegado a Ílion cerca de quarenta a
sessenta mil homens, num cálculo feito pelo mestre Marques Leite15.
III – Os troianos descem à planície. Os anciãos, bem como Príamo e
Helena, contemplam do alto das muralhas de Troia o campo de
batalha. Por proposta de Páris, ele próprio e Menelau decidirão em
combate singular o destino de Helena e dos tesouros. Quando
Alexandre está para ser vencido e morto, Afrodite o salva e
transporta-o numa nuvem para os braços de Helena.
IV – Um aliado dos troianos, Pândaro, fere Menelau com uma
flechada: a luta recomeça. Ares e Apolo lutam pelos troianos. Atená
pelos aqueus.
V – É a primeira grande batalha. Combate encarniçado, em que
Diomedes mata a Pândaro, fere Eneias e Afrodite, que vem retirar o
filho do campo de combate. Grande carnificina, em que o próprio
deus Ares é também ferido por Diomedes.
VI – Heitor, o grande herói troiano, a conselho de seu irmão, o
adivinho Heleno, dirige-se à cidadela de Ílion e ordena preces
públicas a Atená para aplacá-la. Despedida de Heitor e Andrômaca,
uma das páginas mais emocionantes do poema.
VII – Continua a luta cruenta. Os gregos são sempre vencidos.
Encontro encarniçado entre Heitor e Ájax, sem vencedor, porque a
noite interrompeu o combate. Trégua para sepultar os mortos.
VIII – Assembleia dos imortais. Zeus proíbe os deuses de intervirem
nos combates. Segunda grande batalha. Nova derrota dos argivos.
Hera e Atená tentam socorrê-los, mas Zeus, percebendo-lhes a
intenção, envia sua mensageira Íris para afastá-las da luta e
repreendê-las.
IX – Agamêmnon reúne os chefes aqueus para lhes propor o
levantamento do cerco. Nestor julga que se procure aplacar a ira de
Aquiles. O rei de Micenas concorda em restituir Briseida e oferece
ricos presentes ao herói. Uma embaixada, formada por Fênix, Ájax e
Ulisses, dirige-se à tenda do filho de Tétis e busca demovê-lo. Este
não cede.
X – É o episódio conhecido como Dolonia. Expedição noturna de
Ulisses e Diomedes, que surpreendem o troiano Dólon. Matam-no
depois de terem sabido dele o lugar exato onde acampava Reso, rei
da Trácia, que viera em socorro dos troianos. Liquidam Reso e
roubam-lhe os cavalos.
XI – Terceira grande batalha, em que os gregos novamente são
vencidos, apesar dos feitos bélicos de Agamêmnon, que é ferido em
combate. Nestor pede a Pátroclo que tente dobrar o ânimo de Aquiles
ou que ele mesmo vista as armas do herói para aterrorizar os
comandados de Heitor.
XII – Os troianos atacam com êxito e chegam até o acampamento dos
aqueus.
XIII – Em luta sangrenta, Heitor tenta chegar até os navios gregos.
XIV – É o dolo de Zeus, Diòs apáte. Hera atrai amorosamente a Zeus
para os altos do monte Ida, onde o pai dos deuses e dos homens em
profunda modorra adormece nos braços quentes da esposa. Disso se
aproveita Posídon para socorrer os helenos.
XV – Zeus desperta. Reverbera a astúcia feminina de Hera e declara
que os troianos serão os vencedores. Heitor penetra na praia, onde
estão os navios gregos, e está prestes a incendiá-los. Ájax sozinho,
heroicamente, consegue detê-lo.
XVI – É a Patroclia. Os troianos conseguem afinal incendiar um
navio grego. Aquiles, vendo as chamas que se levantam da nau
aqueia, permite que seu maior amigo, Pátroclo, se revista de suas
armas, mas apenas para afastar os comandados de Heitor dos navios
gregos. Feitos gloriosos e heroicos de Pátroclo, que, no entanto, tendo
ultrapassado o métron, o “limite permissível”, é morto por Heitor, que
lhe arrebata as armas de Aquiles.
XVII – Combate sangrento em torno do corpo de Pátroclo. Apesar da
vitória dos troianos, Menelau consegue trazer-lhe o cadáver até os
navios.
XVIII – A dor ingente de Aquiles. Tétis procura consolá-lo e, em
seguida, dirige-se às forjas de Hefesto, a fim de que este faça para o
inconsolável filho de Peleu uma armadura completa. Descrição do
escudo de Aquiles.
XIX – Após receber todas as satisfações de Agamêmnon e com sua
timé recomposta, o filho de Tétis prepara-se para retornar ao
combate.
XX – Grande batalha, em que, com a anuência de Zeus, os deuses se
misturam com os heróis. Hera, Atená, Posídon e Hefesto pelejam ao
lado dos gregos; Ares, Apolo, Ártemis, Afrodite e o deus fluvial
Xanto lutam pelos troianos. Aquiles faz prodígios de coragem,
bravura e arrojo.
XXI – O pelida, a partir daí, vai de vitória em vitória; limpa a planície
da Tróada, empurrando os inimigos até as muralhas de Ílion. O rio
Escamandro, transbordante de guerreiros mortos por Aquiles,
inunda a planície e ameaça submergi-lo e só é dominado pelo sopro
ígneo de Hefesto.
XXII – Heitor aguarda Aquiles sob as muralhas de Troia, mau grado
as súplicas de Príamo. À vista do herói aqueu, Heitor foge. O pelida o
persegue três vezes em torno das muralhas de Troia. Zeus pesa os
destinos dos dois heróis: o troiano tem de morrer. Heitor é morto por
Aquiles, que lhe arrasta o cadáver, coberto de pó e de sangue, até os
navios.
A dor e o horror se apoderam do velho Príamo, de Hécuba e de
Andrômaca.
XXIII – Vingado Pátroclo, o herói aqueu presta-lhe as últimas
homenagens. Levanta-se uma gigantesca pira e as chamas devoram o
cadáver de Pátroclo juntamente com mais doze jovens troianos, que
Aquiles aprisionara e reservara para esta homenagem ao maior dos
amigos. Jogos fúnebres em honra de Pátroclo. XXIV – O filho de Tétis
arrasta três vezes o cadáver de Heitor à volta do túmulo de Pátroclo.
Príamo vem pedir o corpo de Heitor. O herói aqueu se enternece com
as palavras do velho rei de Troia e devolve-lhe o cadáver do filho.
Tréguas de doze dias. Funerais de Heitor, domador de cavalos...
A Odisseia nos leva a outras paragens...
Após dez anos da longa e sangrenta Guerra de Troia, Ulisses,
saudoso de Ítaca, de seu filho Telêmaco e de Penélope, sua esposa
fidelíssima, suspira pelo regresso à pátria.
A Odisseia, Odýsseia, é, pois, o poema do regresso de Odysseús, o
nosso Ulisses, e de seus sofrimentos em terra e no mar.
Embora as personagens centrais estejam ligadas ao ciclo troiano, a
temática do poema é bem outra. A Odisseia é o canto do nóstos, do
regresso do esposo ao lar e da nostalgia da paz.
“Embora a ação seja mais concentrada, temos dois fios condutores
em vez de um: as aventuras de Telêmaco e as de Ulisses, que só se
reconhecem no canto XVI. Também há duas cóleras divinas a
perseguir Ulisses”16. Trata-se da ira de Posídon contra o herói, por lhe
ter este cegado o filho, o Ciclope Polifemo, e a do deus Hélio, por lhe
terem os companheiros de Ulisses devorado as vacas. A proposição
do poema menciona a segunda e omite a primeira, se bem que esta
apareça antes daquela na sequência da narrativa.
Como a Ilíada, a Odisseia nos coloca in medias res: quando se inicia
a narrativa, o esposo de Penélope, havia sete anos, era prisioneiro, na
ilha de Ogígia, da paixão da ninfa Calipso.
Logo após a proposição, o poema nos leva até o Olimpo e de lá à
ilha de Ítaca.
Musa, fala-me do varão astuto, que, após haver
destruído a cidadela sagrada de Troia, viu as cidades
de muitos povos e conheceu-lhes o espírito. No mar
sofreu, em seu coração, aflições sem conta, no intento
de salvar sua vida e conseguir o retorno dos
companheiros. Mas, embora o desejasse, não os salvou;
pereceram, os insensatos, por seu próprio desatino,
eles que devoraram as vacas de Hélio Hiperíon, pelo
que este não os deixou ver o dia do regresso.
Conta-me, deusa, filha de Zeus, uma parte desses
acontecimentos.
(Odiss., I, 1-10)
I – Os deuses reunidos em assembleia no Olimpo, na ausência de
Posídon, decidem que Ulisses regresse a Ítaca. Atená, disfarçada em
Mentes, vai animar o jovem filho de Ulisses, Telêmaco, em sua luta
contra os pretendentes à mão de Penélope e aconselha-o a partir em
busca de notícias do pai.
II – O jovem príncipe convoca uma assembleia e solicita um navio
para levá-lo a Pilos, corte de Nestor, e a Esparta, sede do reino de
Menelau, a fim de buscar informações sobre o paradeiro de Ulisses.
Disfarçada em Mentor, Atená promete ajudá-lo.
III – Telêmaco chega a Pilos, mas nada consegue saber a respeito do
pai. Nestor conta-lhe o fim trágico de Agamêmnon e aconselha-o a ir
até Esparta, para o que lhe dá por companhia seu filho Pisístrato.
IV – Telêmaco e Pisístrato são recebidos por Menelau, que lhes fala
do fim de Troia e de seu tumultuado retorno a Esparta. Os
pretendentes, em Ítaca, preparam uma emboscada contra Telêmaco.
V – Nova assembleia dos deuses, em que se estabelece a volta
imediata de Ulisses a Ítaca. A pedido de Atená, Zeus envia Hermes à
ilha de Ogígia com ordem a Calipso para deixar partir o herói. Este
constrói uma jangada e faz-se ao mar. Posídon, que está vigilante,
levanta uma tempestade e a jangada se despedaça. O herói consegue
salvar-se e se recolhe nu à ilha dos Feaces, onde adormece.
VI – Atená aparece em sonho a Nausícaa, filha do rei dos Feaces,
Alcínoo, para convencê-la a ir lavar suas roupas no rio. Depois de
lavá-las, começa a jogar com suas companheiras. Ulisses, despertado
pela algazarra, pede a Nausícaa que o ajude. Esta manda-lhe roupa e
alimento e convida-o a ir até o palácio de seu pai, o rei Alcínoo.
VII – Ulisses apresenta-se como suplicante à rainha Arete, esposa de
Alcínoo. Narra brevemente o que lhe aconteceu após sua partida da
ilha de Calipso, mas não se dá a conhecer. Alcínoo concede-lhe a
hospitalidade e promete mandar levá-lo a Ítaca.
VIII – Assembleia convocada para deliberar sobre os meios de
reconduzir Ulisses à pátria. Grande banquete em honra do herói. Ao
ouvir o aedo Demódoco cantar o seu passado glorioso, comove-se, o
que leva Alcínoo a suspeitar de sua identidade. Jogos em sua honra:
sai vencedor no lançamento do disco. Demódoco canta os amores de
Ares e Afrodite e, depois, por solicitação de Ulisses, o estratagema do
cavalo de Troia. O herói se emociona. Alcínoo pede-lhe que conte
suas aventuras.
IX – “Eu sou Ulisses”. É assim que se inicia o flashback do poema.
Narra sua passagem pelo país dos Cícones, dos Lotófagos e dos
Ciclopes. O Ciclope Polifemo devora seis de seus companheiros.
Ulisses o embebeda e, aproveitando-se de seu sono, vaza-lhe o único
olho. Em seguida escapa com seus nautas por baixo das gordas
ovelhas do monstro, que pede a seu pai Posídon que o vingue. Daí a
perseguição implacável do deus do mar contra o herói.
X – Continua a narrativa: na ilha de Éolo de onde, por culpa de seus
comandados, acaba sendo expulso como amaldiçoado dos deuses; no
país dos Lestrigões antropófagos, onde perde grande número de
companheiros; na ilha de Eeia, a ilha da feiticeira Circe, que lhe
transforma vinte e dois companheiros em animais semelhantes a
porcos. Ulisses escapa aos sortilégios da “deusa” e obriga-a a restituir
a forma humana a seus nautas.
XI – A conselho de Circe, Ulisses vai ao país dos Cimérios, às bordas
do Hades, para consultar a alma do adivinho cego Tirésias acerca de
seu regresso a Ítaca. Ulisses não desceu à outra vida. Abriu um fosso e
fez em torno do mesmo três libações a todos os mortos com mel,
vinho e água, espalhando por cima farinha de cevada. Após evocar
as almas dos mortos, degolou em cima do fosso duas vítimas pretas:
um carneiro e uma ovelha, dádivas de Circe. “O negro sangue correu
e logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se ajuntaram”. Pôde
assim Ulisses conversar com sua mãe, Anticleia, com Tirésias,
Aquiles e com vários outros heróis e heroínas.
XII – Ulisses retorna à ilha de Circe e, advertido por ela dos perigos
que o ameaçam em seu trajeto, parte para novas aventuras. Vencida a
“tentação” das Sereias, passa por Cila e Caribdes e atinge a ilha do
deus Hélio Hiperíon. Contra a proibição do herói e quebrando seus
próprios juramentos, os companheiros de Ulisses devoram as vacas
do deus Hélio. A pedido deste, as naus gregas são fulminadas pelos
raios de Zeus. Somente Ulisses escapa e chega sozinho à ilha da ninfa
Calipso.
XIII – Os marinheiros Feaces deixam o herói adormecido em Ítaca. O
navio que o levou é, ao retornar, petrificado por castigo de Posídon.
Atená disfarça o rei de Ítaca em mendigo.
XIV – Chega à cabana de seu fiel e humilde servidor, o porcariço
Eumeu, que não o reconhece. É informado de como andam as coisas
em Ítaca.
XV – Retorno de Telêmaco. Atená lhe aparece em sonhos e indicalhe o caminho a seguir para evitar a emboscada dos pretendentes.
XVI – Chegada de Telêmaco à cabana de Eumeu. Enquanto este vai
prevenir Penélope do regresso do filho, Ulisses e Telêmaco se
reconhecem e preparam o extermínio dos pretendentes.
XVII – Ulisses visita o palácio de “Ulisses”. No pátio, reconhece-o seu
velho cão
Argos e morre. O rei de Ítaca mendiga e é insultado pelo pretendente
Antínoo.
XVIII – O herói é obrigado a lutar com o mendigo Iro, para
divertimento dos pretendentes. Arrasta-o para fora do palácio, mas
sofre, em seguida, novos ultrajes.
XIX – Ulisses, sempre desconhecido, conta a Penélope uma história
que garante que o rei de Ítaca está prestes a retornar. Euricleia, a
velha ama do herói, ao lavar-lhe os pés, reconhece-o por uma cicatriz
na perna. Penélope, que tudo ignora, narra o ardil do véu sutil e
imenso, mas anuncia seu plano para escolher um dos pretendentes.
XX – Banquete dos pretendentes. Instam com Penélope. Ulisses é
insultado e maltratado.
XXI – Penélope traz o arco do esposo e promete desposar aquele que
conseguir armá-lo e fazer passar a flecha pelos orifícios de doze
machados em fila. Todos tentam, mas em vão. Graças à intervenção
de Penélope e de Telêmaco, Ulisses consegue experimentar sua
habilidade. Arma o arco sem dificuldade alguma e executa a tarefa
imposta pela esposa. Terror dos pretendentes.
XXII – O senhor de Ítaca depõe seus andrajos e se dá a conhecer. Com
auxílio de Telêmaco, do porcariço Eumeu e do boieiro Filécio, os dois
serviçais que lhe tinham ficado fiéis, massacram todos os
pretendentes e maus servidores. Apenas são poupados o aedo e o
arauto.
XXIII – Penélope, após longa hesitação, reconhece finalmente
Ulisses, quando este provou conhecer o segredo da construção do
leito conjugal.
XXIV – Ulisses e seu pai Laerte se reencontram. As almas dos
pretendentes são arrastadas por Hermes para o Hades. Revolta das
famílias dos pretendentes. Laerte, Ulisses e Telêmaco lutam contra
os parentes dos mortos. Atená, no entanto, intervém e restabelece a
paz entre os beligerantes.
5
Dada esta visão de conjunto, não é muito difícil caracterizar a cada
um dos deuses antropomorfizados que agem nos poemas homéricos:
deuses que amam, odeiam, protegem, perseguem, discutem, lutam,
ferem e são feridos, aconselham, traem e mentem... Já se disse, com
certa ironia, que em Homero há três classes de homens: povo, heróis e
deuses. O que estaria bem próximo da verdade, se os deuses não
fossem imortais.
É bom repetir que se os olhos do poeta estão voltados tão somente
para os grandes príncipes e heróis, é à imagem deles que o vate
concebe o mundo dos deuses. Claro está que a religião dos poemas
homéricos não é original do cantor de Aquiles. As afirmativas do
poeta e filósofo Xenófanes (século VI a.C.) e do historiador Heródoto
(484-408 a.C.) de que os deuses são uma invenção de Homero e
Hesíodo carecem inteiramente de fundamento. A religião homérica
resulta de um vasto sincretismo e de influências várias, no tempo e
no espaço.
De outro lado, se as histórias que Homero atribui a esses deuses são
antigas ou representam um compromisso entre o passado e o
presente é um assunto, por enquanto, difícil de ser resolvido. Talvez
“o compromisso” fosse mais lógico.
Seja como for, os deuses homéricos antropomorfizados, se bem que
por vezes se nivelem até por baixo com os seres humanos,
constituem um grande progresso para os séculos IX e VIII a.C.
Tomando-se por base as epopeias homéricas, o que de saída se pode
assegurar é que o poeta criou o “Estado dos deuses” subordinado à
soberania de um deus maior, Zeus, já possuindo tanto aqueles quanto
este algumas funções mais ou menos definidas. Zeus é o rei, os
demais deuses são seus vassalos, eventualmente convocados para
uma assembleia que se reúne numa utópica fortaleza real, o Olimpo.
Os seus subordinados não raro são recalcitrantes, obstinados e
procuram fazer prevalecer seus interesses pessoais, mas o pai dos
deuses e dos homens os reduz à obediência com frases duras e
ameaças terríveis, que, na realidade, quase nunca se cumprem.
“A concepção de um Estado divino sob o governo de Zeus foi tão
profundamente gravada pela autoridade de Homero, que pôde
atravessar incólume a transformação política que em época antiga
eliminou a realeza, substituindo-a pela aristocracia ou pela
democracia: na terra vigorava a república, no céu, a monarquia”17. A
primeira grande característica dessas divindades “reais” é “serem
luminosas e antropomórficas”. Em vez de potências ctônias,
assustadoras e terríveis, os deuses homéricos se apresentam
inundados de luz (estamosnuma religião tipicamente patrilinear), os
quais agem e se comportam como seres humanos, superlativados nas
qualidades e nos defeitos.
O teratomorfismo (concepção de um deus com forma animal) que,
por vezes, aparece em Homero, certamente reminiscência de um
antigo totem ou “influência oriental”, parece residir apenas em
alguns epítetos, sem que esse zoomorfismo tenha outras
consequências práticas. Atená é denominada glaukôpis, de “olhos de
coruja”, que normalmente se traduz por “olhos garços” e é ainda a
mesma deusa que aparece sob forma de pássaro, ave do mar,
andorinha, águia marinha, e abutre; a deusa Hera é chamada boôpis,
de “olhos de vaca”, que se pode interpretar como “olhos grandes”;
Apolo Esminteu é o “destruidor de ratos” e o mesmo deus se
metamorfoseia em “abutre”.
Mas nem todos os deuses homéricos revestiram-se das formas
humanas: há os que permaneceram como forças da natureza. Na
Ilíada, o deus-rio Escamandro ou Xanto participa da grande batalha
do canto XX e, irritado com os inúmeros cadáveres lançados por
Aquiles em suas correntes, o deus-rio transborda e ameaça no canto
XXI submergir o herói. Foi necessário o sopro ígneo de Hefesto (luta
da água contra o fogo) para fazê-lo voltar a seu leito. Para que a pira,
que deveria consumir o corpo de Pátroclo, se inflamasse, foi preciso
que Aquiles, no canto XXIII do mesmo poema, prometesse aos
deuses-ventos Bóreas e Zéfiro ricas oferendas... Outros exemplos
poderiam ser aduzidos, mas bastam estes para mostrar que nem
todos os deuses homéricos se cobriram com a grandeza e com as
misérias humanas.
Em geral, as divindades homéricas “distinguem-se por uma
superlativação das qualidades humanas”: são majestosas, brilhantes,
muito altas e fortes. Possuem areté (excelência) e timé (honra), sem
temor de ir além dos limites, como os heróis que não podem
ultrapassar o métron. Tendo princípio, mas não tendo fim, são
imortais, mas não eternos. Ao que parece, a noção de eternidade só
aparecerá bem depois na Grécia com Platão e Aristóteles. Digamos
que os deuses gregos tenham eveternidade.
A todo instante estão imiscuídos, sobretudo na Ilíada, com os
heróis: combatem, protegem, aconselham, mas suas teofanias, suas
manifestações divinas, se fazem sob forma hierofânica, sob disfarce,
e não epifânica, isto é, como realmente são. No canto XX, 131, diz
taxativamente a deusa Hera, temendo que Aquiles, ao ver Apolo, se
assuste: É difícil suportar a vista de deuses que se manifestam em
plena luz.
Na Odisseia, embora os deuses sejam os mesmos, com as
excelências e torpezas inerentes à sua concepção antropomórfica,
tem-se a nítida impressão de que eles subiram alguns degraus em sua
escala divina. Mantêm-se, com efeito, mais afastados dos homens e
atuam mais à distância, sobretudo por meio de sonhos não
enganadores, não mentirosos, como o “Sonho funesto:” de
Agamêmnon, enviado por Zeus no canto II da Ilíada, mas como
aquele em que Atená manifesta realmente seu desejo a Nausícaa, no
canto VI da Odisseia.
Mais ainda: a forma hierofânica na Odisseia está bem mais
acentuada: Atená, sob a forma de Mentes no canto I ou de Mentor nos
cantos II, III e em vários outros da Odisseia, torna-se realmente, no
decorrer de todo o poema, a deusa tutelar, a bússola de Ulisses e
Telêmaco. As assembleias dos deuses tornaram-se mais serenas e
ordeiras. Talvez os deuses da Odisseia tenham envelhecido com o
poeta: são mais calmos e tranquilos. O grande ódio de Posídon e a ira
de Hélio Hiperíon parecem terminar, com certa surpresa para o
leitor, no canto XIII, tão logo o herói toca o solo pátrio.
A novidade maior da Odisseia, todavia, está no embrião da ideia de
culpa e castigo, em que a hýbris, a violência, a insolência, a
ultrapassagem do métron, que será a mola mestra da tragédia,
começa a despontar.
Na proposição do poema, I, 6-9, se diz logo que “os insensatos
companheiros de Ulisses pereceram por seu próprio desatino, porque
devoraram as vacas do deus Hélio: este, por isso mesmo, não os
deixou ver o dia do regresso”.
Mais claro ainda é uma fala de Zeus, embora muito discutida, no
canto I da Odisseia, 26-43, em que o pai dos deuses e dos homens
afirma que “os mortais culpam os deuses dos males que lhes
sucedem, quando somente eles, os homens, por loucura própria e
contra a vontade do destino, são os seus autores”. Eis aí a ponta do
véu da díke, da justiça, que se levanta.
Feitas estas ligeiras observações acerca dos deuses homéricos,
tomados em bloco, vamos observar agora cada um deles
separadamente, mas sem perder de vista o conjunto de que cada um
faz parte.
Zeus, sempre se começa por ele, é o deus indo-europeu, olímpico,
patrilinear por excelência. Age ou deveria agir como árbitro
sobretudo na Ilíada, mas sua atuação é um pêndulo: oscila entre o
estatuído pela Moîra, com a qual, por vezes, parece confundir-se, e
suas preferências pessoais. Os aqueus destruirão Troia, ele o sabe,
mas retarda quanto pode a ruína da cidadela de Príamo, porque
prometera a Tétis “a vitória” dos troianos, até que se dessem cabais
satisfações à timé ofendida de Aquiles. Para cumprir seu desígnio é
capaz de tudo: da mentira às ameaças mais contundentes. Na prova
de força que dá no canto VIII, 11-27, quando proíbe os deuses de
ajudarem no combate a gregos e troianos, ameaça lançar os
recalcitrantes nas trevas eternas do Tártaro e afirma
categoricamente que seu poder e força são maiores que a soma da
força e do poder de todos os imortais reunidos! E desafia-os para uma
competição... Todos se calam, porque perderam a voz, tal a violência
do discurso de Zeus. Somente Atená, a filha do coração, após
concordar com o poderio paterno e prestar-lhe total submissão
(excelente psicóloga!), ousa pedir que os aqueus ao menos não
pereçam em massa. E Zeus sorriu e disse-lhe que fosse em paz, sem
temor: com “a filha querida” ele desejava ser indulgente!
A personalidade de Zeus parece desenvolver-se em dois planos:
como “preposto” da Moîra, na Ilíada, age como déspota; como chefe
incontestável da família olímpica, busca quanto possível a
conciliação.
Hera é a esposa rabugenta de Zeus. A deusa que nunca sorriu!
Penetrando nos desígnios do marido, vive a fazer-lhe exigências e
irrita-se profundamente quando não atendida com presteza. Para ela
os fins sempre justificam os meios. Para atingi-los usa de todos os
estratagemas a seu alcance: alia-se a outros deuses, bajula, ameaça,
mente. Chegou mesmo a arquitetar uma comédia de amor, para
poder fugir à severa proibição do esposo e ajudar os helenos.
Atraiu femininamente Zeus para os píncaros tranquilos do monte
Ida e lá, num ato de amor mais violento e quente que as batalhas que
se travavam nas planícies de Troia, prostrou o poderoso pai dos
deuses e dos homens num sono profundo! É verdade que não raro
Zeus manifesta por ela um profundo desprezo e surgem então as
ameaças e afirmativas de domínio masculino, o que mais acentua a
fraqueza e a insegurança do grande deus olímpico, porque tais
ameaças nunca se cumprem. Conhecedor profundo do rancor, da
irritabilidade e da insolência da esposa, Zeus procura evitar, quanto
possível, as cenas de insubordinação e a linguagem crua e desabrida
da filha de Crono. Esquiva-se ou busca harmonizar as coisas, dando a
falsa impressão de que o destino dos mortais depende mais do
humor de Hera do que da onipotência do esposo. Em relação aos
demais deuses e aos heróis, a deusa não tem meios-termos: ama ou
odeia e na consecução destes dois sentimentos vai até o fim. Tem-se
visto no comportamento de Hera, a deusa dos amores legítimos,
sobretudo na influência exercida sobre Zeus, o reflexo da poderosa
deusa da fecundidade (e ela realmente o foi em Creta), a cujo lado o
esposo divino desempenharia um papel muito secundário: apenas o
de deus masculino fecundador. A cena de amor no monte Ida
simbolizaria tão-somente uma hierogamia, isto é, uma união, um
casamento sagrado, visando à fertilidade.
Atená é o outro lado de Hera no coração de Zeus. Nascida sem mãe,
das meninges do deus, é, já se mostrou, a filha querida, cujos desejos e
rogos, mais cedo ou mais tarde, são sempre atendidos e cujas
rebeldias sempre entristecem, “pois estas lhe são tanto mais penosas
quanto mais querida é a filha”. O canto VIII da Ilíada está aí para
mostrar quanto Atená, a deusa da inteligência, é a preferida e
mimada pelo senhor do Olimpo.
Ares, ferido no canto V, 856-861, pela lança de Diomedes, guiada
por Atená, sobe ensanguentado ao Olimpo e vitupera duramente a
proteção de Zeus à filha de olhos garços:
Todos nós estamos revoltados contra ti. Geraste uma
louca execrável, que só medita atrocidades. Todos os
demais deuses que habitam o Olimpo te ouvem e cada
um de nós te é submisso. A ela, todavia, jamais diriges
uma palavra, um gesto de censura. Tu.lhe soltas as
rédeas, porque sozinho deste à luz esta filha
destruidora.
(Il., V, 875-880)
Apolo homérico é uma personagem divina em evolução. Ainda se
está longe do deus da luz, do equilíbrio, do gnôthi s’autón, do
conhece-te a ti mesmo, daquele que Platão denominou pátrios
eksegetés, quer dizer, o exegeta nacional. O Apolo da Ilíada é um deus
mais caseiro, um deus de santuário, uma divindade provinciana.
Preso à sua cidade, comporta-se como um deus tipicamente asiático:
é o deus de Troia e lá permanece. Raramente lhe ultrapassa os limites
e é, por isso mesmo, pouco frequentador do Olimpo.
A seus fiéis protege-os até o fim e, por isso mesmo, protesta com
veemência na assembleia dos deuses contra os ultrajes de Aquiles ao
cadáver de Heitor, seu favorito:
Sois cruéis e malfeitores, deuses. Porventura, Heitor
não queimou nunca em vossa honra gordas coxas de
boi ou cabras sem mancha?
Agora, que nada mais é que um cadáver, não tendes
coragem de protegê-lo, a fim de que possam ainda vêlo sua mãe, seu filho, seu pai Príamo e seu povo. Eles já
o teriam há muito tempo incinerado e há muito lhe
teriam prestado as honras fúnebres!
(Il., XXIV, 33-38)
Posídon é um deus amadurecido pelas lutas que travou, e sempre as
perdeu, com seus irmãos imortais e com o próprio Zeus. O deus do
mar, na Ilíada, tem como característica fundamental a prudência.
Sempre que discorda, comunica-se primeiro com o irmão todopoderoso e acata-lhe de imediato a decisão. Quando Hera planejou
uma conjuração contra o esposo e convidou o deus do mar, este se
irrita e responde-lhe que “Zeus é cem vezes mais forte do que todos os
imortais”. Mas, numa ausência prolongada do Olímpico, Posídon
aproxima-se, observa e, vendo-se em segurança, admoesta e encoraja
os aqueus. Por fim, quando Hera adormece no Ida ao esposo, o deus
entra diretamente na luta e se empenha tanto nos combates, que não
percebe o despertar de Zeus. Foi necessário o envio de Íris para
admoestá-lo. Posídon obedece in continenti e o Olímpico se felicita
pela submissão do deus do tridente. Apesar de prudente e submisso a
Zeus, é incrivelmente rancoroso com os mortais. Perseguiu Ulisses de
modo implacável até a ilha de Ogígia, e se de lá o herói pôde partir,
por decisão dos deuses, reunidos em assembleia, foi porque Posídon
estava ausente, na Etiópia, e daquela não participou. Curioso é que
até a ilha dos Feaces Atená pouco fez para ajudar seu protegido,
contentando-se em agir indiretamente junto a Zeus. A partir da corte
de Alcínoo é que a “filha predileta” intervém diretamente e assegura
a salvação de Ulisses. Há, segundo se crê, uma divisão de zonas de
influência de cada um dos deuses: um não interfere nos domínios do
outro. A própria Atená, respondendo à reclamação de Ulisses de que
fora por ela abandonado no vasto mar, afirma que não interveio
antes para não entrar em litígio com o tio (Odiss., XIII, 341-343).
Tétis é uma poderosa deusa marinha. Sua residência é uma gruta
submarina, mas com todas as prerrogativas devidas a uma imortal
tão importante. Seu poder é tão grande junto a Zeus, que, para vingar
a timé de Aquiles, os aqueus serão derrotados até o canto XVII da
Ilíada! Mãe acima de tudo, procurou evitar por todos os meios que o
filho participasse da Guerra de Troia, porque lhe conhecia o destino.
Com a morte de Pátroclo, após tentar maternalmente consolar o
inconsolável Aquiles, dirige-se à forja divina de Hefesto e de sua
esposa Cáris. Com que dignidade e humildade, aos pés do deus,
segurando-lhe os joelhos, pede, a quem tanto lhe deve, que fabrique
novas armas para o Pelida (Il., XVIII, 429-461). Talvez Tétis seja a
mais humana das figuras divinas de Homero.
Hefesto é o deus coxo. Por tentar socorrer sua mãe Hera, que
brigava com Zeus, foi por este lançado do Olimpo no espaço vazio. O
deus caiu na ilha de Lemnos e ficou aleijado. Foi Tétis quem o
recolheu e levou para sua gruta submarina. Hefesto sofre as
limitações de seu próprio físico e serve comumente de alvo e de
chacota para seus irmãos imortais. Já o vimos, em meio às
gargalhadas de seus pares, claudicando atarefado pelos salões do
Olimpo. Infeliz no casamento com Afrodite, que o traía com Ares,
soube vingar-se dos adúlteros, estendendo uma rede invisível em
torno de seu próprio leito e apanhando de surpresa o casal.
Os deuses, convidados a contemplar a cena, comemoram a
artimanha do marido traído com seu eterno sorriso inextinguível.
Sumamente elucidativa, porém, é a explicação dada por Hefesto para
a infidelidade de Afrodite:
Pai Zeus e todos os demais bem-aventurados deuses
sempiternos!
Vinde contemplar uma cena ridícula e intolerável.
Afrodite, filha de Zeus, por ser eu coxo, me desonra
continuamente prefere o pernicioso Ares, que é belo e
tem membros sãos. Eu, porém, sou aleijado. A culpa,
todavia, não é minha, mas de meus pais, que nunca me
deveriam ter gerado.
(Odiss., VIII, 306-312)
Aí está o grande problema pessoal de Hefesto, que procura
compensar sua deficiência física e infelicidade conjugal com
excessiva serventia. É o mais prestativo e humilde dos Olímpicos, ao
menos em Homero.
Ares é o menos estimado dos deuses: pelos homens e pelos
imortais. De deus da guerra, o amante de Afrodite torna-se nos
poemas homéricos uma personagem de comédia. Falta-lhe ainda
muito para ser o flagelo dos homens.
Se na Odisseia fez o papel ridículo de sedutor punido, na Ilíada,
após ser ferido por Diomedes, corre ao Olimpo, segundo se mostrou,
para queixar-se a Zeus, de quem recebe ironias e insultos.
Não me venhas, ó pateta, gemer a meus pés!
És o mais odioso de todos os imortais que habitam o
Olimpo.
Teu único prazer são a rixa, a guerra, os combates.
Herdaste a violência intolerável e a insensibilidade
de tua mãe, Desta Hera que, a custo, consigo dominar
com palavras.
(Il., V, 889-893)
Até mesmo Atená o derruba e zomba do deus da guerra!
Afrodite é o amor. Apenas amor. Seu protegido é Páris. Para ele
quer Helena sempre pronta e de braços abertos para recebê-lo,
mesmo quando o poltrão, que não resistiu ao primeiro ataque de
Menelau, no combate singular do canto III da Ilíada, é envolto numa
nuvem e transportado para “o quarto perfumado” de Helena... A
esposa de Menelau mostra muito mais dignidade que a deusa e seu
protegido. Convidada por Afrodite a dirigir-se ao “quarto
perfumado” onde o “herói” repousa e a espera, Helena a princípio se
recusa e aconselha a deusa do amor a ir deitar-se com ele... Só
mediante ameaças, sobretudo a de deixá-la entregue à própria sorte e
à morte certa, é que a rainha de Esparta, embora com repugnância,
foi para junto do amante, a quem não poupou injúrias e escárnios (Il.,
III, 383-436). V. Helena, o eterno feminino.
Ingloriamente ferida no canto V por Diomedes, que a denomina
“uma deusa sem forças”, sai dando gritos e deixa seu filho Eneias, que
recebera uma pedrada do mesmo Diomedes, cair de seus braços... Na
carruagem de Ares dirige-se gemendo para o Olimpo, onde Hera e
Atená mordazmente inventam para Zeus uma história deveras
hilariante. Atená diz ao pai que Afrodite deve ter passado a cortejar
os aqueus e, acariciando um deles, rasgou a mão delicada em algum
grampo de ouro... Riu-se muito o pai dos deuses e dos homens.
Chamou Afrodite e deu-lhe um conselho salutar:
Não foste feita, minha filha, para os trabalhos da
guerra: consagra-te somente aos doces trabalhos do
himeneu...
(Il., V, 428-429)
Aí estão sumariamente retratados por Homero os principais
deuses da Ilíada e da Odisseia. Tragédia e comédia se entrelaçam: até
nisto Homero é gênio. A ação e a reação dos deuses homéricos, sua
conduta enfim, têm levado alguns a afirmar que a Ilíada é o mais
irreligioso dos poemas18. Vai nisto um exagero. É preciso estabelecer
em Homero uma dicotomia entre ética e religião. E na Ilíada ambas
estão inteiramente desvinculadas. Dentro dos padrões da época, o
poema de Aquiles é o primeiro grande esboço da religião helênica. De
outro lado, é necessário levar em conta que os poetas, e Homero é o
maior deles, são cantores, são “poetas” e não reformadores religiosos!
6
O estudo da escatologia (destino definitivo do indivíduo), que se
encontra nos poemas homéricos, oferece dificuldades mais ou menos
sérias. É que o poeta usa uma terminologia não muito precisa e, não
raro, cambiante. Vamos, assim, fazer primeiro um levantamento dos
termos, observando a maior incidência dos mesmos no seu
respectivo campo semântico, depois se procurará estabelecer a
doutrina, explicitando antes, se não o apego, ao menos a dignidade
que os heróis atribuíam a esta vida.
Mas, tanto os termos quanto a doutrina terão por limite a Homero,
pois que, um pouco mais tarde, ambos sofrerão alterações profundas.
De início, vamos nos defrontar com Moîra ou Aîsa, a grande
condicionadora da vida. A palavra grega Moîra provém do verbo
meíresthai, obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde
Moîra é parte, lote, quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o
destino. Associada a Moîra tem-se, como seu sinônimo, nos poemas
homéricos, a voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados pela poeta,
Aîsa. Note-se logo o gênero feminino de ambos os termos, o que
remete à ideia de fiar, ocupação própria da mulher: o destino
simbolicamente é “fiado” para cada um. De outro lado, Moîra e Aîsa
aparecem no singular e só uma vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira
surge no plural. O destino jamais foi personificado e, em
consequência, Moîra e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam
soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à
categoria de divindades distintas. A Moîra, o destino, em tese, é fixo,
imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há,
no entanto, os que fazem sérias restrições a esta afirmação e caem no
extremo oposto: “Aos olhos de Homero, Moîra confunde-se com a
vontade dos deuses, sobretudo de Zeus”19. É bem verdade que em
alguns passos dos poemas homéricos parece existir realmente uma
interdependência, uma identificação da Moîra com Zeus, como nesta
fala de Licáon a Aquiles:
E a MOÎRA fatídica, mais uma vez, me colocou em
tuas mãos: parece que sou odiado por ZEUS pai, que
novamente me entregou a ti.
(Il., XXI, 82-83)
Zeus e Moîra nestes versos representam, sem dúvida, para o
troiano Licáon o mesmo flagelo que o entregou nas mãos
sanguinárias de Aquiles.
Em outra passagem Zeus dá a impressão de que, se quisesse,
poderia modificar aMoîra. Ao ver que seu filho Sarpédon corria
grande perigo no combate e estava prestes a ser morto por Pátroclo, o
Olímpico pergunta a Hera se não seria mais prudente retirá-lo da
refrega. A deusa responde-lhe indignada em nome daMoîra:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem
mortal, há muito tempo marcado pela AÎSA e queres
livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós, os
outros deuses todos, não te aprovamos.
(Il., XVI, 440-443)
A inalterabilidade da Moîra, porém, está bem clara nestas palavras
de Hera a respeito do destino de Aquiles:
Todos nós descemos do Olimpo para participar desta
batalha, a fim de que nada aconteça a Aquiles por
parte dos troianos, hoje, ao menos: mais tarde, todavia,
ele deverá sofrer tudo quanto Aîsa fiou para ele, desde
o dia em que sua mãe o deu à luz.
(Il., XX, 125-128)
Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da
identidade de Zeus com a Moîra quanto, e eles são em número
muitíssimo mais elevado, da total independência de Aîsa face a
todos os imortais.
O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se
transforma em executor das decisões da Moîra, parecendo
confundir-se com a mesma.
Ainda como fator externo que, por vontade de Zeus, atua sobre o
homem e lhe transtorna o juízo, encontramos em Homero a palavra
Áte, que se poderia traduzir por cegueira da razão, “desvario
involuntário”, de cujas consequências o herói depois se arrepende. O
texto mais citado e que mereceu um excelente comentário de R.E.
Dodds é a fala de Agamêmnon no canto XIX da Ilíada, em que o
herói procura se desculpar, culpando Áte, das ofensas feitas a
Aquiles na assembleia do canto I, 172ss:
É ao filho de Peleu que desejo expressar o que penso.
Examinai-o bem, argivos, e procurai compreender a
minha intenção. Muitas vezes os aqueus me falaram a
esse respeito e me censuraram. Eu não sou culpado,
mas Zeus, a Moîra e a Erínia que caminha na sombra,
quando na assembleia repentinamente me lançaram
no espírito uma ÁTE louca, naquele dia em que eu
próprio arrebatei o presente de honra de Aquiles.
(Il., XIX, 83-89)
Este comentário sobre Moîra, Aîsa e Áte é importante para que se
possa avaliar depois a responsabilidade do homem face à “outra
vida”.
Em contraste com os dois conceitos anteriores, mas que concorrem
para elucidar também o porquê da importância atribuída pelo herói
a “esta vida”, estão a areté e sua natural dedução, a timé.
Agathós em grego significa bom, notável, “hábil para qualquer fim
superior”; o superlativo de agathós é áristos, o mais notável, o mais
valente e o verbo daí formado é aristeúein, “comportar-se como o
primeiro”. Pois bem, areté pertence à mesma família etimológica de
áristos e aristeúein e significa, por conseguinte, a “excelência”, a
“superioridade”, que se revelam particularmente no campo de
batalha e nas assembleias, através da arte da palavra. A areté, no
entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na
escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma
hýbris, uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o
métron, e desejando igualar-se aos deuses. Uma coisa é o mundo dos
homens, outra, o mundo dos deuses, são palavras de Apolo ao fogoso
Diomedes (Il., V, 440-442).
Consequência lógica da areté é a timé, a honra que se presta ao
valor do herói, e que se constitui na mais alta compensação do
guerreiro. Aquiles se afasta do combate no canto I exatamente
porque Agamêmnon o despojou do público reconhecimento de sua
superioridade, tomando-lhe Briseida. Tétis implora a Zeus que a timé
de Aquiles lhe seja restituída (Il., I, 503-510).
Neste sentido, como afirma P. Mazon, a Ilíada é “o primeiro ensaio
de uma moral de honra”.
Apesar das palavras terríveis de Zeus acerca do ser humano:
Nada mais desgraçado que o homem entre todos os
seres que respiram e se movem sobre a terra,
(Il., XVII, 446-447)
os gregos homéricos, sabedores de que o além que se lhes propunha
eram as trevas e o nada, fizeram desta vida miserável a sua vida,
buscando prolongá-la através da glória que a seguiria. “O amor à
vida torna-se, por isso mesmo, o princípio e a razão do heroísmo:
aprende-se a colocar a vida num plano muito alto para sacrificá-la à
glória, que há de perpetuá-la. Aquiles é a imagem de uma
humanidade condenada à morte e que apressa esta morte para
engrandecer sua vida no presente e perpetuar-lhe a memória no
futuro”20.
Depois de discutirmos a noção e a ação da Moîra, de Áte e a
dignidade da areté e da timé, vamos, finalmente, seguir com o herói
para a outra vida. Teremos, novamente, que nos defrontar com uma
terminologia assaz complicada. Tomaremos, por isso, por guia as
obras formidáveis de Dodds21 e Snell22.
A primeira peculiaridade na conceituação do homem nos poemas
homéricos, consoante Dodds, é a carência de uma concepção unitária
da personalidade. Falta a noção de vontade e, por isso, não existe
obviamente livre-arbítrio, uma vez que este se origina daquela. Não
se encontra ainda em Homero a distinção entre psíquico e somático,
mas uma interpretação de ambos e, assim, “qualquer função
intelectual é considerada um órgão”. Daí decorrem certos vocábulos
que “tentam” explicar as ações e reações do ser humano e sobretudo
seu destino após a morte. O primeiro deles é thymós, que designa o
instinto, o apetite, o alento e poderia ser definido “grosseira e
genericamente”, consoante Dodds, como o “órgão do sentir” (feeling).
Goza de uma independência que a palavra “ órgão” não nos pode
sugerir, “já que estamos habituados ao conceito de organismo e
unidade orgânica”. O thymós pode levar o herói tanto à prática de
façanhas gloriosas quanto a atos muito simples, como os de comer e
beber. O guerreiro pode conversar com seu thymós, com “seu
coração”, com “seu ventre”: tudo isto é thymós. Em síntese, para o
homem homérico o thymós não é sentido como uma parte do “self”:
trata-se de uma espécie de voz interna independente.
Já o vocábulo nóos é mais preciso: designa o espírito, o
entendimento. Quando Circe transformou em animais semelhantes a
porcos os companheiros de Ulisses, eles, não obstante, conservaram o
seu nóos:
Eles verdadeiramente tinham as cabeças, a voz, corpo
e pelos de porcos, mas conservavam como antes o
“espírito” (NÓOS) perfeito.
(Odiss., X, 239-240)
Muito vizinho do campo semântico de nóos está o termo phrén,
mais comumente no plural, phrénes, que se pode traduzir, ao menos
as mais das vezes, por entendimento.
Psykhé, psiqué, que se perpetuou com o sentido de alma nas
línguas cultas e em tantos compostos, provém do verbo 2-psýkhein,
soprar, respirar, donde psiqué, do ponto de vista etimológico,
significa respiração, sopro vital, vida. Fato curioso é o que observa
Dodds: “É sabido que Homero parece atribuir uma psykhé ao homem
somente após sua morte ou quando está sendo ameaçado de morte,
ou ao morrer ou ainda quando desmaia. A única função da
psykhémencionada em relação ao homem vivo é a de abandonálo”23(V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Psiqué).
É o caso entre muitos outros de Sarpédon, cuja psykhé o abandona
sob a violência do golpe24ou como Andrômaca que exala sua psykhé,
que “desmaia”, ao ver o cadáver de Heitor25. Mas, em ambos os casos,
a psiqué retorna através das vias respiratórias.
Quando sobrevém a morte, a psiqué então se afasta em definitivo,
como na morte de Pátroclo:
Ele diz: a morte, que tudo termina, o envolve.
A psiqué deixa-lhe os membros e sai voando para o
Hades, lamentando seu destino, ao deixar o vigor da
juventude.
(Il., XVI, 855-857)
Com a morte do corpo, a psiqué torna-se um eídolon, uma imagem,
um simulacro que reproduz, “como um corpo astral”, um corpo
insubstancial, os traços exatos do falecido em seus derradeiros
momentos. Eis aí o eídolon de Pátroclo, que aparece em sonhos a
Aquiles:
E eis que aparece a psiqué do infortunado Pátroclo,
em tudo semelhante a ele: pela estatura, pelos belos
olhos, pela voz; o corpo está coberto com a mesma
indumentária.
(Il., XXIII, 65-67)
E o eídolon do herói pede a Aquiles que lhe sepulte o corpo, ou
melhor, “as cinzas”, sem o que não poderá sua psiqué penetrar no
Hades:
Sepulta-me o mais rapidamente possível, para que eu
cruze as portas do Hades.
(Il., XXIII, 71)
Mas, quando as chamas lhe consumirem o cadáver, sua psiqué
jamais sairá lá debaixo. A reencarnação na Grécia viria bem mais
tarde:
Jamais sairei do Hades, quando as chamas me
consumirem.
(Il., XXIII, 75-76)
Aquiles tenta abraçá-lo, mas o eídolon do amigo esvai-se como
vapor e, com um pequeno grito, desaparece nas sombras.
Ah! Sem dúvida existe nas mansões do Hades
umaPsykhé, um EÍDOLON, que não tem, contudo,
PHRÉN algum.
(Il., XXIII, 103-104)
Quer dizer, no Hades, a psiqué, o eídolon, é uma sombra, uma
imagem pálida e inconsistente, abúlica, destituída de entendimento,
sem prêmio nem castigo. É que com o corpo morreram o thymós e o
phrén.
Essa sombra abúlica e apática pode, no entanto, recuperar por
instantes a razão, mediante aquele complicado ritual que se
descreveu na síntese do canto XI da Odisseia. Neste mesmo canto, o
eídolon de Aquiles, tendo recuperado “o entendimento”, pôde
dialogar com Ulisses e transmitir-lhe uma opinião melancólica
acerca da outra vida: o grande herói preferia ser agricultor na terra,
que era uma das mais humildes funções, a ser rei no Hades. Aqui está
o diálogo entre Ulisses e Aquiles:
Mas tu, Aquiles, és o mais feliz dos homens do passado
e do futuro, pois, enquanto vivias, nós, os argivos, te
honrávamos como aos deuses, e agora, estando aqui,
tens pleno poder sobre os mortos; desse modo não deves
te afligir por ter morrido.
Assim disse e ele prontamente me respondeu: Ilustre
Ulisses, não tentes consolar-me a respeito da morte!
Eu preferia cultivar os campos a serviço de outro, de
um homem pobre e de poucos recursos, a dominar
sobre todos os mortos.
(Odiss., XI, 482-491)
É assim que se nos apresenta a religião homérica. Embora
encurralado pela Moîra e ameaçado constantemente por Áte, o herói,
nesta vida, de que ele fez a sua vida, tem a dignidade de defender,
quanto lhe é possível, a sua timé. Carente de uma concepção unitária
de personalidade, com o thymós, o phrén e o nóos morrendo com o
corpo, que lhe sobra para a outra vida? Apenas a psykhé, uma sombra
pálida e inconsciente, um eídolon trôpego e abúlico.
Ignorando as noções de dever, de consciência, de mérito ou de falta,
a outra vida ignora, ipso facto, prêmio ou punição para o homem.
Aliás, como julgar, punir ou premiar um eídolon?
Quando se levantar a cortina das trevas dórias que, durante três
séculos, nos ocultaram, em parte, a face da Hélade, não mais
estaremos com Homero na Ásia Menor, mas com Hesíodo na Grécia
continental.
O poeta da Beócia será o assunto do próximo capítulo.
1. Em grego, a par da forma clássica Odysseús, há uma dialetal, Ulíkses, donde o latim Ulixes,
fonte do nosso Ulisses.
2. BONNARD, André. Civilisation grecque. 3 vols. Lausanne: Édit. Clairefontaine, s/d., p.
61ss.
3. PAGE, Denys. The Greeks. London: A.C. Watts, 1962, cap. I, p. 16s.
4. Ánaks é o “senhor”, o príncipe, talvez uma espécie de rei com poderes religiosos, e o basileús
seria o rei com poderes políticos.
5. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 48s.
6. WEBSTER, T.B.L. From Homer to Mycenae. London: Methuen, 1958, cap. IV, passim.
7. Não é fácil distinguir entre estas duas categorias. Aedo é o grego aoidós e significa cantor.
O aedo cantava ao som da cítara, improvisando, como Demódoco, no canto VIII da Odisseia.
Rapsodo, rhapsoidós, de rháptein, “coser”, e oidé, canto, significa um ajustador de cantos.
Talvez rapsodo não fosse poeta: apenas ligava versos uns aos outros e os recitava, sem cantálos. O aedo é diferente: é um inspirado dos deuses, conforme está na Odiss., VIII, 43-45.
8. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 20-21.
9. LEITE, José Marques. Homero. Rio de Janeiro: Gráfica Portinho Cavalcanti, 1976, p. 55s.
10. As máscaras de ouro simbolizam a heroização do morto, por isso que tinham como
finalidade transformá-lo em um ser sobrenatural, de traços incorruptíveis, semelhantes às
estátuas dos imortais.
11. Pròs dogmatikús (Contra os dogmáticos), III, 20.
12. PETTAZZONI, Raffaele. La religion dans la Grèce antique. Paris: Payot, 1953, p. 45s
[Tradução de Jean Gouillard].
13. KERÉNYI, Károly. Miti e misteri. Torino: Boringhieri, 1980, p. 275.
14. PETTAZZONI, Raffaele. Op. cit., p. 48s.
15. LEITE, José Marques. Op. cit., p. 37.
16. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 64.
17. NILSSON, Martin P. Greek Piety. London: Oxford P., 1948, p. 11.
18. MAZON, Paul. Introduction à l’Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1948, p. 294.
19. FREIRE, Antônio, S.J. Conceito de Moîra na tragédia grega. Braga: Livraria Cruz, 1969, p.
91.
20. MAZON, Paul. Op. cit., 299.
21. DODDS, E.R. The Greeks and the Irrational. Los Angeles: University of California Press,
1963, p. 15ss.
22. SNELL, Bruno. The Discovery of the Mind. New York: Harper Torchbooks, 1960,
sobretudo o cap. I, “Homer’s View of man”, p. 8ss.
23. DODDS, E.R. Op. cit., p. 15.
24. HOMERO. Ilíada, V, 696.
25. HOMERO. Ilíada, XXII, 467.
CAPÍTULO VIII
Hesíodo, trabalho e justiça:
Teogonia, Trabalhos e Dias
1
Hesíodo é um poeta dos fins do século VIII a.C. Em seu poema
Trabalhos e Dias lê-se que seu pai, originário de Cime, na Eólida,
premido pela pobreza, emigrou da Ásia Menor para a Beócia. Aí teria
nascido Hesíodo, na povoação de Ascra, junto ao monte Hélicon,
consagrado a Apolo e às Musas. Aí viveu a vida árdua e difícil de um
camponês pobre em país pobre. Na divisão da herança paterna,
entrou em litígio com o irmão Perses, que subornou os juízes, “os reis
comedores de presentes”, e obteve a maior parte. Caído na miséria
por causa de sua preguiça e inércia, teria recorrido a Hesíodo que,
ameaçado pelo irmão de novo processo, o teria ajudado, oferecendolhe ainda como auxílio maior sua segunda obra, o poema Trabalhos e
Dias, em que, como se verá, conjuga-se o trabalho com a justiça.
Cronologicamente, a primeira produção do poeta-camponês
denomina-se Teogonia.
Antes de se apresentar uma análise e comentário de ambos, vamos
ver como estava a Grécia no século VIII a.C. e o que lhe aconteceu até
o século VI a.C.
2
Passada a fase negra das invasões dórias, quando novamente a
cortina se levanta, tem-se a visão de uma Hélade bem diferente do
ponto de vista político, social, religioso e econômico. Os reis haviam
desaparecido em quase todas as partes e em lugar deles imperava
uma sociedade aristocrática, caminhando também ela para sua
própria decomposição. Em lugar do grande número de reinos, como
vimos, de certa forma vassalos de Micenas, havia surgido um semnúmero de unidades políticas independentes, fechadas em si
mesmas, sem vassalagem e sem dever fidelidade a ninguém: na
realidade, uma cidade-Estado, a pólis, unidade política típica da
Grécia clássica. É claro que, como acentua A. Andrews1,
permaneceram em várias cidades gregas traços da velha monarquia,
como o título de rei outorgado em plena democracia ateniense a um
magistrado eleito anualmente, o Arconte-Rei, mas cuja função não
era mais política e sim religiosa.
Segundo parece, a transição da monarquia para a aristocracia se fez
em geral naturalmente, sem grandes violências, o que não irá
acontecer na passagem da aristocracia para a tirania.
A transição da monarquia para a aristocracia, e mais precisamente
para a oligarquia, teve também como ponto de apoio a religião. A
explicação não é difícil. Cada clã, cada génos, cada família era um
pequeno mundo com sua religião, seu patrimônio, seu chefe e mais
ainda com sua árvore genealógica, pois que o génos remontava, em
última análise, a um herói ou a um deus. A soma dos géne, dos clãs,
vai gerar a phratría, a “irmandade”, e da junção das fratrias nascerá a
phylé, isto é, a tribo. Tais associações não feriam a soberania de cada
uma delas separadamente. A reunião dos géne, phratríai e phylaí
(clãs, fratrias e tribos) resultaria na criação da pólis, que, na expressão
de Glotz, se pode definir como um “agrupamento político,
econômico e militar que tem por centro um altar”2. Desse modo, os
gregos evoluíram de um regime patrilinear para um forte regime
oligárquico, sintetizado na pólis aristocrática, que passa a ter também
o seu herói, o herói epônimo, isto é, o que dá seu nome à cidade e a
protege, em consequência.
Ora, como as funções religiosas eram hereditárias em cada família
e se partia do princípio de que as mesmas conferiam poderes
políticos, a disputa pelo poder foi muitas vezes violenta e acirrada
entre as famílias de maior tradição e prestígio dentro da pólis. De
qualquer forma, sempre se salvavam as aparências: os magistrados
eram escolhidos por um determinado período, mas sempre e apenas
entre os Eupátridas, os nobres; às vezes se elegia um único
magistrado por um longo mandato ou um colegiado por um ano
somente. Tudo se fazia numa ekklesía, numa assembleia, a que o
povo comparecia para “aceitar e aplaudir”, porque só os nobres
tinham vez, voz e voto...
Do ponto de vista religioso, foi pelos fins do século VIII a.C. queos
santuários de Olímpia e Delfos começaram a projetar-se: no
primeiro, sob a égide de Zeus, os nobres disputavam as competições
atléticas e, no segundo, reinava Apolo, o guardião da aristocracia. Em
síntese: como os deuses eram os donos do Olimpo, os Eupátridas
eram os senhores da pólis. É que sendo a posse das terras uma das
principais formas de riqueza e a tática militar predominante na
época era o combate singular, o que exigia que o guerreiro fosse
suficientemente rico para adquirir cavalos, carros de guerra e
armamento, só os aristocratas podiam defender a cidade, tornandose, por isso mesmo, seus únicos proprietários e senhores. Donos da
pólis, o eram igualmente das melhores terras, bem como do
sacerdócio (que inclusive era hereditário em algumas famílias) e da
justiça.
Vamos passar em revista, se bem que sumariamente, os tópicos
principais acima mencionados, para que se possa acompanhar-lhes a
evolução até o século VI a.C. e as graves consequências que hão de
culminar numa profunda metamorfose política, social, econômica e
religiosa de algumas cidades gregas, principalmente Atenas.
Nos inícios do século VII a.C. ocorreram no mundo grego sérias
transformações que muito contribuíram para enfraquecer os
Eupátridas. Com a criação do sistema monetário (foi certamente do
Oriente que os gregos trouxeram o sistema de pesos e medidas e o uso
das moedas de ferro e prata) e o consequente desenvolvimento do
comércio, surgiu na Hélade uma nova classe social: a classe dos
mercadores e dos artesãos, que rapidamente se enriqueceu, tornandose rival dos Eupátridas. A posse de terras deixa, assim, de ser a única
forma de riquezas. O próprio Sólon, que, apesar de nobre, se dedicara
ao comércio, coloca o ouro e a prata no mesmo nível da terra. As
mudanças operadas na tática militar tiveram outrossim papel
importante nas transformações sociais. As armas de guerra, espada,
lança, escudo, diminuem de tamanho, tornando-se acessíveis à nova
classe média. Surge, nessa época, o guerreiro típico da Grécia: o
hoplita (soldado de infantaria pesadamente armado), que, pelas
próprias condições de seu armamento, não podia lutar sozinho.
Aparecem então as falanges. Os navios de guerra, uma vez que o
comércio marítimo aperfeiçoara a construção das naus, adquirem
grande importância, crescendo, com isso, o número de remeiros.
Dependendo destes e dos hoplitas para proteger a pólis, os
Eupátridas, pouco a pouco, perderam o monopólio de defendê-la. E
como a defesa da cidade implicava no direito de dirigi-la, a “nova
classe” passou a fazer reivindicações políticas.
Não seria, talvez, fora de propósito acentuar a importância que
teve nas origens da pólis o desaparecimento do herói, do guerreiro,
como categoria social particular e como um homem dotado de uma
areté e de uma timé específicas. “A transformação do guerreiro da
epopeia em hoplita, combatente em formação cerrada, assinala não
apenas uma revolução na técnica militar, mas traduz também no
plano social, religioso e psicológico uma mutação decisiva”3.
De outro lado estavam os camponeses endividados, cuja situação
era degradante. Vigorava desde a época dos Eupátridas a hipoteca
somática (hipoteca do próprio corpo, bem como dos membros da
família), o que fatalmente conduzia à escravidão.
É conveniente deixar claro que o problema da posse da terra e do
direito grego não parece de todo resolvido. Levando-se em conta
algumas metáforas elásticas da poesia de Sólon, é possível fazer uma
ideia aproximada do que realmente se passava à época de Hesíodo
até as reformas soloninas. Tudo indica que o pequeno proprietário
tinha sua terra onerada de dívidas, seja porque o camponês, desde os
tempos da insegurança geral do domínio dório, fosse obrigado ou
forçado a pagar aos nobres um preço pela proteção que estes lhes
davam à terra, seja porque os produtos da mesma eram taxados pelos
Eupátridas. De qualquer forma, a inadimplência levava o
trabalhador e sua família à escravidão. Qualquer que fosse a
conjuntura e, embora não se tenham condições de ser muito preciso
sobre a mesma, o fato é que a revolução era iminente, quando entrou
em cena o grande reformador ateniense Sólon. Este afirma
categoricamente em seus versos4que “libertou a terra e que trouxe de
volta a Atenas muitos de seus filhos que haviam sido vendidos como
escravos”. Vale a pena transcrever o fragmento 36 de um de seus
Iambos, para se fazer um balanço do que se passava em Atenas e
certamente em muitas cidades gregas e das providências corajosas
tomadas por Sólon:
Minha testemunha perante o tribunal da justiça há
de ser a grande Mãe dos deuses olímpicos, a Terra
negra. Dela arranquei os marcos plantados em todas
as direções. Outrora escrava, agora é livre!
Trouxe de volta a Atenas, a pátria fundada pelos
deuses, muitos atenienses que haviam sido vendidos
como escravos. Uns o foram ilegalmente, outros,
consoante o direito vigente.
De tanto errarem pelo mundo, arrastados pela
miséria, alguns nem mais falavam a língua grega!
Outros vegetavam em torpe escravidão, trêmulos
diante de seus senhores.
A todos eu os tornei livres. Eis o que realizei com
minha autoridade, apoiando a força na justiça. [...]
O poeta-legislador refere-se evidentemente à sua famosa
seisákhtheia que significa, etimologicamente, “retirar o peso, tirar o
fardo de...” Em termos político-sociais, foi o cancelamento efetuado
pela reforma de Sólon das dívidas públicas e privadas e a proibição,
para o futuro, de qualquer empréstimo com garantia da pessoa.
Aboliu ainda todas as leis de Drácon, exceto as relativas ao
homicídio, e fez a revisão da Constituição Ateniense, de tal sorte que
ainda o mais pobre dos cidadãos tivesse alguma participação na
administração pública. A reforma solonina pode denominar-se uma
timocracia ou uma hierarquização de direito, segundo a riqueza de
cada um. O direito de voto dos Tetes (cidadãos de baixa renda) na
Assembleia (Ekklesía), no entanto, justifica que Sólon seja
considerado como o iniciador da democracia ateniense. Deu-lhe, ao
menos, uma moldura.
Outro problema sério para o povo era o direito grego. Se pelo que se
sabe, até o momento, da Linear B, não havia código algum escrito de
direito no período micênico, durante toda a época dória os helenos se
tornaram ainda mais ignorantes. Só entre os séculos IX e VIII a.C. é
que apareceram no mundo grego vários alfabetos, que
paulatinamente se unificaram, mas cuja origem é uma só: o alfabeto
fenício. Pois bem, o direito grego oral, consuetudinário, estava nas
mãos dos nobres, dos Eupátridas, que, por “conhecimento
hereditário”, pretendiam interpretá-lo e aplicá-lo. Era o direito
baseado na thémis, “têmis” (Thémis, “Têmis”, é a deusa da justiça), isto
é, na justiça de caráter divino, uma espécie de ordálio, cujo
depositário é o rei, o eupátrida, que decide em nome dos deuses. Não
foi apenas Hesíodo que se queixou dos “reis comedores de presentes”,
que não raro julgavam em seu próprio proveito... Foi exatamente com
isto inclusive que Sólon tentou romper, substituindo a têmis pela
díke, “dique”, isto é, pela justiça dos homens, baseada em leis escritas.
Lamentavelmente, porém, enquanto as aristocracias não foram
eliminadas, a administração da justiça continuou a ser manipulada
por magistrados e conselhos aristocráticos. E a violência, que Sólon
tanto se esforçou por evitar, foi inevitável. Suas reformas acabaram
por desagradar a todos: aos Eupátridas, porque perderam seus
privilégios e ao povo que preferia transformações radicais...
Incapazes, portanto, de satisfazer sobretudo às aspirações populares,
os legisladores foram substituídos pelos tiranos.
Týrannos, tirano, palavra não grega, talvez provinda da Ásia Menor,
significou, em princípio, “soberano, rei”, sem nenhuma conotação
pejorativa, como no título da célebre tragédia de Sófocles, Oidípus
Týrannos, Édipo Rei. O tirano é, as mais das vezes, um líder
proveniente da aristocracia, que se une à classe média e ao povo para
defendê-los contra os nobres. Os séculos VII e VI a.C. na Grécia são
dominados pelos tiranos: Pisístrato, em Atenas; Cípselo, em Corinto;
Polícrates, em Samos; Fálaris, em Agrigento; Gelão, em Siracusa... A
julgar por Atenas, Corinto, Siracusa e Samos, a tirania incentivou a
agricultura; despendeu grandes somas em construções públicas;
apoiou os concursos competitivos e incentivou a formação musical e
atlética do povo grego... Mas, exatamente por sua ilegitimidade e por
não reconhecer limites constitucionais a seu poder, o Týrannos
acabou por tornar-se “tirano”, um verdadeiro déspota esclarecido!
Em Atenas, a bem da verdade, as coisas foram mais tranquilas:
Pisístrato procurou manter as leis de Sólon e reinou a paz na
Acrópole, pelo menos nos últimos dezenove anos de seu governo.
“Governou, diz Aristóteles, com moderação e mais como bom
cidadão do que como tirano”. Substituído pelos filhos, Hiparco e
Hípias, a tirania, no entanto, não durou muito em Atenas. Mas
quando, em 510 a.C., a mesma foi derrubada, o povo ateniense já
estava bastante amadurecido para tomar o governo em suas mãos. Ia
começar realmente a democracia com Clístenes...
Eis aí, em linhas muito gerais, o mundo em que viveram os gregos,
do século VII ao VI a.C. Se Hesíodo viveu e escreveu nos fins do
século VIII a.C., também ele participou de uma parcela desse
tumultuado período de transição por que passaram tantas cidades da
Hélade.
Vamos ver agora, através de seus dois poemas, o antídoto religioso
que ele nos apresenta para os males de seu século, bem como seus
sonhos e conselhos para os séculos futuros. Poder-se-ia pensar que o
poeta de Ascra tem pouco a ver com os fatos que procuramos
resumir. Não é assim. Quem procurou, na Teogonia, partir do Caos
para a Justiça, cifrada em Zeus, e nos Trabalhos e Dias conjugar o
trabalho com a justiça, está inteiro em seu século e nos séculos
vindouros!
3
Far-se-á, primeiro, em esquema, uma divisão dos dois poemas e, em
seguida, um comentário sobre ambos5.
Teogonia, de theós, deus, e gígnesthai, nascer, significa nascimento
ou origem dos deuses. Trata-se, portanto, de um poema de cunho
didático, em que se procura estabelecer a genealogia dos Imortais.
Hesíodo, todavia, vai além e, antes da teogonia, coloca os
fundamentos da cosmogonia, quer dizer, as origens do mundo.
Esquematicamente,
apresentar-se assim:
o
primeiro
estágio
daTeogoniapode
a) Invocação às Musas (versos 1-115), dividida em duas partes: uma
narrativa (versos 1-34) e um hino (versos 35-115), em que o poeta
celebra as Musas, deusas que deleitam o coração de Zeus e inspiram
os poetas.
b) Nascimento do Universo (versos: 116-132). É o estágio primordial
(era panteística). No princípio era o Caos (vazio primordial, vale
profundo, espaço incomensurável), matéria eterna, informe,
rudimentar, mas dotada de energia prolífica; depois veio Geia
(Terra), Tártaro (habitação profunda) e Eros (Amor), a força do
desejo. O Caos deu origem a Érebo (escuridão profunda) e a Nix
(Noite). Nix gerou Éter e Hemera (Dia). De Geia nasceram Úrano
(Céu), Montes e Pontos (Mar).
Resumindo (Primeira Fase do Universo)
GEIA
TÁRTARO
CAOS
Érebo Nix (Noite)
EROS
Úrano, Montes, Pontos
(Mar)
Éter, Hemera (Dia)
Como se observa, na primeira fase há nítido predomínio do mundo
ctônio, já que a cosmogonia hesiódica se desenvolve ciclicamente de
baixo para cima, das trevas para a luz.
c) Reinado de Úrano (versos 133-452). À fase da energia prolífica
segue-se a primeira geração divina, em que Úrano (Céu) se une a Geia
(Terra), donde numerosa descendência. Nasceram primeiro os Titãs e
depois as Titânidas, sendo Crono o caçula, embora aqui figure
apenas como o caçula dos irmãos.
Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono.
Titânidas: Teia, Reia, Mnemósina, Febe, Tétis.
Após os Titãs e Titânidas, Úrano e Geia geraram os Ciclopes e os
Hecatonquiros (Monstros de cem braços e de cinquenta cabeças).
Por solicitação de Geia, Crono mutila a Úrano, cortando-lhe os
testículos. Do sangue de Úrano que caiu sobre Geia nasceram, “no
decurso dos anos”, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas dos Freixos,
chamadas Mélias ou Melíades; da parte que caiu no mar e formou
uma espumarada nasceu Afrodite.
Sintetizando esta parte da Primeira Geração Divina
Úrano
Geia
Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono, Teia, Reia, Têmis,
Mnemósina, Febe, Tétis, Ciclopes (Arges, Estérope, Brontes),
Hecatonquiros (Coto, Briaréu, Gias).
Do sangue de Úrano nasceram: as Erínias (Aleto, Tisífone e Megera),
Gigantes (Alcioneu, Efialtes, Porfírio, Encélado...), ninfas Mélias ou
Melíades, Afrodite.
Em seguida, Nix (Noite), ainda sozinha, deu à luz entre outros:
Moro (Destino), Tânatos (Morte), Hipno (Sono), Momo (Sarcasmo),
Hespérides, Moîras, Queres, Nêmesis, Gueras (Velhice), Éris
(Discórdia)...
Pontos (Mar) gerou sozinho a Nereu, o “velho do mar”, e, depois,
unindo-se a Geia, teve como filhos: Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia.
Nereu uniu-se a Dóris e nasceram as cinquenta Nereidas, de que
destacamos as seguintes: Anfitrite, Tétis, Eunice, Galateia, Dinâmene,
Psâmate...
Taumas com Electra, filha de Oceano, teve Íris e as Harpias (Aelo,
Ocípete, às quais mais tarde se acrescentou Celeno).
Fórcis e Ceto tiveram as Greias, “as velhas” (Enio, Pefredo, Dino),
bem como as Górgonas (Ésteno, Euríale e Medusa).
Medusa foi decapitada por Perseu e do sangue do monstro
nasceram Crisaor e Pégaso.
Crisaor e Calírroe, filha de Oceano, geraram o gigante Gerião, de
três cabeças, e o monstro metade mulher, metade serpente, Équidna.
Équidna juntou-se a Tifão e dele gerou Ortro, o cão de Gerião,
Cérbero, a Hidra de Lerna, Quimera, Fix (Esfinge) e o Leão de
Nemeia.
Resumindo esta descendência ainda da Primeira
Geração Divina
Nix (Noite)
Moro, Tânatos, Hipno, Momo, Hespérides, Moîras, Queres,
Nêmesis, Gueras, Éris
Pontos (Mar)
Nereu, “o velho do mar”
Ponto
Geia
Taumas, Fórcis, Ceto, Euríbia
Nereu
Dóris
Cinquenta Nereidas: Anfitrite, Tétis, Eunice, Galateia,
Dinâmene, Psâmate...
Taumas
Electra
Íris, Harpias (Aelo, Ocípete e depois Celeno)
Fórcis
Ceto
Greias (Enio, Pefredo, Dino), Górgonas (Ésteno, Euríale, Medusa)
Medusa, decapitada por Perseu: de seu sangue – Crisaor e Pégaso
Crisaor
Calírroe
Gerião, Équidna
Tifão
Équidna
Ortro, Cérbero, Hidra de Lerna, Quimera, Fix, Leão de Nemeia
Oceano uniu-se a Tétis e esta deu à luz primeiramente os rios, entre
estes: Nilo, Alfeu, Erídano, Estrímon, Istro, Fásis, Aqueloo, Símois,
Escamandro...
A seguir pôs no mundo as três mil Oceânidas, entre as quais
Electra, Dóris, Clímene, Calírroe, Dione, Plutó, Europa, Métis,
Eurínome, Calipso, Perseida, Ideia, Estige...6
Hiperíonamou Teia e deles nasceram Hélio (Sol), Selene (Lua), Eos
(Aurora).
Crio uniu-se a Euríbia e tiveram Astreu, Palante e Perses.
Astreu e Eos tiveram como filhos os ventos Zéfiro, Bóreas e Noto.
Palante uniu-se a Estige e geraram Zelo (Emulação, Ciume), Nique
(Vitória), Bia (Força), Crato (Poder).
Ceos conquistou Febe e nasceram Leto e Astéria.
Perses com Astéria teve a poderosa Hécate, a quem Zeus concedeu
grandes poderes.
Em síntese:
Oceano
Tétis
Nilo, Alfeu, Erídano, Estrímon, Istro, Fásis, Aqueloo, Símois,
Escamandro... Oceânidas: Electra, Dóris, Clímene, Calírroe,
Dione, Plutó, Europa, Métis, Calipso, Estige...
Hiperíon
Teia
Hélio, Selene, Eos
Crio
Euríbia
Astreu, Palante, Perses
Astreu
Eos
Zéfiro, Bóreas, Noto
Palante
Estige
Zelo, Nique, Bia, Crato
Ceos
Febe
Leto, Astéria
Perses
Astéria
Hécate
d) Com a castração de Úrano, Crono assume o cetro, mas é
destronado por Zeus: é a Segunda Geração Divina (versos 453-885),
que marca a luta de Zeus pelo poder. Crono se casa com sua irmã
Reia e nasceram Héstia, Deméter, Hera, Hades, Posídon e Zeus.
Crono
Reia
Héstia, Deméter, Hera, Hades, Posídon, Zeus
Graças a um estratagema de Reia, Crono engoliu uma pedra em
vez de devorar o caçula Zeus, como fizera com todos os filhos
anteriores. Zeus liberta os Ciclopes e destrona Crono, que vomita os
filhos que havia engolido.
Dentro da Segunda Geração Divina, o poeta intercala o casamento
de Jápeto e Clímene e o mito de Prometeu, que é, de certa forma,
repetido e completado na segunda obra do poeta, Trabalhos e Dias.
Jápeto se uniu a Clímene e nasceram Atlas, Menécio, Prometeu e
Epimeteu.
Jápeto
Clímene
Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu
Epimeteu se une a Pandora, a mulher fatal, modelada por Hefesto.
A partir de então se iniciam as lutas de Zeus pelo poder. Após
arrancar do Tártaro os Ciclopes, que lhe deram o trovão, o raio e o
relâmpago, Zeus libertou também os Hecatonquiros, pois todos eles
haviam sido lançados nas trevas por Crono. Foram dez anos de
combate, sem nenhum desfecho. Os Hecatonquiros, tendo recebido o
néctar e a ambrosia, foram tomados de grande furor bélico. Então
Zeus com eles, seus demais irmãos e aliados acabou levando de
vencida os terríveis Titãs, que foram enclausurados nas profundezas
do Tártaro, local tenebroso, aonde só vai, e assim mesmo raramente,
a mensageira Íris, buscar o Horco, ou seja, a água do Estige para
juramento dos deuses.
Geia, unida a Tártaro, gerou o mais terrível dos monstros, Tifão ou
Tifeu, que tem nas espáduas cem cabeças de serpente. Tifão investiu
contra Zeus e, após terríveis combates, este o fulminou e lançou no
Tártaro. Foi a última batalha.
e) Terminada a longa refrega, Zeusconsolidou seu poder, tornandose o pai dos deuses e dos homens. Repartiu suas honras com os outros
Imortais e iniciou seu reinado para sempre. Seus múltiplos
casamentos refletem-lhe o poder de fecundação. Nova era se abre
para Hesíodo: com Zeus está a Dique, a nova Justiça. É a Terceira e
última Geração Divina: o estágio olímpico de Zeus (versos 886-964).
Zeus tomou como primeira esposa a Métis (Sabedoria, Prudência),
mas, grávida de Atená, o deus a engoliu, para que ela não tivesse um
filho mais poderoso que o pai. Atená acabou nascendo da cabeça de
Zeus.
Zeus uniu-se a Têmis (Lei divina, Equidade) e nasceram as Horas:
Eunômia, Dique e Irene, bem como as Moîras (Cloto, Láquesis e
Átropos)7.
Zeus com Eurínome gerou as Cárites (Graças): Aglaia, Eufrósina e
Talia.
Zeus e Deméter tiveram por filha a Perséfone.
Zeus e Mnemósina foram pais das nove Musas.
Zeus e Leto geraram Apolo e Ártemis.
Zeus com sua “legítima” esposa Hera foi pai de Hebe, Ares e Ilítia.
Zeus amou a filha de Atlas, Maia, e dela teve Hermes.
Zeus com a mortal Sêmele foi pai de Dioniso.
Zeus uniu-se por fim a Alcmena, que se tornou mãe de Héracles.
Hera, “por cólera e desafio ao esposo”, gerou sozinha a Hefesto.
Posídon e sua esposa Anfitrite foram pais de Tritão.
Ares foi amante de Afrodite e tiveram Fobos (Medo), Deimos
(Pavor) e Harmonia.
Hefesto teve por esposa Aglaia, uma das Cárites.
Dioniso amou a loura Ariadne, filha de Minos.
Héracles, após tantos e sofridos trabalhos, desposou no Olimpo a
Hebe.
Hélio uniu-se a Perseida e dela teve Circe e o rei Eetes.
Eetes casou-se com Idíia e teve Medeia.
O poema se encerra (versos 965-1.022) com o Catálogo dos Heróis e
o anúncio de um Catálogo de Mulheres, o qual não existe nos
manuscritos.
Vejamos então a heroogonia, a genealogia dos heróis, consoante
Hesíodo.
Iásion e Deméter foram pais de Pluto.
Cadmo e Harmonia tiveram Ino, Sêmele, Agave, Autônoe e
Polidoro.
Crisaor e Calírroe geraram o cruel Gerião.
Titono e Eos foram pais de Mêmnon e Emátion.
Céfalo e a mesma Eos geraram Faetonte.
Jasão e Medeia tiveram um filho, Medeio.
Éaco uniu-se à nereida Psâmate, de que nasceu Foco.
Peleu e Tétis geraram o grande Aquiles.
Anquises e Afrodite foram os pais de Eneias.
Ulisses e Circe geraram Ágrio, Latino e Telégono.
Ulisses e Calipso tiveram Nausítoo e Nausínoo.
“Estas”, diz o poeta, “são as imortais que entraram no leito de
mortais e geraram filhos semelhantes aos deuses” (1019-1020).
Aí estão, em sua quase totalidade, a cosmogonia, a teogonia e a
heroogonia do poeta de Ascra. Este levantamento é de importância
capital para nós, primeiro porque Homero, e sobretudo Hesíodo,
serão o ponto de partida, já se disse, na elaboração do mito nos três
volumes de Mitologia grega; segundo, porque nos pareceu necessário
apresentar de uma vez por todas os nomes dos deuses e personagens
míticas o mais possível corretamente transcritos ou adaptados em
nossa língua. O leitor terá, agora, acreditamos, onde buscar os “nomes
divinos” e sua genealogia nas fontes mais antigas, antes que os
mesmos se tenham “enriquecido” com tantas variantes.
4
O escritor latino Marco Fábio Quintiliano (35-110 a.C.) fez um juízo
severo acerca da Teogonia: raro assurgit Hesiodus magnaque pars eius
in nominibus est occupata (Inst., 10,1,52): “raramente se nota em
Hesíodo inspiração poética e grande parte de sua obra é uma
catalogação de nomes”. A crítica, em parte, é injusta, porque, para os
gregos, a obra do poeta da Beócia se constituía num verdadeiro
encanto, por lhes recordar os tradicionais e sagrados mitos pátrios. E
muito mais que tudo isso, Hesíodo, num trabalho ingente, enfeixou e
ordenou em genealogias, de maneira impressionante, a desordem
caótica em que vegetavam os velhos mitologemas nacionais.
Fixando as gerações divinas e os mitos cosmogônicos, o poeta fincou
as estacas da organização do cosmo e explicou-lhe a divisão em três
níveis: celeste, ctônio e telúrico. A Teogonia é, sem dúvida, um dos
principais, se não o mais importante documento para a história da
religião grega e a obra mais antiga que expôs em conjunto o mito
helênico.
Além do mais, a Teogonia não é apenas uma listagem fria de
deuses. O poeta grego, intencionalmente, extrapola. Vai muito além
do que poderia parecer, aos olhos dos desavisados, de uma
enumeração gélida de divindades.
Em primeiro lugar, para Hesíodo, o poeta tem uma missão a
cumprir, já que, como poeta, o poietés em grego (donde nos veio,
através do latim poeta(m), o vocábulo poeta) não é tão somente um
“fazedor”, um criador, mas antes um legislador em nome das Musas,
as detentoras de todas as artes e é este o verdadeiro sentido de poietés,
como atesta Platão.
Como legislador, em nome das Musas, o poeta, o poietés, é um
vidente, um mántis, um adivinho. Não é este, porventura, o
significado em latim de uates, “poeta”, cujo sentido primeiro é
profeta, adivinho, donde o latim uaticinium, “vaticínio”, previsão?
Se o poeta sabe ser “fingidor”, sabe igualmente dizer a verdade,
como ele próprio afirma, pelos lábios das Musas:
Pastores que habitais os campos [...]
sabemos relatar ficções muito semelhantes à
realidade, mas, quando o queremos, sabemos também
proclamar verdades.
(Teog., 26-27)
Em segundo lugar, já o mostramos, o século VIII a.C. é marcado
pelo pesado fardo dos Eupátridas, que manipulavam, além de outros
poderes, a justiça, concebida sob forma temística. Ora, não é
precisamente a díke, “a justiça dos homens”, a projeção de todo o ideal
de Hesíodo? Seu desejo é que a justiça, a paz e a disciplina reinem
para sempre e que a Moîra não seja mais uma consequência do acaso,
mas a vontade de Zeus.
No plano estritamente religioso, o poema em apreço não é também
um mero catálogo de deuses. Projetando o social no divino ou
tentando modelar o social pelo divino, o poeta faz o deslocamento do
Kháos (Caos), da rudis indigestaque moles, da massa informe e
confusa, como diz Ovídio (Met., 1,7), para Zeus, isto é, das trevas para
a luz. Trata-se, na realidade, consoante a tese brilhante de Bachofen8,
da substituição de um tipo de religião por outro, em que o Caos é
suplantado por Zeus, o teratomorfismo é substituído pelo
antropomorfismo; as trevas são vencidas pela luz; os deuses ctônios
pelos olímpicos; a matrilinhagem pela patrilinhagem; Eros, símbolo
da promiscuidade sexual, é dominado pelo lógos, pela razão e pela
ordem. E se a Teogonia foi denominada a “gesta de Zeus” é
exatamente porque o grande deus olímpico não se apresenta, e nem
poderia fazê-lo, como criador, mas como conquistador e ordenador.
Observando-se com atenção as hierogamias, quer dizer, os
casamentos sagrados de Zeus, nota-se que o grande deus
“antropomorfizado”, após estabelecer com suas lutas e vitórias a
justiça e a paz, tornou-se a síntese das qualidades divinas e humanas
de um governante todo-poderoso, mas justo e civilizado.
Engolindo a Métis, tornou-se o detentor da sabedoria e da
prudência: o arquétipo é Atená, que lhe saiu das meninges. Com
Têmis adquiriu não só a equidade, traduzida nas Horas, a disciplina,
a justiça e a paz, mas também o poder sobre a vida e a morte, cifradas
nas Moîras. Eurínome deu-lhe, com as Graças, o sentido da beleza e
da alegria de viver. Deméter, a nutridora, assegurou-lhe a vida
material e espiritual do império do mundo dos mortais. Mnemósina,
com as nove Musas, abriu-lhe as portas para o domínio de todas as
artes. Leto com Apolo e Ártemis, o sol e a lua, iluminou-lhe o
percurso dia e noite. Com Hera celebrou a grande hierogamia,
símbolo da perpetuidade da espécie. Maia deu-lhe Hermes, o
conhecimento do visível e do invisível. A “mortal” Sêmele
transmitiu-lhe com Dioniso o outro lado do “homem”: a explosão dos
instintos. Finalmente, outra mortal, Alcmena, comunicou-lhe, com
Héracles, a força e o destemor.
Pode-se observar, assim, que o início com Métis, a sabedoria e a
prudência, estampando o lado psíquico, se conjuga, no fim, com a
força, projetando o físico: é a perfeita sizígia antropomórfica de Zeus.
Uma observação importante se impõe, antes de encerrarmos este
comentário ao primeiro poema hesiódico. Quando dividimos o
poema em três gerações divinas visamos tão somente a dispor
didaticamente “a bela desordem didático-poética” da Teogonia. Além
do mais, concluímos que, realmente, estas em Hesíodo são três,
representada cada uma pelo pai, que é o soberano no seio da família:
Úrano, Crono e Zeus. Este último e os demais deuses da última
geração são os imortais do Olimpo, que consagraram a vitória final
da ordem olímpica sobre a pletora de divindades locais,
representadas pelas duas primeiras gerações. Não se trata apenas,
como afirma categoricamente Pettazzoni, de “uma insurreição contra
formas tradicionais, em nome de um princípio novo promulgado por
uma palavra de revelação”9, mas sobretudo da vitória da luz sobre as
trevas.
Pode-se, isto sim, afirmar que a vitória coube a uma religião mais
plástica e mais bela, mas bem menos profunda que a anterior, ligada
a potências essencialmente ctônias. Se em Homero e depois em
Hesíodo houve nítida vitória da patrilinhagem sobre a
matrilinhagem, a religião da época clássica buscará um consenso,
um equilíbrio entre os dois princípios. O que Hesíodo deseja ressaltar,
e isto é óbvio, é a “progressão do divino”, na busca da díke, da justiça.
E na expressão abalizada de Lesky, na Teogonia “não se trata apenas
de uma sucessão violenta de vários reis e soberanos dos céus, mas
existe um caminho ascendente para a ordem estabelecida por Zeus,
que é o triunfo da justiça”10.
Seja como for, na Teogonia, Hesíodo simplesmente prolonga,
completa e ordena os deuses homéricos. “Homero é o gérmen
fecundo miraculosamente amadurecido no outro lado do Egeu,
Hesíodo é a messe que germinou dessa mesma semente
transplantada para a Grécia continental”.
5
O segundo poema de Hesíodo denomina-se Trabalhos e Dias. Nesta
obra, como já se assinalou, o poeta tenta reconduzir ao bom caminho,
com conselhos salutares sobre o trabalho e a justiça, a seu irmão
Perses. Este, na divisão da herança paterna, subornou os “reis”, os
juízes, e, ao que parece, obteve a maior parte da mesma. Caído, porém,
na miséria, devido à sua desídia, recorreu ao irmão, que, vendo-se
coagido e ameaçado, procurou orientá-lo através dos ensinamentos
ministrados no poema.
O próprio título da obra é indício de que se trata de um poema
didático, cujo objetivo é ensinar os trabalhos da terra e determinar as
épocas propícias em que se devem empreendê-los. Os conselhos que
o poeta prodigaliza ao agricultor e, em parte, ao navegante,
poderiam, todavia, dar uma ideia falsa de que Hesíodo visaria tão
somente ao aspecto didático, mas, como na Teogonia, o autor vai
muito além, introduzindo na obra um cunho nitidamente ético. Duas
leis, neste poema, estão intimamente ligadas: a necessidade do
trabalho e o dever de ser justo. Trabalho e justiça jamais poderão
separar-se, porque a carência do primeiro gera a violência, isto é, a
injustiça. A lei do trabalho é fundamentada numa razão metafísica,
quer dizer, num mito: o mito de Pandora. Isto, porém, é uma longa
história que se inicia com o castigo de Prometeu... Vamos
esquematizar primeiramente o poema e, em seguida, após um breve
comentário sobre o mesmo, entraremos diretamente no mito de
Prometeu e Pandora e no mitologema das Cinco Idades.
A Introdução do poema (versos 1-10) se compõe de uma invocação
às Musas da Piéria e a Zeus, guardião da justiça, concluindo com a
finalidade da obra: dizer a seu irmão Perses a verdade.
a) Primeira parte (versos 11-382): Elogio do trabalho e da justiça.
Existe uma força moral que empurra o homem para o trabalho: é a
emulação; mas há uma outra, que o afasta do mesmo: é a inveja.
Hesíodo apresenta estas duas tendências inevitáveis sob a forma
alegórica de duas Lutas, cifradas na Éris, a Emulação, a Discórdia
(versos 11-41).
Ora, o trabalho é um preceito imposto pela vingança de Zeus. O
mito de Prometeu e Pandora explica a origem dessa lei, assim como
todas as desgraças que atormentam o homem (versos 42-105). A
experiência histórica atesta que é “inteiramente impossível escapar
aos desígnios de Zeus”. A necessidade da justiça é demonstrada pelo
mito das Cinco Idades: a dedicação ao trabalho e à justiça assegura a
prosperidade nesta vida e a recompensa na outra. Ao revés, os que se
deixam dominar pela hýbris, pela “démesure”, pelo descomedimento,
serão implacavelmente castigados nesta e no além. Pertencemos
todos à Idade do Ferro, da hýbris (versos 106-201). A lei do
descomedimento reina em Téspias onde reside o poeta, como
patenteia o apólogo do gavião e do rouxinol. Elevando o tom, o autor
traça um quadro das desgraças reservadas aos injustos e perjuros
(versos 202-273). É necessário, pois, que Perses adquira riquezas e
considerações, mas não pela violência e sim pelo trabalho e pela
justiça. Numa série de preceitos exorta o irmão a conduzir-se com
moderação e sabedoria perante os vizinhos, amigos e parentes
(versos 274-382).
b) Segunda parte (versos 383-694): Trabalhos, agricultura e
navegação.
O poeta expõe como a riqueza pode ser adquirida por meio da
agricultura. Faz um painel dos diversos trabalhos agrícolas, com as
datas e duração dos ciclos, indicações sobre o pessoal, utensílios
usados na lavoura e conselhos técnicos (versos 383-447). Seguem-se
as épocas do plantio e da colheita; as precauções no inverno; a vinha;
a seara; o verão; a debulha e a vindima (versos 448-617). Filho de
navegante, Hesíodo não se esquece de que existe para o camponês
grego, tão próximo do mar, um meio de aumentar seus recursos: a
perigosa arte da navegação e as estações mais propícias para sua
prática (versos 618-694).
c) Terceira parte (versos 695-828): Conselhos morais e religiosos.
A justiça e o trabalho, desde que se sigam os conselhos apontados
pelo poeta, são a alavanca da prosperidade, mas a primeira grande
providência recai na escolha cuidadosa de uma boa esposa. A
segunda condição é a observância das normas da justiça para com os
deuses, consoante a prática transmitida pela tradição, enunciada sob
a forma de uma série de máximas (versos 695-764). O poema finaliza
com uma espécie de calendário, que indica os dias propícios e
nefastos ao trabalho. Esse calendário teve uma ampla vigência
astrológica que se lhe atribuiu posteriormente (versos 765-828).
6
Estamos agora num mundo inteiramente diferente da época dos
heróis de Troia. Se em Homero o homem é metrado pelo ver, em
Hesíodo o métron, a medida, é o ser, isto é, o homem dimensionado
pelo trabalho e pela necessidade de ser justo. É aqui precisamente o
abismo que separa Homero de Hesíodo. No primeiro, o anér, o uir, o
“herói”, que vive à sombra do deus ex machina, com sua
multiplicidade de epítetos (garantia de sua nobreza), o que o afasta
do ser. Em Hesíodo, o ánthropos, o homo, isto é, o humus, o barro, a
argila, o “descendente” de Epimeteu e Pandora, o que ganha a vida
duramente com o suor de seu rosto. No primeiro, a hipertrofia do
kállos, da beleza, do kósmos, da ordem, da areté, da excelência, da
timé, da honra pessoal; no segundo, gué, a terra, érgon, o trabalho, sua
dignidade e suas misérias. Em Homero, o herói se mede por sua areté,
excelência, e timé, honra pessoal; em Hesíodo a areté e a timé se
traduzem pelo trabalho e pela sede de justiça.
O cenário agora é a natureza, a terra de Téspias, dura e cruel. É esse
o teatro da luta diária e incessante do poeta. Natureza e terra que ele
imortalizou, sonhando com a dignidade do trabalho, respaldado na
justiça.
Vamos tentar seguir-lhe os passos e as intenções através de
Trabalhos e Dias. Não importa que o litígio de Hesíodo com seu
irmão Perses tenha sido real, ou mero artifício literário, como alguns
pensam. Importa sim que o poeta coloque como tema central de sua
obra o valor e a dignidade do Trabalho e da Justiça:
Trabalhar não é vileza, vergonhoso é não trabalhar.
(Trab., 311)
Poeta sumamente religioso, coloca a felicidade e a prosperidade no
trabalho, porque assim o quer a lei divina e, por isso mesmo, é preciso
não se deixar arrastar pelo comodismo e pela inércia, que levam à
miséria:
A miséria pode ser alcançada, tanto quanto se quer, e
sem fadiga: a estrada é plana e ela se aloja muito perto
de nós. Os deuses imortais, todavia, exigiram o suor
para se conquistar o mérito. Longo, árduo e
principalmente escarpado é o caminho para se chegar
até lá, mas, quando se atinge o cume, ele se torna fácil,
por mais penoso que tenha sido.
(Trab., 287-292)
A necessidade do trabalho é uma punição imposta ao homem por
Zeus: o mito de Prometeu e o de Pandora explicam a origem do
“desígnio do pai dos deuses e dos homens a que ninguém escapa” e a
punição dos mortais. Prometeu, que, segundo a etimologia mais
provável, provém de πρό (pró), “antes de” e μῆθος (*mêthos), saber,
“ver”, significa exatamente o que o latim denomina prudens, de
prouidens, o prudente, o “pre-vidente”, o que percebe de antemão.
Filho do Titã Jápeto e da Oceânida Clímene, era irmão de Epimeteu,
Atlas e Menécio.
Prometeu passa por haver criado os homens do limo da terra, mas
semelhante versão não é atestada em Hesíodo. O filho de Jápeto, bem
antes da vitória final de Zeus, já era um benfeitor da humanidade.
Essa filantropia, aliás, lhe custou muito caro. Foi pelos homens que
Prometeu enganou a seu primo Zeus por duas vezes. Numa primeira,
em Mecone (nome antigo de Sicione, cidade da Acaia), quando lá “se
resolvia a querela dos deuses e dos homens mortais” (Teog., 535-536).
Essa disputa certamente se devia à desconfiança dos deuses em
relação aos homens, protegidos pelo filho de um dos Titãs, que
acabavam de ser vencidos por Zeus. Pois bem, foi em Mecone que
Prometeu, desejando enganar a Zeus em benefício dos mortais,
dividiu um boi enorme em duas porções: a primeira continha as
carnes e as entranhas, cobertas pelo couro do animal; a segunda,
apenas os ossos, cobertos com a gordura branca do mesmo11. Zeus
escolheria uma delas e a outra seria ofertada aos homens. O deus
escolheu a segunda e, vendo-se enganado, “a cólera encheu sua alma,
enquanto o ódio lhe subia ao coração”. O terrível castigo de Zeus não
se fez esperar: privou o homem do fogo, quer dizer, simbolicamente
dos nûs, da inteligência, tornando a humanidade anóetos, isto é,
imbecilizou-a:
Zeus te ocultou a vida no dia em que, com a alma em
fúria, se viu ludibriado por Prometeu de pensamentos
velhacos. Desde então ele preparou para os homens
tristes cuidados, privando-os do fogo.
(Trab., 47-50)
Novamente o filho de Jápeto entrou em ação: roubou uma centelha
do fogo celeste, privilégio de Zeus, ocultou-a na haste de uma fécula
e a trouxe à terra, “reanimando” os homens. O Olímpico resolveu
punir exemplarmente os homens e a seu benfeitor.
Contra os primeiros imaginou perdê-los para sempre por meio de
uma mulher, a irresistível Pandora, de que se falará mais abaixo, e
contra o segundo a punição foi tremenda. Consoante a Teogonia
(521-534), Prometeu foi acorrentado com grilhões inextricáveis no
meio de uma coluna. Uma águia enviada por Zeus lhe devorava
durante o dia o fígado12, que voltava a crescer à noite. Héracles, no
entanto, matou a águia e libertou Prometeu13, com a anuência do
próprio Zeus, que desejava se ampliasse por toda a terra a glória de
seu filho, e, a despeito de seu ódio, Zeus renunciou ao ressentimento
contra Prometeu, / que entrara em luta contra os desígnios do
impetuoso filho de Crono (Teog., 533-534).
Para perder o homem, Zeus ordenou a seu filho Hefesto que
modelasse uma mulher ideal, fascinante, semelhante às deusas
imortais. Pandora é, no mito hesiódico, a primeira mulher modelada
em argila e animada por Hefesto, que, para torná-la irresistível, teve
a cooperação preciosa de todos os imortais. Atená ensinou-lhe a arte
da tecelagem, adornou-a com a mais bela indumentária e ofereceulhe seu próprio cinto; Afrodite deu-lhe a beleza e insuflou-lhe o
desejo indomável que atormenta os membros e os sentidos; Hermes,
o mensageiro, encheu-lhe o coração de artimanhas, impudência,
astúcia, ardis, fingimento e cinismo; as Graças divinas e a augusta
Persuasão embelezaram-na com lindíssimos colares de ouro e as
Horas coroaram-na de flores primaveris... Por fim, o mensageiro dos
deuses concedeu-lhe o dom da palavra e chamou-a Pandora14,
porque são todos os habitantes do Olimpo que, com este presente,
“presenteiam” os homens com a desgraça! Satisfeito com a cilada que
armara contra os mortais, o pai dos deuses enviou Hermes com o
“presente” a Epimeteu. Este se esquecera da recomendação de
Prometeu de jamais receber um presente de Zeus, se desejasse livrar
os homens de uma catástrofe. Epimeteu15, porém, aceitou-a, e,
quando o infortúnio o atingiu, foi que ele compreendeu... (Trab., 6089).
A raça humana vivia tranquila, ao abrigo do mal, da fadiga e das
doenças, mas quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a
jarra de larga tampa, que trouxera do Olimpo, como presente de
núpcias a Epimeteu, dela evolaram todas as calamidades e desgraças
que até hoje atormentam os homens. Só a esperança permaneceu
presa junto às bordas da jarra, porque Pandora recolocara
rapidamente a tampa, por desígnio de Zeus, detentor da égide, que
amontoa as nuvens. É assim, que, silenciosamente, porque Zeus lhes
negou o dom da palavra, as calamidades, dia e noite, visitam os
mortais...
Foi, pois, com Pandora16que se iniciou a degradação da
humanidade. Para explicá-la, Hesíodo introduz o mito das Cinco
Idades. Deste o poeta extraiu uma dupla lição: mostra a Perses, mais
uma vez, a necessidade do trabalho e aos “reis”, aos juízes, como e por
que suas sentenças deveriam estar em consonância com a justiça. Daí
a fórmula hesiódica:
Ouve a “díke”, a justiça, e não deixes crescer a “hýbris”,
o descomedimento.
(Trab., 213)
No mito das Idades, as raças parecem suceder-se segundo uma
ordem de decadência progressiva e regular. De início, a humanidade
gozava de uma vida paradisíaca, muito próxima da dos deuses, mas
se foi degenerando e decaindo até atingir a Idade do Ferro, em que o
poeta lamenta viver, pois nesta tudo é maldade: até a Vergonha e a
Justiça abandonaram a terra.
Cada uma das Idades está “aparentada” com um metal, cujo nome
toma e cuja hierarquia se ordena do mais ao menos precioso, do
superior ao inferior: ouro, prata, bronze, ferro. O que surpreende é
que em lugar das quatro Idades, cujo valor se afere pelos metais que
lhe emprestam o nome, Hesíodo tenha intercalado entre as duas
últimas mais uma: a Idade dos heróis, que não possui correspondente
metálico algum. Há os que procuram explicar o fato por uma
preocupação historicista, já que o poeta sabia que antes dele tinham
vivido homens e heróis notáveis, que se imortalizaram em Troia e em
Tebas. “Para os inserir nesta progressão, foi necessário interromper a
linha de decadência. E o seu destino último, habitar a Ilha dos BemAventurados, tem muito de semelhante ao que premiou os seres da
primeira Idade. Sendo fundamentalmente uma etiologia, o mito
contém uma parte de reminiscências históricas que lhe conferem o
especial interesse de ser o mais antigo texto em que elas surgem”17.
Victor Goldschmidt vai bem mais longe e propõe para a intercalação
da Idade dos Heróis uma explicação de ordem religiosa: “O destino
das raças metálicas, após seu desaparecimento da vida terrestre,
consiste numa promoção à categoria de potências divinas. Os
homens da idade de ouro e prata se convertem, depois da morte, em
daímones, ‘demônios’ (potências benéficas, intermediárias entre os
deuses e os homens), e os da Idade de Bronze vão formar o mundo
dos mortos, no Hades. Só os heróis podem beneficiar-se com uma
transformação que não poderia dar-lhes o que eles já possuem: são
heróis e continuam sendo heróis. Sua inserção no relato das Idades se
explica, quando se observa que sua presença é indispensável para
completar o quadro dos seres divinos que distingue, segundo a
classificação tradicional, os theoí, os deuses propriamente ditos, dos
quais não se fala no relato, das seguintes categorias: os ‘demônios’, os
heróis e os mortos. Hesíodo havia, pois, elaborado seu relato mítico,
unificando, adaptando duas tradições diversas, sem dúvida
independentes em sua origem: de um lado, um mito genealógico das
Idades em relação com o simbolismo dos metais, em que se descreve
a decadência da humanidade; de outro, uma divisão estrutural do
mundo divino, cuja explicação se procurava através da remodelação
do esquema mítico primitivo, para que fosse possível o encaixe dos
heróis”18.
De cunho histórico ou religioso, o fato é que as Cinco Idades não
traduzem apenas a decadência do homem, mercê do “crime” de
Prometeu e do envio de Pandora, mas acima de tudo a necessidade do
trabalho e o dever de ser justo.
Jean-Pierre Vernant, numa exposição feita em Cerisy, em 1960, nos
legou um estudo muito sério e profundo acerca das Cinco Idades19.
Embora não se possa concordar in totum com o “forçado
estruturalismo” do grande mestre francês, vale a pena sintetizar-lhe
o longo artigo sobre a matéria em pauta, para que, antes da análise de
cada uma das Idades, se possa ter uma ideia do conjunto.
Na estrutura das quatro primeiras raças distinguem-se dois níveis
diferentes: ouro e prata de um lado, bronze e heróis de outro. Cada
um deles se divide em dois aspectos antitéticos, um positivo, outro
negativo: são duas raças associadas, mas que se opõem, como a Díke
(Justiça) contrasta com a hýbris (Violência). O que diferencia o nível
das duas primeiras raças do plano das duas seguintes é que ambos se
relacionam com funções distintas, que representam tipos de agentes
humanos, formas de ação, hierarquias sociais e psicológicas opostas.
Há, de saída, uma primeira dissimetria: no primeiro plano (ouro e
prata), a Díke (Justiça) é o valor dominante e a hýbris (Violência) tem
valor secundário; no segundo (bronze e heróis), sucede o contrário, a
hýbris predomina. Isto explica, aliás, o destino diferente que aguarda,
após a morte, as almas das duas primeiras raças daquelas
pertencentes às duas seguintes. Os que nasceram sob a égide do ouro
e da prata têm realmente uma promoção post mortem: convertem-se
em daímones, “demônios” (intermediários benéficos entre os deuses e
os homens). Esses daímones, todavia, agem diferentemente sobre os
mortais, tanto quanto se diferenciaram na vida terrestre: os
primeiros (da Idade de Ouro) são os daímones epictônios, quer dizer,
continuam a viver e a agir na terra; os segundos (da Idade de Prata)
são os daímones hipoctônios, isto é, vivem e agem sob a terra, na outra
vida20. Ambos são objetos das “honras” que lhes tributam os mortais:
“honras” maiores para os primeiros e inferiores para os segundos.
Muito diferente é o destino póstumo daqueles que viveram as idades
do Bronze e dos heróis. Como raça, nenhum deles tem direito a uma
promoção. Os da Idade de Bronze, após perecerem na guerra,
convertem-se no Hades em “mortos anônimos”, nónymoi. Somente
alguns heróis privilegiados conservam, por desígnio de Zeus, um
nome e uma existência individual no além: levados para a Ilha dos
Bem-Aventurados, têm uma vida isenta de preocupações. Apesar
desse prêmio, porém, esses heróis privilegiados não são objeto de
veneração alguma, nem de culto, por parte dos homens.
Contrariamente aos daímones, os heróis carecem de qualquer poder
ou influência sobre os vivos, a não ser que tenham sido divinizados.
A quinta e última, a Idade de Ferro, a época de Hesíodo, poderia dar
a falsa impressão de, contrariamente às anteriores, não se poder
desdobrar em dois aspectos antitéticos, mas de formar uma raça
única. A leitura atenta do poema nos conduz, porém, a uma outra
realidade. Dentro da Idade de Ferro, com efeito, existem dois tipos,
rigorosamente opostos: um, voltado para a Díke (Justiça), e outro só
conhece a hýbris (Violência). Com efeito, Hesíodo vive num mundo,
numa “Idade”, em que o homem nasce jovem e, normalmente, morre
velho; numa “Idade”, em que há leis naturais (o filho se parece com o
pai) e morais (deve-se respeito ao hóspede, aos pais, aos juramentos);
num mundo em que o bem e o mal, intimamente mesclados, se
equilibram. Mas o poeta anuncia o advento de uma outra situação, de
um outro aspecto de vida dentro da Idade de Ferro, inteiramente
oposto à época em que vive Hesíodo: os homens nascerão velhos,
com as têmporas já encanecidas; os filhos não mais se assemelharão
a seus pais; não se conhecerão amigos, nem irmãos, nem parentes,
nem juramentos. O único direito será a força. Nesse “período”
entregue à desordem, à anarquia e à hýbris, nenhum bem compensará
o homem por seus sofrimentos. Vê-se, pois, que a Idade de Ferro
também se dicotomiza e pode, assim, articular-se com as Idades
precedentes, igualmente bipartidas, para formar e completar a
estrutura de conjunto do mitologema.
Resumindo, pode-se dizer que Hesíodo apresentou o mitologema
das Cinco Idades dentro de um esquema trifuncional:
– no primeiro plano (ouro e prata) há nítido predomínio da Díke
(Justiça);
– no segundo (bronze e heróis) reina a hýbris (a Violência);
– o terceiro (ferro) está vinculado a um mundo ambíguo, definido
pela coexistência dos contrários: o bem se contrapõe ao mal; o
homem opõe-se à mulher; o nascimento à morte; a abundância à
penúria; a felicidade à desgraça. Díke e hýbris, Justiça e Violência,
uma ao lado da outra, oferecem ao homem duas opções igualmente
possíveis entre as quais compete a ele escolher21. A esse mundo tão
contrário o poeta acena com a perspectiva aterradora de uma vida
humana em que triunfará a hýbris, restando ao homem tão somente a
anarquia, a desordem e a infelicidade. Da Idade do Ouro, em que
reinou a Díke, chegou-se, com degeneração da humanidade, à Idade
do Ferro em que triunfou por fim a hýbris.
Dada essa ideia de conjunto, tomando ainda por guias o
supracitado estudo de Jean-Pierre Vernant, Paul Mazon22e,
principalmente, os textos do próprio Hesíodo, tentaremos apresentar
um ligeiro comentário a cada uma dasCinco Idades.
a) Idade de Ouro. Os homens mortais da Idade de Ouro foram
criados pelos próprios Imortais do Olimpo, durante o reinado de
Crono. Viviam como deuses e como reis, tranquilos e em paz. O
trabalho não existia, porque a terra espontaneamente produzia tudo
para eles. Sua raça denomina-se de ouro, porque o ouro é o símbolo da
realeza. Jamais envelheciam e sua morte assemelhava-se a um sono
profundo. Após deixarem esta vida, recebiam o basíleion guéras,
quer dizer, o privilégio real, tornando-se daímones epikhthónioi,
intermediários aqui mesmo na terra entre os deuses e seus irmãos
viventes. Esse basíleion guéras tem uma conotação toda especial,
quando se leva em conta que os daímones epikhthónioi, esses
grandes intermediários, assumem em “outra vida” as duas funções
que, segundo a concepção mágico-religiosa da realeza, definem a
virtude benéfica de um bom rei: como phýlakes, como guardiães dos
homens, velam pela observância da justiça e, como plutodótai, como
dispensadores de riquezas, favorecem a fecundidade do solo e dos
rebanhos. Curioso é que Hesíodo emprega as mesmas expressões, que
definem os “reis” da Idade de Ouro, para qualificar os “reis” justos do
seu século. Os homens da Idade de Ouro vivem hós theoí, como
deuses; os reis justos do tempo do poeta, quando avançam pela
assembleia e, por meio de suas palavras mansas e sábias, fazem
cessar a hýbris, o descomedimento, são saudados como theòs hós, como
um deus. E assim como a terra, à época da Idade de Ouro, era fecunda
e generosa, igualmente a cidade, sob o governo de um rei justo,
floresce em prosperidade sem limites. Ao contrário, o rei que não
respeita o que simboliza seu sképtron, o seu cetro, afastando-se pela
hýbris do caminho que conduz à Díke, transforma a cidade em
destruição, calamidade e fome. É que, por ordem de Zeus, trinta mil
imortais invisíveis (que são os próprios daímones epikhthónioi)
vigiam a piedade e a justiça dos reis. Nenhum deles, que se tenha
desviado da Díke, deixará de ser castigado mais cedo ou mais tarde
pela própria Díke.
b) Idade de Prata. Foram mais uma vez os deuses os criadores da
raça de prata23, que é também um metal precioso, mas inferior ao
ouro. À soberania piedosa do rei da Idade de Ouro fundamentada na
Díke opõe-se uma “hýbris louca”. Tal hýbris, porém, nada tem a ver
com a hýbris guerreira: os homens da Idade de Prata mantêm-se
afastados tanto da guerra quanto dos labores campestres. Essa hýbris,
esse descomedimento, é uma asébeia, uma impiedade, uma adikía,
uma injustiça de caráter puramente religioso e teológico, uma vez
que os “reis” da raça de prata se negam a oferecer sacrifícios aos
deuses e a reconhecer a soberania de Zeus, senhor da Díke.
Exterminados por Zeus, os homens da raça de prata recebem, no
entanto, após o castigo, honras menores é verdade, mas análogas às
tributadas aos homens da Idade de Ouro: tornam-se daímones
hypokhthónioi, intermediários entre os deuses e os homens, mas
agindo de baixo para cima, na outra vida. Além do mais, os mortais
da raça argêntea apresentam fortes analogias com os Titãs: o mesmo
caráter, a mesma função, o mesmo destino. Orgulhosos e
prepotentes, mutilam a seu pai Úrano e disputam com Zeus o poder
sobre o universo. Reis, pois que Titán em grego, em etimologia
popular, aproxima-se de Títaks, rei, e Titéne, rainha, os Titãs têm por
vocação o poder. Face a Zeus, todavia, que representa para Hesíodo a
soberania da ordem, da Díke, aqueles simbolizam o mando e a
arrogância da desordem e da hýbris. De um lado, portanto, estão Zeus
e os homens da Idade de Ouro, projeções do rei justo; de outro, os
Titãs e os homens da Idade de Prata, símbolos de seu contrário. Na
realidade, o que se encontra no relato das duas primeiras Idades é a
estrutura mesma dos mitos hesiódicos da soberania.
c) Idade de Bronze. Os homens da raça de bronze, consoante
Hesíodo, foram criados por Zeus, mas sua matriz são os freixos,
símbolo da guerra, como diz o poeta:
Filha dos freixos, era terrível e poderosa, bem
diferente da raça de prata: aspirava tão-só aos
trabalhos de Ares, fontes de dor, e ao descomedimento.
(Trab., 145-146)
Trata-se aqui da hýbris militar, da violência bélica, que caracteriza o
comportamento do homem na guerra. Assim, do plano religioso e
jurídico se passou às manifestações da força bruta e do terror. Já não
mais se cogita de justiça, do justo ou do injusto, ou de culto aos
deuses. Os homens da Idade de Bronze pertencem a uma raça que
não come pão, quer dizer, são de uma Idade que não se ocupa com o
trabalho da terra. Não são aniquilados por Zeus, mas sucumbem na
guerra, uns sob os golpes dos outros, domados “por seus próprios
braços”, isto é, por sua própria força física. O próprio epíteto da Idade
a que pertencem esses homens violentos tem um sentido simbólico.
Ares, o deus da guerra, é chamado por Homero na Ilíada (VII, 146) de
khálkeos, isto é, “de bronze”. No pensamento grego, o bronze, pelas
virtudes que lhe são atribuídas, sobretudo por sua eficácia
apotropaica, está vinculado ao poder que ocultam as armas
defensivas: couraça, escudo e capacete. Se o brilho metálico do
bronze reluzente infunde terror ao inimigo, o som do bronze
entrechocado, essa phoné, essa voz, que revela a natureza de um
metal animado e vivente, rechaça os sortilégios dos adversários. A
par das armas defensivas, existe uma ofensiva também
estreitamente ligada à índole e à origem dos guerreiros da Idade de
Bronze. Trata-se da lança ou dardo confeccionado de madeira
especial, amelía, isto é, o “freixo”. E não foi dofreixoque nasceram,
segundo Hesíodo, os homens da Idade de Bronze? As ninfas Mélias
ou Melíades, nascidas do sangue de Úrano, estão intimamente unidas
a essas árvores “de guerra” que se erguem até o céu como lanças, além
de se associarem no mito a seres sobrenaturais que encarnam a
figura do guerreiro. Jean-Pierre Vernant24faz uma aproximação
muito feliz do gigante Talos com os homens da raça de bronze. Esse
Talos, guardião incansável da ilha de Creta, nascera de um freixo
(melía) e tinha o corpo todo de bronze. Como Aquiles, era o gigante
cretense dotado de uma invulnerabilidade condicional, que somente
a magia de Medeia foi capaz de destruir25. Os Gigantes, “a cuja
família” pertence Talos, representam uma confraria militar, dotada
de uma invulnerabilidade condicional e em estreita relação com as
ninfas Mélias ou Melíades. Na Teogonia (184-187) o poeta relata
como Geia, recebendo o sangue de Úrano, castrado por Crono, “gerou
os grandes Gigantes de armas faiscantes (porque eram de bronze),
que têm em suas mãos compridas lanças (de freixo) e as ninfas que se
chamam Mélias”.
Assim, entre a lança, atributo militar, e o cetro, atributo real da
justiça e da paz, há uma diferença grande de valor e de nível. A lança
há que submeter-se ao cetro. Quando isto não acontece, quando essa
hierarquia é quebrada, a lança confunde-se com a hýbris.
Normalmente para o guerreiro, tributário da violência, a hýbris dele
se apodera, por estar voltado inteiramente para a lança. É o caso
típico, entre outros, de Ceneu26, o “lápita da lança”, dotado como
Talos, Aquiles e os Gigantes27de uma invulnerabilidade condicional
como todos os que passaram pela iniciação guerreira. Ceneu fincava
sua lança sobre a praça pública, rendia-lhe um culto e obrigava a
todos que por ali passassem a tributar-lhe honras divinas. Filhos da
lança, indiferentes à Díke e aos deuses, os homens da raça de bronze,
como os Gigantes, após a morte, foram lançados no Hades por Zeus,
onde se dissiparam no anonimato da morte.
d) Idade dos Heróis. A quarta Idade é a dos heróis, criados por Zeus,
uma “raça mais justa e mais brava, raça divina dos heróis, que se
denominam semideuses” (Trab., 158-160). Lendo-se, com atenção o
que diz Hesíodo acerca dos heróis, nota-se logo que os mesmos
formam dois escalões: os que, como os homens da Idade de Bronze, se
deixaram embriagar pela hýbris, pela violência e pelo desprezo pelos
deuses e os que, como guerreiros justos, reconhecendo seus limites,
aceitaram submeter-se à ordem superior da Díke. Um exemplo bem
claro desses dois escalões antitéticos é a tragédia de Ésquilo Os Sete
contra Tebas: em cada uma das sete portas ergue-se um herói
mordido pela hýbris, que, como um Gigante, profere contra os
imortais e contra Zeus terríveis impropérios; a este se opõe outro
herói, “mais justo e mais bravo”, que temperado pela sophros×ne, pela
prudência, respeita tudo quanto representa um valor sagrado. O
primeiro escalão, os heróis da hýbris, após a morte, são como os da
Idade de Bronze, lançados no Hades, onde se tornam nónymoi,
mortos anônimos; o segundo, os heróis da Díke, recebem como
prêmio, já se frisou, a Ilha dos Bem-Aventurados, onde viverão para
sempre como deuses imortais.
Acontece, todavia, que no mito da soberania, com a implantação,
após uma luta árdua e difícil, do reino de Zeus, existe uma categoria
de seres sobrenaturais que muito se assemelham aos heróis bravos,
mas justos: trata-se dos Hecatonquiros, que, num momento em que a
vitória era incerta, ajudaram Zeus a derrotar os Titãs. O pai dos
deuses e dos homens, aliás, antes do combate decisivo, os
recompensou com a imortalidade, dando-lhes o néctar e a ambrosia,
como premiara a sophros×ne e a Díke, a prudência e o respeito à justiça
de um grupo de heróis, com a Ilha dos Bem-Aventurados. Claro que o
gesto de Zeus para com os Hecatonquiros não deixa de ter uma
intenção política, mas, a partir daí, recorrendo aos guerreiros, aos
militares, o deus da Díke associa para sempre a função guerreira à
soberania. A partir de então, o cetro terá que apoiar-se na lança.
Sólon, no fragmento que transcrevemos na p. 159, deixa claro que
realizou sua reforma “apoiando a força na justiça”. Mas, como
Hesíodo é bem mais poietés, é uates, é adivinho, antecipou-se a Sólon
de mais de um século!
e) Idade de Ferro. Comecemos pelas próprias palavras do poeta:
Oxalá não tivesse eu que viver entre os homens da
quinta Idade: melhor teria sido morrer mais cedo ou
ter nascido mais tarde, porque agora é a Idade de
Ferro...
(Trab., 174-176)
Logo na introdução com a narrativa das duas lutas, a partir do
verso 11, e no fecho do mito de Prometeu e Pandora, verso 106,
Hesíodo nos dá um panorama da Idade de Ferro: doenças, a velhice e
a morte; a ignorância do amanhã e as incertezas do futuro; a
existência de Pandora, a mulher fatal, e a necessidade premente do
trabalho. Uma junção de elementos tão díspares, mas que o poeta de
Ascra distribui num quadro único. As duas Érides, as duas lutas, se
constituem na essência da Idade de Ferro:
Na verdade, não existe apenas uma espécie de luta: na
terra existem duas.
Uma será exaltada por quem a compreender, a outra
é condenável. É que elas são contrárias entre si: uma,
cruel, é causa de que se multipliquem as guerras e as
discórdias funestas.
Nenhum mortal a estima, mas, forçados pela vontade
dos Imortais, os homens prestam um culto a esta luta
perversa. A outra, mais velha, nasceu da Noite
tenebrosa, e Zeus, em seu elevado trono no éter,
colocou-a nas raízes do mundo e fê-la bem mais
proveitosa para os homens. Esta arrasta para o
trabalho até mesmo os indolentes, porque o ocioso,
quando olha para um outro, que se tornou rico,
rapidamente busca o trabalho, procura plantar e
fazer prosperar seu patrimônio:
o vizinho inveja o vizinho que se apressa em
enriquecer. Esta luta é salutar aos mortais: o oleiro
inveja ao oleiro, o carpinteiro ao carpinteiro; o pobre
tem ciumes do pobre e o aedo do aedo.
(Trab., 11-26)
A causa de tudo foi, já se disse, o desafio a Zeus por parte de
Prometeu e o envio de Pandora. Desse modo, o mito de Prometeu e
Pandora forma as duas faces de uma só moeda: a miséria humana na
Idade de Ferro. A necessidade de sofrer e batalhar na terra para obter
o alimento é igualmente para o homem a necessidade de gerar
através da mulher, nascer e morrer, suportar diariamente a angústia
e a esperança de um amanhã incerto. É que a Idade de Ferro tem uma
existência ambivalente e ambígua, em que o bem e o mal não estão
somente amalgamados, mas ainda são solidários e indissolúveis. Eis
aí por que o homem, rico de misérias nesta vida, não obstante se
agarra a Pandora, “o mal amável”, que os deuses ironicamente lhe
enviaram. Se este “mal tão belo” não houvesse retirado a tampa da
jarra, em que estavam encerrados todos os males, os homens
continuariam a viver como antes, “livres de sofrimento, do trabalho
penoso e das enfermidades dolorosas que trazem a morte” (Trab., 9092). As desgraças, porém, despejaram-se pelo mundo; resta, todavia, a
Esperança, pois afinal a vida não é apenas infortúnio: compete ao
homem escolher entre o bem e o mal. Pandora é, pois, o símbolo
dessa ambiguidade em que vivemos. Em seu duplo aspecto de
mulher e de terra, Pandora expressa a função da fecundidade, tal
qual se manifesta na Idade de Ferro na produção de alimentos e na
reprodução da vida, já não existe mais a abundância espontânea da
Idade de Ouro; de agora em diante é o homem quem deposita a sua
semente (spérma) no seio da mulher, como o agricultor a introduz
penosamente nas entranhas da terra. Toda riqueza adquirida tem, em
contrapartida, o seu preço. Para a Idade de Ferro a terra e a mulher
são simultaneamente princípios de fecundidade e potências de
destruição: consomem a energia do homem, destruindo-lhe, em
consequência, os esforços; “esgotam-no, por mais vigoroso que seja”
(Trab., 704-705), entregando-o à velhice e à morte, “ao depositar no
ventre de ambas” (Teog., 599) o fruto de sua fadiga.
Mergulhado nesse universo ambíguo, o agricultor do século de
Hesíodo terá fatalmente que escolher entre as duas Érides, as duas
lutas: uma, que o incita ao trabalho e à Díke, fonte de muito esforço e
fadiga, mas também de justiça e prosperidade; a outra, que o arrasta
para a ociosidade e a hýbris, origem da pobreza, da violência, da
mentira e da injustiça.
A conclusão a que se pode chegar, após o estudo evolutivo das
Cinco Idades, é a de que o poeta modelou a evolução humana de
modo inverso daquele que presidiu à evolução divina. Se da Idade de
Ouro a humanidade se degenerou até atingir o extremo quase
insuportável da Idade de Ferro, em que reina a hýbris, a sociedade
divina, ao revés, como veremos nos capítulos seguintes, partindo do
Caos, elevou-se até Zeus, que para Hesíodo personifica a Díke, a
Justiça.
7
Para concluir este capítulo sobre Hesíodo, vamos dizer uma
palavra sobre a escatologia e a Díke nos Trabalhos e Dias.
A escatologia, parece, já está definida no próprio estudo que se fez
de cada uma das Cinco Idades. Vamos apenas recapitular e
esquematizar os fatos.
Nas Idades de Ouro e Prata, o destino final do homem é tornar-se
respectivamente daímon epikhthónios ou hypokhthónios, isto é, a
psiqué, sobre ou sob a terra, passa a funcionar como espírito
intermediário entre os deuses e os homens. Trata-se, por conseguinte,
de uma promoção.
Exatamente o contrário sucede com os homens da Idade de Bronze
e a maioria dos heróis da Idade que tem seu nome: após a morte, são
lançados no Hades, onde, semelhantes à fumaça, se convertem em
mortos anônimos, sem direito a honras ou a culto, por parte dos vivos.
Hesíodo não fala em penas, em tormentos, mas só pelo fato de se
transformarem em mortos anônimos, sem nenhum direito a culto,
fica subentendido que “essas sombras” nada mais são que uma
fumaça esquiva, o que se constitui, para o pensamento grego, no
maior dos castigos, o deixar de ser. Os heróis, porém, amantes da
Díke, terão como recompensa eterna a Ilha dos Bem-Aventurados.
A respeito da quinta Idade, a de ferro, o poeta se cala a respeito do
além. Tem-se a impressão, salvo engano, de que o paraíso e o inferno
da Idade de Ferro, que será, além do mais, prolongada por criaturas
ainda piores, estão aqui mesmo: os que se dedicam ao trabalho, à
justiça e ao respeito aos deuses, terão seus celeiros cheios e uma vida
farta e tranquila. Seu paraíso, sua Ilha dos Bem-Aventurados, é uma
tríplice colheita anual. Os que se embriagarem da hýbris, do
descomedimento, da injustiça e da ociosidade serão escravos da fome
e da miséria28.
Quanto à justiça, o assunto é bem mais sério. A Díke em Hesíodo e
em seu universo religioso ocupa um lugar de destaque.
Transformada em divindade poderosa, como filha de Zeus, é
respeitada e venerada por todos os Imortais. A razão central dessa
verdadeira entronização da justiça deve ser buscada nos graves fatos
sociais, já sintetizados páginas atrás, que agitaram os séculos VIII e
VII a.C., quando os “reis”, os Eupátridas, donos da pólis e das melhores
glebas, porque só eles tinham meios de defendê-las, apossaram-se de
todo o resto: religião, leis, sacerdócio... É contra esse estado de coisas
que se levanta também a voz de Hesíodo, em nome da Díke, que é a
vontade de Zeus. Desejando instruir e orientar seu irmão Perses,
dominado pela hýbris, pelo descomedimento, pela violência e pela
inércia, o poeta se volta ainda para admoestar os “reis”: deles não se
exige trabalho, mas que solucionem com justiça as querelas e
arbitrem corretamente os processos. E parece que essa justiça era tão
rara, que, ao entrar na assembleia um “rei” justo, era saudado,
segundo se mostrou, theòs hós, como um deus... Não foi em vão que, à
época de Hesíodo, a Vergonha e a Justiça fugiram para o céu!
Logo na Invocação do poema, como desejando mostrar a força de
Zeus, senhor da Díke, canta o poeta, exaltando a justiça divina:
Facilmente Zeus concede a força e facilmente destrói
o forte, facilmente humilha o soberbo e exalta o
humilde, facilmente corrige as almas torcidas e
esmaga o orgulhoso, Zeus que troveja nas alturas e
habita as sublimes mansões.
Ouve minha voz, olha, escuta, que a justiça guie tuas
decisões.
De minha parte, quero dizer a Perses palavras
verdadeiras.
(Trab., 5-10)
E, se Hesíodo quer dizer ao irmão a verdade, o melhor é começar
pelo apelo à justiça e à prudência:
Mas tu, Perses, ouve a justiça, não deixes crescer o
descomedimento. O descomedimento é funesto para os
pobres e até o poderoso tem dificuldade em suportá-lo
e seu peso o esmaga, quando a desgraça se encontra em
seu caminho. É preferível seguir outro rumo, que,
passando do outro lado, conduz às obras da justiça. A
justiça triunfa do descomedimento, quando é chegada
sua hora: o tolo aprende, sofrendo.
(Trab., 213-218)
Mas Hesíodo não deseja que a justiça seja praticada apenas por
Perses, mas também e sobretudo por aqueles que têm a função de
aplicá-la. Estes, infelizmente, se deixam, não raro, subornar, a ponto
de provocar a presença do Horco, o juramento, e de se ouvirem os
clamores e os soluços da própria justiça:
De imediato o juramento se apresenta em perseguição
às sentenças torcidas, elevam-se os clamores da Justiça
sobre o caminho por onde a arrastam os reis
comedores de presentes, que fazem justiça à força de
sentenças torcidas. Ela os segue chorando sobre a
cidade e ás habitações dos homens, que a expulsaram
e aplicaram sem critério.
(Trab., 219-224)
Ao contrário de Homero, em que uma personagem humilde e
deformada como Tersites, pelo fato de ter criticado os grandes, foi
surrado por Ulisses e ridicularizado pelo poeta, Hesíodo levanta
corajosamente sua voz contra os prepotentes e corruptos do século
VIII a.C., ameaçando-os em nome de Zeus:
Reis, meditai também acerca desta justiça, porque
Imortais estão aqui, perto de vós, misturados aos
homens. Eles observam todos aqueles que, por suas
sentenças torcidas, prejudicam ora um, ora outro, sem
se preocupar com o temor dos deuses. São trinta mil
Imortais, que sobre a terra nutridora, em nome de
Zeus, guardam os mortais, vestidos de bruma,
percorrendo a terra inteira, observando-lhes as
sentenças e as más ações.
(Trab., 248-255)
E oito versos mais abaixo, Hesíodo, “o profeta do trabalho e da
justiça”29, como apropriadamente lhe chamou Nilsson, apela aos
“reis”, já agora em nome do povo injustiçado:
Meditai sobre isto, reis comedores de presentes, sede
justos em vossos julgamentos e renunciai para sempre
às sentenças torcidas.
(Trab., 263-264)
É preciso que o povo pague pela loucura desses reis
que, com tristes desígnios, falsificam seus decretos com
fórmulas torcidas.
(Trab., 260-262)
No século do poeta, no entanto, o que lamentavelmente vigorava
era a lei do mais forte. Para elucidá-la, Hesíodo conta o apólogo do
“gavião” e do “rouxinol”. Não faz comentários sobre o mesmo e nem
era necessário: o “rouxinol-cantor” é o próprio poeta e o “gavião”, ave
de rapina, são os “reis comedores de presentes”:
Agora, aos reis, embora sábios, contarei uma história.
Eis o que o gavião disse ao rouxinol de pescoço
pintado, enquanto o transportava lá no alto, no meio
das nuvens, preso em suas garras. O rouxinol,
traspassado lastimavelmente pelas garras aduncas,
gemia, mas o gavião brutalmente lhe diz: “Miserável,
por que gritas? Pertences ao mais forte que tu. Irás
para onde eu te conduzir, por melhor cantor que sejas:
de ti farei meu jantar, se assim o quiser, ou te deixarei
em liberdade” [...]
(Trab., 202-209)
Face à opressão dos ricos contra os pobres, Hesíodo defende a
dignidade da pessoa humana:
Jamais injuries um homem amaldiçoado pela
pobreza, que corrói a alma: a pobreza é um dom dos
deuses imortais.
(Trab., 717-718)
Pacifista, o poeta é um verdadeiro arauto da não-violência:
Ouve agora a justiça, esquece a violência para sempre.
(Trab., 275)
Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas o que se desejou
ratificar e comprovar foi o estado lamentável da sociedade grega do
século VIII a.C., em que a opressão dos Eupátridas, os “reis comedores
de presentes”, transformara o povo em “rouxinóis”. De outro lado, o
poeta-camponês quis mostrar o verdadeiro conceito da Díke, que,
tanto para os “reis”, como para o agricultor, deve sempre se exercer
em função da Éris, isto é, da emulação, que é boa ou má. A Díke real
consiste em apaziguar com justiça as querelas, em arbitrar os
conflitos provocados pela Éris má. A Díke do agricultor consiste em
fazer da Éris virtude, deslocando a luta e a emulação da guerra para
o trabalho do campo. Assim compreendida, a Éris, em lugar de
destruir, constrói, em vez de semear ruínas, é portadora de fecunda
abundância.
É provável que, como “poeta e profeta”, Hesíodo tenha se
antecipado a seu século. Seu sonho teria ou terá que esperar por
muito tempo. Não importa. Hesíodo, como bem mais tarde Eurípides,
talvez tenha sonhado com um mundo onde as injustiças, a opressão e
a dor não se justificam mais. Sonho? Certamente, mas com certa
confiança. Afinal, na jarra, bem junto à tampa, ficaram presos os dois
olhinhos verdes de Pandora: a Esperança.
1. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 27ss.
2. GLOTZ, Gustave. Histoire grecque. Paris: Presses Universitaires de France, 1948, t. I, p. 126.
3. LLOYD-JONES, Hugh et al. Op. cit., p. 42.
4. O ateniense Sólon (séc. VII a.C.) foi um dos primeiros poetas líricos da Hélade. Ficaramnos dele fragmentos importantes de Elegias e Iambos, que se constituem num verdadeiro
manifesto de suas ideias políticas, sociais e religiosas.
5. Não se tratará, neste capítulo, do mito dos deuses e demais divindades que povoam a
Teogonia. Os principais dentre eles serão estudados nos capítulos a seguir, mesmo porque
Hesíodo servirá de base a nosso livro. Para uma visão mais completa v. os Vol. II e III de
Mitologia grega
6. Estige é uma Oceânida, uma divindade unida à água. Com os filhos ajudara Zeus na luta
contra os Titãs e recebeu como privilégio que em seu nome jurassem solenemente os deuses.
Como havia uma fonte na Arcádia com o mesmo nome e cujas águas tinham a propriedade
de envenenar, o rio do Hades, que também se chamava Estige, e que por ela era formado,
passou a ser aquele por cujas águas mágicas se faziam terríveis juramentos.
7. Quando Hesíodo enumera os filhos de Nix (Noite), v. 211-232, fala das Moîras; aqui o poeta
as repete, mas de modo diferente, personificando-as.
8. BACHOFEN, Johann Jakob. Op. cit., p. 18ss.
9. PETTAZZONI, Raffaele. Op. cit., p. 57.
10. LESKY, Albin. Geschichte der Griechischen Literatur (História da literatura grega).
Berna: Francke Verlag, 1963, p. 116.
11. O hábito de se oferecerem aos deuses os ossos de animais sacrificados, recobertos de
gordura, é atestado em muitas culturas. Esses ossos eram queimados sobre os altares, a fim
de que o animal pudesse chegar aos céus e ser recomposto.
12. O fígado era considerado em quase todas as culturas como sede da vida, conforme Pr
7,23, e como órgão especial para indicar a vontade dos deuses, conforme Ez 21,26.
13. Eis aí, com todos os “pormenores”, o mito canônico de Prometeu na apresentação de
Hesíodo. Para se ter uma ideia concreta de como a arte enriquece, amplia, transfigura e, não
raro, “desfigura” o mito, seria necessário a leitura da gigantesca tragédia esquiliana,
Prometeu Acorrentado, em que o mitologema é apresentado de maneira bem mais ampla e
poética.
14. Pandora provém, em grego, de pân, todo, e dóron, dom, presente, e significa “a detentora
de todos os dons”, um presente de todos os deuses. Do ponto de vista religioso, Pandora é
uma divindade da terra e da fecundidade. Como Anesidora, a que faz germinar, sair de
baixo para cima, antigo epíteto de Deméter, é representada na arte figurativa “saindo da
terra”, conforme o tema do ánodos, ação de sair de, própria das divindades ctônias e agrárias.
15. Epimeteu, de epí, sobre, depois, μη-θεύς (me-theús), ver, saber. Por oposição a Prometeu,
que vê antes, Epimeteu vê depois. E viu!
16. É verdade que Hesíodo em algumas passagens de seus poemas não tem muita
consideração pela mulher, mas não se pode objetivamente, como se tem feito, tachá-lo de
misógino, isto é, de “odiar a mulher”. O que o poeta recomenda é o cuidado na escolha de
uma boa esposa. Pandora, simbolizando todas as mulheres, é um mal tão belo, reverso de um
bem. Flagelo terrível instalado no meio dos mortais, mas algo maravilhoso, revestido pelos
deuses de atrativos e de graça. Raça maldita, mas imprescindível ao homem... (Teog., 585591).
17. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit., p. 109s.
18. GOLDSCHMIDT, Victor. Theologia. In: Revue des études grecques. Paris: Les Belles Lettres,
1950, t. LXIII, p. 33ss.
19. VERNANT, Jean-Pierre. Génesis y estructura en el mito hesiódico de las razas. In: Revue
de l’histoire des religions. Paris: Les Belles Lettres, 1960, t. CLVII, p. 21ss.
20. O poeta emprega exatamente os dois qualificativos dos daímones: epikhthónioi (Trab.,
123) e hypokhthónioi (Trab., 141).
21. Religiosamente, já estamos bem distantes de Homero. Em Hesíodo, embora Zeus cumpra
seus desígnios, o homem tem possibilidade de escolher entre o bem (o trabalho, a Díke) e o
mal (a inércia, a violência, a “hýbris”).
22. MAZON, Paul. Hésiode. Paris: Les Belles Lettres, 1947, passim.
23. Apesar de criados pelos Imortais do Olimpo, os homens da Idade de Prata são bem
inferiores a seus predecessores. Durante cem anos permaneciam como crianças ao lado da
mãe. Tão logo atingiam a adolescência, tinham poucos anos de vida e sofriam, por causa de
seu descomedimento, “mil castigos” (Trab., 130-134).
24. VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit., p. 32s.
25. Talos é uma personagem do mito egeu, uma espécie de robô de bronze, encarregado por
Minos ou Zeus de vigiar dia e noite a ilha de Creta. Era invulnerável, exceto na parte inferior
da perna, onde se encontrava uma pequena veia, fechada por uma cavilha. Medeia, com seus
sortilégios, conseguiu dilacerar a veia e Talos morreu.
26. Ceneu, o lápita da lança, primeiro foi mulher com o nome de Cênis e amada por Posídon,
a quem pediu fosse transformada num homem invulnerável. O deus atendeu-lhe a ambos
os pedidos, mas a invulnerabilidade era condicional. Sob sua nova forma, lutou contra os
Centauros, que lhe descobriram o ponto vulnerável: esmagaram-no sob um monte de
pedras. Acrescente-se que a iniciação guerreira implica real ou aparentemente em mudança
de sexo, como aconteceu com Aquiles, Ceneu e igualmente Héracles, quando foi comprado
pela rainha da Lídia, Ônfale.
27. Os Gigantes só eram invulneráveis quando não atacados simultaneamente por um deus
e um mortal. Com a ajuda de Héracles e suas flechas, Zeus e outros imortais os liquidaram.
Diga-se, de passagem, que entre os mortais e os imortais há o escalão dos makróbioi, dos que
têm uma longa vida, como os Gigantes e as Ninfas, mas não são imortais.
28. Pode-se claramente observar a diferença entre a escatologia homérica e a hesiódica, mas
ambas estão ainda muito distantes da verdadeira escatologia grega, que se iniciará com os
Órficos (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Escatologia).
29. NILSSON, Martin P. Op. cit., p. 47.
CAPÍTULO IX
A primeira fase do Universo: do
Caos a Pontos
1
Sem deixar de lado o épico com Homero e, bem mais tarde, com
Apolônio de Rodes (século III a.C.) e seu importante poema de cunho
mitológico, Argonáuticas; sem esquecer o lírico, sobretudo com
Píndaro (século VI-V a.C.); sem omitir o dramático, com Ésquilo
(século VI-V a.C.), Sófocles e Eurípídes (século V a.C.); sem
menosprezar a arte figurada e a obra importante de Pausânias
(século II d.C.), Descrição da Grécia, com suas inúmeras digressões
míticas; sem preterir o poeta latino Ovídio (século I a.C.-I d.C.) e suas
Metamorfoses, porque todos nos servirão de referencial, mercê da
importância dos mesmos para um estudo do mito grego, vamos, no
entanto, tomar como base e ponto de partida as duas obras didáticas
de Hesíodo, Teogonia e Trabalhos e Dias.
Se também desejamos ser didático e o mais claro possível (se é que
se pode ser claro, escrevendo sobre mito!), tínhamos fatalmente,
nessa tentativa de “ordenar” a mitografia grega, que começar por
Hesíodo. Afinal, foi ele o primeiro a enfeixar e ordenar em
genealogias a desordem caótica em que viviam os mitologemas da
Hélade.
Empreenderemos, pois, uma longa viagem com o poeta de Ascra.
Iniciando com ele pelo Caos e pela Têmis, a justiça divina, tentaremos
chegar, se não à Idade de Ouro, ao menos a Zeus, à Dique, à justiça dos
homens. Do Caos à luz, da Têmis à Dique, eis o espaço que
pretendemos preencher.
A obra de Hesíodo, em seu conjunto, é, a nosso ver, um sonho
também político: partindo da aristocracia opressora de seu tempo,
desejou ver o triunfo de Zeus, símbolo da justiça dos homens. O ideal
político do grande poeta beócio, que ele simbolizou com a evolução
religiosa, foi uma aspiração por longo tempo adiada. Sólon, Efialtes,
Clístenes e Péricles viriam bem depois, mas a luz da democracia deve
pelo menos ao poeta o ter sonhado e lutado por ela.
Comecemos, pois, pelo Caos.
2
CAOS – No princípio era o Caos. Caos, em grego Χάος (Kháos), do
verbo χαίείν (khaíein), abrir-se, entreabrir-se, significa abismo
insondável1. Ovídio chamou-o rudis indigestaque moles (Met., 1,7),
massa informe e confusa. Consoante Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, o Caos é “a personificação do vazio primordial, anterior
à criação, quando a ordem ainda não havia sido imposta aos
elementos do mundo”2. No Gênesis 1,2, diz o texto sagrado:
A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do
abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. Trata-se do Caos
primordial, antes da criação do mundo, realizada por Javé, a partir do
nada. Na cosmogonia egípcia, o Caos é uma energia poderosa do
mundo informe, que cinge a criação ordenada, como o oceano circula
a terra. Existia antes da criação e coexiste com o mundo formal,
envolvendo-o como uma imensa e inexaurível reserva de energias,
nas quais se dissolverão as formas nos fins dos tempos. Na tradição
chinesa, o Caos é o espaço homogêneo, anterior à divisão em quatro
horizontes, que equivale à criação do mundo. Esta divisão marca a
passagem ao diferenciado e a possibilidade de orientação,
constituindo-se na base de toda a organização do cosmo. Estar
desorientado é entrar no Caos, de onde não se pode sair, a não ser pela
intervenção de um pensamento ativo, que atua energeticamente no
elemento primordial.
Do Caos grego, dotado de grande energia prolífica, saíram Geia,
Tártaro e Eros.
GEIA, em grego Γαία (Gaîa), cuja etimologia ainda se desconhece, é a
Terra, concebida como elemento primordial e deusa cósmica,
diferenciando-se assim, teoricamente, de Deméter, a terra cultivada.
Geia se opõe, simbolicamente, como princípio passivo ao princípio
ativo; como aspecto feminino ao masculino da manifestação; como
obscuridade à luz; como Yin ao Yang; como anima ao animus; como
densidade, fixação e condensação à natureza sutil e volátil, isto é, à
dissolução. Geia suporta, enquanto Úrano, o Céu, a cobre. Dela
nascem todos os seres, porque Geia é mulher e mãe. Suas virtudes
básicas são a doçura, a submissão, a firmeza cordata e duradoura,
não se podendo omitir a humildade, que, etimologicamente, prendese a humus, “terra”, de que o homo, “homem”, que igualmente provém
de humus, foi modelado. Ela é a fêmea penetrada pela charrua e pelo
arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a
semente do Céu. Como matriz, concebe todos os seres, as fontes, os
minerais e os vegetais. Geia simboliza a função materna: é a Tellus
Mater, a Mãe-Terra. Concede e retoma a vida. Prostrando-se ao solo,
exclama Jó 1,21:Nu saí do ventre de minha mãe; nu para lá retornarei.
Revertere ad locum tuum, volta a teu lugar, é um lembrete que
alguns cemitérios gostam de estampar. “Rasteja para a terra, tua mãe”
(Rig Veda, X, 18,10), diz o poeta védico ao morto. Assimilada à mãe, a
Terra é símbolo de fecundidade e de regeneração, como escreveu
Ésquilo nas Coéforas, 127-128:
A própria Terra que, sozinha, gera todos os seres,
alimenta-os e depois recebe deles novamente o gérmen
fecundo.
Consoante a Teogonia, 126s, a própria Geia gerou a Úrano, que a
cobriu e deu nascimento aos deuses. Esta primeira hierogamia, quer
dizer, casamento sagrado, foi imitada pelos deuses, pelos homens e
pelos animais. Como origem e matriz da vida, Geia recebeu o nome
de Magna Mater, a Grande Mãe. Guardiã da semente e da vida, em
todas as culturas sempre houve “enterros” simbólicos, análogos às
imersões batismais, seja com a finalidade de fortalecer as energias ou
curar, seja como rito de iniciação. De toda forma, esse regressus ad
uterum, essa descida ao útero da terra, tem sempre o mesmo
significado religioso: a regeneração pelo contato com as energias
telúricas; morrer para uma forma de vida, a fim de renascer para
uma vida nova e fecunda. É por isso que nos Mistérios de Elêusis se
efetuava uma κατάβασις εἰς ἄντρον (katábasis eis ántron), uma
descida à caverna, onde se dava um novo nascimento. Para vencer o
gigante Anteu, Héracles teve que segurá-lo no ar e sufocá-lo, já que o
monstro readquiria todas as suas forças e energias, cada vez que
tocava a Terra, sua mãe. Mater, mãe, tem a mesma raiz que materia,
“madeira”: pois bem, quando se quer atrair a sorte ou afastar o azar,
bate-se três vezes na materia, na madeira, isto é, na mater, na mãe,
detentora das grandes energias e de um mana poderoso.
TÁRTARO, em grego Τάρταρος (Tártaros), de etimologia
desconhecida, até o momento, é o local mais profundo das entranhas
da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades. A distância que
separa o Hades do Tártaro é a mesma que existe entre Geia, a Terra, e
Úrano, o Céu. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em
três compartimentos, Campos Elísios, local onde ficavam por algum
tempo os que pouco tinham a purgar, Érebo, residência também
temporária dos que muito tinham a sofrer, o Tártaro se tornou o
local de suplício permanente dos grandes criminosos, mortais e
imortais. Na Ilíada, VIII, 13ss, porém, quando Zeus proíbe os Imortais
de se imiscuírem nas batalhas entre aqueus e troianos, e ameaça
lançar os recalcitrantes nas profundezas do Tártaro, observa-se que
este é perfeito sinônimo de Hades, aonde iam ter, para todo o sempre,
sem prêmio nem castigo, todas as almas. A divisão do Hades em
compartimentos é pós-homérica.
Em Hesíodo a ideia de permanência eterna na outra vida já parece
também existir, pelo menos para alguns deuses e mortais: lá foram
lançados os Titãs e as almas dos homens da Idade de Bronze. Os
Ciclopes tiveram maissorte: duas vezes lançados no Tártaro, duas
vezes de lá foram libertados, o que demonstra que para algumas
divindades o Tártaro podia funcionar apenas como prisão
temporária, ao menos até Hesíodo. Seja como for, é no Tártaro que as
diferentes gerações divinas lançam sucessivamente seus inimigos,
como os Ciclopes e depois os Titãs.
EROS, em grego Ἔρως (Éros), significa desejo incoercível dos
sentidos. Personificado, é o deus do amor. O mais belo entre os deuses
imortais, segundo Hesíodo, Eros dilacera os membros e transtorna o
juízo dos deuses e dos homens. Dotado, como não poderia deixar de
ser, de uma natureza vária e mutável, o mito do deus do amor
evoluiu muito, desde a era arcáica até a época alexandrina e romana,
isto é, do século IX a.C. ao século VI d.C. Nas mais antigas teogonias,
como se viu em Hesíodo, Eros nasceu do Caos, ao mesmo tempo em
que Geia e Tártaro. Numa variante da cosmogonia órfica, o Caos e
Nix (a Noite) estão na origem do mundo: Nix põe um ovo, de que
nasce Eros, enquanto Úrano e Geia se formam das duas metades da
casca partida. Eros, no entanto, apesar de suas múltiplas genealogias,
permanecerá sempre, mesmo à época de seus disfarces e novas
indumentárias da época alexandrina, a força fundamental do
mundo. Garante não apenas a continuidade das espécies, mas a
coesão interna do cosmo. Foi exatamente sobre este tema que se
desenvolveram inúmeras especulações de poetas, filósofos e
mitólogos. Para Platão, no Banquete, pelos lábios da sacerdotisa
Diotima, Eros é um demônio3, quer dizer, um intermediário entre os
deuses e os homens e, como o deus do Amor está a meia distância
entre uns e outros, ele preenche o vazio, tornando-se, assim, o elo que
une o Todo a si mesmo. Foi contra a tendência generalizada de
considerar Eros como um grande deus que o filósofo da Academia
lhe atribuiu nova genealogia. Consoante Diotima, Eros foi concebido
da união de Póros (Expediente) e de Penía (Pobreza), no Jardim dos
Deuses, após um grande banquete, em que se celebrava o nascimento
de Afrodite. Em face desse parentesco tão díspar, Eros tem caracteres
bem definidos e significativos: sempre em busca de seu objeto, como
Pobreza e “carência”, sabe, todavia, arquitetar um plano, como
Expediente, para atingir o objetivo, “a plenitude”. Assim, longe de ser
um deus todo-poderoso, Eros é uma força, uma ἐνέργεια
(enérgueia), uma “energia”, perpetuamente insatisfeito e inquieto:
uma carência sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em
busca do objeto.
Com o tempo, surgiram várias outras genealogias: umas afirmam
ser o deus do Amor filho de Hermes e Ártemis ctônia ou de Hermes e
Afrodite urânia, a Afrodite dos amores etéreos; outras dão-lhe como
pais Ares e Afrodite, enquanto filha de Zeus e Dione e, nesse caso,
Eros se chamaria Ânteros, quer dizer, o Amor Contrário ou Recíproco.
As duas genealogias, porém, que mais se impuseram, fazem de Eros
ora filho de Afrodite Pandêmia, isto é, da Afrodite popular, a
Afrodite dos desejos incontroláveis, e de Hermes, ora filho de
Ártemis, enquanto filha de Zeus e Perséfone, e de Hermes. Este
último Eros, que era alado, foi o preferido dos poetas e escultores.
Aos poucos, todavia, sob a influência da poesia, Eros se fixou e
tomou sua fisionomia tradicional. Passou a ser apresentado como um
garotinho louro, normalmente com asas. Sob a máscara de um
menino inocente e travesso, que jamais cresceu (afinal a idade da
razão, o lógos, é incompatível com o amor), esconde-se um deus
perigoso, sempre pronto a traspassar com suas flechas certeiras,
envenenadas de amor e paixão, o fígado e o coração de suas vítimas...
Uma das Odes atribuídas ao grande poeta lírico grego do século VI
a.C., Anacreonte, nos dá um retrato de corpo inteiro desse incendiário
de corações4.
Vamos transcrevê-la, para que se tenha uma ideia da concepção
tardia de Eros:
Um dia, lá pela meia-noite,
Quando a Ursa se deita nos braços do Boieiro,
E a raça dos mortais, toda ela, jaz, domada pelo sono,
Foi que Eros apareceu e bateu à minha porta. “Quem
bate à minha porta, E rasga meus sonhos?”
Respondeu Eros: “Abre”, ordenou ele;
“Eu sou uma criancinha, não tenhas medo.
Estou encharcado, errante
Numa noite sem lua”.
Ouvindo-o, tive pena.
De imediato, acendendo o candeeiro,
Abri a porta e vi um garotinho:
Tinha um arco, asas e uma aljava.
Coloquei-o junto ao fogo
E suas mãos nas minhas aqueci-o,
Espremendo a água úmida que lhe escorria dos cabelos.
Eros, depois que se libertou do frio, “Vamos”, disse ele,
“experimentemos este arco, Vejamos se a corda
molhada não sofreu prejuízo”.
Retesa o arco e fere-me no fígado,
Bem no meio, como se fora um aguilhão.
Depois, começa a saltar, às gargalhadas: “Hospedeiro”,
acrescentou, “alegra-te,
Meu arco está inteiro, teu coração, porém, ficará
partido”.
O fato de Eros ser uma criança simboliza, sem dúvida, a eterna
juventude de um amor profundo, mas também uma certa
irresponsabilidade. Em todas as culturas, a aljava, o arco, as flechas, a
tocha, os olhos vendados significam que o Amor se diverte com as
pessoas de que se apossa e domina, mesmo sem vê-las (o amor, não
raro, é cego), ferindo-as e inflamando-lhes o coração. O globo que ele,
por vezes, tem nas mãos, exprime sua universalidade e seu poder.
Eros, de outro lado, traduz ainda a complexio oppositorum, a união
dos opostos. O Amor é a pulsão fundamental do ser, a libido, que
impele toda existência a se realizar na ação. É ele que atualiza as
virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato só se concretiza
mediante o contato com o outro, através de uma série de trocas
materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e
comoções. Eros procura superar esses antagonismos, assimilando
forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma
unidade. Nessa acepção, ele é simbolizado pela cruz, síntese de
correntes horizontais e verticais e pelos binômios animus-anima e
Yang-Yin. Do ponto de vista cósmico, após a explosão do ser em
múltiplos seres, o Amor é δύναμίς (dýnamis), a força, a alavanca que
canaliza o retorno à unidade; é a reintegração do universo, marcada
pela passagem da unidade inconsciente do Caos primitivo à unidade
consciente da ordem definitiva. A libido então se ilumina na
consciência, onde poderá tornar-se uma força espiritual de progresso
moral e místico. O ego segue uma evolução análoga à do universo: o
amor é a busca de um centro unificador, que permite a realização da
síntese dinâmica de suas potencialidades. Dois seres que se dão e
reciprocamente se entregam, encontram-se um no outro, desde que
tenha havido uma elevação ao nível de ser superior e o dom tenha
sido total, sem as costumeiras limitações ao nível de cada um,
normalmente apenas sexual. O amor é uma fonte de progresso, na
medida em que ele é efetivamente união e não apropriação.
Pervertido, Eros, em vez de se tornar o centro unificador, converte-se
em princípio de divisão e morte. Essa perversão consiste sobretudo
em destruir o valor do outro, na tentativa de servir-se do mesmo
egoisticamente, ao invés de enriquecer-se a si próprio e ao outro com
uma entrega total, um dom recíproco e generoso, que fará com que
cada um seja mais, ao mesmo tempo em que ambos se tornam eles
mesmos5.O erro capital do amor se consuma quando uma das partes
se considera o todo.
O conflito entre a alma e o amor é simbolizado pelo mito de Eros e
Psiqué, que analisamos no segundo volume desta obra.
3
ÉREBO, NIX; ÉTER, HEMERA. Caos gerou sozinho as trevas
profundas, Érebo e Nix, enquanto de Nix nasceu a luz radiante, Éter
e Hemera.
Assim, a matéria informe, confusa e opaca, o Caos, gera
primeiramente as trevas. É que para Hesíodo o cosmo se desenvolve
ciclicamente, de baixo para cima, passando das trevas à luz. É
natural, por isso mesmo, que a luz, Éter e Hemera, tenha sido gerada
pelas trevas, Nix, a Noite. Observe-se ainda a conjugação dos opostos:
Érebo e Nix, as trevas, se opõem à luz, mas é das trevas, Nix, que
nascerá a luz, Éter e Hemera. Esses pares antitéticos unem-se e
interferem, cada um triunfando sobre o outro, numa eterna
transformação cíclica.
Também em Gênesis 1,2-3 a luz existiu depois das trevas:
A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face
do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse:
“Exista a luz”. E a luz existiu.
ÉREBO, em grego Ἔρεβος (Érebos), designa as trevas infernais.
Trata-se de uma concepção indo-europeia, cuja raiz é regwos, que
aparece em sânscrito como rájas, espaço obscuro, no gótico riqiz,
obscuridade, e no armênio erek, crepúsculo. Bem mais tarde, como já
se disse, quando o Hades, o mundo infernal, foi “geograficamente”
dividido em três compartimentos, Érebo ocupou o centro, à igual
distância entre os Campos Elísios e o Tártaro.
NIX, em grego Νύξ (Nýks), é a personificação e a deusa da noite, cuja
raiz é o indo-europeu *nokwt – “escuridão”. Habita o extremo Oeste,
além do país de Atlas. Enquanto Érebo personifica as trevas
subterrâneas, inferiores, Nix personifica as trevas superiores, de
cima.
Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro
puxado por quatro cavalos negros e sempre acompanhada das
Queres. À Noite só se podem imolar ovelhas negras. Nix simboliza o
tempo das gestações, das germinações e das conspirações, que vão
surgir à luz do dia em manifestações de vida. É muito rica em todas
as potencialidades de existência, mas entrar na noite é regressar ao
indeterminado, onde se misturam pesadelos, íncubos, súcubos e
monstros. Símbolo do inconsciente, é no sono da noite que aquele se
libera.
ÉTER, em grego Αἰθήρ (Aithér), do verbo αἴθειν (aíthein), brilhar,
iluminar, donde “o brilhante”. Éter é a camada superior do cosmo,
posicionado entre Úrano (Céu) e o Ar e, por isso mesmo, personifica o
céu superior, onde a luz é mais pura que na camada mais próxima da
terra, dominada pelo Ar, que nada tem a ver com Éter.
HEMERA, em grego Ἡμέρα (Heméra), cuja base é o indo-europeu
âmôr, “claridade”. Hemera é a personificação do Dia, concebido como
divindade feminina, formando com Éter um par, enquanto Érebo e
Nix formam o outro.
ÚRANO, MONTES, PONTOS. GEIA, sem concurso de nenhum deus,
gerou Úrano (Céu), Montes e Pontos (Mar). Aliás, como Grande Mãe,
uma das características de Geia é a partenogênese.
ÚRANO, em grego Ουρανός (Uranós). Não mais se aceitando a
aproximação com Varuna, talvez se pudesse cotejar o vocábulo
grego com *Fορσανός (*worsanós), sânscrito varsa-, “chuva”, donde
Úrano seria “o que chove”, fecundando Geia. É a personificação do
Céu, enquanto elemento fecundador de Geia. Úrano (Céu) era
concebido como um hemisfério, a abóbada celeste, que cobria a
Terra, concebida como esférica, mas achatada: entre ambos se
interpunham o Éter e o Ar e, nas profundezas de Geia, localizava-se o
Tártaro, bem abaixo do próprio Hades, como já se mencionou. Mais
adiante se falará da mutilação de Úrano por Crono. Do ponto de vista
simbólico, o deus do Céu traduz uma proliferação criadora
desmedida e indiferenciada, cuja abundância acaba por destruir o
que foi gerado. Úrano caracteriza assim a fase inicial de qualquer
ação, com alternância de exaltação e depressão, de impulso e queda,
de vida e morte dos projetos.
Deus celeste indo-europeu, símbolo da abundância, o deus do Céu
é representado pelo touro. Sua fertilidade, todavia, é perigosa, além
de inútil. A mutilação de Úrano por Crono põe cobro a uma odiosa e
estéril fecundidade e faz surgir Afrodite, nascida do esperma
ensanguentado do deus, a qual introduz no mundo a ordem e a
fixação das espécies, impossibilitando qualquer procriação
desordenada e nociva. André Virel, com base na mitologia grega,
caracterizou as três fases da evolução criadora: Úrano (sem
equivalente no mito latino) é a efervescência caótica e
indiferenciada, chamada cosmogenia; Crono (Saturno) é o podador,
corta e separa. Com um golpe de foice ceifa os órgãos de seu pai,
pondo fim a secreções indefinidas. Ele é o tempo da paralisação. É o
regulador que bloqueia qualquer criação no universo. É o tempo
simétrico, o tempo da identidade. Sua fase denomina-se
esquizogenia. O reino de Zeus (Júpiter) se caracteriza por uma nova
partida, organizada e ordenada e não mais caótica e anárquica: a esta
fase A. Virel chama autogenia6. Após a descontinuidade, a criação e a
evolução retomam seu caminho.
MONTES, MONTANHAS, no grego hesiódico Οὔρεα (Úrea), do
verbo ὄρεσθαι (óresthai), “elevar-se”, personificados como filhos de
Geia, são em Hesíodo a “agradável habitação das Ninfas”. Por sua
altura e por ser um centro, a montanha tem um simbolismo preciso.
Na medida em que ela é alta, vertical, aproximando-se do céu, é
símbolo de transcendência; enquanto centro de hierofanias
(manifestações do sagrado) e de teofanias (manifestações dos
deuses), participa do simbolismo da manifestação. Como ponto de
encontro entre o céu e a terra, é a residência dos deuses e o termo da
ascensão humana. Expressão da estabilidade e da imutabilidade, a
montanha, segundo os sumérios, é a massa primordial não
diferenciada, o Ovo do mundo. Residência dos deuses, escalar a
montanha sagrada é caminhar em direção ao Céu, como meio de se
entrar em contato com o divino, e uma espécie de retorno ao
Princípio.
Todas as culturas têm sua montanha sagrada. Moisés recebeu as
Tábuas da Lei no Monte Sinai; Garizim foi e continua a ser um cume
sagrado nas montanhas de Efraim; o sacrifício de Isaac foi sobre a
montanha; Elias obtém o milagre da chuva nos píncaros do monte
Carmelo (1Rs 18,45); uma das mais belas pregações de Cristo foi o
Sermão da Montanha (Mt 5,lss); a transfiguração de Jesus foi sobre
uma alta montanha (Mc 9,2) e sua ascensão, sobre o monte das
Oliveiras (Lc 24,50; At 1,12)...
Os exemplos poderiam multiplicar-se. Acrescentemos, apenas, que
o monte Olimpoera a morada dos deuses gregos; Dioniso foi criado
no monte Nisa e Zeus o foi no monte Ida. Montesalvat do Graal está
situado no meio deilhas inacessíveis.
Na realidade, Deus está sempre mais perto, quando se escala a
montanha.
PONTOS, em grego Πόντος (Póntos), talvez da raiz *pent, ação de
caminhar, o sânscrito tem pánthâh, caminho, e o latim pons, ponte,
passarela. Pontos é, pois, a marcha, o caminho, “os caminhos do mar”.
Personificado, passou a figurar como representação masculina do
mar. Não possuindo um mito próprio, aparece apenas nas
genealogias teogônicas e cosmogônicas. O mar simboliza a dinâmica
da vida. Tudo sai do mar e a ele retorna, tornando-se o mesmo o lugar
de nascimentos, transformações e renascimentos. Águas em
movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possíveis
realidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de
ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida e da indecisão, que se
pode concluir bem ou mal. Daí ser o mar simultaneamente a imagem
da vida e da morte. Cretenses, gregos e romanos sacrificavam ao mar
cavalos e touros, ambos símbolos de fecundidade. Símbolo também
de hostilidade ao divino, o mar acabou por ser vencido e dominado
por um deus. Segundo as cosmogonias babilônicas, Tiamat (O Mar),
após contribuir para dar nascimento aos deuses, foi por um deles
vencido. Javé tinha domínio total sobre o mar e seus monstros, como
diz Jó 7,12:
Acaso sou eu o mar ou baleia, para me teres
encerrado como num cárcere?
Criação de Deus (Gn 1,9-10), o mar tem que lhe estar sujeito (Jr
31,35). Cristo dá ordens aos ventos e ao mar, e as tempestades se
transformam em bonança (Mt 8,24-27).
João (Ap 21,1) canta o mundo novo, em que o mar não mais existirá.
1. FRISK, Hjalmar. Op. cit., verbete.
2. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 206s.
3. Demônio, em grego δαίμονας (daimónion), significa deus, divindade, deus de
categoriainferior, destino, como por vezes aparece em Homero; gênio tutelar, intermediário
entre os deuses e os mortais, como as almas dos homens da Idade de Ouro; voz interior que
fala ao homem, guia-o, aconselha-o, como o demônio que inspirava Sócrates. Em princípio,
portanto, demônio não tem conotação alguma pejorativa, como o “diabo”. Com o sentido de
Satanás, demônio não é documentado no Antigo Testamento. Ao que parece, com a acepção
que hodiernamente se lhe atribui, o “demônio” surgiu a partir dos Septuaginta (séc. III e II
a.C.), generalizando-se depois no Novo Testamento.
4. Das Odes, Elegias e Iambos de Anacreonte só nos chegaram fragmentos. As chamadas
Anacreônticas, sessenta pequenos poemas conservados na Antologia Palatina, e atribuídos
ao poeta, foram, na realidade, compostos em época bem posterior. É quase certo que
nenhum deles pertence ao poeta do amor, do vinho e da mulher.
5. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 35s.
6. VIREL, André. Citado por CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 715s.
CAPÍTULO X
A Primeira Geração Divina: de
Úrano a Crono
1
À primeira fase do Cosmo segue-se o que se poderia chamar estágio
intermediário, em que Úrano (Céu) se une a Geia (Terra), de que
procede numerosa descendência: Titãs, Titânidas, Ciclopes,
Hecatonquiros, além dos que nasceram do sangue de Úrano e de
todos os filhos destes e daqueles, como se pode ver no capítulo VIII, p.
162ss.
A união de Úrano e Geia é o que se denomina uma hierogamia, um
casamento sagrado, cujo objetivo precípuo é a fertilidade da mulher,
dos animais e da terra. É que, na expressão de Mircea Eliade, o ίερός
γάμος (hieròs gámos), o casamento sagrado, “atualiza a comunhão
entre os deuses e os homens; comunhão, por certo passageira, mas
com significativas consequências. Pois a energia divina convergia
diretamente sobre a cidade – em outras palavras, sobre a ‘Terra’ –
santificava-a e lhe garantia a prosperidade e a felicidade para o ano
que começava”1. Essas hierogamías se encontram em quase todas as
tradições religiosas. Simbolizam não apenas as possibilidades de
união do homem com os deuses, mas também uniões de princípios
divinos que provocam certas hipóstases. Uma das mais célebres
dessas uniões é a de Zeus (o poder, a autoridade) e Têmis (a justiça, a
ordem eterna) que deu nascimento a Eunômia (a disciplina), Irene (a
paz) e Dique (a justiça).
Curioso é que o casamento, instituição que preside à transmissão
da vida, aparece muitas vezes aureolado de um culto que exalta e
exige a virgindade, simbolizando, assim, a origem divina da vida, de
que as uniões do homem e da mulher são apenas projeções,
receptáculos, instrumentos e canais transitórios. No Egito havia as
esposas de Amon, deus da fecundidade. Eram normalmente princesas
consagradas ao deus e que dedicavam sua virgindade a essa
teogamia. Em Roma, as Vestais, sacerdotisas de Vesta, deusa da
lareira doméstica, depois deusa da Terra, a Deusa Mãe, se
caracterizavam por uma extrema exigência de pureza.
Retornando à primeira geração divina, temos, inicialmente, o
seguinte quadro:
Úrano
Geia
Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono Titânidas: Teia,
Reia, Têmis, Mnemósina, Febe, Tétis Ciclopes: Arges, Estérope,
Brontes Hecatonquiros: Coto, Briaréu, Gias
2
TITÃ, em grego Τιτάν (Titán), é aproximado, em etimologia
popular, Τιτανίς(títaks), rei, τι τήνη (titéne), rainha, termos
possivelmente de procedência oriental: nesse caso, Titã significaria
“soberano, rei”. Carnoy2prefere admitir que os Titãs tenham sido
primitivamente deuses solares e seu nome se explicaria pelo
“pelásgico” tita, brilho, luz. A primeira hipótese parece mais clara e
adequada às funções dos violentos Titãs no mito grego. Os Titãs
simbolizam, consoante Paul Diel, “as forças brutas da Terra e, por
conseguinte, os desejos terrestres em atitude de revolta contra o
espírito”3, isto é, contra Zeus. Juntamente com os Ciclopes, os
Gigantes e os Hecatonquiros representam eles as manifestações
elementares, as forças selvagens e insubmissão da natureza nascente,
prefigurando a primeira etapa da gestação evolutiva. Ambiciosos,
revoltados e indomáveis, adversários tenazes do espírito consciente,
patenteado em Zeus, não simbolizamapenas as forças brutas da
natureza, mas, lutando contra o espírito, exprimem a oposição à
espiritualização harmonizante. Sua meta é a dominação, o
despotismo.
OCEANO, em grego Ωκεανός (Okeanós), sem etimologia ainda bem
definida. É possível que se trate de palavra oriental com o sentido de
“circular, envolver”. Parece que Oceano era concebido, a princípio,
como um rio-serpente, que cercava e envolvia a terra. Pelo menos
esta é a ideia que do mesmo faziam os sumérios, segundo os quais a
Terra estava sentada sobre o Oceano, o rio-serpente. No mito grego,
Oceano é a personificação da água que rodeia o mundo: é
representado como um rio, o Rio Oceano, que corre em torno da
esfera achatada da terra, como diz Ésquilo em Prometeu
Acorrentado, 138s: Oceano, cujo curso, sem jamais dormir, gira ao
redor da Terra imensa.
Quando, mais tarde, os conhecimentos geográficos se tornaram
mais precisos, Oceano passou a designar o Oceano Atlântico, o limite
ocidental do mundo antigo. Representa o poder masculino, assim
como Tétis, sua irmã e esposa, simboliza o poder e a fecundidade
feminina do mar. Como deus, Oceano é o pai de todos os rios, que,
segundo a Teogonia, são mais de três mil, bem como das quarenta e
uma Oceânidas, que personificam os riachos, as fontes e as nascentes.
Unidas a deuses e, por vezes, a simples mortais, são responsáveis por
numerosa descendência.
O Oceano, em razão mesmo de sua vastidão, aparentemente sem
limites, é a imagem da indistinção e da indeterminação primordial.
De outro lado, o simbolismo do Oceano se une ao da água,
considerada como origem da vida. Na mitologia egípcia, o
nascimento da Terra e da vida era concebido como uma emergência
do Oceano, à imagem e semelhança dos montículos lodosos que
cobrem o Nilo, quando de sua baixa. Assim, a criação, inclusive a dos
deuses, emergiu das águas primordiais. O deus primevo era chamado
a Terra que emerge. Afinal, as águas, na expressão de Mircea Eliade,
“simbolizam a soma de todas as virtualidades: são a fonte, a origem e
o reservatório de todas as possibilidades de existência. Precedem a
todas as formas e suportam toda a criação”4.
Oceano e suas filhas, as Oceânidas, surgem na literatura grega
como personagens da gigantesca tragédia de Ésquilo Prometeu
Acorrentado. Oceano, apesar de personagem secundária na peça, um
mero tritagonista, é finamente marcado por Ésquilo: tímido, medroso
e conciliador, está sempre disposto a ceder diante do poderio e da
arrogância de Zeus. Com o caráter fraco de seu pai contrastam as
Oceânidas, que formam o Coro da peça: preferem ser sepultadas com
Prometeu a sujeitar-se à prepotência do pai dos deuses e dos homens.
Mesmo quando os Titãs, após a mutilação de Úrano, se apossaram
do mundo, Oceano resolveu não participar das lutas que se seguiram,
permanecendo sempre à parte como observador atento dos fatos...
Dada a pouca ou nenhuma importância dos Titãs Ceos, Crio e
Hiperíon no mito grego, a não ser por seus casamentos, filhos e
descendentes, vamos diretamente a Crono.
CRONO, em grego Kρόνος (Krónos), sem etimologia certa até o
momento. Por um simples jogo de palavras, por uma espécie de
homonímia forçada, Crono foi identificado muitas vezes com o
Tempo personificado, já que, em grego, Χρόνος (Khrónos) é o tempo.
Se, na realidade, Krónos, Crono, nada tem a ver etimologicamente
com Khrónos, o Tempo, semanticamente a identificação, de certa
forma, é válida: Crono devora, ao mesmo tempo que gera; mutilando
a Úrano, estanca as fontes da vida, mas torna-se ele próprio uma
fonte, fecundando Reia.
O fato é que Úrano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao seio
materno, temendo certamente ser destronado por um deles. Geia
então resolveu libertá-los e pediu aos filhos que a vingassem e
libertassem do esposo. Todos se recusaram, exceto o caçula, Crono,
que odiava o pai. Entregou-lhe Geia uma foice (instrumento sagrado
que corta as sementes) e quando Úrano, “ávido de amor”, se deitou, à
noite, sobre a esposa, Crono cortou-lhe os testículos. O sangue do
ferimento de Úrano, no entanto, caiu todo sobre Geia, concebendo
esta, por isso mesmo, tempos depois, as Erínias, os Gigantes e as
Ninfas Mélias ou Melíades. Os testículos, lançados ao mar,
formaram, com a espuma, que saía do membro divino, uma
“espumarada”, de que nasceu Afrodite. Com isto, o caçula dos Titãs
vingou a mãe e libertou os irmãos.
Após os Hecatonquiros, falaremos de todos estes filhos do sangue e
dos testículos de Úrano.
Com a façanha de Crono, Úrano (Céu) separou-se de Geia (Terra).
O Titã, após expulsar o pai, tomou seu lugar, casando-se com Reia.
Dois pontos básicos devem ser ressaltados no episódio de Crono e
Úrano: a castração do rei e, em consequência, sua separação da
rainha.
A castração de Úrano põe fim a uma longa e ininterrupta
procriação, de resto inútil, uma vez que o pai devolvia os recémnascidos ao ventre materno.
É possível que Hesíodo, cuja Teogonia está centrada nos conflitos
entre gerações divinas e a luta pela soberania universal, tivesse
conhecimento de certas teogonias orientais, uma vez que “a
mutilação de um deus cosmocrata por seu filho, que se torna assim
seu sucessor, constitui o tema dominante das teogonias hurrita, hitita
e cananeia”5. No mito hurrita-hitita, o deus soberano era Alalu. De
sua união com Bruth nasceram Anu e Gê. Estes dois últimos tiveram
quatro filhos, sendo El o primogênito. Depois de uma violenta
discussão com sua esposa Bruth, Alalu tenta destruir os filhos, mas
El forja uma serra ou lança e expulsa o pai, castrando-o trinta e dois
anos depois. Por fim, Teshup, que representa a quarta geração e
corresponde a Zeus, assume, sem lutas, o poder supremo.
Mas, se a castração leva obviamente à impotência, o soberano terá
fatalmente que ser afastado do poder. A função precípua do rei é a de
fecundar. Da fecundação da rainha depende a fertilidade de todas as
mulheres, da terra e do rebanho. Assim, na medida em que o rei, por
força da idade, da doença ou porque se tornou sexualmente
impotente, ou perdeu seu poder mágico, é alijado do trono e
substituído. Na sociedade matrilinear, seu sucessor é o filho caçula,
que, sendo o mais jovem, corre menos risco de interromper a
fecundação.
Outro dado importante no mito de Úrano é a sua separação de
Geia, com a interposição entre ambos do Éter e do Ar. O tema
cosmogônico da separação do Céu e da Terra, após um hieròs gámos,
casamento sagrado, é muito difundido em diferentes níveis de
cultura. No mito sumério, An (Céu) e Ki (Terra), após seu hieròs
gámos, estavam profundamente unidos, mas seu filho En-lil, deus da
atmosfera, separou seus pais, carregou consigo a Terra e se interpôs
entre ambos.
Na mitologia egípcia, mais precisamente no sistema heliopolitano,
a deusa Céu Nut estava estreitamente abraçada a Geb, o deus Terra,
mas Shu, personificação da atmosfera, infiltrou-se entre ambos e os
separou.
No mito nagô, Orun, o “mundo sobrenatural”, aproximadamente o
Céu, e Aiê, “o mundo físico concreto”, o que equivaleria mais ou
menos à Terra, estavam, a princípio, unidos, mas algo de grave
aconteceu e para sempre os separou. É que um casal de camponeses,
que não tinha filhos, conseguiu, afinal, gerar um menino, graças às
preces da mulher a Oxalá, o deus da criação dos homens. Havia
apenas uma condição: que a criança jamais ultrapassasse os limites
da Terra. Crescido o rapaz, enganando o pai, ultrapassou os limites
proibidos e ainda aos gritos desafiou os deuses. Oxalá, irritado, jogou
seu cajado que, ao cravar-se em Aiê, separou-a para sempre de Orun.
“O hálito de Olorum, o deus supremo, preencheu o espaço vazio,
formando a atmosfera. É portanto o sopro de Deus que une os dois
mundos”6.
Voltemos a Úrano. Mutilado e impotente, o deus do céu caiu na
otiositas, na ociosidade, o que é, segundo Mircea Eliade, uma
tendência dos deuses criadores. Concluída sua obra cosmogônica,
retiram-se para o céu e tornam-se di otiosi, deuses ociosos.
Quanto a Crono, depois que se apossou do governo do mundo,
converteu-se num déspota pior que o pai. Temendo os Ciclopes, que
ele havia libertado do Tártaro a pedido de Geia, lançou-os
novamente nas trevas, bem como aos Hecatonquiros. Como Úrano e
Geia, depositários da mântica, quer dizer, do conhecimento do
futuro, lhe houvessem predito que seria destronado por um dos
filhos, que teria de Reia, passou a engoli-los, à medida em que iam
nascendo: Héstia, Deméter, Hera, Hades ou Plutão e Posídon. Escapou
tão somente Zeus. Grávida deste último, Reia fugiu para a ilha de
Creta e lá, secretamente, no monte Dicta, deu à luz o caçula.
Envolvendo em panos de linho uma pedra, deu-a ao marido, como se
fosse a criança, e o deus, de imediato, a engoliu.
A respeito das terríveis lutas de Zeus para destronar a seu pai, de
seu simbolismo, de suas consequências e do destino de Crono
falaremos nos capítulos seguintes.
TEIA, em grego Θεία (Theía), é um adjetivo substantivado, da
mesma família etimológica que Θεός (Theós), deus, e significa a
divina. É a primeira das Titânidas. Não tem um mito próprio, mas a
importância de Teia é que, casada com Hiperíon, foi mãe de Hélio
(Sol), Eos (Aurora) e Selene (Lua), divindades de muita relevância na
mitologia, particularmente Hélio e Selene, como veremos nos
capítulos subsequentes.
REIA, em grego Ῥέα (Rhéa), talvez seu nome seja um epíteto da terra:
ampla, larga, cheia, da raiz *wreîa, com o mesmo sentido. Trata-se,
em todo caso, de uma divindade minoica, de uma Grande Mãe
cretense, que, no sincretismo creto-micênico, decaiu de posto,
tornando-se, como já se falou no capítulo IV, p. 61, nota 8, não apenas
esposa de Crono, mas sobretudo “atriz de um drama mitológico”, cuja
encenação já se começou a ver com a fuga da deusa para a ilha de
Creta e o estratagema da pedra. Na época romana, Reia, antiga
divindade da Terra, acabou fundindo-se com Cibele. Reia simboliza
a energia escondida no seio da Terra. Gerou os deuses dos quatro
elementos. É a fonte primordial ctônia de toda a fecundidade.
TÊMIS, em grego Θέμις (Thémis), do verbo τιθέναι (tithénaí),
“estabelecer como norma”, donde o que é estabelecido como a regra, a
lei divina ou moral, a justiça, a lei, o direito (em latim fas), por
oposição νόμος (nómos), lei humana (em latim lexou ius) e a δίκη
(díke), maneira de ser ou de agir, donde o hábito, o costume, a regra, a
lei, o direito, a justiça (em latim consuetudo). Têmis é a deusa das leis
eternas, da justiça emanada dos deuses. Deusa da justiça divina,
figura como segunda esposa de Zeus, logo após Métis. Com o pai dos
deuses e dos homens, Têmis foi mãe das Horas e das Moîras
personificadas, como veremos no capítulo XI. Uma variante, que se
encontra apenas em Ésquilo, faz da deusa da justiça divina mãe de
Prometeu. Personificação da justiça ou da Lei Eterna, é tida como
conselheira de Zeus. Foi ela quem o aconselhou a cobrir com a pele
da Cabra Amalteia o escudo, denominado, por isso mesmo, Égide, na
luta contra os Gigantes. Atribuía-se também a ela a ideia da Guerra
de Troia, para se equilibrar a densidade demográfica da Terra.
Apesar de ser uma Titânida, foi admitida entre os Imortais. Era
honrada não só por sua ligação com Zeus, mas ainda pelos
inestimáveis serviços prestados a todos os deuses, no que se refere a
oráculos, ritos e leis. O deus Apolo deve-lhe o conhecimento e os
processos da mântica. Consta ainda que foi Têmis quem revelou a
Zeus e a Posídon que não se unissem à Nereida Tétis, porque, se isso
acontecesse, esta teria um filho mais poderoso que o pai.
Na Teogonia (901-905), de Zeus e Têmis nasceram somente as
Horas e as Moîras, mas uma variante bem mais recente, que se
encontra, entre outros, em Arato (século III a.C.), Higino (século I
a.C.), Ast. Poet., 2,25, e em Ovídio, Met., 1, 150, 159 e 534, faz também de
Zeus e Têmis pais da Virgem Astreia. Como se trata de personagem
mítica de certa importância, vamos fazer a respeito desta última um
ligeiro comentário.
ASTREIA, em grego Αστραία (Astraía), prende-se
etimologicamente a ἀστήρ (astér), astro, estrela. Astreia é o nome da
Virgem (a constelação) e viveu neste mundo à época da Idade de
Ouro, difundindo entre os homens os sentimentos de paz, justiça e
bondade. Mas, tendo os mortais se degenerado, Astreia deixou a
Terra e subiu ao Céu, onde foi transformada na Constelação da
Virgem. Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.), na Écloga IV, sonha com o
retorno da Idade de Ouro, com o regresso de Saturno, cujo reinado na
Ausônia (Itália) teria coincidido com essa idade paradisíaca. Pois
bem, esse retorno de Saturno seria precedido pela Virgem Astreia:
Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Ec., 4,6).
– Eis que retorna também a Virgem; está de volta o
reino de Saturno.
A Virgem Astreia, a mulher, será a anunciadora dessa idade feliz,
uma vez que ela, na sua fertilidade, é uma hipóstase da abundância
da Terra, característica básica da Idade de Ouro, como deixa claro
Ovídio:
Ipsa quoque immunis rastroque intacta, nec ullis saucia
uomeribus per se dabat omnia tellus (Met., 1,101-102):
– A própria terra, sem ter sido tocada pela enxada nem
rasgada pelo arado, espontaneamente produzia tudo.
MNEMÓSINA, em grego Μνημοσύνη (Mnemosýne), prende-se ao
verbo μιμνήκειν (mimnéskein), “lembrar-se de”, donde Mnemósina
é a personificação da Memória. Amada por Zeus, foi mãe das nove
Musas.
MUSA, em grego Μοῦσα (Mûsa), talvez se relacione com *men,
“fixar o espírito sobre uma ideia, uma arte”, e, neste caso, o vocábulo
poderia ser cotejado com o verbo μανθάνειν (manthánein),
aprender. A mesma família etimológica de Musa pertencem música
(o que concerne às Musas) e museu (templo das Musas, local onde
elas residem ou onde alguém se adestra nas artes).
Após a derrota dos Titãs, os deuses pediram a Zeus que criasse
divindades capazes de cantar condignamente a grande vitória dos
Olímpicos. Zeus partilhou o leito de Mnemósina durante nove noites
consecutivas e, no tempo devido, nasceram as nove Musas. Há outras
tradições e variantes que fazem delas filhas de Harmonia ou de
Úrano e Geia, mas essas genealogias remetem direta ou
indiretamente a concepções filosóficas sobre a primazia da Música
no Universo. As Musas são apenas as cantoras divinas, cujos coros e
hinos alegram o coração de Zeus e de todos os Imortais, já que sua
função principal era presidir ao Pensamento sob todas as suas
formas: sabedoria, eloquência, persuasão, história, matemática,
astronomia. Para Hesíodo (Teog., 80-103) são as Musas que
acompanham os reis e ditam-lhes palavras de persuasão, capazes de
serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. Do mesmo
modo, acrescenta o poeta de Ascra, é suficiente que um cantor, um
servidor das Musas celebre as façanhas dos homens do passado ou os
deuses felizes, para que se esqueçam as inquietações e ninguém mais
se lembre de seus sofrimentos.
Havia dois grupos principais de Musas: as da Trácia e as da Beócia.
As primeiras, vizinhas do monte Olimpo, são as Piérides7; as
segundas, as da Beócia, habitam o Hélicon e estão mais ligadas a
Apolo, que lhes dirige os cantos em torno da fonte de Hipocrene,
cujas águas favoreciam a inspiração poética.
Embora em Hesíodo já apareçam as nove Musas, esse número
variava muito, até que na época clássica seu número, nomes e
funções se fixaram: Calíope preside à poesia épica; Clio, à história;
Polímnia, à retórica; Euterpe, à música; Terpsícore, à dança; Érato, à
lírica coral; Melpômene, à tragédia; Talia, à comédia;
Urânia, à astronomia.
Já que Febe, a Brilhante, mãe de Leto e Ceos, não tem grande
importância no mito, vamos abordar a última das Titânidas, Tétis. É
preciso, de início, todavia, desfazer uma confusão provocada em
nossa língua pela simplificação ortográfica: uma coisa é Tétis, a
“urânia”, em grego Têthýs , outra é Tétis, a “nereida”, em grego Thétis.
TÉTIS, em grego Τηθύς (Têth×s), talvez relacionada com o indoeuropeu tétî, “mãe”, já que a água em geral é concebida como a “mãe
universal”. Casada com Oceano, Tétis é o símbolo do poder e da
fecundidade feminina do mar. Foi mãe, como já se mencionou, de
três mil rios, bem como das quarenta e uma Oceânidas,
personificação dos riachos, fontes e nascentes. Criou a deusa Hera
que lhe havia sido confiada por Reia, quando das lutas entre Zeus e
Crono. Em testemunho de gratidão, a esposa de Zeus, mais tarde,
reconciliou Oceano e Tétis que se haviam desentendido. A residência
de Tétis ficava nas extremidades do Ocidente, além do país das
Hespérides, onde, cada tarde, o sol se deita.
CICLOPE, em grego Κύκλωψ (K×klops), “olho redondo”, pois os
Ciclopes eram concebidos como seres monstruosos com um olho só
no meio da fronte. Demônios das tempestades, os três mais antigos
são chamados, por isso mesmo, Brontes, o trovão, Estéropes, o
relâmpago, e Arges, o raio.
Os mitógrafos distinguem três espécies de Ciclopes: os Urânios
(filhos de Úrano e Geia), os Sicilianos, companheiros de Polifemo,
como aparece na Odisseia de Homero, canto IX, 106-542, e os
Construtores. Os primeiros, Brontes, Estéropes e Arges são os urânios.
Encadeados pelo pai, foram, a pedido de Geia, libertados por Crono,
mas por pouco tempo. Temendo-os, este os lançou novamente no
Tártaro, até que, advertido por um oráculo de Geia de que não
poderia vencer os Titãs sem o concurso dos Ciclopes, Zeus os libertou
definitivamente. Estes, agradecidos, deram-lhe o trovão, o relâmpago
e o raio. A Plutão ou Hades ofereceram um capacete que podia tornálo invisível e a Posídon, o tridente. Foi assim, como se verá, que os
Olímpicos conseguiram derrotar os Titãs.
A partir de então tornaram-se eles os artífices dos raios de Zeus.
Como o médico Asclépio, filho de Apolo, fizesse tais progressos em
sua arte, que chegou mesmo a ressuscitar vários mortos, Zeus,
temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, fulminou-o.
Apolo, não podendo vingar-se de Zeus, matou os Ciclopes,
fabricantes do raio, que eliminara o deus da medicina.
O segundo grupo de Ciclopes, impropriamente denominados
sicilianos, tendem a confundir-se com aqueles de que fala Homero
na Odisseia. Estes eram selvagens, gigantescos, dotados de uma força
descomunal e antropófagos. Viviam perto de Nápoles, nos chamados
campos de Flegra. Moravam em cavernas e os únicos bens que
possuíam eram seus rebanhos de carneiros. Dentre esses Ciclopes
destaca-se Polifemo, imortalizado pelo cantor de Ulisses e depois, na
época clássica, pelo drama satírico de Eurípides, o Ciclope, o único
que chegou completo até nós, de que nos ocupamos em longa
introdução e tradução, que esperamos reeditar em breve.
Na época alexandrina, os Ciclopes “homéricos” transformaram-se
em demônios subalternos, ferreiros e artífices de todas as armas dos
deuses, mas sempre sob a direção de Hefesto, o deus por excelência
das forjas. Habitavam a Sicília, onde possuíam uma oficina
subterrânea. De antropófagos se transmutaram na erudita poesia
alexandrina em frágeis seres humanos, mordidos por Eros! Polifemo,
no Idílio VI de Teócrito, extravasa sua paixão incontida pela branca
Galateia. O rude Gigante Adamastor camoneano, perdido de amor
por Tétis, é uma volta às raízes...
A terceira leva de Ciclopes proviria da Lícia. A eles era atribuída a
construção de grandes monumentos da época pré-histórica,
formados de gigantescos blocos de pedra, cujo transporte desafiava
as forças humanas. Ciclopes pacíficos, esses Gigantes se colocaram a
serviço de heróis lendários, como Preto, na fortificação de Tirinto, e
Perseu, na construção da fortaleza de Micenas.
POLIFEMO, por ter sido imortalizado por Homero e Eurípides,
merece um comentário à parte. Etimologicamente, πολύφημος
(Polýphemos) quer dizer “o de que se fala muito; o grandemente
famoso”. Trata-se, ao que parece, de um eufemismo.
Consoante o mito, Polifemo é filho do deus Posídon e da ninfa
Toosa. A narrativa homérica apresenta-o como um gigante com um
olho só no meio da testa, monstruoso e antropófago. Ulisses, com
doze de seus companheiros, quando descansava numa gruta, cheia
de cestos de queijo e de ovelhas, e aguardava o morador, para receber
as dádivas da hospitalidade, foi aprisionado pelo Ciclope. Este já
havia devorado seis de seus marinheiros, quando o herói, usando,
como sempre, de astúcia, serviu por três vezes ao monstro um vinho
delicioso. Durante a noite, enquanto Polifemo, sob o efeito da bebida,
dormia profundamente, Ulisses e seus companheiros incandesceram
um pedaço de um tronco de oliveira, já de antemão aguçado, e
cravaram-no no olho único do monstro. Sem poder contar com o
socorro de seus irmãos, que o consideraram louco, por gritar que
Ninguém o havia cegado (este foi realmente o nome com que o
solerte Ulisses se apresentara ao Ciclope), o gigante, louco de dor e
ódio, postou-se à saída da gruta, para que nenhum dos gregos
pudesse escapar. Pela manhã, quando o rebanho do Ciclope se dirigia
às pastagens, o sagaz Ulisses engendrou novo estratagema: amarrou
seus companheiros sob o ventre dos lanosos carneiros e ele próprio
escondeu-se embaixo do maior e mais belo deles e assim conseguiu
burlar a vigilância de Polifemo e escapar do terrível filho de Posídon.
Livre do perigo, o herói lhe revela seu verdadeiro nome e Polifemo se
recorda de uma profecia, segundo a qual ele seria cegado por Ulisses.
Por duas vezes, o Ciclope arrancando blocos de pedra, lançou-os
contra os navios gregos, mas certamente Atená, a deusa de olhos
garços, protegeu o filho de Laerte.
Os Ciclopes tinham um só olho no meio da fronte. Eram senhores
do relâmpago, do raio e do trovão, semelhantes por sua violência
súbita às erupções vulcânicas, símbolos da força brutal a serviço de
Zeus.
Tendo provocado a cólera de Apolo, deus da luz, da sabedoria, com
a morte de Asclépio, foram eliminados pelo filho de Leto. Dois olhos
correspondem para o homem a um estado normal, três a uma
clarividência extraordinária, um só revela um estado primitivo e
sumário de capacidade intelectual. O olho único no meio da fronte
trai uma recessão da inteligência e a carência de certas dimensões. O
demônio, na tradição cristã, é muitas vezes representado com um
olho só, o que traduz o domínio das forças obscuras, instintivas e
passionais, que, entregues a si mesmas e não assimiladas pelo
espírito, exercem um papel destruidor no universo e no homem. O
Ciclope da tradição grega é uma força primitiva, regressiva, de
natureza vulcânica, que somente pode ser vencida por um deus solar,
Apolo.
HECATONQUIRO, em grego Έχατόγχειρος (Hekatónkheiros), “de
cem mãos, de cem braços”. Os Hecatonquiros eram gigantes
fortíssimos e monstruosos, com cem braços e cinquenta cabeças.
Chamavam-se Coto, Briaréu ou Egéon e Gias (Gies) ou Giges.
Lançados no Tártaro por Crono, foram, por força de um oráculo de
Úrano e Geia, libertados por Zeus, de quem se tornaram aliados na
luta contra os Titãs. Imortalizados por este com o néctar e a
ambrosia, os Hecatonquiros criaram uma nova enérgueia,
centuplicaram suas forças e tornaram-se um fator definitivo para a
vitória de Zeus.
O sangue de Úrano, como se mostrou, caiu sobre Geia e a fecundou,
tendo nascido, no tempo devido, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas
Mélias ou Melíades; da espumarada do membro divino, lançado ao
mar, surgiu Afrodite.
Passaremos, agora, a um estudo dos filhos do sangue do Céu.
ERÍNIA, em grego Έρινύς (Erinýs). Já se tentou aproximar Erínia do
ὀρίνειν (orínein), “perseguir com furor”, ἐρινύειν (erinýein), “estar
furioso”, mas tal etimologia é fantasiosa. As Erínias eram deusas
violentas, com as quais os Romanos identificavam as Fúrias.
Titulares muito antigas do panteão helênico, encarnam forças
primitivas, que não reconhecem os deuses da nova geração, como se
observa na trilogia de Ésquilo, Oréstia, particularmente nas duas
últimas tragédias, Coéforas e Eumênides8. A princípio não havia um
número certo de Erínias e nem se lhes conheciam os nomes, mas,
depois de Hesíodo, fixaram-se em três e cada uma recebeu uma
denominação: Aleto, Tisífone e Megera. Aleto, em grego Αληκτώ
(Alektó) significa “a que não para, a incessante, a implacável”;
Tisífone é o grego Τισιφόνη (Tisiphóne), “a que avalia o homicídio, a
vingadora do crime”; Megera, do grego Μέγαίρα (Mégaira), “a que
inveja, a que tem aversão por”, significados todos de cunho popular.
Apresentam-se como verdadeiros monstros alados, com os cabelos
entremeados de serpentes, com chicotes e tochas acesas nas mãos.
De início eram as guardiãs das leis da natureza e da ordem das
coisas, no sentido físico e moral, o que as levava a punir todos os que
ultrapassavam seus direitos em prejuízo dos outros, tanto entre os
deuses quanto entre os homens.
Só mais tarde é que elas se tornaram especificamente as
vingadoras do crime, particularmente do sangue parental
derramado.
Para que se possa compreender bem a função das Erínias como
vingadoras do sangue derramado, talvez fosse oportuno relembrar,
se bem que sumariamente, o conceito de γένος (guénos).
Guénos pode ser definido em termos de religião e de direito grego
como personae sanguine coniunctae, isto é, pessoas ligadas por laços
de sangue. Assim, qualquer crime, qualquer hamartía cometidos por
um guénos contra o outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente
vingados. Se a falta é dentro do próprio guénos, o parente mais
próximo está igualmente obrigado a vingar o seu “sanguine
coniunctus”. Afinal, no sangue derramado está uma parcela do
sangue e, por conseguinte, da alma do guénos inteiro. Foi assim que,
historicamente falando, até a reforma jurídica de Drácon ou de
Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Hélade.
É mister, isto sim, distinguir dois tipos de vingança, quando a falta
é cometida dentro de um mesmo guénos: a ordinária, que se efetua
entre os membros, cujo parentesco é apenas em profano, mas ligados
entre si por vínculos de obediência aos gennh~~tai, “guennêtai”, aos
chefes gentílicos, e a extraordinária, quando a falta cometida implica
em parentesco sagrado, erínico, de fé – é a falta cometida entre pais,
filhos, netos, por linha troncal, e entre irmãos, por linha colateral.
Esposos, cunhados, sobrinhos e tios não são parentes “em sagrado”,
mas “em profano”, ou ante os homens. No primeiro caso a vingança é
executada pelo parente mais próximo da vítima e no segundo pelas
Erínias.
A essa ideia do direito do guénos está indissoluvelmente ligada a
crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida
por um membro do guénos recai sobre o guénos inteiro, isto é, sobre
todos os parentes e seus descendentes “em sagrado” ou “em profano”.
Esta crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na
hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos
homens, pois que a encontramos desde a Antiguidade até os tempos
modernos, sob aspectos e nomes diversos, como nos ensina Michel
Berveiller9. Seria preciso ver nisso a transposição para o plano
espiritual e moral dessa lei da hereditariedade, que se pode constatar
no mundo físico, dessa transmissão de uma geração para outra das
características biológicas e especialmente das doenças, das taras –
coisa já por si tão misteriosa e tão própria para nos dar a ideia de uma
injustiça metafísica?
De outro lado, é bom lembrar que o que distingue o homem de lá
do homem de cá é o viver coletivo do viver individual.
O fato é que já encontramos tal crença no Rig Veda, o livro sagrado
da Índia antiga, onde se lê esta oração: “Afasta de nós a falta paterna
e apaga também aquela que nós próprios cometemos”.
A mesma ideia era plenamente aceita pelos judeus, como
demonstram várias passagens do Antigo Testamento. Êxodo 20,5: “Eu
sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniquidade dos
pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam”.
Levítico 26,39: “Os que sobreviverem, consumir-se-ão, por causa
das suas iniquidades, na terra de seus inimigos e serão também
consumidos por causa das iniquidades de seus pais, que levarão
sobre si”.
Gênesis 9,6: “Todo aquele que derramar o sangue humano terá o
seu próprio sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o
homem à sua imagem”.
Protetoras da ordem social, punem todos os crimes suscetíveis de
perturbá-la, bem como a ὕβρις (hýbris), a “démesure”, o
descomedimento, através do qual o homem se esquece de que é
humus, terra, argila, um simples mortal. Eis por que as Erínias não
permitem que os adivinhos revelem com precisão o futuro, a fim de
que o homem, permanecendo na incerteza, não se torne por demais
semelhante aos deuses.
A função essencial dessas temíveis divindades, no entanto, é a
punição não só do homicídio voluntário, mas do homicídio, porque o
assassínio é um μίασμα (míasma), um miasma, uma terrível
mancha religiosa que põe em perigo todo o grupo social em cujo seio
é praticado. De modo geral, o assassino é banido da pólis e erra de
cidade em cidade até que alguém se disponha a purificá-lo. Orestes, o
assassino da própria mãe, com o voto de Atená, o célebre voto de
Minerva, foi absolvido da pena, mas não da culpa. Para se libertar de
suas Erínias, foi necessário que Apolo o purificasse. De resto, quem
derrama o sangue parental é acometido de loucura, como Orestes e
Alcméon.
De outro lado, como divindades ctônias, cuja residência se localiza
nas trevas do Érebo, e portanto ligadas profundamente à Terra-Mãe,
não podem permitir que esta seja impunemente manchada. É que,
sendo a Terra a mãe universal, o sangue parental derramado é o
sangue da própria Terra-Mãe, que clama por vingança. O Corifeu das
Coéforas, a segunda tragédia da trilogia esquiliana, é muito explícito
a esse respeito:
É uma lei que as gotas do sangue derramado na Terra
exigem outro sangue, pois o assassínio clama pela
Erínia, para que, em nome das primeiras vítimas, ela
traga nova vingança sobre a vingança.
(Coéf., 400-404)
Na sua perseguição implacável aos culpados, as Erínias são
comparadas a cadelas que não deixam em paz as suas vítimas.
Orestes teve uma visão destes monstros, que residem nos
subterrâneos da Terra e nas profundezas da psiqué:
Não são fantasmas que me atormentam. Está claro: são
elas, as cadelas furiosas de minha mãe. (Coéf., 10531054)
Depois que se estabeleceu uma crença mais firme na outra vida e
que esta foi dividida em compartimentos, dois impermanentes
(Érebo e Campos Elísios) e um permanente, para os condenados a
suplícios eternos (Tártaro), as Erínias foram concebidas como
divindades da expiação e do remorso, encarregadas de punir, no
Tártaro, todos os grandes criminosos. Esta função das filhas do
sangue de Úrano já aparece com bastante nitidez a partir de Ésquilo,
mas só se firmou, em definitivo, na Eneida de Vergílio. No canto
6,625-627, a Sibila de Cumas, em cuja companhia Eneias descera
oniricamenteà outra vida, pinta para o herói troiano um quadro
assustador dos tormentos infligidos aos réprobos pelas Erínias. A
Sibila, todavia, tem pressa de chegar aos Campos Elísios, e diz ao
filho de Afrodite que, se tivesse cem bocas, cem línguas e uma voz de
ferro, tudo isto não lhe bastaria para narrar os crimes dos supliciados
e as espécies de castigos a que são submetidos:
Non, mihi si linguae centum sint oraque centum,
ferrea uox, omnis scelerum comprendere formas,
omnia poenarum percurrere nomina possim (En.,
6,625-627).
– Se eu tivesse cem bocas, cem línguas e voz de ferro,
nem assim poderia relatar todos os gêneros de culpas e
todas as espécies de castigos.
Uma visão mais popular dessas Vingadoras atribuía a cada uma
determinada função específica. Tisífone açoita os culpados; Aleto,
bem de acordo com sua etimologia, os persegue ininterruptamente
com fachos acesos; e Megera grita-lhes, dia e noite, no ouvido, as
falhas cometidas. Aliás, Megera acabou permanecendo entre nós
para designar certos tipos desogra, o que certamente é de todo
injusto...
As Erínias são os instrumentos da vingança divina em função da
hýbris, o descomedimento dos homens, que elas punem, semeando o
pavor em seu coração. Já na Antiguidade clássica eram identificadas
com “a consciência”. Interiorizadas, simbolizam o remorso, o
sentimento de culpabilidade, a autodestruição de todo aquele que se
entrega ao sentimento de uma falta considerada inexpiável. De
qualquer forma, podem transformar-se em Eumênides, isto é, em
Benevolentes, Benfazejas, como na terceira tragédia da Oréstia de
Ésquilo, quando a razão, simbolizada por Atená, reconduz a
“consciência mórbida” tranquilizada a uma apreciação mais
equilibrada dos atos humanos.
GIGANTE, em grego Γίγας (Guígas), de etimologia desconhecida. Se
bem que de origem divina, os Gigantes são mortais, quer dizer,
podem ser mortos, desde que sejam atacados simultaneamente por
um deus e por um mortal. Existia, além do mais, uma erva mágica,
produzida por Geia, que podia curá-los de golpes mortais. Zeus,
todavia, proibiu a Hélio, Selene e Eos de brilharem, a fim de que
ninguém encontrasse a planta antes que ele próprio dela se
apoderasse.
Os Gigantes foram gerados por Geia para vingar os Titãs, que Zeus
havia lançado no Tártaro. Eram seres imensos, prodigiosamente
fortes, de espessa cabeleira e barba hirsuta, o corpo horrendo, cujas
pernas tinham a forma de serpente. Tão logo nasceram, começaram
a jogar para o céu árvores inflamadas e rochedos imensos. Os deuses
prepararam-se para o combate. A princípio lutavam somente Zeus e
Palas Atená, armados com a égide, o raio e a lança. Já que os Gigantes
só podiam ser mortos por um deus com o auxílio de um mortal,
Héracles passou a tomar parte no combate. Apareceu também
Dioniso, armado com um tirso e tochas, e secundado pelos Sátiros.
Aos poucos o mito se enriqueceu e surgiram outros deuses que
vieram em socorro de Zeus.
Os mitógrafos destacam nessa luta treze Gigantes, embora seu
número tenha sido muito maior.Alcioneu foi morto por Héracles,
auxiliado por Atená, que aconselhou o herói arrastá-lo para longe de
Palene, sua cidade natal, porque, cada vez que o Gigante caía,
recobrava as forças, por tocar a terra, de onde havia saído.
Porfírio atacou a Héracles e Hera, mas Zeus inspirou-lhe um desejo
ardente por esta e enquanto o monstro tentava arrancar-lhe as
vestes, Zeus o fulminou com um raio e Héracles acabou com ele a
flechadas. Efialtes foi morto por uma flecha de Apolo no olho
esquerdo e por uma outra de Héracles no direito. Êurito foi
eliminado por Dioniso, com um golpe de tirso; Hécate acabou com
Clício a golpes de tocha; Mimas foi liquidado por Hefesto, com ferro
em brasa. Encélado fugiu, mas Atená jogou em cima dele a ilha de
Sicília; a mesma Atená escorchou a Palas e se serviu da pele do
mesmo, como uma couraça, até o fim da luta. Polibotes foi
perseguido por Posídon através das ondas do mar até a ilha de Cós. O
deus, enfurecido, quebrou um pedaço da ilha de Nisiro e lançou-o
sobre o Gigante, esmagando-o. Hermes, usando o capacete de Hades,
que o tornava invisível, matou Hipólito, enquanto Ártemis liquidava
Grátion. As Moîras mataram Ágrio e Toas. Zeus, com seus raios,
fulminou os restantes e Héracles acabou de liquidá-los a flechadas.
A Gigantomaquia, quer dizer, a luta dos Gigantes, foi travada na
Trácia, segundo uns, segundo outros, na Arcádia, às margens do rio
Alfeu.
Seres ctônios, os Gigantes simbolizam o predomínio das forças
nascidas da Terra, por seu gigantismo material e indigência
espiritual. Imagens da hýbris, do descomedimento, em proveito dos
instintos físicos e brutais, renovam a luta dos Titãs. Não podiam ser
vencidos, como se viu, a não ser pela conjugação de forças de um
deus e de um mortal. O próprio Zeus necessita de Héracles, ainda não
imortalizado, para liquidar Porfírio; Efialtes foi morto por Apolo e
Héracles. Todos os Olímpicos, adversários dos Titãs, Atená, Hera,
Dioniso, Posídon... deixam sempre ao mortal a tarefa de acabar com o
monstro. A ideia parece clara: na luta contra a “bestialidade
terrestre”, Deus tem necessidade do homem tanto quanto este precisa
de Deus. A evolução da vida para uma espiritualização crescente e
progressiva é o verdadeiro combate dos gigantes. Esta evidência
implica, todavia, num esforço próprio do homem, que não pode
contar apenas com as forças do alto, para triunfar das tendências
involutivas e regressivas que lhe são imanentes. O mito dos Gigantes
é, pois, um apelo ao heroísmo humano. O Gigante representa tudo
quanto o homem terá que vencer para liberar e fazer desabrochar
sua personalidade.
NINFA, em grego Νύμφη (Nýmphe), parece significar “a que está
coberta com um véu”, “noiva”, donde paraninfo, “o que está ao lado
de, o que conduz os nubentes”. Em latim, com a mesma raiz, ter-se-ia
o verbo nubere, “casar”, em se tratando da mulher, e sua vasta
família: núbil, nubente, núpcias... A origem primeira é o indoeuropeu *sneubh, “cobrir-se”, mas trata-se de mera hipótese.
Antes de abordarmos as Ninfas Mélias ou Melíades, vamos dar
uma ideia das Ninfas em geral.
Com o nome genérico de Ninfas são chamadas as divindades (já
que são cultuadas) femininas secundárias da mitologia, ou seja,
divindades que não habitavam o Olimpo. Essencialmente ligadas à
terra e à água, simbolizam a própria força geradora daquela.
Levando-se em consideração a teoria de Bachofen, as Ninfas seriam
resquícios da era matrilinear, cuja divindade primordial era a TerraMãe e a mulher a figura religiosa central. Nesse caso, essas
divindades secundárias poderiam ser consideradas uma extensão da
própria energia telúrica, a saber, divindades menores que
representam Geia, a grande Terra-Mãe em sua união com a água,
elemento úmido e fecundante. Tudo leva a crer que sim, pois, da
união desses dois elementos, terra e água, surge a força geradora que
preside à reprodução e à fecundidade da natureza tanto animal
quanto vegetal.
Assim concebidas, as Ninfas são a própria Geia em suas múltiplas
facetas, enquanto origem de todos os seres e coisas, enquanto grande
deusa, cujas energias nunca se esgotam. Por tudo isso só podiam ser
divindades femininas de eterna juventude. E se é verdade que as
Ninfas não são imortais, vivem contudo tanto quanto uma palmeira,
ou seja, cerca de dez mil anos e jamais envelhecem! Decodificando,
teremos a própria natureza, que não é imortal, uma vez que perece e
renasce, num eterno ressurgir, portanto uma força canalizada para
uma perpétua renovação. A eterna juventude das Ninfas traduz,
assim, a perenidade de Geia, a Terra-Mãe. Enquanto hipóstases desta,
as Ninfas eram divindades benfazejas e tudo propiciavam aos
homens e à natureza em si. Tinham o dom de profetizar, de curar e
de nutrir. Como representantes da Terra-Mãe, não se limitavam
apenas aos mares e rios, mas abrangiam a terra como um todo, com
seus vales, montanhas e grutas.
Todas, em última análise, descendem de Geia, conforme os
quadros genealógicos que já estampamos e os demais que ainda
apresentaremos.
Da união de Oceano e Tétis nasceram as Oceânidas, ninfas dos
mares; Nereu (o velho do mar) uniu-se a Dóris e nasceram as
Nereidas, também ninfas marítimas; os Rios, unidos a elementos
vários, geraram outras ninfas, como as Potâmidas, ninfas dos rios;
Náiades, ninfas dos ribeiros e riachos; Creneias e Pegeias, ninfas das
fontes e nascentes; e as Limneidas, ninfas dos lagos e lagoas.
Estas eram as Ninfas que habitavam o elemento aquático e faziam
parte frequentemente do cortejo de Hera e Ártemis.
As ninfas da terra propriamente dita são as Napeias, que habitam
vales e selvas; as Oréadas, ninfas das montanhas e colinas; as
Dríadas e Hamadríadas, ninfas das árvores em geral e
especificamente do carvalho (árvore consagrada a Zeus). Há uma
distinção entre Dríadas, em grego δρυάς (dryás), “carvalho” e
Hamadríadas, em grego ἄμα (háma), “ao mesmo tempo”, δρυάς,
“carvalho”, isto é, estão incorporadas a esta árvore, já nascem com ela.
Em síntese, temos os seguintes tipos de Ninfas:
Oceânidas, ninfas do alto-mar.
Nereidas, ninfas dos mares internos.
Potâmidas, ninfas dos rios.
Náiades, ninfas dos ribeiros e riachos.
Creneias, ninfas das fontes.
Pegeias, ninfas das nascentes.
Limneidas, ninfas dos lagos e lagoas.
Napeias, ninfas dos vales e selvas.
Oréadas, ninfas das montanhas e colinas.
Dríadas, ninfas das árvores e particularmente dos
carvalhos.
Hamadríadas, ninfas dos carvalhos.
Um tipo especial de ninfa são as Mélias ou Melíades, que nasceram
do sangue de Úrano.
MELÍADES, em grego Μελιάδες (Melíades), de μελία (melía),
freixo. Trata-se, pois, das Ninfas dos freixos. Em memória de seu
nascimento sangrento, o cabo das lanças era confeccionado de
freixo, “que se levanta para o céu como lanças”. Hesíodo chama-as de
Μελίαι (Melíai).
A raça da Idade de Bronze, violenta e sanguinária, nasceu, como se
falou no capítulo VIII, dessa árvore de guerra.
Para os gregos, o freixo é o símbolo de poderosa solidez. No mito
escandinavo é o símbolo da imortalidade e o traço-de-união entre os
três níveis cósmicos. Por isso mesmo o freixo Yggdrasil é a árvore da
vida: o universo se desdobra à sombra de seus galhos imensos e os
animais aí se abrigam.
Yggdrasil está sempre verde, porque é alimentada pelas águas da
fonte Urd, guardada dia e noite por uma das Nornas. A árvore
sagrada possui três raízes: uma, na fonte Urd; outra, na terra dos
gelos, Niflheim, para alcançar a fonte Hvergelmir, origem das águas
que circulam em todos os rios do mundo; a terceira, no país dos
Gigantes, onde canta a fonte da Sabedoria, Mimir. Assim como os
deuses gregos se reuniam nos píncaros do monte Olimpo, os deuses
germânicos se congregavam aos pés de Yggdrasil. Quando das
grandes catástrofes cósmicas, em que um mundo se destruía para
que surgisse um outro, a árvore sagrada permanecia de pé, imóvel,
impávida, invencível. Nem as chamas, nem as geleiras, nem as trevas
poderiam destruí-la. A árvore da vida era o último refúgio dos que
escaparam ao cataclismo e aqui permaneceram, para repovoar o
mundo novo. Yggdrasil é o símbolo da perenidade da vida, que nada
poderá destruir.
Na Antiguidade clássica, o freixo possuía um grande poder
mágico, além de funcionar como poderoso antídoto contra todos os
venenos, desde que se misturassem suas folhas ao vinho.
Nereidas, Oceânidas, Náiades... divindades das águas claras, das
fontes e das nascentes, geram e criam grandes heróis. Vivem nas
cavernas, nas grutas, lugares úmidos, o que lhes empresta um certo
aspecto ctônio, apavorante, por isso que todo nascimento se
relaciona com a morte e vice-versa.
Além do mais, grutas e cavernas são locais próprios para iniciação,
em que se morre, para se renascer para uma vida nova.
No desenvolvimento da personalidade, as Ninfas representam
uma expressão de aspectos femininos do inconsciente. Divindades
do nascimento, suscitam a veneração, de mistura com um certo
temor: roubam crianças e podem perturbar o espírito de quem as vê.
Sua hora perigosa é o meio-dia, momento de sua hierofania. Quem as
vir, tornar-se-á presa de um entusiasmo ninfoléptico. É aconselhável,
por isso, não se aproximar, ao meio-dia, de fontes, nascentes e da
sombra de determinadas árvores...
AFRODITE, em grego Αφροδίτη (Aphrodíte), de etimologia
desconhecida. O grego ἀφρός (aphrós), “espuma”, teve
evidentemente influência na criação do mito da deusa nascida das
“espumas” do mar. Do ponto de vista etimológico, no entanto,
Afrodite nenhuma relação possui com aphrós. Trata-se de uma
divindade obviamente importada do Oriente. Afrodite é a forma
grega da deusa semítica da fecundidade e das águas fertilizantes,
Astarté.
Na Ilíada, a deusa é filha de Zeus e Dione, daí seu epíteto de
Dioneia. Existe, todavia, uma Afrodite muito mais antiga, cujo
nascimento é descrito na Teogonia, 188-198, consoante o tema de
procedência oriental da mutilação de Úrano. Com o epíteto de
Anadiômene, a saber, “a que surge” das ondas do mar, de um famoso
quadro do grande pintor grego Apeles (século IV a.C.), tão logo
nasceu, a deusa foi levada pelas ondas ou pelo vento Zéfiro para
Citera e, em seguida, para Chipre, daí seus dois outros epítetos de
Citereia e Cípris. Esta origem dupla da deusa do amor não é estranha
à diferenciação que se estabeleceu entre Afrodite Urânia e
Pandêmia, significando esta última, etimologicamente, “a venerada
por todo o povo”, Πάνδημος (Pándemos), e, posteriormente, com
discriminação filosófica e moral, “a popular, a vulgar”. Platão, no
Banquete, 180s, estabelece uma distinção rígida entre a Pandêmia, a
inspiradora dos amores comuns, vulgares, carnais, e a Urânia, a
deusa que não tem mãe, ἀμήτωρ (amétor) e que, sendo Urânia, é,
ipso facto, a Celeste, a inspiradora de um amor etéreo, superior,
imaterial, através do qual se atinge o amor supremo, como Diotima
revelou a Sócrates. Este “amor urânico”, desligando-se da beleza do
corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é
partícipe do eterno.
Voltemos aos primeiros passos de Afrodite. Em Chipre, a deusa foi
acolhida pelas Horas, vestida e ornamentada e, em seguida,
conduzida à mansão dos Olímpicos.
Apesar dos esforços dos mitógrafos, no sentido de helenizar
Afrodite, esta sempre traiu sua procedência asiática. Com efeito,
Hesíodo não é o único que estampa as origens orientais da deusa. Já
na Ilíada a coisa é bem perceptível. Sua proteção e predileção pelos
troianos e particularmente por Eneias, fruto de seus amores como
Anquises (Il., V, 311s), denotam claramente que Afrodite é o menos
grega possível. No Hino Homérico a Afrodite (I, 68s) o caráter asiático
da deusa é mais claro: apaixonada pelo herói troiano Anquises,
avança em direção a Troia, em demanda do nome Ida, acompanhada
de ursos, leões e panteras. Pois bem, sua hierofania voluptuosa
transtorna até os animais, que se recolhem à sombra dos vales, para
se unirem no amor que transborda de Afrodite. Essa marcha
amorosa da grande deusa em direção a Ílion mostra nitidamente que
ela é uma Grande Mãe do monte Ida.
Entre os troianos, seu grande protegido é Páris (Il., I, 373ss; X, 1012)
e os Cantos Cíprios relatam como a deusa, para recompensá-lo por
lhe ter ele outorgado o título de a mais bela das deusas, o auxiliou na
viagem marítima a Esparta e no rapto de Helena.
Seu amante divino Adônis nos leva igualmente à Ásia, uma vez
que Adônis é mera transposição do babilônico Tamuz, o favorito de
Ištar-Astarté, de que os gregos modelaram sua Afrodite. Veremos
mais adiante que seus filhos Eneias, Hermafrodito e Priapo
“nasceram” também no Oriente.
Como se pode observar, desde seu nascimento até suas
características e mitos mais importantes, Afrodite nos aponta para a
Ásia. Deusa tipicamente oriental, nunca se encaixou bem no mito
grego: parece uma estranha no ninho!
Em torno da mãe de Eneias se amalgamaram mitos de origens
diversas e que, por isso mesmo, não formam um relato coerente, mas
episódios por vezes bem desconexos.
O grande casamento “grego” da deusa do amor foi com Hefesto, o
deus dos nós, o deus ferreiro e coxo da ilha de Lemnos. Vimos no
capítulo VII, p. 145ss, a breve narrativa homérica acerca do desastre
desse enlace. Vamos completá-la com alguns pormenores e variantes
posteriores, uma vez que Hesíodo, na Teogonia, só faz breve alusão ao
fato.
Ares, nas prolongadas ausências de Hefesto, que instalara suas
forjas no monte Etna, na Sicília, partilhava constantemente o leito de
Afrodite. Fazia-o tranquilo, porque sempre deixava à porta dos
aposentos da deusa uma sentinela, um jovem chamado Aléctrion,
que deveria avisá-lo da aproximação da luz do dia, isto é, do
nascimento do Sol, conhecedor profundo de todas as mazelas deste
mundo... Um dia, o incansável vigia dormiu e Hélio, o Sol, que tudo vê
e que não perde a hora, surpreendeu os amantes e avisou Hefesto.
Este, deus que sabe atar e desatar, preparou uma rede mágica e
prendeu o casal ao leito. Convocou os deuses para testemunharem o
adultério e estes se divertiram tanto com a picante situação, que a
abóbada celeste reboava com as suas gargalhadas. Após insistentes
pedidos de Posídon, o deus coxo consentiu em retirar a rede.
Envergonhada, Afrodite fugiu para Chipre e Ares para a Trácia.
Desses amores nasceram Fobos (o medo), Deimos (o terror) e
Harmonia, que foi mais tarde mulher de Cadmo, rei de Tebas.
No que tange à preferência da deusa do amor pelo deus da guerra, o
que trai uma complexio oppositorum, uma conjugação dos opostos,
Hefesto sempre a atribuiu ao fato de ser aleijado e Ares ser belo e de
membros perfeitos, como se viu no capítulo VII. Claro está que o
deus das forjas não poderia compreender que Afrodite é antes de
tudo uma deusa da vegetação, que precisa ser fecundada, seja qual
for a origem da semente e a identidade do fecundador. Além do mais,
casamento por compensação sói fracassar!
Quanto ao jovem Aléctrion, sofreu exemplar punição: por haver
permitido, com seu sono, que Hélio denunciasse a Hefesto tão
flagrante adultério, foi metamorfoseado em galo (alektryón em
grego é galo) e obrigado a cantar toda madrugada, antes do
nascimento do Sol...
Ares não foi, no entanto, o único amor extraconjugal de Afrodite.
Sua paixão por Adônis ficou famosa. O mito, todavia, começa bem
mais longe.
Teias, rei da Síria, tinha uma filha, Mirra ou Esmirna, que,
desejando competir em beleza com a deusa do amor, foi por esta
terrivelmente castigada, concebendo uma paixão incestuosa pelo
próprio pai. Com auxílio de sua aia, Hipólita, conseguiu enganar
Teias, unindo-se a ele durante doze noites consecutivas. Na
derradeira noite, o rei percebeu o engodo e perseguiu a filha com a
intenção de matá-la. Mirra colocou-se sob a proteção dos deuses, que
a transformaram na árvore que tem seu nome. Meses depois, a casca
da “mirra” começou a inchar e no décimo mês se abriu, nascendo
Adônis. Tocada pela beleza da criança, Afrodite recolheu-a e a
confiou secretamente a Perséfone. Esta, encantada com o menino,
negou-se a devolvê-lo à esposa de Hefesto. A luta entre a duas deusas
foi arbitrada por Zeus e ficou estipulado que Adônis passaria um
terço de um ano com Perséfone, outro com Afrodite e os restantes
quatro meses onde quisesse. Mas, na verdade, o lindíssimo filho de
Mirra sempre passou oito meses do ano com a deusa do amor... Mais
tarde, não se sabe bem o motivo, a colérica Ártemis lançou contra
Adônis adolescente a fúria de um javali, que, no decurso de uma
caçada, o matou. A pedido de Afrodite, foi o seu grande amor
transformado por Zeus em anêmona, flor da primavera, e o mesmo
Zeus consentiu que o belo jovem ressurgisse quatro meses por ano e
vivesse ao lado da amante. Efetivamente, passados os quatro meses
primaveris, a flor anêmona fenece e morre. O mito, evidentemente,
prende-se aos ritos simbólicos da vegetação, como demonstra a luta
pela criança entre Afrodite (a “vida” da planta) e Perséfone (a “morte”
da mesma nas entranhas da terra), bem como o sentido ritual dos
Jardins de Adônis, de que se falará mais abaixo. Há uma variante do
mito que faz de Adônis filho não de Teias, mas do rei de Chipre, o
qual era de origem fenícia, Cíniras, casado com Cencreia. Esta
ofendera gravemente Afrodite, dizendo que sua filha Mirra era mais
bela que a deusa, que despertou na rival uma paixão violenta pelo
pai. Apavorada com o caráter incestuoso de sua paixão, Mirra quis
enforcar-se, mas a aia Hipólita interveio e facilitou a satisfação do
amor criminoso. Consumado o incesto, a filha e amante de Cíniras
refugiu-se na floresta, mas Afrodite, compadecida com o sofrimento
da jovem princesa, metamorfoseou-a na árvore da mirra. Foi o
próprio rei quem abriu a casca da árvore para de lá retirar o filho e
neto ou, segundo outros, teria sido um javali que, com seus dentes
poderosos, despedaçara a mirra, para fazer nascer a criança. Nesta
variante há duas causas para a morte do lindíssimo Adônis: ou a
cólera do deus Ares, enciumado com a predileção de Afrodite pelo
jovem oriental, ou a vingança de Apolo contra a deusa, que lhe teria
cegado o filho Erimanto, por tê-la visto nua, enquanto se banhava.
De qualquer forma, a morte de Adônis, deus oriental da vegetação,
do ciclo da semente, que morre e ressuscita, daí sua katábasis para
junto de Perséfone e a consequente anábasis em busca de Afrodite,
era solenemente comemorada no Ocidente e no Oriente. Na Grécia
da época helenística deitava-se Adônis morto num leito de prata,
coberto de púrpura. As oferendas sagradas eram frutas, rosas
anêmonas, perfumes e folhagens, apresentados em cestas de prata.
Gritavam, soluçavam e descabelavam-se as mulheres. No dia
seguinte atiravam-no ao mar com todas as oferendas. Ecoavam,
dessa feita, cantos alegres, uma vez que Adônis, com as chuvas da
próxima estação, deveria ressuscitar.
O mitologema da morte prematura de Adônis, quer se deva a
Ártemis, Apolo ou Ares, está sempre ligado ao nascimento e à cor de
determinadas flores. A anêmona prende-se, como se viu, à
metamorfose do deus naquela flor; a rosa, de início branca, tornou-se
vermelha, porque Afrodite, no afã de salvar o amante das presas do
javali, pisou num espinho e seu sangue deu à rosa um novo colorido.
O poeta grego da época alexandrina, Bíon (fins do século IV a.C.),
relata que de cada gota de sangue de Adônis nascia uma anêmona, de
cada lágrima de Afrodite, uma rosa.
Pois bem, foi exatamente para perpetuar a memória de seu grande
amor oriental que Afrodite instituiu na Síria uma festa fúnebre, que
as mulheres celebravam anualmente, na entrada da primavera. Para
simbolizar o “tão pouco” que viveu Adônis, plantavam-se mudas de
roseiras em vasos e caixotes e regavam-nas com água morna, para
que crescessem mais depressa. Tal artifício fazia que as roseiras
rapidamente se desenvolvessem e dessem flores, as quais, no entanto,
rapidamente feneciam. Eram os célebres Jardins de Adônis, cuja
desventura era solenemente celebrada com grandes procissões e
lamentações rituais pelas mulheres da Síria. Muitos séculos depois,
Ricardo Reis, o gigantesco Fernando Pessoa, perseguido pela
brevidade da vida e pela lembrança do puluis et umbra sumus
(somos pó e sombra) de Horácio, recordou os Jardins de Adônis10:
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas, que em o dia em que
nascem, Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Os amores de Afrodite não terminam em Adônis. Disfarçada na
filha de Otreu, rei da Frígia, amou apaixonadamente o herói troiano,
Anquises, quando este pastoreava seus rebanhos no monte Ida de
Tróada. Desse enlace nasceu Eneias, que a deusa tanto protegeu
durante o cerco de Ílion pelos gregos, como nos atesta a Ilíada. Bem
mais tarde, do primeiro ao décimo segundo canto da Eneida de
Vergílio, Eneias a teve novamente por escudo e por bússola. É desse
Eneias, diga-se de passagem, que, através de Iulus, filho do herói
troiano, pretendia descender a gens iulia, a família dos Júlios, como
César e Otaviano, o futuro imperador Augusto. Falsas aproximações
etimológicas geraram muitos deuses, heróis e imperadores...
De sua união com Hermes nasceu Hermafrodito, etimologicamente
(filho) de Hermes e Afrodite. Criado pelas Ninfas do monte Ida, o
jovem era de extraordinária beleza. Tão grande como a de Narciso.
Aos quinze anos, Hermafrodito resolveu percorrer o mundo.
Passando pela Cária, deteve-se junto a uma fonte, habitada pela
Ninfa Sálmacis, que por ele se perdeu de amores. Repelida pelo
jovem, fingiu conformar-se, mas, quando este se despiu e se lançou às
águas da fonte, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu aos deuses que
jamais os separassem. Os dois corpos fundiram-se num só e surgiu
um novo ser, de dupla natureza. Também um pedido de
Hermafrodito foi atendido pelos Imortais: suplicou ele que todo
aquele que se banhasse nas águas límpidas da fonte perdesse a
virilidade.
Com sua eternamente insatisfeita “enérgueia” erótica, Afrodite
amou ainda o deus do êxtase e do entusiasmo. De sua união com
Dioniso nasceu a grande divindade da cidade asiática de Lâmpsaco,
Priapo. Trata-se de um deus itifálico, guardião das videiras e dos
jardins. Seu atributo essencial era “desviar” o mau-olhado e proteger
as colheitas contra os sortilégios dos que desejavam destruí-las. Deus
de poderes apotropaicos, sempre foi considerado como um excelente
exemplo de magia simpática, tanto “homeopática”, pela lei da
similaridade, quanto pela de “contágio”, pela lei do contato, em
defesa dos vinhedos, pomares e jardins, em cuja entrada figurava sua
estátua.
Como deus da fecundidade, era presença obrigatória no cortejo de
Dioniso, quando não por sua semelhança com os Sátiros e Silenos.
Existe aliás uma variante importante acerca da filiação e da
deformidade do deus de Lâmpsaco. Tão logo Afrodite nasceu, Zeus
por ela se apaixonou e a possuiu numa longa noite de amor. Hera,
enciumada com a gravidez da deusa oriental, e temendo que, se da
mesma nascesse um filho com a beleza da mãe e o poder do pai, ele
certamente poria em perigo a estabilidade dos Imortais, deu um soco
no ventre de Afrodite. O resultado foi que Priapo nasceu com um
membro viril descomunal, embora fosse impotente. Com medo de
que seu filho e ela própria fossem ridicularizados pelos deuses,
abandonou-o numa alta montanha, onde foi encontrado e criado
pelos pastores, o que explicaria o caráter rústico de Priapo.
Ficaram também célebres na mitologia as explosões de ódio e as
maldições de Afrodite. Quando se tratava de satisfazer a seus
caprichos ou vingar-se de uma ofensa, fazia do amor uma arma e um
veneno mortal. Pelo simples fato de Eos ter-se enamorado de Ares, a
deusa fê-la apaixonar-se violentamente pelo gigante Oríon, a ponto
de arrebatá-lo e escondê-lo, com grande desgosto dos deuses, uma
vez que o gigante, como Héracles, limpava os campos e as cidades de
feras e monstros. O jovem Hipólito, que lhe desprezava o culto, por
ter-se dedicado a Ártemis, foi terrivelmente castigado. Inspirou a
Fedra, sua madrasta, uma paixão incontrolável pelo enteado.
Repelida por este, Fedra se matou, mas deixou uma mensagem
mentirosa a Teseu, seu marido, e pai de Hipólito, acusando a este
último de tentar violentá-la, o que lhe explicava o suicídio.
Desconhecendo a inocência do filho, Teseu expulsou-o de casa e
invocou contra o mesmo a cólera de Posídon. O deus enviou contra
Hipólito um monstro marinho que lhe espantou os cavalos da veloz
carruagem e o jovem, tendo caído, foi arrastado e morreu
despedaçado.
Querendo proteger a Jasão na conquista do velocino de ouro, fez
que Medeia o amasse loucamente. Esta, conhecedora de certos
processos mágicos, como um bálsamo que tornava quem o usasse
insensível ao fogo e invulnerável, por um dia, deu-o a Jasão, que
venceu todas as provas a que foi submetido por Eetes, rei da
Cólquida e pai de Medeia. Mas Jasão, que tudo devia à esposa,
abandonou-a, para se casar com Creúsa ou Glauce, filha de Creonte,
rei de Corinto. Inconformada, porque, graças a Afrodite, ainda era
apaixonada pelo esposo, Medeia, num acesso de loucura, matou a
Creonte, Glauce e os dois filhos que tivera de Jasão.
Tanto as desventuras de Hipólito quanto as de Medeia foram
maravilhosamente bem retratadas por Eurípides, em duas tragédias
imortais, Hipólito Porta-Coroa e Medeia.
Puniu severamente todas as mulheres da ilha de Lemnos, porque se
negaram a prestar-lhe culto. Castigou-as com um odor tão
insuportável, que os esposos as abandonaram pelas escravas da
Trácia. Para se vingar, mataram todos os maridos e fundaram uma
verdadeira república de mulheres, que durou até o dia em que os
Argonautas, comandados por Jasão, passaram pela ilha e lhes deram
filhos.
A própria Helena, que, por artimanhas da deusa e para premiar
Páris, fugiu com ele para Troia, deplorava (Od., IV, 261) como se fora
uma ἄτη (áte), uma loucura, uma cegueira da razão, o amor que lhe
infundira Afrodite e a fizera abandonar a pátria e os deuses.
Poder-se-iam multiplicar os exemplos das vítimas da cólera ou da
proteção da deusa do amor, sobretudo através da tragédia grega.
A esta divindade do prazer pelo prazer, do amor universal, que
circula nas veias de todas as criaturas, porque, antes de tudo,
Afrodite é a deusa das “sementes”, da vegetação, estavam ligadas, à
maneira oriental, as célebres hierodulas, as impropriamente
denominadas prostitutas sagradas. Essas verdadeiras sacerdotisas
entregavam-se nos templos da deusa aos visitantes, com o fito,
primeiro de promover e provocar a vegetação e, depois, para
arrecadar dinheiro para os próprios templos. No riquíssimo (graças
às hierodulas) santuário de Afrodite no monte Érix, na Sicília, e, em
Corinto, nos bosques de ciprestes de um famoso Ginásio, chamado
Craníon, a deusa era cercada por mais de mil hierodulas, que, à custa
dos visitantes, lhe enriqueciam o santuário. Personagens principais
das famosas Afrodísias de Corinto, todas as noites elas saíam às ruas
em alegres cortejos e procissões rituais. Embora alguns poetas
cômicos, como Aléxis e Eubulo, ambos do século IV a.C., tivessem
escrito a esse respeito alguns versos maliciosos, nos momentos sérios
e graves, como nas invasões persas de Dario (490 a.C.) e Xerxes (480
a.C.), se pedia às hierodulas que dirigissem preces públicas a
Afrodite. Píndaro, talvez o mais religioso dos poetas gregos, celebrou
com um σκόλιον (skólion), isto é, com uma canção convival, um
grande número de jovens hierodulas que Xenofonte de Corinto
ofertou a Afrodite, em agradecimento por uma dupla vitória nos
jogos Olímpicos.
Em Atenas, um dos epítetos da deusa era Έταίρα (Hetaíra), hetera,
“companheira, amante, cortesã, concubina”, abstração feita de
qualquer conotação de prostituta. Tal epíteto certamente se deve a
um outro de Afrodite, a Pandêmia.
Voltaremos a tratar das hierodulas quando falarmos a respeito de
Ártemis, a dea luna triformis.
Afrodite é o símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade, não
propriamente em seus frutos, mas em função do desejo ardente que
essas mesmas forças irresistíveis ateiam nas entranhas de todas as
criaturas. Eis aí o motivo por que a deusa é frequentemente
representada entre animais ferozes, que a escoltam, como no hino
homérico a que já aludimos. Nesse hino, a deusa do amor mostra todo
o seu poderio e força não apenas sobre os animais, mas até mesmo
sobre o próprio Zeus:
Ela transforma até mesmo o juízo de Zeus, o deus dos
raios, o mais poderoso de todos os Imortais; e embora
seja tão sábio, a deusa faz dele o que quer... Quando
escala o Ida de mil fontes, seguem-na, acariciando-a,
lobos cinzentos, fulvos leões, ursos, velozes panteras,
ávidas de procriar. Ao vê-los, a deusa se enche de
alegria e lhes instila o desejo no peito.
Então dirigem-se todos, para se acasalar à sombra dos
vales.
(Hh. a Afrodite, 36-38 e 68-74).
Eis aí o amor única e exclusivamente sob forma física, traduzido
no desejo e no prazer dos sentidos. Ainda não é o amor elevado a um
nível especificamente humano. A esse respeito Paul Diel faz o
seguinte comentário: “Num plano mais elevado do psiquismo
humano, onde o amor se completa no elo com a alma, cujo símbolo é
a esposa de Zeus, Hera, o símbolo Afrodite exprimirá a perversão
sexual, porque o ato de fecundação é buscado apenas em função da
primazia do prazer outorgado pela natureza. A necessidade natural
se exerce, portanto, perversamente”11.
Os autores do Dicionário dos símbolos perguntam se a
interpretação deste símbolo não evoluirá, após as pesquisas
modernas acerca dos valores propriamente humanos da sexualidade.
É que nos meios religiosos, acrescentam eles, de um moralismo
exigente, a questão em estudo é saber se o fim único da sexualidade é
a fecundidade ou se não seria possível humanizar o ato sexual
independentemente da procriação12.
O mito da deusa do amor poderia, assim, permanecer por um longo
tempo ainda a imagem de uma perversão, a perversão da alegria de
viver e das forças vitais, não mais porque o desejo de transmitir a
vida estivesse alijado do ato de amor, mas porque o amor em si
mesmo não seria humanizado. Permaneceria apenas como satisfação
dos instintos, digno de animais ferozes que formavam o cortejo da
deusa. Ao término de tal evolução, no entanto, Afrodite poderia
reaparecer como a deusa que sublima o amor selvagem, integrando-o
numa vida realmente humana.
1. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, t. I,
v. 1, p. 83 [Tradução de Roberto Cortes de Lacerda].
2. CARNOY, Albert. Dictionnaire étymologique de la mythologie gréco-romaine. Louvain:
Universitas, 1976, verbete.
3. DIEL, Paul. Le Symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1952, p. 149ss.
4. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 199.
5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 78.
6. AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 57.
7. Piérides são as nove filhas de Píero, rei da Emácia. Hábeis cantoras, subiram ao monte
Hélicon e desafiaram as Musas. Vencidas, foram transformadas em pássaros, mais
precisamente, segundo Ovídio (Met., 5,302), em pegas. Em memória do triunfo sobre as
filhas de Píero, as Musas da Trácia passaram a ser chamadas Piérides, sobretudo pelos poetas
latinos.
8. Veja-se nossa análise da trilogia em Teatro grego: Tragédia e comédia.Petrópolis: Vozes,
1990, p. 22ss.
9. BERVEILLER, Michel. A tradição religiosa na tragédia grega. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1935, p. 95s.
10. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977, p. 259.
11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 166.
12. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 55.
CAPÍTULO XI
Ainda a Primeira Geração Divina:
filhos e descendentes
(De Nix ao Leão de Nemeia)
1
A primeira geração divina se fecha com Afrodite, mas, além de
Nix, que continuou a gerar, temos das principais divindades,
nascidas de Úrano e Geia ou do sangue e esperma do deus Céu, uma
longa e importante descendência, que passaremos a estudar.
NIX, velha divindade, nascida do Caos na primeira fase do
Universo, e que dera à luz Éter e Hemera, tornou-se extremamente
fértil na primeira progênie divina. Gerou, por partenogênese, as
seguintes abstrações: Moro, Tânatos, Hipno, Momo, Hespérides,
Queres, Moîras, Nêmesis, Gueras e Éris.
Como Moro é da mesma família etimológica que Moîra e a ela está
associado, de direito e de fato, falaremos a seu respeito mais adiante.
Tânatos, em grego Θάνατος (Thánatos), tem como raiz o indoeuropeu *dhwen, “dissipar-se, extinguir-se”. O sentido de “morrer”, ao
que parece, é uma inovação do grego. O morrer, no caso, significa
ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Grécia o morto
tornava-se eídolon, um como que retrato em sombras, um “corpo
insubstancial”. Tânatos, que tinha coração de ferro e entranhas de
bronze, é o gênio masculino alado que personifica a Morte, mas não é
agente da mesma. Na tragédia grega, surgiu como personagem pela
primeira vez na obra de Frínico (século VI a.C.), mas, na realidade, só
se afirmou a partir da tragédia de Eurípides Alceste. Tânatos não tem
um mito propriamente seu. O combate que ele trava com Héracles
na Alceste e sua desventura com o embusteiro Sísifo, apesar de serem
extrapolações de cunho popular, muito contribuíram para fazer do
deus da morte uma personagem dramática.
Sísifo, o mais solerte e audacioso dos mortais, conseguiu por duas
vezes livrar-se da Morte. Quando Zeus raptou Egina, filha do rio
Asopo, foi visto por Sísifo, que, em troca de uma fonte concedida pelo
deus-rio, contou-lhe que o raptor da filha fora o Olímpico. Este,
imediatamente, enviou-lhe Tânatos, mas o astuto Sísifo enleou-o de
tal maneira, que conseguiu encadeá-lo. Como não morresse mais
ninguém, e o rico e sombrio reino do Hades estivesse se
empobrecendo, a uma queixa de Plutão, Zeus interveio e libertou
Tânatos, cuja primeira vítima foi Sísifo. O solerte rei de Corinto, no
entanto, antes de morrer, pediu à mulher que não lhe prestasse as
devidas honras fúnebres. Chegando ao Hades sem o “revestimento”
habitual, isto é, sem ser um eídolon, Plutão perguntou-lhe o motivo
de tamanho sacrilégio. O esperto filho de Éolo mentirosamente
culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu
permissão para voltar rapidamente à terra, a fim de castigar
severamente a companheira.
Uma vez em seu reino, o rei de Corinto não mais se preocupou em
cumprir a palavra empenhada com Plutão e deixou-se ficar, vivendo
até avançada idade. Um dia, porém, Tânatos veio buscá-lo em
definitivo e os deuses o castigaram impiedosamente, condenando-o a
rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal chegado ao cume, o
bloco rola montanha abaixo, puxado por seu próprio peso. Sísifo
recomeça a tarefa, que há de durar para sempre.
A luta com Héracles foi mais simples. Quando Alceste morreu, o
herói, por gratidão ao rei Admeto, que, num momento de tão grande
dor, lhe dera hospitalidade, dirigiu-se apressadamente ao túmulo da
rainha e lá travou gigantesca batalha com Tânatos, arrebatando-lhe
Alceste. Vencida a Morte, a rainha de Feres foi devolvida ao
hospitaleiro Admeto mais jovem e mais bela que nunca.
Do ponto de vista simbólico, Tânatos é o aspecto perecível e
destruidor da vida. Como índice do que desaparece na evolução fatal
das coisas, a Morte prende-se à simbólica da Terra. Divindade que
introduz as almas nos mundos desconhecidos das trevas dos
Infernos ou nas luzes do Paraíso, patenteia sua ambivalência, como a
Terra, relacionando-se, de alguma forma, com os ritos de passagem.
Revelação e Introdução, toda e qualquer iniciação passa por uma fase
de morte, antes que as portas se abram para uma vida nova. Neste
sentido, Tânatos contém um valor psicológico: extirpa as forças
negativas e regressivas, ao mesmo tempo em que libera e desperta as
energias espirituais. Filho da Noite e irmão de Hipno, o Sono, possui
como sua mãe e irmã o poder de regenerar. Quando se abate sobre
um ser, se este orientou sua vida apenas num sentido material,
animalesco, a Morte o lançará nas trevas; se, pelo contrário, deixou-se
guiar pela bússola do espírito, ela mesma lhe abrirá as cortinas que
conduzem aos campos da luz. Não há dúvida de que em todos os
níveis da vida humana coexistem a morte e a vida, ou seja, uma
tensão entre forças contrárias, mas Tânatos pode ser a condição de
ultrapassagem de um nível para um outro nível superior.
Libertadora dos sofrimentos e preocupações, a Morte não é um fim
em si; ela pode abrir as portas para o reino do espírito, para a vida
verdadeira: mors ianua uitae, a morte é a porta da vida.
Em sentido esotérico, Tânatos simboliza a transformação
profunda que experimenta o homem pelo efeito da iniciação: “O
profano deve morrer, a fim de renascer para uma vida superior que
lhe confere a iniciação. Se não se morre para o estado de imperfeição,
não há como progredir na iniciação”.
Na iconografia antiga, Tânatos é representado por um túmulo,
uma personagem armada com uma foice, um gênio alado, dois
jovens, um preto, outro branco, um esqueleto, um cavaleiro, uma
dança macabra, uma serpente, um animal psicopompo, como o
cavalo, o cão...
O simbolismo geral da Morte aparece ainda no décimo terceiro
arcano maior do Tarô, arcano que não tem nome, como se o treze já
lhe conferisse identidade definitiva ou se se temesse nomeá-lo.
Na Antiguidade, realmente, o número treze possuía uma
conotação maléfica, perigosa, simbolizando “o curso cíclico da
atividade humana... a passagem a um outro estado, quer dizer, a
Morte”.
Para o lúcido Mircea Eliade a Morte é, muitas vezes, o resultado
trágico de nossa indiferença diante da imortalidade.
Há de chegar, porém, o dia, em que, com nosso corpo mortal,
revestido da imortalidade, poderemos olhar a morte de frente e
perguntar-lhe triunfantes: Ubi est, mors, uictoria tual (1Cor 15,55):
“Onde está, ó morte, a tua vitória?”
HIPNO, em grego Ὕπνος (Hýpnos), da raiz indo-europeia *swep,
“aquietar-se, dormir”, donde o latim somnus. Irmão gêmeo de
Tânatos, conforme os mitógrafos, o Sono habita nos poemas
homéricas a ilha de Lemnos; consoante Vergílio, os Infernos; ou
ainda o país dos Cimérios, como quer Ovídio. Alado, percorre
rapidamente o mundo e adormece todos os seres. Conta-se que,
apaixonado pelo lindíssimo pastor Endímion, concedeu-lhe o dom
de dormir com os olhos abertos, para poder olhar, dormindo, nos
olhos do amante.
MOMO, em grego Μώμος (Mômos), de etimologia ainda não bem
definida: talvez se relacione com o verbo mokân, mokâ-sthai,
“ridicularizar, chasquear, zombar”. Momo é a personificação do
Sarcasmo, sob forma feminina. Sendo excessivo o peso que a Terra
suportava, pela rápida multiplicação dos homens, Zeus desencadeou.
a guerra de Tebas. Como se julgasse insuficiente essa providência, o
pai dos deuses e dos homens pensou em fulminá-los ou afogar a
maioria. Foi então que Momo lhe aconselhou um meio mais prático:
dar Tétis em casamento a um mortal, de que nasceria Aquiles, e Zeus
engendraria uma filha, Helena, que suscitaria a discórdia entre a
Ásia e a Europa, provocando a Guerra de Troia. Tantos seriam os
mortos em dez anos de luta, que haveria o necessário equilíbrio
demográfico.
Em nossa língua, lá pelos fins do século XVI, “momo” se
documenta com o sentido de farsa satírica: “...na qual noite, e outros
dias seguintes, ouve em Sevilha muyto grandes, e sumptuosas festas
de momos, e justas reaes...”1Daí, para se passar a Rei Momo, o rei da
folia carnavalesca, em que a sátira, a farsa e o sarcasmo imperam,
não deve ter sido muito difícil.
HESPÉRIDES, em grego Ἑσπερίδες (Hesperídes), de ἑσπερα᾿,
(hespéra), “tarde, ocidente”; da mesma família é o latim uesper, com o
mesmo sentido. Em português temos Vésper, a estrela da tarde,
vesperal, vespertino...
As Hespérides eram as “Ninfas do Poente”. Se em Hesíodo são
filhas da Noite, mais tarde, sobretudo na época clássica, tornaram-se
filhas sucessivamente de Zeus e Têmis, de Fórcis e Ceto e, por fim, de
Atlas. Não existe também acordo total entre os autores acerca de seu
número, embora, as mais das vezes, sejam três e se chamem Egle,
Ericia e Hesperaretusa, quer dizer, respectivamente, “a brilhante, a
vermelha, a do poente”, designando, assim, o princípio, o meio e o fim
do percurso final do sol. Esta última, todavia, costuma ser
desdobrada em duas: Hespéria e Aretusa, aumentando-lhes o
número para quatro. As Hespérides habitavam o extremo ocidente,
não longe da Ilha dos Bem-Aventurados, bem junto ao Oceano.
Quando os conhecimentos do mundo ocidental se acentuaram, o
país das “Ninfas do Poente” foi localizado nas faldas do monte Atlas.
Sua função precípua era vigiar, com auxílio de um dragão, filho de
Fórcis e Ceto ou de Tifão e Équidna, as maçãs de ouro, presente de
núpcias, que Geia deu a Hera por ocasião de seu casamento com
Zeus. Em seu jardim maravilhoso elas cantam em coro, junto a
fontes, cujos repuxos têm o perfume da ambrosia...
As Hespérides estão ligadas ao ciclo dos Doze Trabalhos de
Héracles, como se há de ver. Buscando junto a elas as maçãs de ouro,
os frutos da imortalidade, o herói já estava muito próximo de sua
apoteose.
QUERES, em grego Κῆρες (Kêres, com e aberto), é aproximado por
alguns da raiz, *ker, que significa genericamente “devastar”. Os
verbos κηραίνειν (keraínein) κεραίζειν (keraídzein), “destruir,
arruinar”, talvez não sejam estranhos à mesma família etimológica.
O latim tem caries, caruncho, podridão, cárie, “que destrói” o dente.
É muito difícil determinar com exatidão o conceito de Queres no
mito grego. De Homero a Platão, se de um lado esse conceito evoluiu,
de outro, essas filhas da Noite, desde a Ilíada, já tinham uma
tendência a confundir-se ora com a Moîra, o Destino Cego, ora com
as Erínias, as Vingadoras do sangue derramado. Verdadeiros
monstros, são representadas como gênios alados, vestidas de preto,
com longas unhas aduncas. Despedaçam os cadáveres e bebem o
sangue dos mortos e feridos. Aparecem normalmente, por isso
mesmo, nas cenas de batalhas e nos momentos de grande violência.
Sua função, todavia, não se restringe apenas ao papel de Valquírias
dos campos de batalha. já na Ilíada surgem como aglutinadas,
“destinadas” a cada ser humano, personificando-lhe não só o gênero
de morte, mas também o gênero de vida que a cada um é
predeterminado. Assim, Aquiles “pôde” escolher entre duas Queres:
uma lhe proporcionaria na pátria uma vida longa e tranquila, mas
inglória; outra, a que ele escolheu, lhe daria um renome imperecível,
mas cujo preço era a morte prematura.
São igualmente as Queres de Aquiles e de Heitor que Zeus, na
presença de todos os deuses, pesa na balança, para saber qual dos
dois deveria perecer no combate final diante das muralhas de Ílion.
Como o prato da balança de Heitor se inclinasse em direção ao
Hades, Apolo, de imediato, abandonou seu preferido ao destino que
lhe coubera.
Hesíodo, na Teogonia, ora fala de uma Quere, irmã de Tânatos e de
Moro, ora de várias Queres, irmãs das Moîras. O fato se explica ou
por interpolação ou, o que é mais provável, pelo caráter popular e
vago da concepçãode Quere, que tanto se apresenta como divindade
única, quanto como um poder imanente ao indivíduo. É assim que,
na Ilíada, uma Quere é atribuída aos aqueus, outra aos troianos. O
que se pode concluir é que a noção de Quere podia ter um valor
coletivo.
Na época clássica as Queres tornaram-se tão somente
reminiscências literárias e foram confundidas com as Moîras e as
Erínias, com as quais se parecem por seu caráter ctônio e selvagem.
Platão considerava-as como gênios malévolos, semelhantes às
Harpias, que poluem tudo aquilo em que tocam. Por fim, a tradição
popular acabou por identificá-las com as almas maléficas dos
mortos, que se devem apaziguar com determinados sacrifícios, como
acontecia no terceiro e último dia dos solenes festejos dionisíacos das
Antestérias.
MOÎRA, em grego Μοῖρα (Moîra). Sobre a Moîra, sua etimologia e
função, já se falou no capítulo VII, 6, p. 147s mas como se restringiu o
estudo desta abstração a Homero, vamos aqui, se bem que
sumariamente, completá-lo.
As Moîras são a personificação do destino individual, da “parcela”
que toca a cada um neste mundo. Originariamente, cada ser humano
tinha a sua Moîra, a saber, “sua parte, seu quinhão” de vida, de
felicidade, de desgraça. Personificada, Moîra se tornou uma
divindade muito semelhante às Queres, sem, no entanto, participar
do caráter violento, demoníaco e sanguinário que estas possuíam.
Impessoal e inflexível, a Moîra é a projeção de uma lei que nem
mesmo os deuses podem transgredir, sem colocar em perigo a ordem
universal. É a Moîra, por exemplo, que impede um deus de prestar
socorro a um herói no campo de batalha ou de tentar salvá-lo,
quando chegou sua hora de morrer. Linhas atrás, ao falar das Queres,
fizemos menção de Apolo, que abandonou Heitor, seu herói favorito,
quando o prato da balança do baluarte de Troia se inclinou para o
Hades. Num simples e doloroso hemistíquio, Homero nos mostra
como os deuses, no caso Apolo, que tantas vezes salvou Heitor da
morte certa, obedecem, sem hesitar, à vontade da Moîra:
λίπεν δέ ἑ Φοῖβος Απόλλων (lípen dè he Phoîbos
Appóllon): então Febo Apolo o abandonou. (Il., XXII,
213).
A pouco e pouco se desenvolveu a ideia de uma Moîra universal,
senhora inconteste do destino de todos os homens. Essa Moîra,
sobretudo após as epopeias homéricas, se projetou em três Moîras:
Cloto, Láquesis e Átropos, tendo cada uma função específica, de
acordo com sua etimologia:
CLOTO, em grego Κλοθῶ (Klothô, com o aberto), do verbo κλώθειν
(klóthein), fiar, significando, pois, Cloto, a que fia, a fiandeira. Na
realidade, Cloto segura o fuso e vai puxando o fio da vida.
LÁQUESIS, em grego Λάχεσις (Lákhesis), do verbo λαγχάνειν
(lankhánein), em sentido lato, sortear, a sorteadora: a tarefa de
Láquesis é enrolar o fio da vida e sortear o nome de quem deve
morrer.
ÁTROPOS, em grego Ἄτροπος (Átropos) de α (a, “alfa privativo”),
não, e o verbo τρέπειν (trépein), voltar, quer dizer, Átropos é a que
não volta atrás, a inflexível. Sua função é cortar o fio da vida.
Como se observa, a ideia da vida e da morte é inerente à função de
fiar. Nos dois poemas homéricos o fio da vida simboliza o destino
humano. Aquiles, como todos os mortais, está sujeito ao sorteio
macabro de Láquesis, isto é, o filho de Tétis e Peleu “deverá sofrer
tudo aquilo que Aîsa fiou para ele”, como traduzimos e mostramos
no capítulo VII, 6, p. 148. O astuto Ulisses, que tantas vezes “enganou”
a morte, não escapará:
Depois, quando lá (a Ítaca) chegar, sofrerá o que o
destino e as graves “fiandeiras” lhe “fiaram” em seu
nascimento, quando a mãe o deu à luz. (Odiss., VII, 196198)
No Antigo Testamento são inúmeros os exemplos de associação do
fio com a morte. Citar-se-á tão somente o exemplo que nos parece
mais expressivo:
Os “laços” da mansão dos mortos me cingiram todo, os
“fios” da morte me apanharam de surpresa (2Sm 22,6).
As três fiandeiras são filhas da Noite, em Hesíodo, mas, uma vez
personificadas, tornaram-se para o mesmo poeta filhas de Zeus e
Têmis, como já frisamos no capítulo VIII, 3, p. 166.
Frequentemente se encontram as Moîras formando um mesmo
grupo com Ilítia, o que facilmente se explica pelo fato de tanto
aquelas quanto esta serem deusas também do nascimento. A junção
com Τύχη (Týkhe), Tique, a Sorte, o Acaso, configura apenas uma
“noção vizinha”.
Em Roma, as Parcas foram, a pouco e pouco, identificadas com as
Moîras, tendo assimilado todos os atributos das divindades gregas da
morte. Na origem, todavia, as coisas eram, possivelmente, diferentes:
as Parcas, ao que parece, presidiam sobretudo aos nascimentos,
conforme, aliás, a etimologia da palavra. Com efeito, Parca provém
do verbo parere, “parir, dar à luz”. Como no mito grego, eram três:
chamavam-se Nona, Décima e Morta. A primeira presidia ao
nascimento; a segunda, ao casamento; e a terceira, à morte. Diga-se,
de passagem, que Morta tem a mesma raiz que Moîra, possivelmente
com influência de mors, morte.
Tão grande foi, porém, a influência das Moîras sobre as Parcas, que
estas acabaram no mito latino tomando de empréstimo os três
nomes gregos, com suas respectivas funções. Nona, Décima e Morta
passaram a ser apenas “nomes particulares”.
NÊMESIS, em grego Νέμεσις (Némesis), do verbo νέμειν (némein),
“distribuir”, donde Nêmesis é a “justiça distributiva”, daí a
“indignação pela injustiça praticada, a punição divina”. A função
essencial desta divindade é, pois, restabelecer o equilíbrio, quando a
justiça deixa de ser equânime, em consequência da ύβρις (hýbris), de
um “excesso”, de uma “insolência” praticada.
Como já se falou de Nêmesis no capítulo VI, 4, p. 118s, apenas se
complementou aqui o estudo da deusa punidora da démesure com a
parte etimológica.
Gueras, a Velhice, não tem um mito próprio.
Éris, em grego Ἔρις (Éris). Para alguns, Éris, a “Discórdia”, se
relacionaria com o indo-europeu *erei, “perseguir, acossar” e, neste
caso, seria da mesma família etimológica que Erínia. Com efeito, éris
na literatura significa “luta, combate, querela que se resolve por um
combate, contestação, rivalidade, emulação”.
No capítulo VIII, 5, p. 172s, fizemos alusão à Discórdia. Vamos,
agora, completar-lhe didaticamente o mito. Personificação da
Discórdia, Éris é mais comumente, após o poeta de Ascra,
considerada como irmã e companheira de Ares. A Teogonia, no
entanto, coloca-a, como vimos, entre as forças primordiais, na
geração da Noite, dando-lhe como filhos Pónos (Fadiga), Léthe
(Esquecimento), Limós (Fome), Álgos (Dor) e Hórkos (Juramento).
Nos Trabalhos e Dias, Hesíodo distingue duas Discórdias: uma,
perniciosa, filha de Nix; outra, útil, salutar, que desperta o espírito de
emulação e que Zeus colocou no mundo como inspiradora da
competição entre os homens.
Éris é normalmente representada como um gênio feminino alado,
muito semelhante às Erínias e a Íris. Foi Éris, como já foi
mencionado, quem lançou o “pomo da discórdia” destinado à mais
bela das deusas e que irá provocar, por causa do julgamento de Páris,
a Guerra de Troia.
2
Terminada a geração de Nix, passaremos agora a estudar a longa
descendência dos filhos de Úrano e Geia.
Pontos (Mar) gerou sozinho a Nereu e, depois, unindo-se a Geia, foi
pai de Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia.
NEREU, em grego Νηρέςύ (Nereús). Etimologicamente talvez
signifique “o que vive nas águas do mar”, desde que se admita uma
aproximação com o lituano nérti, “mergulhar”. “Velho do Mar” por
excelência, mais “idoso” que Posídon, pois antecedeu à geração dos
Olímpicos, o antigo deus marinho está entre as forças elementares do
mundo. Como a maioria das divindades do mar, tem o poder de
metamorfosear-se em animais e nos mais estranhos seres. Essa
capacidade de transformação ajudou-o durante algum tempo,
quando Héracles quis forçá-lo a dizer-lhe como chegar ao país das
Hespérides. Trata-se de uma divindade pacífica e benfazeja. É
representado com longas barbas brancas, cavalgando um tritão e
armado de tridente.
Dos filhos de Pontos e Geia, Taumas, Fórcis, Ceto e Euríbia,
nenhum possui um mito próprio e sua importância, como se verá,
reside em seus descendentes.
Nereu, unindo-se à oceânida Dóris, foi pai das cinquenta Nereidas,
dentre as quais têm realmente um destaque importante na mitologia
apenas Anfitrite, Tétis e, em parte, Psâmate.
ANFITRITE, em grego Αμφιτρίτη (Amphitríte). Consoante
Hesíquio, o que é um arranjo popular, a palavra é formada de ἀμφί
(amphí), “em torno de, em volta de”, e um elemento τρίτώ (tritó),
“corrente”, donde Anfitrite significaria a que circula a Terra. E, de
fato, Anfitrite é a Rainha e a personificação feminina do Mar, aquela
que, sendo ela própria a água, rodeia o mundo. Quando, na ilha de
Naxos, conduzia o coro das Nereidas, suas irmãs, foi vista e raptada
por Posídon.
O rei dos mares a amava, há muito tempo, mas a Nereida, por
excessivo pudor, se escondia nas profundezas do oceano, além das
Colunas de Héracles. Encontrada pelos Delfins, foi pelos mesmos
conduzida a Posídon, que a desposou. Desde então a Rainha do Mar
senta-se ao lado do marido, no carro divino. Não raro tem nas mãos o
tridente, símbolo de sua soberania. Seu séquito é formado pelas
Nereidas de seios nus, por Nereu, Proteu, Hipocampos, Ninfas,
Golfinhos e Delfins.
De sua união com Posídon, nasceu, segundo algumas fontes, Tritão,
o benfazejo deus marinho, metade homem, metade peixe, que
sempre está disposto a serenar as vagas.
TÉTIS, em grego Θέτις (Thétis), talvez do indo-europeu *tétî, “mãe”.
Já se falou de Tétis nos capítulos VI, 4, p. 110s e VII, 5, p. 145.
PSÂMATE, em grego Ψaμάθη (Psamáthe), etimologicamente a
“arenosa”, já que o nome desta Nereida é formado do substantivo
psámmos, areia. Neste caso, a filha de Nereu teria sido inicialmente o
epônimo de uma fonte de fundo arenoso na Beócia. Unida a Éaco, foi
mãe de Foco. Como a princípio não desejasse submeter-se aos desejos
do pretendente, metamorfoseou-se, como toda divindade marinha,
em vários seres. Sua derradeira transformação foi em foca, mas nada
impediu que o mais piedoso dos gregos e futuro juiz do Hades dela se
apoderasse. Como os dois filhos do primeiro matrimônio de Éaco,
Télamon e Peleu, por inveja de Foco, que os excedia nos jogos
atléticos, o tivessem assassinado, Psâmate enviou contra seus
rebanhos um lobo monstruoso. Mais tarde abandonou Éaco e se uniu
a Proteu.
Taumas, filho de Ponto e Geia, uniu-se à Oceânida Electra e
nasceram Íris e as Harpias.
ÍRIS, em grego Ἶρις (Îris) personificação do arco-íris. Possivelmente a
raiz de Íris é o indo-europeu *wi, “dobrar”, donde o latim uiriae,
“bracelete”. Íris é a ponte, o traço-de-união entre o Céu e a Terra, entre
os deuses e os homens. Comumente é representada com asas e
coberta com um véu ligeiro que, ao contato com os raios do sol, toma
as cores do arco-íris.
Íris é, como Hermes, a mensageira dos deuses, mas particularmente
de Hera e Zeus.
O arco-íris é um símbolo universal do caminho e da mediação
entre este mundo e o outro; a ponte de que deuses e heróis se utilizam
no seu constante vai-vém entre o Céu e a Terra. Na Escandinávia é a
ponte Byfrost; no Japão, a ponte flutuante do Céu; a escada de sete
cores por onde Buda torna a descer do alto. A mesma ideia se
encontra do Irã à África, das Américas à China. No Tibete, o arco-íris
não é propriamente a ponte, mas a alma dos soberanos que sobe ao
céu. As fitas usadas por determinados Xamãs simbolizam a ascensão
dos mesmos à outra vida.
Na China a união das “cinco cores” do arco-íris é a mesma união do
yin e do yang, o sinal de harmonia do universo e o símbolo da
fecundidade. Se o arco de Çiva é semelhante ao arco-íris, o de Indra é
o seu sinal distintivo, uma vez que Indra dispensa à Terra a chuva e o
raio, que são os símbolos da atividade celeste. As sete cores do arcoíris no esoterismo islâmico simbolizam a imagem das qualidades
divinas refletidas no universo, já que o arco-íris é a imagem inversa
do sol sobre um véu inconsistente de chuva. Consoante o budismo
tibetano, nuvens e arco-íris configuram o Sambhoga-Kâya (corpo de
arrebatamento espiritual) e sua dissolução em chuva, o NirmânaKâya (corpo de transformação).
A complexio oppositorum, a reunião dos contrários, é também a
reunião das metades separadas, uma resolução. O arco-íris que surge
sobre a Arca de Noé reúne as águas inferiores e superiores, metades
do ovo do mundo, como sinal da restauração da ordem cósmica e da
gestação de um novo ciclo. No Gênesis 9,12-17 encontra-se
explicitamente a materialização de uma grande aliança por meio do
arco-íris: E Deus disse: Eis o sinal de aliança, que faço entre mim e vós,
e com todos os animais viventes, que estão convosco, por todas as
gerações futuras: porei o meu arco nas nuvens, e ele será o sinal da
aliança entre mim e a terra. E, quando eu tiver coberto o céu de
nuvens, o meu arco aparecerá nas nuvens e me lembrarei da minha
aliança convosco e com toda a alma vivente que anima a carne; e não
voltarão as águas do dilúvio a exterminar toda a carne. E o arco estará
nas nuvens, e eu o verei, e me lembrarei da aliança eterna que foi feita
entre Deus e todas as almas viventes de toda a carne que existe sobre a
terra. E Deus disse a Noé: Este será o sinal da aliança que eu constituí
entre mim e toda a carne sobre a terra.
A associação Chuva-Arco-íris fez que em muitas culturas este
evocasse a imagem de uma serpente mítica, como Naga, na Ásia
oriental. Este simbolismo se encontra também na África e,
possivelmente, até mesmo na Grécia, porque o arco, que figura na
couraça de Agamêmnon, está representado por três serpentes. Pois
bem, tal simbolismo está em conexão com as correntes cósmicas que
se desdobram entre o céu e a terra.
HARPIA, em grego Ἃρπυία (Hárpyia). O “parentesco” com o verbo
ἁρπάζειν (harpádzein), “arrebatar”, parece bem possível, bem como
com o latim rapere, “arrebatar, tomar à força”. As Harpias
significam, pois, literalmente, “as arrebatadoras”. Gênios alados,
eram apenas duas inicialmente: Aelo e Ocípete, às quais se
acrescentou posteriormente uma terceira, Celeno. Seus nomes
traduzem bem sua natureza. Significam respectivamente: a Borrasca,
a Rápida no Voo e a Obscuridade. Eram monstros horríveis: tinham o
rosto de mulher velha, corpo de abutre, garras aduncas, seios
pendentes. Pousavam nas iguarias dos banquetes e espalhavam um
cheiro tão infecto, que ninguém mais podia comer. Dizia-se que
habitavam nas ilhas Estrófades, no mar Egeu. Vergílio, no canto
6,289, da Eneida, coloca-as no vestíbulo do Inferno, com outros
monstros.
Arrebatadoras de crianças e de almas, as imagens desses monstros
eram muitas vezes colocadas sobre os túmulos, transportando a
alma do morto em suas garras.
O principal mito das Harpias está relacionado com Fineu, o
mântico, rei da Trácia. Sobre Fineu pesava terrível maldição. Tudo
que se colocava diante dele as Harpias o arrebatavam,
principalmente se se tratasse de iguarias: o que não podiam carregar
poluíam-no com seus excrementos. Quando pela Trácia passaram os
Argonautas, o rei pediu-lhes que o libertassem das terríveis Harpias.
Zetes e Cálais, filhos do Vento Bóreas, perseguiram-nas, obrigandoas a levantar voo. O destino, no entanto, determinara que as Harpias
só morreriam se fossem agarradas pelos filhos de Bóreas, mas, de
outro lado, estes perderiam a vida se não as alcançassem. Perseguida
sem tréguas por Zetes e Cálais, a primeira Harpia, Aelo, caiu num
riacho do Peloponeso, que, por isso mesmo, passou a chamar-se
Hárpis. A segunda, Ocípete, conseguiu chegar às ilhas Equínades,
que, desde então, se denominaram Estrófades, isto é, ilhas do
Retorno. Íris, outros dizem que Hermes, se postou diante dos
perseguidores e proibiu-lhes matar as Harpias, porque eram
“servidoras de Zeus”. Em troca da vida, elas prometeram não mais
atormentar Fineu, refugiando-se numa caverna da ilha de Creta.
Segundo algumas fontes, uniram-se depois ao Vento Zéfiro e
geraram os dois cavalos divinos de Aquiles, Xanto e Bálio, “mais
rápidos que o vento”, bem como os dois ardentes corcéis dos
Dioscuros, Flógeo e Hárpago.
As Harpias são parcelas diabólicas das energias cósmicas, as
abastecedoras do Hades com mortes súbitas. Simbolizam as paixões
desregradas; as torturas obsedantes, carreadas pelos desejos e o
remorso que se segue à satisfação das mesmas. Diferem das Erínias,
na medida em que estas representam a punição e aquelas figuram o
agenciamento dos vícios e as provocações da maldade. O único vento
que poderá afugentá-las é o sopro do espírito.
Fórcis, filho de Pontos, uniu-se à sua irmã Ceto e foi pai das Greias
e das Górgonas.
GREIA, em grego Γραῖα (Graîa). Trata-se de um adjetivo
substantivado, provindo de Γραῦς (Graûs), a “mulher velha”. As
Greias são, por conseguinte, as Velhas, por excelência, porque, na
realidade, já nasceram velhas. Irmãs mais “velhas” das Górgonas, a
princípio eram duas: Enio e Pefredo, a que depois se acrescentou uma
terceira, Dino. Tinham apenas um olho e um dente e de ambos se
serviam alternadamente. Viviam no extremo Ocidente, no país da
Noite, onde jamais chegava o sol.
O único mito em que as Greias desempenham um papel de certa
relevância é no de Perseu. Como o herói será assunto de um capítulo
do volume III, deixaremos para falar amplamente do mesmo no
lugar apropriado. Aqui apenas se dirá o necessário para se
compreender o mito das Greias e das Górgonas. A grande missão do
herói argivo era chegar ao esconderijo das Górgonas e cortar a cabeça
de Medusa. Para tanto, tinha obrigatoriamente que passar pelas
Greias, que barravam o caminho a quantos buscassem surpreender
suas irmãs. Como as Velhas tivessem em comum apenas um olho, a
guarda era feita em turnos: uma vigiava e as outras duas dormiam.
Perseu conseguiu subtrair-lhes o olho único e, lançando as três em
sono profundo, chegou ao esconderijo das Górgonas. Uma outra
versão do mito conta que as Greias eram depositárias de um oráculo,
segundo o qual só conseguiria cortar a cabeça de Medusa aquele que
obtivesse um par de sandálias aladas, um alforje, chamado kíbisis, e o
capacete de Hades que deixava invisível quem o usasse. Todos esses
objetos estavam em poder de determinadas Ninfas, cujo paradeiro só
as Velhas conheciam. Instruído por Atená e Hermes, Perseu
arrebatou o “olho e o dente” das Greias e obrigou-as a revelar onde se
encontravam as Ninfas misteriosas. Estas, cordatamente, lhe fizeram
entrega dos objetos mágicos, o que lhe permitiu chegar ao esconderijo
das Górgonas.
Uma palavra sobre a primeira das Greias, já que as duas outras não
possuem interesse algum particular para o mito.
ENIO, em grego Ἐνυώ (Enyó) é possivelmente um hipocorístico
feminino de Ἐνυάλιος (Enyálios), deus das lutas armadas, muitas
vezes associado ao grito de guerra. Trata-se, talvez, de divindade préhelênica. Enio seria “a que faz penetrar, a que fura”.
Em todo caso, Enio é uma deusa da guerra, que faz parte do
sangrento cortejo de Ares. Em Roma, foi identificada com a deusa da
guerra Belona, como está na Eneida, 8,703.
GÓRGONA, em grego Γοργόνα (Gorgóna), acusativo de Γοργών
(Gorgón), cuja forma mais antiga é Γοργώ (Gorgó). De qualquer
modo, a fonte é o adjetivo γοργός (gorgós), que significa “impetuoso,
terrível, apavorante”.
Em tese, apenas Medusa é Górgona. As duas outras, Ésteno e
Euríale, somente lato sensu é que podem ser assim denominadas. Das
três só Medusa era mortal. Habitava, como suas irmãs, o extremo
Ocidente, junto ao país das Hespérides. Estes monstros tinham a
cabeça enrolada de serpentes, presas pontiagudas como as do javali,
mãos de bronze e asas de ouro, que lhes permitiam voar. Seus olhos
eram flamejantes e o olhar tão penetrante, que transformava em
pedra quem as fixasse. Eram espantosas e temidas não só pelos
homens, mas também pelos deuses. Apenas Posídon ousou
aproximar-se delas e ainda engravidou Medusa.
Foi então que Perseu partiu do Ocidente para matar a Górgona, o
que fez, como se narrou, utilizando determinados objetos mágicos e
sobretudo seu escudo polido de bronze. O filho de Dânae pairou
acima dos três monstros, graças às sandálias aladas. As Górgonas
dormiam. Perseu, sem poder olhar diretamente para Medusa,
refletiu-lhe a cabeça no escudo e, com a espada que lhe dera Hermes,
decapitou-a. Do pescoço ensanguentado da Górgona saíram os dois
seres engendrados por Posídon, o cavalo Pégaso e o gigante Crisaor. A
cabeça de Medusa foi colocada por Atená em seu escudo ou no
centro da égide. Assim, os inimigos da deusa eram transformados em
pedra, se olhassem para ela. O sangue que escorreu do pescoço do
monstro foi recolhido pelo herói, uma vez que este sangue tinha
propriedades mágicas: o que correu da veia esquerda era um veneno
mortal, instantâneo; o da veia direita era um remédio salutar, capaz
de ressuscitar os mortos.
Além do mais, uma só mecha da outrora lindíssima cabeleira da
Górgona apresentada a um exército invasor era bastante para pô-lo
em fuga.
O mitologema de Medusa evoluiu muito desde suas origens até a
época helenística. De início, a Górgona, apesar de monstro, é uma das
divindades primordiais, pertencente à geração pré-olímpica. Depois,
foi tida como vítima de uma metamorfose. Conta-se que Medusa era
uma jovem lindíssima e muito orgulhosa de sua cabeleira. Tendo,
porém, ousado competir em beleza com Atená, esta eriçou-lhe a
cabeça de serpentes e transformou-a em Górgona. Há uma variante:
a deusa da inteligência puniu a Medusa, porque Posídon, tendo-a
raptado, violou-a dentro de um templo da própria Atená.
Três irmãs, três monstros, a cabeça aureolada de serpentes
venenosas, presas de javalis, mãos de bronze, asas de ouro: Medusa,
Ésteno, Euríale. São os símbolos do inimigo que se tem que combater.
As deformações monstruosas da psiqué, consoante Chevalier e
Gheerbrant2, se devem às forças pervertidas de três pulsões:
sociabilidade, sexualidade, espiritualidade.
Euríale seria a perversão sexual, Ésteno, a perversão social, e
Medusa a principal dessas pulsões, a pulsão espiritual e evolutiva,
mas pervertida em frívola estagnação. Só se pode combater a
culpabilidade oriunda da exaltação frívola dos desejos pelo esforço
em realizar a justa medida, a harmonia. É isto, aliás, o que simboliza,
face à perseguição, a busca de refúgio no templo de Apolo, em Delfos,
onde reinam o equilíbrio e a harmonia, cifrados no γνῶθι σαὐτόν
(gnôthi s’autón), “conhece-te a ti mesmo”. Quem olha para a cabeça
de Medusa se petrifica. Não seria por que ela reflete a imagem de
uma culpabilidade pessoal? O reconhecimento da falta, porém,
baseado num justo conhecimento de si mesmo, pode se perverter em
exasperação doentia, em consciência escrupulosa e paralisante.
Em resumo, Medusa simboliza a imagem deformada, que petrifica
pelo horror, em lugar de esclarecer com equidade.
PÉGASO, em grego Πήγασος (Pégasos). A etimologia que deriva
Pégaso de πηγή (pegué), fonte, pelo fato de o cavalo divino, com uma
patada, ter feito brotar Hipocrene (fonte do cavalo), é de cunho
popular. Talvez o vocábulo origine-se de πηγός (pegós), forte, sólido.
Nasceu este cavalo alado das “fontes do Oceano”, como se dizia, isto é,
no extremo Ocidente, quando da morte da Górgona por Perseu. O
mito ora o apresenta como oriundo do pescoço de Medusa, ora como
gerado pela Terra, fecundada com o sangue do monstro. Assim que
nasceu, voou para o Olimpo, onde se colocou a serviço de Zeus. A
respeito da maneira como o cavalo voador se pôs à disposição de
Belerofonte, as tradições variam: Atená ou Posídon o teriam levado
ao grande herói ou o próprio Belerofonte o encontrara junto à fonte
de Pirene. Foi graças a Pégaso que o herói pôde executar duas grandes
tarefas que lhe impusera o rei Ióbates: matar Quimera e derrotar as
Amazonas. Após a marte do herói, Pégaso retornou para junto dos
deuses.
No grande concurso de cantos entre as Piérides e as Musas, o monte
Hélicon se envaideceu e se enfunou tanto de prazer, que ameaçou
atingir o Olimpo. Posídon ordenou a Pégaso que desse uma patada no
monte, a fim de que ele voltasse às dimensões normais e guardasse
“seus limites”. Hélicon obedeceu, mas, no local atingido por Pégaso,
brotou uma fonte, Hipocrene, a Fonte do Cavalo, imortalizada em
nossa língua pelo gênio de Camões:
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.
(Lus., I, 4)
Após muitos trabalhos prestados aos deuses e aos heróis, Pégaso foi
transformado em constelação.
Pégaso, cavalo alado, está sempre relacionado com a água. Filho de
Posídon e da Górgona, seu nome provém, em etimologia popular,
πηγή (pegué), fonte. Teria nascido junto às fontes do Oceano.
Belerofonte o encontrou bebendo na fonte de Pirene. Com uma só
patada fez brotar Hipocrene, a fonte do cavalo. Está, de outro lado,
ligado às tempestades, por isso que é “o portador do trovão e do raio
por conta do prudente Zeus”. Pégaso é, por conseguinte, uma fonte
alada: fecundidade e elevação. O simples cavalo é figurado
tradicionalmente como a impetuosidade dos desejos. Quando o ser
humano faz corpo com o cavalo, torna-se um monstro, o Centauro,
identificando-se com os instintos animalescos. O cavalo alado, muito
pelo contrário, simboliza a imaginação criadora sublimada e sua
elevação real. Com efeito, foi cavalgando Pégaso que Belerofonte
matou a Quimera. Temos aí, pois, os dois sentidos da fonte e das asas:
a fecundidade e a criatividade espiritual. Não é em vão que Pégaso se
tornou o símbolo da inspiração poética.
O gigante Crisaor uniu-se a Calírroe e foi pai do gigante Gerião, de
três cabeças e do monstro Équidna.
GERIÃO, em grego Γηρυών (Gueryón), cuja fonte é o verbog
γηρύειν (guerýein) “fazer ressoar, gritar”, ou por ter sido Gerião um
pastor ou porque o nome designava primitivamente o cão que lhe
guardava os rebanhos. Talvez se trate de etimologia popular.
Gerião era um monstro de três cabeças e de torso tríplice.
Habitava a ilha de Ericia, “a vermelha”, situada nas brumas do
Ocidente, além do imenso Oceano. Seus rebanhos eram guardados
pelo pastor Eurítion e pelo cão Ortro, não longe do local onde
Menetes pastoreava os rebanhos de Plutão. Um dos trabalhos de
Héracles consistia em roubar os bois de Gerião. O herói enfrentou
primeiro o cão Ortro e o liquidou; eliminou, em seguida, o pastor
Eurítion e, por fim, lutou com o gigante e o matou a flechadas ou a
golpes de clava. A ilha de Ericia estava localizada possivelmente na
Espanha, nos arredores de Cádis. O epônimo Ericia designaria uma
das Hespérides, cujo “Jardim” estava próximo da ilha homônima. O
próprio nome do local, País Vermelho, designa uma terra situada a
Oeste, o País do Sol Poente.
ÉQUIDNA, em grego Ἔχιδνα (Ékhidna), do mesmo grupo
etimológico que Ἔχις (Ékhis), “víbora”. Monstro com um corpo de
mulher e cauda de serpente, que lhe substituía as pernas. Vivia,
consoante Hesíodo (Teog., 300ss), nas profundezas da terra, numa
caverna, distante dos deuses e dos homens. Outras tradições a
colocam no Peloponeso, onde foi morta por Argos-de-Cem-Olhos,
porque estava habituada a devorar os transeuntes.
Équidna é de alma violenta, diz Hesíodo. Seu corpo é metade de
jovem mulher, de lindas faces e olhos cintilantes, metade, uma
enorme serpente, malhada, cruel...
Unida a Tifão, como se verá, em seguida, gerou tão somente
monstros: Ortro, Cérbero, Quimera, Leão de Nemeia, Hidra de Lerna...
C.G. Jung fez de Équidna, na perspectiva analítica do incesto, uma
imagem da mãe: “Bela e jovem mulher até a cintura, mas, a partir daí,
uma serpente horrenda. Este ser duplo corresponde à imagem da
mãe: na parte superior, a metade humana, bela e sedutora; na inferior
a metade animal, medonha, que a defesa incestuosa transforma em
animal angustiante. Seus filhos são monstros, como Ortro, o cão de
Gerião, que Héracles matou. Foi com este Cão, seu filho, que, em
união incestuosa, Équidna gerou a Esfinge. Esse material é suficiente
para caracterizar a soma de libido que produziu o símbolo da
Esfínge”3.
Équidna é um símbolo da prostituta apocalíptica, da libido que
queima a carne e a devora. Mãe do abutre, que rói as entranhas de
Prometeu, é ainda o fogo do Inferno, o desejo excitado e sempre
insaciável. É a Sereia, de cujas seduções Ulisses soube fugir.
Tifão e Équidna foram pais de Ortro, Cérbero, Hidra de Lerna,
Quimera, Fix e Leão de Nemeia.
CÉRBERO, em grego Κέρβερος (Kérberos). A identidade com o
sânscrito karbará-, šarvará-, “pintado”, é, hodiernamente, duvidosa.
Cérbero é o cão do Hades, um dos monstros que guardavam o
império dos mortos e lhe interditava a entrada aos vivos, mas, acima
de tudo, se entrassem, impedia-lhes a saída. Segundo Hesíodo, o
guardião infernal tinha cinquenta cabeças e voz de bronze. A
imagem clássica, porém, o apresenta como dotado de três cabeças,
cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes. Um dos
trabalhos impostos por Euristeu a Héracles foi o de descer ao Hades e
de lá trazer o monstro. Após iniciar-se nos Mistérios de Elêusis, o
herói desceu à outra vida. Plutão permitiu-lhe cumprir a tarefa,
desde que dominasse a Cérbero sem usar de armas. Numa luta corpo
a corpo, o filho de Alcmena o venceu e o trouxe meio sufocado até o
palácio de Euristeu, que, apavorado, ordenou a Héracles que o levasse
de volta ao Hades
O Cão do Hades representa o terror da morte; simboliza os próprios
Infernos e o inferno interior de cada um. É de se observar que
Héracles o levou de vencida, usando tão somente a força de seus
braços e que Orfeu, “por uma ação espiritual”, com os sons
irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por instantes.
Estes dois índices militam em favor da interpretação dos
neoplatônicos que viam em Cérbero o próprio gênio do demônio
interior, o espírito do mal. O monstruoso guardião do Hades só pode
ser dominado sobre a terra, quer dizer, por uma violenta mudança de
nível e pelas forças pessoais de natureza espiritual. Para vencê-lo,
cada um só pode contar consigo mesmo.
HIDRA, em grego Ύδρα (Hýdra), é um derivado de ὕδωρ (hýdor), água.
O sânscrito tem udrá-, “animal aquático”, o alemão Otter, “víbora,
lontra”, latim lutra ou lytra, lontra.
A Hidra de Lerna é um monstro horripilante, gerado pela deusa
Hera, para “provar” o grande Héracles. Criada sobre um plátano,
junto da fonte Amimone, perto do pântano de Lerna, na Argólida, a
Hidra é figurada como uma serpente descomunal, de muitas cabeças,
variando estas, segundo os autores, de cinco ou seis, até cem, e cujo
hálito pestilento a tudo destruía: homens, colheitas e rebanhos. Para
conseguir exterminar mais esse monstro, o herói contou com a ajuda
preciosa de seu sobrinho Iolau, porque, à medida em que Héracles ia
cortando as cabeças da Hidra, onde houvera uma, renasciam duas.
Iolau pôs fogo a uma floresta vizinha, e com grandes tições ia
cauterizando as feridas, impedindo, assim, o renascimento das
cabeças cortadas. A cabeça do meio era imortal, mas o filho de
Alcmena a decepou assim mesmo: enterrou-a e colocou-lhe por cima
um enorme rochedo. Antes de partir, Héracles embebeu suas flechas
no veneno ou, segundo outros, no sangue da Hidra, envenenando-as.
A interpretação evemerista do mito é de que se trata de um rito
aquático. A hidra, com as cabeças, que renasciam, seria, na realidade,
o pântano de Lerna, drenado pelo herói. As cabeças seriam as
nascentes, que, enquanto não fossem estancadas, tornariam inútil
qualquer drenagem.
A venenosa serpente aquática, dotada de muitas cabeças, é
frequentemente comparada com os deltas dos rios, com seus
inúmeros braços, cheias e baixas.
Consoante Paul Diel4, a Hidra simboliza os vícios múltiplos, “tanto
sob forma de aspiração imaginativamente exaltada, como de
ambição banalmente ativa. Vivendo no pântano, a Hidra é mais
especificamente caracterizada como símbolo dos vícios banais.
Enquanto o monstro vive, enquanto a vaidade não é dominada, as
cabeças, configuração dos vícios, renascem, mesmo que, por uma
vitória passageira, se consiga cortar uma ou outra”.
O sangue da Hidra é um veneno e nele o herói mergulhou suas
flechas. Quando a peçonha se mistura às águas dos rios, os peixes não
podem ser consumidos, o que confirma a interpretação simbólica:
tudo quanto tem contato com os vícios, ou deles procede, se corrompe
e corrompe.
QUIMERA, em grego Χίμαιρα (Khímaira), significa “cabritinha”.
Monstro híbrido, com a cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de
serpente; conforme outros, de três cabeças: uma de leão, a segunda de
cabra e a terceira de serpente e que lançava chamas pelas narinas.
Criada por Amisódaro, rei da Cária, vivia em Patera. O rei da Lícia,
Ióbates, ordenou ao herói Belerofonte que a matasse, uma vez que
aquela lhe devastava o país. Cavalgando Pégaso, o herói aproximouse do monstro, mas teve o cuidado de guarnecer de chumbo a ponta
da lança. Com o calor das chamas lançadas por Quimera, o chumbo
se derreteu e a matou.
Quimera tem um simbolismo complexo de “criações imaginárias”,
nascidas nas profundezas do inconsciente, configurando,
possivelmente, desejos exasperados pela frustração, os quais acabam
por transformar-se em fonte de sofrimentos. O monstro seduz e
destrói a quem a ele se entrega. Não se podendo combatê-la de frente,
é necessário persegui-la com ardor e surpreendê-la em seus refúgios
mais profundos. Sociólogos e poetas viram-na apenas como a
imagem das torrentes, “caprichosas como as cabras, devastadoras
como os leões e sinuosas como as serpentes”, que não se podem deter
com diques, mas que é preciso secar pela astúcia, estancando as
nascentes, desviando-lhes o curso. A Quimera poderia, de outro lado,
ser interpretada como uma deformação psíquica, caracterizada por
uma imaginação fértil e incontrolada. A cauda de serpente ou dragão
corresponderia à perversão espiritual da vaidade; o corpo de cabra à
sexualidade perversa e caprichosa; a cabeça de leão a uma tendência
dominadora, que corrompe todo e qualquer relacionamento social.
FIX seria a forma beócia de Esfinge, em grego Σϕιγξ (Sphínks), que
provém, por etimologia popular, do verbo σϕίγγειν (sphínguein),
“envolver, apertar, comprimir, sufocar”. Monstro feminino, com o
rosto e, por vezes, seios de mulher, peito, patas e cauda de leão e
dotado de asas. A Esfinge figura sobretudo no mito de Édipo e no
ciclo tebano. Este monstro fora enviado por Hera, a protetora dos
amores legítimos, contra Tebas, para punir a cidade do crime de Laio,
que raptara Crisipo, filho de Pélops, introduzindo na Hélade a
pederastia. Postada no monte Fíquion, próximo da cidade, devastava
o país, devorando a quantos lhe passassem ao alcance. Normalmente
propunha um só e mesmo enigma aos transeuntes, e já havia
exterminado a muitos, porque ninguém ainda o decifrara.
Foi então que surgiu Édipo e a “cruel cantora” (a Esfinge propunha
o enigma cantando) lhe fez a clássica pergunta: “Qual o ser que anda
de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com
três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem maior
número de membros?” Édipo respondeu de pronto: “É o homem,
porque, quando pequeno, engatinha sobre os quatro membros;
quando adulto, usa as duas pernas; e, na velhice, caminha apoiado a
um bastão”.
Vencida, a Esfinge precipitou-se do alto de um rochedo e morreu.
Claude Lévi-Strauss5 enfocou o mito de Édipo e obviamente
tentou dar, senão uma interpretação, ao menos uma definição da
“cruel cantora” de Tebas. Reunindo as frases e conceitos do
excepcional estudioso francês, talvez se possa chegar
antropologicamente a uma definição de Esfinge: “Monstro-fêmea
ctônio, com sinal invertido, símbolo da autoctonia do homem,
monstro que violava os jovens, caso não lhe decifrassem o enigma,
mas que, uma vez vencido e destruído, mostra que o ser humano não
nasceu apenas da fêmea, mas do concurso desta com o macho”.
Donde, a decifração do enigma, representaria a vitória da
patrilinhagem sobre a matrilinhagem. Na realidade, tanto o dragão
quanto a Esfinge simbolizam a autoctonia do homem. Vencidos pelo
homem, atestam a negação dessa autoctonia.
Marie Delcourt, em sua obra clássica e bastante polêmica sobre
Édipo, tem um capítulo luminoso e copiosamente documentado
sobre a “cruel cantora”6. Vamos apontar, por agora, somente algumas
reflexões da Autora sobre a Esfinge, o quanto possível desvinculada
de Édipo, porque acerca do enigma, da vitória deste sobre aquela e
suas consequências, há de se falar depois, quando abordarmos o mito
do filho de Laio e Jocasta no volume III.
Para Delcourt, o ser mítico, que os gregos denominaram Esfinge,
foi por eles criado com base em duas determinações superpostas: a
realidade fisiológica, isto é, o pesadelo opressor e o espírito religioso,
quer dizer, a crença nas almas dos mortos representadas com asas.
Estas duas concepções acabaram por fundir-se, uma vez que
possuíam e ainda possuem certos aspectos comuns, principalmente
o caráter erótico e a ideia de que, quando se dominam os pesadelos e
os fantasmas, o vencedor recebe, como dádiva dos mesmos, tesouros,
talismãs e reinos.
A Esfinge é, pois, a junção de dois aspectos: pesadelo opressor e o
terror infundido pelas almas dos mortos.
Na realidade, a Esfinge pertence simultaneamente a duas
categorias de seres, que correspondem a dois enfoques diferentes:
irmã de Efialtes7, o monstro é um pesadelo, um demônio opressor;
irmã das Sereias, a “cruel cantora” é uma alma penada. Com efeito,
Sereias, Queres, Erínias, Harpias, as Aves do Lago de Estinfalo... são,
em princípio, almas dos mortos. Assim como existem várias Sereias,
teria havido várias Esfinges. O mito de Édipo, no entanto, privilegiou
de tal forma uma delas, que as demais caíram no esquecimento. E, por
isso mesmo, graças à literatura, todas as imagens mais ou menos
diferentes, relativas à Esfinge, cristalizaram-se em torno da mulherleão alada, que a arte grega recebeu do sul do Mediterrâneo. Pois bem,
todos esses seres possuem um traço comum: são ávidos de sangue e
de prazer erótico. Vimos como na Odisseia, para evocar as almas dos
mortos, os eídola, Ulisses, além de fazer três libações sobre um fosso,
com mel, vinho e água, degolou sobre o mesmo duas vítimas negras:
um carneiro e uma ovelha. O resultado foi imediato:
O negro sangue correu.
E logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se
ajuntaram.
(Odiss., XI, 36-37)
Isto quer dizer que as almas, por efeito do sangue, recuperaram, ao
menos por instantes, sua consciência. Determinados líquidos, como
mel, vinho, água, mas sobretudo o sangue e o esperma (spérma em
grego é semente), porque em ambos “está a vida”, são vitais para as
“almas”, a fim de que possam reanimar seu vigor sempre
languescente. Na chamada ânfora de Berlim, de n. 684, do século VI
a.C., vê-se um homem deixando cair sua “semente” sobre uma
borboleta, que simboliza uma alma, e esta, diga-se de passagem,
parece ser a mais antiga representação que se conhece na Grécia da
alma-borboleta. Uma passagem de Filóstrato8(sofista e biógrafo dos
inícios do século III d.C.), falando das Empusas, Lâmias e
Mormólices, “irmãs” das Esfinges e Sereias, afirma que elas amam o
prazer erótico e mais ainda a carne humana, e, por isso mesmo,
seduzem os jovens que desejam devorar.
Os povos do Mediterrâneo viam geralmente a alma sob a forma de
um pássaro, o que faz que as Sereias e a Esfinge sejam “músicas”,
como todas as suas irmãs que cantam e “encantam” perigosamente.
No canto XII, 184ss, da Odisseia, Ulisses consegue escapar à sedução
das Sereias, cuja voz irresistível “encantava” suas vítimas para
devorá-las. Como sentiam o “desejo”, mas não podiam realizá-lo, por
serem peixes, frias, portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue
dos que atraíam com seu canto. Era, claro está, a substituição de um
“líquido” por outro. Um dístico da Ars Amatoria (Arte de Amar),
2,123-124, de Ovídio, talvez, lato sensu, pudesse ser aplicado a esses
vampiros, embora as deusas marinhas, de que fala o poeta, sejam
Calipso e Circe, esta última uma grande devoradora:
Non formosus erat, sed erat facundus Ulixes,
Et tamen aequoreas torsit amore deas:
– Ulisses não era bonito, mas era eloquente, isto bastou
para que duas divindades marinhas sofressem por ele
os tormentos do amor.
Também a Esfinge era cantora, “a cruel cantora”, não
propriamente porque o enigma fosse proposto em verso hexâmetro
(que nunca foi muito apto para o canto), mas porque, sendo “almapássaro” e, portanto, ávida de atrair para destruir, cantava para
encantar. Não é por efeitos artísticos que esses monstruosos
devoradores aparecem nos monumentos funerários com
instrumentos musicais em suas mãos9. É que se tornaram poetas,
aedos, inspiradoras, permanecendo sempre, todavia, como temíveis
sedutoras dos jovens.
Quando se fala ou se escreve sobre o tipo leonino da Esfinge,
pensa-se, de imediato, nas Esfinges egípcias, que, aliás, são sem asas e
“machos” e, segundo se mostrará, muito diferentes da Esfinge grega,
que é feminina e com asas, como aparecem no vale do Eufrates. Foi
com esta configuração que a Esfinge, tendo passado por Creta e
Micenas, se perpetuou na Europa. A Esfinge cretense e micênica
apresenta-se agachada, colada ao solo, e esta última tem as asas
abertas, muito semelhantes às das Sereias. Por causa das asas, os
gregos viram-na como representação de uma alma e, em função do
nome, identificaram-na com a Fix tebana e esta identificação
possivelmente contribuiu para fazer da mesma um ser único e não
uma pluralidade, uma vez que sua origem “psíquica” teria levado a
pensar não em uma pessoa, mas numa espécie. De outro lado, é
preciso levar em conta que a Esfinge cretense e a micênica não
devem ser, como se tem escrito, puramente ornamentais, mas
possivelmente elementos apotropaicos.
A Esfinge, porém, é algo mais que uma Seelenvogel, mais que uma
simples alma-pássaro. A “cruel cantora” é também um cauchemar,
desde que se dê a este hibridismo seu sentido etimológico10de
demônio esmagador, opressor, “pesadelo”. A Esfinge é “alma penada”,
a dama opressora, ou, mais precisamente, íncubo. Normalmente o
monstro surge em meio a um turbilhão. Propõe determinadas
perguntas que devem ser prontamente respondidas sob pena de
morte ou de paralisia. Com muita facilidade transforma-se
frequentemente em seres vários: numa linda mulher, numa princesa,
fada, neste ou naquele animal11. Sua atitude, todavia, é aterradora:
abraça com violência, aperta, sufoca. Exige amor, mas dificilmente o
consegue, pois sua aparência é assustadora e, não raro, hedionda,
sórdida. Os que conseguirem responder-lhe às questões propostas,
decifrar-lhe os enigmas ou suportar seu peso esmagador, receberão
em troca, como vencedores, tesouros, talismãs, conhecimento de
determinados segredos e até mesmo um reino e uma rainha. Curioso
é que, no mito cristão, o homem que conseguir vencer o íncubo,
libertando-se dos sufocantes amplexos do monstro, este, graças ao
vencedor, libertar-se-á também de sua condição infernal. Assim, o
ser humano, que vitoriosamente foi capaz de suportar a prova,
consegue, as mais das vezes, libertar-se do íncubo e revertê-lo à sua
primitiva condição humana. Neste caso, o homem quase sempre se
casa com a “dama” e o mito se fecha com um romance, em que as
reminiscências e influência cristãs são óbvias. Acontece, porém, que
o conto se desdobra e o nascimento dos filhos patenteia aos cônjuges
a desigualdade de suas origens.
Tais desdobramentos, no entanto, não possuem um interesse direto
para o estudo da Esfinge helênica. O mito grego não se preocupou
com o tema de cunho moral da libertação e reabilitação do íncubo. É
bem verdade que Circe, ao unir-se a Ulisses, no canto X da Odisseia,
interrompeu seus sortilégios e retomou a forma humana, mas isto ela
o fez temporariamente. Após a partida do herói, Circe voltou a ser o
que sempre foi, uma bruxa.
De qualquer forma, alguns traços do “cauchemar” são constantes
no tempo e no espaço. Trata-se de um ser misterioso, sobrenatural,
caracterizado como as almas por suas exigências eróticas.
Chamando-o Inuus12, isto é, “o que faz sinal com a cabeça para atrair
sexualmente”, os latinos compreenderam-lhe bem as intenções.
Santo Agostinho mostra com muita nitidez o perigo que os Silvanos e
os Pãs representam para a castidade feminina13. Se para o autor de As
Confissões o povo chama aos Silvanos e Pãs de íncubos, fica bem
explícito que nos fins do século IV d.C. esses monstros eram
designados por sua função dominante e não por seu nome
mitológico.
Para Santo Tomás de Aquino14 tanto o íncubo quanto o
súcubo15nada mais possuem de mitológico: são formas por que se
manifesta o demônio, que, assim metamorfoseado, pode conseguir
apossar-se sexualmente de suas vítimas.
Duas observações importantes se tornam necessárias: a primeira é
que para os latinos os íncubos são seres masculinos que atormentam
as mulheres e para os gregos são monstros-fêmeas que torturam os
homens. A segunda é que íncubos e súcubos parecem resultar de duas
determinações convergentes: trata-se de espectros, pesadelos, que
agem durante o sono diurno ou noturno. A isto se acresce o caráter
sagrado que divide em dois o dia ou a noite, momento crítico, uma
vez que ele marca uma passagem. “Meio-dia é uma hora sexual”, diz
laconicamente Caillois16. Meia-noite talvez o seja ainda mais.
Meridiano ou noturno, o íncubo é erótico.
Dada a etimologia de íncubo e súcubo, talvez não fosse fora de
propósito acentuar que os latinos viram nesses monstros opressores e
sufocantes seres machos que atormentavam as mulheres. Os gregos,
pelo contrário, personificavam como figuras femininas os
cauchemars e as almas penadas que torturavam os homens, porque a
afinidade entre as duas noções é muito estreita, quando se analisa o
problema de perto, sobretudo quando se trata das Sereias, das
Empusas e da Esfinge. É verdade que asErínias, nas obras literárias
que chegaram até nós, perderam toda e qualquer característica
sexual e tornaram-se apenas as “justiceiras” e o fato de as mesmas
não perseguirem Clitemnestra, que matara o esposo Agamêmnon, se
baseia numa razão doguénos: Clitemnestra não era do mesmo sangue
do marido. Seria, aliás, o caso de se perguntar se primitivamente a
paciência das Erínias para com as mulheres culpadas não teve outras
razões menos confessáveis...
Seja como for, o cauchemar é representado como uma velha de
seios caídos. Ambroise Paré, o grande cirurgião francês do século
XVI, diz que “Os médicos opinam ser o Íncubo um mal em que as
pessoas julgam que estão sendo oprimidas ou sufocadas por um
fardo pesado que, principalmente à noite, lhes comprime o corpo. O
povo acha que esse peso opressor é uma velha”. Por isso mesmo, no
Languedoc, pesadelo se diz chaouche-vielio, velha opressora17.
Os trágicos gregos jamais atribuíram à Esfinge tebana esse
erotismo ligado aos maus sonhos, mas nós o encontramos alhures,
como se verá, pois o íncubo é essencialmente um monstro fêmea que
se aproxima do homem para deitar-se sobre ele. O latim conhecia, e
já o mencionamos, apenas o incubus masculino; succuba feminino
não era um ser demoníaco, mas simplesmente uma mulier adultera,
uma subnuba, isto é, uma amante, uma concubina. A ausência de um
termo feminino correspondente a incubus está bem de acordo com a
mentalidade romana, que jamais poderia conceber uma “íncuba”
deitando-se sobre um homem! Não foi em vão que Ambroise Paré
aplicou um masculino latino (incubus) à “velha” do pesadelo.
Existe ainda, como já se disse, uma grande semelhança entre os
monstros opressores e as almas penadas. É que os “sonhadores”
interpretam seus visitantes meridianos ou noturnos como “almas do
outro mundo”, como espectros. Alguns destes, todavia, se prendem
mais a um grupo (monstros opressores) que a outro (almas penadas).
Desse modo, as Sereias são essencialmente seres “psíquicos”. Outros
se encontram no ponto de tangência entre essas duas ordens de
ideias: é o caso de Pã, Empusa e Esfinge. A ambiguidade desta última
se deve, possivelmente, a seu nome (a que aperta, sufoca) e à maneira
como se apresenta. Suas asas a predestinavam a encarnar uma alma
penada, ávida de sangue e de amor, mas também uma sedutora e
cantora. Seu corpo de leoa, seu nome de Sufocante predispunham-na
a ser um pesadelo opressor. Vampiro ligeiro, por suas asas, perseguia
os jovens; vampiro volumoso, por seu corpo, esmagava-os com seu
peso.
A Sereia revela-se íncubo nos textos literários e particularmente
em textos tardios e não através de monumentos, exceto através de
um só, de resto muito belo, mas que pertence à época alexandrina,
em que a Sereia está prestes a se unir a um camponês adormecido.
Com a Esfinge as coisas se passam diferentemente: a literatura
transmutou-a num bicho-papão e numa inquiridora. Seu caráter
sexual nos textos literários é propriamente nulo, mas, em
compensação, a arte figurada nos mostra uma Esfinge sumamente
erótica. Marie Delcourt18reuniu e comentou vários monumentos da
arte figurada grega, do século VII ao V a.C. (lécitos, isto é, desenhos
gravados em vasos; escaravelhos; terracotas; ânforas...), de que se
destacam dois lécitos de Atenas, respectivamente dos séculos VI e V
a.C., o escaravelho de Corfu, do século VI a.C., e a belíssima Esfinge
de Éfeso, embora reconstituída, de data ainda não determinada. Pois
bem, nestes últimos quatro monumentos (e a cena não é privativa
deles) a Esfinge está a ponto de possuir um jovem.
Mas, para não se ficar apenas na arte figurada, citemos o único
fragmento da Edipodia, poema atribuído a Cinéton da Lacedemônia
e que narrava as aventuras de Laio e Édipo. Por este fragmento se
deduz que Hêmon, que era mais belo e mais apetecível que os outros,
isto é, que as vítimas anteriores,fora raptado pela Esfinge:
Mas aquele que ainda era o mais belo e o mais desejável,
o filho querido do irrepreensível Creonte, Hêmon, o
divino.
Nos monumentos mais recentes, a “cruel cantora” aparece sempre
associada a Édipo. Foi sob a influência da literatura que a Esfinge
acabou por perder seu caráter de íncubo.
No tocante à Esfinge egípcia e sua possível influência sobre a grega,
é necessário esclarecer alguns pontos importantes.
Do ponto de vista etimológico, o gregos σφίγξ, σφίγγός (sphínks,
sphingós) nada tem a ver com o egípcio Shesepuankh, nome por que
se designava a Esfinge dos Faraós. Também sob o aspecto
iconográfico e sobretudo funcional, a diferença entre ambas é muito
grande.
Shesepuankh19 significa estátua viva ou estátua da vida, pelo fato
de a Esfinge estar voltada para o “nascente” e receber os primeiros
raios de Ra-Herakheti, isto é, do Sol vivo.
Iconograficamente, Shesepuankh se apresenta invariavelmente
com um corpo de leão e cabeça, as mais das vezes, humana, coberta
por uma peruca ou nemes, também denominada kleft, de uma
palavra copta, que significa capuz: trata-se, na realidade, de uma
touca cerimonial, que representa a juba do leão. Eventualmente a
nemes pode ser encimada pela coroa do Sul e do Norte, simbolizando,
nesse caso, o rei, e é denominada tecnicamente Androesfinge.
Aparece ainda com a cabeça de “Carneiro”, é a Crioesfinge,
representando Amon-Ra, ou com a cabeça de Falcão, é a
Hieracoesfinge, figurando Horus, Ra ou Menthu. Como se observa,
trata-se da unívoca presença do Sol. A Esfinge egípcia não é alada,
salvo talvez, mas o assunto é discutido, as possíveis exceções da
tumba de Tutankhamon e de uma estatueta de Amenhetep III, onde
Shesepuankh está coberta no dorso por um manto aparentemente
emplumado. Consagrada a Ra-Horus-no-Horizonte, quer dizer,
Harmakhis, a Esfinge é um símbolo solar e essencialmente
masculino. Não representa propriamente o deus, mas o rei
identificado com aquele.
Mesmo estampando a cabeça de Hatshepsut, e, note-se, com
barbas, Shesepuankh continua a ser masculina, uma vez que essa
mulher extraordinária não pode ser considerada politicamente como
rainha. Símbolo benfazejo e guardião, atestava o poder real
identificado com o Sol da Manhã. O corpo do leão simboliza a força e
a irredutibilidade, a capacidade de eliminar os inimigos do rei e
guardar a necrópole, as entradas dos templos e o próprio Egito. A
cabeça humana “iluminada representa a inteligência.
Se na Grécia se notabilizou a Esfinge de Tebas, no Egito a mais
célebre e, quiçá, a mais antiga, é a de Giseh. Faz parte do complexo
funerário de Khafra (Quéfren). Esculpida numa ponta de calcário da
antiga pedreira das Pirâmides, é orientada na direção leste-oeste.
Originariamente o monumento representaria Khufu, mas foi
terminada por Khafra, embora a cabeça seja daquele. Sua localização
no centro da necrópole de Giseh faz da mesma a guardiã do
cemitério real da quarta dinastia. É famosa não apenas por suas
dimensões gigantescas, mas sobretudo porque evoca Ra-Herakheti
vivo, encarnado na imagem real, que se ilumina no nascente,
abençoando a necrópole com a luz da evolução universal.
Na Grécia, a Esfinge era uma leoa alada com cabeça humana,
enigmática e cruel, tipo de monstro terrível, em que se pode ver o
símbolo da feminilidade pervertida. A Esfinge de Tebas que
propunha enigmas aos transeuntes e devorava os que a eles não
respondessem, figuraria a intemperança e a dominação perversa e,
como flagelo que devasta o país, simbolizaria as sequências
destrutivas do reino de um rei perverso. Todos os atributos da
Esfinge são índices da banalização: o monstro só pode ser vencido
pelo intelecto, pela sagacidade, antídoto do embrutecimento banal.
Presa à terra, está como que cravada na mesma, símbolo da ausência
de elevação. Possui asas, mas estas, como as de Ícaro, não podem levála muito longe. O destino da “cruel cantora” é ser tragada pelo
abismo.
No Egito, um corpo de leão acocorado com uma cabeça humana,
de olhar enigmático, emergindo da juba felina. A mais célebre, já se
mencionou, se encontra no prolongamento da pirâmide de Quéfren,
junto ao Templo do Vale, nas proximidades das mastabas e
pirâmides de Giseh, que prolongam sua sombra sobre a imensidão do
deserto. A Esfinge vela noite e dia pelas necrópoles gigantes; seu
rosto pintado de vermelho contempla o único ângulo do horizonte
onde o sol se ergue. Guardiã dos umbrais interditos e das múmias
reais, somente ela ouve o cantar cadenciado dos planetas. Vigiando,
dia e noite, as entradas da eternidade e atenta a tudo o que foi e a
tudo o que será, somente ela contempla o rolar manso dos Nilos
celestes e o vaivém das barcas solares. Sua cabeça é a cabeça real,
símbolo de um poder soberano, terrível com os rebeldes, benfazeja e
protetora dos bons. Sua face barbuda é a própria majestade do Faraó,
o deus solar, detentor dos atributos mesmos do leão. Como felino, é
irresistível nos combates. Sem vestígio algum de angústia e
desespero, invenção exaltada do lirismo romântico, os traços e a
posição solidamente acocorada da Esfinge exprimem a serenidade
de uma certeza. Nenhuma inquietude, nenhum traço de terror e
agonia, como nas máscaras trágicas dos gregos. Seus olhos não se
fixam sobre um enigma, cuja grandeza fatal acaba por destruí-la,
mas, contemplando o nascer do sol, chegam à grande verdade
interior, cuja plenitude recompõe e aquieta.
LEÃO DE NEMEIA, em grego Λέων Νέμειος (Léon Némeios). Não
se conhece, até o momento, a etimologia de léon: parece tratar-se de
palavra não indo-europeia. Νεμέα (Neméa) não é da mesma família
etimológica que o verbo νέμειν (némein), “distribuir”, “repartir”,
donde atribuir a um rebanho a parte da pastagem para onde o
conduz o pastor, daí fazer pastar, conduzir ao pastoreio, mas se trata
de um derivado do substantivo νέμος (némos), “bosque”, conforme
esclarece Pierre Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue
grecque, p. 742. O latim tem nemus, “bosque sagrado”, cujo sentido
inicial deve ter sido clareira, onde se celebrava um culto. Talvez se
pudesse fazer uma aproximação com o sânscrito námah, “inclinação,
homenagem”.
Pois bem, em Nemeia, cidade da Argólida, havia um bosque, onde
Héracles matou o terrível leão.
Também o Leão de Nemeia teria sido criado pela vingativa Hera
ou à mesma emprestado pela deusa-Lua Selene, com a finalidade de
impor a Héracles mais uma tarefa árdua e penosa. Escondido num
bosque, nas proximidades de Nemeia, o monstro devastava toda a
região, devorando-lhe os habitantes e os rebanhos. Como o animal se
entocasse numa caverna com duas saídas, era difícil aproximar-se
dele. O herói atacou-o a flechadas, mas inutilmente, pois seu couro
era invulnerável. Fechando uma das saídas, o filho de Zeus o tonteou
com um golpe de clava e, agarrando-o com seus braços possantes, o
sufocou. Arrancou-lhe a pele, com ela cobriu os ombros, tornando-os
também invulneráveis. Da cabeça da fera Héracles fez um capacete.
Foi durante a caçada ao Leão de Nemeia que se intercala o episódio
de Molorco, um pobre camponês que vivia perto de Nemeia e cujo
filho único havia sido vítima do Leão. Quando Héracles passou pelo
local para combatê-lo, o camponês o acolheu com tal hospitalidade
(talvez já o reconhecesse como um deus), que desejou sacrificar-lhe o
único bem material que possuía, um carneiro. O herói o impediu e
disse-lhe para aguardar trinta dias. Se, nesse prazo, não regressasse
da perigosa missão, poderia considerá-lo morto e fosse então o
animal sacrificado à sua memória. Se, pelo contrário, o visse retornar
vitorioso, que o carneiro fosse oferecido como oblação a Zeus
Salvador. Passados os trinta dias, e não tendo o herói aparecido, o
camponês o julgou morto e se apressou em fazer os preparativos para
o sacrifício. Mas, antes que o mesmo fosse consumado, o filho de
Alcmena apareceu revestido com a pele do Leão. O carneiro foi
oferecido a Zeus Salvador e, no mesmo local do sacrifício, Héracles
instituiu em honra de seu pai Zeus os Jogos Nemeios, que se
realizavam, como os Olímpicos, de quatro em quatro anos. Héracles
levou o corpo esfolado do Leão para Micenas e Euristeu ficou tão
assustado com a bravura e coragem do herói, capaz de liquidar um
monstro tão horrendo, que lhe proibiu, doravante, a entrada na
cidade. Os “espólios” resultantes dos Trabalhos do herói tinham que
ser depositados junto às portas de Micenas.
Para perpetuar a façanha de Héracles, Zeus transformou o Leão de
Nemeia em constelação.
Poderoso e soberano, símbolo solar e extremamente luminoso, o
rei dos animais possui em alto grau as qualidades e os defeitos
inerentes à sua espécie. Encarnação do Poder, da Sabedoria e da
justiça, deixa-se arrastar, em contrapartida, pelo excesso de orgulho e
segurança, que lhe conferem uma imagem de Pai, Senhor, Soberano.
Ofuscado por seu próprio poder, cego pela própria luz, torna-se um
tirano, acreditando-se um protetor. Pode ser maravilhoso, tanto
quanto insuportável: nessa polaridade oscilam suas múltiplas
acepções simbólicas.
Krishna é o leão entre os animais; Buda é o leão dos Shakya; Cristo
é o Leão de Judá; Ali, genro de Maomé, exaltado pelos Xiitas, é o leão
de Alá. O Pseudo-Dionísio Areopagita procura explicar por que a
teologia atribui a certos anjos o aspecto leonino: a forma de leão
traduz a autoridade e a força invencível das santas inteligências; o
esforço soberano, veemente e indomável para imitar a majestade
divina e a capacidade celeste, que é confiada aos anjos, de disfarçar o
mistério de Deus numa augusta obscuridade, escondendo de olhos
indiscretos os sinais de seu relacionamento com a divindade, como o
leão, que, segundo se conta, apaga os vestígios de seus passos, quando
perseguido pelo caçador.
No Apocalipse 5,5, Cristo é o Leão de Judá, que venceu de tal
maneira, que pôde abrir o livro e desatar os sete selos. Em Ezequiel
1,4-15, o carro de Javé aparece com quatro animais, semelhantes a
carvões ardentes, tendo cada um quatro faces, sendo uma de leão.
Símbolo da justiça, o Leão é a garantia do poder material ou
espiritual. É, desse modo, que serve de trono ou montaria a
numerosas divindades, assim como adorna o trono de Salomão, dos
reis da França ou dos bispos medievais. Símbolo do Cristo-Juiz e do
Cristo-Doutor, transporta-lhe o livro sagrado. É nesta mesma
perspectiva que figura como emblema do evangelista São Marcos.
Símbolo, por outro lado, da soberba e da arrogância, da
impetuosidade e do apetite incontrolável, figura uma pulsão social
pervertida: a tendência à dominação despótica, cuja tônica é a
imposição brutal do autoritarismo e da força.
O rugido profundo do leão e sua goela aberta conduzem, no
entanto, a um outro simbolismo, não mais solar e luminoso, mas
sombrio e ctônio. Com esta visão inquietante, o leão se assemelha a
outras divindades infernais que tragam o dia no crepúsculo e o
expelem na aurora. No Egito, leões eram representados com
frequência em duplas, dorso a dorso: cada um deles olhava o
horizonte oposto, um a leste, outro a oeste. Figuravam, assim, os dois
horizontes e o curso do sol, de uma extremidade à outra da terra.
Vigiando, desse modo, o transcurso do dia, representavam o ontem e
o amanhã. Destarte, a viagem infernal do sol o conduzia da goela do
Leão do Ocidente para a do Leão do Oriente, de que renascia cada
manhã, tornando-se os dois leões os agentes fundamentais do
rejuvenescimento do astro. E, de uma forma mais ampla,
configuravam a renovação da força e do vigor que assegura a
alternância do dia e da noite, do esforço e do repouso. Como se pode
observar, expelindo a cada manhã o sol, a visão ctônia do Leão foi
exorcizada e a imagem da morte tornou-se penhor de vida. É
exatamente isto que se observa em outras culturas, em que o leão,
devorando periodicamente o touro, expressa a dualidade antagônica
fundamental do dia e da noite, do verão e do inverno.
Em síntese, traduzindo não apenas o retorno do sol e o
rejuvenescimento das energias cósmicas e biológicas, o leão tornouse o símbolo da ressurreição, merecendo, com isso, figurar nos
túmulos cristãos.
1. RESENDE, Garcia de. Crônica de D. João II. Cap. 114, p. 151-152, ed. de 1798.
2. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 482.
3. JUNG, C.G. Métamorphoses et tendances de la libido. Paris, 1927, p. 174-205.
4. DIEL, Paul. Op. cit., p. 208.
5. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural Um. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1976, p. 233ss.
6. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 104ss.
7. Irmã de Efialtes, irmã das Sereias, porque, nas mais antigas concepções míticas, rodos os
monstros (Sereias, Erínias, Gigantes... e Efialtes é um deles) nasciam nas “profundezas” do
seio de Geia, ou, mais claramente, do inconsciente. Só mais tarde, quando se organizaram as
genealogias, é que se lhes atribuíram pai e mãe, nos moldes das gerações humanas.
8. Vida de Apolodoro, 4,25.
9. DELATTE, A. La musique au tombeau. In: Rev. Archéol. Paris, 1912, t. XXI, p. 318-322.
10. O primeiro elemento de “cauchemar” provém do verbo latino calcare, calcar com os pés,
pisar e o segundo é a raiz germânica mar (o alemão moderno tem Mahr), fantasma noturno,
vampiro; cf. o inglês nightmare, com o mesmo sentido.
11. Na comédia aristofânica As Rãs, v. 289-294, o cauchemar Empusa transforma-se
sucessivamente em burro, em linda mulher e em cão.
12. Inuus, Ino, é um deus, como se pode ver na Eneida, 6,775, identificado com Pã e Fauno, e
sinônimo de Incubus, mas cuja origem e nome são, até o momento, inexplicáveis. Sérvio
Mauro Honorato, gramático latino dos fins do século IV d.C., comentando a passagem
supracitada do poema épico de Vergílio, tentou explicar o “sentido” da palavra: Inuus ab
ineundo passim cum omnibus animalibus, unde et incubus dicitur (Ad Aen., 6,755): “Chamase ‘Ino’, porque se une indistintamente a todos os animais, daí seu nome de íncubo”.
13. Creberrima fama est multique se expertos uel ab eis qui experti essent, de quorum fide
dubitandum non essent, audisse confirmant Siluamos et Panes, quos uulgo incubos uocant,
ímprobos saepe exstitisse mulieribus et earum appetisse ac peregisse concubitum (De Civ.
Dei, 15,23): “Conta-se, com muita insistência e muitos atestam tê-lo experimentado ou
ouvido de testemunhas, de cuja fidelidade não se poderia duvidar, a afirmação de que
também elas tiveram a mesma experiência de que Silvanos e Pãs, vulgarmente
denominados íncubos, se terem apresentado com más intenções a mulheres e com elas
terem consumado a união carnal”.
14. Summa Theol. I, LI, art. 6, n. 3.
15. Etimologicamente, íncubo provém do acusativo singular incubu, de incubus, e este do
verbo incubare, “estar deitado sobre”; súcubo é formado à base do verbo succubare, “estar
deitado sob, por baixo”. Donde, do ponto de vista mítico, íncubo é, stricto sensu, um ser
feminino, que se deita sobre o homem para usufruir dos prazeres do amor e osúcubo, o ser
também feminino, que se deitasobo homem com a mesma finalidade. Lato sensu, no entanto,
e “popularmente” falando, o íncubo seria uma espécie de demônio que se reveste de um
corpo masculino para usufruir dos prazeres do amor com uma mulher adormecida ou
transportada para a assembleia das bruxas, e súcubo, o demônio que toma a forma de
mulher para, deitando-se por baixo do homem, gozar dos mesmos prazeres.
16. CAILLOIS, R. Les démons de midi. In: Revue d’histoire des religions. Paris, 1937, t. 115 e 116.
17. Ao menos no interior do Estado do Rio de Janeiro era obrigatória, entre o povo, a seguinte
“oração”, antes de se dormir: Pesadeira da mão furada, do dedo escarrapachado, nesta casa
tem quatro canto, cada canto tem um santo. Por Nossa Senhora, Pesadeira, desta casa vai
embora.
18. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 119ss.
19. As informações sobre a Esfinge egípcia me foram transmitidas, em boa parte, pelo
egiptólogo e amigo, Prof. Francisco José Neves, a quem agradecemos.
CAPÍTULO XII
Ainda a Primeira Geração Divina:
filhos e descendentes
(Do Rio Nilo a Hécate)
Da união de Oceano e Tétis nasceram não só os rios, de que vamos
destacar o Nilo, Alfeu, Aqueloo e Escamandro, mas também “as três
mil Oceânidas”, dentre as quais falaremos de Métis, Eurínome e
Calipso; as demais, ou possuem muito pouca importância no mito, ou
das mesmas já se deu uma ideia ou se falará mais adiante.
NILO, em grego Νεῖλος (Neîlos). Guérios1dá-lhe como etimologia o
egípcio Nîl, “(rio) azul”; remete ao sânscrito nila, “azul”, e chama a
atenção para o português anil, do árabe anîl, com o mesmo sentido.
Na tradição helênica, Nilo é o deus do Nîl, o grande rio egípcio. Muito
cedo, porém, Nîl passou a fazer parte do mitologema de Io, a jovem
sacerdotisa de Argos, consagrada a Hera, eque Zeus amou, fazendo-a
mãe de Épafo. É a esta mesma Io, que, apesar de metamorfoseada em
vaca, a colérica deusa Hera perseguiu implacavelmente, lançando
contra a mesma um tavão, que só a deixou em paz, quando Io
atravessou o Bósforo (travessia da vaca) e ganhou o Egito. Lá, tocada
por Zeus, deu à luz a Épafo. Este desposou Mênfis, filha do rio Nilo.
Dessa união nasceu Líbia, mãe da raça de Agenor e Belo.
Os gregos representavam o Nilo como um deus que havia fertilizado
o Egito.
ALFEU, em grego Αλφειός (Alpheiós), que provém de alphós,
“branco, alvo, claro”, em latim albus, com o mesmo significado, é o
deus do rio homônimo, que corre no Peloponeso, entre a Élida e a
Arcádia. Diversos mitos relatam as tentativas do deus-rio para
conquistar Ártemis e Aretusa, uma das ninfas que fazia parte do
cortejo da deusa. Como esta lhe resistisse às investidas amorosas,
Alfeu decidiu conquistá-la à força. Um dia em que a irmã de Apolo e
suas ninfas celebravam uma festa junto à foz do rio, este tentou
aproximar-se dela, mas a deusa enlameou o rosto e o deus não
conseguiu reconhecê-la. Uma outra versão conta que Alfeu a
perseguiu até a ilha de Ortígia, que se encontra junto ao porto de
Siracusa. Como também dessa feita nada conseguisse, passou a
acossar uma das ninfas caçadoras de Ártemis, Aretusa. Para segui-la,
tornou-se também caçador, como a ninfa, que fugiu para Siracusa,
refugiando-se em Ortígia. Perseguida mesmo assim pelo impetuoso
“caçador”, foi metamorfoseada em fonte. Por amor, Alfeu misturou
suas águas às da fonte de Aretusa.
AQUELOO, em grego Αχελῷος (Akhelôos), cuja fonte etimológica, o
que é pouco provável, seria o radical *âqwâ, “água”. Rio da Etólia e da
Acarnânia era o mais célebre e o mais venerado de toda a Grécia. Foi
personificado como deus-rio e considerado o mais velho dos “três
mil” filhos de Oceano e Tétis. A princípio, segundo se narra, o rio
chamava-se Forbas, que era, na realidade, um herói tessálio, da raça
dos lápitas, mas um jovem, Aqueloo, ao atravessá-lo, foi ferido por
uma flecha, caindo no rio, que recebeu seu nome. Aqueloo teve
muitosamores: com Melpômene foi pai das Sereias e, depois, de
outros amores seus nasceram várias fontes, como Pirene em Corinto,
Castália em Delfos, Dirce em Tebas... O deus-rio da Etólia está ligado
também ao ciclo de Héracles. Vizinho de Eneu, rei de Cálidon, pediulhe a mão da filha Dejanira. Mas, como deus-rio, Aqueloo podia
metamorfosear-se sobretudo em dragão e touro, o que assustou a
princesa, que preferiu Héracles, que também a desejava por esposa. O
deus-rio não quis abrir mão da jovem, tendo-se, pois, travado um
combate terrível entre os dois pretendentes. Usando de seus poderes,
Aqueloo transformou-se em touro, mas Héracles quebrou-lhe um
dos chifres. O deus-rio deu-se por vencido e cedeu ao herói o direito
sobre a filha de Eneu, mas quis o chifre de volta. Foi-lhe então
oferecido o corno da cabra Amalteia, que despejava em abundância
flores e frutos.
Aqueloo, como todo e qualquer deus, era vingativo. Certa feita,
quatro ninfas sacrificavam aos deuses em suas margens e se
esqueceram de colocá-lo entre as divindades invocadas. Aqueloo
inflou suas águas, transbordou e arrastou as quatro ingratas para o
mar, transformando-as nas ilhas Equínades. A quinta ilha do grupo,
Perimele, era uma jovem que o deus-rio havia amado e que do mesmo
estava grávida. Irritado com Perimele, seu pai Hipódamas, já prestes
a nascer o filho de Aqueloo, lançou-a no rio. Este pediu a Posídon
para transformá-la em ilha, surgindo a quinta Equínade.
No momento em que Héracles lhe quebrou um dos chifres,
Aqueloo, perdendo grande parte de sua força e vigor, deu-se por
vencido.
O chifre, o corno, tem o sentido de grandeza, de superioridade, de
elevação. Simboliza, por isso mesmo, o poder, a autoridade,
características básicas de quem o possui, como os deuses Dioniso,
Apolo Carnio2 e o rei Alexandre Magno, que tomou o emblema de
Amon, o deus-carneiro, chamado, no Livro dos mortos, o Senhor dos
dois cornos. Reis e guerreiros de culturas diversas, nomeadamente os
gauleses, tinham chifres em seus capacetes. É mister levar em conta,
no entanto, que o poder atribuído aos cornos não é apenas de ordem
temporal. Os chifres do carneiro são de caráter solar e os do touro, de
caráter lunar, dado o poder de fecundar do astro e do satélite, e de
ambos os animais que os representam. A associação da lua e do touro
é bem atestada entre os sumérios e os hindus. A lua é designada no
Camboja como um corno perfeito, em sua fase crescente. O
Mahâbhârata fala do corno de Çiva, já que este se identifica com sua
montaria, o touro Nandim. Os chifres dos bovinos são atributo da
Grande Mãe divina. Onde quer que apareçam, seja nas culturas
neolíticas, na iconografia ou ornamentando os ídolos de forma
divina, os cornos marcam a presença da Grande Deusa da fertilidade.
Evocam os sortilégios da força vital, da criação periódica, da vida
inexaurível e da fecundidade, vindo assim a simbolizar,
analogicamente, a majestade e os obséquios do poder real. A exemplo
de Dioniso, os chifres de Alexandre Magno retratam-lhe a autoridade
e o gênio, que são de origem divina, e que deverão assegurar a
prosperidade de seu império. Se o chifre, as mais das vezes, é um
símbolo lunar e portanto feminino, como o é o do touro, pode tornarse também um emblema solar, masculino, como o chifre do carneiro.
Este último aspecto explica, aliás, que o chifre é um símbolo de
virilidade. O grego Κέρας (kéras), o sânscrito linga e o latim cornu
não significam apenas chifre, mas também força, coragem, potência3.
É assim que, por sua força e função natural, o chifre retrata o pênis.
Mas, na medida em que o chifre designa o poder, a este se conjuga a
agressividade. Agni possui cornos imperecíveis, aguçados pelo
próprio Brahma e o chifre acabou por traduzir um poder agressivo
do bem ou do mal. Nesta relação de cornos dos animais com chefe
político ou religioso existe uma intenção clara de apropriação
mágica dos objetos simbólicos. O chifre, o troféu traduzem a
exaltação e a posse da força. O soldado romano, após uma grande
vitória, ornamentava o capacete com um corniculum, isto é, com um
chifrinho.
Na tradição judaico-cristã o chifre simboliza a força e tem o
sentido de raio de luz, de clarão, de relâmpago. Quando Moisés
desceu do Sinai, seu rosto lançava raios, que a Vulgata traduz em seu
sentido próprio por cornos (Ex 34,29-30.35). Este é o motivo por que
Michelangelo Buonarroti, por exemplo, representou Moisés com
chifres, com aspecto de crescente lunar. Os quatro cornos do altar
dos holocaustos colocados no Templo designavam as quatro direções
do espaço, isto é, a extensão ilimitada do poder de Deus. Nos Salmos o
corno simboliza a força de Deus, que é a mais poderosa defesa
daqueles que o invocam:
Eu me abrigo nele, meu rochedo,
meu escudo e meu corno de salvação (Sl 17,2-3).
Pode simbolizar igualmente a força altaneira e agressiva dos
arrogantes, cuja pretensão é extirpada por Javé:
Não levanteis o chifre,
não ergais muito alto vosso chifre,
não faleis, esticando a espinha (Sl 74,6).
Aos justos, pelo contrário, Javé dará força:
Ali farei germinar um chifre para Davi (Sl 131,17).
No que se refere à expressão quebrar os cornos a ou de alguém, que,
sem nenhuma conotação sexual, se popularizou, já se encontra no
Antigo Testamento (Jr 48,25; Lm 2,3; Sl 75,11... ) com o sentido preciso
de destruir o poder, esmagar a soberba, exatamente como na acepção
popular de “abater a insolência, humilhar a arrogância”.
E já que o corno é o símbolo de “força e poder”, por uma simples
associação foi transformado em poderoso elemento apotropaico:
erguendo-se um chifre ou o esqueleto inteiro da cabeça bovina no
alto de uma vara, dominando a plantação, tem-se um excelente
amuleto contra a esterilidade e forças invisíveis e inimigas. O chifre
é altamente benéfico à lavoura, afasta as pragas, é portador de chuva
e protege contra o mau-olhado. Daí o uso de amuletos, imitando
chifres, como defesa contra o mau-olhado.
“Um dos amuletos mais poderosos é uma variante da figa, a
chamada mão cornuda, os dedos indicador e mínimo estendidos
paralelamente, simulando chifres, e os demais dobrados sobre a
palma. É de uso imemorial e os modelos, em ouro e prata, reaparecem
como alfinetes de gravata, barretes, berloques, com refinamentos de
lavor artístico”4.
No que diz respeito à Cornucópia ou Corno da Abundância, é a
mesma, na tradição greco-latina, o símbolo da fecundidade e da
felicidade. Cheia de grãos e de frutos, aberta em cima e não embaixo,
como na arte moderna, é o emblema de Baco, Ceres, Rios,
Abundância, Constância e Fortuna.
Zeus, brincando, quebrou o chifre da cabra Amalteia, que o
aleitava, mas, para compensá-la, prometeu-lhe que este corno se
encheria de todos os frutos, quando ela o desejasse. A Cornucópia é,
pois, o símbolo da profusão gratuita dos dons divinos. Uma variante,
já exposta linhas atrás, faz da Cornucópia o corno da mesma cabra
Amalteia, mas ofertado por Héracles a Aqueloo, cujo chifre fora
quebrado pelo herói, na luta pela posse de Dejanira.
Com o correr do tempo, a Cornucópia tornou-se, mais que o
símbolo, um atributo de felicidade pública, da diligência e da
prudência, que são a fonte da abundância, da esperança e da
equidade.
Numa visão contemporânea, os cornos podem ser considerados
também como uma imagem de divergência, simbolizando, assim, a
ambivalência e forças regressivas: o demônio é apresentado com
chifres e cascos bifurcados. Em contraposição, todavia, podem
representar abertura e iniciação, como no mito do carneiro de velo de
ouro.
Jung, com a perspicácia que lhe é peculiar, percebeu uma outra
ambivalência no simbolismo dos cornos: representam, de um lado,
um princípio ativo e masculino, por sua forma e força de penetração;
de outro, um princípio passivo e feminino, por sua abertura, em
forma de receptáculo. Reunindo os dois na formação da
personalidade, o ser humano se assume integralmente, chegando à
maturidade e à harmonia interior, o que não deixa de ter certa
relação com a polaridade Sol-Lua, há pouco citada.
ESCAMANDRO, em grego Σκάμανδρος (Skámandros), talvez se
relacione com o indo-europeu (*s)qamb, “ondular, curvar-se”, e, nesse
caso, seria “sinônimo etimológico” do também deus-rio e seu aliado,
Símois, em grego Σιμόεις (Simóeis), da raiz indo-europeia *suîmo“sinuoso, contornado”, mas trata-se de mera hipótese.
Escamandro é o mais importante deus-rio da planície troiana. Seu
epíteto de Xanto, “louro, avermelhado” é devido à cor de suas águas,
ou, segundo uma variante, ao fato de as mesmas tingirem de
vermelho o velo das ovelhas que nelas se banhavam. Conta-se ainda
que Afrodite, antes de submeter-se ao julgamento de Páris,
mergulhou seus cabelos no rio; para dar-lhes reflexos dourados. O
nome e a origem do rio Escamandro são popularmente explicados da
seguinte maneira: Héracles, estando em Troia, teve sede e pediu a seu
pai Zeus que lhe indicasse uma fonte. O pai dos deuses e dos homens
fez brotar da terra uma pequena corrente, mas o herói achou-a
insuficiente para mitigar-lhe a sede e, por isso mesmo, cavou a terra
(em grego σκάπτειν, skáptein, é cavar) e encontrou um lençol de
água, que se chamou a fonte de Escamandro. Na Ilíada, já se
comentou (e a repetição visa tão somente a dar unidade ao mito),
farto de receber tantos cadáveres em suas águas, o deus-rio quis lutar
com Aquiles. Transbordou e ameaçou seriamente afogar o filho de
Tétis. Foi necessário a intervenção de Hefesto que, com seu sopro
ígneo, obrigou-o a voltar a seu leito.
Tomados em bloco, os rios têm uma simbologia muito precisa e
significativa. O símbolo do rio, do escoamento das águas, é,
simultaneamente, o da possibilidade universal e do escoamento das
formas, da fertilidade, da morte e da renovação. A corrente figura a
vida e a morte. O rolar das águas para o mar, sua cheia ou a travessia
de um rio para outro confluem, no fundo, para uma bacia comum. A
descida para o Oceano é o reencontro das águas, o retorno à
indiferenciação, o acesso ao Nirvana; a cheia é o retorno à fonte
divina, ao Princípio; a travessia é a luta contra os obstáculos que
separam dois princípios: o mundo fenomenal e o estado
incondicionado, o mundo sensível e o estado de desapego. O rio que
vem do alto da tradição judaica é o das bênçãos e das influências
celestiais. Este rio do alto desce verticalmente, de acordo com o eixo
do mundo, o axis mundi; espraia-se depois, horizontalmente, a partir
do centro, seguindo as quatro direções cardeais, até as extremidades
do mundo: trata-se dos quatro rios do Paraíso terrestre. O rio que
desce do alto é também o Ganges, o rio que purifica e catarsiza,
porque escorre da cabeleira de Çiva. Símbolo das águas superiores, o
Ganges é ainda, enquanto rio purificador, instrumento de liberação.
Na iconografia, o Ganges e o Iamuna são atributos de Varuna, como
senhor das águas. A corrente do rio sagrado hindu é tão axial, que se
denomina a corrente que circula por um tríplice caminho,
percorrendo os três níveis, o celestial, o telúrico e o ctônio.
Para os gregos os rios, filhos de Oceano e, por sua vez, pais das
Ninfas, eram semidivinizados e, por isso mesmo, objetos de culto.
Ofereciam-se-lhes sacrifícios, lançando-se em sua correnteza touros
e cavalos vivos. Dotados de uma grande energia sexual, os rios
legaram ao mito uma enciclopédia de amor e uma constelação de
filhos. Como qualquer potência fertilizante, cujas decisões e atos são
misteriosos, podiam submergir, irrigar, fecundar e inundar; conduzir
a barca em seu bojo macio ou fazê-la soçobrar. O piedoso Hesíodo,
por isso que os rios inspiravam veneração e medo, aconselhava não
atravessá-los, senão após uma prece fervorosa e determinados ritos
de purificação:
Não atravessem teus pés as magníficas correntes dos
rios eternos; antes, com os olhos cravados em seu curso,
faze uma prece e lava tuas mãos nas águas frescas e
límpidas. Quem atravessa um rio antes de purificar
as mãos e lavar a consciência, atrai sobre si a cólera
dos deuses, que, em seguida, o castigarão.
(Trab., 737-741)
Os próprios nomes, alguns em etimologia popular, diga-se de
passagem, por que são designados os rios do Hades, expressam
simbolicamente os tormentos que aguardam os condenados:
Aqueronte o rio das dores; Cocito, o rio dos gemidos e das
lamentações; Estige, o gélido rio dos horrores; Piriflegetonte, o rio das
chamas inextinguíveis; e Lete, o rio do esquecimento (V. Dicionário
mítico-etimológico da mitologia grega).
Em quase todas as culturas sempre existiram rios que
simbolizavam e ainda simbolizam o grande rio cósmico, como o
Ganges na Índia; o Nilo, no Egito; o Severn, na Inglaterra; o Jordão, na
Palestina; o Tibre, na Itália...
Descendo das montanhas, serpeando através das planícies e
perdendo-se nos mares, os rios configuram a existência humana no
seu fluir, na sucessão de ânsias, desejos, sentimentos, paixões e a
multiplicidade de seus desvios. A esse respeito é significativo o
pensamento de Heráclito: Para os que entram nos mesmos rios, outras
e outras são as águas que correm por eles... Dispersam-se e... reúnemse... vêm junto e junto fluem... aproximam-se e afastam-se (Fr. 12,
Diels)5. Platão interpreta este fragmento de Heráclito como “a
absoluta continuidade da mudança em cada uma das coisas”:
Heráclito diz algures que tudo está em mudança e nada permanece
parado e, comparando o que existe à corrente de um rio, diz que não se
poderia penetrar duas vezes no mesmo rio (Crátilo, 402a)6.
Penetrar num rio é para a alma entrar num corpo. A alma seca é
aspirada pelo fogo, a alma úmida é sepultada no corpo. Possuindo
uma existência precária, o corpo flui como a água e cada alma possui
seu corpo particular, esta parte efêmera de sua existência, o seu rio.
Transpostos os rios, vejamos agora as Oceânidas.
MÉTIS, em grego Μῆτις (Mêtis), palavra que é da mesma família que
μέτρον (métron), “medida”. Métis é a “sabedoria, a prudência”. O
sânscrito tem mâti , e o latim, metiri, “medir”, no sentido físico e
moral. Foi a primeira esposa ou amante de Zeus e foi ela quem lhe
deu uma droga, graças à qual Crono devolveu todos os filhos que
havia engolido. Tendo ficado grávida, Úrano e Geia revelaram a Zeus
que Métis teria uma filha e mais tarde um filho, que o destronaria,
como ele próprio fizera com o pai Crono. A conselho de Geia ou da
própria esposa, Zeus a engoliu e no tempo devido nasceu Atená, das
meninges do deus.
EURÍNOME, em grego Εὐρυνόμη (Eurynóme), Εὐρύς (eurýs),
largo, amplo, como o verbo Εὐρύνειν (eurýnein), ampliar, dilatar,
νόμος (nómos), lei, direito, donde Eurínome significa “a que tem ou
gere amplos direitos”, a que comanda amplamente. Anteriormente a
Crono, reinava com Ofíon (uma espécie de monstro-serpente) sobre
os Titãs nas encostas do monte Olimpo. Tendo assumido o poder,
Crono lançou o casal no Tártaro ou, conforme uma tradição talvez
mais antiga, Ofíon e a esposa se refugiaram no mar, onde, com Tétis,
Eurínome ajudou a acolher Hefesto, que havia sido precipitado do
céu. Amada por Zeus, foi mãe das Cárites: Aglaia, Eufrósina e Talia.
Eurínome possuía um templo muito antigo e famoso nos arredores
de Figalia, na Arcádia. O santuário ficava no meio de um bosque de
ciprestes e a estátua que representava Eurínome estampava a figura
de mulher até as cadeiras, mas daí para baixo terminava em peixe.
CÁRITES, em grego Χάριτες (Khárites), cujo singular é χάρις
(kháris), e o sentido é “que brilha, que alegra”, do verbo χαίρειν
(khaírein), “alegrar-se”, daí o significado de cada uma delas: Aglaia,
brilho, beleza; Eufrósina, alegria, prazer; Talia, propriamente
rebento, renovo, abundância. Em princípio, as Cárites são divindades
da beleza, da alegria de viver e é bem possível que, originariamente,
tenham sido deusas da vegetação. São representadas quase sempre
nuas ou cobertas apenas com leves tecidos ou véus flutuantes. São
jovens, lindas, esbeltas e seguram-se normalmente pelos ombros:
duas olham numa direção, mas a do meio olha na direção oposta. Sua
função principal é alegrar a vida, os homens e os deuses. Habitam o
Olimpo, em companhia das Musas e com estas formam,
frequentemente, coros. Fazem parte do cortejo de Afrodite, Eros e
Dioniso. Exercem influência benéfica sobre os trabalhos intelectuais
e as obras de arte e, por isso mesmo, acompanham a deusa Atená,
protetora inconteste dos trabalhos femininos e da atividade
intelectual. Os latinos chamam-nas Gratiae, as Graças.
Já que se falou em latinos, é bom lembrar que o grego Χάρις
(kháris) nada tem a ver, nem etimológica nem semanticamente, com
o latim caritas,-tatis, de cujo acusativo caritate nos veio caridade.
Caritas (a grafia charitas é simplesmente absurda) significa “preço
alto, carestia”. Na medida em que caritas traduziu o grego αγάπη
(agápe), afeição, estima, é que, na linguagem cristã, passou a
significar “afeto, estima, ternura, caridade”.
CALIPSO, em grego Καλυψώ (Kalypsó), do verbo Καλύπτειν
(kalýptein) , “cobrir, esconder”, donde “a que esconde”. Há duas
personagens míticas com este nome: a Oceânida Calipso, de que fala
Hesíodo, Teog., 359, e que a denomina ἱμερόεσσα(himeróessa), isto é,
“a que desperta o desejo”, e a Ninfa Calipso, “a que esconde”, no caso a
Ulisses, e que mereceu ser cantada pelo gênio de Homero, Odiss., VII,
254-266. Se a Oceânida não tem um mito próprio, a Ninfa Calipso o
possui. Já que se está com a mão na massa, vamos aproveitar a
ocasião para relatá-lo.
Calipso é, pois, uma ninfa, segundo uns, filha de Atlas e de Plêione;
segundo outros, de Hélio e de Perseida, o que a faria irmã de Eetes e
de Circe. Vivia na ilha de Ogígia que os mitógrafos localizam no
Mediterrâneo ocidental, em frente a Gibraltar. A lindíssima ninfa
acolheu o náufrago Ulisses e por ele se apaixonou. Habitava uma
gruta profunda com amplos salões, que se abriam para jardins
naturais, um bosque sagrado com grandes árvores e fontes que
serpeavam por entre a relva. Em todas as dependências e em plena
natureza, ninfas, que lhe faziam companhia e a ajudavam na arte de
fiar e tecer, trabalhavam cantando. A Odisseia conta o quanto
Calipso amava a Ulisses. Reteve-o durante sete longos anos
oferecendo-lhe em vão a imortalidade. O herói, desejoso de ver ao
menos o fumo que se erguia de sua terra natal, não se deixou seduzir.
Ítaca, sua pátria, Telêmaco, seu filho, Penélope, sua esposa, e Ulisses
media na saudade a saudade de quanto lhes queria...
Dadas as súplicas de Atená em favor de seu protegido, Zeus enviou
Hermes à ilha com ordens a Calipso para que libertasse Ulisses e o
deixasse partir7. Como derradeira homenagem, a ninfa lhe deu
madeira para fabricar uma jangada, provisões para a viagem
indicou-lhe os astros que o guiariam.
Tradições posteriores dão a Ulisses e Calipso um filho chamado
Latino, ou ainda Áuson, epônimo de Ausônia, nome antigo e poético
da Itália. Outras atribuem-lhes não um, mas dois filhos: Nausítoo e
Nausínoo, o que, evidentemente, lembra ναῦς (naûs), navio, barco.
Uma vez que Hiperíon e Teia muito pouco representam para o
mito e que seus filhos Hélio e Selene serão estudados bem mais
adiante, resta-nos Eos, que será focalizada a seguir, uma vez que
também Crio e Euríbia e bem assim seus filhos Astreu, Palante e
Perses nenhuma importância possuem na mitologia.
De Astreu e Eos nasceram os ventos Zéfiro, Bóreas e Noto.
EOS, em grego Ἠώς (Eós) é a Aurora personificada, adorada por
todos os povos indo-europeus. Etimologicamente se prende à raiz
*awes, “brilhar”, sânscrito uÓas, “aurora”, dórico ἀώς (aós), latim
aurôra, alemão Ost, “leste”, onde nasce a luz.
Aurora é representada como a deusa de dedos cor-de-rosa, como
lhe chama Homero, ῤοδοδάκτυλος ἠώς (rhododáktylos eós), a
aurora de dedos cor-de-rosa. Como tal, sua principal função é abrir
as portas do céu ao carro do Sol, descerrando as pálpebras do dia.
Todo o seu mito é um tecido de amores. A princípio, unida a Ares,
provocou os ciumes de Afrodite, que se vingou, inspirando-lhe uma
paixão louca e eternamente insatisfeita por heróis e simples mortais.
O primeiro desses grandes amores foi o filho de Posídon, o gigante
Oríon, por ela raptado e levado para a ilha de Delos, aliás com grande
desgosto dos deuses. Tendo o filho de Posídon tentado violentar
Ártemis, esta enviou contra ele um escorpião que o picou no
calcanhar, causando-lhe morte instantânea.
Pelo serviço prestado a Ártemis, o escorpião foi transformado em
constelação, tendo aliás Oríon sorte análoga. Raptou, em seguida,
Céfalo, filho de Dêion ou de Hermes, e levou-o para a Síria. Como
Céfalo não lhe correspondesse ao amor e a tivesse abandonado, Eos
inspirou-lhe dúvidas cruéis acerca da fidelidade da esposa Prócris,
ciumes que, por sinal, se tornaram recíprocos e levaram a linda
Prócris a terminar seus dias tragicamente. Seu terceiro amor foi
Titono, filho de Ilo e Plácia ou Leucipe, mas, em todo caso, de raça
troiana. Titono foi levado para a Etiópia, o país do Sol, nos velhos
mitos. Deu-lhe dois filhos, Emátion e Mêmnon. Este último, seu filho
preferido, reinou sobre os Etíopes, mas acabou sendo morto por
Aquiles, na Guerra de Troia. Eos havia pedido e obtido de Zeus a
imortalidade para Titono. Ao formular o pedido, porém, se esqueceu
de solicitar para o mesmo a juventude eterna e a beleza. Com o
tempo, o outrora belo e vigoroso Titono chegou à mais lamentável
decrepitude. A deusa, aborrecida, trancou-o em seu palácio, onde o
“imortal” ancião levava uma vida miserável. À força de envelhecer,
Titono perdeu seu aspecto humano e foi metamorfoseado em uma
cigarra inteiramente dessecada.
De Eos e Astreu, como se viu, nasceram os ventos Zéfiro, Bóreas e
Noto. Para o mito, o único importante é o segundo.
BÓREAS, em grego Βορέας (Boréas). É possível que Bóreas
signifique “vento da montanha”, em indo-europeu *gworeiâs,
sânscrito giri, “montanha”, já que o mesmo sopra dos montes da
Tessália e dos Bálcãs. Personificado, Bóreas é o deus do Vento do
Norte. Seu habitat é a Trácia, país frio por excelência. É representado
ordinariamente como um demônio alado, barbudo, de grande vigor
físico. Aparece coberto com uma túnica muito curta e plissada. Da
raça dos Titãs, personifica as forças elementares da natureza. Entre
muitos de seus atos violentos, aponta-se o rapto de Oritia, filha do rei
de Atenas, Erecteu, quando se divertia com suas amigas às margens
do rio Ilisso. Levou-a para a Trácia, onde a fez mãe dos boréadas,
nome por que são conhecidos sobretudo os dois filhos gêmeos de
Bóreas, Cálais e Zetes. Alados e impetuosos, desempenharam papel
importante na expedição dos Argonautas, como se viu, perseguindo
as Harpias, que não deixavam em paz o rei Fineu. Sob a forma de
cavalo, Bóreas engendrou com as éguas do rei de Atenas, Erictônio,
doze potros. Bóreas e seus filhos eram tão ligeiros, que, correndo
sobre um campo de trigo, nem mesmo se curvavam as espigas sob
seu peso e, quando percorriam em alta velocidade a superfície do
mar, as águas não se agitavam.
Com uma Erínia e, posteriormente, com uma das Harpias, Bóreas
foi pai de outros cavalos velocíssimos.
O simbolismo do vento é complexo e se reveste de múltiplas
facetas. De um lado, por sua própria agitação, figura a instabilidade,
a inconstância, a vaidade. Tratando-se de uma força elementar, o
vento é cego e violento. De outro lado, é sinônimo de sopro, do
espírito, do influxo espiritual de origem divina. Em Gn 1,2, o Espírito
de Deus que se movia sobre as águas primordiais é denominado vento,
em gregoπνεῦμα (pnêuma), “sopro”, “sopro do vento”, em hebraico
rûa , em latim spiritus, com o mesmo sentido. Nos Salmos, os ventos
são muitas vezes considerados como mensageiros divinos,
equivalentes dos anjos. O vento dá até mesmo seu nome ao divino
Espírito Santo. Foi um vento, que, soprando com ímpeto, trouxe aos
Apóstolos, sob a forma de língua de fogo, a terceira pessoa da
Santíssima Trindade (At 2,2-3).
Em textos mais poéticos, o vento não raro é apresentado como o
sopro da boca de Javé (Os 13,15; Is 11,15; Jó 37,10... ). Foi o sopro de Deus
quem ordenou o tohu wa bohu (a desordem e o vazio) primitivo e
animou o primeiro homem. Como instrumentos do poder divino, os
ventos vivificam, punem, ensinam. Como manifestação do divino,
traduzem-lhe as emoções, das mais ternas à ira mais violenta e
impetuosa. É bom, aliás, não esquecer que alma em grego é ψυχή
(psykhé), “sopro”. Na simbólica hindu o vento Vâyu é o sopro
cósmico e o verbo, o soberano do domínio sutil, o intermediário entre
o Céu e a Terra. Vâyu penetra, quebra e purifica. Nas tradições
cosmogônicas hindus das Leis de Manu o vento nasceu do espírito e
criou a luz. Nas tradições avésticas da Pérsia antiga, o vento é o
suporte do mundo e o elemento regulador do equilíbrio cósmico e
moral: a primeira de todas as criaturas foi uma gota de água; Ormazd
criou, em seguida, o fogo flamejante e conferiu-lhe um brilho que
provém das luzes infinitas. Produziu, finalmente, o vento sob a forma
de um jovem de quinze anos, que sustenta a água, as plantas, o rebanho
e todos os seres.
Para os gregos os ventos eram divindades inquietas e turbulentas, a
custo guardados em cavernas profundas nas ilhas Eólias. Além do
rei e deus dos mesmos, Éolo, distinguiam-se quatro tipos de ventos: os
do Norte (Aquilão e Bóreas); vento do Sul (Austro); vento da manhã e
do Leste (Euro) e o da tarde e Oeste (Zéfiro).
O denominado vento druídico simboliza um aspecto do poder dos
próprios druidas sobre os elementos e é tido como um veículo
mágico, um sopro.
Nos sonhos o vento anuncia um acontecimento que pode ser de
grande importância: deverá surgir uma transformação. As energias
espirituais são simbolizadas por uma grande luz e, o que menos se
sabe, pelo vento. Quando se aproxima uma grande tempestade é
possível diagnosticar um importante movimento de espíritos. A
divindade tanto pode se manifestar no doce murmúrio dos ventos
quanto nas borrascas e nas tempestades. Os orientais compreendem
bem a significação do espaço vazio, onde sopra o vento, que é para
eles, paradoxalmente, um poderoso símbolo de energia.
Palante uniu-se a Estige e nasceram Zelo (Ciume), Nique (Vitória),
Bia (Força) e Crato (Poder).
Para complementar a explicação dada no capítulo VIII, nota 109,
vamos expor o mito de Estige.
ESTIGE, em grego Στύξ (Stýks), relacionado com o verbo στυμεῖν
(stygueîn), odiar, ter horror, detestar. Na Teogonia, Estige é a mais
velha das filhas de Oceano e Tétis, uma Oceânida, por conseguinte.
Quando da luta de Zeus contra os Gigantes, o pai dos deuses e dos
homens pediu o auxílio de todos os imortais e a primeira a chegar foi
Estige que, com seus filhos, muito contribuiu para a vitória final do
Olímpico. Para recompensá-la, Zeus concedeu que ela fosse a
garantia dos juramentos solenes pronunciados pelos deuses. Dava-se
o nome de Estige a uma fonte da Arcádia, a qual nascia num alto
rochedo e perdia-se nas entranhas da terra. Suas águas, dizia-se,
tinham propriedades mágicas: eram um veneno mortal para homens
e animais; corroíam e destruíam tudo que nelas fosse lançado: ferro,
metais e louça. As águas do rio infernal Estige, formado pelas águas
da fonte do mesmo nome, tinham igualmente propriedades
extraordinárias. Foi ali que Tétis mergulhou Aquiles para torná-lo
invulnerável. E era sobretudo por essas águas que os deuses faziam
seus juramentos. Quando um dos imortais queria se ligar por um
juramento solene, Zeus enviava ao Hades a mensageira Íris, que
trazia uma porção da água fatídica, para que servisse de testemunha
ao juramento. O perjúrio, no caso, era considerado como falta muito
grave e séria e a punição era terrível: durante um ano o deus
criminoso era privado de sopro, de ar, de espírito e lhe eram negados
o néctar e a ambrosia. Mas não era apenas este o castigo: nos nove
anos subsequentes o culpado permanecia afastado do convívio dos
Imortais e não podia participar de suas assembleias e banquetes. Só
se reintegrava na posse de suas prerrogativas no décimo ano. Essa
água terrível, ao que parece, era considerada como o décimo braço do
Oceano, o rio original: os nove restantes formam as nove espirais
com que o rio infernal cerca o disco terrestre. Vergílio, descrevendo o
Estige, fala das nove espirais que circundam o reino dos mortos.
Das quatro abstrações, que nasceram de Estige e Palante, Bia, a
Força, a Violência, é a mais atuante: na Gigantomaquia encontramola lutando ao lado do Olímpico e, no encadeamento de Prometeu,
novamente ela surge juntamente com Crato, o Poder. As quatro
fazem parte constante do cortejo de Zeus.
De Ceos e Febe nasceram Leto e Astéria.
FEBE, em grego Φοίβη (Phoíbe), etimologicamente, a “brilhante”,
como feminino de Φοῖβος (Phoîbos), o “brilhante”, Febo, como
epíteto de Apolo, não apenas por ser este o sol, mas sobretudo porque
“purifica”, uma vez que, tanto Phoîbos como Phoíbe relacionam-se
com o verbo φοιβάζειν (phoibádzein), “purificar, limpar”. Atribuise, por vezes, a Febe a fundação do Oráculo de Delfos, enquanto
companheira de Têmis, o qual ela teria dado de presente a seu neto
Apolo.
Como de Leto se falará no mitologema de Apolo, seu filho,
passemos diretamente a Astéria.
ASTÉRIA, em grego Αστερία (Astería), que se prende
etimologicamente a ἀστήρ (astér), “estrela, estrela, cadente,
meteoro”, em latim stella, com igual sentido. Amada por Zeus,
transformou-se em codorniz. Perseguida mesmo assim pelo pai dos
deuses e dos homens, lançou-se ao mar, onde se tornou uma ilha,
com o nome de Ortígia, a ilha das Codornizes, uma vez que, em
grego, ὄρτυξ (órtyks) é codorniz, tanto quanto o sânscrito vartakah.
Mais tarde a ilha se chamou Delos, que se prende a δήλος (dêlos),
“claro, brilhante”, porque lá nasceram o Sol (Apolo) e a Lua
(Ártemis).
Finalmente, da união de Perses com Astéria nasceu Hécate.
HÉCATE, em grego Ἑκάτη (Hekáte), que é o feminino ἔκατος
(hékatos), isto é, que “fere à distância”, que “age como lhe apraz”,
qualidade específica da grande deusa, sobre que se apoia
especialmente Hesíodo na Teogonia, 425-435.
Deusa aparentada a Ártemis, não possui um mito próprio.
Profundamente misteriosa, age mais em função de seus atributos.
Embora descenda dos Titãs e seja portanto independente dos deuses
olímpicos, Zeus, todavia, lhe conservou os antigos privilégios e até
mesmo os aumentou. Em princípio, uma deusa benéfica, que
derrama sobre os homens os seus favores, concedendo-lhes a
prosperidade material, o dom da eloquência nas assembleias, a
vitória nas batalhas e nos jogos, a abundância de peixes aos
pescadores. Faz prosperar o rebanho ou o aniquila, a seu bel-prazer. É
a deusa nutriz da juventude, em pé de igualdade com Apolo e
Ártemis. Eis aí um retrato de Hécate na época mais antiga. Aos
poucos, todavia, Hécate foi adquirindo características, atributos e
especialização bem diferentes. Deusa ctônia, passou a ser
considerada como divindade que preside à magia e aos
encantamentos. Ligada ao mundo das sombras, aparece aos
feiticeiros e às bruxas com uma tocha em cada mão ou ainda em
forma de diferentes animais, como égua, loba, cadela. Tida e havida
como a inventora da magia, o mito acabou por fazê-la penetrar na
família da bruxaria por excelência: Eetes, Circe e Medeia. É assim que
tradições tardias fizeram-na mãe de Circe e, por conseguinte, tia de
Medeia. Como mágica, Hécate preside às encruzilhadas, local
consagrado aos sortilégios. Não raro suas estátuas representam-na
sob a forma de mulher com três corpos e três cabeças.
Hécate é a deusa dos mortos, não como Perséfone, mas como
divindade que preside às aparições de fantasmas e senhora dos
malefícios. Empunhando duas tochas e seguida de éguas, lobas e
cadelas é a senhora todo-poderosa invocada pelas bruxas. Seu poder
terrível manifesta-se particularmente à noite, à luz bruxuleante da
Lua, com a qual se identifica. Deusa lunar e ctônia, está ligada aos
ritos da fertilidade. Sua polaridade, no entanto, já foi acentuada:
divindade benfazeja, preside à germinação e ao parto, protege a
navegação, prodigaliza prosperidade, concede a eloquência, a vitória
e guia para os caminhos órficos da purificação; em contrapartida,
possui um aspecto terrível e infernal: é a deusa dos espectros e dos
terrores noturnos, dos fantasmas e dos monstros apavorantes.
Mágica por excelência, é a senhora da bruxaria. Só se pode esconjurála por meio de encantamentos, filtros de amor ou de morte. Sua
representação com três corpos e três cabeças presta-se a
interpretações simbólicas de diferentes níveis. Deusa da Lua pode
representar-lhe três fases da evolução: crescente, minguante e lua
nova, em correlação com as três fases da evolução vital. Deusa ctônia,
ela reúne os três níveis: o infernal, o telúrico e o celeste e, por isso
mesmo, é cultuada nas encruzilhadas, porque cada decisão a se
tomar num trívio postula não apenas uma direção horizontal na
superfície da terra, mas antes e especialmente uma direção vertical
para um ou para outro dos níveis de vida escolhidos.
A grande mágica das manifestações noturnas simbolizaria ainda o
inconsciente, onde se agitam monstros, espectros e fantasmas. De um
lado, o inferno vivo do psiquismo, de outro uma imensa reserva de
energias que se devem ordenar, como o caos se ordenou em cosmo
pela força do espírito.
1. GUÉRIOS, Mansur. Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. Curitiba: Indústria
Gráfica Cruzeiro, 1949, verbete.
2. Carnio, em grego Καρνεῖος (Karneîos), é um epíteto de Apolo, enquanto deus dos
rebanhos e das colheitas, particularmente entre os povos dórios.
3. No tocante a corno, como epíteto de marido enganado pela mulher (pôr cornos, pôr
chifres, cornear, chifrar), que Luís da Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro, p.
204, verbete Cornos) acha inexplicável, talvez se pudesse esclarecer como uma antífrase,
uma lítotes, uma afirmação por meio da negação do contrário: já que o chifre é símbolo de
potência, “pôr chifres” é negar, de certa forma, à vítima tal virtude. De qualquer modo, o
epíteto é de uso muito antigo. Na Grécia Κέρατα ποεῖν τινι (kérata poieîn tini), “fazer
chifres em alguém”, pôr chifres no marido, já era empregado, como em Artemidoro (séc. II
d.C.), Onirocriticon libri V (Cinco livros sobre a interpretação dos sonhos), 2,11. A coisa
depois se generalizou. Informa o mesmo Luís da Câmara Cascudo (op. cit., p. 204s) que “nos
meados do séc. XIV, quando o rei Fernando de Portugal arrebatou dona Leonor Teles ao
marido, este, João Lourenço da Cunha, fugiu para Espanha e por lá viveu, ostentando no
chapéu um corno dourado, singular identificação do símbolo...” No séc. XVIII, D. José, rei de
Portugal, pela lei de 15 de março de 1751, mandava abrir rigoroso inquérito pelo hábito
ridículo de se colocarem chifres às portas das pessoas casadas.
4. CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., p. 204s.
5. KIRK, G.S. & RAVEN, J.E. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1982, 2. ed., p. 198 [Tradução de C.A. Louro Fonseca].
6. lbid., p. 199.
7. François de Salignac de La Mothe-Fénelon, em suas Les Aventures de Télémaque, lhe
recolheu os suspiros vinte e cinco séculos depois: “Calypso ne pouvait se consoler du départ
d’Ulysse. Dans sa douleur, elle se trouvait malheureuse d’être immortelle”.
CAPÍTULO XIII
A Segunda Geração Divina:
Crono e sua descendência
1
Consumada a mutilação de Úrano e seu afastamento do governo
do mundo, Crono, tendo lançado no Tártaro os Ciclopes e os
Hecatonquiros, apoderou-se do poder, casando-se com sua Irmã Reia.
Desse enlace nasceram Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon e Zeus.
Crono
Reia
Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon, [Zeus
Como já se falou de Crono, ao menos em parte, e de Reia no
capítulo X, abordaremos agora seus filhos, seis grandes deuses
olímpicos.
HÉSTIA, em grego Ἑστία (Hestía), deusa da lareira. Da mesma
família etimológica que o latim Vesta (Vesta), cuja fonte é o indoeuropeu *wes, “queimar”, em grego εὔειν (heúein), “passar pelo fogo,
consumir”. Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou,
mais precisamente, é a personificação da lareira colocada no centro
do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da
habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira
como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora
Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto
pré-helênico do lar.
Se bem que muito cortejada por Apolo e Posídon, obteve de Zeus a
prerrogativa de guardar para sempre a virgindade. Foi
ininterruptamente cumulada de honras excepcionais, não só por
parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades, tornando-se a
única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e nos
templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num
vaivém constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo.
Assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens,
Héstia é o centro religioso do lar dos deuses. Essa imobilidade,
todavia, fez que a deusa da lareira não desempenhasse papel algum
no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um princípio
abstrato, a Ideia da Lareira, do que como uma divindade pessoal, o
que explica não ser a grande deusa necessariamente representada
por imagem, uma vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la.
Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de
qualquer ato ou acontecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida
nutriente, sem ser ela própria fecundante. É preciso observar, além
do mais, que toda realização, toda prosperidade, toda vitória são
colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia, como Vesta e
suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através
do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou
até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeandolhes êxito e proteção.
Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de
seu simbolismo está sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma
importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as “chamas” do
nível telúrico, do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum,
o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da penetração ou
absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto do
próprio Agni.
Consoante o I Ching, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao
verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora
simboliza as paixões, particularmente o amor e o ódio, ora configura
o espírito ou o conhecimento intuitivo. A significação sobrenatural
se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito divino:
Brahma é idêntico ao fogo (Gîtâ, 4,25).
O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se
desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do
fogo novo é celebrada na noite de Páscoa. O divino Espírito Santo
desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo. Tanto no
Antigo quanto no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e
limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro,
destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é
apresentado como instrumento de punição e juízo de Deus (Sl 50,3;
Mc 9,49; Tg 5,3; Ap 8,9). Cristo fala de um fogo que não se apagará
(Mt 5,32; 18,8; 25,41). Deus será como um fogo, distinguindo o bom do
menos bom (Sl 17,3; 1Cor 3,15). Sua força, que tudo penetra, purifica
também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de agir como
fogo (Mt 3,11).
Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do
condicionamento humano, uma verdadeira apoteose, como a de
Héracles, que, para se despir do invólucro mortal, subiu a uma
fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmos taoístas,
entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não
queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica,
fogo este que é simbolizado pela Salamandra1.
O fogo sacrifical do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo
interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante,
iluminação e destruição do invólucro carnal. O aspecto destruidor do
fogo comporta igualmente uma relação negativa e o domínio do fogo
é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a forja: seu
fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de
demiurgo e de demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, “o
que leva a luz celeste”, precipitado nas fornalhas do inferno: um fogo
que brilha sem consumir, mas exclui para sempre toda e qualquer
possibilidade de regeneração.
Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de
purificação, as mais das vezes, ritos de passagem, são característicos
de culturas agrárias. Configuram certamente os incêndios dos
campos, que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza
viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes
fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de
epidemias. O grande político e excepcional escritor Caio Júlio César
(100-44 a.C.) nos fala, no B. Gal., 6,16,9, de gigantescos manequins,
confeccionados de vime, que os mesmos druidas enchiam de homens
e animais e transformavam em fogueira.
O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a
seu princípio contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh
do mito maia, após sua incineração, renascem de um rio, onde suas
cinzas foram lançadas2.
Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, MaiaQuiché, efetuando uma nova diferenciação dos princípios
antagônicos, fogo e água, que lhes presidiram à morte e ao
renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é complementar
da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos
iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de
dilúvios, grandes secas ou incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre,
ctônio, representa a força profunda que permite a complexio
oppositorum, a união dos contrários, a ascensão, a sublimação da
água em nuvens, isto é, a transformação da água terrestre, água
impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o motor,
o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o
fogo ctônio configura a sabedoria humana e o urânico, a sabedoria
divina.
Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela
está intimamente ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo
pela fricção, pelo atrito, pelo vaivém, imagem do ato sexual,
enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à aquisição do
mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e
opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a
“progenitura” de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma,
o caráter ambivalente do fogo: pode ser tanto de origem divina
quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo
tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas.
Para Gastou Bachelard o “amor é a primeira hipótese científica
para a reprodução objetiva do fogo e antes de ser o mesmo filho da
madeira, é filho do homem... O método de fricção surge
naturalmente. É espontâneo, porque o homem tem acesso a ele por
sua própria natureza. Na verdade, o fogo foi surpreendido em nós,
antes de ser arrancado do céu...”3Há, consoante o mesmo Bachelard,
duas direções ou duas constelações psíquicas na simbologia do fogo,
segundo é obtido por percussão ou por atrito. No primeiro caso, está
intimamente ligado ao relâmpago e à flecha e possui um valor de
purificação e iluminação, convertendo-se no prolongamento ígneo
da luz. Diga-se, de caminho, que puro e fogo em sânscrito se designam
pela mesma palavra: agnih, que é, aliás, um empréstimo do hitita
Agnis, em latim ignis, fogo. A esse fogo espiritualizante se prendem
os ritos de iniciação, o sol, os fogos de elevação e sublimação, em
síntese, todo e qualquer fogo que visa à purificação e à luz. Opõe-se,
nesse sentido, ao fogo sexual, obtido por fricção, como a chama
purificadora se contrapõe ao centro genital da lareira matrilinear,
como a exaltação da luz celeste se distingue do ritual de fecundidade
agrária. Assim orientado, o simbolismo do fogo dimensiona a etapa
mais importante da intelectualização do cosmo e afasta mais e mais
o homem de sua condição animal. Prolongando ainda o símbolo
nessa mesma direção, o fogo seria o deus vivo e pensante, que nas
religiões arianas da Ásia recebeu o nome de Agni e Ator.
Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de
purificação e regeneração, mas o é igualmente de destruição. Temos
aí nova inversão do símbolo. Purificadora e regeneradora a água
também o é. Mas o fogo se distingue da água na medida em que ele
configura a purificação pela compreensão, até sua forma mais
espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do
desejo até sua forma mais sublime, a bondade.
Já falamos acerca de Hera, no capítulo V, como deusa minoica,
associada a Zeus, e como deusa da fertilidade, após o sincretismo
creto-micênico. No capítulo VII voltamos a enfocá-la, desta feita já
como a rabujenta, irritadiça e vingativa esposa de Zeus, mas tudo
dentro de uma perspectiva do poeta da Ilíada. Vamos, agora,
completar-lhe, em parte, o mito, porque voltaremos a ela, quando se
analisar o longo mitologema de Zeus.
2
HERA, em grego Ἥρα (Héra), nome de etimologia controvertida.
Talvez seja da mesma família etimológica que Ἔρως (Héros), herói,
como designativo dos mortos divinizados e protetores e, nesse caso,
Hera significaria a protetora, a guardiã. A base seria o indo-europeu
*serua, da raiz *ser-, “guardar”, donde o latim seruare, “conservar,
velar sobre”.
Como todas as suas irmãs e irmãos, exceto Zeus, foi engolida por
Crono, mas salva pelo embuste de Métis e os combates vitoriosos de
seu futuro esposo.
Durante todo o tempo em que Zeus lutava contra os Titãs, Reia
entregou-a aos cuidados de Oceano e Tétis, que a criaram nas
extremidades do mundo, o que irá provocar para sempre a gratidão
da filha de Crono. Existem outras tradições que lhe atribuem a
educação às Horas, ao herói Têmeno, filho de Pelasgo, ou ainda às
filhas de Astérion, rei de Creta. Após seu triunfo definitivo, Zeus a
desposou, em núpcias soleníssimas. Era, na expressão de Hesíodo, a
terceira esposa (a primeira foi Métis e a segunda, Têmis), à qual o
deus se uniu em “justas núpcias”. Conta-se, todavia, que Zeus e Hera
se amavam há muito tempo e que se haviam unido secretamente,
quando o deus Crono ainda reinava sobre os Titãs. O local, onde se
realizaram essas “justas núpcias” varia muito, consoante as tradições.
A mais antiga e a mais “canônica” dessas variantes coloca-as no
Jardim das Hespérides, que é, em si mesmo, o símbolo mítico da
fecundidade, no seio de uma eterna primavera. Os mitógrafos
sempre acentuaram, aliás, que os pomos de ouro do Jardim das
Hespérides foram o presente de núpcias que Geia ofereceu a Hera e
esta os achou tão belos, que os plantou em “seu Jardim”, nas
extremidades do Oceano. Homero, na Ilíada, desloca o casamento
divino do Jardim das Hespérides para os píncaros do monte Ida, na
Frígia. Outras tradições fazem-no realizar-se na Eubeia, por onde o
casal passou, quando veio de Creta. Em diversas regiões da Grécia,
além disso, celebravam-se festas para comemorar as bodas sagradas
do par divino do Olimpo. Ornamentava-se a estátua da deusa com a
indumentária de uma jovem noiva e conduziam-na em procissão
pela cidade até um santuário, onde era preparado um leito nupcial. O
idealizador de tal cerimônia teria sido o herói beócio Alalcômenes4.
Como legítima esposa do pai dos deuses e dos homens, Hera é a
protetora das esposas, do amor legítimo. A deusa, no entanto, sempre
foi retratada como ciumenta, vingativa e violenta. Continuamente
irritada contra o marido, por suas infidelidades, moveu perseguição
tenaz contra suas amantes e filhos adulterinos. Héracles foi uma de
suas vítimas prediletas. Foi ela a responsável pela imposição ao herói
dos célebres Doze Trabalhos. Perseguiu-o, sem tréguas, até a apoteose
final do filho de Alcmena. Por causa de Héracles, aliás, Zeus, certa
vez a puniu exemplarmente. Quando o herói regressava de Troia,
após tomá-la, Hera suscitou contra seu navio uma violenta
tempestade. Irritado, Zeus suspendeu-a de uma nuvem, de cabeça
para baixo, amarrada com uma corrente de ouro e uma bigorna em
cada pé. Foi por tentar libertar a mãe de tão incômoda posição que
Hefesto foi lançado no vazio pelo pai. Perseguiu implacavelmente Io,
mesmo metamorfoseada em vaca, lançando contra ela um
moscardo, que a deixava como louca. Mandou que os Curetes,
demônios do cortejo de Zeus, fizessem desaparecer Épafo, filho de
sua rival Io. Provocou a morte trágica de Sêmele, que estava grávida
de Zeus. Tentou quanto pôde impedir o nascimento de Apolo e
Ártemis, filhos de seu esposo com Leto. Enlouqueceu Átamas e Ino,
por terem criado a Dioniso, filho de Sêmele. Aconselhou Ártemis a
matar a ninfa Calisto, que Zeus seduzira, disfarçando-se na própria
Ártemis ou em Apolo, segundo outros, porque a ninfa, por ser do
cortejo de Ártemis, tinha que guardar a todo custo sua virgindade.
Zeus, depois, a transformou na constelação da Ursa Maior, porque,
conforme algumas fontes, Ártemis, ao vê-la grávida, a
metamorfoseou em ursa e a liquidou a flechadas. Outros afirmam
que tal metamorfose se deveu à cólera de Hera ou a uma precaução
do próprio Zeus, para subtraí-la à vingança da esposa.
Para escapar da vigilância atenta de Hera, Zeus não só se
transformava de todas as maneiras, em cisne, em touro, em chuva de
ouro, no marido da mulher amada, mas ainda disfarçava, a quem
desejava poupar da ira da mulher: Io o foi em vaca; Dioniso, em touro
ou bode... De resto, o relacionamento entre os esposos celestes jamais
foi muito normal e a cólera e vingança da filha de Crono se
apoiavam em outros motivos. Certa vez, como se há de ver no
mitologema de Narciso, Hera discutia com o marido para saber
quem conseguia usufruir de maior prazer no amor, se o homem ou a
mulher. Como não conseguissem chegar a uma conclusão, porque
Zeus dizia ser a mulher a favorecida, enquanto Hera achava que era o
homem, resolveram consultar Tirésias, que tivera sucessivamente a
experiência dos dois sexos. Este respondeu que o prazer da mulher
estava na proporção de dez para um relativamente ao do homem.
Furiosa com a verdade, Hera prontamente o cegou.
Tomou parte, como se sabe, no célebre concurso de beleza e teve
por rivais a Atená e Afrodite, e cujo juiz era o troiano Páris. Tentou,
para vencer, subornar o filho de Príamo, oferecendo-lhe riquezas e a
realeza universal.
Como Páris houvesse outorgado a maçã de ouro a Afrodite, que lhe
ofereceu amor, Hera fez pesar sua cólera contra Ílion, tendo tomado
decisivamente o partido dos gregos. Seu ódio, por sinal, se
manifestou desde o rapto de Helena por Páris. Quando da fuga do
casal, de Esparta para Troia, a magoada esposa de Zeus suscitou
contra os amantes uma grande borrasca, que os lançou em Sídon, nas
costas da Síria. Tornou-se, além do mais, a protetora natural do herói
grego Aquiles, cuja mãe Tétis fora por ela criada. Conta-se, além do
mais, que era grata a Tétis, porque esta sempre repeliu as investidas
amorosas de Zeus. Mais tarde, estendeu sua proteção a Menelau,
tornando-o imortal. Participou, como já mostramos, da luta contra os
Gigantes, tendo repelido as pretensões pouco decorosas de Porfírio.
Ixíon, rei dos Lápitas, tentou seduzi-la, mas acabou envolvendo em
seus braços uma nuvem, que Zeus confeccionara à semelhança da
esposa. Dessa “união” nasceram os Centauros. Para castigá-lo, Zeus
fê-lo alimentar-se de ambrosia, o manjar da imortalidade, e depois
lançou-o no Tártaro. Lá está ele girando para sempre numa roda de
fogo. Protegeu o navio Argo, fazendo-o transpor as perigosas Rochas
Ciâneas, as Rochas Azuis, e guiou-o no estreito fatídico entre Cila e
Caribdes.
Sua ave predileta era o pavão, cuja plumagem passava por ter os
cem olhos com que o vigilante Argos5 guardava sua rival, a “vaca” Io.
Eram-lhe também consagrados o lírio e a romã: o primeiro, além de
símbolo da pureza, o é também da fecundidade, como a romã.
Pelo fato de ser esposa de Zeus, Hera possui alguns atributos
soberanos, que a distinguem das outras imortais, suas irmãs. Como
seu divino esposo, exerce uma ação poderosa sobre os fenômenos
celestes. Honrada como ele nas alturas, onde se formam as borrascas
e se amontoam as nuvens, que derramam as chuvas benfazejas, ela
pode desencadear as tempestades e comandar os astros que adornam
a abóbada celeste. A união de Zeus e Hera é como símbolo da
natureza inteira. É por intermédio de ambos, do calor dos raios do sol
e das chuvas, que penetram o solo, que a terra é fecundada e se
reveste de luxuriante vegetação. Ainda como Zeus, Hera personifica
certos atributos morais, como o poder, a justiça, a bondade. Protetora
inconteste dos amores legítimos, é o símbolo da fidelidade conjugal.
Associada à soberania do pai dos deuses e dos homens, é respeitada
pelo Olimpo inteiro, que a saúda como sua rainha e senhora. É
verdade que, por vezes, uma rainha irascível e altiva, mas que jamais
deixou de ser, em seus rompantes ou em sua majestade serena, a
grande divindade feminina do Olimpo grego, cujo grande deus
masculino é Zeus.
3
DEMÉTER, em grego Δημήτηρ (Deméter), cuja etimologia é muito
discutida. Deusa e mãe da terra cultivada foi compreendida pelos
antigos como um equivalente de γῆ μήτηρ (guê méter), “mãe-terra”,
em γῆ (guê), terra, teria por correspondente o dório dâ>dê, donde
Δαμάτηρ (Damáter) >Δημήτηρ (Deméter). Mera hipótese.
Como se trata de uma deusa, cujo culto era levado muito a sério
por todos os helenos, da Grécia continental à Magna Grécia e desta à
Grécia asiática, vamos dividir-lhe o estudo em três grandes partes:
em primeiro lugar focalizaremos mais profundamente a história
desse culto; depois exporemos, de maneira mais simples e didática, o
mito de Deméter, insistindo particularmente no rapto de Perséfone;
e, por fim, abordaremos os Mistérios de Elêusis, complementados por
um estudo da parte simbólica, uma pequena síntese acerca do poder
de fixação dos alimentos e o esboço de uma pesquisa sobre
alimentação e sexualidade.
Consoante o historiador Heródoto (484-408 a.C.), Hist., 2,171, os
cultos mais antigos de Deméter foram afogados pelas invasões
dórias, a partir do século XII a.C. Ficaram, no entanto, alguns
vestígios dessa fase antiga, particularmente na Arcádia, onde a deusa
estava associada ao primitivo Posídon, o Posídon-Cavalo, bem como
em Elêusis, segundo se verá em seguida. Nos arredores de Telpusa,
querendo escapar do deus, que a perseguia, disfarçou-se em égua,
mas Posídon, tomando a forma de um garanhão, fê-la mãe do cavalo
Aríon e de uma filha, cujo nome só os Iniciados conheciam. O povo
chamava-a simplesmente Devspoina (Déspoina), a Senhora. Foi por
causa da cólera, provocada por essa violência de Posídon, que a mãe
de Aríon passou a ser denominada também Deméter-Erínis.
Recebeu, igualmente, o epíteto de Lúsia (a que se banha), pelo fato de
ter-se purificado dos contatos do deus-cavalo no rio Ládon. Perto da
Figalia, ainda na Tessália, chamavam-na Μέλαινα (Mélaina), a
Negra, porque, em seu ressentimento, cobriu-se com véus pretos e
retirou-se para o fundo de uma caverna, onde sua estátua era
encimada por uma cabeça de cavalo. Em Fêneo ainda havia traços de
mistérios primitivos, celebrados num antro rochoso, onde o sacerdote
tirava de um esconderijo uma máscara de Deméter, ditaKidavria
(Kidária), cobrindo o rosto e ferindo o solo com um bastão, rito
destinado a provocar a fertilidade e evocar as forças ctônias. O termo
gregokivdarir (kídaris) designa uma espécie de turbante e o
sobrenome Kidária poderia derivar de máscara, mas kídaris
significa outrossim uma dança da Arcádia e a arte figurada deixa
entrever que um coro bárbaro de sobrevivência zoomórfica não era
estranho a esse culto primitivo. Ainda na Arcádia, as duas deusas, a
dupla Deméter-Senhora, tinham características acentuadas de
Povtnia qhrw~~n (Pótnia therôn), “Senhora das feras”, associadas ao
mundo animal e à fertilidade dos campos. Na região de Licúria (a
montanha dos lobos) sua companheira era uma Ártemis arcaica. À
dupla se ofereciam frutos diversos e animais não degolados, mas
despedaçados vivos. Em certos locais da Arcádia, Ártemis passava
por filha de Deméter e um templo, consoante Pausânias, 8,25,4; 42,1s,
lhes era dedicado em comum.
Um mito cretense, recolhido por Hesíodo, Teog., 969ss, atesta que a
grande deusa se uniu a Iásion sobre um terreno lavrado três vezes e
que dessa ligação nasceu Πλοῦτος (Plûtos). Existem algumas
reminiscências de uma hierogamia à época das semeaduras e a ideia
desse tipo de união rústica se encontra talvez na Deméter de
Olímpia, denominada Camineia, isto é, “que está na terra”. Sob esse
epíteto se viu uma divindade oracular, mas que acabou sendo
relacionada com o antigo hábito, segundo o qual o camponês e sua
esposa dormiam sobre a terra que deveria ser cultivada, a fim de
provocar a vegetação. Homero, na Odisseia, V, 125, sem mencionar
Pluto, refere-se à mesma tradição, ao dizer que o herói Iásion foi
fulminado por Zeus, cujo mito olímpico, mais tarde codificado pelo
mesmo Hesíodo, Teog., 912ss, faz de Zeus esposo de Deméter, que dele
teria tido Κόρη (Kóre), Core, a Jovem, ou Perséfone. Os sofrimentos
por que passou a deusa, quando sua filha, com o consentimento e
ajuda do pai, foi raptada por Hades, são relatados no
importantíssimo Hino homérico a Deméter, composto lá pelos fins
do século VII a.C. e que, salvo um ou outro pormenor, pode e deve ser
considerado como ἰερὸς λόγος (hieròs lógos), o “discurso sagrado”
do Santuário de Elêusis. Nele a deusa augusta da terra é proclamada
a maior fonte de riqueza e alegria. Com efeito, quando Deméter
recuperou, por dois terços do ano, a companhia de Perséfone, a deusa
devolveu Καρπόν φερέσβιον (karpòn pherésbion), o grão de vida,
que ela própria, em sua cólera dolorosa, havia escondido. Confiou-o,
em seguida, a Triptólemo, que o Hino menciona apenas
acidentalmente entre os chefes de Elêusis. Mais tarde este herói se
tornará filho de Metanira e Céleo, rei de Elêusis. Triptólemo recebeu
a missão sagrada de levar o grão de vida a todos os povos e ensinarlhes a prática do trabalho. A esses dons a deusa de Elêusis
acrescentou uma recompensa suprema: no templo que Céleo lhe
mandou construir, exatamente no local em que se asilou, Deméter
instituiu para sempre ὄργια καλά, σεμνά (órguia kalá, semná),
belos e augustos ritos, penhor de felicidade na vida e para além da
morte. Além do mais, as “duas deusas”, mãe e filha, a todos os homens
piedosos, que as cultuam, enviam-lhes Pluto, o deus da riqueza
agrária. Deméter é, pois, a Terra-Mãe, a matriz universal e mais
especificamente a mãe do grão, e sua filha Core o grão mesmo de
trigo, alimento e semente, que, escondida por certo tempo no seio da
Terra, dela novamente brota em novos rebentos, o que, em Elêusis,
fará da espiga o símbolo da imortalidade. Pluto é a projeção dessa
semente. Se verdadeiramente o deus da riqueza agrária ficou
eclipsado no Hino a Deméter pela evocação patética de Core perdida
e depois “reencontrada”, uma estreita relação sempre existiu, desde
tempos imemoriais, entre os cultos agrários e a religião dos mortos, e
é assim que o Rico em trigo, Pluto, acabou por confundir-se com
outro rico, o Rico em hóspedes, πολυδέγμων (polydégmon), que se
comprimem no palácio infernal. Pois bem, esse rico em trigo, com
uma desinência inédita, se transmutou, sob o vocábulo Πλούτων
(Plúton), Plutão, num duplo eufemístico e cultural de Ἅιδης
(Háides).
Fundamentalmente agrário, o culto de Deméter está vinculado ao
ritmo das estações e ao ciclo da semeadura e colheita para produção
do mais precioso dos cereais, o trigo.
Bem antes da fusão com Atenas e comparativamente ao que
representavam para a pólis de Péricles as Αθήναια (Athénaia),
Ateneias (festas em honra de Atená), sem dúvida as festas mais
antigas de Deméter celebravam-se em Elêusis com o nome de
Ελευσίνια (Eleusínia), Eleusínias. Tratava-se de um ato de
reconhecimento pelo “fruto de Deméter”, δια τόν καρπόν (dià tòn
karpón) “por causa do fruto”, diz laconicamente Aristóteles,
acrescentando, ademais disso, que os ἀγῶνες (agônes), as disputas
atléticas, realizadas na ocasião, eram os mais antigos jogos da Grécia.
Enquanto os vencedores nas Panateneias eram recompensados com
óleo das oliveiras sagradas de Atená, os atletas campeões nas
Eleusínias recebiam como prêmio medidas de trigo sagrado, colhido
nas planícies de Raros, perto de Elêusis, onde, pela primeira vez,
Triptólemo plantou a semente sagrada. Vinculadas à cultura do trigo
e aos trabalhospor ela requeridos, as festas da deusa de Elêusis se
realizavam em datas apropriadas às condições climáticas da Hélade.
As Eleusínias, por sua finalidade mesma, se comemoravam pelos
fins da primavera. Os outros ritos, bem mais conhecidos, se
escalonavam em três etapas: o trabalho de preparação da terra; a
semeadura e a colheita. O rito sagrado da lavra, ἄροτος ἰερός
(árotos hierós), relembrava o trabalho inicial de Triptólemo, cujo
nome significa popularmente o que revolve a terra três vezes, como
τρί-πολος (trí-polos), “terra trabalhada três vezes”. Esse rito é
mencionado em Esquíron, nos confins ático-eleusínios e nas
planícies de Raros, onde residia a família dos Βουζύγαι (Budzýgai),
“os que atrelam os bois”, que possuía o privilégio de levar a bom
termo esse rito sagrado, arando a terra ou mimando simplesmente a
lavra e, além do mais, tinha a incumbência de manter os bois
sagrados destinados a tal finalidade. De igual natureza eram as
Proerósias, “sacrifícios antes da lavra”, festas instituídas
posteriormente por Atenas, para atender a uma resposta do Oráculo
de Delfos, quando de uma fome geral. Não havia, ao que parece, nas
Proerósias, mímica da lavra, mas oferendas propiciatórias anuais em
Elêusis, em nome de todos os gregos. O rapto e a ausência, a descida, o
κάθοδος (káthodos) de Perséfone não se processaram no inverno,
como agudamente fez ver Nilsson, mas no verão, quando os campos
da Grécia se desnudam pelo calor; o retorno, a presença, a subida,
oa!nodor (ánodos) ocupavam as duas outras partes do ano. A grande
deusa iniciava seu esperado retorno após a aradura, no mês
Pianépsion (segunda metade de outubro), com as Tesmofórias, a festa
das semeaduras, e era “presença total”, realmente, à época da festa
das Cloias, quer dizer, do “verde”, no mês Posídeon (dezembro),
quando, após as chuvas do outono, o trigo e a cevada de DeméterCloe cobriam os campos com um manto “verde”, e aqui permanecia
até a colheita da última primavera, nos últimos dias do mês de
Targélion (fins de maio) e início do mês Esquirofórion (junho).
A coincidência desta heortologia (calendário de festas) com o
clima mediterrâneo atesta que se está em presença de elementos
indígenas anteriores à chegada dos gregos na Península. Além do
mais, se os nomes Deméter e Core são gregos, Perséfone, que designa
Core, após o rapto dessa última, não tem etimologia indo-europeia.
Até mesmo certas variantes do vocábulo, Perephóneia, Periphóna,
Pherséphassa, Pherréphatta, Phersephóna mostram a dificuldade
que os gregos tiveram para adaptá-lo em sua língua. Trata-se, ao que
tudo indica, de palavra de origem mediterrânea.
Difundidas por todas as regiões do mundo helênico, as mais
antigas festas de Deméter são as Θεσμοφόρια (Thesmophória),
Tesmofórias, palavra que se compõe deqesmovr (thesmós),
“instituição sagrada, lei”, e o verboϕevrein (phérein), “levar, produzir”
e, em sentido figurado, “estatuir, estabelecer”. Deméter thesmophóros
é portanto a “legisladora”, porque, tendo ensinado os homens a
cultivar os campos, instituiu o casamento, fundando, assim, a
sociedade civil. As Tesmofórias são, por conseguinte, a festa da
“legisladora”, em que se agradece a Deméter pelas últimas colheitas.
Atribuídas por Heródoto às filhas de Dânao, as Danaides, as
Tesmofórias eram reservadas às mulheres casadas, pela analogia
óbvia entre a fecundidade do seio materno e a fertilidade da terra,
que as mulheres estão muito mais aptas a promover. Isto explica
provavelmente a preeminência da mulher no sacerdócio de Elêusis,
tanto mais quanto na cidade santa dos Mistérios a sacerdotisa de
Deméter sempre teve as honras da Eponímia.
As Tesmofórias, que duravam três dias, eram celebradas no mês de
Pianépsion, segunda metade de outubro, quando os “poceiros”
retiravam das fossas os restos dos leitões que aí haviam sido
lançados, segundo a prática, cuja causa foi a desventura do porcariço
Eubuleu. Jogavam-se leitões em fossas profundas, contava-se, como
recordação da manada de porcos de Eubuleu, quase toda tragada,
quando a terra se abriu no momento do rapto de Core. Recolhiam-se,
em seguida, os restos, que eram misturados a grãos e sementes
diversas: tal mistura era colocada sobre os altares e depois espalhada
pelos campos. Tratava-se, claro está, de um rito de adubagem
sagrada.
O segundo dia festivo das Tesmofórias denominava-se Νηστεἰα
(Nesteía), quer dizer, o “dia do jejum”, estomacal e sexual. Em Atenas,
as mulheres formavam uma grande procissão e dirigiam-se para o
Pnix, a oeste da Acrópole, e passavam o dia todo em cabanas feitas de
ramos, sentadas sobre folhas de loureiro, cujas virtudes fecundantes
eram muito exaltadas pelos antigos. O jejum e a atitude dessas
mulheres eram uma evocação de Deméter, prostrada de dor pelo
desaparecimento da filha. Esse dia era considerado nefasto.
As comemorações do terceiro dia das Tesmofórias denominavamse Καλλιγένεια (Kalliguéneia), literalmente, “belas gerações”, ou
seja, abundantes colheitas. Oferecia-se à deusa uma panspermia,
como nas Antestérias dionisíacas, uma espécie de sopa com uma
mistura de todas as espécies de sementes, uma vez que pân é todo,
total e spérma é semente. As Kalliguéneia transcorriam numa
atmosfera de grande alegria e as mulheres casadas, de todas as
idades, se entregavam a uma liberdade de gestos e de linguagem que
fariam corar Aristófanes! Essa mesma quebra de interditos e
“desrepressão” se verificam nas Haloas, como se mostrará. Também
as Kalliguéneia tinham por objetivo provocar a fertilidade do ser
humano e dos campos.
Um pouco mais tarde, após as chuvas do outono, sem dúvida do
mês Posídeon, em dezembro, quando o trigo e a cevada cobriam a
terra de verde, celebravam-se as festas denominadas Xλoῖa (Khloîa),
em honra ainda de Deméter, chamada Xλόη (Khlóe), Cloe, a
“verdejante”, em Elêusis e Atenas, epíteto que, por vezes, aparece
acompanhado de um outro também muito expressivo, *Ioulwv
(Iuló), quer dizer, paveia de trigo.
Nos fins de maio, inícios de junho, isto é, nos meses Targélion e
Esquirofórion, realizavam-se as Θαλύσία (Thalýsia), do verbo
Θάλλειν (thállein), “florir, cobrir-se de folhas, flores e frutos”. Nas
Talísias ofereciam-se à divindade as primícias da colheita, hábito já
registrado em Homero, Ilíada, IX, 934, mas a propósito de Eneu, rei
de Cálidon, terrivelmente castigado, porque se esqueceu de Ártemis,
quando ofereceu as primícias aos outros deuses. Na época clássica, as
Talísias eram propriamente uma festa da eira, em honra de Deméter,
quando a ela se ofereciam os primeiros grãos da colheita. Teócrito, o
grande poeta grego da época alexandrina, no Idílio VII, cujo título é
exatamente Talísias, se inspira poeticamente da festa e diz que
“Deméter está coroada de espigas e de papoulas vermelhas”.
A derradeira festa de Deméter denomina-se Αλῷα (Halôa), Haloas,
ou seja, em princípio, uma festividade da deusa “guardiã dos
celeiros”, mas essas comemorações celebravam também a outro
grande deus da vegetação, Dioniso, que, sob muitos aspectos, está
ligado à mãe de Perséfone, como se há de ver, quando focalizarmos o
mito do deus do êxtase e do entusiasmo, no volume II.
As Haloas se desdobravam, portanto, numa festa da uva, quando se
realizava a segunda cava às vinhas, o adubamento das cepas e a
degustação do vinho novo, cuja primeira fermentação já havia
terminado. Como se tratava de uma festa de Deméter, embora
extensiva a Dioniso, a presença da mulher, ao menos em algumas
partes da festividade, conferia-lhe um regozijo especial e uma
atmosfera de luxúria báquica. Boas apreciadoras também do néctar
dionisíaco, as mulheres, mais que nas Kalliguéneia, entregavam-se
σἰσχρολογία (aiskhrologuía) e τωθασμός (tothasmós), isto é, a
gracejos licenciosos e a gestos ousados, que a lei admitia e de que fala
Aristóteles na Política, 7,1336b17, como assunto superado, por seu
caráter ritual6. Afinal, não foi mais ou menos isso, como se verá a
seguir, que fez a criada de Metanira, Iambe, para arrancar um sorriso
de Deméter, inconsolável com o rapto de Core? Seria inútil enumerar
os locais, onde se celebrava o culto de Deméter: trata-se de um culto
pan-helênico, tendo, isto sim, por centros Elêusis e Atenas.
Eis, em síntese, a primeira parte da história do culto da grande
deusa de Elêusis. A segunda, e bem mais importante, são os Mistérios
de Elêusis, mas para se chegar lá é mais prático e didático expor
primeiramente o mito de Deméter e Perséfone.
O mitologema das duas deusas é resultante de uma longa
elaboração: de Homero a Pausânias multiplicaram-se as variantes.
Vamos tentar reuni-las e desenvolver o mito de maneira bem
simples e direta.
Deusa maternal da Terra, sua personalidade é simultaneamente
religiosa e mítica, bem diferente, já se salientou, da deusa Geia,
concebida como elemento cosmogônico. Divindade da terra
cultivada, a filha de Crono e Reia é essencialmente a deusa do trigo,
tendo ensinado aos homens a arte de semeá-lo, colhê-lo e fabricar o
pão. Tanto no mito quanto no culto, Deméter está indissoluvelmente
ligada à sua filha Core, depois Perséfone, formando uma dupla quase
sempre denominada simplesmente As Deusas. As aventuras e os
sofrimentos das Deusas constituem o mito central, cuja significação
profunda somente era revelada aos Iniciados nos Mistérios de
Elêusis. Core crescia tranquila e feliz entre as ninfas e em companhia
de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a
raptou com o auxílio de Zeus. O local varia muito, segundo as
tradições: o mais correto seria a pradaria de Ena, na Sicília, mas o
Hino homérico a Deméter fala vagamente da planície de Misa, nome
de cunho mítico, inteiramente desprovido de sentido geográfico.
Outras variantes colocam-no ora em Elêusis, às margens do rio
Cefiso, ora na Arcádia, no sopé do monte Cilene, onde se mostrava
uma gruta, que dava acesso ao Hades, ora em Creta, bem perto de
Cnossos. Core colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso
ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a Terra
se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo
ctônio.
Desde então começou para a deusa a dolorosa tarefa de procurar a
filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, com um archote aceso
em cada uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada
para o abismo, Core deu um grito agudo e Deméter acorreu, mas não
conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido.
Simplesmente a filha desaparecera. Durante nove dias e nove noites,
sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No
décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a
jovem estava sendo arrastada para algum lugar, mas não lhe foi
possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as
sombras da noite. Somente Hélio, que tudo vê, e que já, certa feita,
denunciara os amores secretos de Ares e Afrodite, cientificou-a da
verdade. Irritada contra Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao
Olimpo, mas permanecer na Terra, abdicando de suas funções
divinas, até que lhe devolvessem a filha.
Sob o aspecto de uma velha, dirigiu-se a Elêusis7e primeiro sentouse sobre uma pedra, que passou, desde então, a chamar-se Pedra sem
Alegria. Interrogada pelas filhas do rei local, Céleo, declarou
chamar-se Doso e que escapara, há pouco, das mãos de piratas que a
levaram, à força, da ilha de Creta. Convidada para cuidar de
Demofonte, filho recém-nascido da rainha Metanira, a deusa aceitou
a incumbência. Ao penetrar no palácio, todavia, sentou-se num
tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, com o
rosto coberto por um véu, até que uma criada, Iambe, fê-la rir, com
seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Deméter não aceitou o
vinho que lhe ofereceu Metanira, mas pediu que lhe preparassem
uma bebida com sêmola de cevada, água e poejo, denominada
κυκεών (kykeón)8, cuja fonte é o verbo κυκᾶν (kykân), “agitar de
modo a misturar, perturbar agitando”, donde cíceon, além de
“mistura”, significa também “agitação, perturbação”. Trata-se, ao que
parece, de uma bebida mágica cujos efeitos não se conhecem bem.
Encarregada da educação do caçula Demofonte, “o que brilha entre
o povo”, a deusa não lhe dava leite, mas, após esfregá-lo com
ambrosia, o escondia, durante a noite, no fogo, “como se fora um
tição”. A cada dia, o menino se tornava mais belo e parecido com um
deus. Deméter realmente desejava torná-lo imortal e eternamente
jovem. Uma noite, porém, Metanira descobriu o filho entre as
chamas e começou a gritar desesperada. A deusa interrompeu o
grande rito iniciático e exclamou pesarosa: “Homens ignorantes,
insensatos, que não sabeis discernir o que há de bom ou de mal em
vosso destino. Eis que tua loucura te levou à mais grave das faltas!
Juro pela água implacável do Estige, pela qual juram também os
deuses: eu teria feito de teu filho um ser eternamente jovem e isento
da morte, outorgando-lhe um privilégio imorredouro. A partir de
agora, no entanto, ele não poderá escapar do destino da morte” (Hh.
D., 256-262). Surgindo em todo seu esplendor, com uma luz
ofuscante a emanar-lhe do corpo, solicitou, antes de deixar o palácio,
que se lhe erguesse um grande templo, com um altar, onde ela
pessoalmente ensinaria seus ritos aos seres humanos. Encarregou,
em seguida, Triptólemo, irmão mais velho de Demofonte, de
difundir pelo mundo inteiro a cultura do trigo.
Construído o santuário, Deméter recolheu-se ao interior do mesmo,
consumida pela saudade de Perséfone. Provocada por ela, uma seca
terrível se abateu sobre a terra. Em vão Zeus lhe mandou
mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu
com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e nem
tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe
entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo,
Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone. O rei dos Infernos
curvou-se à vontade soberana do irmão, mas habilmente fez que a
esposa colocasse na boca uma semente de romã (cujo simbolismo se
comentará depois) e obrigou-a a engoli-la, o que a impedia de deixar
a outra vida. Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone
passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe.
Reencontrada a filha, Deméter retornou ao Olimpo e a terra
cobriu-se, instantaneamente, de verde. Antes de seu regresso, porém,
a grande deusa ensinou todos os seus mistérios ao rei Céleo, a seu
filho Triptólemo, a Díocles e a Eumolpo “os belos ritos, os ritos
augustos que é impossível transgredir, penetrar ou divulgar: o
respeito pelas deusas é tão forte, que embarga a voz” (Hh. D., 476479).
A instituição dos Mistérios de Elêusis explica-se, pois, pelo
reencontro das duas deusas e como consequência do fracasso da
imortalização de Demofonte. A esse respeito, comenta agudamente
Mircea Eliade:
“Pode-se comparar a história de Demofonte com os velhos ricos
que relatam o trágico erro que, em certo momento da história
primordial, anulou a possibilidade de imortalização do homem. Mas,
nesse caso, não se trata do erro ou do ‘pecado’ de um antepassado
mítico que perde para si e para seus descendentes a condição
primeira de imortal. Demofonte não era uma personagem
primordial; era o filho caçula de um rei. E pode-se interpretar a
decisão de Deméter de imortalizá-lo como o desejo de ‘adotar’ um
filho (que a consolaria da perda de Perséfone) e, ao mesmo tempo,
como uma vingança contra Zeus e os Olímpicos. Deméter estava
transformando um homem em deus. As deusas possuíam esse poder
de outorgar a imortalidade aos humanos, e o fogo ou a cocção do
neófito figuravam entre os meios mais reputados. Surpreendida por
Metanira, Deméter não escondeu sua decepção diante da estupidez
dos homens. Mas o hino não faz qualquer referência à eventual
generalização dessa técnica de imortalização, isto é, a fundação de
uma instituição suscetível de transformar os homens em deuses por
intermédio do fogo”9.
Na realidade, Deméter só se identificou e pediu que se lhe erguesse
um templo após o fracasso da imortalização de Demofonte, mas
somente transmitiu seus ritos secretos depois de seu reencontro com
a filha. Não existe, pois, objetivamente, nenhuma relação entre a
iniciação nos Mistérios e a cocção de Demofonte, interrompida por
Metanira. O iniciado nos Mistérios não conseguia e nem pretendia a
imortalidade. É bem verdade que, ao fim das cerimônias nos
Mistérios, o templo inteiro era iluminado por milhares de archotes,
mas esse clarão, “esse fogo”, simbolizava, tudo leva a crer, a
iluminação interior dos iniciados e a certeza das luzes da outra vida.
O pouco que se conhece das cerimônias secretas deixa claro que o
mistério central envolvia a presença das duas deusas e que sua
fundamentação era a morte simbólica, a descida de Perséfone e seu
retorno triunfante, como a semente que morre no seio da terra e se
transmuta em novos rebentos. E se através da iniciação a condição
humana era modificada, isso se fazia num sentido bem diferente do
da fracassada imortalização de Demofonte. O que os Mistérios
prometiam era a bem-aventurança após a morte. Os textos a esse
respeito são muito escassos, mas expressivos.
O próprio Hino a Deméter promete a felicidade para os Iniciados e
indiretamente o castigo para aqueles que ignoraram os Mistérios:
Feliz aquele que possui, entre os homens da terra, a
visão destes Mistérios. Ao contrário, aquele que não
foi iniciado e aquele que não participou dos santos
ritos não terão, após a morte, nas trevas úmidas, a
mesma felicidade do iniciado.
(Hh. D., 480-482)
Em um de seus Trenos, fr. 6 (e não 10, como erradamente costa em
Mircea Eliade) exclama o maior dos líricos da Hélade:
Feliz aquele que, antes de baixar à terra, contemplou
este espetáculo. Ele conhece qual é o fim da vida e
também o começo, outorgado por Zeus.
Sófocles, fr. 753, o trágico maior, trouxe também a sua
contribuição:
Bem-aventurados os mortais que, após terem
contemplado os Mistérios, vão descer à outra vida. Ali,
somente eles viverão; os outros só terão sofrimentos.
Na comédia de Aristófanes As rãs, 154-159, Héracles, ensinando a
Baco o caminho que levava ao Hades, fala de um pequeno encontro
de Dioniso com a alegria dos Iniciados na outra vida:
Héracles – Prosseguindo, envolver-te-á um sopro de flautas.
Divisarás uma esfuziante claridade, como aqui; encontrarás
bosques de mirto, grupos bem-aventurados de homens e mulheres e
um estrepitoso bater de palmas.
Baco – Quem são estes?
Héracles – Os Iniciados10.
Seja como for, como diz Mircea Eliade, o rapto, quer dizer, a “morte”
simbólica de Perséfone, trouxe para os homens benefícios
incalculáveis. Uma deusa olímpica, que passa a habitar apenas uma
terça parte do ano o mundo dos mortos, encurta a distância entre os
dois reinos: o Hades e o Olimpo. Como ponte entre os dois “mundos
divinos”, podia intervir no destino dos homens mortais.
Os Mistérios de Elêusis vão ter exatamente por essência essa morte
simbólica, projetada na morte e na ressurreição da semente.
Acerca dos Mistérios de Elêusis o que se sabe é tão somente o
exterior e, mesmo assim, fragmentariamente. Os documentos
literários e a arte figurada aludem particularmente à preparação das
etapas da iniciação, o que, é claro, não exigia segredo. Assim mesmo
Ésquilo, segundo Aristóteles, teria revelado, sem o querer, certos
aspectos secretos relativos aos Mistérios11. Temos, ainda, as
informações transmitidas pelos padres antigos, pelos apologistas
cristãos, alguns deles ex-iniciados, as quais são muito mais
importantes do que parecem, porque, escrevendo muitas vezes para e
contra Iniciados, na ânsia de combater os Mistérios e converter-lhes
os adeptos, se não dissessem o que realmente acontecia, correriam o
risco de ser desmentidos. Essas informações, porém, têm que ser
analisadas com muita prudência, porque, se de um lado são muito
incompletas e reticentes, sem penetrar no âmago da questão, e a
prudência assim o aconselhava, de outro, baseiam-se, não raro, em
“mistérios tardios”, da época helenística. Em dois mil anos de
funcionamento em Elêusis, é muito provável que os Mistérios
tenham sofrido influências de outras correntes religiosas e que certas
cerimônias se tenham modificado com o correr dos anos.
No tocante às informações dos “pagãos”, também elas, e com muito
mais razão, pecam pela base, como veremos: abordam tão-só
aspectos externos, quando não se baseiam em épocas tardias, e, pior
ainda, quando não confundem Mistérios de Elêusis com Orfismo... O
que, aliás, em parte, seria inevitável, como se verá.
Feitas estas ligeiras observações, passemos aos Mistérios.
MISTÉRIO, em grego μυστήριον (mystérion) significa,
etimologicamente, “coisa secreta”, “ação de calar a boca”, uma vez que
μυστήριον (mystérion) provém do verbo μύειν (mýein), “fechar, se
fechar, calar a boca”, daí μύστης (mýstes), “o que se fecha, o que
guarda segredo, o iniciado”, μυστικός (mystikós), “que concerne aos
mistérios, que penetra os mistérios, místico” e μυσταγωγός
(mystagogós), de μύστης (mýstes), “iniciado”, e o verbo ἄγειν
(águein), “conduzir, sacerdote encarregado de iniciar nos mistérios,
mistagogo”.
Os Mistérios de Elêusis não foram os únicos a existir na Hélade.
Mas Deméter era a mais venerada e a mais popular das deusas
gregas, diz com razão Mircea Eliade, e a mais antiga também. De
certa forma, a deusa de Elêusis prolonga o culto das Grandes Mães do
neolítico, e, por isso mesmo, outros grandes mistérios lhe eram
consagrados, como os da Arcádia e da Messênia, sem excluir sua
participação nos de Flia, na Ática. Além destes, dedicados à Grande
Mãe de Elêusis, havia os famosos Mistérios dos Cabiros na
Samotrácia e, em Atenas, a partir do século V a.C., os Mistérios do
deus tracofrígio Sabázio12, considerado como o primeiro culto de
origem oriental a penetrar e ter bastante aceitação no Ocidente.
Dentre todos esses mistérios, todavia, os universalmente famosos
foram os Mistérios de Elêusis e isso, em boa parte, se deve ao apoio
decisivo que lhes deu Atenas. Um apoio, por certo, muito inteligente
e bem de acordo com a atmosfera política que a cidade de Atená
sempre defendeu. Na medida em que os Mistérios de Elêusis não
formavam uma seita, nem tampouco uma associação secreta, como
os Mistérios da época helenística, os Iniciados, ao retornarem a seus
lares, continuavam tranquilamente a participar, e até com mais
empenho e desenvoltura religiosa, dos cultos públicos. Só após a
morte é que eles passavam novamente (como durante as cerimônias
em Elêusis) a formar um grupo à parte, inteiramente separados dos
não-iniciados, como nos mostra, entre outros, Aristófanes na
comédia As rãs. É claro que Dioniso e Deméter, por motivos de ordem
política e social, conforme explicamos no capítulo VIII e voltaremos
a fazê-lo, quando falarmos de Dioniso, ficaram por longos séculos
confinados no campo, mas, a partir de Pisístrato e logo depois, com a
democracia, os Mistérios de Elêusis podem ser considerados como
uma complementação da religião olímpica e dos cultos públicos,
sem nenhuma oposição às instituições religiosas da pólis. E foi
certamente a atmosfera política de Atenas que deu aos Mistérios de
Elêusis um caráter incrivelmente democrático para a época. Do
governante ao escravo, da mãe-de-família à prostituta, do ancião à
criança, todos podiam ser Iniciados, desde que falassem grego, para
que pudessem compreender e repetir certas fórmulas secretas; não
tivessem as mãos manchadas por crime de sangue e nem fossem réus
de impureza sacrílega. A isto acrescentava-se, bem de acordo com o
valor ritualístico que se atribuía à palavra, o interdito φωνὴν
ἀσύντοι (phonèn asýnetoi), “os deficientes de linguagem”, quer dizer,
os que, por qualquer problema, não conseguissem pronunciar
corretamente as fórmulas rituais.
Mas já é tempo de tentarmos também penetrar um pouco no
augusto Santuário de Elêusis.
Consoante a tradição, os primeiros habitantes e colonizadores de
Elêusis, localidade que fica a pouco mais de vinte quilômetros do
centro de Atenas, foram trácios. Recentes escavações arqueológicas
permitem afirmar que Elêusis deve ter sido colonizada entre 1580 e
1500 a.C., mas o primeiro santuário, composto de uma câmara com
duas colunas internas que sustentavam o teto, foi construído no
século XV a.C. e, nesse mesmo século, se inauguraram os Mistérios.
Foram vinte séculos de glória. Nos fins do século IV d.C., Teodósio, o
Grande (346-395 d.C.), fechou por decreto e destruiu a picareta os
templos pagãos. Era o fim do paganismo, no papel, porque, sobre as
ruínas de seus templos, Zeus, Deméter e Dioniso ainda reinaram por
muito tempo.
Foi, sem dúvida, a união política de Elêusis com Atenas, no último
quartel do século VII a.C., que proporcionou a seu culto todo o
esplendor e majestade, que perduraram por dois mil anos. Os
Mistérios se tornaram, desde então, uma festa religiosa oficial do
Estado ateniense, que lhe confiou a organização e a direção ao
Arconte-Rei e a um colega seu, um epimelétes, isto é, um intendente
especialmente designado para esse mister. A esses se juntavam mais
dois delegados, eleitos pelo povo. Os verdadeiros dignitários e
oficiantes do culto, porém, pertenciam a três antiquíssimas famílias
sacerdotais de Elêusis: os eumólpidas, os querices e os filidas. Os
eumólpidas tinham a preeminência, porque pretendiam descender
de Eumolpo13, já por nós citado, e que, etimologicamente, significa “o
que canta bem e harmoniosamente”, o que modula corretamente as
palavras rituais e as encantações. Dos eumólpidas saía, escolhido
pela sorte, mas cujo cargo era vitalício, o sacerdote principal dos
Mistérios, o Hierofante, etimologicamente “o que mostra, o que
patenteia o sagrado”.
Em termos religiosos, era o sacerdote que explicava os mistérios
sagrados e conferia o grau iniciático. Designado entre os querices
pelo mesmo método que o Hierofante, o Daduco, que significa “o
portador de tocha”, o segundo em dignidade, tinha a função sagrada
de carregar os dois fachos de Deméter. Também da mesma família e
escolhido de maneira semelhante, o Hieroquérix, o Arauto Sagrado,
anunciava os Mistérios. Na família dos filidas era escolhida
vitaliciamente a Sacerdotisa de Deméter, igual ou ainda maior em
dignidade que o Hierofante e que com o mesmo celebrava o rito do
hieròs gámos, o casamento sagrado.
As grandes cerimônias de Elêusis tinham como prólogo os
Pequenos Mistérios, que se realizavam uma vez por ano, de 19 a 21 do
mês Antestérion (fins de fevereiro e começo de março), em Agra,
subúrbio de Atenas, localizado na margem esquerda do rio Ilisso. Os
ritos dos Pequenos Mistérios, que se celebravam no templo de
Deméter e Core, compreendiam, segundo se crê, jejuns, purificações e
sacrifícios, orientados pelo mistagogo. Acredita-se que nessa mýesis,
uma espécie de pré-iniciação, alguns aspectos do mitologema de
Deméter e Perséfone fossem mimados, reatualizados e ritualizados.
Seis meses depois, no mês Boedrômion (mais ou menos 15 de
setembro a 15 de outubro), realizavam-se os prelúdios em Atenas e a
parte principal em Elêusis, os Grandes Mistérios, para os que
houvessem cumprido em Agra os ritos preliminares. Somente no
Santuário de Elêusis é que se podia obter a iniciação em primeiro e
segundo graus. O primeiro grau denominava-se τελετή (teleté),
vocábulo cuja origem é o verbo τελεῖν (teleîn), “executar, realizar,
cumprir”, donde teleté vem a ser “cumprimento, realização”. A
maioria, acredita-se, parava no primeiro grau. O segundo, o grau
completo, supremo, acessível tão somente aos já iniciados há um ano,
chamava-se ἐποπτεία (epopteía), do verbo ἐποπτεύειν
(epopteúein), “observar, contemplar”, donde epopteía seria a visão
suprema, a revelação completa. Poucos conseguiram atingir esse
grau.
O prelúdio dos Grandes Mistérios ainda se passava no Eleusínion,
o templo de Deméter e Core em Atenas. No dia 13 de Boedrômion, os
Efebos (jovens de 16 a 18 anos) partiam para Elêusis e de lá traziam,
no dia 14, sobre um carro, cuidadosamente guardados em pequenos
cestos, os hierá, os objetos sagrados, que a sacerdotisa de Atená
recolhia e guardava temporariamente no Eleusínion. No dia 15, os
Iniciados se reuniam e, após as instruções do mistagogo, o
hieroquérix, o arauto sagrado, relembrava as interdições que
impediam a iniciação. O dia 16 era consagrado à lustração geral: ao
grito repetido do mistagogo, ἄλαδε, μύσται (hálade, mýstai), “ao mar,
os iniciados”, todos corriam a purificar-se nas águas salgadas de
Posídon. Cada um mergulhava, segurando um leitão que era, logo
após, imolado às duas deusas como oferenda propiciatória. É
importante lembrar que tal sacrifício visava, antes do mais, à
fecundidade, porquanto a palavra grega χοῖρος (khoîros) significa
tanto porco quanto órgão genital feminino. Nos dias 17 e 18 havia uma
interrupção nos ritos preliminares, pelo menos desde o século V a.C.,
porque, nessas datas, se celebrava a grande festa de Asclépio. O dia 19
assinalava o término das cerimônias públicas: ao alvorecer, uma
enorme procissão partia de Atenas. Iniciados, neófitos e um grande
público acompanhavam as sacerdotisas que reconduziam a Elêusis
os hierá, os objetos sagrados, trazidos pelos efebos no dia 14.
Encabeçando a alegre e barulhenta procissão, ia um carro com a
estátua de Iaco, com seu respectivo sacerdote, entre exclamações
entusiastas de Ἴακχη, ὦ Ἴακχη (Íakkhe, ó Íakkhe), “Iaco, ó
Iaco!”14Personificando misticamente a Baco, Iaco é o avatar eleusínio
de Dioniso, aquele que, em As rãs15, os iniciados convidam a dirigir
seus coros, o companheiro e o guia que conduz até Deméter, aquele
que perfaz e ajuda a perfazer a longa caminhada de
aproximadamente vinte quilômetros. Estrabão (66 a.C.-24 d.C.)
chama-o o daímon da deusa e o cabeça dos Mistérios. Ao cair da
tarde, a procissão atravessava uma ponte, γέφυρα (guéphyra), sobre
o rio Cefiso, e alguns mascarados diziam os piores insultos contra as
autoridades, contra pessoas importantes de Atenas e contra os
próprios Iniciados. Tais injúrias na ponte denominavam-se
γεφυρισγοί (guephyrismoí)16. Já, à noite, empunhando archotes, os
m×stai atingiam Elêusis. É bem possível que consumissem uma parte
da noite dançando e cantando em homenagem às duas deusas. O dia
20 era consagrado a rigoroso jejum e a sacrifícios, mas o que se
passava no interior do recinto sagrado e no τελεστήριον
(telestérion), local do santuário, onde se consumavam os mistérios,
quase nada se conhece. Sabe-se, apenas, que a teleté, a iniciação em
primeiro grau, que ocupava o dia 21, comportava possivelmente três
elementos: δρώμενα (drómena), λεγόμενα (legómena) e
δεικνύμενα (deiknýmena). O primeiro, drómena, era uma ação, talvez
uma encenação do mitologema das deusas: de archotes em punho, os
Iniciados mimavam a busca de Core por Deméter. Há uma passagem
muito significativa conservada por Estobeu (450-500 d.C.), na qual
se diz que as experiências por que passam as almas, logo após a
morte, se comparam às provações dos Iniciados nos Grandes
Mistérios. De princípio, a alma erra nas trevas e é presa de inúmeros
terrores. Repentinamente, porém, é atingida pelo impacto de uma luz
extraordinariamente bela e descortina sítios maravilhosos, ouve
vozes melodiosas e assiste a danças cadenciadas, como nos versos há
pouco citados de As rãs. Aliás, tudo bem parecido com o Bardo
Thödol...
O Iniciado com uma coroa sobre a fronte junta-se aos homens
puros e justos e contempla os não iniciados mergulhados na lama e
nas trevas, apegados às próprias misérias pelo medo da morte e
suspeita da felicidade que os aguarda na outra vida! Nos drómena, na
ação mimética da busca desesperada da filha do Deméter, os
Iniciados, segundo se crê, tinham igualmente uma caminhada pelas
trevas com encontro de fantasmas aterradores e monstros, mas
subitamente descia sobre eles um facho de luz e vastas campinas se
abriam ante seus olhos.
Comentando esse fato, o grande conhecedor da história das
religiões antigas, Mircea Eliade, argumenta que esse “iluminismo” e
essas planícies inundadas de luz são reflexos tardios de “concepções
órficas” e reforça seu ponto de vista, citando o Fédon, 69c, onde
Platão afirma que as punições dos culpados no Hades e a imagem da
campina procedem de Orfeu, “que se inspirara nos costumes
funerários egípcios”. Vai mais longe o Autor de Mito e realidade,
mostrando que, se nas escavações que se fizeram no Santuário de
Deméter e no Telestérion não se encontraram câmaras subterrâneas,
é sinal de que os Iniciados não desciam ritualmente ao Hades. Na
nota de rodapé, no entanto, como que em dúvida, o Autor explica que
“isso não exclui a presença do simbolismo infernal”, porque, se não
havia “câmaras subterrâneas, existia o Plutónion, isto é, uma gruta de
Plutão, que assinalava a entrada para o outro mundo”17.
Dada a autoridade do romeno Mircea Eliade, esperamos que o juízo
por ele emitido não seja definitivo. É que, se a citação conservada por
Estobeu, que, em última análise, procede de Temístio (século IV d.C.),
é realmente tardia, embora Platão (430-348 a.C.) já fale da “campina
de Orfeu”, é bom deixar claro que os Mistérios de Elêusis não se
mantiveram imunes a influências, no decurso de dois mil anos, e que
a presença do Órfico-Dionisismo é fato consumado no Santuário de
Deméter, ao menos a partir do século VI a.C., o que não é tão tardio
assim! De outro lado, para se descer à outra vida e da mesma retornar
não há necessidade, em iniciação, de câmaras subterrâneas materiais.
Afinal, a escada de Jacó estava armada apenas com degraus oníricos
... E havia o Plutónion!
O segundo aspecto diz respeito aos legómena, a saber,
determinadas fórmulas litúrgicas e palavras reservadas aos
Iniciados, fórmulas e palavras que eles certamente repetiriam, daí a
necessidade de saber grego.
Não se pode e nem se deve interpretar legómena como um
ensinamento catequético, doutrinal, mas antes como o despertar de
certos sentimentos e a criação de um certo estado anímico. A este
respeito, Aristóteles nos deixou um fragmento precioso (Rose, fr. 15):
τούς τελουμένους οὐ μαθεῖν τι δεῖ, ἀλλὰ παθεῖν καὶ
διατεθῆναὶ (tús teluménus u matheîn ti deî, allà patheîn kaì
diatethênai): “não é necessário que aqueles que se iniciam aprendam
algo, mas que experimentem e criem certas disposições internas”.
O terceiro e último componente da teleté são os deiknýmena,
vocábulo que só se pode traduzir por “ação de mostrar ou o que é
mostrado”. Trata-se, segundo se crê, de uma contemplação por parte
dos Iniciados, dos hierá, dos objetos sagrados. O Hierofante
penetrava no Telestérion e de lá trazia os hierá, envoltos num nimbo
de luz e que eram mostrados aos mýstai. Dentre esses objetos sagrados
destacava-se, conforme se relata, um ksóanon, uma pequena estátua
de Deméter, confeccionada de madeira, e ricamente ornamentada.
Mas existe ainda uma passagem muito discutida de São Clemente de
Alexandria (século III d.C.), que possivelmente se referia aos
deiknýmena. Eis o texto, que está em Protréptico, II, 21,2: “Fiz jejum, bebi
o cíceon, tomei o cesto e, depois de havê-lo manuseado, coloquei-o
dentro do cestinho; em seguida, pegando novamente o cestinho,
recoloquei-o no cesto”. Esta referência de São Clemente de
Alexandria tem recebido inúmeras interpretações. Vamos sintetizálas e reduzi-las a seis. O cestinho conteria a réplica de uma kteís, de
uma vulva: tocando-a, o Iniciado acreditava renascer como filho de
Deméter. Esse tirar do cesto para o cestinho e vice-versa
simbolizariam a união sexual do Iniciado com a deusa: o mýstes uniase a Deméter, tocando o kteís com seu órgão sexual. O objeto sagrado
guardado na cesta seria um falo: apertando-o contra o peito, o mýstes
unia-se à deusa e se tornava seu filho. Para outros, o cestinho conteria
um falo e o cesto uma vulva: ao manuseá-los, o Iniciado consumava
sua união com as deusas. Tanto o cesto quanto o cestinho
guardariam uma serpente, uma romã e bolos em forma de falo e
vulva, como representações supremas da fecundidade. Manuseandoos, provocava-se a fertilidade. Qual a correta? Talvez a melhor
resposta seria dizer que se trata de uma excelente exegese históricoreligiosa, digna das tertúlias dos frades de Bizâncio!
Uma interpretação mais moderna, independentemente dos hierá
tão cuidadosamente guardados nos cestos, é que eles seriam objeto de
uma apresentação, de mostra (deiknýmena) e não de manipulação.
Finalmente, o dia 22 era consagrado à epopteía, à visão suprema, à
consumação dos Mistérios. A grande cerimônia se iniciava com o
hieròs gámos, o casamento sagrado, material ou simbolicamente
consumado pelo hierofante e a sacerdotisa de Deméter. Astério,
bispo que viveu no século V d.C., nos deixou uma informação valiosa
a esse respeito. Astério volta a falar de uma câmara subterrânea
mergulhada nas trevas, onde, após se apagarem as tochas, se
consumava o hieròs gámos entre o hierofante e a sacerdotisa e
acrescenta que “uma enorme multidão acreditava que sua salvação
dependia daquilo que os dois faziam nas trevas”. É claro que, sendo os
Mistérios de Elêusis solidários de uma mística agrícola, a sacralidade
da atividade sexual simbolizava a fecundidade.
Seria após esse hieròs gámosque os Iniciados, olhando para o céu,
diziam em altas vozes: “chova” e, olhando para a terra, exclamavam:
“conceba”. A mensagem da fertilidade é tão clara, que dispensa
comentários.
Seria ainda como extensão e consequência do consórcio sagrado,
que, consoante Santo Hipólito (século II-III d.C.), em sua obra
monumental Philosophúmena ou Omnium haereseum refutatio (V,
38-41), “durante a noite, no meio de um clarão deslumbrante, que
comemora os solenes e inefáveis Mistérios, o hierofante gritava: a
venerável Brimo gerou Brimos, o menino sagrado: a Poderosa gerou o
Poderoso”.
Embora Brimo e Brimos sejam certamente vocábulos de origem
trácia, Brimo, no caso em pauta, designaria Perséfone, e Brimos, o
Iniciado. Kerényi opina que a proclamação do hierofante significa
que a deusa da morte gerou um filho no fogo18. Esse filho “nascido”
ou “renascido” em meio às chamas dos archotes, que iluminavam o
Telestérion, seria o mýstes, após sua morte iniciática.
Fechando os Grandes Mistérios, em meio a um mar de luz de
milhares de archotes, que davam ao Santuário de Deméter uma
imagem antecipada das campinas celestes, se efetuava a epopteía
propriamente dita, a grande visão. O hierofante apresentava à
multidão como que embevecida e extática, mergulhada em
profundo silêncio, uma espiga de trigo. Este talvez seja o símbolo da
grande mensagem eleusínia, símbolo que se fundamenta no liame
entre o seio materno e as entranhas profundas da Terra-Mãe. A
significação religiosa da espiga de trigo reside certamente no
sentimento natural de uma harmonia entre a existência humana e a
vida vegetal, ambas submetidas a vicissitudes semelhantes: a terra
que sozinha tudo gera, nutre e novamente tudo recebe de volta, diz
Ésquilo na Oréstia, 127s. Morrendo no seio da terra, os grãos de trigo,
por sua própria dissolução, configuram uma promessa de novas
espigas. O trigo, como qualquer cereal, tem uma morte fértil, como
diz Kerényi.
Talvez se pudesse fazer um cotejo com as palavras de Cristo a
respeito desse mesmo grão de trigo: Amen, amen dico uobis, nisi
granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum
manet: si autem mortuum fuerit, multum fructum adfert (Jo 12,24):
“Em verdade, em verdade, vos digo que, se o grão de trigo, que cai na
terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito
fruto”. A mesma ideia é repetida por São Paulo em 1Cor 15,36.
Ao terminar uma síntese como esta sobre os Mistérios de Elêusis,
fica-se, melancolicamente, num grande vazio. Muita história;
mitologia abundante; uma pletora de nomes e de etimologias;
citações e mais citações; hipóteses e só hipóteses. Sobre o rito, nem
uma palavra. Os Mistérios de Elêusis foram, realmente, um grande
mistério. O verbo mýein, fonte de mystérion, significa “calar a boca” e
também “fechar os olhos”: o grande segredo foi certamente sepultado
no silêncio e nas trevas de cada Iniciado.
Talvez a razão esteja com Plutarco: “O segredo por si só aumenta o
valor daquilo que se aprende”.
Por seu relacionamento com a filha Perséfone, deusa ctônia, e com
Triptólemo, o mensageiro da cultura do trigo, Deméter se revela a
grande deusa das alternâncias da vida e da morte, que regularizam o
ciclo da vegetação e de toda a existência. A deusa de Elêusis
simboliza uma fase capital na organização da terra: a passagem da
natureza bruta à cultura, da selvageria à civilização. Os símbolos
sexuais que intervêm no curso da iniciação evocam não só a
fecundidade da união sexual, mas sobretudo uma garantia para o
mýstes de uma regeneração numa outra vida de luz e de felicidade.
Para Paul Diel, Perséfone seria o símbolo supremo da repressão e o
sentido secreto dos Mistérios de Elêusis consistiria na descida ao
inconsciente, com o propósito de liberar o desejo reprimido e
procurar a verdade com vistas a si mesmo, o que pode ser a mais bela
das conquistas. Deméter, que deu aos homens o pão, símbolo do
alimento espiritual, lhes dará igualmente o sentido verdadeiro da
vida: a liberação com respeito a toda exaltação, bem como a qualquer
repressão. A deusa se afirmaria, desse modo, como símbolo dos
desejos terrestres justificados, encontrando satisfação graças ao
esforço engenhoso do intelecto-servidor, o qual, cultivando a terra,
permanece acessível ao apelo do espírito19.
De qualquer forma, o nume tutelar de Elêusis, matriz espiritual e
material, é bem diferente de Hera, esposa de Zeus. Deméter não é a
luz, mas o caminho para a luz, o archote que ilumina o caminho.
Perséfone é o grão que morre, para renascer mais jovem, forte e
belo e, por isso mesmo, ela é Core, a Jovem. Poderia simbolizar o
próprio neófito, que morre na iniciação, para renascer para uma vida
que não terá fim.
A permanência de Perséfone no Hades, que seria para sempre, foi
reduzida para quatro meses, por concessão especial de Plutão. É que a
jovem esposa, embora a contragosto e forçada, comera lá embaixo
uma semente de romã. Vamos ouvi-la:
Hades colocou dissimuladamente em minha mão Um
alimento doce e açucarado, uma semente de romã, e,
contra a minha vontade, usando de força, ele me
obrigou a comê-la.
(Hh. D., 411-413)
O simbolismo da romã se insere em outro de caráter mais geral, o
dos frutos com muitas sementes, como a laranja, abóbora e cidra...
Trata-se, essencialmente, de um símbolo de fecundidade, de
posteridade numerosa. Na Grécia, a romã era um atributo da deusa
Hera e de Afrodite e, em Roma, o penteado das mulheres casadas era
feito com entrelaçamento de ramos tenros de romãzeira. Na Ásia, a
imagem de uma semente aberta de romã expressa o desejo, quando
não a própria vulva. Daí o dizer-se por lá que a semente se abre e
deixa vir cem filhos. Na Índia, as mulheres bebiam o suco de
sementes de romã para combater a esterilidade. Perséfone foi
coagida a comer a semente doce da romã, que Hades astutamente lhe
colocara na mão: é que esta semente, consagrando quem a come aos
deuses infernais, é símbolo de uma doçura maléfica. Tendo-a
comido, Perséfone passará, e assim mesmo por “generosa anuência”
de Zeus e de Plutão, um terço do ano nas trevas brumosas do Hades e os
outros dois em companhia dos Imortais. No contexto do mito, a
semente de romã poderia significar que Perséfone deixou-se
sucumbir pela sedução e mereceu o castigo de passar quatro meses
nas trevas.
De outro lado, comendo a semente da romã, ela quebrou o jejum,
que era a grande lei do Hades. Quem ali comesse fosse o que fosse não
mais poderia regressar ao mundo dos vivos.
Os sacerdotes e sacerdotisas de Deméter, em Elêusis, se coroavam
com ramos de romãzeira, mas nenhum Iniciado podia, em hipótese
alguma, comer-lhe o fruto, porque, símbolo da fecundidade, possui a
faculdade de fazer com que as almas mergulhem no cárcere do
corpo.
A semente de romã, que condenou Perséfone às trevas, por uma
contradição aparente do símbolo, condenou-a também à esterilidade.
Paradoxo realmente aparente, porque a lei permanente do Hades
prevalece sobre o prazer efêmero de haver ela saboreado uma doce
semente de romã.
Dois pontos se devem destacar nessa desdita de Perséfone, que
comeu, e à força, uma semente de romã. O primeiro é o poder de
fixação que possuem, em muitas culturas, determinados alimentos e
o segundo, a repressão exercida pelo homem sobre a mulher, através
da alimentação.
É conhecida a força mística do alimento como fixação ou retorno
obrigatório a determinado lugar. Câmara Cascudo diz que o ato de
comer desliga de um país para outro, “como documento de
naturalização indiscutido”, e acrescenta que a iguaria tem uma
potência mágica detentora. “Quem come e bebe certos alimentos ou
líquidos não pode esquecer ou deixar de regressar aos lugares onde os
consumiu”20. O folclore universal, incluindo o brasileiro, nos fornece
uma lista deveras extensa de alimentos e bebidas com alto poder de
retenção. Entre estes se alinham o cabrito assado do Cáucaso, o
“puchero” da Argentina, a “olla podrida” da Espanha, o “porridge” da
Escócia, o iogurte da Bulgária, o pato de Rouen, o “Coq au vin du
Languedoc”, o vatapá e o caruru da Bahia... A água da fonte Trevi em
Roma é um convite a que se retorne à Cidade Eterna. O assaí de
Belém do Pará retém por lá a quem dele bebeu:
Quem vai ao Pará,
parou.
Bebeu assaí,
ficou.
Francisco A. Pereira da Costa assinala com muita precisão o liame
estabelecido pelo alimento entre esta e a outra vida: “O recémnascido que não foi amamentado e morre batizado, não
participando, portanto, de coisa alguma deste mundo, é um serafim,
anjo da primeira hierarquia celestial, e vai imediatamente para as
suas regiões ocupar um lugar entre seus iguais; o que receber
amamentação e as águas do batismo é simplesmente um anjo, porém
antes de entrar no céu passa pelo purgatório para purificar-se dos
vestígios da sua efêmera passagem pela terra, expelindo o leite com
que se amamentou”21.
Nas cerimônias religiosas do casamento na Grécia e em Roma, a
fixação do casal no novo lar dependia, entre outros ritos, da
degustação do bolo nupcial. O fecho da cerimônia, τὸ τέλος (tò
télos), “término, fim”, simbolizava a mudança de lar e a fixação da
noiva em seu novo domicílio, mas o ato representativo dessa
transferência era comer com o noivo um pedaço de um bolo especial
feito de gergelim e mel, bem como um marmelo ou tâmara, símbolos
estes últimos da fecundidade.
Na velha Roma, após as duas primeiras partes da cerimônia, que se
denominavam, respectivamente, traditio, que é a entrega da noiva ao
marido, e deductio in domum mariti, ida da noiva para a casa do
esposo, seguia-se, a confarreatio, que os dicionários traduzem por
“forma solene de casamento romano”, mas que, por extensão, se
constituía na cerimônia básica do mesmo: consistia em se comer um
bolo de farinha de trigo (far, farris) em comum, como símbolo de
permanência. É claro que os bolos de casamento ainda continuam
como símbolo do primeiro ato da vida em comum e doméstica da
noiva, que, doravante, passaria a mostrar suas aptidões também
culinárias...
Os banquetes fúnebres, falamos sobretudo de Roma, possuíam,
igualmente, entre outros, esse aspecto de fixação e permanência do
morto no seio da família, uma vez que este se transformava em deus
Lar. Os di lares, ou simplesmente Lares, eram espíritos tutelares, as
almas dos mortos, encarregados de proteger a casa, donde sua
permanência na mesma era absolutamente indispensável. A refeição
fúnebre, para que a fixação fosse realmente efetiva, se repetia no
nono dia, no trigésimo e, ao que parece, um ano após o óbito.
Na Idade Média havia um costume, pelo menos em Florença,
extremamente curioso e que atesta o poder do alimento como
vínculo social. Se o assassino conseguisse tomar uma sopa de pão e
vinho sobre o túmulo de sua vítima no decorrer dos nove primeiros
dias após o crime, a família do morto não poderia mais exercer o
direito da clássica vendetta, segundo a alusão de Dante22:
Sappi che’l vaso che’l serpente ruppe fu e non è; ma chi
n’ ha colpa creda che vendetta di Dio non teme suppe:
“Principia por saber que o carro profanado há pouco
pelo dragão já não está como foi, e se convença o
malfeitor de que à justiça divina nenhuma sopa se
antepõe”.
Perséfone foi obrigada a comer a semente de romã e, com isso,
sendo esta símbolo da fertilidade, a jovem ficou presa ao marido.
Fizemos um esboço de pesquisa sobre alimentação e sexualidade e
não julgamos fora de propósito aproveitá-la aqui, uma vez que a
semente de romã, como alimento e como símbolo, está estreitamente
ligada à sexualidade e à repressão, no caso em tela, de Plutão sobre
Perséfone.
Deve existir uma ligação biológica e real entre alimentação e
sexualidade. Logo de saída, o ser, durante os nove meses de gestação,
vive no seio materno, alimentando-se de sua substância e, uma vez
nascido, nutre-se do leite materno. A analogia da mama com o ato
sexual parece clara: “Trata-se, em ambos os casos, de um fenômeno
de tumescência”; e, como acentua Havelock Ellis: “A mama inchada
corresponde ao pênis em ereção; a boca ávida e úmida da criança
corresponde à vagina palpitante e úmida; o leite, vital e albuminoso,
representa o sêmen, igualmente vital e albuminoso. A satisfação
mútua, completa, física e psíquica da mãe e da criança, pela
passagem de um para o outro de um líquido orgânico e precioso, é
uma analogia fisiológica verdadeira com a relação entre um homem
e uma mulher no ponto culminante do ato sexual”23.
“A semelhança de conformação entre as extremidades orais e
vaginais, como observa Roger Caillois, numa parte do mundo
animal, é um fato devidamente estudado”24. Eis por que, muitas
vezes, o desejo sexual é encarado como um aspecto da necessidade de
alimentação. O próprio comportamento normal do ser humano
atesta uma característica que representa o liame entre alimentação e
sexualidade: “a dentada de amor”, por parte da mulher, no momento
do coito. Refere-se o fato, ao que tudo indica, a um comportamento
instintivo, sem nenhum caráter sádico. Tratar-se-ia, apenas, e
inconscientemente, de um ato simbólico de devorar o macho.
Essa ligação biológica, primária, entre alimentação e sexualidade
explica, num certo número de espécies animais, o fato de o macho
ser devorado pela fêmea, como o louva-a-deus e a borboleta, por
exemplo, logo após o coito.
No ser humano subsistem traços acentuados dessa convergência
de instintos. No fundo, o homem receia ser devorado pela mulher. É
o interior da vagina dentada, identificada com a boca, suscetível, por
isso mesmo, de cortar o membro viril, no momento da penetração. O
desenho da coletânea de poemas de Charles Baudelaire, Les fleurs du
mal, que estampa uma mulher com a epígrafe Quaerens quem
devoret, “buscando a quem devorar”, é muito sugestivo a esse
respeito.
Trata-se, ao que parece, do complexo de castração. E é tal esse
temor, que, na primeira noite de núpcias, nas culturas primitivas, o
noivo era ou ainda é substituído por um estrangeiro, um prisioneiro
de guerra ou por uma personagem importante, como o sacerdote ou o
rei. As duas primeiras classes eram escolhidas em função de seu
pouco ou nenhum apreço e as duas últimas pelo fato de o sacerdote e
o rei serem portadores da aura sagrada, não correndo, por isso
mesmo, nenhum risco.
Explica-se, desse modo, o hábito que perdurou na França, até o
século XIII, do célebre Le Droit de cuissage du Seigneur, ou seja, o
direito da coxa do senhor, em que o rei, deflorando a noiva, dizia-se,
prodigalizava às mulheres a fertilidade, bem como contribuía
poderosamente para a prosperidade do rebanho e para colheitas
abundantes. Como se vê, sexualidade ligada à alimentação. Aliás, o
verbo comer em nossa língua tem, além de seu sentido normal, uma
conotação chula.
Os maridos romanos, no ato do defloramento, invocavam aos
gritos a deusa protetora Pertunda (nome proveniente de pertundere,
varar de um lado a outro), conforme atesta, entre outros, Santo
Agostinho, De Ciuitate Dei, 6,9,325. Por que tanta precaução e medo?
Primeiramente, o claro temor do fracasso, o complexo de castração,
daí a presença de tantos “ajudantes”, e depois o perigo que
representava o sangue do hímen, que era tido como perigoso e
nefasto.
O Rig Veda, X, 85,28,34, considera corno venenosa qualquer peça
ensanguentada da noite de núpcias. O sangue do hímen é
identificado com o catamênio, que afasta a mulher menstruada do
convívio social, tornando-se a mesma tabu. Sempre presente o
complexo de castração.
No mito são muitas, já o vimos, as figuras femininas devoradoras,
cuja projeção é a Giftmädchen, quer dizer, a donzela venenosa: Lâmia,
as Harpias, Empusa, Esfinge, as Danaides, as Sereias... E não é este
também, em última análise, o sentido do mito de Pandora, que trouxe
como presente de núpcias a Prometeu uma jarra ou uma caixinha,
que, aberta, deu origem a todas as desgraças que pesam sobre os
homens?
Ora, caixa, caixinha, em grego, diz-se pyksís, pyksídos que o latim
clássico simplesmente transcreveu por pyxis,-idis. Do acusativo
singular do latim popular buxida, de buxis, simples alteração de
pysis,-idis, temos o francês boiste e depois boîte, caixa, cofre pequeno
e trabalhado e também cavidade de um osso, bem como o português
arcaico boeta e o clássico boceta, caixinha redonda, oval ou oblonga
que, na linguagem chula, passou a ter também o sentido de vulva.
Para ficarmos apenas na Grécia, poder-se-ia ainda citar o
nascimento do segundo Dioniso: Sêmele ficou grávida “de Zeus”,
porque devorou o coração de Zagreu, o primeiro Dioniso, consoante o
mito órfico.
Parece realmente que o mito da fêmea devoradora é um
mecanismo de defesa arquitetado pelo homem. É a “liquidação de um
complexo por um mecanismo semelhante”: similia similibus
curantur, os semelhantes curam-se com os semelhantes. Trata-se de
uma autodefesa do macho. Talvez a atividade sexual da mulher
castre o homem. “O medo de ser enfraquecido pela mulher e sua
estratégia sexual”, a lassidão e uma certa fadiga que se seguem após o
coito impediriam a realização de atos viris e até mesmo o sucesso nos
empreendimentos e negócios a que se dedica o homem.
Luís da Câmara Cascudo colheu nos sertões nordestinos dois tabus
muito apropriados ao que vimos expondo: “cangaceiro andou com
mulher, abriu o corpo”26, quer dizer, perdeu sua proteção mágica,
enfraqueceu-se. E o segundo: “visita de mulher em manhã de
segunda-feira dá liliu”, ou seja, dá azar, “provoca desastres”...27
Otto Rank sintetizou bem o problema: “O desprezo que o homem
afeta pela mulher é um sentimento que tem sua fonte na
consciência, mas, no inconsciente, o homem teme a mulher”28.
“O sistema patriarcal tende então a ‘eliminar a mulher’,
transformando em tabu qualquer tipo de aproximação. Nesse
sentido, a nutrição é ligada inconscientemente à mãe”29.
Afinal, a mulher é hipóstase da Terra-Mãe, matriz dos alimentos e
é da “carne e sangue” da mulher que se nutre o feto durante nove
longos meses. Tudo isso explicaria as restrições alimentares que
incidem como tabu sobre a mesma, principalmente quando gestante,
de resguardo ou menstruada.
“Um levantamento realizado no Espírito Santo, de 1957 a 1962,
mostra que a gestante não deve comer: carne-seca com polenta,
fígado de boi ou vaca, feijão com arroz, ‘papa’ de polenta, aipim,
inhame, pimenta, repolho, abacaxi, jaca, melancia, manga quente do
sol, além do mais, não pode comer fora de hora”30. Ovo é
expressamente proibido à mulher de resguardo: a alimentação ideal,
nestas circunstâncias, é carne de galinha, com pouco tempero. Queijo
é perigoso: faz que a mãe ou a criança, ainda em período de mama,
fique “esquecida”...
No fundo, a patrilinhagem “vinga-se” do complexo de castração.
Uma simples semente de romã torna-se, destarte, um símbolo
bastante sugestivo.
4
HADES, em grego Ἅιδης (Háides). Os antigos interpretavam este
vocábulo com base na etimologia popular, sem nenhum cunho
científico, e Hades erradamente era traduzido por “invisível,
tenebroso”, o que teria a vantagem, e há os que o fazem até hoje, de
aproximá-lo do alemão Hölle e do inglês hell, “mundo subterrâneo,
inferno”.
Modernamente se prefere aproximar Ἄιδης de αἰανής (aianés),
por σαFανής (saiwanés), “terrível”, latim saeuus, “cruel, terrível,
violento”, mas trata-se de simples hipótese.
Após a vitória sobre os Titãs, o Universo foi dividido em três
grandes impérios, cabendo a Zeus o Olimpo, a Posídon o Mar e a
Hades o imenso império localizado no “seio das trevas brumosas”,
nas entranhas da Terra, e, por isso mesmo, denominado
“etimologicamente” Inferno, como se explicará depois.
Na luta contra os Titãs, os Ciclopes armaram Hades com um
capacete que o tornava Invisível, daí a falsa etimologia que lhe deram
os Gregos, ἀ (a) “não” e ιδεῖν (ideîn) “ver”. Esse capacete, por sinal,
muito semelhante ao de Siegfried na mitologia germânica, foi usado
por outras divindades como Atená e até por heróis, como Perseu, fato
já mencionado no mito da Górgona. Por “significar” Invisível, o nome
Hades (que também lhe designa o reino), é raramente proferido:
Hades era tão temido, que não o nomeavam por medo de lhe excitar
a cólera. Normalmente é invocado por meio de eufemismos, sendo o
mais comum Plutão, o “rico”, como referência não apenas a “seus
hóspedes inumeráveis”, mas também às riquezas inexauríveis das
entranhas da terra, sendo estas mesmas a fonte profunda de toda
produção vegetal. Isso explica o corno de abundância com que é
muitas vezes representado. Violento e poderoso, receia tão somente
que Posídon, o “sacudidor da terra”, faça o solo se abrir e “franqueie
aos olhos de todos, mortais e Imortais, sua morada horripilante, esse
local odiado, cheio de bolor e de podridão”, como lhe chama Homero
na Ilíada, XX, 61-65.
Geralmente tranquilo em sua majestade de “Zeus subterrâneo”,
permanece confinado no sombrio Érebo, de onde saiu apenas duas
vezes, uma delas para raptar Core. Exceto essa temerosa aventura,
Hades ocupa sua eveternidade em castigar ou repelir os intrusos que
teimam em não lhe respeitar os domínios, como o audacioso Pirítoo,
que, acompanhado de Teseu, penetrou no Hades na louca esperança
de raptar Perséfone. Pirítoo lá está, por astúcia de Plutão, sentado
numa cadeira, por toda a eternidade, como se há de ver no mito de
Teseu. Lutou ainda contra Héracles, que desceu aos Infernos, para
capturar o cão Cérbero. Foi no decurso deste combate que o herói o
feriu no ombro direito com uma flechada. Tão grande era a dor, que o
Senhor dos mortos teve que subir ao Olimpo e solicitar os bons
serviços de Peéon (epíteto de Apolo), o deus curandeiro, que lhe
aplicou sobre o ferimento um bálsamo maravilhoso. É tão
estreitamente ligado a Zeus ctônio, que Hesíodo prescreve ao
camponês de invocá-lo associado a Deméter, antes de meter mãos à
charrua. Derivado de Pluto, tão benéfico no Hino homérico a
Deméter, Plutão possuía, como se mostrou, um valor puramente
eufemístico, permitindo, assim, que se encobrisse o verdadeiro
caráter de Hades, o cruel, o implacável, o inflexível, que odiado de
todos (Il., IX, 158), não poderia, com esse nome, receber as honras
devidas a um deus. As inscrições mostram que mesmo assim Plutão
era muito pouco cultuado na Terra, possuindo, com certeza, apenas
um templo em Elêusis e outro menor em Élis, que era aberto somente
uma vez por ano e por um único sacerdote.
Já que estamos no Hades, vamos dar uma ideia da concepção
popular grega da outra vida, que é, a bem da verdade, resultante de
vastos sincretismos, que se estendem de Homero aos derradeiros
neoplatônicos (século III d.C.), passando luminosamente pela Eneida
de Vergílio, composta, já se sabe, no século I a.C.
Tomada em bloco, a religião grega, que jamais teve um livro
sagrado, também não comportava dogmas, porque nunca possuiu
um sacerdócio (exceto, em parte, nos Mistérios e no Oráculo de
Delfos), que a preservasse de erros e transmitisse a doutrina e a
crença a seus adeptos, fortalecendo-lhes a fé. A ausência de uma
classe sacerdotal há de trazer à religião helênica consequências
sérias. Não havendo quem consagrasse sua vida ao serviço dos
deuses, de seus templos e de seus bens, os assim chamados sacerdotes
não passavam de cidadãos comuns, eleitos para a função por tempo
determinado, verdadeiros sacerdotes sem “vocação” e despreparados,
as mais das vezes. Eram homens que, junto à sua ocupação normal na
vida da cidade, tinham a missão temporária de cuidar do culto de um
deus e guardar-lhe o templo.
Enquanto no Oriente a atividade literária, como bem acentuou
Nilsson31, a conservação da tradição, a especulação e tudo quanto
houvesse de ciência estavam nas mãos dos sacerdotes, tudo isto, na
Grécia, desde a época mais antiga, era assunto de leigos, de poetas e
de pensadores. Quando se tratava de assuntos mais graves atinentes
à religião, os mesmos eram resolvidos pela ἐκκλησία(ekklesía), pela
assembleia do povo, embora se reconhecesse o poder dos deuses,
solicitando-lhes o consentimento através do Oráculo de Delfos, se se
tratasse sobretudo de modificar cultos antigos ou introduzir outros
novos. É grande e séria a transcendência dessa circunstância, pois
constitui nada menos que a base para a liberdade de pensamento,
bem como para o nascimento da filosofia e da ciência. Pois bem, foi
exatamente essa liberdade de pensamento, somada aos vastos
sincretismos, que acabou por moldar “uma crença”, que fez da
religião grega uma colcha de retalhos. É verdade que os deuses
tinham seus templos, seus nomes, suas múltiplas funções, mas cada
um podia interpretá-los como bem o desejasse.
Assim sendo, não se pode falar de uma escatologia grega, mas
houve na Hélade tantas escatologias quantas as fases e momentos
histórico-sócio-culturais por que passou a Hélade. Houve tantas
escatologias quantas as correntes literárias e filosóficas que
medraram na pátria de Homero e de Sócrates. Já se falou de
“escatologias” em Homero e Hesíodo: ambas muito diferentes...
Poderíamos falar de outras: nos Órficos, nos Pitagóricos, em Platão e
nos Neoplatônicos, nos Estoicos e até na ausência de escatologia no
Epicurismo (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Escatologia).
Vamos nos ater, porém, para o momento, apenas na visão popular
do além32, não nos esquecendo, vamos repetir, que se trata de um
vasto sincretismo.
O reino ctônio de Plutão chamava-se mais comumente Hades, mas
havia outros nomes pelos quais podia ser designado, na Grécia e em
Roma, muitas vezes tomando-se a parte pelo todo, como Érebo,
Tártaro, Orco, Inferno, estes dois últimos provenientes do latim.
Discutida a etimologia de Hades, tentaremos estabelecer as das
outras denominações, quando existirem.
ÉREBO, do grego Ἔρεβος (Érebos), designa as trevas que cercam o
mundo.
Trata-se de uma concepção indo-europeia, *reqwos, “cobrir de
trevas”, que aparece no sânscrito como rájas, “espaço escuro”, no
gótico riqiz, “escuridão”, e no armênio erek, “tarde”, como se mostrou
no capítulo IX.
TÁRTARO, é o grego Τάρταρος (Tártaros), “abismo subterrâneo,
local de suplícios”. É possivelmente um empréstimo oriental.
Orco é o latim Orcus, “morada subterrânea dos mortos, os
infernos”. A etimologia do vocábulo é desconhecida. A proveniência
do indo-europeu *areq ou areg é atualmente considerada como
fantasiosa, quando não absurda.
Inferno ou “Os Infernos” é palavra latina infernus.
Etimologicamente infernus é uma forma segunda de inferus, “que se
encontra embaixo”, por oposição a superus, “que se encontra em
cima”, donde a oposição Di Inferi, deuses do Inferno, do Hades, e Di
Superi, deuses do Olimpo. Observe-se, ainda, em latim, os
comparativos inferior, que está mais embaixo, “inferior”, por
oposição a superior, que está mais acima, “superior”.
Substantivado, o neutro plural inferna,-orum, significa as
habitações dos deuses de baixo e também dos mortos, quer dizer, o
Inferno, abstração feita, em princípio, de local de sofrimento ou de
castigo, já que todos na Grécia e em Roma iam para o “Inferno”, como
parece ter sido no Antigo Testamento, o sentido de Sheol, onde é
documentado sessenta e cinco vezes, como por exemplo em Jó 17,16:
in profundissimum infernum descendent omnia mea: “todas as
minhas coisas descerão ao mais profundo dos infernos”. E era,
precisamente, com esta acepção que ainda se rezava, no Credo, não
faz muito tempo, (que Jesus Cristo) desceu aos infernos, expressão
que, para evitar equívoco, foi substituída por desceu à mansão dos
mortos. É a partir do Novo Testamento, todavia, que o Inferno é
identificado com a Geena, local de sofrimento eterno e a parte mais
profunda do Sheol, como está em Lc 16,22-23:
Factum est autem ut moreretur mendicus et portaretur ab angelis
in sinum Abrahae. Mortuus est autem et dives et sepultus est in
inferno: “Ora sucedeu morrer o mendigo e foi levado pelos anjos para
o seio de Abraão, e morreu também o rico, e foi sepultado no
inferno”.
A sequência da parábola diz que Lázaro, o mendigo, estava lá em
cima e o rico, lá embaixo, havendo entre ambos um abismo
intransponível.
Na Grécia, ao que tudo indica, somente a partir do Orfismo, lá pelo
século VII-VI a.C., é que o Hades, o Além, foi dividido em três
compartimentos: Tártaro, Érebo e Campos Elísios. O fato facilmente
se explica, conforme se há de falar no mito de Orfeu e Eurídice: é que
o Orfismo rompeu com a secular tradição da chamada maldição
familiar, segundo a qual não havia culpa individual, mas cada
membro do guénos era corresponsável e herdeiro das faltas de cada
um de seus membros, e tudo se quitava por aqui mesmo. Para os
Órficos a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se
paga aqui; e quem não se purgar nesta vida, pagará na outra ou nas
outras. Havendo uma retribuição, forçosamente terá que existir, no
além, um prêmio para os bons e um castigo para os maus e, em
consequência, local de prêmio e de punição. Veremos um pouco mais
adiante que, desses três compartimentos, somente um era
permanente, na concepção popular.
Quanto à localização, o Hades era um abismo encravado nas
entranhas da Terra, e cuja entrada se situava no Cabo Tênaro (sul do
Peloponeso) ou numa caverna existente perto de Cumas, na Magna
Grécia (sul da Itália).
Também na literatura babilônia, na epopeia de Gilgamex, nos
mitos de Nergal e Ereskigal, na descida de Ištar para os Infernos,
estes são um lugar debaixo da Terra, além do oceano cósmico. Há
dois caminhos para se chegar lá: descendo na terra ou viajando para
o extremo ocidente; mas, antes de atingir o Além, é necessário
transpor o rio dos mortos, “as águas da morte”. Também as
concepções ugarítica e bíblica localizam o Inferno nas profundezas
da Terra (Sl 63,10). Abrindo-se esta, Coré, o levita, que se opôs a
Moisés, bem como Datã e Abirão, com os seus, desceram vivos para
os Infernos (Nm 16,30-33). Jó, que os considera como o lugar mais
baixo da criação (11,8), imagina os acessos à outra vida no fundo do
oceano primordial, em que a terra boia (Jó 38,16ss; 26,5).
O universo, por conseguinte, é dividido em três partes: “acima da
terra, na terra e debaixo da terra” ou céu, terra e inferno (Ex 20,4; Fl
2,10).
Para que se possa compreender o destino da alma no Hades, vamos
acompanhá-la em sua longa viagem, do túmulo ao reino de Plutão. A
obrigação mais grave de um grego é o que concerne ao sepultamento
de seus mortos: os filhos, ou, na carência destes, os parentes mais
próximos devem sepultar seus pais segundo os ritos, sob pena de lhes
deixar a alma volitando no ar por cem anos (o cômputo é puramente
fictício), sem direito a julgamento, e, por conseguinte, à paz do Além.
Lembremo-nos do já citado verso da Ilíada (XXIII, 71) no capítulo
VII, em que a psiqué de Pátroclo pede angustiadamente a Aquiles que
lhe sepulte o corpo, ou as cinzas, após a cremação, não importa:
Sepulta-me o mais depressa possível, para que eu cruze as
portas do Hades.
O sepultamento, todavia, depende de certos ritos preliminares: o
cadáver, após ser ritualmente lavado, é perfumado com essências e
vestido normalmente de branco, para simbolizar-lhe a pureza. Em
seguida, é envolvido com faixas e colocado numa mortalha, mas
com o rosto descoberto, para que a alma possa ver o caminho que
leva à outra vida. Certos objetos de valor são enterrados com o morto:
colares, braceletes, anéis, punhais... Os arqueólogos, escavando
túmulos, encontraram grande quantidade desses objetos. Em certas
épocas se colocava na boca do morto uma moeda, óbolo destinado a
pagar ao barqueiro Caronte, para atravessar a alma pelos quatro rios
infernais. Essa ideia de pagamento da passagem, diga-se logo, não é
um simples mecanismo da imaginação popular. Toda moeda é um
símbolo: representa o valor pelo qual o objeto é trocado. Mas, além de
seu valor próprio de dinheiro, de símbolo de troca, as moedas,
consoante Cirlot, “desde a Antiguidade tiveram certo sentido
talismânico”33, uma vez que nelas a conjunção do quadrado e do
círculo não é incomum. Além do mais, a moeda, em grego nómisma, é
o símbolo da imagem da alma, porque esta traz impressa a marca de
Deus, como a moeda o traz do soberano, segundo opina Angelus
Silesius. A moeda chinesa, denominada “sapeca”, é um círculo com
um furo quadrado no centro; vê-se aí claramente a coniunctio
oppositorum: a conjunção do Céu (redondo) e da Terra (quadrada), o
animus e a anima, formando uma totalidade. Por vezes se colocava
junto ao morto um bolo de mel, que lhe permitia agradar o cão
Cérbero, guardião da porta única de entrada e saída do Hades. O
cadáver é exposto sobre um leito, durante um ou dois dias, no
vestíbulo da casa, com os pés voltados para a porta, ao contrário de
como entrou na vida. A cabeça do morto, coroada de flores, repousa
sobre uma pequena almofada. Todo e qualquer homem podia velar o
morto, acompanhar-lhe o féretro e assistir-lhe ao sepultamento ou à
cremação, mas a lei era extremamente rígida com a mulher: na ilha
de Ceos só podiam entrar na casa, onde houvesse um morto, aquelas
que estivessem “manchadas” (a morte sempre contamina) pela
proximidade de parentesco com o mesmo, a saber, a mãe, a esposa, as
irmãs, as filhas e mais cinco mulheres casadas e duas jovens
solteiras, cujo grau de parentesco fosse no mínimo de primas em
segundo grau.
Em Atenas, igualmente, a legislação de Sólon era severa a esse
respeito: só podiam entrar na casa do morto e acompanhar-lhe o
enterro aquelas que fossem parentes até o grau de primas. Os
presentes vestiam-se de luto, cuja cor podia ser preta, cinza e, por
vezes, branca, e cortavam o cabelo em sinal de dor. Carpideiras
acompanhavam o féretro para cantar o treno. Diante da porta da
casa se colocava um vaso (ardánion) cheio de uma água lustral, que
se pedia ao vizinho, porque a da casa estava contaminada pela morte.
Todos que se retiravam, se aspergiam com essa água, com o fito de se
purificar. O enterro se realizava na manhã seguinte à exposição do
corpo. A lei de Sólon prescrevia que todo enterro se deveria realizar
pela manhã, antes do nascimento do sol. Desse modo, os enterros em
Atenas se faziam pela madrugada e por um motivo religioso: até os
raios de sol se manchavam com a morte! No cemitério, sempre fora
dos muros da cidade, o corpo era inumado ou cremado sobre uma
fogueira: neste último caso, as cinzas e os ossos eram
cuidadosamente recolhidos e colocados numa urna, que era
sepultada. Após se fazerem libações ao morto, voltava-se para casa e
se iniciava o minucioso trabalho de purificação da mesma, porque,
para os gregos, o maior dos “miasmas” era o contato com a morte.
Após um banho de cunho rigorosamente catártico, normalmente
com água do mar, os parentes do morto participavam de um
banquete fúnebre; este se renovava, em Atenas, ao menos, no
terceiro, nono e trigésimo dia e na data natalícia do falecido.
Sepultado ou cremado o corpo, a psiqué era conduzida por Hermes,
deus psicopompo, até a barca de Caronte34. Recebido o óbolo, o
robusto demônio da morte permitia a entrada da alma em sua barca,
que a transportava para além dos quatro temíveis rios infernais,
Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte, já por nós explicados no
capítulo XII. Já do outro lado, após passar pelo cão Cérbero, o que não
oferecia grandes dificuldades, pois o que o monstro de três cabeças
realmente vigiava era a saída, a psiqué enfrentava o julgamento. O
tribunal era formado por três juízes integérrimos: Éaco, Radamanto e
Minos. Esse tribunal, no entanto, é bem recente. Homero só conhece
como juiz dos mortos a Radamanto. Éaco aparece pela primeira vez
em Platão.
Radamanto julgava os asiáticos e africanos; Éaco, os europeus. Em
caso de dúvida, Minos intervinha e seu veredicto era inapelável.
Infelizmente quase nada se sabe acerca do conteúdo desse
julgamento e a maneira como era conduzido, embora na Eneida,
6,566-569, Vergílio nos fale, de passagem, que Radamanto supliciava
as almas, obrigando-as a confessar seus crimes ocultos.
Julgada, a alma passava a ocupar um dos três compartimentos:
Campos Elísios, Érebo ou Tártaro. Neste último eram lançados os
grandes criminosos, mortais e imortais. Era o único local
permanente do Hades: lá, como se viu nos capítulos IX e X,
supliciados pelas Erínias, ficavam para sempre os condenados, os
irrecuperáveis. O mesmo Vergílio, ainda no canto 6,595-627, nos dá
uma visão dantesca dos suplícios a que eram submetidos os réprobos
e a natureza dos crimes por eles perpetrados. O grande poeta,
todavia, no que se refere às faltas graves cometidas, mistura
habilmente “aos que espancaram os pais, aos avarentos, aos
adúlteros, aos incestuosos, aos que desprezam os deuses”, os
condenados por crimes políticos... Estão no Tártaro os que “fizeram
guerras civis, os desleais, os traidores, os que venderam a pátria por
ouro e impuseram-lhe um senhor despótico...” É bom não perder de
vista que, a par de ser um poema tardio (século I a.C.), a Eneida é
também uma obra assumidamente engajada e comprometida com a
ideologia política do imperador Augusto, cuja pessoa, cuja família,
que era de origem divina35, cujo governo e cujas reformas o poeta
canta, exalta e defende. No Tártaro vergiliano, os assassinos
principais de César, Cássio e Bruto, e seus grandes inimigos políticos,
como Marco Antônio e a egípcia Cleópatra, entre muitos outros, sem
omitir os heróis gregos, inimigos do troiano Pai Eneias, fundador da
raça latina, certamente formariam um inferninho à parte, com
suplícios adequados... Talvez mais violentos do que os do inferno
político da Divina Comédia de Dante!
Mas a Sibila de Cumas, que acompanhara Eneias à outra vida, dizlhe que, embora tivesse cem bocas, seria impossível nomear todas as
sortes de crimes e relatar as espécies de castigos.
O Érebo e os Campos Elísios são impermanentes: trata-se mais de
compartimentos de prova do que de purgação. As provações aí
realizadas servem de parâmetro de regressão ou de evolução e
aperfeiçoamento, cuja natureza nos escapa. Quer dizer, a descida
definitiva ao Tártaro ou a próxima ἐνσωμάτωσις (ensomátosis),
“reencarnação”, ou ainda a próxima μετεμψύχωσις (metempsýkhosis),
“metempsicose”, que são coisas muito diferentes36, dependeriam
intrinsecamente do “comportamento” da psiqué durante sua
permanência no Érebo ou nos Campos Elísios. No Érebo estão
aqueles que cometeram certas “faltas”. Seria conveniente deixar claro
que alguns habitantes temporários do Érebo, que Vergílio denomina
lugentes campi, Campos das Lágrimas, não têm suas faltas
especificadas e outros lá estão sem que possamos compreender o
motivo. Recorrendo mais uma vez à Eneida, 6,426-450, vamos ver
que nos Campos das Lágrimas estão criancinhas que morreram
prematuramente; as vítimas de falso julgamento; as suicidas (o
poema só fala em mulheres) por amor, como Fedra, Prócris, Evadne,
Dido...
Alguns heróis troianos (mirabile dictu!) também lá estão e heróis
gregos igualmente.
O poeta latino, no entanto, deixa bem claro que essas almas não
estão no Érebo por acaso, “sem o aresto de juízes, uma vez que Minos
indagou de sua vida e de seus crimes”. Donde se conclui que
cometeram “faltas”.
Do Érebo, que é temporário, elas ou mergulharão no Tártaro,
porque se pode regredir, ou subirão para outra impermanência, os
Campos Elísios, único local de onde poderiam partir os candidatos à
reencarnação ou à metempsicose.
Em se tratando do último nível ctônio, em que estão os poucos que
lá conseguiram chegar, os Campos Elísios, em grego Ηγύσια πεδία
(Elýsia pedía) são descritos, ao menos na Eneida, 6,637ss, como um
paraíso terrestre em plena idade de ouro. Lá residem os melhores em
opulentos banquetes nos gramados, cantando em coro alegres
canções, nos perfumados bosques de loureiro. Lá estão os que já
passaram por uma série de provas e purgações. Mas, decorridos mil
anos, após se libertarem totalmente das “impurezas materiais”, as
almas serão levadas por um deus às águas do rio Lete37e, esquecidas
do passado, voltarão para reencarnar-se.
Em nove versos, o grande poeta latino sintetiza toda a doutrina da
reencarnação emanada da doutrina órfico-pitagórica:
quisque suos patimur manis; exinde per amplum
mittimur Elysium et pauci laeta arua tenemus, donec
longa dies perfecto temporis orbe concretam exemit
labem, purumque relinquit aetherium sensum atque
aurai simplicis ignem. Has omnis, ubi mille rotam
uoluere per annos,
Lethaeum ad fluuium deus euocat agmine magno,
scilicet immemores supera ut conuexa reuisant
rursus, et incipiant in corpora uelle reuerti.
(En., 6,743-751)
– Todos sofremos em nossos manes os merecidos
castigos. Em seguida somos enviados para o vasto
Elísio e são poucos os que ocupam estes prados alegres,
enquanto o escoar dos anos destrói a impureza
material, deixando puro o etéreo espírito, no estado
primeiro de fulgor ígneo. Um deus então, decorridos
mil anos, leva às águas do Lete as almas purificadas,
para que, esquecidas do passado, tornem a ver a face da
terra e queiram voltar a novos corpos.
Poderia causar estranheza aos menos avisados o fato de nos termos
apoiado, em alguns pontos, num poema latino, para explicar a
escatologia popular grega. A explicação é fácil: toda a parte
doutrinária do 6ocanto da Eneida é órfico-pitagórico-platônica.
Boyancé fez um estudo extraordinário da religião vergiliana e no
capítulo VII, intitulado Inferi (Os Infernos), sintetizou não apenas
quanto o poeta latino deve à Grécia no 6° canto, mas quanto também
Vergílio é original no mesmo canto sexto, que é considerado, com
justas razões, como o termômetro da Eneida. “Observando-se as
concepções religiosas (do canto 6o), tudo é grego, quer se trate de
mitos infernais ou de doutrinas filosóficas. Mas que o Pai (Anquises)
seja o hierofante e que Eneias, por sua pietas, tenha sido conduzido a
ele, que o cívico e o cósmico estejam estreitamente associados, tudo
isto faz que o espírito, que dá vida às concepções, aos mitos e à
doutrina, se torne profundamente romano”.
Eis aí uma visão da escatologia grega popular em suas linhas
gerais, mas poder-se-ia perguntar: a quantas reencarnações se tinha
direito? E depois de totalmente purificada das misérias do cárcere do
corpo, qual o destino final da psiqué? A primeira pergunta talvez se
pudesse responder evasivamente que o número de reencarnações se
mediria pela paciência dos deuses (que certamente não era muito
grande!); e à segunda, dizendo-se que, via de regra, o céu grego era
platonicamente a Via Láctea. Ao menos, que se saiba, a cabeleira de
Berenice e os imperadores romanos, que morriam benquistos do
povo, eram transformados em astros...
5
POSÍDON, em grego Ποσειδῶν (Poseidôn). Partindo-se da variante
gráfica Ποτειδάῶν (Poteidáon), é possível, segundo Kretschmer,
Glotta, 1, 1909, 27ss, 382ss, analisar o teônimo como justaposição do
vocativo *Ποτει (*Pótei), v. πόσις (pósis), “senhor, esposo”, e de Δᾶς
(Dâs), nome antigo da “terra”, δᾶ (dâ) e Δημήτηρ (Deméter), donde
Posídon seria “o mestre, o senhor, o esposo da terra” conforme
assinala Pierre Chantraine, DELG., p. 931. Carnoy, DEMG, p. 170, com
base no dórico, decompõe o vocábulo Ποτειδᾶν (Poteidân) em
πόσις (pósis), “senhor”, e δᾶν (dân), “água”, e Posídon significaria “o
senhor das águas”, o que é pouco provável.
De qualquer forma, Posídon é o deus das águas, mas a princípio, e
antes do mais, das águas subterrâneas. Veremos o motivo histórico
desse fato linhas abaixo. Quando o Universo, após a vitória de Zeus
sobre os Titãs, foi dividido em três grandes reinos, como se mostrou,
ao falarmos de Hades, Posídon obteve, por sorte, mas para sempre, o
domínio do branco mar (Il., XV, 187s). Embora tenha lutado
valentemente contra os Titãs e “fechado sobre eles as portas de
bronze do Tártaro”, o deus do mar nem sempre foi muito dócil à
superioridade e à autoridade de seu irmão Zeus.
Tal independência explica o ter participado com Hera e Atená de
uma conspiração para destronar o pai dos deuses e dos homens. A
intentona teria surtido efeito, não fora a pronta intervenção do
Hecatonquiro Briaréu, chamado às pressas por Tétis. Bastou a
presença do monstro, para que os conjurados desistissem de seu
intento. Como castigo, Posídon foi obrigado a servir durante um ano
ao rei de Troia, Laomedonte. Ali, juntamente com Apolo e o mortal
Éaco, participou da construção da sólida muralha da fortaleza de
Heitor.
Ao término da fatigante tarefa, Laomedonte se recusou a pagar o
salário combinado. Posídon suscitou contra a região da Tróada um
terrível monstro marinho e na Guerra de Troia, apesar de sua
prudência e temor de Zeus, colocou-se ao lado dos aqueus, exceção
feita a certas vinganças pessoais contra Ájax da Lócrida e Ulisses.
Disfarçado em Calcas, o deus encoraja os dois Ájax, exorta Teucro e
Idomeneu e acaba tomando parte pessoalmente no combate, mas se
retirou da refrega, sem discutir, quando Zeus assim o decidiu. Se
salvou Eneias de morte certa nas mãos de Aquiles, talvez tal atitude
se explique porque o herói troiano não estava ligado à família de
Laomedonte, mas a Trós, através de Anquises, Cápis e Assáraco ou
ainda porque desejasse angariar um sorriso de Afrodite. Como Zeus,
o deus do mar também está ligado ao cavalo, ao touro, a Deméter,
como divindade de fecundação. Casou-se com Anfitrite, que foi mãe
do “imenso Tritão, divindade terrível e de grandes forças, que habita
com sua mãe e seu ilustre pai um palácio de ouro nas profundezas
das águas marinhas” (Teog., 930-933). Reina em seu império líquido, à
maneira de um “Zeus marinho”, tendo por cetro e por arma o
tridente, que os poetas dizem ser tão terrível quanto o raio. Seu
palácio “faiscante de ouro e indestrutível” (Il., XIII, 22) ficava nas
profundezas de Egas, cidade na costa norte da Acaia, onde estava
localizado um de seus principais santuários. Percorria as ondas sobre
uma carruagem tirada por seres monstruosos, meio cavalos, meio
serpentes. Seu cortejo era formado por peixes e delfins e criaturas
marinhas de todas as espécies, desde Nereidas até gênios diversos,
como Proteu e Glauco. Eis as facetas mais conhecidas do grande deus
do mar, desde Homero. Subsistem, porém, na própria epopeia,
vestígios de um Posídon mais antigo e bem diferente, revelado por
epítetos frequentes e significativos e curiosamente sinônimos, como
ένοσίχθων (enosíkhthon), σεισίχθων (seisíkhthon) e έννσίμασίς
(ennosígaios), quer dizer, o “sacudidor da terra”, o que corresponde a
uma ação de baixo para cima, isto é, a uma atividade exercida do seio
da terra por uma divindade subterrânea. Posídon, com efeito, foi um
antigo deus ctônio, muito antes de tornar-se um deus do luar. Em
suma, estes três epítetos mostram que originariamente o deus foi
uma divindade ativa que fazia a terra oscilar, quer se tratasse da
seiva vital e de abalos sísmicos, quer se tratasse de todas as águas que
escapavam do seio da Terra-mãe. Com os epítetos de Φυτάλμιος
(Phytálmios) e Φύκιος (Phýkios), isto é, que faz nascer, que produz
algas”, Posídon aparece igualmente como o promotor da vegetação
marinha e terrestre, sendo esta última alimentada pelas águas doces
tidas como emanação do deus. Como Phytálmios, diga-se de
passagem, o “sacudidor da terra” estava associado nas Haloas a
Dioniso e Deméter e no velho mito da Arcádia era considerado como
esposo de Deméter-Geia. Essencialmente ctônio, o que não significa
infernal, eis aí o Posídon dos primeiros invasores gregos, que, não
conhecendo e não tendo um vocábulo seu para designar mar38, não
poderiam ter trazido consigo um deus do mar. Trouxeram,
realmente, um “outro deus”, o Posídon ctônio, senhor das águas
subterrâneas, depois das águas “terrestres”, nascentes, fontes e lagos,
e, só depois, deus do mar.
Meillet, cujas conclusões acabamos de citar, resume o problema do
desconhecimento do mar por parte dos gregos e portanto da
inexistência, a princípio, de um deus “das águas salgadas” com as
seguintes palavras: “O mar não possui em grego uma denominação
antiga e não existe para mar outro nome indo-europeu a não ser no
grupo supracitado, do latim mare...”39Devem ter sido os emigrantes
gregos que povoaram as ilhas e as regiões costeiras da Ásia Menor,
esses “navegadores convertidos”, que estenderam ao império das
ondas o poder do deus que até então reinava apenas sobre as águas
terrestres e ctônias.
Desse modo, Posídon, o “sacudidor da terra”, se tornou também o
“sacudidor do mar” e recebeu o duplo privilégio de domador de
cavalos e salvador de navios. Bem mais que “às crinas das ondas”, as
espumas das vagas, e ao galope do cavalo, é à natureza
primitivamente ctônia de Posídon que se devem atribuir no mito e
no culto seus vínculos frequentes com o cavalo, que, como o touro,
que lhe é igualmente associado, é um símbolo das forças
subterrâneas, além de ser, por sua clarividência e familiaridade com
as trevas, um guia seguro, um excelente psicopompo. O nome do
cavalo, em grego ἵππος (híppos), está ligado ao de algumas fontes,
como Aganipe, Hipocrene. Numa versão tessália o deus foi pai de
Esquífio, o primeiro cavalo, que ele teve de Geia, e no folclore da
Arcádia foi pai de Aríon, o cavalo de crinas azuis, que ele gerou,
como vimos, após transformar-se em garanhão, para conquistar
Deméter, metamorfoseada em égua. Há um mito relatado por
Pausânias (8,8,2), segundo o qual Posídon se salvara da fúria
devoradora de Crono, metamorfoseando-se em potro. Segundo uma
variante, na disputa com Atená pelo domínio da Ática, o deus teria
feito sair da terra um cavalo e não uma fonte.
Posídon é o presenteador, por excelência, de cavalos alados e até
dotados de palavra e de inteligência: Pégaso, o cavalo alado, foi dado
a Belerofonte; os “inteligentes” Xanto e Bálio foram presenteados a
Peleu. Alguns heróis, que passam por filhos seus, Hipótoon, Neleu e
Pélias, foram amamentados por éguas.
A ligação entre Posídon e o cavalo é tão estreita, que o animal pode
substituir o próprio deus. Na Ilíada, XXIII, 584, Menelau,
desconfiado de que a vitória de Antíloco fora fraudulenta, convida-o
a jurar por Posídon, estendendo a mão sobre seus cavalos e o carro.
No culto, o deus é, muitas vezes, chamado Híppios, “gerador de
cavalos”, particularmente em Olímpia, onde a disputa entre Pélops e
Enômao se converteu num protótipo de concursos hípicos que se
encontram, por vezes, em suas festas.
Não menor é a ligação do deus com o touro, sua vítima predileta,
que lhe era sacrificado no altar ou precipitada viva no mar (Il., XI,
728; XX, 403; Odiss., I, 25 e III, 178). Na tragédia de Eurípides, Hipólito
Porta-Coroa, o touro surge, dessa feita, sob um aspecto monstruoso,
para destruir o inocente Hipólito, a pedido de Teseu, o filho de
Posídon-Egeu.
Foi igualmente Posídon o responsável pela paixão de Pasífae pelo
lindíssimo touro de Creta, para punir o rei Minos, que não cumprira a
promessa de sacrificar-lhe o animal.
O deus do mar teve, além da esposa legítima Anfitrite, muitos
amores, todos fecundos. Mas, enquanto os filhos de Zeus eram heróis
benfeitores da humanidade, os filhos de Posídon, em sua maioria,
eram gigantes terríveis e violentos, como, em parte, já se viu. Com
Toosa gerou o monstruoso ciclope Polifemo; com Medusa, o gigante
Crisaor e o cavalo Pégaso; com Amimone, uma das cinquenta filhas
de Dânao, teve Náuplio; com Ifimedia, os alóadas, isto é, os gigantes
Oto e Efialtes. Além destes foram filhos seus, Cércion e Cirão,
grandes salteadores, ambos mortos por Teseu; o rei dos lestrigões,
Lamo, e o caçador maldito, Oríon; com Hália foi pai de seis filhos e de
uma filha chamada Rodos, que deu seu nome à ilha de Rodes. Os
filhos homens de Posídon com Hália eram tão violentos e
cometeram tantos excessos, que Afrodite os enlouqueceu. Como
tentassem violentar a própria mãe, para não serem massacrados,
Posídon os escondeu no fundo da terra. Desesperada, Hália
precipitou-se no mar. Os habitantes de Rodes instituíram-lhe um
culto, como a uma divindade, sob o nome de Leucoteia.
O mês ático Posídeon, que lhe era consagrado, e correspondia mais
ou menos a dezembro, era o mês das tempestades de inverno, pois
que Posídon é antes o deus do mar encapelado que da bonança. É
invocado, por isso mesmo, como salvador dos navios e protetor dos
passageiros. Talvez uma certa selvageria em seu caráter e modo de
agir, e bem assim a violência da maioria de seus filhos configurem o
aspecto sinistro dos elementos.
Quando os homens se organizaram em cidades, os deuses
decidiram escolher uma ou várias delas, onde seriam
particularmente honrados. Acontecia, frequentemente, no entanto,
que duas ou três divindades escolhiam a mesma, o que provocava
sérios conflitos, que eram submetidos à arbitragem de seus pares ou
ao juízo de simples mortais. Nesses julgamentos Posídon quase
sempre teve suas pretensões vencidas. Assim é que perdeu para Hélio
a cidade de Corinto, por decisão de Briaréu. Desejou reinar em Egina,
mas foi suplantado por Zeus. Em Naxos foi derrotado por Dioniso;
em Delfos, por Apolo; em Trezena, por Atená. A disputa maior,
todavia, foi pela posse de Atenas e de Argos. Desejando ardentemente
Atenas, foi logo se apossando da cidade. Para mostrar sua força, fez
brotar da terra, com um golpe de tridente, um mar, outros dizem que
foi um cavalo. Atená, tendo convocado o rei de Atenas, Cécrops,
tomou-o por testemunha de sua ação: plantou simplesmente um pé
de oliveira, símbolo da paz e da fecundidade.
A magna querela foi arbitrada, segundo uns, por Cécrops e Crânao,
também rei de Atenas, consoante outros pelos próprios deuses.
Tendo Cécrops testemunhado que Atená plantara primeiro o pé de
oliveira, foi-lhe dada a vitória. Irritado, o deus inundou a planície de
Elêusis, fertilíssima em oliveiras. Em Argos, disputada também pela
deusa Hera, o árbitro foi Foroneu, o primeiro a reunir os homens em
cidades. Lá igualmente se decidiu em favor da deusa. Posídon, em sua
cólera, amaldiçoou a Argólida e secou-lhe todas as nascentes. Pouco
depois, chegou à região Dânao com suas cinquenta filhas e não
encontrou água para beber. Posídon, que se apaixonara por
Amimone, levantou a maldição e os mananciais reapareceram.
Talvez, por compensação, foi-lhe outorgada sem disputa uma ilha
longínqua, mas paradisíaca: a Atlântida, sobre que faremos algumas
digressões.
Atlântida, em grego Ἀτλαντίς (Atlantís), prende-se a Atlas, em
grego Ἀτλας (Átlas), “que sustém a abóbada celeste”, vocábulo
formado,ao que tudo indica, de um prefixo intensivo a-e detlâ, que
aparece no grego τλῆναι (tlênai), “suportar”.
Em dois de seus diálogos, Timeu e Crítias, conta Platão que Sólon,
quando de sua viagem ao Egito, interrogara alguns sacerdotes e um
deles, que vivia em Saís, no Delta do Nilo, lhe relatou tradições muito
antigas relativas a uma guerra entre Atenas e os habitantes da
Atlântida. Esse relato do filósofo ateniense se inicia no Timeu e é
retomado e ampliado num fragmento que nos chegou do Crítias. Os
atlantes, segundo o sacerdote de Saís, habitavam uma ilha, que se
estendia diante das Colunas de Héracles, quando se deixa o
Mediterrâneo e se penetra no Oceano. Quando da disputa, já
conhecida por nós, entre Atená e Posídon pelo domínio de Atenas, o
deus do mar, tendo-a perdido, recebeu como prêmio de consolação a
Atlântida. Lá vivia Clito, uma jovem de extrema beleza, que havia
perdido os pais, chamados, respectivamente, Evenor e Leucipe.
Por ela, que habitava uma montanha central da ilha, se apaixonou
o deus, que, de imediato, lhe cercou a residência com altas muralhas
e fossos cheios de água.
Dos amores de Posídon com Clito nasceram cinco vezes gêmeos. O
mais velho deles chamava-se Atlas. A ele o deus concedeu a
supremacia, tornando-se o mesmo o rei suserano, uma vez que a ilha
fora dividida em dez pequenos reinos, cujo centro era ocupado por
Atlas. A Atlântida era riquíssima por sua flora, fauna e por seus
inesgotáveis tesouros minerais: ouro, cobre, ferro e sobretudo
oricalco, um metal que brilhava como fogo. A ilha foi embelezada
com cidades magníficas, cheias de pontes, canais, passagens
subterrâneas e verdadeiros labirintos, tudo com o objetivo de lhe
facilitar a defesa e incrementar o comércio. Anualmente, os dez reis
se reuniam e o primeiro ato que praticavam em comum era a caçada
ritual ao touro. Essa perseguição e a captura do animal sagrado se
faziam no próprio témenos do deus, isto é, porção de território com
um altar ou templo consagrado à divindade. Após garrotearem o
animal, decapitavam-no, o que faz lembrar o tauróbolo da Creta
minoica, cerimônia em que a perseguição precede à oblação final da
vítima. O sangue do touro era cuidadosamente recolhido e com ele os
dez reis se aspergiam, porque o animal é identificado com a
divindade (Plat., Crít., 119d-120c). Após esse rito inicial, os reis,
revestidos de uma túnica azul-escuro, sentavam-se sobre as cinzas
ainda quentes do sacrifício e davam início à segunda parte da
reunião sagrada. Apagados todos os archotes, mergulhados em trevas
profundas, os monarcas faziam sua autocrítica e julgavam-se
reciprocamente durante uma noite inteira. Aqui, infelizmente,
termina o relato do filósofo. Sabe-se ainda que tentando subjugar o
mundo, os atlantes foram vencidos pelos atenienses, e isto nove mil
anos antes de Platão. Os atlantes e sua ilha, consoante ainda o autor
de Crítias, desapareceram completamente, tragados por um
cataclismo.
Existe, no entanto, uma variante muito significativa de Diodoro
Sículo (século I a.C.), acerca da Atlântida e seus habitantes.
Segundo o Autor da Biblioteca histórica, a Amazona Mirina
declarou guerra aos atlantes que habitavam um país vizinho da
Líbia, à beira do Oceano, onde os deuses, dizia-se, haviam nascido. À
frente de uma cavalaria de vinte mil Amazonas e de uma infantaria
de três mil, conquistou primeiro o território de um dos dez reinos da
Atlântida, cuja capital se chamava Cerne. Em seguida, avançou sobre
a capital, destruiu-a e passou todos os homens válidos a fio de
espada, levando em cativeiro as mulheres e as crianças. Os outros
nove reinos da Atlântida, apavorados, capitularam imediatamente.
Mirina os tratou generosamente e fez aliança com eles. Construiu
uma cidade, a que deu o nome de Mirina, em lugar da que havia
destruído, e franqueou-a a todos os prisioneiros e a quantos
desejassem habitá-la. Os atlantes pediram então à denodada
Amazona que os ajudasse na luta contra as Górgonas. Depois de
sangrenta batalha, Mirina conseguiu brilhante vitória, mas muitas
das inimigas conseguiram escapar. Certa noite, porém, as Górgonas
prisioneiras no acampamento das vencedoras lograram apoderar-se
das armas das sentinelas e mataram grande número de Amazonas.
Recompondo-se logo, as comandadas de Mirina massacraram as
rebeldes. Às mortas foram prestadas honras de heroínas e, para
perpetuar-lhes a memória, foi erguido um túmulo suntuoso, que, à
época histórica, ainda era conhecido com o nome de Túmulo das
Amazonas.
As gestas atribuídas a Mirina, todavia, não se esgotam com estas
duas guerras. Mais tarde, após conquistar, talvez com auxílio dos
atlantes, grande parte da Líbia, dirigiu-se para o Egito, onde reinava
Hórus, filho de Ísis, e com ele concluiu um tratado de paz. Organizou,
em seguida, uma gigantesca expedição contra a Arábia; devastou a
Síria e, subindo para o norte, encontrou uma delegação de cilícios,
que, voluntariamente, se renderam. Atravessou, sempre lutando, o
maciço do Tauro e atingiu a região do Caíque, término de sua longa
expedição. Já bem mais idosa, Mirina foi assassinada pelo rei Mopso,
um trácio expulso de sua pátria pelo rei Licurgo.
A lenda desta Amazona é mais uma “construção histórica” e não
constitui propriamente um mito, mas uma interpretação de
elementos míticos combinados de modo a formar uma narrativa
mais ou menos coerente, nos moldes das interpretações
“racionalistas” dos mitógrafos evemeristas.
Mirina, rainha das Amazonas, é seu nome da Ilíada, mas este é seu
nome “junto aos deuses”; entre os homens ela é chamada Batiia.
A Atlântida, o continente submerso, seja qual for a origem do mito,
permanece no espírito de todos, à luz dos textos inspirados a Platão
pelos sacerdotes egípcios, como o símbolo de uma espécie de paraíso
perdido ou de cidade ideal. Domínio de Posídon, aí instalou ele os dez
filhos que tivera de uma simples mortal. O próprio deus organizou e
adornou sua ilha, fazendo dela um reino de sonhos: “Seus habitantes
se enriqueciam de tal maneira, que jamais se ouviu dizer que um
palácio real possuísse ou viesse algum dia a possuir tantos bens.
Tinham duas colheitas por ano: no inverno utilizavam as águas do
céu; no verão, aquelas que lhes dava a terra, com a técnica da
irrigação” (Crít., 114d, 118e).
Quer se trate de reminiscências de antigas tradições, quer a
narrativa platônica não passe de uma utopia, o fato é que, tudo leva a
crer, Platão projetou na Atlântida seus sonhos de uma perfeita
organização político-social: “Quando as trevas desciam e as chamas
dos sacrifícios se extinguiam, os reis, cobertos com lindas
indumentárias de um azul-cinza, sentavam-se por terra, nas cinzas
do holocausto sacramental. Então, em plena escuridão da noite,
apagados todos os archotes em torno do santuário, os soberanos
julgam e são julgados, se houver sido cometida por qualquer deles
alguma falta. Terminado o julgamento, as sentenças são gravadas, já
em pleno dia, sobre uma mesa de ouro, que era consagrada como
recordação do feito” (Crít., 120bc).
Mas quando neles se “enfraquecia o elemento divino e o humano
passava a dominar”, eram alvo do castigo de Zeus.
A Atlântida reúne, assim, o tema do Paraíso e da Idade de Ouro, que
se encontra em todas as culturas, seja no início da humanidade, seja
no seu término. A originalidade simbólica da Atlântida está na ideia
de que o Paraíso reside na predominância em cada um de nós de um
elemento divino.
Acerca do destronamento de Crono e de sua magna consequência,
que foi a vitória de Zeus, fundador da terceira e última geração
divina, há de se falar longamente no capítulo seguinte.
1. Salamandra, em grego Σαλαμάνδρα (Salamándra), talvez de origem mediterrânea. Tratase de uma espécie de tritão que os povos antigos julgavam poder viver no fogo, sem ser
consumido. Foi, por isso mesmo, identificada com o próprio fogo, de que era uma
manifestação viva. Atribuía-se também à Salamandra o poder de extinguir as chamas, por
sua excepcional frialdade. No Egito, a Salamandra era o hieróglifo de homem morto de frio.
Na iconografia medieval, representava o justo que não perde a paz de sua alma e a confiança
em Deus em meio às tribulações e sofrimentos. Para os alquimistas é a pedra fixada no
vermelho. Deram-lhe o nome ao enxofre incombustível. A Salamandra, que se alimenta do
fogo, e a Fênix, que renasce das próprias cinzas, são os dois símbolos mais comuns do
enxofre.
2. LONS, Veronica. The World’s Mythology. London: Hamlyn, 1974, p. 248ss.
3. BACHELARD, Gaston. La Psychanalyse du feu. Paris: Gallimard, 1965, p. 58.
4. Alalcômenes é um herói da Beócia, fundador da cidade do mesmo nome. Atribui-se a ele a
invenção das hierogamias de Zeus e Hera, isto é, de cerimônias religiosas em que se reatualizava o casamento dos dois. Conta-se que Hera. constantemente enganada por Zeus e
cansada das infidelidades do esposo, veio até Alalcômenes queixar-se do marido. O herói
aconselhou-a a que mandasse executar uma estátua dela mesma, mas confeccionada de
carvalho (árvore consagrada a Zeus), e fizesse transportá-la solene e ricamente
paramentada, seguida de grande cortejo, como se fosse uma verdadeira procissão nupcial. A
deusa assim o fez, instituindo uma festa denominada Festas Dedáleas. Segundo a crença
popular, esse rito re-atualizava, rejuvenescia a união divina e conferia-lhe eficácia por
magia simpática, pondo um freio, ao menos temporário, às infidelidades do marido...
5. Argos é personagem secundária no mito. Como existem quatro Argos na mitologia, é bom
lembrar que este, de que estamos tratando, é o Argos, filho de Arestor e longínquo
descendente de Zeus e Níobe. Tinha, segundo uns, apenas um olho; segundo outros, quatro:
dois voltados para a frente e dois para trás. A tradição mais seguida, porém, é a de que Argos
era dotado de cem olhos. Hera o encarregou de vigiar a vaca Io, de quem estava enciumada.
Argos amarrou-a numa oliveira de um bosque sagrado de Micenas. Graças a seus cem olhos,
podia vigiá-la com grande eficiência, pois, quando dormia, fechava apenas cinquenta.
Hermes, todavia, recebeu ordem expressa de Zeus de libertar Io. A maneira cromo o fez
varia muito no mito. O filho de Maia teria liquidado Argos com uma pedra, lançada de
longe. Tê-lo-ia adormecido, tocando a flauta mágica de Pã. Uma vez mergulhado em sono
profundo, Hermes o matou. Para imortalizá-lo, Hera lhe tirou os cem olhos e os colocou na
cauda do pavão.
6. Em nosso livro Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: TAB, 1980, p. 77, ao tratar
da “Origem da Comédia”, chamamos a atenção para Aiskhrología e as Haloas, como
elementos dos Kômoi.
7. Ἐγευσίς (Eleusís), do verbo ”erχesθai (érkhesthai), “vir, chegar”, é a vinda, a chegada.
Talvez o ponto de encontro. No Novo Testamento, Ap 7,52, sob forma proparoxítona, ἔλευσις
(éleusis), significa a “vinda” de Jesus Cristo.
8. O cíceon é uma bebida composta, que pode ser preparada de diferentes maneiras: na
Ilíada, XI, 624-641, seus ingredientes são a farinha de cevada, queijo ralado e vinho; na
Odisseia, X, 234, às substâncias citadas Circe ainda adiciona mel e drogas mágicas.
9. ELIADE, Mircea. Op. cit., t. I, v. II, p. 127.
10. ARISTÓFANES. As rãs. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1987 [Tradução de Junito de
Souza Brandão].
11. Ética a Nicômaco, 3,1,17. A indiscrição do poeta teria ocorrido em tragédias infelizmente
perdidas, como As sacerdotisas, Sísifo, Ifigênia... Ameaçado de morte, conta-se, foi absolvido
pelo Areópago por causa de sua coragem na luta contra os persas, em Maratona.
12. Sabázio, em grego Σαβάζιος (Sabádzios). Trata-se de um nome frígio e talvez signifique,
por eufemismo, o poderoso. Sabázio é, pois, um deus oriental cujo culto possuía, como Baco,
um caráter orgiástico. É comumente assimilado a Dioniso no mundo grego e considerado
como um Dioniso mais velho, filho de Zeus e Perséfone. Atribuía-se-lhe a iniciativa de
domesticar os bois e era assim que se explicavam os cornos que lhe adornavam as estátuas.
Zeus se teria unido a Perséfone sob a forma de serpente, que era, por isso mesmo, o animal
sagrado do deus e desempenhava, tudo leva a crer, um papel importante em seus mistérios.
Não pertencendo ao panteão helênico propriamente dito, Sabázio não possui um ciclo
mítico pessoal, pelo menos exotérico. É bem possível que, nos mistérios, que se celebravam
em sua honra, seu mito fosse revelado.
13. Eumolpo é, segundo as melhores tradições, filho de Posídon e Quíone. Com medo da
reação do pai, que lhe desconhecia a gravidez, tão logo nasceu Eumolpo, Quíone o lançou no
mar. Posídon o recolheu e levou-o para a Etiópia, entregando-o à filha, que uma variante
atesta que tivera com Anfitrite, chamada Bentesícima. Eumolpo se casou com uma filha de
sua mãe de criação, mas, como houvesse tentado violar uma das cunhadas, foi banido. Com
o filho Ísmaro refugiou-se na Trácia, na corte do rei Tegírio, que deu a Ísmaro uma de suas
filhas em casamento. Tendo participado de uma conspiração contra o rei, foi expulso da
Trácia, refugiando-se em Elêusis. Com a morte de Ísmaro, Eumolpo se reconciliou com
Tegírio, que lhe deixou o reino em testamento. Foi durante seu reinado na Trácia que
eclodiu a guerra entre Atenas, conduzida por seu rei Erecteu, e Elêusis. Eumolpo lutou
bravamente com suas tropas em favor dessa última, mas foi morto em combate. Para vingálo, Posídon conseguiu de Zeus que fulminasse Erecteu. Diferentes tradições atribuem-lhe a
instituição dos Mistérios e seu filho Quérix, palavra que significa arauto, após a morte do
pai, exerceu função importante nos Mistérios. É ele o ancestral mítico dos querices.
14. Iaco é o nome místico de Baco nos Mistérios de Elêusis: trata-se, parece, do grito ritual dos
Iniciados: Iaco, ó Iaco, e este grito acabou por tornar-se um deus. Talvez Iaco seja um daímon,
um intermediário entre Dioniso e Deméter. Veja-se o cap. IV do volume II.
15. Nesta comédia, v. 314-414, Aristófanes faz uma belíssima paródia, de cunho religiosopolítico, do Coro dos Iniciados na grandiosa procissão que se dirigia para Elêusis.
16. Tem-se discutido muito o sentido desses ultrajes grosseiros. Parece tratar-se de um rito
apotropaico: também através dos insultos se afastariam os malefícios.
17. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 131s.
18. KERÉNYI, Ch. Introduction à l’essence de la mythologie, Paris: Payot, 1953, p. 142s.
19. DIEL, Paul. Op. cit., p. 197.
20. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1951, p.
42s.
21. 21 PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Folclore Pernambucano. In: Revista do
Instituto Histórico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1908, t. LXX, p. 84.
22. ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Purgatorio, XXXIII, 34-36. Firenze: “La Nuova
Ita-lia” Editrice, 1980.
23. ELLIS, H. L’impulsion sexuelle. In: Études de psychologie sexuelle. Paris, 1911, t. III, p. 199.
24. CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme. Paris: Gallimard, 1938, p. 45.
25. O grande bispo de Hipona, na passagem citada, critica violentamente a atitude dos
maridos romanos que, na primeira noite de núpcias, temendo um fracasso, enchiam a
alcova de deuses e deusas, para que os ajudassem na “ingente tarefa”: Virginiense, Súbigo,
Prema, Pertunda, Vênus, Priapo são divindades obrigatoriamente presentes! O autor da
Cidade de Deus ironiza perguntando se não bastaria um deles e conclui indignado: Et certe
si adest Virginiensis dea, ut uirgini zona soluatur; si adest deus Subigus ut uiro subigatur; si
adest Prema, ut subacta, ne se commoueat, comprimatur; dea Pertunda ibi quid facit?
Erubescat, eat foras: agat aliquid et maritus. Valde inhonestum est, ut quod uocatur illa,
impleat quisquam nisi ille: “Se, com efeito, está presente a deusa Virginiense, para soltar o
cinto da donzela; se está presente o deus Súbigo, para submetê-la ao marido; se está presente
a deusa Prema, para que, submetida, a noiva se deixe deflorar, que faz lá a deusa Pertunda?
Que ela se cubra de vergonha e vá embora, permitindo que o marido faça também alguma
coisa. É sumamente vergonhoso que outro faça pelo marido o que significa
etimologicamente Pertunda...
26. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1954, p. 595.
27. Ibid., p. 595.
28. RANK, Otto. O traumatismo do nascimento. Rio de Janeiro: Marisa Editora, 1934, p. 125.
29. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 99.
30. TEIXEIRA, F. Tabus Alimentares. In: Revista Brasileira de Folclore. T. XI, n. 30, 1971, p.
101-208, citado por Monique AUGRAS, op. cit., p. 98.
31. NILSSON, Martin P. Op. cit., p. 12s.
32. Em princípio, Além ou Mundo do Além não se confunde com Outro Mundo. O Além é o
domínio misterioso para onde se encaminham todos os homens após a morte. É diferente do
Outro Mundo, que não é um Além, mas um duplo de nosso mundo, na medida em que seus
habitantes podem dele sair ou entrar, quando assim o desejarem. Podem até mesmo
convidar simples mortais (Ganimedes, Tirésias, Sísifo) para visitá-lo ou lá permanecerem
por algum tempo. Do Além, a não ser em circunstâncias especiais (reencarnação, Teseu,
Orfeu, Eneias... ) ninguém sai. O Outro Mundo é, por definição, o mundo dos deuses, em
oposição ao mundo dos homens, vivos ou mortos, indo estes últimos para o Além. O Outro
Mundo escapa às contingências do tempo e da dimensão. Seus habitantes são imortais e
podem se encontrar, não importa o lugar ou o momento. Num impera a luz; no outro, as
trevas.
33. CIRLOT, J.E. Diccionario de símbolos. Madri: Labor, 1969, verbete.
34. Caronte, em grego Χάρων (Kháron), cuja etimologia é controvertida. Popularmente e
nome é tido come eufemismo; Kháron proviria do verbo χαίρειν (khaírein), “alegrar-se”,
donde Caronte seria o “amável” ou o “brilhante”. Trata-se, no mito, de um gênio de mundo
infernal, cuja função era transportar as almas para além dos rios do Hades, pelo pagamento
de um óbolo. Em vida ninguém penetrava em sua barca, a não ser que levasse, como Eneias,
um ramo de ouro, colhido na árvore sagrada de Core. Héracles, quando desceu ao Hades,
forçou-o, à base de bordoadas, a deixá-lo passar. Como castigo, por “haver deixado” um vivo
atravessar os rios, o barqueiro do Hades passou um ano inteiro encadeado. Parece que
Caronte apenas dirige a barca, mas não rema. São as almas que o fazem. Representam-no
como um velho feio, magro, mas extremamente vigoroso, de barba hirsuta e grisalha,
coberto com um manto sujo, e roto, e um chapéu redondo. Nas pinturas tumulares etruscas,
Caronte aparece como um demônio alado, a cabeleira eriçada de serpentes, segurando um
martelo. Isto dá a entender que o Caronte etrusco é um “demônio da morte”, aquele que
“mata” o moribundo e o arrasta para o Hades. Para a etimologia v. Dicionário míticoetimológico.
35. Astutamente, Caius Iulius Caesar, aproveitando-se de uma lenda, segundo a qual o herói
troiano Eneias, filho de Anquises e da deusa Vênus, e pai de Iulus, teria fundado a raça
latina, o político romano fez uma falsa aproximação etimológica de Iulius com Iulus e
candidatou-se também a ter sangue divino, como parente de Vênus. Ora, sendo Augusto
sobrinho de César, o sangue de Vênus corria também em suas veias... Com o respaldo de
uma deusa, o Imperador haveria de realizar suas grandes reformas. E o melhor é que,
historicamente, as realizou...
36. Ensomátosis, “reencarnação”, é a transmigração de uma alma de um corpo humano para
outro também humano; metempsicose é a reencarnação da alma humana sucessivamente
em corpos múltiplos, humanos, animais ou até vegetais. Voltaremos a falar a esse respeito
no volume II e mais amplamente no Dicionário mítico-etimológico.
37. Lete, em grego λήθη (Léthe), significa “esquecimento”. Era o único rio que se atravessava
no retorno a esta vida.
38. Como muitas línguas indo-europeias (exceto um vasto grupo, que se estende do ítalocéltico ao eslavo e que jamais perdeu o contato com o mar, e possuía um nome comum para
designá-lo: latim mare; irlandês muir; gótico marei; velho eslavo morje... ), o grego não tinha
uma palavra própria para designar mar. O grego Πόντος (póntos) “mar” teria significado,
de início, caminho e estaria aparentado com o latim pons e com o sânscrito pánthâh,
“caminho”; πέλαγος (pélagos) “mar”, cuja etimologia não se conhece com segurança,
lembra o latim planus e parece, como o mesmo latim aequor, designar “uma vasta
superfície” e θάλαττα (thálatta), “mar”, é certamente um empréstimo mediterrâneo.
39. MEILLET, Antoine. Aperçu d’une histoire de la langue grecque. Paris: Hachette, 1935, p.
12.
CAPÍTULO XIV
A Terceira Geração Divina:
Zeus e suas lutas pelo poder
1
Zeus, em grego Ζεύς (Dzeús), divindade suprema da maioria dos
povos indo-europeus. Seu nome significa o que ele sempre foi antes
de tudo: “o deus luminoso do céu”. A flexão Ζεύς (Dzeús), Διός
(Diós) pressupõe dois radicais: *dy-eu, *dy-êu, fonte de Ζεύς (Dzeús)
e do ac. Ζῆν (Dzên), que se origina de *dyê(u)m a que corresponde o
sânscrito dyau ; o segundo radical é deiw > deiuos > *dei(u)os > deus e
com alternância *diw-, como se vê no gen.ΔιFός (Diwós). Em latim
IOU, de *dyew, com a junção de piter (pater), gerou Iuppiter, “pai do
céu luminoso”, que possui o mesmo significado que Dyâus pitar. No
a.a. alemão Tiu>Ziu se tornou o deus da guerra, aparecendo o mesmo
nome igualmente em inglês, sob a forma Tuesday, “o dia de Zeus”.
Em francês, “o dia de Júpiter” surgiu primeiramente com a
formajuesdi, depoisjeudi, que é o latimiouis dies, “dia de Júpiter”.
Aliás, os inúmeros epítetos gregos de Zeus atestam ser ele um deus
tipicamente da atmosfera: ómbrios, hyétios (chuvoso); úrios (o que
envia ventos favoráveis); astrápios ou astrapaîos (o que lança raios);
brontaîos (o que troveja). Nesse sentido, diz Teócrito que Zeus ora
está sereno, ora desce sob a forma de chuva. Num só verso (Il., XV,
192), Homero sintetiza o caráter celeste do grande deus indoeuropeu: Zeus obteve por sorte o vasto céu, com sua claridade e suas
nuvens.
Antes de penetrarmos no mito de Zeus e sua conquista definitiva
do Olimpo, voltemos brevemente a Crono, para que se possa colocar
uma certa ordem didática no assunto. Como se mostrou no capítulo
X, depois que se tornou senhor do mundo, Crono converteu-se num
tirano pior que seu pai Úrano. Não se contentou em lançar no
Tártaro a seus irmãos, os Ciclopes e os Hecatonquiros, porque os
temia, mas, após a admoestação de Úrano e Geia de que seria
destronado por um dos filhos, passou a engoli-los, tão logo nasciam.
Escapou tão-somente o caçula, Zeus: grávida deste último, Reia
refugiou-se na ilha de Creta, no monte Dicta ou Ida, segundo outros,
e lá, secretamente, deu à luz o futuro pai dos deuses e dos homens,
que foi, logo depois, escondido por Geia nas profundezas de um
antro inacessível, nos flancos do monte Egéon. Em seguida,
envolvendo em panos de linho uma pedra, ofereceu-a ao marido e
este, de imediato, a engoliu. No antro do monte Egéon, Zeus foi
entregue aos cuidados dos Curetes1e das Ninfas. Sua ama de leite foi
“a ninfa”, ou, mais canonicamente, “a cabra” Amalteia2.
Quando, mais tarde, a cabra morreu, o jovem deus a colocou no
número das constelações. De sua pele, que era invulnerável, Zeus fez
a égide3, cujos efeitos extraordinários experimentou na luta contra os
Titãs.
Atingida a idade adulta, o futuro senhor do Olimpo iniciou uma
longa e terrível refrega contra seu pai. Tendo-se aconselhado com
Métis, a Prudência, esta lhe deu uma droga maravilhosa, graças à
qual Crono foi obrigado a vomitar os filhos que havia engolido.
Apoiando-se nos irmãos e irmãs, devolvidos à luz pelo astuto Crono,
Zeus, para se apossar do governo do mundo, iniciou um duro
combate contra o pai e seus tios, os Titãs.
Antes, porém, de entrarmos na descrição da gigantesca peleja
divina, voltemos um pouco ao nascimento e à infância do filho de
Reia. Zeus veio ao mundo na matrilinear ilha de Creta e, de imediato,
foi levado por Geia para um antro profundo e inacessível. Trata-se,
claro está, em primeiro lugar, de uma encenação mítico-ritual
cretense, centrada no menino divino, que se torna filho e amante de
uma Grande Deusa. Depois, seu esconderijo temporário numa gruta e
o culto minoico de Zeùs Idaîos, celebrado numa caverna do monte
Ida, têm características muito nítidas de uma iniciação nos Mistérios.
Não é em vão, além do mais, que se localizou, mais tarde, o túmulo do
pai dos deuses e dos homens na ilha de Creta, fato que mostra a
assimilação iniciática de Zeus aos deuses dos Mistérios, que morrem
e ressuscitam.
Conta-se ainda que o entrechocar das armas de bronze dos Curetes
abafava o choro do recém-nascido, o que traduz uma projeção mítica
de grupos iniciáticos de jovens que celebravam a dança armada, uma
das formas da dokimasía grega. A dança desses demônios, e Zeus é
cognominado “o maior dos Curetes”, é um conhecido rito da
fertilidade. A maior e a mais significativa das experiências de Zeus
foi ter sido amamentado pela cabra Amalteia e, como o simbolismo
da cabra é muito rico, vamos aproveitar a ocasião para fazer um
ligeiro comentário a respeito do mesmo. Na Índia, já que a palavra
que a designa significa igualmente não nascido, a cabra é símbolo da
substância primordial não manifestada. Ela é a mãe do mundo, é
Prakriti e as três cores, que lhe são atribuídas, o vermelho, o branco e
o negro, correspondem aos três guna, isto é, às três qualidades
primordiais, respectivamente sattva, rajas e tamas. Em algumas
partes da China, a cabra está intimamente ligada ao deus do raio e a
cabeça do animal sacrificado lhe servia de martelo, figurando, pois, a
cabra um elemento da atividade celeste em benefício da terra e, mais
precisamente, da agricultura. Na mitologia germânica a cabra
Heidrun pasta as folhas do freixo Yggdrasil e seu leite alimenta os
guerreiros de Odin. Entre os gregos, a cabra simboliza o raio. A
estrela da Cabra na constelação do cocheiro anuncia a tempestade e a
chuva, assim como a cabra Amalteia, nutriz de Zeus. Aliás, a
associação da cabra com a hierofania, com a manifestação de um
deus, é muito antiga. Segundo Diodoro Sículo, foram cabras, quando
pastavam no monte Parnaso, que despertaram a atenção para uns
vapores, que, saindo das entranhas da terra, punham as mesmas num
verdadeiro estado de vertigem. Os habitantes do local
compreenderam logo que esses vapores eram uma manifestação do
divino e ali instituíram o Oráculo de Delfos.
Javé se manifestou a Moisés no monte Sinai em meio a raios e
trovões. Como recordação dessa hierofania, a cobertura do
tabernáculo era confeccionada com fios entrelaçados de pelos de
cabra.
Romanos e sírios, quando invocavam seus deuses, para
testemunhar sua união com o divino, usavam, por vezes, uma
indumentária denominada cilicium, cilício em português,
confeccionada de pelos de cabra. Para os cristãos, o uso do cilício tem,
no fundo, o mesmo sentido: a mortificação da carne pela penitência e
a liberação da alma que se entrega inteiramente a Deus. Os Órficos
comparavam a alma iniciada a um cabritinho caído no leite, isto é,
que vive da alimentação dos neófitos para ter acesso à imortalidade.
O bode designa muitas vezes Dioniso em transe místico, símbolo de
um recém-nascido para uma vida divina. Nas “orgias” dionisíacas, as
Bacantes cobriam-se com peles de cabritos degolados. Em todas as
tradições, a cabra aparece como símbolo da nutriz e da “iniciadora”,
tanto em sentido físico quanto místico dos termos.
O fato é que o deus dos raios e dos trovões se preparou
iniciaticamente para assumir o governo do mundo.
2
A luta de Zeus e seus irmãos contra os Titãs, comandados por
Crono, durou dez anos. Por fim, venceu o futuro grande deus
olímpico e os Titãs foram expulsos do Céu e lançados no Tártaro.
Para obter tão retumbante vitória, Zeus, a conselho de Geia, libertou
do Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, que lá haviam sido
lançados por Crono. Agradecidos, os Ciclopes deram a Zeus o raio e o
trovão; a Hades ofereceram um capacete mágico, que tornava
invisível a quem o usasse e a Posídon presentearam-no com o
tridente, capaz de abalar a terra e o mar.
Terminada a refrega, os três grandes deuses receberam por sorteio
seus respectivos domínios: Zeus obteve o Céu; Posídon, o mar; Hades
Plutão, o mundo subterrâneo ou Hades, ficando, porém, Zeus com a
supremacia no Universo. Geia, todavia, ficou profundamente
irritada contra os Olímpicos por lhe terem lançado os filhos, os Titãs,
no Tártaro, e excitou contra os vencedores os terríveis Gigantes,
nascidos do sangue de Úrano, como se mostrou no capítulo X.
Vencidos os formidáveis Gigantes, segundo se mostrou também no
capítulo há pouco citado, uma derradeira prova, a mais terrível de
todas, aguardava a Zeus, a seus irmãos e aliados. Geia, num
derradeiro esforço, uniu-se a Tártaro, e gerou o mais horrendo e
terrível dos monstros, Tifão ou Tifeu.
TIFÃO, em grego Τυφῶν (Typhôn), cuja raiz, em etimologia popular,
seria o indo-europeu dheubh-, “gerar obscuridade, nevoeiro e
fumaça”. Não seria absurdo, assim, aproximá-lo semanticamente do
grego τυφλός (typhlós), “cego”, que aparece no antigo irlandês dub,
“negro”, e no alemão taub, “surdo”, uma vez que Tifão é uma espécie
de síntese da violência, cegueira e surdez de todas as forças
primordiais. Tifão, ao que parece, é divindade pré-helênica.
Deixando de lado certas variantes, que fazem do monstro filho de
Hera e Crono ou apenas de Hera, fiquemos com a hesiódica acima
citada, que lhe dá como pais a Tártaro e Geia.
Tifão era um meio-termo entre um ser humano e uma fera terrível
e medonha. Em altura e força excedia a todos os outros filhos e
descendentes de Geia. Era mais alto que as montanhas e sua cabeça
tocava as estrelas. Quando abria os braços, uma das mãos tocava o
Oriente e a outra o Ocidente e em lugar de dedos possuía cem
cabeças de dragões. Hesíodo (Teog., 824ss) ainda é mais preciso:
De suas espáduas emergiam cem cabeças de serpentes,
de um pavoroso dragão, dardejando línguas
enegrecidas; de seus olhos, sob as sobrancelhas, se
desprendiam clarões de fogo...
Da cintura para baixo tinha o corpo recamado de víboras. Era
alado e seus olhos lançavam línguas de fogo. Quando os deuses
viram tão horrenda criatura encaminhar-se para o Olimpo, fugiram
espavoridos para o Egito, escondendo-se no deserto, tendo cada um
tomado uma forma animal: Apolo metamorfoseou-se em milhafre;
Hera, em vaca; Hermes, em íbis; Ares, em peixe; Dioniso, em bode;
Hefesto, em boi. Zeus e sua filha Atená foram os únicos a resistir ao
monstro. O vencedor de Crono lançou contra Tifão um raio, o
perseguiu e feriu com uma foice de sílex. O gigantesco filho de Geia e
Tártaro fugiu para o monte Cásio, nos confins do Egito com a Arábia
Petreia, onde se travou um combate corpo a corpo. Facilmente Tifão
desarmou a Zeus e com a foice cortou-lhe os tendões dos braços e dos
pés e, colocando-o inerme e indefeso sobre os ombros, levou-o para a
Cilícia e o aprisionou na gruta Corícia. Escondeu os tendões do deus
numa pele de urso e os pôs sob a guarda do dragão-fêmea Delfine.
Mas o deus Pã, com seus gritos que causavam pânico, e Hermes, com
sua astúcia costumeira, assustaram Delfine e apossaram-se dos
tendões do pai dos deuses e dos homens. Este recuperou, de imediato,
suas forças, e, escalando o Céu num carro tirado por cavalos alados,
recomeçou a luta, lançando contra o inimigo uma chuva de raios. O
gigante refugiou-se no monte Nisa, onde as Moîras lhe ofereceram
“frutos efêmeros”, prometendo-lhe que aqueles lhe fariam recuperar
as forças: na realidade, elas o estavam condenando a uma morte
próxima.
Tifão atingiu o monte Hêmon, na Trácia, e, agarrando montanhas,
lançava-as contra o deus. Este, interpondo-lhes seus raios, as atirava
contra o adversário, ferindo-o profundamente. As torrentes de
sangue que corriam do corpo de Tifão deram nome ao monte
Hêmon, uma vez que, em grego, sangue se diz αϊμα (haîma). O filho
de Geia fugiu para a Sicília, mas Zeus o esmagou, arremessando
sobre ele o monte Etna, que até hoje vomita suas chamas, traindo lá
embaixo a presença do monstro: essas chamas provêm dos raios com
que o novo soberano do Olimpo o abateu.
3
Já se acentuou o caráter de dokimasía e de iniciação de Zeus
infante, colocado num antro profundo, cercado pelos Curetes e
amamentado pela cabra Amalteia. Até aqui Zeus se “preparava” para
as grandes lutas que iria travar. Depois vieram as provas definitivas
nos embates contra os Titãs e os Gigantes. Também estas Zeus as
superou. Faltava a última. A mais difícil e penosa de todas: levar de
vencida o gigantesco Tifão, derradeira tentativa de uma divindade
primordial, Geia, para impedir a consecução da obra cosmogônica e
a instauração de uma nova ordem. Tendo esmagado o derradeiro
inimigo, Zeus estava “preparado” para pôr cobro às violentas
sucessões das dinastias divinas e assumir, em definitivo, o governo
do Universo.
É precisamente a respeito essa última vitória que se deseja dizer
uma palavra. Como se viu, Tifão mutilou a Zeus e o conduziu para a
gruta Corícia. Se a caverna, já o sabemos, figura os mitos de origem,
de renascimento e iniciação, como um real regressus ad uterum, um
simbólico morrer para se renascer outro, a mutilação de Zeus tem
uma conotação mais profunda. Para se compreender bem a
mutilação é mister fazer uma dicotomia, uma distinção entre
mutilação de ordem social e mutilação ritual. Se entre os celtas o rei
Nuada não mais pôde reinar por ter perdido um braço na batalha e o
deus Mider é ameaçado de perder o reino, porque acidentalmente
ficou cego de um olho, trata-se, em ambos os casos, de um aspecto
apenas social do problema. O sentido ritual da mutilação é bem
outro. Para se penetrar nesse símbolo é bom relembrar que a ordem
da “cidade” é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas
pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois
olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem
oculta, noturna, transcendental é Um, é ímpar. O disforme e o
mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade
humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada.
Numero deus impari gaudet, o número ímpar agrada ao deus, diz o
provérbio, mas an odd number significa também em inglês um “tipo
estranho, um tipo incomum”, e a expressão francesa il a commis un
impair significa que alguém “cometeu uma inconveniência”, “fez
asneira”, transgredindo, por leve que seja, a ordem humana. O
criminoso “comete uma terrível inconveniência”, transgredindo
gravemente a ordem social; o herói se “singulariza perigosamente”.
Ambos realçam o sagrado e só se distinguem pela orientação vetorial
do herói: sagrado-esquerdo e sagrado-direito. O vidente, como
Tirésias, é cego; o gênio da eloquência é gago... a mutilação tem, pois,
dois lados, revestindo-se também da complexio oppositorum,
possuindo, assim, valor iniciático e contrainiciático. No Egito,
visando-se a uma intenção mágica de defesa, os animais perigosos,
como leões, crocodilos, escorpiões e serpentes eram muitas vezes
representados sobre os muros dos templos por hieróglifos mutilados.
Os animais apareciam cortados em dois, amputados, desfigurados,
de modo a serem reduzidos à impotência.
A mutilação de Zeus é partícipe do “sagrado-direito”: visa, em
última análise, a prepará-lo para ser Um, para ser o rei, para ser
ímpar, para ser o soberano, para ser o senhor.
Van Gennep, no capítulo VI de Os ritos de passagem4, tem páginas
luminosas sobre o rito da mutilação, cuja finalidade maior não é
apenas a purificação, mas uma transformação visível para todos da
personalidade de um indivíduo. “Com estas práticas retira-se o
indivíduo mutilado da humanidade comum mediante um rito de
separação, que, automaticamente, o agrega a um grupo determinado”.
Zeus, que vai ser rei, o senhor, o pai dos deuses e dos homens,
purifica-se na gruta e, mutilado, separa-se em definitivo de seu meio,
para colocar-se acima dele.
As lutas de Zeus contra os Titãs (Titanomaquia), contra os
Gigantes.(Gigantomaquia), episódio, aliás, desconhecido por Homero
e Hesíodo, mas abonado por Píndaro (Nemeias, 1,67), e contra o
horrendo Tifão, essas lutas, repetimos, contra forças primordiais
desmedidas, cegas e violentas, simbolizam também uma espécie de
reorganização do Universo, cabendo a Zeus o papel de um “recriador” do mundo. E apesar de jamais ter sido um deus criador, mas
sim conquistador, o grande deus olímpico torna-se, com suas
vitórias, o chefe inconteste dos deuses e dos homens, e o senhor
absoluto do Universo. Seus inúmeros templos e santuários atestam
seu poder e seu caráter pan-helênico. O deus indo-europeu da luz,
vencendo o Caos, as trevas, a violência e a irracionalidade, vai além
de um deus do céu imenso, convertendo-se, na feliz expressão de
Homero (Il., I, 544) em πατὴρ ἀνδρῶντε θεῶντε (patèr andrônte
theônte), o pai dos deuses e dos homens. E foi com este título que o
novo senhor do Universo, tendo reunido os imortais nos píncaros do
Olimpo, ordenou-lhes de não participarem dos combates que se
travavam em Ílion entre aqueus e troianos. O teor do discurso é forte
e duro, como convém a um deus consciente de seu poder e que fala a
deuses insubordinados e recalcitrantes. Após ameaçá-los de
espancamento, ou, pior ainda, de lançá-los no Tártaro brumoso,
conclui em tom desafiante (Il., VIII, 19-27):
Suspendei até o céu uma corrente de ouro, e, em
seguida, todos, deuses e deusas, pendurai-vos à outra
extremidade: não podereis arrastar do céu à terra a
Zeus, o senhor supremo, por mais que vos esforceis. Se
eu, porém, de minha parte, desejasse puxar ao mesmo
tempo a terra inteira e o mar, eu os traria, bem como a
vós, para junto de mim. Depois, ataria a corrente a um
pico do Olimpo, e tudo ficaria flutuando no ar. E assim
saberíeis até que ponto sou mais forte do que os deuses
e os homens.
O religiosíssimo Ésquilo, num fragmento de uma de suas muitas
tragédias perdidas, vai além de Homero na proclamação da
soberania de Zeus:
Zeus é o éter, Zeus é a terra, Zeus é o céu.
Sim, Zeus é tudo quanto está acima de tudo.
(Fr. 70, Nauck)
E era realmente assim que os gregos o compreendiam: um grande
deus de quem dependiam o céu, a terra, a pólis, a família e até a
mântica. Alguns outros de seus epítetos comprovam sua grandeza e
soberania: senhor dos fenômenos atmosféricos, dele depende a
fertilidade do solo, daí seu epíteto de khthónios; protetor do lar e
símbolo da abundância, ele é ktésios; defensor da pólis, da família e
da lei, é invocado como polieús; deus também da purificação,
denomina-se kathársios e deus ainda da mântica, em Dodona, no
Epiro, onde seu oráculo funcionava à base do farfalhar dos ramos de
um carvalho gigante, árvore que lhe era consagrada.
É conveniente, no entanto, deixar claro que o triunfo de Zeus,
embora patenteie a vitória da ordem sobre o Caos, como pensava
Hesíodo, não redundou na eliminação pura e simples das divindades
primordiais. Algumas delas, se bem que desempenhando papel
secundário, permaneceram integradas no novo governo do mundo e
cada uma, a seu modo, continuou a contribuir para a economia e a
ordem do Universo. Até mesmo a manutenção de Zeus no poder, ele
a deve, em parte, à admoestação de Geia e Úrano, que lhe
predisseram o nascimento de um filho que o destronaria. Foi
necessário, para tanto, que engolisse sua primeira esposa, Métis. Nix,
a Noite, uma das mais primordiais das divindades, continuou a ser
particularmente respeitada e o próprio Zeus evitava irritá-la. A ela
Zeus ficou devendo seus primeiros rudimentos de cosmologia,
quando perguntou à deusa das trevas como firmar seu “soberbo
império sobre os imortais” e como organizar o Cosmo, de modo a que
“se tivesse um só todo com partes distintas”. As Erínias continuaram
a desempenhar seu papel de vingadoras do sangue parental
derramado; Pontos, o mar infecundo, permaneceu rolando suas
ondas em torno da terra; Estige, que ajudou a Zeus na luta contra os
Titãs, foi transformada não apenas em rio do Hades, mas na “água
sagrada” pela qual juravam os deuses; Hécate, a deusa dos sortilégios,
teve seus privilégios ampliados por Zeus, como se mostrou no
capítulo XII, e Oceano há de tornar-se uma divindade importante e
um aliado incondicional de Zeus. Em síntese, o novo senhor, alijados
os inimigos irrecuperáveis, ao menos temporariamente, buscou
harmonizar o Cosmo, pondo um fim definitivo à violenta sucessão
das dinastias divinas.
Até mesmo as divindades pré-helênicas, através de um vasto
sincretismo, conforme se procurou apontar no capítulo V, tiveram
funções e algumas muito importantes na nova ordem do mundo. O
exemplo começou pelo próprio Zeus, que, apesar de ser um deus
indo-europeu, “nasceu” em Creta; lá teve seus primeiros ritos
iniciáticos e lá “morreu”! A marca minoica permaneceu inclusive na
época clássica: a arte figurada nos mostra a estátua de um Zeus
jovem e imberbe, o jovem deus dos mistérios do monte Ira, o deus da
fertilidade, o Zeus ctônio. Atená, a importantíssima Atená, deusa da
vegetação, transmutou-se na filha querida das meninges de Zeus.
Perséfone tornou-se, além de filha da Grande Mãe Deméter, sua
companheira inseparável nos Mistérios de Elêusis. Poder-se-ia
ampliar a lista, mas o que se deseja ressaltar é que uma sábia política
religiosa, em que certamente teve papel de relevância o dedo de
Delfos com sua moderação e indiscutível patrilinhagem, fez que
deusas locais pré-helênicas, algumas divindades primordiais e certos
cultos arcaicos se integrassem no novo sistema religioso olímpico,
dando à religião grega seu caráter específico e sua extensão panhelênica sob a égide de Zeus. Tão logo o pai dos deuses e dos homens
sentiu consolidados o seu poder e domínio sobre o Universo, libertou
seu pai Crono da prisão subterrânea onde o trancafiara e fê-lo rei da
Ilha dos Bem-Aventurados, nos confins do Ocidente. Ali ele reinou
sobre muitos heróis que, mercê de Zeus, não conheceram a morte.
Esse destino privilegiado é, de certa forma, uma escatologia: os heróis
não morrem, mas passam a viver paradisiacamente na Ilha dos Bem-
Aventurados. Trata-se de uma espécie de recuperação da Idade de
Ouro, sob o reinado de Crono.
Os Latinos compreenderam bem o sentido dessa aetas aurea
(Idade de Ouro), pois fizeram-na coincidir com o reino de Saturno na
Itália.
Vejamos brevemente a “história” desse deus itálico e de suas
célebres festas, denominadas Saturnalia, as Saturnais.
Saturnus, antigo deus itálico, anterior à chegada dos indo-europeus
à terra de Rômulo, competiu vantajosamente com Liber, deus
tipicamente latino, como divindade da vegetação. Enquanto Liber
acabou fundindo-se com Bacchus, de procedência grega, Saturnus
continuou a ser o grande deus da semeadura e da vegetação, donde
um deus ctônio.
Por etimologia popular, Saturnus proviria de satus, do verbo serere,
“semear, plantar”; a aproximação com saturâre, “saciar, fartar”, é
falsa, mas bem de acordo com sua função: um deus da abundância.
Segundo o mito, quando Zeus destronou a Crono, este refugiou-se
na Ausônia, onde recebeu o nome de Saturno. À sua chegada, a Itália
(outrora denominada poeticamente Ausônia) teve sua aetas aurea, a
Idade de Ouro, quando a terra tudo produzia abundantemente, sem
trabalho, como atesta o poeta latino Públio Ovídio Nasão, em suas
Metamorfoses, 89ss. Reinavam a paz, a concórdia, a fraternidade, a
igualdade e a liberdade. Saturno é, pois, o herói civilizador, o que
ensina a cultura da terra, a paz e a justiça. O poeta maior da
latinidade, Públio Vergílio Marão, sonhou com o retorno, no século
de Augusto, dessa paz e dessa justiça:
Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Écloga 4,6):
– Eis que a justiça está de volta; retorna o reino de
Saturno.
Pois bem, para comemorar esse antigo estado paradisíaco e obter as
boas graças e a proteção do deus sobre a vegetação e as sementes
lançadas no seio da terra, celebravam-se, anualmente, as Saturnalia.
Iniciavam-se ao término de um ano e inícios do outro, ou seja, no dia
17 de dezembro. Duravam, a princípio, um só dia, depois dois e, em
seguida, três. À época imperial, Augusto introduziu um quarto dia e
Calígula um quinto. Coincidentemente, por ocasião das Saturnalia,
realizavam-se também as Paganalia (de pagus,-i, aldeia) e as
Compitalia (de compita,-ôrum, encruzilhadas). As primeiras eram
festas rurais e as segundas tinham por cenário as encruzilhadas de
Roma, mas ambas visavam à fertilidade dos animais e dos campos e,
como os khýtroi das Antestérias gregas, estavam estreitamente
ligadas ao culto dos mortos. Estes, afinal, comandam as sementes
guardadas no seio da terra. Se na Hélade os kh×troi eram consagrados
às Queres e às Erínias, na Itália, o eram aos deuses Lares, Manes ou
Penates, meros eufemismos de Lêmures, isto é, os gênios, os espíritos
tutelares, as almas dos mortos, encarregados de proteger o lar, a
cidade, os campos e, por isso mesmo, denominados Lares Praestites,
Lares Protetores, sentinelas sempre prontas a proteger e a servir.
As Saturnalia seriam, em última análise, uma reminiscência da
aetas aurea, quer dizer, da abundância, da igualdade, da liberdade.
Começavam, em Roma, pela manhã. Após se retirar a faixa de lã que
cobria, durante o ano todo, o pedestal da estátua de Saturno,
realizava-se, um pouco mais tarde, um banquete público, cujo
término era marcado pelo grito da distensão: Io Saturnalia! Viva as
Saturnais. Tudo parava: o senado, os tribunais, as escolas, o trabalho.
Reinavam a alegria, a orgia e a liberdade. Eliminavam-se interditos
de toda ordem. Quebrava-se a hierarquização da orgulhosa sociedade
romana: os escravos, temporariamente em liberdade total, eram
servidos pelos senhores, aos quais, não raro, insultavam, lançandolhes em rosto os vícios, as torpezas e a crueldade.
Se as Saturnais, com toda a sua liberação, talvez possam ser
interpretadas, segundo o fizemos, como reminiscência da Idade de
Ouro, não poderiam simbolizar também, como no complexo de
Édipo, a supressão do deus, dopai e do chefe?
Se Crono destronou a seu pai Úrano, mutilando-o e se, por sua vez,
foi destronado pelo filho Zeus, o povo e sobretudo os escravos,
durante o breve período das Saturnais, faziam que seus chefes e
senhores prepotentes recebessem “a retribuição” do que haviam feito
a seus próprios pais, à imitação do ato de Crono para com Úrano e de
Zeus em relação a Crono. Assim talvez se explique por que se elegia,
anualmente, nas Saturnalia, um Saturnalicius Princeps, o rei das
Saturnais, como, entre nós, o Rei Momo. Em épocas recuadas, esse rei,
após presidir aos banquetes, às festas e orgias, era, no final das
mesmas, sacrificado a Saturno.
4
Acerca dos casamentos e das ligações amorosas de Zeus é
necessário proceder com cautela e método. Vai-se, primeiramente,
dar uma ideia do simbolismo desses “amores”; em seguida far-se-á
menção dos principais casamentos e ligações do deus, deixando-se
para outros capítulos os mitos relativos a cada união do Vol. II.
Zeus é, antes do mais, um deus da “fertilidade”, é ómbrios e hyétios,
é chuvoso. É deus dos fenômenos atmosféricos, como já se disse, por
isso que dele depende a fecundidade da terra, enquanto khthónios. É
o protetor da família e da pólis, daí seu epíteto de polieús. Essa
característica primeira de Zeus explica várias de suas ligações com
deusas de estrutura ctônia, como Europa, Sêmele, Deméter e outras.
Trata-se de uniões que refletem claramente hierogamias de um deus,
senhor dos fenômenos celestes, com divindades telúricas. De outro
lado, é necessário levar em conta que a significação profunda de
“tantos casamentos e aventuras amorosas” obedece antes do mais a
um critério religioso (a fertilização da terra por um deus celeste, e,
depois, a um sentido político: unindo-se a certas deusas locais préhelênicas, Zeus consuma a unificação e o sincretismo que hão de
fazer da religião grega um calidoscópio de crenças, cujo chefe e
guardião é o próprio Zeus.
Já enumeramos no capítulo VIII, 3, os casamentos e as uniões de
Zeus com deusas e “mortais”. Essas hierogamias são as catalogadas
por Hesíodo (Teog., 886-944). A lista, no entanto, foi bastante
ampliada após o poeta da Beócia. Vamos, pois, repetir o quadro com
os necessários acréscimos, sobretudo com aqueles que têm maior
interesse para o mito: Zeus e Métis foram pais de Atená.
Zeus e Têmis geraram as Horas e as Moîras.
Zeus e Eurínome geraram as Cárites.
Zeus e Deméter geraram Core ou Perséfone.
Zeus e Mnemósina geraram as Musas.
Zeus e Leto geraram Apolo e Ártemis.
Zeuscomsua“legítima”esposaHeragerouHebe,Ares,Ilí
tia(eHefesto?).
Zeus e Maia geraram Hermes.
Zeus e Sêmele geraram Dioniso.
Zeus e Alcmena geraram Heracles.
Zeus e Dânae geraram Perseu.
Zeus e Europa geraram Minos, Sarpédon e
Radamanto.
Zeus e Io geraram Épafo.
Zeus e Leda geraram Pólux e Helena, Castor e
Clitemnestra.
Eis aí os principais amores do senhor do Olimpo. Observe-se que as
“sete” primeiras ligações de Zeus o foram com deusas e as “sete”
outras são consideradas como simples uniões ou amores passageiros
com mortais. O que na realidade acontece é que a maioria dessas
mortais eram antigas imortais, que, por um motivo ou outro,
sobretudo em razão de sincretismos, tiveram seus cultos absorvidos
por deusas mais importantes e foram rebaixadas ao posto de
heroínas, de princesas ou de simples mortais, como se verá.
A relação da “força fecundante” do filho caçula de Crono poderia
ser bem ampliada, porque a maioria absoluta das regiões gregas se
vangloriava de ter possuído um herói epônimo nascido dos amores
do grande deus. O mesmo se diga das grandes famílias lendárias que
sempre apontavam um seu ancestral como filho de Zeus.
Mas, que representa, afinal, esse deus tão importante para os
gregos, dentro de um enfoque atual? Após o governo de Úrano e
Crono, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus
criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior. Dele
depende a regularidade das leis físicas, sociais e morais. Consoante
Mircea Eliade, Zeus é o arquétipo do chefe de família patriarcal. Deus
da luz, do céu luminoso, é o pai dos deuses e dos homens. Enquanto
deus do relâmpago configura o espírito, a inteligência iluminada, a
intuição outorgada pelo divino, a fonte da verdade. Como deus do
raio, simbolizou a cólera celeste, a punição, o castigo, a autoridade
ultrajada, a fonte de justiça. A figura de Zeus, após ultrapassar a
imagem de um deus olímpico autoritário e fecundador, sempre às
voltas com amantes mortais e imortais, até tornar-se um deus único
e universal, percorreu um longo caminho, iluminado pela crítica
filosófica e pela evolução lenta, mas constante, da purificação do
sentimento religioso. A concepção de Zeus como Providência única
só atingiu seu ápice com os Estoicos, entre os séculos IV e III a.C.,
quando então o filho de Crono surge como símbolo de um “deus
único”, encarnando o Cosmo, concebido como um vasto organismo
animado por uma força única. É indispensável, todavia, deixar bem
patente que os Estoicos concebiam o mundo como um vasto
organismo, animado por uma força única e exclusiva, Deus, também
denominado Fogo, Pneuma, Razão, Alma do Mundo... Mas, entre
Deus e a matéria a diferença é meramente acidental, como de
substância menos sutil a mais sutil. A evolução desse Teocosmo, desse
deus-mundo, é necessariamente fatalista, pois que obedece a um
rigoroso determinismo. Desse modo, aos imprevistos do acaso e ao
governo da Providência divina se substitui a mais absoluta
fatalidade.
As teorias cosmológicas dos Estoicos estão, na realidade,
fundamentadas no panteísmo, fatalismo e materialismo. O belíssimo
Hino a Zeus, do filósofo estoico Cleantes (século III a.C.), marca o
ponto culminante da ascensão do deus olímpico no espírito dos
gregos de sua época e estampa bem claramente o que se acabou de
dizer.
Os “modernos”, todavia, denunciaram em determinadas atitudes
do poderoso pai dos deuses e dos homens o que se convencionou
chamar de Complexo de Zeus. Trata-se de uma tendência a
monopolizar a autoridade e a destruir nos outros toda e qualquer
manifestação de autonomia, por mais racional e promissora que seja.
Descobrem-se nesses complexos as raízes de um manifesto
sentimento de inferioridade intelectual e moral, com evidente
necessidade de uma compensação social, através de exibições de
autoritarismo. O temor de que sua autocracia, sua dignidade e seus
direitos não fossem devidamente acatados e respeitados tornaram
Zeus extremamente sensível e sujeito a explosões coléricas, não raro
calculadas.
Para Hesíodo, no entanto, Zeus simboliza o termo de um ciclo de
trevas e o início de uma era de luz. Partindo do Caos, da desordem
primordial, para a justiça, cifrada em Zeus, o poeta sonha com um
mundo novo, onde haveriam de reinar a disciplina, a justiça e a paz.
1. Os Curetes eram, em síntese, demônios do cortejo de Zeus. Para que os gritos do deus
infante não revelassem sua existência e presença a Crono, a ninfa Amalteia solicitou-lhes
que dançassem em torno do menino, entrechocando suas lanças e escudos de bronze.
2. Amalteia nos mitos mais antigos é a cabra miraculosa que aleitou Zeus. Outros
consideram-na como uma ninfa, que, para esconder o menino de Crono, o suspendeu a uma
árvore, para que o pai não o encontrasse, nem no céu, nem na terra, nem no mar. De
qualquer forma, ninfa ou cabra, Amalteia era de aspecto tão medonho, que os Titãs,
temendo-a, pediram a Geia que a escondesse numa caverna de Creta.
3. Égide, em grego αἰγίς, ίδος (aiguís, -idos), furacão, tempestade, “pele de cabra”, escudo
coberto com uma pele de cabra e particularmente o escudo de Zeus, coberto com o couro da
cabra Amalteia, que lhe servia de arma ofensiva e defensiva. Com esse escudo, eriçado de
pelos como um tosão, guarnecido de franjas, debruado de serpentes e com a cabeça da
Górgona no meio, Zeus espalha o terror, agitando-o nas trevas, no fulgor dos relâmpagos e
no ribombar dos trovões. Etimologicamente, no entanto, αἰγίς (aiguís), égide, nada tem a
ver com αἴξ, αἰγός (aíks, aigós), cabra. A aproximação é meramente fantasiosa e mítica.
4. GENNEP, Arnold van. Op. cit., cap. VI, p. 74ss.
APÊNDICE
Deuses gregos e latinos
A listagem dos principais deuses gregos com seus respectivos
correspondentes latinos tem por objetivo contribuir para se evitarem
confusões entre uns e outros. Uma coisa é um deus grego e outra,
muito diferente, um deus latino, mesmo resultante de um
sincretismo, como foi o caso específico de Roma que, após dominar o
sul da Itália, com a queda de Tarento, em 272 a.C., acabou por se
apossar, ou melhor, de ser possuída pela cultura grega: literatura,
artes e deuses...
Seria o momento de recordar, mais uma vez, que Roma, com o
ímpeto e a bravura de suas legiões, subjugando pelas armas a Grécia,
foi por ela intelectualmente derrotada, como diz o já citado poeta
latino Quinto Horácio Flaco, Epist., 2,1,157: Graecia capta, ferum
uictorem cepit et artes intulit agresti Latio.
– A Grécia vencida venceu o feroz vencedor e
introduziu as artes no Lácio inculto.
Com as artes vieram igualmente os deuses da Hélade e fundiramse com as divindades latinas; mas aqueles, como via de regra
acontece em qualquer sincretismo, jamais perderam seu Χαρακτήρ
(kharaktér), sua “marca” indelével de dei otiosi, de deuses ociosos e
poéticos. Transplantados para a Itália, tornaram-se dei laboriosi, isto
é, deuses com múltiplos afazeres. Deuses que “batiam ponto” e
permaneciam na Urbs o dia todo, ajudando e trabalhando... Se o Zeus
helênico se fez o ditador inconteste do Olimpo, o Júpiter, ao descer
para Roma, tornou-se Stator, Iuppiter Stator, quer dizer, o “Júpiter
Estator”, que está de pé, firme como uma “estátua”, em defesa não
apenas dos interesses de sua cidade, mas também do Império
Romano, como o invocou Marco Túlio Cícero nas Catilinárias, Cat.,
1,11. Se Hera olímpica é a protetora dos amores legítimos (exceto das
paixões do próprio marido!), em Roma, com o nome de Iuno Lucina,
Juno Lucina, “a que faz vir à luz”, a rainha dos deuses passou
efetivamente a presidir aos partos. E em cada um dos “adaptados” se
poderia estabelecer um distanciamento cada vez mais acentuado, do
abstrato para o concreto.
Trata-se, realmente, de duas mentalidades, que estão bem gravadas
em tudo quanto realizaram esses dois povos extraordinários: o grego
bem mais voltado (Esparta, por motivos históricos, é um caso à
parte) para a poíesis, o romano para a prâksis. Definindo esse ângulo
do espírito romano impresso em seus deuses, afirmava um “outro
escritor latino”, o erudito Plínio, o Velho: omnium uirtutum et
utilitatum rapacissimi (Nat. Hist., 25,2) – os romanos eram
avidíssimos por tudo quanto representasse valor e utilidade.
Herdeira da Grécia, Roma possuía, no entanto, sua missão. Seu
poeta maior, Públio Vergílio Marão, soube destacá-la, colocando lado
a lado, mas em polos divergentes, dois universos do pensamento, o
grego e o romano. E foram esses dois mundos bem díspares que
acabaram por lhes moldar os deuses, muito semelhantes quanto aos
significantes e bem distantes no que tange aos significados, mesmo
aqueles que têm procedência comum do mundo indo-europeu.
Eis o texto do poeta de Mântua:
Excudent alii spirantia mollius aera, credo equidem;
uiuos ducent de marmore uultus; orabunt causas
melius, caelique meatus describent radio et surgentia
sidera dicent: tu regere imperio populos, Romane,
memento, hae tibi erunt artes, pacisque imponere
morem, parcere subiectis et debellare superbos.
(En., 6,847-853) – Outros saberão com mais arte dar vida ao bronze, assim o creio; farão
surgir do mármore figuras vivas; saberão pleitear mais eloquentemente as causas,
calcularão os movimentos do céu e o curso dos astros: tu, Romano, lembra-te de que
nasceste para governar o mundo. Eis aí as tuas artes: impor as condições da paz, poupar os
vencidos e esmagar os soberbos.
Voltando ainda um pouco ao “empréstimo” religioso que a Grécia
fez a Roma, convém enfatizar que os romanos não assimilaram
simplesmente os deuses gregos, mas os traduziram e, portanto, os
transformaram.
Citando Heidegger, diz Angelo Ricci que o filósofo alemão “tem
uma observação radical com referência já ao uso, em língua latina,
de termos gregos, a qual é válida para explicar o processo inteiro do
encontro dos dois universos de pensamento”1.
“É pois verídico”, pondera judiciosamente Heidegger, “que essa
tradução de termos gregos para o latim não é, em hipótese alguma,
algo tão inofensivo, como se pensa até hoje. Essa tradução,
aparentemente literal (e, por isso mesmo, aparentemente
salvaguardante), é, na realidade, uma tra-dução (de trans-ducere,
transpor para além), uma transferência da experiência grega para
um outro universo do pensamento. O pensamento romano retoma as
palavras gregas sem a apreensão original correspondente ao que elas
dizem, sem a parole grega”2.
Feitas estas observações, vamos estampar tão somente os grandes
deuses gregos transpostos para o latim, observando-se que, nessa
transferência, algumas divindades helênicas foram simplesmente
transliteradas.
Ao lado dos deuses gregos colocamos entre parênteses alguns
epítetos mais usados e nos latinos mantivemos, ao lado do nome em
grego ou em latim, os nomes ou epítetos gregos, desde que
efetivamente usados pelos escritores latinos.
Afrodite (Citereia,
Cípria, Cípris)
Apolo (Hélio, Febo,
Lóxias, Pítio)
Ares
Ártemis (Hécate,
Selene)
Atená (Palas)
Crono
Deméter
Vênus (Citereia,
Cípria)
Apolo (Febo, Lóxias,
Pítio)
Marte
Diana (Hécate)
Minerva (Palas)
Saturno
Ceres
Eros
Cupido
Geia
Terra
Hades
Plutão
Hebe
Dite (Plutão)
Juventas (Hebe)
Hefesto
Vulcano
Hera
Juno, Lucina
Héracles, Alcides
Hércules (Alcides)
Hermes
Mercúrio
Héstia
Vesta
Leto
Latona
Moira
Fado, Parcas
Prosérpina
(Perséfone)
Perséfone, Core
Posídon
Netuno
Reia
Cibele (Reia)
Tânatos
Morte
Úrano
Céu
Zeus
Júpiter
Aleto
* Erínias
Tisífone
Aleto
Fúrias
Megera
Megera
Cloto
* Queres
Láquesis
Átropos
Tisífone
Nona
Parcas
Décima
Morta
Cloto
e Láquesis
Átropos
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arcaica; cerca de
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Glyptotek,
Munique
Core da Acrópole.
Mármore policromo.
Arte grega arcaica;
cerca de 530-520
a.C. Museu da
Acrópole, Atenas.
Kûros (Jovem) do Pireu. Bronze. Arte grega arcaica; cerca de 520 a.C.
Museu Nacional de Atenas.
Atená, Héracles e Atlas. Métopa do templo de Zeus em Olímpia.
Mármore.
Inicio da época clássica; cerca de 470-460 a.C. Museu de Olímpia.
Apolo. Frontão oeste do Templo de Zeus em Olímpia. Mármore.
Início da
época clássica; cerca de 460 a.C. Museu de Olímpia.
Zeus de Artemísio. Bronze. Cerca de 460 a.C. Museu Nacional de
Atenas.
Nascimento de Afrodite(?). Parte central do tríptico Ludovisi.
Mármore. Cerca de 470-460 a.C. Museu Nacional de Roma.
Atená “refletindo”. Baixo-relevo. Mármore. Cerca de 460 a.C. Museu
da
Acrópole, Atenas.
Nióbia ferida. Cópia romana de um bronze grego de 440 a.C.
Mármore.
Museu Nacional de Roma.
Mênade. Cópia romana de um original grego dos fins do séc. V a.C.
Mármore.
Palácio dos Conservadores, Roma.
Hermes. Original de Praxíteles. Cerca de 340 a.C. Museu de Olímpia.
Suplício de Mársias. Cópia de um original da época helenística; séc.
III a.C.
Museu Arqueológico, Istambul.
Carneiro. Bronze. Siracusa. Época helenística. Museu Arqueológico,
Palermo.
Ceneu e os Centauros. Vaso grego, 440 a.C. Museu Real de Arte e
de
História, Bruxelas.
As Amazonas em guerra. Perugia. Museu Britânico, Londres.
Hermes e o pastor Páris. Museu Metropolitano de
Artes, Nova Iorque.
Junito de Souza Brandão ,falecido em 15/05/96, aos 71 anos, foi
professor titular de Língua e Literatura Grega e de Língua e
Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa
Úrsula e na Universidade Gama Filho.
Era Licenciado em Letras Clássicas, tinha
Doutorado e livre-docência em Literatura
Grega. Ministrava, além de suas aulas normais
nas
universidades
supracitadas,
cursos
regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e
principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica da
mesma cidade.
Mapa do Mundo Helênico
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Rua Frei Luís, 100
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Editores
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Edrian Josué Pasini
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Soluções Editoriais ISBN 9786557131114
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Brandão, Junito de Souza, 1926-1995.
Mitologia grega, vol. II / Junito de Souza Brandão. - 23. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes,
2015.
Bibliografia.
1. Mitologia grega - História 1. Título.
08-11709
CDD-292.0809
Índices para catálogo sistemático: 1. Mitologia grega : História 292.0809
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda.
SUMÁRIO
Nota à 5ª Edição
Prefácio
Breve introdução
I. Casamentos e uniões de Zeus
II. O mito de Leto: nascimento de Ártemis e Apolo
III. O mito de Apolo: Epidauro e o Oráculo de Delfos
IV. Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e do entusiasmo
V. Orfeu, Eurídice e o Orfismo
VI. O mito de Narciso
VII. Hermes Trismegisto
VIII. Eros e Psiqué
Apêndice - Deuses olímpicos e arquétipos masculinos
Complementação bibliográfica do Volume I
NOTA À 5ª EDIÇÃO
Como na sétima edição do Vol. I, esta 5ª do Vol. II
assinala várias alterações de não menos importância. Não apenas
procuramos corrigir os erros tipográficos e emendar alguns verbetes,
aprimorando a redação, mas sobretudo se deu grande atenção à parte
etimológica. Tomando como ponto de partida nossos Dois Volumes
do Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega (Petrópolis:
Vozes, 1991), foi possível melhorar e retocar vários étimos.
A novidade maior, todavia, está no Apêndice. Como já o fizéramos
no Vol. III de Mitologia grega, em que procuramos estudar os
arquétipos do sexo feminino, estampamos neste Vol. II as funções
arquetípicas dos homens, encaixando-os em um ou mais deuses da
Grécia antiga.
Esperamos, assim, que o Volume II de nossa Mitologia grega,
agora ampliado, possa continuar a merecer a atenção e carinho com
que vem sendo acolhido por tantos estudiosos.
Rio de Janeiro, 10 de abril de 1992.
Junito Brandão
PREFÁCIO
Se estudarmos as religiões universais desde os
primórdios dos tempos históricos, veremos que todas elas, como o
hinduísmo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, estiveram
intimamente relacionadas com os sistemas econômicos em que se
inseriram. A conclusão poderia se estender à religião dos gregos. Mas
antes de abordar o mito grego, examinemos um dos ângulos do
cristianismo.
Quando, na Renascença, Lutero se volta contra Roma, isto
acontece na época em que os métodos de produção estavam
passando por uma profunda transformação. A divergência teológica
entre Lutero e Roma, fundamentalmente, consistia em que a fé
bastava, por si só, para a salvação. As obras não importavam. No
inconsciente coletivo do mundo anglo-saxão, que estava na
vanguarda daquelas transformações, esse mandamento aparece de
forma mais explícita: “basta seres eficiente, não importa de que
maneira, para te salvares”, ou melhor, não importam os meios, basta
a eficiência. Esta concepção permeou todo o sistema de produção de
riqueza, que se instalou na Europa e que veio a ser adotado pelas
grandes democracias do Ocidente.
No caso do hinduísmo, vemos uma religião milenar, um sistema
de castas hierarquizadas, no qual, ao homem das castas menos
elevadas se acena com a recompensa de renascer em casta superior,
se em vida tiver meditado e cumprido os preceitos que lhe são
prescritos, até chegar à união com a totalidade, o Brahman.
O caso do islamismo é assemelhado. Numa sociedade em que a
poliginia é lei, o casamento consistia em um privilégio. Dispõe o
Corão que um homem poderá ter tantas esposas quantas puder
sustentar. Daí resulta um grande excedente de homens não poder
sustentar mulher alguma; e a lei islâmica lhes promete belas huris
na outra vida, se nesta se sacrificarem à Jihad, isto é, à Guerra Santa.
E o islamismo se espraiou pelo mundo, num vasto e duradouro
império.
Quando nos detemos sobre o mito grego, diversas analogias se
tornam evidentes. O mito de início serviu aos eupátridas. A
composição do mundo dos deuses é hierarquizada, favorece aos
deuses em detrimento das deusas e se apoia em um sistema de
valores. Zeus todo-poderoso tem o direito de vida e morte sobre tudo
e sobre todos. Sua mulher Hera, reprimida, busca sempre
compensar-se pela infindável série de transgressões conjugais que se
permitem ao marido cosmocrata e onipotente. A distância entre o
homem e os deuses, quando transposta, é punida com severidade. No
mito de Prometeu iremos ver o herói condenado a ter o fígado
diariamente devorado por um abutre, e diariamente renascido para
perpetuação do suplício, por haver ousado favorecer os mortais com
seu arrojo. Assim se mantiveram estruturadas, por longo tempo, a
religião e a sociedade grega.
Em todas as épocas, porém, houve movimentos contrários aos
sistemas estratificados das religiões tradicionais, e a Grécia também
assistiu a tais reações. O orfismo e o dionisismo, os Mistérios de
Elêusis, constituem bons exemplos. Tais correntes ofereciam a todos,
igualitariamente – até aos deserdados – a comunhão com o divino.
Mas não nos deteremos em seus lineamentos, tão magnificamente
analisados por Junito Brandão nos capítulos que dedica a Orfeu e
Dioniso, porque, como aponta o autor, eles acabaram sendo
cooptados pela religião oficial. Foi notável o que ocorreu com o culto
de Dioniso, que terminou “apolinizado”, pois a vivência do êxtase
ameaçava a sociedade racional.
Mas os Mistérios de Elêusis não chegaram a ser completamente
assimilados. Elêusis distava apenas vinte quilômetros de Atenas, mas
Deméter e sua filha Perséfone levaram séculos para chegar até a
Pólis, onde imperavam os eupátridas e o legalismo de Apolo. Quando
mais não fosse, tratava-se de um culto desestabilizador e suspeito,
que exaltava a figura da mulher em contraposição ao domínio do
homem. Os Mistérios abriam-se democraticamente a todos, até
mesmo aos escravos, desde que falassem grego, pudessem entender e
repetir as palavras sagradas e não estivessem condenados por
homicídio. O Estado terminou por tolerar as práticas dos Mistérios,
pois Deméter e Perséfone, afinal, eram responsáveis pelas sementes, e
destas dependiam os frutos e o bem-estar da coletividade.
Não haverá exagero em afirmar-se que os Mistérios de Elêusis
foram um reflexo, no campo religioso, da democracia que então
ensaiava os seus primeiros passos. E esta, de par com o emergente
pensamento filosófico e científico – outra contribuição dos helenos
para o aprimoramento do homem – viria a constituir um dos pilares
em que se fundamenta a sociedade contemporânea.
Rose Marie Muraro
Breve introdução
Havíamos, inicialmente, planejado Mitologia grega em
dois volumes. O primeiro, após uma visão, embora sumária, da
batalha que o mito travou na Hélade questionadora para sobreviver;
de uma tentativa de conceituar Mito, Rito e Religião; de um
panorama histórico-social grego (nosso objetivo foi sempre partir
deste para o religioso) e de uma abordagem dos poemas homéricos,
prosseguiria com a Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo, até a
consolidação do poder nas mãos de Zeus.
O segundo se iniciaria com as hierogamias do pai dos deuses e dos
homens e se fecharia no mito da nostalgia, vale dizer, do retorno de
Ulisses aos braços quentes e saudosos de Penélope.
A meta, no entanto, parece que não foi bem contornada e os
competidores ultrapassaram-na, sem que o auriga pudesse conter
sua biga... Desse modo, face sobretudo à “pressão compulsiva” de um
grande número de Psiquiatras, Analistas e alunos meus, quer de São
Paulo, onde meus cursos foram ampliados, no magnífico Anfiteatro
de Convenções da USP para o Instituto de Psiquiatria da UNICAMP,
quer do Rio de Janeiro, onde voltei a ministrar aulas em dupla com
psiquiatras e analistas junguianos, particularmente com o Dr. Walter
Boechat, o Volume II acabou por se ampliar demasiadamente. A
ultrapassagem do métron neste Volume se deveu, de modo especial, a
uma tentativa de ir além do mito e mostrar-lhe os contornos
simbólicos.
O mito, felizmente, ao menos e de modo oficial, desde os fins do
século XIX, com Bachofen, Freud, Jung, Kerényi, Neumann, M.L. Von
Franz, e isto só para citar alguns dos pioneiros, esqueceu Evêmero e
as “carochinhas”, para tornar-se algo de muito sério. Remitizado e, de
certa forma, ressacralizado, passou a ser analisado como um
arquétipo. “O inconsciente coletivo é constituído pela soma dos
instintos e dos seus correlatos, os arquétipos. Assim como cada
indivíduo possui instintos, possui também um conjunto de imagens
primordiais”*. Assim, tem-se o mito como exteriorização de
conteúdos do inconsciente coletivo.
Recolocado em suas verdadeiras funções, dele se ocuparam e se
ocupam psicólogos, teólogos, filósofos, antropólogos, folcloristas e
historiadores das religiões. Para não fazer um catálogo de sábios e
estudiosos, que se debruçaram sobre Édipo, Narciso e Hermes, é
bastante lembrar alguns nomes que, desvencilhando-se do mos
maiorum, deram aos mitos o sentido e a importância que sempre
tiveram. Entre centenas deles, poder-se-ia destacar Hugo Rahner, S.J.,
C. Moeller, A.J. Festugière, R. Otto, Martin Nilsson, O. Rank, J.
Campbell, J.P. Vernant, G. Dumézil, Lévi-Strauss, Marie Delcourt, A.
Brelich, Mircea Eliade, Bachelard, H. Jeanmaire, L.C. Cascudo, Alceu
Maynard Araújo e tantos e tantos outros... Quando se ouve um
filósofo do porte do Dr. Arcângelo Buzzi harmonizar lovgor (lógos) e
mu~qor (mythos), ao mostrar que “o discurso linguístico enuncia
intensamente esse espetáculo de solidariedade dos opostos,
procurando aproximá-los e integrá-los pacífica e conflitualmente,
então o discurso, mesmo que use palavras-de-ciência, é mítico e
consequentemente literário”**, é que se vê quanto o mito se libertou
de tabus e preconceitos e como é importante para os que realmente o
compreendem. Tem-se até mesmo um prazer especial em repetir a
citação de Arcângelo Buzzi, quando retoma as palavras de Orígenes,
que dizia “haver Platão hospedado a filosofia na casa dos mitos”...
Mas estamos novamente perdendo a meta! O que realmente
queríamos é justificar o tratamento mais profundo que se deu a
alguns mitologemas, considerados muito significativos. Com isto,
tornou-se inviável reunir todo o material, longa e pacientemente
pesquisado, no Volume II. Com anuência da Editora Vozes,
resolvemos elaborar um terceiro Volume só com o rico e
indispensável Mito dos heróis. Dessa maneira, o Volume II se compõe
de oito extensos capítulos, que têm como ponto de partida os
Casamentos e uniões de Zeus e têm como remate o mito lindíssimo de
Eros e Psiqué.
Este Volume II deve muito a muita gente. Enumerá-los a todos
seria impossível, mas deixar de citar alguns seria ingratidão.
Novamente contei com as Professoras Lea Bentes Cardozo, Míriam
Suter Medeiros e o Professor Fred Marcos Tallmann na difícil e
exaustiva tarefa de, por vezes, adivinhar e datilografar meus
terríveis rascunhos! Muito importante também foi a colaboração de
Cléa Paula Braga, que organizou o Índice onomástico deste Volume II.
A Doutoranda e competente Professora Dina Maria Machado
Andréa Martins Ferreira se incumbiu da revisão da parte
datilografada e se portou como as formiguinhas laboriosas do Mito
de Eros e Psiqué, que tinham a ciência de separar os grãos por espécie!
Cooperação preciosa foi, sem dúvida, a de Augusto Ângelo
Zanatta, do Departamento Editorial da Editora Vozes. Não apenas
sugeriu que se acrescentassem à Mitologia grega alguns quadros
genealógicos “divinos e heroicos” e a enriquecesse com ilustrações
iconográficas, mas ainda, e sobretudo, se encarregou do paciente e
penoso trabalho de elaborar o Índice analítico deste Volume II. Ao
competente Augusto Ângelo Zanatta meus sinceros agradecimentos.
Aos meus incansáveis incentivadores, particularmente
psiquiatras, analistas, psicólogos e estudiosos do mito, de São Paulo e
do Rio de Janeiro, um especial muito obrigado.
Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1986.
Junito de Souza Brandão
* JUNG, C.G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 73.
** BUZZI, Arcângelo. Literatura e Mito. Conferência pronunciada no II Congresso de
Literatura da UGF, em outubro de 1985, p. 4.
As famílias divinas
CAPÍTULO I
Casamentos e uniões de Zeus
1
Vamos dedicar alguns capítulos às ligações amorosas de Zeus. No
Vol. I de nosso Mitologia grega, p. 281, tratou-se, em parte, do
casamento de Zeus e Métis, mas ter-se-á que completá-lo, para que se
possa discorrer sobre o mito de Atená. A união de Zeus com Têmis
foi apenas esboçada no Vol. I, p. 211-212.
Voltaremos a ela, mas tão somente no que concerne às três filhas
do casal divino, porque das funções da deusa das “leis eternas” se
falou no capítulo supracitado. Acerca de Zeus e Eurínome já se disse
o necessário no Vol. I, p. 281. Tratou-se igualmente da união de ZeusCisne com Leda e do nascimento extraordinário de Helena e Pólux e
de Clitemnestra e Castor, no Vol. I, p. 90-91. Do mito de Deméter e de
seu hieròsgámos com Zeus se fez uma longa exposição no Vol. I, p.
300-329. Zeus e Mnemósina foram estudados no Vol. I, p. 213. O mito
do rapto de Europa será também abordado, uma vez que só se falou
de seus filhos, Minos, Sarpédon e Radamanto, no Vol. I, p. 64. Como
também se enfocaram as “justas núpcias”, o impropriamente
denominado “casamento legítimo” do deus dos raios com sua irmã
Hera, mas nada se comentou especificamente a respeito de seus
filhos, ter-se-á que fazê-lo agora.
Em síntese, neste capítulo serão estudados os seguintes tópicos: o
mito de Atená, as Horas, o rapto de Europa e os filhos de Zeus com
Hera. As demais ligações do pai dos deuses e dos homens serão
analisadas nos capítulos subsequentes, ficando tão somente os mitos
de Héracles e Perseu para os capítulos especiais sobre os heróis, no
Vol. III.
2
Foi a conselho de Úrano e Geia que Zeus engoliu Métis, sua
primeira esposa, que dele estava grávida, pois, segundo o primeiro
casal primordial, se Métis tivesse uma filha e depois um filho, este
arrebataria do pai o supremo poder. Completada a gestação normal
de Atená, Zeus começou a ter uma dor de cabeça que por pouco não o
enlouquecia. Não sabendo de que se tratava, ordenou a Hefesto, o
deus das forjas, que lhe abrisse o crânio com um machado. Executada
a operação, saltou da cabeça do deus, vestida e armada com uma
lança e a égide, dançando a pírrica (dança de guerra, por excelência),
a grande deusa Atená.
ATENÁ, em grego 'Αθηνᾶ (Athenâ), cuja etimologia ainda é
desconhecida, sobretudo por tratar-se de uma divindade “importada”
do mundo mediterrâneo ou, mais precisamente, da civilização
minoica. Talvez se pudesse, segundo Carnoy, quanto ao primeiro
elemento de seu nome, Ath-, fazer uma aproximação com o indoeuropeu *attâ, “mãe”, epíteto que caberia bem a uma deusa da
vegetação da ilha de Creta, a uma Grande Mãe, que recebeu dos
próprios gregos o qualificativo de *awaiâ, “mãe”, na forma 'Αθηναίη
(Athenaíe), depois reduzida a 'Αθηνάα (Athenáa), fonte da forma
ática 'Αθηνᾶ (Athenâ), que já aparece em inscrições do século VI a.C.
1
O local de nascimento da deusa foi às margens do Lago Tritônio,
na Líbia, o que explicaria um dos múltiplos epítetos da filha querida
de Zeus: Τριτογέιγεα (Tritoguéneia) que é interpretado
modernamente como nascida no mar ou na água.
Tão logo saiu da cabeça do pai, soltou um grito de guerra e se
engajou ao lado do mesmo na luta contra os Gigantes, matando a
Palas e Encélado. O primeiro foi por ela escorchado e da pele do
mesmo foi feita uma couraça; quanto ao segundo, a deusa o esmagou,
lançando-lhe em cima a ilha de Sicília, como está em Mitologia grega,
Vol. I, p. 222-223. O epíteto ritual, Palas (Atená), não se deve ao nome
do Gigante, mas a uma jovem amiga da deusa, sua companheira na
juventude e que foi morta acidentalmente pela mesma. Daí por
diante, Atená adotou o epíteto de Palas e fabricou, consoante uma
variante tardia, em nome da morta, o Paládio, cujo mito é deveras
complicado, porque se enriqueceu com elementos diversos, desde as
Epopeias Cíclicas até a época romana. Homero o desconhece. Na
Ilíada só se faz menção de uma estátua cultual da deusa, honrada em
Troia, mas sentada, enquanto o Paládio é uma pequena estátua, mas
de pé, com a rigidez de um ksóanon, isto é, de um ídolo arcaico de
madeira. Seja como for, o importante é que se saiba ser o Paládio
grandemente apotropaico, pois tinha a virtude de garantir a
integridade da cidade que o possuísse e que lhe prestasse um culto.
Desse modo, toda e qualquer pólis se vangloriava de possuir um
Paládio, sobre cuja origem miraculosa se teciam as mais variadas e
incríveis narrativas. O de Troia, conta-se, caíra do céu e era tão
poderoso que, durante dez anos, defendeu a cidadela contra as
investidas dos gregos. Foi preciso que Ulisses e Diomedes o
subtraíssem, com a cumplicidade do silêncio de Helena, que os vira
penetrar na fortaleza. Troia, sem sua defesa mágica, foi facilmente
vencida e destruída.
O mais famoso e sacrossanto dos Paládios, porém, era o de Atenas,
que, noite e dia, lá do alto da Acrópole, o lar de Atená, vigiava Atenas,
a cidade querida da “deusa de olhos garços”.
Preterida por Páris no célebre concurso de beleza no monte Ida,
pôs-se inteira, na Guerra de Troia, ao lado dos aqueus, entre os quais
seus favoritos foram Aquiles, Diomedes e Ulisses. Na Odisseia, digase de passagem, a deusa augusta se transformará na bússola do
nóstos, do retorno de Ulisses a Ítaca, e, quando o herói finalmente
chegou à pátria, Palas Atená esteve a seu lado até o massacre total
dos pretendentes e a decretação da paz, por inspiração sua, no seio
das famílias da ilha de Ítaca. Sua valentia e coragem comparam-se às
de Ares, mas a filha de Zeus detestava a sede de sangue e a volúpia de
carnificina de seu irmão, ao qual, aliás, enfrentou vitoriosamente (Il.,
XXI, 391s.).
Sua bravura, como a de Ulisses, é calma e refletida: Atená é, antes
de tudo, a guardiã das Acrópoles das cidades, onde ela reina e cujo
espaço físico defende, merecendo ser chamada Poliás, a “Protetora”,
como ilustra o mito do Paládio. É sobretudo por essa proteção que é
ainda cognominada Níke, a vitoriosa. Uma tabuinha da Linear B,
datando de mais ou menos 1500 a.C., faz menção de uma A-ta-napoti-ni-ja, antecipando-se, assim, de sete séculos à πότνια Αθηεναίη
(pótnia Athenaíe) de Homero e demonstrando que a “Atená
Soberana” era realmente a senhora das cidades, em cuja Acrópole
figurasse o seu Paládio.
Sem se esquecer de suas antigas funções de Grande Mãe,
deixando inteiramente de lado seu denodo bélico, Atená Apatúria,
além de presidir nas Apatúrias2 à inscrição das crianças atenienses
em sua respectiva fratria, favorecia, enquanto 'Υγίεια (Hyguíeia),
Higiia, enquanto deusa das “boas condições de saúde”, a fertilidade
dos campos, em benefício de uma população a princípio sobretudo
agrícoa. É com esse epíteto que a protetora de Atenas se associava a
Deméter e a Core numa festa denominada Προκαριστήρια
(Prokharistéria), que se poderia traduzir por “agradecimentos
antecipados”, porque tais solenidades se celebravam nos fins do
inverno, quando recomeçavam a brotar os grãos de trigo. Estava
também ligada a Dioniso nas Όσχοφόπια (Oskhophória), quando
solenemente se levavam a Atená ramos de videira carregados de
uvas. Uma longa procissão dirigia-se, cantando, de um antigo
santuário do deus do vinho, em Atenas, até Falero (nome de um
porto da cidade), onde havia um nicho da deusa.
Dois jovens, com longas vestes femininas, o que trai um rito de
passagem, encabeçavam a procissão, transportando um ramo de
videira com as melhores uvas da safra.
É bom não esquecer ainda que na disputa com Posídon pelo
domínio da Ática e, particularmente, de Atenas, Atená fez brotar da
terra a oliveira, sendo, por isso mesmo, considerada como a
inventora do “óleo sagrado da azeitona”.
Deusa guerreira, na medida em que defende “suas Acrópoles”,
deusa da fertilidade do solo, enquanto Grande Mãe, Atená é antes do
mais a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do
espírito criativo e, como tal, preside às artes, à literatura e à filosofia
de modo particular, à música e a toda e qualquer atividade do
espírito. Deusa da paz, é a boa conselheira do povo e de seus
dirigentes e, como Têmis, é a garante da justiça, tendo-lhe sido
mesmo atribuída a instituição do Areópago. Mentora do Estado, ela é
também no domínio das atividades práticas a guia das artes e da
vida especulativa. E é como deusa dessas atividades, com o título de
Έργάνη (Ergáne), “Obreira”, que ela preside aos trabalhos femininos
da fiação, tecelagem e bordado. E foi precisamente a arte da
tecelagem e do bordado que pôs a perder uma vaidosa rival de Atená.
Filha de Ídmon, um rico tintureiro de Cólofon, Aracne era uma bela
jovem da Lídia, onde o pai exercia sua profissão. Bordava e tecia com
tal perfeição, que até as ninfas dos bosques vizinhos vinham
contemplar e admirar-lhe a arte. A perícia de Aracne valeu-lhe a
reputação de discípula de Atená, mas entre os dotes da fiandeira não
se contava a modéstia, a ponto de desafiar a deusa para uma
competição pública. Atená aceitou a provocação, mas apareceu-lhe
sob a forma de uma anciã, aconselhando-a a que depusesse sua h×bris,
sua démesure, seu descomedimento, que não ultrapassasse o métron,
que fosse mais comedida, porque os deuses não admitiam
competição por parte dos mortais. A jovem, em resposta, insultou a
anciã. Indignada, Atená se manifestou em toda a sua imponência de
imortal e declarou aceitar o desafio. Depuseram-se as linhas e deu-se
início ao magno concurso. Atená representou em lindos coloridos,
sobre uma tapeçaria, os doze deuses do Olimpo em toda a sua
majestade. Aracne, maliciosamente, desenhou certas histórias pouco
decorosas dos amores dos imortais, principalmente as aventuras de
Zeus. Atená examinou atentamente o trabalho da jovem lídia.
Nenhum deslize. Nenhuma irregularidade. Estava uma perfeição.
Vendo-se vencida ou ao menos igualada em sua arte por uma
simples mortal e irritada com as cenas criadas por Aracne, a deusa
fez em pedaços o lindíssimo trabalho de sua competidora e ainda a
feriu com a naveta. Insultada e humilhada, Aracne tentou enforcarse, mas Atená não o permitiu, sustentando-a no ar. Em seguida,
transformou-a em aranha, para que tecesse pelo resto da vida. Esse
labor incessante de Aracne-Aranha, no entanto, configura uma
terrível punição. A Bíblia e o Corão acentuam a fragilidade da teia de
Aracne:
Construiu sua casa como a da aranha
e, como guarda, fez sua choupana.
Rico, ele se deita pela última vez;
quando abrir os olhos, nada encontrará.
(Jó 27,18-19)
Mas a habitação da aranha
é a mais frágil das habitações.
(Corão, 29,40)
Semelhante fragilidade evoca uma realidade de aparências
fictícias e efêmeras. A aranha torna-se, nesse enfoque, uma artífice
de teias de ilusões.
Ainda como Έργάνη (Ergáne), “Obreira”, a grande deusa presidia
aos trabalhos das mulheres na confecção de sua própria
indumentária, pois que ela própria dera o exemplo, tecendo sua
túnica flexível e bordada (Il., V, 734). E na festa das Χαλκεῖα
(Khalkeîa), festas dos “trabalhodores em metais”, duas ou quatro
meninas, denominadas Arréforas3 com auxílio das “Obreiras” de
Atená, iniciavam a confecção do peplo sagrado, que, nove meses
depois, nas Panateneias, deveria cobrir a estátua da deusa,
substituindo o do ano anterior.
Associada ainda a Hefesto e Prometeu, no Ceramico de Atenas,
ainda por ocasião das Χαλκεῖα (Khalkeîa), era invocada como a
protetora dos artesãos. Foi seu espírito inventivo que ideou o carro de
guerra e a quadriga, bem como a construção do navio Argo, em que
velejaram os heróis em busca do Velocino de Ouro.
3
A maior e a mais solene das festas de Atená eram as Panateneias,
em grego Παναθήναια (Panathénaia), solenidade de que
participava Atenas inteira, e cuja instituição se fazia remontar a um
dos três maiores heróis míticos de Atenas: Erictônio, Erecteu ou
Teseu, este último realizador mítico do sinecismo. A comemoração
era primitivamente anual, mas, a partir de 566-565 a.C., as
Panateneias tornaram-se um festival pentetérico, a saber, que se
realizava de cinco em cinco anos e que congregava a cidade inteira.
Um banquete público, que “reunia” e unia todos os membros da pólis,
dava início à grande festa. Seguiam-se jogos agonísticos, cujos
vencedores recebiam como prêmio ânforas cheias de azeite,
proveniente das oliveiras sagradas de Atená. Havia ainda corrida de
quadrigas e um grande concurso de pírricas, danças guerreiras, cuja
introdução em Atenas passava por ter sido da filha querida de Zeus.
Precedendo a solenidade maior, realizava-se a Λαμπαδηδπομία
(Lampadedromía), “corrida com fachos acesos”, uma verdadeira
course aux flambeaux, quando se transportava o fogo sagrado de
Atená, dos jardins de Academo até um altar na Acrópole. As dez
tribos atenienses participavam com seus atletas.
O episódio capital das Panateneias, no entanto, era a πομπή
(pompé), a gigantesca procissão, imortalizada por Fídias no friso do
Partenon. A cidade toda participava dessa solenidade, inclusive
homens com suas armas de guerra e, à época de Fídias, a cavalaria,
que acabava de ser reorganizada. A monumental procissão saía das
ruas centrais da cidade e chegava à Acrópole, onde se faziam
múltiplos sacrifícios sobre os vários altares da deusa ali existentes:
Atená Higiia, Nique, Poliás...
O rito final era a entrega solene, no interior do santuário, do novo
peplo, que representava a vitória dos deuses olímpicos sobre os
filhos da Terra. A deusa, durante toda essa solenidade, cercada de
uma guarda de honra, figurava sobre seu carro de triunfo, uma vez
que fora ela, juntamente com seu pai Zeus, a principal artífice da
magna vitória que marcou a instituição de uma ordem definitiva e a
supremacia da pólis dos homens sobre o Caos primordial.
Atená é a deusa virgem de Atenas e é, por isso mesmo, que seu
templo gigantesco da Acrópole se denomina até hoje Παρθενών
(Parthenón), o Partenon, já que, em grego, virgem se diz παρθένος
(parthénos).
É bem verdade que a deusa chamava a Erictônio, o filho da Terra,
de seu filho, mas a concepção desse “filho da Terra” foi muito
estranha. Tendo Atená se dirigido à forja de Hefesto, para lhe
encomendar armas, o deus, que havia sido abandonado por Afrodite,
se inflamou de desejo pela deusa virgem e tentou prendê-la em seus
braços. Esta fugiu, mas, embora coxo, Hefesto a alcançou. A filha de
Zeus se defendeu, mas, na luta, o sêmen do deus lhe caiu numa das
pernas. Atená retirou-o com um floco de algodão, que foi lançado na
terra, que, fecundada, deu à luz um menino que aquela recolheu,
chamando-o Erictônio, quer dizer, “filho da Terra”. Sem que os deuses
o soubessem, a deusa fechou-o num cofre e o confiou secretamente
às filhas de Cécrops, antigo rei mítico da Ática e fundador de Atenas.
Apesar da proibição de Palas, as jovens princesas, Aglauro, Herse e
Pândroso, abriram o cofre, mas fugiram apavoradas, porque dentro
do mesmo havia uma criança, que, da cintura para baixo, era uma
serpente, como normalmente acontece com os seres nascidos da
Terra. Uma outra versão relata que ao lado de Erictônio rastejava
medonha serpente. Diz-se que, como punição, as três princesas
enlouqueceram e precipitaram-se do alto do rochedo da Acrópole. A
partir de então, Atená se encarregou de educar seu filho no recinto
sagrado de seu templo na Acrópole. Quando Erictônio atingiu a
maioridade, Cécrops entregou-lhe o poder. Casado com uma ninfa
náiade, Praxítea, foi pai de Pandíon, que o sucedeu no poder. Ao rei
Erictônio se atribui a introdução na Ática do uso do dinheiro e a
organização das Panateneias. Algumas de suas inovações são
igualmente atribuídas a seu neto Erecteu.
Além de haver dirigido os trabalhos de seus colegas, Ictino e
Calícrates, na construção do Partenon, Fídias (séc. V a.C.), o gênio da
escultura ateniense, foi o autor das duas mais célebres estátuas da
deusa da inteligência, a Parthénos Criselefantina no interior do
Partenon e, ao ar livre, o bronze colossal de Atená Prómakhos.
A ave predileta da deusa nascida do crânio de Zeus era a coruja,
símbolo da reflexão que domina as trevas; sua árvore favorita, a
oliveira.
Alta, de traços calmos, mais solene e majestosa que bela, Atená
era a deusa de olhos garços...
Palas Atená, Atená Poliás, era a defensora e a garante de Atenas.
Lá de cima da Acrópole, contemplando sua Cidade, transmitiu-lhe,
pelos lábios de Ésquilo, seu discurso de paz, de liberdade, de justiça e
de democracia. Era o fecho do julgamento de Orestes, perseguido
pelas Erínias. Vencendo-as, Atená, mais uma vez, dessa feita com o
escudo da razão, restabeleceu o domínio da ordem sobre o Caos, da
luz sobre as trevas, do primado do ius fori (do direito do homem)
sobre o ius poli (o direito das trevas).
Eis a mensagem de Atená a seus cidadãos:
Ouvi agora o que estabeleço, cidadãos de Atenas,
que julgais a primeira causa de sangue. Doravante
o povo de Egeu conservará este Conselho de Juízes,
sempre renovado, nesta Colina de Ares.
Nem anarquia, nem despotismo, esta é a norma
que a meus cidadãos aconselho observarem com respeito.
........................................................................
Se respeitardes, como convém, esta augusta Instituição,
tereis nela baluarte para o país, salvação para a Cidade.
Incorruptível, venerável, inflexível, tal é o Tribunal,
que aqui instituo para vigiar, sempre acordado,
sobre a Cidade que dorme.
(Eum., 681-706)
4
O perfil de Atená, como o de Zeus e o de Apolo, evoluiu
consideravelmente no mito, de maneira constante e progressiva, no
sentido de uma espiritualização.
Dois de seus atributos configuram os termos dessa evolução, a
serpente e a ave (a coruja). Antiga Grande Mãe minoica, proveniente
de cultos ctônios, domínios da serpente, elevou-se, com o sincretismo
creto-micênico, a uma posição dominante nos cultos urânios e
olímpicos, domínios da ave, como deusa da fecundidade e da
sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira, inspiradora das
artes e da paz.
Seu nascimento foi como um jorro de luz sobre o cosmo, aurora
de um mundo novo, atmosfera luminosa, semelhante à hierofania de
uma divindade emergindo de uma montanha sagrada. Sua aparição
marca um transtorno na história do mundo e da humanidade. Uma
chuva de neve de ouro caiu sobre Atenas, quando de seu nascimento:
neve e ouro, pureza e riqueza, tombando do céu com a dupla função
de fecundar, como a chuva, e de iluminar, como o sol. E é, por isso
mesmo, que em certas festas de Atená se ofereciam bolos em forma
de serpente e de falo, símbolos da fertilidade e da fecundidade.
Para relembrar o nascimento de Erictônio, o instituidor das
Panateneias, e que Atená escondera num cofre em companhia e sob a
proteção de uma serpente, se oferecia aos recém-nascidos atenienses
um amuleto representando uma pequena serpente, símbolo da
sabedoria intuitiva e da vigilância protetora. Como “Palas Atená”, ela
é defensora, no sentido físico e espiritual, das alturas, das Acrópoles,
em que se estabelece. A cabeça de Medusa colocada no centro de seu
escudo é como um espelho da verdade, para combater seus
adversários, petrificando-os de horror, ao contemplarem sua própria
imagem. Foi graças a tal escudo que Perseu levou de vencida a
terrível Górgona, mostrando assim que Atená é a deusa vitoriosa
pela sabedoria, pelo engenho e pela verdade. Sua lança é uma arma
de luz: separa, corta e fere, como o relâmpago rasga as nuvens. A
proteção concedida a heróis como Aquiles, Héracles, Perseu e Ulisses
simboliza a injeção do espírito na força bruta, com a consequente
transformação da personalidade do herói.
Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria,
Atená simboliza mais que tudo a criação psíquica, a síntese por
reflexão, a inteligência socializada.
A coruja, em grego γλαύvx (glaúks), etimologicamente,
“brilhante, cintilante”, porque enxerga nas trevas; em latim noctua,
“ave da noite”, era, como se viu, consagrada a Atená. Ave noturna,
relacionada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol,
opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduzse, daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do
conhecimento racional com a percepção da luz lunar por reflexo,
opondo-se, destarte, ao conhecimento intuitivo com a percepção
direta da luz solar. Explica-se talvez, assim, o fato de ser a coruja um
atributo tradicional dos mânteis, dos adivinhos, simbolizando-lhes o
dom da clarividência, mas através de sinais que os mesmos
interpretam. Noctua, ave das trevas, ctônia portanto, a coruja é uma
excelente conhecedora dos segredos da noite. Enquanto os homens
dormem, ela fica de olhos abertos, bebendo os raios da lua, sua
inspiradora. Vigiando os cemitérios ou atenta aos cochichos da noite,
essa núncia das trevas sabe tudo o que se passa, tendo-se tornado em
muitas culturas uma poderosa auxiliar da manteía, da mântica, da
arte de adivinhar. Daí a tradição segundo a qual quem come carne de
coruja participa de seus poderes divinatórios, de seus dons de
previsão e presciência. Eis aí por que, no Antigo Testamento, Javé,
certamente com o fito de banir a superstição, proibia comer carne de
mocho: e (não comais) todo o gênero de corvos, e o avestruz, e a coruja...
(Dt 14,14-15).
No mito grego a coruja é representada por Ascálafo, que, tendo
denunciado a Perséfone, foi transformado em mocho4.
Para os astecas, a coruja configura o deus dos infernos,
representada como a guardiã da morada obscura das entranhas da
terra. Associada às potências ctônias, é um avatar da chuva, das
tempestades e da noite.
No rico material funerário descoberto no Peru, nas tumbas da
civilização pré-incaica Chimu, se encontra, com frequência, a
representação de um cutelo de sacrifício, em forma de meia-lua,
encimado por uma divindade semi-humana e semipássaro,
indubitavelmente uma coruja. Este ícone, ligado à ideia de sacrifício
e de morte, está adornado com colares de pérolas e de conchas
marinhas, o peito colorido de vermelho e cercado, não raro, por dois
cães, cuja significação psicopompa é bem conhecida. Até hoje, aliás, o
mocho é uma divindade da morte e guardião de cemitérios em
numerosas culturas índio-americanas.
Mas já que os mortos governam as sementes, que alimentam os
vivos, a coruja é um símbolo digno de uma deusa também da
vegetação.
5
Do segundo casamento de Zeus com Têmis, deusa da justiça
divina, nasceram as Horas, Eunômia, Irene e Dique, bem como as
Moiras personificadas, Cloto, Láquesis e Átropos e a virgem Astreia.
Como já se discorreu sobre as Moiras personificadas, no Vol. I, p. 242244, e acerca da virgem Astreia, no mesmo Volume, p. 212, resta
enfocar as Horas.
HORAS, em grego Ὤραι (Hórai), plural de ὥραι (hóra), “divisão do
tempo”, período de tempo, estação. Hóra em grego está por *yôrâ,
variante do indo-europeu *iêrâ, alemão Jahr, “ano”.
Como se mostrou, de Zeus e Têmis nasceram as Horas, as estações.
Foi por um abuso de tradução do latim Horae que as estações se
tornaram horas. Só muito tardiamente é que as Horas passaram a
personificar as horas do dia. Eram três as Horas: Eunômia, a
Disciplina; Dique, a Justiça, e Irene, a Paz. Os atenienses, não
obstante, chamavam-nas respectivamente de Talo, a que faz brotar,
Auxo, a que faz crescer e Carpo, a que faz frutificar. No mito, elas se
apresentam sob duplo aspecto: como divindades da natureza,
presidem ao ciclo da vegetação, como divindades da ordem,
asseguram o equilíbrio da vida em sociedade.
No Olimpo, sua função específica é guardar as portas de entrada
na mansão dos deuses, além de servirem a Hera e a Apolo.
Acompanham frequentemente Afrodite e fazem ainda parte do
cortejo de Dioniso. Iconograficamente são representadas como três
jovens graciosas, com uma flor ou uma planta nas mãos. Dado seu
caráter abstrato, as Horas não desempenham papel importante no
mito.
6
EUROPA, em grego Εὐρώπη (Európe), em etimologia popular, porque
a verdadeira ainda se desconhece, proviria de εὐπύς (eur×s), largo,
amplo e εὥψ (óps), rosto, face, aspecto, donde Europa é a que
possuiria um “rosto largo”, um “aspecto amplo”.
Há, pelo menos, quatro heroínas com este nome, sendo a mais
célebre a filha de Agenor e Telefassa, que foi raptada por Zeus. O pai
dos deuses e dos homens a viu, quando se divertia com suas
companheiras perto de Sídon ou de Tiro, onde reinava seu pai.
Inflamado pela beleza da jovem princesa, o deus se metamorfoseou
num touro de cintilante brancura e de cornos semelhantes ao
crescente lunar. Sob essa forma, deitou-se aos pés da jovem fenícia.
Foi um susto rápido. Recompondo-se, a filha de Agenor começou a
acariciar o touro e sentou-se sobre seu dorso. De imediato, o animal
se levantou e se lançou com ela no mar. Apesar do susto e dos gritos
aterrorizados de Europa, que mal conseguiu equilibrar-se,
segurando-lhe os chifres, o touro penetrou nas ondas e se afastou da
terra. Tendo chegado à ilha de Creta, uniram-se junto a uma fonte,
em Gortina, sob plátanos, que, em memória desses amores, tiveram o
privilégio de jamais perder as folhas.
Europa deu três filhos a Zeus: Minos, Sarpédon e Radamanto. Em
“troca”, o deus ofereceu a ela três presentes: um cão, que não deixava
escapar presa alguma, um venábulo, que jamais errava o alvo, e
Talos, “o robô de bronze”, o infatigável vigilante e guardião da ilha de
Minos. Mais tarde, fez que Europa se casasse com o rei de Creta,
Astérion, que, não tendo filhos, adotou os de Zeus.
Após sua morte, Europa recebeu honras divinas e o Touro, em
que Zeus se transformou, tornou-se uma constelação e foi colocado
entre os signos do Zodíaco.
O rapto de Europa não ficou no esquecimento. Tão logo Agenor5,
que descendia de Zeus através de Io e do filho desta, Épafo, soube do
desaparecimento da princesa, enviou os filhos à procura da mesma,
com ordem expressa de não retornarem sem ela. Os três jovens
partiram, mas quando perceberam que sua tarefa era inútil e como
não podiam regressar à pátria, começaram a fundar colônias, onde se
estabeleceram: na Cilícia, em Tebas e em Bastos, na Trácia...
Todos esses mitos de fundações fantásticas são tradições locais
que relembram colônias fenícias, cuja expansão esses mesmos mitos
procuram demarcar.
Uma vez que no Vol. I, p. 113 e 118-120 se discutiu o sentido do
rapto de deusas e de heroínas e, no mesmo Vol. I, p. 274-278, se
discorreu sobre o simbolismo doschifres, mas não se tocou ainda no
simbolismo dotouro, há que se fazê-lo agora.
O touro configura o poder e o arrebatamento irresistível. É o
macho impetuoso, como o terrível Minotauro, guardião do Labirinto.
É o Rudra feroz e mugidor do Rig Veda, cuja semente abundante
fertiliza a terra. É o Enlil celeste do mito babilônico. Símbolo da
força criadora, o touro representou o deus El, sob a forma de uma
estatueta de bronze, que se fixava na extremidade de um bastão ou
de uma haste. Conservam-se protótipos desses emblemas religiosos,
que remontam ao terceiro milenário antes de Cristo. O culto de El,
praticado pelos patriarcas hebraicos, imigrados na Palestina, foram
rigorosamente prescritos por Moisés.
Na tradição grega os touros indomáveis e ferozes, como os que
Jasão atrelou, simbolizam o ímpeto desenfreado da violência. Tratase de animais consagrados a Posídon, deus dos Oceanos e das
tempestades, e a Dioniso, deus da virilidade fecunda e inesgotável.
São igualmente símbolos dos deuses celestes nas várias religiões
indo-europeias, por força de sua fecundidade infatigável e anárquica
como a de Úrano.
Na Índia, o touro Indra é a força ardente e opulenta, porque se
prende ao complexo simbólico da fertilidade: corno, céu, água, raio,
chuva. Emblema de Indra, ele o é também de Çiva. Como tal, é
branco, nobre e seu toutiço evoca a montanha nevosa. Configura a
energia sexual, mas cavalgar o touro como o faz Çiva é dominar e
carregar essa energia com vistas à sua utilização iogue e
espiritualizante. O touro de Çiva, Nandî, simboliza a justiça e a força,
bem como o Dharma, a ordem cósmica.
O touro védico, Vrishabha, é o suporte do mundo manifestado,
aquele que, do centro imóvel, movimenta a roda cósmica. Em virtude
dessa analogia, o mito búdico reivindicará para seu herói o lugar
ocupado pelo touro védico. O touro, conta-se, retira um de seus
cascos da terra no fim de cada uma das quatro idades: quando ele
retirar os quatro, os suportes do mundo serão destruídos. Entre os
povos altaicos e nas tradições islâmicas, o touro, como a tartaruga,
está ligado ao ciclo dos símbolos-suportes da criação, símbolos estes
chamadoscosmóforos(que sustêm o cosmo). São os suportes
superpostos de baixo para cima: a tartaruga sustém o rochedo, o
rochedo ao touro, o touro ao cosmo. No Templo de Salomão (1Rs
7,26), doze touros suportam o “mar de bronze” destinado a conter a
água lustral: E firmava-se sobre doze touros, três dos quais olhavam
para o norte, três olhavam para oeste, três olhavam para o sul e três
olhavam para leste: o mar se elevava acima deles e todas as partes
posteriores dos mesmos estavam voltadas para a parte de dentro.
Encarnação de forças ctônias, o touro em muitas culturas suporta
o peso da terra sobre seu dorso ou sobre seus cornos. O simbolismo
do touro está ligado ao da tempestade, da chuva e da lua. O touro e o
raio, desde o terceiro milênio a.C., eram o símbolo conjugado de
divindades atmosféricas. O mugido do animal era assimilado, nas
culturas arcaicas, à borrasca e ao trovão, uma vez que ambos eram a
hierofania da força fecundante. O complexo raio-furacão-chuva era
considerado entre os esquimós e nas civilizações pré-incaicas, para
citar apenas dois exemplos, como uma hierofania da lua. As
divindades lunares mediterrâneo-orientais eram representadas sob a
forma de touro e investidas de tributos taurinos. O deus da lua em Ur
era chamado de “o poderoso, jovem touro do céu de cornos robustos”.
No Egito, o mesmo deus lunar era o “touro das Estrelas”. Osíris, deus
lunar, foi representado por um touro. Sin, deus lunar da
Mesopotâmia, tinha igualmente forma taurina. Afrodite (Vênus) tem
seu domicílio noturno no signo do Touro e a Lua exerce, nessa fase,
sua maior influência. No persa antigo a lua era chamada Gaocithra,
conservadora da semente do touro, porque, consoante um velho
mito, o touro primordial depositara seu sêmen no astro da noite. Em
hebraico, a primeira letra do alfabeto, ’aleph, que designa touro, é o
símbolo da lua em sua primeira semana e, ao mesmo tempo, o nome
do signo zodiacal, por onde se inicia a série das casas lunares. Muitas
letras, hieróglifos e sinais têm relação simultânea com as fases da lua
e com os cornos do touro, não raro, comparados ao crescente lunar.
Um rito de iniciação asiático, introduzido na Itália, lá pelo século
II d.C., enriqueceu o culto de Cibele com uma cerimônia até então
desconhecida em Roma, o tauróbolo, o sacrifício de um touro.
Tratava-se de uma iniciação por um batismo de sangue. O neófito
descia a uma cova, aberta para essa finalidade, recoberta com um
teto cheio de buracos. Sobre o fosso degolava-se um touro e o sangue
quente do animal, fluindo pelos orifícios da cobertura, caía sobre o
corpo inteiro do iniciado. Aquele que se submetia a essa aspersão
sangrenta se tornava renatus in aeternum, um renascido para
sempre para uma vida nova. É que o sangue do touro comunicavalhe não apenas o poder biológico do animal, mas sobretudo a
aquisição de uma vida espiritual e imortal. O culto de Mitra, de
origem iraniana, comportava igualmente o sacrifício de um touro,
mas num contexto ritual bastante diferente do acima descrito. As
tropas romanas difundiram o culto desse grande deus asiático por
todo o Império. No dia 25 de dezembro, após o solstício do inverno,
quando os dias recomeçam a crescer, celebrava-se o renascimento do
Sol, o Natalis Solis, quer dizer, o nascimento de Mitra, deus salvador,
vencedor invencível, nascido de um rochedo.6 O ato fundamental da
vida de Mitra foi o sacrifício do touro primitivo, o primeiro ser vivo
criado por Ahura-Mazda. Após dominá-lo e conduzi-lo para seu
antro, Mitra o degolou por ordem do Sol. De seu sangue e de sua
medula nasceram os animais e os vegetais, mau grado os esforços da
serpente e do escorpião, agentes e enviados de Ahriman, o que
simboliza a luta do poder do bem contra as forças do mal. Nessa
batalha deverão empenhar-se também todos os seguidores de Mitra:
se assim o fizerem, o invencível lhes garantirá o acesso à mansão da
luz eterna.
Todas as ambivalências, todas as ambiguidades existem no touro.
Água e fogo: o touro é lunar, na medida em que se associa aos ritos da
fecundidade; solar, pelo “fogo” de seu sangue e irradiação de seu
sêmen. Sobre a tumba real de Ur se ergue um touro de cabeça de ouro
(sol e fogo), mas com a mandíbula de lápis-lazúli (lua e água). Donde
se conclui que ele é urânio e ctônio, mas é através da cor que seu
símbolo mais se destaca e se precisa. Assim, o touro cinza configura
uma hierofania da terra-fêmea, face ao cavalo branco, que encarna a
força celeste macho, na representação da sizígia Terra-Céu.
Consoante a interpretação ético-biológica de Paul Diel, os touros
representam com sua força bruta o domínio perverso. Seu sopro é a
chama devastadora. O atributo de bronze acrescentado ao “símbolo
pé”, que é uma imagem frequente no mito grego, caracteriza um
estado da alma. Aplicados aos touros, os pés de bronze configuram o
traço marcante da tendência dominadora, a ferocidade e o
endurecimento do espírito. Hefesto forjou dois touros de pés de
bronze, ferozes e violentos, aparentemente indomáveis, que
lançavam chamas pelas narinas. Uma das provas que o rei Eetes
impôs a Jasão, para que ele obtivesse o velocino de ouro, era colocar o
jugo nesses animais. Tal condição significava que o herói teria
primeiro que dominar o ímpeto de suas próprias paixões, antes de
tentar a conquista desse símbolo da perfeição espiritual, isto é, Jasão
deveria primeiro sublimar seus desejos instintivos e desordenados.
Na simbólica analítica de Jung o sacrifício do touro representa o
desejo de uma vida espiritual, que permitiria ao homem triunfar de
suas paixões animais primitivas e que, após uma cerimônia de
iniciação, lhe daria a paz.
O touro é a força descontrolada sobre a qual uma pessoa evoluída
tende a exercer seu domínio. O entusiasmo e a paixão pelas touradas
talvez se explicariam pelo desejo secreto de matar a besta interior,
mas tudo se passaria como se se fizesse uma substituição: o animal
sacrificado publicamente dispensaria o sacrifício interior ou daria a
ilusão, pela mediação do toureiro, de uma vitória pessoal do
espectador. Há, contudo, os que interpretam as touradas, com a
consequente morte do animal, como uma reminiscência do culto
mitraico: a vitória de Ormadz, o bem, o “sol”, simbolizado pelo
toureiro com seu “traje brilhante”, contra Ahriman, o mal, “as trevas”,
o touro negro.
Touro (21 de abril – 20 de maio) é o segundo signo do Zodíaco e
símbolo de uma grande capacidade de trabalho e de uma projeção de
todos os instintos, sobretudo o instinto de conservação e de
sensualidade, bem como de uma propensão exagerada pelos
prazeres. Este signo é governado por (Afrodite) “Vênus”, a saber, esta
parte do céu se encontra em perfeita e íntima harmonia com a
natureza desse planeta. Ao signo de Touro está associado a simbólica
da matéria-primeira, da substância inicial, assimilada à Terraelemento, à Mãe-Terra. Se a Áries é destinada a cinética do fogo
original, encarnado por um animal seco, hiperviril, dominado por
uma massa craniana projetada para o alto e para a frente, ao Touro
cabe a estática de uma massa portadora de vida, com predominância
horizontal e ventral, onde reina o espírito de lentidão, de densidade,
de estabilidade, de solidez, de firmeza, de constância... A este signo se
vincula o valor de um sentido plenamente terrestre na linha de uma
sinfonia de pradaria verde. No concerto zodiacal, a partitura do
Touro se assimila a um canto báquico à glória de (Afrodite) Vênus,
Venus Genetrix, de Vênus Mãe, toda de carne palpitante e de sangue
vermelho, carregada e vibrante de emanações telúricas; canto de
plenitude lunar na exaltação da mãe-natureza. O Touro proporciona
uma natureza animal, de compleição instintiva, particularmente
rica em sensibilidade: viver neste mundo, para um taurino, é sentir,
sorver, apalpar, ver, compreender, saber... É abandonar-se à
sofreguidão dos alimentos terrestres, é entregar-se à embriaguez dos
encantamentos dionisíacos. A sede de viver está enraizada num
temperamento generoso, de vitalidade sólida e têmpera robusta.
Toda essa vitalidade pode, no entanto, estancar-se numa vida de
prazeres, dominada pelas paixões tanto quanto submeter-se ao jugo
do trabalho para satisfazer aos apetites da ganância.
7
Das núpcias legítimas de Zeus e Hera nasceram Hebe, Ilítia e
Ares. O nascimento de Hefesto será tratado à parte, logo após se falar
de Ares.
HEBE, em grego Ἥβη (Hébe), personificação da juventude.Estava
encarregada, no Olimpo, da mansão dos deuses: servia o néctar aos
imortais, antes do rapto de Ganimedes, preparava o banho de Ares e
ajudava Hera a atrelar seu carro divino. Divertia-se dançando com as
Musas e as Horas, ao som da lira de Apolo. Quando da apoteose de
Héracles e da sua reconciliação com Hera, Hebe se casou com o herói,
simbolizando assim o acesso do filho de Alcmena à juventude
eterna.
ILÍTIA, em grego Εἰλείθια (Eileíthyia), “que corre em socorro das
parturientes”. Εἰλείθια é forma dissimilada de Εἰλεύθια
(Eleúthyia), “a que acode, a que intervém”. Ilítia é o gênio feminino
que preside aos partos. Fiel servidora de sua mãe Hera, de quem é
mera hipóstase, cumpria-lhe cegamente as ordens, perseguindo
implacavelmente as “amantes” de Zeus, impedindo-as de dar à luz os
filhos, como aconteceu com Leto e Alcmena, segundo se verá.
ARES, em grego Ἂrhς (Áres), certamente está relacionado com ἀρή
(aré), “desgraça, violência, destruição”. Veja-se o sânscrito irasyati,
“ele entra em furor”. Desde a época homérica, Ares surge, como o
deus da guerra por excelência. Dotado de coragem cega e brutal, é o
espírito da batalha, que se rejubila com a carnificina e o sangue. O
próprio Zeus, seu pai, como já se mostrou no Vol. I, p. 146, o chama de
o mais odioso de todos os imortais que habitam o Olimpo (Il., V, 890). O
“flagelo dos homens, o bebedor de sangue”, como lhe chama Sófocles
(Áj., 254), nem mesmo entre seus pares encontra simpatia. Hera se
irrita com ele e Atená o odeia e o qualifica de μαινόμενος
(mainómenos), “louco”, e “encarnação do mal”. Na Ilíada, V, 35, 830ss,
a deusa da inteligência dirigiu contra ele a lança de Diomedes e mais
tarde (Il., XXI, 403) ela própria o feriu com uma enorme pedra.
Somente Afrodite, et pour cause o chama de “bom irmão” (Il., V, 359)...
Na Guerra de Troia, pôs-se ao lado dos troianos, o que não
importa muito, uma vez que Ares não está preocupado com a justiça
da causa que defende. Seu prazer, seja de que lado combata, é
participar da violência e do sangue.
De altura gigantesca, coberto com pesada armadura, com um
capacete coruscante, armado de lança e escudo, combatia
normalmente a pé, lançando gritos medonhos.
Seus acólitos nos sangrentos campos de batalha eram: Éris, a
Discórdia, insaciável na sua fúria; Quere, com a vestimenta cheia de
sangue; os dois filhos, que tivera com Afrodite, cruéis e sanguinários,
Deîmos, o Terror, e Phóbos, o Medo, e a poderosa Enio, “a devastadora”.
Esta última era certamente uma divindade guerreira anterior a Ares
e que por ele foi suplantada; a ela deve o deus das lágrimas, como lhe
chama Ésquilo (Supl., 681), o epíteto de Ἐνυάλιος (Enyálios), “o
belicoso”, nome que parece estar atestado na Linear B, sob a forma Enu-wa-ri-jo. Mais tarde, todavia, Enio se tornou sua filha. Seus
demais filhos foram quase todos violentos ou ímpios devotados a
uma sorte funesta, como Flégias, que tivera com Dótis. Este Flégias
era pai de Ixíon e Corônis, a mãe de Asclépio. Amante de Apolo,
Corônis o traiu, embora grávida do deus da medicina. Como Apolo a
tivesse matado, Flégias tentou incendiar-lhe o templo de Delfos. O
deus o liquidou a flechadas e lançou-lhe a psiqué no Tártaro.
Com Pirene foi pai de três filhos: Cicno, Diomedes Trácio e Licáon.
O primeiro, violento e sanguinário, era salteador. Geralmente se
postava na estrada que conduzia a Delfos e assaltava os peregrinos
que se dirigiam ao Oráculo. Apolo, encolerizado, instigou contra ele
Héracles. Cicno foi morto e Ares avançou para vingar o filho. Atená
desviou a lança e Héracles atingiu-o na coxa, forçando-o a fugir para
o Olimpo. Diomedes Trácio, que alimentava suas éguas com carne
humana, foi também liquidado pelo filho de Alcmena. Licáon, rei
dos crestônios, povo da Macedônia, quis barrar o caminho a Héracles,
quando este se dirigia ao país das Hespérides, aonde ia buscar os
Pomos de Ouro. Interpelado e depois atacado por Licáon, o herói o
matou.
Tereu foi um outro de seus rebentos e seu mito prende-se às
filhas de Pandíon, Procne e Filomela. Tendo havido guerra, por
questões de fronteira, entre Atenas e Tebas, comandada por Lábdaco,
Pandíon solicitou o auxílio do trácio Tereu, graças a cujos préstimos
obteve retumbante vitória. O rei ateniense deu a seu aliado a filha
Procne em casamento e logo o casal teve um filho, Ítis. Mas o trácio se
apaixonou pela cunhada Filomela e a estuprou. Para que ela não
pudesse dizer o que lhe acontecera, cortou-lhe a língua. A jovem,
todavia, bordando numa tapeçaria o próprio infortúnio, conseguiu
transmitir à irmã a violência de que fora vítima. Procne resolveu
castigar o marido: matou o próprio filho Ítis e serviu-lhe as carnes ao
pai. Em seguida, fugiu com a irmã. Inteirado do crime, Tereu, armado
com um machado, saiu em perseguição às duas irmãs, tendo-as
alcançado em Dáulis, na Fócida. As jovens imploraram o auxílio dos
deuses e estes, apiedados, transformaram Procne em rouxinol e
Filomela em andorinha. Tereu foi metamorfoseado em mocho.
Com a filha de Cécrops, Aglauro, o deus da guerra teve Alcipe.
Tendo Ares assassinado o filho de Posídon, Halirrótio, que lhe
tentara violentar a filha, foi arrastado por Posídon a um tribunal
formado por doze grandes deuses, que se reuniram numa colina,
junto à qual o homicídio fora cometido, situada em frente à Acrópole
de Atenas. Foi absolvido, mas a colina, a partir de então, passou a
chamar-se Ἂρειος πάγος (Áreios págos), isto é, Areópago, “colina de
Ares ou colina do homicídio”, uma vez que esse histórico tribunal
ateniense tinha a seu encargo julgar crimes de sangue (V. Oréstia, de
Ésquilo).
Movido por fortes ciúmes, Ares assassinou Adônis, seu rival na
preferência de Afrodite. Os Alóadas, quer dizer, os dois gigantescos e
temíveis filhos de Posídon, Oto e Efialtes, para vingar Adônis
encerraram o deus da guerra num pote de bronze, depois de o terem
amarrado. Ali o deixaram durante treze meses, até que o astucioso
Hermes conseguiu libertá-lo num estado de extrema fraqueza.
Atribuem-se a Ares muitas aventuras amorosas, dentre as quais a
mais séria e célebre foi a que teve com Afrodite, narrada no Vol. I, p.
228-229.
Seu habitat preferido era a Trácia, país selvagem, de clima rude,
rico em cavalos e percorrido frequentemente por populações
violentas e guerreiras. A Trácia era também uma das habitações das
terríveis Amazonas, que passavam igualmente por filhas do amante
de Afrodite.
Seu culto, relativamente pobre em relação aos demais deuses, era
sobretudo parcimonioso em Atenas. Além da Beócia, de que se falará
mais abaixo, foi no Peloponeso, por força do militarismo espartano,
que Ares teve mais simpatizantes. Na Lacônia, os Efebos
sacrificavam a Eniálio, havendo em Esparta um templo que lhe era
consagrado. Em Atenas, era venerado num pequeno e modesto
santuário, ao qual estava associada Afrodite. Possuía templos ainda
em Trezena e na ilha de Salamina, consoante Plutarco (Sól., 9).
Na capital da Beócia, Tebas, o “belicoso” possuía realmente um
culto particular, uma vez que era tido como ancestral dos
descendentes de Cadmo. É que este, filho de Agenor e Teléfassa,
como se viu há pouco, à p. 135s., após o rapto da irmã, se estabeleceu
na Trácia com a mãe. Morta esta, Cadmo consultou o oráculo, que lhe
ordenou abandonasse a procura de Europa e fundasse uma cidade.
Para escolher o local, deveria seguir uma vaca até onde ela caísse de
cansaço. Cadmo pôs-se a caminho e, tendo atravessado a Fócida, viu
uma vaca, que possuía nos flancos um disco branco, sinal da Lua.
Seguiu-a por toda a Beócia e, quando o animal se deitou,
compreendeu que o oráculo se cumprira. Mandou os companheiros a
uma fonte vizinha, consagrada a Ares, em busca de água, mas um
Dragão, filho do deus, que guardava a fonte, os matou. Cadmo
conseguiu liquidar o monstro e, a conselho de Atená, semeou-lhes os
dentes. Logo surgiram da terra homens armados e ameaçadores, a
que se deu o nome de Σπαρτοί (Spartoí), “Os Semeados”. Cadmo
atirou pedras no meio deles e “Os Semeados”, ignorando quem os
provocara, acusaram-se mutuamente e se mataram. Sobreviveram
apenas cinco: Equíon (que se casou com Agave, filha de Cadmo),
Udeu, Ctônio, Hiperenor e Peloro. A morte do Dragão teve que ser
espiada e, durante oito anos, Cadmo serviu ao deus como escravo.
Terminado o “rito iniciático”, Zeus lhe deu como esposa Harmonia,
filha de Ares e Afrodite. Cadmo reinou longos anos em Tebas. De seu
casamento com Harmonia nasceram Ino (Leucoteia), Agave, Sêmele
e Polidoro.
Já idosos, Cadmo e a esposa abandonaram Tebas em condições
misteriosas. Deixaram o trono ao neto Penteu, filho de Agave e
Equíon, e foram para a Ilíria. Conta-se que um oráculo prometera a
vitória aos ilírios contra inimigos internos, se fossem comandados
por Cadmo. O oráculo cumpriu-se e o antigo rei de Tebas reinou
ainda sobre os ilírios e teve com a esposa um último filho, Ilírio. Por
fim, Cadmo e Harmonia foram transformados em serpentes e
levados para os Campos Elísios.
Três coisas nos chamam a atenção no mito de Ares: o
pouquíssimo apreço em que era tido por parte de seus irmãos
olímpicos; a pobreza de seu culto na Hélade e, apesar de ser um deus
da guerra, suas constantes derrotas para imortais, heróis e até para
simples mortais.
Pública e solenemente desprezado pelos próprios pais, era
ridicularizado por seus pares e até pelos poetas, que se regozijavam
em chamá-lo, entre outros epítetos deprimentes, de louco, impetuoso,
bebedor de sangue, flagelo dos homens, deus das lágrimas... Epítetos,
aliás, que não condizem muito com as atitudes bélicas de Ares, deus
da guerra: derrotado constantemente por Atená; vencido várias vezes
por Héracles; ferido por Diomedes; aprisionado pelos Alóadas... Era,
por fim, um deus cujos templos na Grécia eram muito poucos, seu
culto muito escasso.
Um deus olímpico, com tais características, convida a uma
reflexão. Há os que solucionam o problema de maneira muito
simples: os gregos, desde a época homérica, se compraziam em
mostrar a força cega e bruta de Ares debelada e burlada pelo vigor
mais inteligente de Héracles e sobretudo pela coragem lúcida, viril e
refletida de Atená. A vitória da inteligência sobre a força bruta
refletiria a essência do pensamento grego, e tudo estaria resolvido.
É verdade que tudo isto está correto, mas não satisfaz
inteiramente.
Talvez se pudesse defender a hipótese de que Ares seja não um
deus, mas um demônio popular, que se encaixou na epopeia, mesmo
assim, ou por isso mesmo, desprezado pelos outros deuses. Talvez se
trate, como querem outros, de um herdeiro pouco afortunado de
alguma divindade pré-helênica, como já se pensou de sua
companheira inseparável, Enio. Sua afinidade com a Trácia e suas
ausências constantes do Olimpo, para atender a seus “trácios fiéis”,
nos inclinariam a ver no deus da guerra um estranho mal adaptado à
religião grega, em cujo seio seu caráter sangrento e funesto lhe valeu
um sério descrédito.
Assim como a Erínia, a “devastadora”, foi qualificada por Ésquilo
(Set., 721) de deusa tão pouco semelhante aos deuses, igualmente Ares,
por força de total ausência, em sua personalidade, de uma
característica essencial a um deus, a virtude da beneficência, foi
cognominado pelo escoliasta de Édipo Rei, 185ss., de θεὸς ἄθεος
(theòs átheos), de um deus que não é um verdadeiro deus.
Seja como for, Ares jamais se adaptou ao espírito grego, tornandose um antípoda do equilíbrio apolíneo. Realmente um estranho no
ninho.
HEFESTO, em grego Ἥφαιστος (Héphaistos), cuja etimologia é muito
discutida. Talvez se pudesse, partindo da forma eólia Ἄφαιστος
(Áphaistos), decompor-lhe o nome em *ap > *aph, “água” e *aidh >
*aistos, “acender, pôr fogo em”. Coxo, mutilado como o relâmpago,
precipitado como ele do céu para a terra ou para a água, Hefesto é o
fogo nascido nas águas celestes, como Agni, o deus do fogo na Índia,
que tem quase o mesmo nome que o deus grego: apâm napât, “filho
das águas”, mas trata-se de mera hipótese.
Filho de Zeus e de Hera, consoante Homero (Il., I, 573ss.; Odiss.,
VIII, 312) ou vindo ao mundo sem união de amor, conforme Hesíodo
(Teog., 927), o deus das forjas teve um nascimento bastante
complicado. Hera, continua Hesíodo, por cólera e desafio lançado ao
esposo (Teog., 928), gerou sozinha o filho. A cólera da deusa e o
desafio ao esposo se deveram ao nascimento de Atená, que saiu da
cabeça de Zeus, sem o concurso de Hera.
Para o defeito físico de Hefesto há duas versões. A primeira está
na Ilíada, I, 590ss.: Hera discutia violentamente com o marido a
propósito de Héracles e Hefesto ousou tomar a defesa da mãe. Zeus,
enfurecido, agarrou-o por um dos pés e o lançou para fora do
Olimpo. Hefesto rolou pelo espaço o dia todo e somente ao pôr-dosol caiu na ilha de Lemnos, onde foi recolhido pelos síntios,
considerados os primeiros habitantes da ilha. Com o tombo, o deus
ficou aleijado e manquitolava de ambas as pernas, o que sempre lhe
trouxe muitos problemas de ordem psíquica, segundo se tentou
mostrar no Vol. I, p. 131 e 145-146. A segunda versão está ainda na
Ilíada, XVIII, 394ss. e Hh. Ap., I, 316: Hefesto já teria nascido coxo e
deformado. Humilhada com a fealdade e a deformação do filho,
Hera o lançou do alto do Olimpo. Após rolar pelo vazio durante um
dia inteiro, o infeliz caiu no mar, onde foi recolhido por Tétis e
Eurínome, que o “guardaram” durante nove anos numa gruta
submarina, o que mostra com clareza o longo período iniciático do
deus coxo. Foi nesta gruta que Hefesto fez sua longa aprendizagem:
trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se “o
mais engenhoso de todos os filhos do céu”. Em sua longa carreira de
ferreiro e ourives divino, Hefesto multiplicou suas criações, forjando
e confeccionando os mais preciosos, belos e “surpreendentes” objetos
de arte que já se viram. Para vingar-se da mãe, fabricou e enviou-lhe
um presente magnífico: um trono de ouro, delicado e artisticamente
cinzelado. Ao recebê-lo, Hera ficou estupefacta: jamais vira coisa tão
rica e tão bela, mas, ao sentar-se nele, ficou presa, sem que nenhum
dos deuses pudesse libertá-la, porque só o ourives divino conhecia o
segredo do atar e desatar, segundo se comentará mais abaixo. Foi
necessário enviar Dioniso, para levá-lo de volta ao Olimpo. O deus do
êxtase e do entusiasmo embriagou Hefesto e, assim, foi possível guiálo, montado num burro, até a mansão divina. Para Tétis, a quem era
imensamente grato, fabricou joias preciosíssimas e forjou, a pedido
desta, novas armas para Aquiles (Il., XVIII, 468ss.). Já se viu no mito
de Afrodite, Mitologia grega, Vol. I, p. 228, como o engenhoso filho de
Hera, tendo envolvido seu próprio leito numa rede invisível,
surpreendeu sua esposa Afrodite em flagrante adultério com Ares
(Odiss., VIII, 266ss.).
A obra-prima do coxo genial, porém, foi a “criação” da primeira
mulher. Por solicitação de Zeus, Hefesto modelou em argila uma
mulher ideal, fascinante, a irresistível Pandora. Não a modelou
apenas, foi além do artista: animou-a com um sopro divino. Se
Pandora, de um lado, patenteia a genialidade e o poder de que estava
investido o deus dos nós, de outro, demonstra que os gregos tinham
noção perfeita de que o limo da terra, o homo-humus é animado por
uma centelha de eternidade, isto é, por uma alma imortal.
Hefesto, fisicamente an odd number, um mutilado, só teve por
mulheres a grandes belezas. Já na Ilíada, XVIII, 382, está unido a
Cáris, a Graça por excelência; Hesíodo, Teog., 945s., lhe atribui Aglaia,
a mais jovem das Cárites; Zeus, por fim, para “compensar tudo”, deulhe em casamento a própria beleza, a deusa do amor, Afrodite. Para
alguns intérpretes, essa ânsia de beleza por parte de Hefesto
traduziria menos o sentimento de um doloroso contraste físico do
que a ideia profunda que o incomparável artista possuía da suprema
beleza. É bem possível que essa visão “com olhos da alma” preencha
o ângulo estético do problema, mas, ao que parece, há outras causas,
que estamparemos no fecho deste capítulo.
A mutilação de Hefesto, todavia, não o impedia de ser valente,
destemido e de tomar parte ativa nos combates. Senhor do elemento
ígneo na Gigantomaquia, luta bravamente com o gigante Clício e o
mata, golpeando-o com barras de ferro em brasa. Em Troia toma o
partido dos aqueus (Il., XX, 36) e combate agitando labaredas.
Quando o rio Escamandro ameaçou submergir Aquiles, o deus coxo,
por solicitação de Hera, avançou com suas chamas e seu sopro ígneo
sobre as águas do rio e o obrigou a retornar a seu leito. Nessa luta de
elementos, maravilhosamente descrita por Homero (Il., XXI, 324ss.),
a água é vencida pelo fogo: καίετο δ'ἲ ποταμοῖο (kaíeto d’ìs
potamoîo), a força do rio está em chamas, diz significativamente o
cantor de Aquiles (Il., XXI, 356). Afinal a etimologia proposta para
Hefesto, o que incendeia a água, parece, ao menos semanticamente,
não andar muito longe da verdade. Os antigos já reconheciam no
coxear do deus o movimento vacilante da chama ou o ziguezague do
raio, pois que o ourives divino personifica o fogo, não o celeste, mas o
telúrico, cujo principal centro estava localizado na ilha de Lemnos:
trata-se do histórico Vulcão de Lemnos, de que fala Sófocles na
tragédia Filoctetes, 800, 986, que se manteve muito ativo até a época
de Alexandre Magno. Acreditava-se que foi perto desse vulcão que o
deus caiu, quando tombou do céu, no sopé do Mosiclo, onde se
ergueu, mais tarde, seu templo. Nas profundezas da ilha se
localizavam primitivamente suas forjas e bigornas, antes de serem as
mesmas transferidas para o monte Etna e para o Olimpo... Na costa
norte de Lemnos estava a cidade de Hefestia, epônimo do deus, onde
se celebrava em sua honra, exatamente como nas Hefestias de
Atenas, “a corrida com fachos acesos”, a mesma Lampadedromía,
com que se homenageava também Atená. Diga-se logo que essas
“corridas dos fachos” têm sua origem num rito muito antigo da
renovação do fogo.
A Campânia do sul, mais precisamente as ilhas Lípari, bem como
a região do Etna foram outros dois grandes centros de seu culto: ali o
deus tinha respectivamente os epítetos de Liparaîos e Aitnaîos,
Lipareu e Etneu. É que no Etna foram localizadas mais tarde suas
forjas, onde o deus trabalhava com o auxílio dos Ciclopes, segundo
um tema característico da poesia alexandrina. E é bom não esquecer
que é sob a massa fumegante do Etna que Tífon, “demônio dos
vulcões”, expia, no calor insuportável e no barulho infernal das
bigornas de Hefesto, sua revolta contra Zeus.
O mito de Erictônio une estreitamente Hefesto a Atená e à Ática,
onde Hefestiás foi o nome de uma das quatro tribos primitivas.
No Hino Homérico, onde é exaltado por sua “engenhosa
habilidade”, o deus coxo está associado à deusa da inteligência como
inspirador de “nobres trabalhos”, fonte da civilização e da cultura
humana. Seu altar no Erékhtheion, Erecteu (templo de Atená Poliás
na Acrópole) e a estátua de Atená no templo do deus, na Ágora,
demonstram que suas núpcias intelectuais e artísticas eram para
sempre.
Platão se aproveitou dessa sizígia e num passo do Protágoras
(321d-e) coloca o “casal” num mesmo ateliê e, depois, mais
especificamente no Crítias (109c-d), faz que Atená e Hefesto
partilhem o domínio, a suserania de uma Atenas utópica, que seria
seu quinhão comum e único. O filósofo ateniense insiste na
identidade natural das duas divindades e de seu amor comum pela
ciência e pela arte, pois que ambos conjugam φιλοσοφια
(philosophía) e φιλοτεχνία (philotekhnía), um duplo amor que
caracteriza igualmente a cidade entregue à sua vigilância e a seu
desvelo.
Foi sobretudo sua philotekhnía, seu amor à arte, que fez de ambos
os protetores incontestes dos artesãos. No bairro de Ceramico, berço
principal das Χαλκεῖα (Khalkeîa), “Calquias”, da grande festa dos
“metalúrgicos”, Atená e Hefesto reinavam soberanos.
Nas Ἡφαίστεια (Hephaísteia), “Hefestias”, festividades em
honra de Hefesto, quando se realiza uma Lampadedromía, nos
mesmos moldes daquelas das Panateneias, a convidada de honra era
Atená. Nas Προμήθεια (Prométheia), “Prometias”, solenidades em
honra de Prometeu, “espécie de deus irmão”, em quem Ésquilo vê
também um promotor de todas as artes, lá estavam, ladeando o
homenageado, Hefesto e Atená. Tem-se a impressão de que a
sensibilidade, a cultura e o espírito artístico ateniense se alicerçavam
no triângulo Atená-Hefesto-Prometeu.
Um derradeiro encontro com Hefesto se fazia nas Apatúrias,
sempre com a presença do fogo, mas do fogo numa acepção menos
material. Nessa festa, tão importante para a comunidade ateniense,
Hefesto era homenageado com Atená Fratria e Zeus Frátrio, uma
comunhão fraterna, em que o deus do fogo era aclamado como
protetor da lareira e da família.
A tradição atribui a Hefesto vários filhos: o argonauta Palêmon, o
escultor Árdalo, o famoso salteador Perifetes, que foi morto por
Teseu, e Erictônio, nascido de um desejo do deus das forjas por Atená.
O sentido simbólico da mutilação, e Hefesto foi o grande
mutilado a ponto de tornar-se o mais perito e astuto xamã do
Olimpo, já se comentou no Vol. I, p. 355-358. Há, não obstante, uma
faceta muito importante do deus que merece algumas ponderações.
Trata-se de seu poder de atar e desatar. É o xamã dos nós, o deusenfaixador. E graças a seus trabalhos artísticos e mágicos, como
tronos, redes, correntes, é capaz não só de atar deuses e deusas e até o
Titã Prometeu, como está no Prometeu Acorrentado de Ésquilo, mas
ainda sabe, quando solicitado, desatar com maestria, conforme
demonstrou, assistindo Zeus como parteiro, por ocasião do
nascimento de Atená, e libertando sua mãe do trono e sua esposa e o
amante Ares da corrente invisível. “Em parte alguma, aliás, a
equivalência da magia e da perfeição tecnológica é mais bem
valorizada do que na mitologia de Hefesto [...]. Os nós, as redes, os
cordões, as cordas, os barbantes alinham-se entre as expressões
ilustradas da força mágico-religiosa indispensável para poder
comandar, governar, punir, paralisar, ferir mortalmente; em suma,
expressões ‘sutis’, paradoxalmente delicadas, de um poder terrível,
desmedido, sobrenatural”7, diz Mircea Eliade.
E todo esse poder maravilhoso e terrível, construtivo e destrutivo,
Hefesto o deve ao domínio do fogo, apanágio dos xamãs e dos
mágicos, antes de se tornar um grande segredo dos ferreiros,
metalúrgicos e oleiros.
Como demonstrou Dumézil8, completado e ampliado com mais
riqueza de informações por M. Eliade9, a soberania de um deus está
no seu saber e poder ligar e desligar, mas todo esse poder lhe é
comunicado pela magia. É assim que deuses mágicos como Varuna,
Úrano, Zeus, Odin, Rômulo (Quirino), Hefesto... têm em suas mãos
uma arma fatal, a magia, cuja manifestação exterior são os nós, os
laços, as cordas, as redes, os anéis, as cadeias... sob forma material ou
figurada. Um poder assim extraordinário lhes permite governar,
administrar e equilibrar o mundo. São normalmente deuses que,
antes ou excepcionalmente após a conquista do poder, não mais
participaram de guerras ou combates. Manipulando a magia, esses
imortais soberanos dispõem de outros meios mais eficazes: o dom da
ubiquidade ou, quando não, do transporte imediato, a arte e a astúcia
de metamorfoses ilimitadas, a capacidade de cegar, ensurdecer,
paralisar os adversários e arrebatar toda e qualquer eficácia de suas
armas. Daí a oposição entre deuses soberanos e deuses guerreiros:
Varuna se opõe ao guerreiro Indra; Zeus, desde as epopeias
homéricas, opõe-se a Ares; Júpiter a Marte... A tão comentada
passividade dos deuses soberanos do céu corresponde a seu poder
mágico: esses entes supremos agem sem agir, fisicamente, porque
operam diretamente com a potência do espírito.
A exteriorização desse poder mágico, segundo se disse, são as
cordas, as redes, os anéis, os laços, os nós... Vejamos, na prática, alguns
exemplos. Varuna, o que liga, é apresentado com uma corda nas
mãos; o uso do anel era privativo dos sacerdotes e de determinados
dignitários, porque somente eles estavam ligados ao divino e tinham,
por conseguinte, o poder de ligar e desligar. Quando falece o Papa,
quebra-se-lhe o Anel de Pescador, porque seu liame com o poder, que
lhe outorgara Cristo, foi rompido pela morte. Prometeu, libertado por
Héracles, com anuência de Zeus, foi obrigado a usar um anel,
confeccionado com fragmentos das correntes que o prendiam, como
símbolo de vassalagem e obediência ao deus soberano. É necessário
esclarecer de uma vez que ligar e desligar agem positiva ou
negativamente. Trata-se de algo phármakon, como diriam os gregos:
uma droga salutar ou venenosa. É assim que Varuna punia, ligando
pela doença, pela impotência, pela morte os que transgrediam as leis.
No domínio do mito germânico, alguns ritos são elucidativos a
respeito do poder e do simbolismo dos nós. O severo historiador
latino C. Cornélio Tácito (séc. I-II d.C.) em sua obra Germania, 39,
informa que na festa religiosa anual dos sêmnones, todos os
participantes compareciam atados: nemo nisi uinculo ligatus
ingreditur, ninguém entra a não ser atado. O mesmo historiador, no
Cap. 31 da obra supracitada, acrescenta que os catos, um outro povo
germânico, usavam um anel de ferro, “como se fora uma cadeia”, até
matarem o primeiro adversário. Tanto o nó como o anel demonstram
que nesses ritos estava impressa a marca da vassalagem, em que o
homem se apresenta face ao deus soberano como cativo ou escravo,
tendo certamente, no caso dos catos, estabelecido um pacto com o
divino até eliminarem o primeiro inimigo. Para um soldado romano,
a suprema humilhação era fazê-lo passar sob o jugo10 sub iugum
mittere, o que significava um desprezo total pelo soldado ou sua
sujeição absoluta ao vencedor.
Eliade classifica a “função” dos nós e dos liames, em geral, na
magia prática, em duas categorias: laços mágicos contra os
adversários humanos (na guerra, na bruxaria), com a operação
inversa do “corte dos nós”, e nós e laços benéficos, como meio poderoso
de defesa contra animais selvagens, doenças, sortilégios, a morte e os
demônios.
Laços mágicos contra inimigos ou adversários são de uso em
todas as culturas: sobre o caminho, por onde deveriam passar as
tropas inimigas, jogavam-se cordas com nós; enterrar uma corda
perto da casa de um adversário é imobilizá-lo; esconder a corda na
embarcação de um opositor é fazê-lo soçobrar. O corte do nó é um
meio de defesa preventiva: em determinados períodos críticos
(casamento, parto, morte...), todos os nós (se é que existem) devem ser
desatados, nas vítimas e nos circunstantes... Ilítia, a deusa dos partos
(voltaremos a encontrá-la no nascimento de Apolo e Ártemis, bem
como no de Héracles), cruzando a perna esquerda sobre a direita,
fechava qualquer caminho, e o nascimento era impossível! Aliás,
cruzar pernas, cruzar braços, eram considerados em muitas culturas
como “atitudes” perigosas, porque tal cruzamento fecha o caminho
do “mana” (palavra sobre que se falará no capítulo seguinte): é que a
energia universal, não podendo circular livremente, acumula-se na
pessoa, pondo-a em perigo. Eis por que os Rosa-Cruzes proíbem que
se cruzem os braços, a não ser em oração, porque, neste caso, pode-se
e deve-se acumular energia divina, uma vez que a pessoa está
protegida pela prece.
Na segunda categoria alinham-se todas as práticas que atribuem
aos laços e nós uma função de cura, de defesa contra os demônios ou
de conservação da força mágico-vital. Amarrar a parte afetada por
uma doença, com o fito de curá-la, é prática universalmente
conhecida. Mais difundido ainda é o uso de nós, cordões, barbantes,
fitas, como defesa mágica contra as doenças e os demônios, daí o
hábito de se atarem e enfaixarem os cadáveres e as múmias.
Observe-se, todavia, que esse emprego mágico-religioso de nós,
fitas e laços tem caráter ambivalente. Os nós provocam as doenças e
igualmente as afastam ou curam o enfermo; os laços, as fitas e os nós
embruxam e enfeitiçam, mas também protegem contra a bruxaria;
ajudam os partos e os impedem; podem trazer a morte ou repeli-la.
Em síntese, o essencial no rito mágico é a orientação que se imprime
à energia latente num laço, numa fita, num nó... Essa orientação
obviamente pode ser positiva ou negativa, benéfica ou maléfica,
pode ser de defesa ou ataque.
É verdade que as crenças e ritos sobre a ação de ligar e desligar
nos remetem ao domínio da mentalidade mágica, mas é preciso que
não nos enganemos: o simbolismo geral da ação de atar e desatar não
é uma criação exclusiva dessa mentalidade. Há farta documentação
sobre nós, liames, cordas, redes, fitas... que exprimem não apenas uma
autêntica experiência religiosa, mas também uma concepção geral
do homem e do mundo, uma concepção verdadeiramente religiosa e
não mágica11.
Como se vai apresentar uma série de exemplos concernentes à
ação de ligar e desligar, uns de cunho tipicamente religioso, outros de
feição claramente mágica, talvez não fosse de todo fora de propósito
fazer uma distinção entre magia e religião. Fica estabelecido, de
saída, que, na ação mágica dos nós, o poder de atuar positiva ou
negativamente está inerente à própria energia do nó ou do objeto que
se usa, enquanto, do ponto de vista religioso, os nós ou os objetos não
possuem mana ou energia alguma, mas atuam como símbolos da
manifestação do poder de um deus soberano.
Isto posto, vamos à definição de religião e de magia, definição que,
por si só, estabelece a diferença entre ambas.
Repetindo o que já se disse no Vol. I, p. 41-42, religião pode ser
definida como “o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem
manifesta sua dependência em relação a potências invisíveis
consideradas sobrenaturais”12.
Magia, em grego Μαγεία (magueía) que, consoante Van den
Born13, “significa originariamente a atividade ou a arte do mago,
depois também a arte ou a atividade ocultas do feiticeiro, geralmente
em sentido pejorativo. Por magia (feitiço) entendemos ideias e
práticas que se baseiam na crença de que certas pessoas, objetos ou
ritos seriam capazes de causar um efeito anormal, fatal, infalível,
através de determinados meios que não estão em nenhuma
proporção com o fim desejado. Característico da magia é que esses
magos, aplicando meios poderosos por eles mesmos inventados, se
sentem independentes da soberania divina e da lei moral”.
A claríssima Monique Augras faz uma distinção, a nosso ver,
muito importante, entre a magia de culturas primitivas e a que
hodiernamente conhecemos: “A magia, com efeito, é por assim dizer
o animismo14 utilizado no sentido instrumental. Agindo sobre os
símbolos, atua-se sobre o mundo. Devemos distinguir entre a magia
dos povos ditos ‘primitivos’, que é o aspecto de aplicação do sistema
animista, e a magia tal como a conhecemos hoje, que se apresenta
como um conjunto de práticas. Nesse último caso, não é mais o
universo todo que é símbolo do mundo real, mas alguns objetos desse
mundo. Há seleção como na religião e, em muitos casos, tudo aquilo
que a religião rejeitou passa a alimentar as práticas mágicas [...]. O
fundamento da magia é que o homem é homólogo do universo. O
microcosmo contém o macrocosmo [...]. Se o mundo maior é
homólogo do mundo menor e vice-versa, a magia pode deter-se em
dois tipos principais de ação: prever os acontecimentos terrenos pelo
estudo das modificações celestes, e modificar o cosmo pela
modificação dos símbolos terrestres”15.
A adivinhação é a forma mais passiva, mais contemplativa da
magia. Como exemplo de magia passiva, com finalidade divinatória,
a autora cita as combinações dos naipes do Tarô, “que refletem a
posição do universo em torno da pessoa que os distribuiu” e a
astrologia, que, baseando-se no estudo dos movimentos das esferas
celestes, em relação a determinado indivíduo ou a certo
acontecimento, deduz todas as informações possíveis a respeito de
seu passado, presente e, de modo particular, de seu futuro. Nesta
linha de raciocínio, se distingue, segundo Monique, magia passiva,
cujo instrumento mais atuante é a mântica, e magia ativa, aquela,
cujo escopo é recriar o cosmo. Dos exemplos citados por ela a respeito
desta última, dois são, a nosso ver, extremamente significativos. O
troglodita, que nas paredes de seu habitat desenha a caça correndo,
em seguida ferida e, por fim, morta, visa a propiciar “sucesso e êxito
ao caçador”. O curandeiro (embora o curandeirismo e a feitiçaria
sejam “aspectos menores da magia”) que fabrica uma boneca
contendo “substâncias do inimigo” (fragmentos de roupa, de unhas,
de cabelos), isto é, que lhe capta uma parte da energia, do mana e a
espanca e tortura, deseja que o inimigo sofra tudo quanto se efetua
com o símbolo. A vítima terá morte certa, “se o curandeiro apunhalar
a boneca”.
“Por isso”, argumenta Monique, “a magia pode ser considerada
pela religião cristã como particularmente demoníaca, pois que o seu
propósito é exatamente esse: recriar o mundo. Para a religião não
pode haver outro universo possível senão o presente”. Diga-se, para
encerrar esta digressão, que nem sempre é fácil estabelecer a
distinção entre magia passiva e ativa e, por isso, “os mágicos se
apoiam no conhecimento do cosmo e do destino”.
Inúmeros são os exemplos que se poderiam apontar a respeito da
força deatar e desatar, quer quando tomados como símbolos, quer
quando empregados na dinâmica de seu próprio mana, mas vamos
restringi-los ao mínimo necessário.
Religião e magia surgirão com toda a sua força. Com um pouco de
reflexão é possível estabelecer um divisor de águas entre ambas.
Os nós, os fios, os laços, as redes se acotovelam, em sentido
simbólico, pelo AntigoeNovo Testamento: por trás dos mesmos está a
força, a providência de Deus:
Dores de inferno me cercaram; surpreenderam-me
laços de morte. Na minha tubulação invoquei o Senhor,
e clamei ao meu Deus.
(Sl 18(17),6-7b)
O poderoso senhor dos laços no Antigo Testamento é Javé em
pessoa e os profetas mostram-no com redes nas mãos pronto para
punir os culpados:
Mas, depois que tiverem ido, eu estenderei sobre eles a minha rede,
e os farei cair como uma ave do céu.
(Os 7,12)
E estenderei sobre ele a minha rede, e ele será tomado na minha
nassa, e levá-lo-ei a Babilônia, à terra dos caldeus; e ele não a verá, e lá
morrerá.
(Ez 12,13)
Jó, na sua profunda e autêntica experiência religiosa, emprega
imagem idêntica para exprimir a onipotência do Senhor:
Sabei ao menos agora que foi Deus quem me afligiu e que
estendeu suas redes em torno de mim.
(Jó 19,6)
Para os gregos o fio da vida simboliza o destino humano.
Mostramos no Vol. I, p. 148-149 e p. 241-243, que nem o poderoso
Aquiles e o solerte Ulisses escaparão dos fios que as terríveis Queres
lhes teceram, quando suas mães lhes deram a luz.
A iniciação labiríntica em grutas e cavernas nas diversas religiões
sempre teve por alvo purificar e libertar o homem dos laços da
existência. No mito da caverna platônica, os homens estão presos por
cadeias que os impedem de se movimentar e até mesmo de voltar a
cabeça (Rep., VII a, s.). É que a psykhé está “amarrada” ao sôma, ao
corpo.
Plotino, egípcio de língua grega (séc. III d.C.), o grande
neoplatônico, em suas Enéadas, IV, 8,4, é muito claro a respeito dos
liames que prendem a alma à matéria: “após sua queda, a alma foi
capturada, ela está agrilhoada... Está, como se diz, num túmulo e
numa caverna, mas voltando-se para a reflexão, ela se liberta de seus
liames”. Ainda no Canto IV, 8,l, afirma o filósofo: “a marcha para a
inteligência é, para a alma, a libertação de seus nós”.
Já mostramos no Vol. I, p. 41, como Tito Lucrécio Caro,
compreendendo bem a etimologia de religio, -onis, “religião”,
possivelmente do verbo religare, “prender, atar”, se esforça, segundo
confessa, por libertar seus contemporâneos dos nós das superstições...
No Novo Testamento, Cristo, para se fazer compreender, usa a
linguagem corrente e as imagens tradicionais. O atar e o desatar
estão presentes. Quando quis dar a Pedro o poder supremo na Igreja,
disse o Mestre:
Et ego dico tibi quia tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo
ecclesiam meam, et portae inferi non praeualebunt aduersus eam. Et
tibi dabo claues regni caelorum. Et quodcumque ligaueris super
terram, erit ligatum et in caelis, et quodcumque solueris super
terram, erit solutum et in caelis.
– E eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei
as chaves do reino dos céus e tudo o que ligares sobre a terra, será
ligado também nos céus e tudo o que desatares sobre a terra, será
desatado também nos céus (Mt 16,18-19).
No domínio linguístico, as palavras que designam atar e desatar
normalmente expressam também uma ideia mágica, um
encantamento. O verbo grego καταδείν (katadeîn), “ligar
solidamente”, exprime outrossim a ação de ligar por um sortilégio,
através de um nó. Desse modo, seu derivado κατάδεσμος
(katádesmos), “liame, ligação”, é também um laço mágico, que se faz
com um nó. Em latim, fascinus ou fascinum, “quebranto, sortilégio,
malefício”, é da mesma família etimológica que fascia, “faixa,
atadura” e que fascis, “feixe, reunião de objetos atados” e é, por isso,
que os lictores, litores, palavra que os latinos jamais desvincularam
de ligare, “ligar”, acompanhavam os magistrados, tendo ao ombro
fasces, isto é, feixes de varas fortemente atadas, com uma
machadinha no meio, não apenas para simbolizar o poder que
tinham esses magistrados de condenar à morte, mas ainda para
“protegê-los”. A proteção, evidentemente, tinha um caráter mágico e
não efetivo.
É claro, além do mais, que o nosso fascínio, mau-olhado,
quebranto, sortilégio, formado no português à base do verbo fascinar,
de fascinare, “encantar, enfeitiçar”, pertence à mesma linhagem do
sortilégio dos nós...
É digna de nota, por fim, a palavra yoga, ioga, “freio, laço, jugo”,
cuja etimologia é a mesma que a do grego ζυγόν (dzygón) e do latim
iugum, pois os três remontam ao indo-europeu yeug-yug, “unir,
prender”, uma vez que a finalidade última da ioga é o
disciplinamento das kleças, quer dizer, das forças instintivas,
caóticas e destruidoras da alma que impedem a dhyâna, a saber, a
concentração.
Eis, em linhas gerais, a força extraordinária de Hefesto e de todos
os deuses e xamãs que têm o poder de atar e desatar.
Como símbolo, Hefesto parece traduzir uma personagem
descompensada. Coxo, deformado, desprezado pelo pai e pela mãe,
desposou Afrodite, a mais bela das deusas, que o traiu com Ares e
vários outros deuses e até com mortais. Uniu-se a Cáris, a mais linda
das Graças e amou Aglaia, a mais jovem das Cárites. Mestre
consumado nas artes do fogo, governou soberano o mundo das forjas
e dos ourives. Artista incomparável, modelou e fabricou as armas
dos deuses e dos heróis. Para as deusas e as mais belas mulheres, o
ourives do Olimpo confeccionou as mais lindas e preciosas joias:
broches, braceletes, colares, fechaduras secretas, tripés rolantes,
autômatos... Na comunidade divina dos imortais, Hefesto era o
senhor e o mestre do elemento ígneo e dos metais. Combatia com
chamas, com metais em fusão e com barras incandescentes. Deus da
metalurgia, foi o rei dos vulcões, onde se localizavam suas forjas.
Três mitos de épocas diversas caracterizam bem o papel atribuído ao
maior dos artistas: abriu a cabeça de Zeus, a fim de que nascesse
Atená; por ordem do pai dos deuses e dos homens encadeou
Prometeu e, por fim, modelou Pandora do limo da terra.
Estes traços talvez permitam demarcar alguns contornos e
aspectos no simbolismo do mitologema do filho de Hera.
Consoante Chevalier e Gheerbrant16, Hefesto, porque era
deformado e coxo, revela uma dupla fraqueza espiritual. A perfeição
técnica de suas obras lhe basta, deixando-o indiferente o valor e a
utilização moral das mesmas: acorrenta Prometeu, ridiculariza Ares
e Afrodite e prende a própria mãe num trono de ouro.
De outro lado, suas obras inimitáveis não refletem apenas o belo,
mas são impregnadas de um tal poder mágico, que com elas ele
domina inteiramente a quem as possui ou usa. Nesse sentido, o
artífice abusa de seu poder, para impor sua vontade. Foi exatamente
com a magia de sua arte incomparável e perigosa que o deus coxo e
deformado foi capaz de dominar as mais belas mortais e imortais. Na
realidade, todo o esforço, toda a habilidade e ânsia de perfeição de
Hefesto visaram à busca de uma compensação. Se sua mutilação lhe
outorgou a capacidade incomparável de sua genialidade artística e o
privilégio de atar e desatar, o deus soube se vingar dessa
deformidade física com o êxito de sua arte e com suas conquistas
amorosas. Se lhe foi possível, na planície de Troia, assegurar a vitória
do fogo sobre a água, o grande artista foi, no entanto, incapaz de
garantir a harmonia dos elementos.
Trata-se, na feliz expressão dos supracitados Chevalier e
Gheerbrant, de um “demiurgo amoral transformado num apóstolo
inspirado”.
Dissemos linhas acima que o grande malogro amoroso de Hefesto
foi exatamente com a deusa do amor e que o coxo divino viveu
sempre perseguindo uma compensação. Tal fato poderia talvez ser
interpretado como a busca de uma complementariedade. O coxo e
deformado tenta completar-se na beleza de Afrodite e esta, vazia por
dentro, procura a genialidade do artista. Cada um busca no outro
aquilo que lhe falta, o que, em matéria de casamento, pode ser um
índice de fracasso.
1. FRISK, Hjalmar. Op. cit., verbete.
2. Ἁπατούρια (Apatúria), neutro plural, talvez signifique “do mesmo pai”. As Apatúrias
eram uma festa ateniense celebrada anualmente, no mês de outubro, durante três dias. Nos
dois primeiros faziam-se sacrifícios e banquetes e no terceiro, os pais de família
apresentavam aos membros de sua phratría (fratria) seus filhos legítimos, nascidos durante
o ano, para que fossem regularmente inscritos na mesma. Compreende-se por fratria uma
agremiação de cidadãos ligados por sacrifícios e repastos religiosos comuns. Tratava-se de
uma divisão política em Atenas. Após Sólon, havia três fratrias numa tribo e trinta famílias
numa fratria. A etimologia de Apatúria, “do mesmo pai”, talvez se justifique porque após
esse “registro religioso e civil” é que a criança passava política e religiosamente a ter um
genitor, isto é, “tais e tais crianças eram filhos de um mesmo pai”.
3. Ἁρρηφόροι (Arrephóroi), Arréforas, eram duas ou quatro meninas atenienses, de sete a
onze anos, escolhidas pelo Arconte-Rei entre as famílias nobres, para conduzirem
procissionalmente a indumentária e os objetos sagrados de Atená.
4. Ascálafo era filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte. Estava presente no Jardim
do Hades, quando, coagida por Plutão, Perséfone comeu um grão de romã, cortando-lhe toda
e qualquer esperança de retorno ao mundo da luz. Como Ascálafo presenciara a quebra de
jejum por parte de Perséfone, denunciou-a. Em sua cólera, Deméter o transformou em
coruja. Ver o mito de Deméter e Perséfone, Vol. I, p. 300-329.
5. Épafo, filho de Io e de Zeus, tinha uma filha, Líbia (que deu seu nome à região vizinha do
Egito), que, unida a Posídon, foi mãe dos gêmeos Agenor e Belo. Este reinou no Egito, e
Agenor em Tiro ou Sídon. Tendo-se casado com Telefassa, Agenor teve uma filha, Europa, e
três filhos, cujos nomes variam muito, de Eurípides, passando por Heródoto e Pausânias, até
Diodoro Sículo. A lista, possivelmente mais canônica, aponta Fênix, Cílix e Cadmo, o
ancestral de Édipo.
6. O Natalis Domini, o Natal de Cristo, foi colocado no dia 25 de dezembro exatamente para
substituir e vencer (e o venceu para sempre) o “renascimento” do invencível Mitra. Na
realidade, Cristo, personagem histórica, nasceu antes da morte de Herodes, o Grande (Mt 2,1;
Lc 1,5) que faleceu no ano 4 a.C., donde concluem os exegetas que o Senhor nasceu entre os
anos 7-6 antes da era cristã. O mês e o dia hão de se saber na eternidade...
7. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 98s.
8. DUMÉZIL, Georges. Op.cit., p. 21s., 27s
9. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1952, p. 120ss.
10. Iugum, “o jugo”, do verbo iungere, “atrelar, unir”, era formado por três lanças: duas
fincadas na terra em posição vertical, encimadas por uma terceira em sentido horizontal.
Sob o jugo, que simboliza a sujeição ou a escravidão, passavam os vencidos.
11. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 147ss.
12. LAGENEST, J.P. Barruel de. Op. cit., p. 15.
13. VANDEN BORN, A. et al. Dicionário Enciclopédico da Bíblia.Petrópolis: Vozes, 1971,
verbete.
14. VANDEN BORN, A. et al. Dicionário Enciclopédico da Bíblia.Petrópolis: Vozes, 1971,
verbete.
15. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 25ss.
16. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 496.
CAPÍTULO II
O mito de Leto: nascimento de
Ártemis e Apolo
1
Neste capítulo se fará apenas um estudo do mito de Ártemis, de
sua conjugação com a deusa Lua e das consequências daí oriundas.
Da união de Zeus com Leto nasceram os gêmeos Ártemis e Apolo.
Foi uma gravidez penosa e um parto muito difícil.
LETO, em grego Λητώ (Letó), não possui ainda etimologia segura.
Como uma variante do mito da deusa atesta que a mesma não
conseguiria dar à luz os filhos onde brilhasse o Sol, tem-se aventado a
hipótese de que a forma dórica Λατώ (Lató) seria um
desdobramento de Λήδα (Léda), personificando como esta a noite,
que teria dado nascimento a dois deuses associados com a Lua
(Ártemis) e com o Sol (Apolo). Em favor deste étimo tem-se o
testemunho de Hesíodo, que apresenta Leto envolta em véus
sombrios, indumentária característica de uma deusa da noite.
Além do mais, a mãe de Ártemis e Apolo é filha de Febe, a “Lua” e
de Ceos, que talvez signifique Céu luminoso, ou seja, o próprio Sol.
Tais hipóteses têm sido abandonadas em favor de uma outra: sendo
Leto provavelmente uma Grande Mãe da Lícia, seu nome proviria de
lada, que em lício significa “esposa, mãe”.
Conta-se que, grávida de Zeus, e sentindo estar próxima a hora do
nascimento dos filhos, Leto percorreu o mundo inteiro em busca de
um local onde eles pudessem vir à luz. Hera, porém, enciumada com
este novo amor de Zeus, proibiu a Terra de acolher a parturiente.
Temendo a cólera da rainha dos deuses, nenhuma região ousou
recebê-la. Foi então que a estéril e flutuante ilha de Ortígia, por não
estar fixada em parte alguma, não pertencia à Terra e, portanto, não
tendo o que temer da parte de Hera, abrigou a amante de Zeus.
Agradecido e comovido, Apolo mais tarde a fixou no Centro do
mundo grego, mudando-lhe o nome para Delos, a Luminosa, a
Brilhante. Foi em Delos que, abraçada a uma palmeira, Leto,
contorcendo-se em dores, esperou nove dias e nove noites pelo
nascimento dos gêmeos. É que Hera, mordida de ciúmes, retivera no
Olimpo a Ilítia, a deusa dos partos. Esta, tendo cruzado a perna
esquerda sobre a direita, fechara o caminho da parturiente. Todas as
demais deusas, tendo à frente Atená, puseram-se ao lado de Leto, mas
nada podiam fazer, sem o consentimento da esposa de Zeus e a
presença de Ilítia. Assim, decidiram enviar Íris, mensageira
sobretudo das deusas, ao Olimpo com um presente “irrecusável” para
Hera, outros dizem que para Ilítia: um colar de fios de ouro
entrelaçados e de âmbar com mais de três metros de comprimento.
“Comovida”, a rainha dos deuses consentiu que Ilítia descesse até a
ilha de Delos. De joelhos, junto à palmeira, Leto deu à luz primeiro a
Ártemis e depois, com a ajuda desta, a Apolo. Vendo os sofrimentos
por que passara sua mãe, Ártemis jurou jamais casar-se.
Narra-se também que, para escapar à ira da esposa de Zeus, Leto
se transformara em Loba e refugiou-se no país dos Hiperbóreos, onde
habitualmente residia, e lá teriam nascido os gêmeos. Tal fato
explicaria um dos epítetos de Apolo, Licógenes, “nascido da Loba”.
Hera, que ainda não perdoara à rival, lançou contra ela a monstruosa
serpente Píton. Apertando nos braços os filhos, Leto fugiu para a
Lícia, igualmente “terra dos lobos” e lá parou junto a um lago ou
fonte, para lavar os recém-nascidos. Alguns camponeses, contudo,
que lá estavam ocupados em arrancar uns caniços, não o permitiram
e expulsaram-na brutalmente. A deusa, possuída de grande cólera, os
transformou em rãs.
Leto sempre foi muito querida pelos filhos, que jamais pouparam
esforços em defendê-la e vingar-lhe as injúrias sofridas. Foi por ela
que mataram os filhos de Níobe, que se vangloriou de ter uma prole
muito mais numerosa que Leto, conforme se mostrou no Vol. I, p. 85.
Mataram igualmente o gigante Títio, que tentara violentá-la1. E foi
ainda para vingar a mãe, conforme se verá, que Apolo matou Píton.
Alguns fatos do mito da amante de Zeus merecem um ligeiro
esclarecimento. Vimos que Apolo fixou a ilha de Delos no Centro do
mundo grego. O simbolismo do centro é muito rico. Vamos tentar
sintetizá-lo.
É pelo Centro, local sagrado, que o divino se manifesta, por
hierofania, isto é, camuflado, disfarçado, metamorfoseado, ou por
epifania, quer dizer, de forma direta. Esse Centro do mundo é, as
mais das vezes, figurado por uma elevação: montanha, colina, pilar,
pedra, árvore, omphalós (umbigo). Observe-se, porém, que se trata de
um centro mítico e não geográfico; se ele é único no céu, é múltiplo na
terra. Cada nação, cada cidade, cada povo, cada casa, cada família e
até mesmo cada homem tem o seu centro do mundo, seu “ponto de
vista”, seu ponto imantado, que é concebido como o ponto de junção
entre o desejo coletivo ou individual do homem e o poder
sobrenatural de satisfazer a esse desejo, quer se trate de um desejo de
saber ou de um desejo de amar e agir. Lá onde se congregam esse
desejo e esse poder, lá é o centro do mundo. Esta noção de centro está
vinculada à ideia de canal de comunicação e é, por isso mesmo, que o
centro é marcado por um pilar, uma árvore cósmica, uma pedra... Nas
culturas que distinguem três níveis cósmicos, Céu, Terra, Inferno, o
centro constitui o ponto de interseção desses três níveis. Assim sendo,
só pelo centro se atinge o divino, porque se torna possível uma
ruptura de nível e uma consequente comunicação entre as três
regiões. O Templo de Jerusalém estava construído sobre o tehôm, isto
é, sobre as águas primordiais do Caos, antes da criação. Em Roma, o
mundus, por significar “o limpo, o puro”, era o grande centro através
do qual era possível comunicar-se com as almas dos mortos no
Inferno. Em geral, cidades e locais importantes nas culturas antigas
estavam localizados no centro do mundo, demarcado, como já se
assinalou, por uma pedra, pilar, montanha, árvore... Na Índia, o
grande centro era o Monte Meru; entre os germanos, o Hemingbjör e
o freixo gigantesco Yggdrasil, cuja copada tocava o Céu e cujas raízes
desciam até os Infernos; na Palestina, o Tabor (que talvez signifique
tabbur, isto é, “umbigo”); o monte Garizim é expressamente chamado
“umbigo da terra”; o Gólgota, para os cristãos, é o verdadeiro centro
do mundo: lá se focalizaria o Éden, onde Adão foi criado e pecou, e
depois redimido pelo sangue de Cristo. E exatamente pelo fato de o
território, a cidade, o templo, o palácio real se encontrarem no Centro
do Mundo, a saber, no píncaro da Montanha Cósmica, que eram
considerados como os pontos mais elevados do Cosmo e, por isso,
não foram submergidos pelo dilúvio. “A terra de Israel não foi
inundada pelo dilúvio”, reza um texto rabínico. E, segundo uma
tradição islâmica, o local mais elevado da terra é a Ka’aba, porque “a
estrela polar testemunha que a mesma se encontra voltada para o
centro do Céu”. O cume da Montanha Cósmica não é apenas o local
mais elevado do mundo, mas também se notabiliza sobretudo por
ser o ὀμφαλὸς τῆς γῆς (omphalòs tês guês), “o umbigo da terra”,
porque o muito santo criou o cosmo como se fora um embrião, e este
cresce a partir do umbigo e depois se desenvolve e se espalha. Em
determinadas estatuetas africanas a dimensão dada ao umbigo é
bem mais importante que a atribuída ao membro viril, porque é do
centro que provém a vida.
Na Grécia o centro do mundo era marcado pelo omphalós de
Delfos, como se verá no capítulo seguinte, ao se falar de Apolo.
Mas, já que os deuses, em função das culpas e erros dos homens se
retiraram mais e mais para alturas inacessíveis, o único meio de
atingi-los é através do Centro, e o instrumento mágico que nos
conduz até eles é a escada, símbolo da ascensão para se chegar ao
divino. A escada, vista em sonhos por Jacó, tocava os céus e por ela
desciam os Anjos: e viu em sonhos uma escada posta sobre a terra, e a
sua parte mais alta tocava no céu: e viu também os anjos de Deus
subindo e descendo por ela. E o Senhor firmado na escada, que lhe
dizia: Eu sou o Senhor Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaac (Gn
28,12s). Diga-se, de passagem, que a subida pela escada até a
residência do sagrado fazia parte, possivelmente, de um rito
iniciático órfico. De qualquer forma essa ascensão era um dos
componentes do rito mitraico. Nos mistérios de Mitra, a escada
possuía sete degraus, cada qual confeccionado com metal diferente.
O primeiro era de chumbo e correspondia “ao céu” do planeta
Saturno; o segundo, de estanho, correspondia a Vênus; o terceiro, de
bronze, era de Júpiter; o quarto, de ferro, consagrado a Mercúrio; o
quinto, de uma liga de metais, correspondia “ao céu” de Marte; o
sexto, de prata, consagrado à Lua e o sétimo de ouro, era o do Sol.
Subindo essa escada cerimonial, o iniciado percorria efetivamente os
sete céus, elevando-se, desta forma, até o Empíreo sagrado.
A escada é vista, assim, como o caminho para a realidade
absoluta, representando um rompimento de nível ontológico.
Nos textos funerários egípcios conservou-se a expressão asket pet,
em que asket, “marcha”, indica a escada de que dispõe Ra, uma escada
real, que liga a Terra ao Céu. No Livro dos mortos, as expressões
consagradas “Uma escada me foi instalada para ver os deuses” e “Os
deuses lhe dão uma escada, para que, ser-vindo-se dela, ele suba ao
Céu”, patenteiam o simbolismo da escada como ponte entre a terra e
o céu; uma figura plástica que marca a ruptura de nível e torna
possível a passagem de um modo de ser a outro.
Além do simbolismo do Centro, há dois outros, no mito do
nascimento de Apolo e Ártemis que merecem atenção. Trata-se da
atitude de Ilítia em não permitir que Leto desse à luz os gêmeos e
dopresenteque dobrou a obstinação de Hera.
A postura de Ilítia, cruzando a perna esquerda sobre a direita e
impedindo, destarte, o parto de Leto, nos encaminha diretamente à
crença tão difundida em todas as culturas do poder do mana. Mana é
uma palavra melanésia e corresponde mais ou menos ao que os
gregos denominavam ἐνέργεια (enérgueia), uma “força em ação”.
Pode-se conceituar mana como uma energia, uma força impessoal
cósmica circulante e suscetível de ser captada e utilizada pelo
homem. Deve-se levar em conta, no entanto, que desse poder oculto (é
este o significado etimológico do vocábulo) dispõem cada indivíduo
e cada objeto. Um ser humano é tanto mais forte e um objeto é tanto
mais energético quanto maior for sua carga demana.Monique
Augras2, desejando mostrar que a finalidade básica do canibalismo é
“absorver o mana do inimigo, com o objetivo de lhe assimilar as
forças, os dotes e as virtudes guerreiras”, cita uma observação
deveras interessante de Montaigne3 a respeito dos hábitos dos índios
do Rio de Janeiro. Diz o autor dos Ensaios que esses indígenas
“assavam e comiam em comum as carnes do inimigo, enviando
pedaços do mesmo aos amigos ausentes”. E acrescenta Montaigne
que não se tratava, “como se pensa, de alimentação”. Ou seja: tratavase de uma “função mágica e não alimentar do festim canibal”. Donde
se conclui que, para esses selvagens, devorar os inimigos era apossarse de seu mana, de suas energias.
Essa energia, porém, como agudamente observa Monique, não é
apenas física, mas tem ainda um caráter essencialmente anímico.
Desse modo, o mana se manifesta tanto sob forma física quanto sob
forma anímica, “já que no sistema animista o mundo físico é parte e
símbolo do mundo espiritual”.
A arquitetura dos templos egípcios é um dos exemplos escolhidos
por Monique para patentear o poder e o perigo que oferece o mana.
Com efeito, esses templos obedecem a uma disposição
arquitetônica tal, que o contato com o ícone do deus, a quem o
templo estava consagrado, somente podia ser feito pelos sacerdotes:
há primeiro um pátio ou galeria exterior para o povo; segue-se uma
espécie de antessala para os dignitários e, por último, uma sequência
de salas cada vez mais escuras até que se atinge o santuário, onde
ficava a estátua esculpida do deus, encerrada num tabernáculo. O
acesso ao santuário, ao santo dos santos, era privativo dos sacerdotes,
porque somente eles estavam preparados para o contato direto com a
divindade. Quando Medeia, enloquecida pelo cinismo, ingratidão e
infidelidade de Jasão, quis destruir sua rival Glauce ou Creúsa, filha
do rei de Corinto, Creonte, enviou-lhe como “presente de núpcias”
um manto; outras versões dizem ter sido um véu e uma coroa,
impregnados de um “mana tão venenoso”, que bastou Creúsa colocálos sobre o corpo para transformar-se numa tocha humana.
No Antigo Testamento há o relato de um episódio que mostra
com muita clareza a força e o perigo do mana de determinados
objetos, quando consagrados a uma divindade. Por ocasião da
transladação da Arca da Aliança, da casa de Abinadab para
Jerusalém, os bois, que a conduziam sobre um carro novo,
escoiceavam e a fizeram pender. Com receio de que o precioso fardo
caísse, Oza, que, era guarda da Arca, tocou-a e a susteve. Por este gesto
imprudente, o Senhor o feriu e Oza caiu morto. Eis o texto:
Mas, logo que chegaram à eira de Nacon, lançou Oza a mão à arca de Deus e a
susteve, porque os bois escoicearam e a tinham feito pender. E o Senhor se
indignou grandemente contra Oza e o feriu pela sua temeridade e caiu morto
ali mesmo, junto à arca de Deus.
(2Sm 6,6-7)
Se todos os objetos do mundo físico possuem, em grau maior ou
menor, sua parcela de mana, certas pessoas privilegiadas e sobretudo
algumas divindades o detêm em grau superlativo. Conhecedores da
força de seu mana, os deuses apareciam aos homens em sonhos ou
mais normalmente em forma hierofânica, disfarçando-se de todas as
maneiras. Sêmele, a mãe de Dioniso, caiu fulminada e pereceu
carbonizada, porque fez que seu amante, Zeus, preso por um
juramento, se lhe apresentasse em forma epifânica, isto é, em toda
sua majestade de deus dos raios e dos trovões.
Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas bastam os citados,
para mostrar que, fechado o mana por Ilítia, o parto de Leto seria
impossível...
Para encerrar o mito de Leto e as dificuldades inerentes ao
nascimento de Apolo e Ártemis, é preciso dizer uma palavra acerca
do “presente” que as deusas enviaram a Hera, com o fito de dobrarlhe não a ira, porque a perseguição a Leto iria continuar, mas a
resistência em liberar Ilítia ou, mais precisamente, o mana, para que
o parto fosse possível.
Foi enviado à rainha dos deuses, detentora de um mana poderoso,
um colar de fios de ouro entrelaçados e de âmbar... A deusa, tendo
aceito e colocado o colar em seu divino pescoço, ligou-se a Leto e
liberou todas as energias represadas: Ilítia descruzou as pernas e
liberou o parto.
Diógenes Laércio (séc. II-III d.C.) em sua obra Vidas e doutrinas
dos filósofos, l,24, afirma, com base em Aristóteles e Hípias, que Tales
de Mileto (séc. VII-VI a.C.) “atribuiu alma até aos objetos inanimados,
servindo-se da pedra de Magnésia (pedra magnética) e do âmbar
como indícios desse fato”. Tales de Mileto teria, pois, descoberto, já no
século VII a.C., as propriedades de atração do âmbar. Diga-se logo que
o âmbar amarelo em grego se diz ἤλεκτρον (élektron), donde
eletricidade. Desse modo, os terços e os amuletos de âmbar eram
considerados como excepcionais condensadores de corrente. Pelo
fato de se autocarregarem, descarregam de seus próprios excessos
aqueles que os usam ou fazem passar suas contas por entre os dedos.
O âmbar simboliza, destarte, o fio psíquico que religa a energia
individual à energia cósmica, a alma individual à psiqué universal.
Os heróis e os santos têm, não raro, uma fisionomia de âmbar
como símbolo de um reflexo do céu em seu rosto e sua força de
atração. Quando de seu exílio, embora temporário no país dos
Hiperbóreos, como punição por ter eliminado os Ciclopes, Apolo,
conta-se, derramou lágrimas de âmbar, ao sair do Olimpo. Essas
lágrimas simbolizavam sua nostalgia do Paraíso e o laço sutil que o
prendia à mansão dos deuses. O Pseudo-Dionísio Areopagita explica
que o âmbar participa das essências celestes, porque, concentrando
em si o ouro e a prata, simboliza simultaneamente a pureza
incorruptível, inesgotável, imperecível e intangível do ouro, e o
esplendor luminoso, brilhante e celestial da prata.
Consoante a crença popular, o uso constante pelo homem de um
objeto de âmbar mantém-lhe indefectível a virilidade.
2
Passemos, agora, aos mitos de Ártemis e de seu desdobramento
em Selene e Hécate.
ÁRTEMIS, em grego Ἄρτεμις (Ártemis), de etimologia muito
controvertida. Uns viram-na como uma “deusa-ursa” e, nesse caso,
seu nome proviria do ilírio artos, urso, em grego ἄρκτος (árktos).
Outros consideram-na como procedente do grego ἄρταμος
(ártamos), “a sanguinária”, por causa de suas flechas certeiras.
Tais hipóteses são indubitavelmente de cunho popular. Pierre
Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, p. 116117, julga que se trata de um teônimo de procedência ilíria ou lídia,
que talvez provenha ou tenha dado origem a ἀρτεμή (artemés), “são
e salvo”, dada a proteção oferecida pela deusa a seus adeptos. Neste
caso, Ártemis significa “a protetora?”
Ártemis, tendo nascido antes do irmão e ajudado a mãe nos
trabalhos de parto, ficou tão horrorizada com o que sofreu Leto, que
pediu ao pai o privilégio de permanecer para sempre virgem. É
representada com vestes curtas, pregueadas, com os joelhos
descobertos, à maneira das jovens espartanas. Como seu irmão, a
quem está muitas vezes associada no mito e no culto, carrega o arco e
a aljava cheia de setas temíveis e certeiras. Como Apolo, sua irmã
gêmea aprecia muito o país dos Hiperbóreos, cujas virgens
mensageiras, as quais fazem parte de seu séquito, ela conduz até
Delos. Ao lado do irmão participou do massacre dos filhos de Níobe e
o assistiu na luta e extermínio da serpente Píton, na morte de Títio e
da ninfa Corônis. Na Gigantomaquia, lutou bravamente como
Apolo, ao lado de Zeus, e matou, com auxílio de Héracles, o gigante
Grátion; no cerco de Ílion, combateu em companhia do irmão pelos
troianos. Arqueira como o arqueiro Apolo, a “Sagitária de arco de
ouro” usa das mesmas armas que ele para competir ou castigar, mas
“leoa para com as mulheres” (Il., XXI, 483), causa-lhes mortes súbitas,
sem dores e, não raro, rouba-lhes a vida no momento do parto. Mas
nem sempre a jovem arqueira conta em suas vinganças com o auxílio
de Apolo. Foi sozinha que puniu a negligência de Eneu de Cálidon e
a impiedade de Agamêmnon, exigindo-lhe o sacrifício de sua
primogênita Ifigênia, episódio já por nós comentado no Vol. I, p. 9192. Quanto à negligência de Eneu de Cálidon, a vingança da deusa foi
terrível. Este rei, pai de Meléagro, Tireu e Dejanira, era casado com
Alteia. Relata o mito que, após a boa colheita do ano, Eneu ofereceu
um sacrifício a todos os deuses, mas se esqueceu inteiramente de
Ártemis. Sentindo-se ultrajada, a deusa enviou contra a região um
javali de grande porte e ferocíssimo, que devastou todo o reino. Para
liquidá-lo, Meléagro, jovem e destemido príncipe, convocou os
melhores caçadores da Etólia, região onde ficava Cálidon,
conseguindo matar o monstro. Ártemis, todavia, suscitou uma grave
querela entre os caçadores etólios e os Curetes, que haviam também
participado da caçada, a respeito da posse da pele e da cabeça do
javali. Enquanto o príncipe lutou ao lado dos etólios, a vitória lhes
sorriu, mas tendo havido uma séria dissensão entre Meléagro e seus
tios, irmãos de Alteia, pela posse dos mesmos preciosos despojos, o
jovem caçador assassinou os tios. Alteia, inconformada com o fato,
com as mais violentas imprecações invocou contra o filho as
divindades infernais. Este, então, se retirou do combate e Cálidon foi
sitiada e queimada. Atendendo às súplicas dos sacerdotes, dos pais,
irmãs e dos amigos mais chegados, o herói pegou em armas outra vez
e rapidamente levou os seus à vitória, mas pereceu em combate. O
mito do herói de Cálidon, no entanto, se enriqueceu mais tarde com
vários incidentes dramáticos, em que a guerra contra os Curetes
perdeu quase toda a importância, avultando na imaginação do povo
a caça ao javali. Uma dentre as muitas variantes conta que, tão logo
nasceu Meléagro, as Moiras predisseram a Alteia que a sorte do
menino estava vinculada a um tição, que ardia na lareira. Se este se
consumisse inteiramente, a criança morreria. A mãe aflita, de
imediato, retirou de entre as brasas o tição já meio consumido,
apagou-o e o escondeu num cofre. Após a caçada vitoriosa ao javali
de Cálidon, e quando Meléagro matou os tios, que se opunham
obstinadamente à sua vontade de ofertar a pele do animal a
Atalante, sua namorada e protegida de Ártemis, a mãe indignada,
num gesto impensado, atirou ao fogo o tição ciosamente guardado e
Meléagro morreu.
Antes de voltarmos à feroz Ártemis, uma palavra sobre o javali e
seus preciosos despojos, que, afinal, vão custar a vida do
extraordinário caçador de Cálidon. O simbolismo do javali é de
origem antiquíssima e cobre quase todo o mundo indo-europeu,
chegando até mesmo a ultrapassá-lo. O mito do javali faz parte da
tradição hiperbórea, onde o animal figura como símbolo da
autoridade espiritual. É bem possível que tal fato se relacione com o
retiro solitário do druida na floresta ou do brâmane ou ainda com o
hábito do javali de desenterrar a túbera que os antigos acreditavam
ser um misterioso produto do raio e de se alimentar das glandes do
carvalho, árvore sagrada. Ao javali opõe-se o urso, emblema do poder
temporal. Na Gália e na Grécia, a caça ao javali configura o poder
espiritual encurralado pelo temporal ou mais precisamente trata-se
de um simbolismo de ordem cíclica, pela substituição de um reino
por outro, de um kalpa por outro. O caráter hiperbóreo do animal
confere-lhe, ipso facto, um cunho primordial. É assim que ele é o
avatar sob que Vishnu reconduziu a terra até a superfície das águas e
a organizou. O javali é o próprio Vishnu mergulhando nas entranhas
da terra, para atingir a base da “coluna de fogo”, que não é outra coisa
senão o linga de Çiva, enquanto hamsa-Brahma busca o topo da
coluna no céu. A terra surge, desse modo, como atributo de Vishnu, e,
sobre seus braços ou sob sua proteção, ela aparece como a terra santa
primitiva.
No que toca aos despojos, a luta contra os Curetes e, depois,
internamente, a querela entre Meléagro e seus tios giraram em torno
da posse do couro e da cabeça do javali. O couro de determinados
animais, já se sabe, tem um extraordinário poder de proteção, mercê
do mana que possui. Essa energia é transmitida a quem se cobre com
a pele mágica, tornando o portador, não raro, invulnerável. O couro
da cabra Amalteia, segundo se viu, cobria o escudo de Zeus. Héracles,
cobrindo-se com o couro do Leão de Nemeia, fez de seu corpo uma
muralha infrangível.
Quanto à disputa pela cabeça do javali, a coisa é ainda mais séria,
sobretudo levando-se em conta que este é o símbolo do poder
espiritual, mas a respeito do crânio e de sua rica simbologia há de se
falar no mito de Orfeu.
Tão rebelde quanto Héstia e Atená às leis de Afrodite, Ártemis
sempre foi a virgem indomável, que punia à altura os atentados à sua
pessoa, como fez com Oríon, segundo se mostrou no Vol. I, p. 284, e
com Oto, um dos Alóadas. O imprudente caçador Actéon foi outra de
suas vítimas. Viu-a o jovem caçador numa noite de estio, nas
encostas do monte Citerão e, tendo-a seguido, surpreendeu-a
banhando-se nas águas frescas de uma fonte. A deusa atirou-lhe um
punhado de água no rosto e Actéon foi metamorfoseado em veado e
despedaçado pelos próprios cães, que não o reconheceram. Castigou
com a morte a ninfa Calisto, que não guardava a virgindade, segundo
prometera, conforme está no Vol. I, p. 297. Ao contrário, como se há
de ver no mito de Teseu, premiou com sua amizade a pureza de
Hipólito e de Britomártis-Dictina, que é, aliás, mera hipóstase de uma
antiga Ártemis cretense. Sempre distante da vida e das coisas da
cidade, Ártemis foi definida como uma “divindade do exterior”, que
vive a natureza, percorrendo campos e florestas, no meio dos
animais que neles habitam. Era tida como protetora das Amazonas,
também guerreiras e caçadoras, e independentes do jugo do homem.
Era a única dentre os deuses, exceto Dioniso, que sempre foi
acompanhada por um cortejo alvoroçado e buliçoso. Com este
séquito de ninfas, às quais ela ultrapassa de muito em altura e beleza,
percorre bosques e florestas, excitando os cães em busca da presa. A
Ilíada denomina-a πότνια θηρῶν (pótnia therôn), “senhora das
feras”, o que lhe atesta o caráter de uma Grande Mãe asiática e
sublinha sua afinidade com a natureza e com o mundo animal.
Afinidade, aliás, de um duplo aspecto: de um lado, como se mostrou,
a Caçadora e, de outro, a Ἐλαφηβόλος (Elaphebólos), a que
massacra veados e corças, daí seu epíteto de Elafieia em Élis e
Olímpia, bem como o grande festival das Elafebólias (caça ao veado),
que se celebrava em Atenas no mês Elafebólion (março). Embora a
corça seja o seu animal predileto e sempre a acompanhe, porque a
deusa lhe protege o crescimento e depois as crias, bem como as dos
outros animais (Xen., Cyn., 6,13), isto não impedia que, no culto, os
animais, indistintamente, lhe fossem sacrificados. Basta lembrar que,
após a vitória de Maratona sobre os persas, em 490 a.C., lhe foram
sacrificadas quinhentas cabras, como atesta o mesmo Xenofonte
(An., 3,2,12). É que a Sagitária era, além de caçadora, uma guerreira
ardente e ousada. Em Hiâmpolis, na Fócida, e em Patras, se lhe
sacrificavam animais vivos, selvagens e domésticos, que eram
lançados sobre um braseiro. Semelhante crueldade trai o “caráter
oriental” de uma Grande Mãe, bem como sua inconteste ligação com
o rito do diasparagmós (o despedaçamento da vítima viva ou ainda
palpitante) e da omophaguía (a consumação imediata da carne crua e
do sangue do animal). Acrescente-se que, sob um simbolismo
alusivo, eram meninas de cinco a sete anos, chamadasursinhas, que
cercavam e serviam a Ártemis no Santuário de Bráuron, na Ática.
Lembremo-nos de que a ninfa Calisto, antes de ser morta pela deusa,
foi metamorfoseada em ursa; Actéon o foi em veado, e logo devorado
pelos próprios cães; Ifigênia foi exigida como vítima e transformada
em corça. Em Esparta, junto ao altar de Ártemis Órtia, efebos
passavam pela prova de “resistência”, a desumana διαμαστίγωσις
(diamastígosis), isto é, literalmente, “flagelação prolongada”, em que,
não raro, morriam, em holocausto a Ártemis... Consoante uma
variante do mito de Ifigênia, que Eurípides retrata em duas de suas
tragédias (Ifigênia em Áulis e Ifigênia em Táuris), a desditosa filha de
Agamêmnon, no momento de ser imolada em Áulis, foi substituída
por uma corça e transportada para Táuris, na Crimeia, onde se
tornou sacerdotisa da deusa, com a função de sacrificar todos os
estrangeiros que naufragassem junto à costa.
Do que se acabou de expor, pode-se concluir que houve, na
realidade, duas Ártemis: uma asiática, cruel, bárbara, sanguinária,
bem dentro dos padrões da mentalidade religiosa de uma Grande
Mãe oriental; outra europeia, cretense, ocidental, voltada, como se há
de ver em seguida, para a fertilidade do solo e da fecundidade
humana, o que denuncia uma Grande Mãe cretomicênica, quer dizer,
minoica e helênica, por efeito de sincretismo.
A Ártemis ocidental estava, pois, estreitamente vinculada ao
mundo vegetal e à fertilidade da terra. Se a deusa lançou contra o
reino de Eneu um javali monstruoso e devastador, foi exatamente
porque o rei se esqueceu de dedicar-lhe uma oferenda das primícias
do ano, de que ela era também responsável, como deusa da
vegetação. O piedoso Xenofonte, durante seu exílio em Ciunte, perto
de Olímpia, instituiu-lhe um culto tipicamente rural, como ele
próprio nos informa em sua Anábase, 5,3,7s. Foi, aliás, sobretudo no
Peloponeso que Ártemis aparece com todas as suas antigas
características de deusa da vegetação. Na Arcádia, denominava-se
“Senhora da árvore” e, com a designação de Kedreâtis, a “senhora do
cedro”. Nos confins da Lacônia e da Arcádia, em Kárias, a Καρυᾶτις
(Karyâtis), a “senhora da nogueira”, era celebrada com danças muito
animadas pelas Cariátides4. O ato bárbaro de flagelação, por que
passavam os efebos, em Esparta, junto ao altar de Ártemis Órtia,
como se mostrou, é interpretado por alguns não apenas como
símbolo de antigos sacrifícios, mas ainda como um rito purificador e
de incorporação nos efebos da substância sagrada da árvore. Num
dos concursos das festas de Ártemis Órtia, o prêmio conferido ao
vencedor era uma foice de bronze, o que mostra ser ela uma deusa da
fertilidade e das colheitas. Protetora dos mananciais e dos córregos,
denominava-se Potâmia. Sua influência estendia-se igualmente
sobre o mar: protegia particularmente os pescadores e suas redes,
com o nome de Dictina, isto é, a “Caçadora com redes”. No mês de
abril, por ocasião da Lua Cheia, que, segundo Plutarco (Mor., 350a),
ajudara os atenienses na Batalha de Salamina (480 a.C.), celebrava-se
no Pireu a festa de Ártemis Muníquia.
O caráter virginal da deusa não a impedia de valer também sobre
a fecundidade feminina. Deusa dos partos, eram-lhe consagradas, em
Bráuron, as vestes das que faleciam ao dar à luz. Com o título de
παιδοτρόφος (paidotróphos), “a que alimenta, a que educa a
criança”, acompanhava particularmente as meninas em sua fase de
crescimento. As noivas, à véspera de seu casamento, ofereciam-lhe
uma mecha de cabelo e uma peça do enxoval, para implorar-lhe
proteção e fertilidade. Por estar ligada ao matrimônio, Ártemis é, por
isso mesmo, uma portadora das tochas, atributo duplamente seu,
porque a deusa será identificada com Hécate, com o epíteto de
phosphóros, “a que transporta a luz”, tornando-se como aquela uma
divindade infernal. Com o título de selasphóros, “que leva a luz”, será
igualmente identificada com Σελήνη (Seléne), a Lua, a Φοιβη
(Phoíbe), Febe, “a brilhante”, como seu irmão Apolo é Φοῖβος
(Phoîbos), Febo, “o brilhante”.
Ártemis era cultuada em todo o mundo grego, de Atenas a Éfeso.
Na Grécia, a deusa da natureza, a senhora dos animais era venerada
não só nas cidades, mas também e sobretudo nas regiões selvagens e
montanhosas, na Arcádia, em Esparta, na Lacônia, nas montanhas
do Taígeto e na Élida. O mais célebre e grandioso de seus santuários
era o de Éfeso, onde o culto de Ártemis-Diana se confundia com o de
uma antiga deusa asiática da fecundidade. Seus animais prediletos
eram a corça, o javali, o urso e o cão e, entre as plantas preferidas,
estavam o loureiro, o mirto, o cedro e a oliveira.
Grande Mãe, de caráter mais feroz e cruel na Ásia; Grande Mãe,
de feição bem mais humana e protetora na civilização minoica, a
Ártemis grega resulta, e já se mencionou o fato, de um sincretismo
creto-oriental.
Calímaco de Cirene (fins do séc. IV a.C.), gramático, historiador e
poeta, em seu Hino a Ártemis, 174, congratula-se com a deusa pelo
fato de a mesma, pisando solo grego, ter deixado para trás seus
hábitos bárbaros e cruéis, o que não parece ser de todo verídico: a
prática do templo de Halas Arafênides, vizinho do Santuário de
Bráuron, na Ática, onde se picava até o sangue o pescoço de um
escravo, talvez seja índice de assassinatos rituais nos mais antigos
cultos de Ártemis na Hélade.
3
Ártemis estava estreitamente ligada a Hécate e a Selene,
personificação antiga da Lua, cujo culto a filha de Leto suplantou
inteiramente, tanto quanto Apolo fez esquecer a Hélio, a
personificação do Sol. Pois bem, desde muito cedo, Ártemis foi
identificada com a Lua e, dado o caráter ambivalente de nosso
satélite, mercê de suas fases, segundo se verá mais abaixo, a LuaÁrtemis surge na mitologia com um tríplice desdobramento, o que se
poderia denominar a dea triformis, deusa triforme. De início, ao
menos na Grécia, a Lua era representada por Σελήνη (Seléne)5, “Lua”.
Mas, dada a índole pouco determinada de Selene e as fases diversas
da lua, foi a deusa-Lua desdobrada em Selene, que corresponderia
mais ou menos à Lua Cheia; Ártemis, ao Quarto Crescente; e Hécate6,
ao Quarto Minguante e à Lua Nova, ou seja, àLua Negra.Cada uma
age de acordo com as circunstâncias, favorável ou
desfavoravelmente. Assim, a Lua, por seu próprio cunho cambiante,
é dispensadora, à noite, de fertilidade e de energia vital, mas, ao
mesmo tempo, é senhora de poderes terríveis e destruidores.
Percorrendo várias fases, manifesta as qualidades próprias de cada
uma delas. No Quarto Crescente e Lua Cheia é normalmente boa,
dadivosa e propícia; no Quarto Minguante e Lua Nova é cruel,
destruidora e malévola. Plutarco nos lembra que a Lua “no Quarto
Crescente é cheia de boas intenções, mas no Minguante traz a doença
e a morte”.
Dada a extensão do assunto, vamos sintetizá-lo, abordando
primeiramente a Lua, seus poderes e efeitos, em geral, e depois
focalizaremos brevemente a Lua Negra, Hécate.
Os raios da Lua, a qual sempre se identificou com a mulher, via
de regra foram tidos como elementos grandemente fertilizantes e
fecundantes. Em muitas culturas primitivas, o papel do homem, por
isso mesmo, era secundário: quem trabalhava o campo era a mulher,
mercê da proteção da Lua sobre ela e as sementes. O homem apenas
arroteava, preparava o terreno: plantar, cultivar e colher eram
tarefas femininas. Nós sabemos que o gérmen da vida se encontra na
semente e que o papel do sol é tão somente fazê-la desenvolver-se.
Para os primitivos, todavia, as coisas eram bem diferentes: a semente
não passava de massa inerte, absolutamente desprovida do poder de
germinar. Esse poder lhe era con- ferido por uma potência
fertilizante, isto é, por uma divindade da fecundação, que era sempre
a Lua, como descreve Briffault em sua obra monumental sobre o
mito de Selene7. Somente as mulheres podiam fazer prosperar as
colheitas, porque somente elas estavam sob a proteção direta da Lua,
que lhes delegava a faculdade de fazer crescer e amadurecer. Os
povos primitivos acreditavam que as mulheres eram dotadas de uma
natureza semelhante à da Lua, não apenas porque elas “incham”
como esta, mas porque têm um ciclo mensal com a mesma duração
que o do astro noturno. O fato de que o ciclo mensal feminino
depende da Lua era para os antigos prova evidente de sua
semelhança com o corpo celeste. A palavra menstruação e a palavra
lua são semelhantes ou, por vezes, estreitamente aparentadas em
várias línguas. Em grego, só para citar uma delas, μήν, μηνός (mén,
menós) é mês e ἔμμηνον (émmenon) é “o que volta todos os meses”,
cujo plural ἔμμηνα (émmena) significa particularmente
menstruação, ao passo que μήνη (méne) e μηνάς (menás) designam
a Lua, como astro e como divindade. Ao que ficou dito poder-se-ia
acrescentar o grego καταμήνια (kataménia), que, em Hipócrates e
Aristóteles, tem o mesmo sentido que possui catamênio em
português, isto é, mênstruo. Diga-se, de passagem, que em nossa
linguagem popular mênstruo se diz também lua. Os camponeses
alemães chamam simplesmente o período menstrual de der Mond, “a
lua”, e, em francês, é comum denominá-lo le moment de la lune, “o
período da lua”.
O sol, fonte constante de calor e luz, brilha enquanto dura o
trabalho: é o macho, o homem; a lua, inconstante e mutável, é fonte
de umidade e brilha à noite; sua luz é doce e terna; é a fêmea, a
mulher. O sol, princípio masculino, reina sobre o dia, a luz; a lua,
princípio feminino, reina sobre a noite, as trevas. O sol é lógos, a
razão; a lua é éros, o amor. E só o amor faz germinar! Não foi em vão
que Deus criou duas luzes: a mais forte, para preponderar durante o
dia, a mais frágil e terna, para governar a noite:
Fez Deus, pois, dois grandes luzeiros, um maior, que presidisse ao dia, outro
menor, que presidisse à noite.
(Gn 1,16)
E mais uma vez ouçamos Plutarco: “A lua, por sua luz úmida e
geradora, é favorável à propagação dos animais e das plantas”.
No Antigo Testamento, as lúnulas (pequenas luas) faziam parte
dos enfeites femininos (Is 3,18) ou eram penduradas no pescoço dos
animais (Jz 8,21): em ambos os casos configuravam a fertilidade. A
lua, aliás, sempre teve um poder especial de umedecer, por isso era
chamada a dispensadora da água. Tal epíteto honroso não lhe cabe
apenas porque ela exerce controle sobre as chuvas, mas ainda porque
o nosso satélite “provoca” o orvalho. Este era símbolo da fertilidade e
na alta Idade Média prescrevia-se um banho de orvalho como “magia
amorosa”.
A lua estava de tal modo ligada à mulher, e, portanto, à
fertilidade, que, em muitas culturas primitivas, se acreditava
piamente que o homem não desempenhava papel algum na
reprodução. A função do homem era tão somente romper o hímen,
para que os raios da lua pudessem penetrar, uma vez que ela era o
único agente fertilizante. Os meninos gerados pela lua estavam, além
do mais, destinados a ser reis ou a desempenhar uma função de
grande relevância, como convém a um rebento divino. Ora, como os
“raios da lua” tinham o poder de fecundar, a própria Lua, não raro,
era considerada como um “homem”, o homem-lua, que, por vezes, se
encarnava, sobre a terra, num rei muito poderoso. Partindo dessa
crença os reis de certas linhagens ou dinastias foram considerados
como encarnações desse homem-lua. Muitos desses reis e soberanos
antigos tinham uma cabeleira ornamentada com chifres, emblema
da luna comuta (lua cornuda), no quarto crescente, e, por uma
transição natural, o rei portador de semelhante adorno tornava-se
não somente a lua, mas também o touro, uma vez que os animais
corníferos, como o touro e a vaca, estão entre aqueles associados à lua.
Em determinadas cerimônias, por isso mesmo, reis celtas, egípcios e
assírios usavam cornos, uma vez que seus súditos os tinham na conta
de encarnações de uma divindade lunar. Mais tarde se passou a dizer
que o rei não era a lua, mas um seu representante ou certamente um
ilustre descendente. Gengis-Khan, o poderoso imperador mongol, em
pleno século XIII de nossa era, fazia remontar seus ancestrais a um
rei, cuja mãe havia sido fecundada por um raio da lua...
Os raios da lua eram tão poderosos, que bastava a mulher se
deitar sob os raios da mesma no quarto crescente para ficar grávida.
A criança, no tempo devido, seria trazida pelo pássaro-lua. A nossa
cegonha tem raízes milenares... Ao contrário, aquela que não desejava
ser fecundada, era bastante não olhar para a lua e friccionar o ventre
com saliva, poderoso elemento apotropaico, e certamente o primeiro
anticoncepcional que o homem conheceu.
A lua, que está sempre em mutação, assemelha-se ao que se passa
na terra com os seres humanos. Desse modo, teve ela também direito
a uma antropomorfização. Assim, no quarto crescente e no
minguante, a lua se torna, por antropomorfismo, o homem-lua, uma
espécie de herói que vive na lua e é a própria lua. Esse homem-lua
inicia suas atividades no crescente, em luta contra o demônio das
trevas, uma espécie de dragão, que devorou seu pai, a lua velha, isto é,
a lua nova. O homem-lua vence o dragão na lua cheia e reina,
triunfante, sobre a terra. Trata-se de um rei sábio e justo. Traz a paz e
a ordem para as tribos e organiza a agricultura. Mas o reinado do
herói dura pouco: o velho inimigo, terminado o plenilúnio, volta ao
combate. Vencido no novilúnio, o homem-lua é tragado pelo dragão.
A lua se apaga e julga-se que o herói morreu de maneira estranha:
despedaçado, como a lua que veio decrescendo até desaparecer. Esse
mesmo tema pode ser observado no mito de Osíris, o deus-lua
egípcio, que, como a Lua, pereceu despedaçado, para logo ser
recomposto. O homem-lua, que desceu às trevas do inferno, lá
permanece durante o novilúnio e depois a luta recomeça... O herói
consegue nova vitória e a lua cheia descansa, porque, nessa fase, ela
não cresce nem decresce. Parece ter sido essa a origem do sábado e
sobretudo dos tabus que incidiam sobre o mesmo. É que em culturas
primitivas e até “avançadas” como na hindu antiga e na babilônica,
para não citar outras, se fazia estreita analogia entre a menstruação e
a lua cheia. Na Índia antiga via-se no catamênio uma prova de que a
mulher estava particularmente sob a influência da lua e mesmo
possuída pela divindade lunar. Diz um texto védico: “O sangue da
mulher é uma das formas de Agni, portanto não deve ser o mesmo
desprezado”. Tem-se aí uma relação entre menstruação e fogo, já que
Agni, deus do fogo, está inteiramente vinculado à luz da lua. Na
Babilônia acreditava-se de modo idêntico que Ištar, a deusa lua,
ficava indisposta durante o plenilúnio, quando então se observava o
sabattu, ou melhor, sapattu, donde o hebraico šabbat, que se poderia
interpretar, ao menos poeticamente, como “repouso do coração”8.
Durante a “indisposição” de Ištar, no período da lua cheia, guardavase, pois o sábado, que era, nesse caso, mensal, tornando-se depois
semanal, de acordo com as quatro fases da lua. Esse dia era
considerado nefasto, não se podendo executar qualquer trabalho,
viajar ou comer alimentos cozidos. Ora, nesses mesmos interditos,
incorriam as mulheres menstruadas. No dia da menstruação da lua,
todos, homens e mulheres, estavam sujeitos a idênticas restrições,
porque o tabu da mulher indisposta pesava sobre todos.
No judaísmo, šabbat era normalmente o nome do sétimo dia da
semana, embora pudesse ser aplicado a festas que não caíam
necessariamente no sétimo dia da mesma, como o dia da expiação
(Lv 16,31; 23,32), a festa das trombetas (23,24) e o primeiro e oitavo
dias da festa dos tabernáculos (23,39). De qualquer forma, o sábado
judaico, que na Bíblia é usado para indicar somente uma obrigação
religiosa e social, estava também cercado de tabus, cuja origem
talvez remonte à época em que “os semitas ainda eram pastores
nômades, cujas andanças eram determinadas pelas fases da lua.
Esses dados parecem justificar a conclusão de que o sábado, como
modo concreto de satisfazer à necessidade humana de descanso
periódico, deve sua origem ao fato de que se começou a dar um valor
absoluto ao caráter periódico da celebração das quatro fases da lua, à
custa da coincidência do dia da celebração com as fases da mesma.
Ao se sedentarizarem, as tribos semitas de nômades estenderam os
seus tabus, originariamente ligados à celebração das fases da lua, às
suas novas ocupações agrícolas”9.
Entre esses tabus “herdados” certamente se devem inserir aqueles
que cercam como impura a mulher menstruada (Gn 31,35; 2Sm 11,4;
Lv 20,18 e certas determinações em Lv 15,19-24; 25-30)10.
4
Voltando a Selene, Ártemis e Hécate, ou melhor, à deusa triforme,
vamos ver mais de perto o seu androginismo, cifrado nos raios
fecundantes da lua e no homem-lua, que é a própria lua.
A lua é, portanto, andrógina. Plutarco está novamente conosco:
“Chama-se a Lua (Ártemis) a mãe do universo cósmico; ela possui
uma natureza andrógina”. Na Babilônia, o deus-Lua Sin é andrógino
e quando foi substituído por Ištar, esta conservou seu caráter de
androginismo. Igualmente no Egito, Ísis é denominada Ísis-Neit,
enquanto andrógina.
Pelo fato mesmo de a lua ser andrógina, o homem-lua, cujo
representante na terra era o rei ou o chefe tribal, passava a primeira
noite de núpcias com a noiva, a fim de provocar a fertilização dela,
da tribo e da terra. Tal hábito, como já se assinalou, permaneceu na
França até a Idade Média com o nome de Le Droit de cuissage du
Seigneur.
O fato de todos dependerem dos préstimos da lua para a
propagação da espécie, da fertilização dos animais e das plantas,
enfim, da boa colheita anual, em todos os sentidos, é que provocou,
desde a mais remota antiguidade, um tipo especial de hieròsgámos,
de casamento sagrado, uma união sagrada, de caráter impessoal.
Trata-se das chamadas hierodulas, literalmente, “escravas sagradas”,
porque adjudicadas, em princípio, a um templo, ou ainda
denominadas “prostitutas sagradas”, mas sem nenhum sentido
pejorativo.
Em determinadas épocas do ano, sacerdotisas e mulheres de
todas as classes sociais11 uniam-se sexualmente a reis, sacerdotes ou a
estranhos, todos simbolizando o homem-lua, com o único fito de
provocar a fertilização das mulheres e da terra, bem como de
angariar bens materiais para o templo da deusa (Lua) a que serviam.
Tudo isso parece muito estranho para nossa mentalidade ou para
nossa ignorância das religiões antigas. Vamos, assim, pela
“delicadeza” do assunto, restringi-lo ao mínimo necessário.
Puta, em latim, era uma deusa muito antiga e muito importante.
Provém do verbo putare, “podar”, cortar os ramos de uma árvore, pôr
em ordem, “pensar”, contar, calcular, julgar, donde Puta era a deusa
que presidia à podadura. Com o sentido de cortar, calcular, julgar,
ordenar, pensar, discutir, muitos são os derivados de putare em
nossa língua, como deputado, amputar, putativo, computar,
computador, reputação. O sentido pejorativo, ao que parece, surgiu
pela primeira vez num texto escrito entre 1180-1230 de nossa era.
Não é difícil explicar a deturpação do vocábulo. É que do verbo
latino mereri, receber em pagamento, merecer uma quantia, proveio
meretrix, “a que recebe seu soldo”, de cujo acusativo meretrice nos
veio meretriz, que também, a princípio, não tinha sentido erótico.
Mas, como putas e meretrizes, que se tornaram sinônimos, se
entregavam não só para obter a fecundação da tribo, da terra, das
plantas e dos animais, mas também recebiam dinheiro para o
templo, ambas as palavras, muito mais tarde, tomaram o sentido que
hoje possuem.
Não eram, todavia, apenas mulheres que “trabalhavam” para a
deusa-lua. Homens igualmente, embora fosse mais raro, após se
emascularem, entregavam-se ao serviço da deusa. Na Índia, segundo
W.H. Keating, os homens de Winnipeck consideram o sol como
propício ao homem, mas julgam que a lua lhes é hostil e se alegra
quando pode armar ciladas contra o sexo masculino. Desse modo, os
homens de Winnipeck, se sonhassem com a lua, sentiam-se no dever
de tornar-se cinaedi, quer dizer, homossexuais. Vestiam-se
imediatamente de mulher e colocavam-se ao serviço da lua. Em
2Reis 23,7, Josias mandou derrubar os aposentos dos efeminados,
consagrados a Astarté.
Cibele era a grande deusa frígia, trazida solenemente para Roma
entre 205 e 204 a.C., durante a segunda Guerra Púnica. Identificada
com a lua, protetora inconteste da mulher, seus sacerdotes,
chamados Coribantes, Curetes ou Galos e muitos de seus adoradores,
durante as festas orgiásticas da Bona Mater, Boa Mãe, como era
chamada em Roma, se emasculavam e cobriam-se com
indumentária feminina e passavam a servir à deusa-lua Cibele.
No Egito e na Mesopotâmia as deusas-lua Ísis e Ištar sempre
tiveram um grande número de hierodulas, que, para obter a
fertilidade da terra e dinheiro para os templos, para elas
trabalhavam infatigavelmente.
No judaísmo, as hierodulas causaram problemas sérios. Para
Astarté, deusa-Lua semítica da vegetação e do amor (a Afrodite do
Oriente), as hierodulas, sobretudo em Canaã, operavam, quer ao
longo das estradas (Gn 38,15-21; Jr 3,2), quer nos próprios santuários
(Os 4,14) da deusa. O dinheiro arrecadado, a que se dava o nome de
“salário de meretriz” ou “de cachorro”, era entregue aos santuários.
Sob a influência cananeia, o abuso penetrou também no culto
israelítico (Nm 25,1-16), embora a Lei se opusesse energicamente a
isso e proibisse que o dinheiro fosse aceito pelo Templo (Dt 23,18).
Sob Manassés e Amon (séc. VII a.C.), as prostitutas sagradas
instalaram-se no próprio Templo de Jerusalém. Foi necessário que
Josias mandasse demolir suas habitações. Mais tarde, à época da
desordem total, até pagãos as procuravam no Templo da Cidade
Santa (2Mc 8).
Na Grécia, à época histórica, em lugar de oferecer seu corpo e sua
virgindade em honra da deusa-lua, as mulheres ofereciam sua
cabeleira.
5
Ainda uma palavra sobre a Lua, suas servidoras e seus préstimos.
Em todas as culturas primitivas eram as mulheres que serviam à
Lua, pois tinham a incumbência de assegurar, entre outras coisas, o
abastecimento de água à tribo, à cidade e ao campo velando, ao
mesmo tempo, sobre a chama sagrada, que representava a luz da Lua
e que jamais poderia extinguir-se. Além do mais, essas mulheres,
essas sacerdotisas deviam receber em sua própria pessoa a “energia
fertilizante” da Lua, em seu e em benefício de todos. Na civilização
inca, no Peru, as sacerdotisas de Mana-Quillas e, na Roma antiga, as
Virgens Vestais não tinham somente o dever de manter acesa a
chama sagrada da deusa Lua-Vesta, mas ainda de prover ao
abastecimento de água. Nos idos de março, por ocasião da Lua Cheia,
realizavam-se sacrifícios ad pendendam pluuiam, sendo lançados
pelas Vestais no rio Tibre vinte e quatro manequins, substitutos de
antigos sacrifícios humanos, para provocar a chuva. A deusa-lua
Ártemis, divindade dos bosques, onde ficavam muitos de seus
santuários, via de regra os tinha junto a uma nascente ou gruta, onde
a água brotasse de uma pedra. No Egito, um copo de água era levado
em procissão diante de um falo de Osíris. Por magia simpática, em
grandes secas, derramava-se água sobre a terra seca para provocar
chuva. A deusa Cibele, de que se falou linhas atrás, levada para
Roma, entre 205-204 a.C., era apenas uma pedra negra, simulacro da
Bona Dea, Boa Deusa. Essa pedra era banhada nas águas do Tibre,
quando havia estiagem prolongada.
No dia quinze de agosto, em Roma, para homenagear a grande
deusa-lua, celebrava-se a Festa das Tochas, que a Igreja substituiu
pela Assunção de Maria. Desmitificando e dessacralizando o mito, a
Igreja o sublimou, revestindo-o com nova indumentária. O conselho
é do Papa Inocêncio III: “É para a Lua que deve olhar todo aquele que
se acha enterrado na sombra do pecado e da iniquidade. Tendo
perdido a graça divina, o dia desaparece. Não há mais sol. Que se
dirija a Maria: sob sua influência, milhares encontram diariamente
seu caminho para Deus”. A simbologia é perfeita: Cristo é o sol; Maria,
a lua. É comum, aliás, ver-se a estátua da Mãe de Deus sobre um
crescente lunar.
Curioso é que para os antigos gregos o real poder da Lua não
estava na Lua Cheia, na Lua Brilhante, no seu aspecto positivo, que
para nós surge como o mais importante, mas na Lua Nova, a Lua
Negra, isto é, na poderosa deusa-Lua Hécate.Aparentada com
Ártemis, não tem, conforme se mostrou no Vol. I, p. 288, um mito
propriamente dito. Independente dos deuses olímpicos, foi de
princípio uma deusa benévola e dadivosa, mas, à medida que se
tornou hipóstase da Lua Negra, tornou-se a deusa da magia e dos
sortilégios. Com semelhantes atributos, Hécate passou a simbolizar
igualmente, com seu cortejo de cães, amigos dos cemitérios, a cadela,
a mãe perversa, devoradora e fálica, e, através da mesma, o
inconsciente devorador.
Essa polaridade de Hécate explica-se pela própria ambivalência
da Lua. Deusa da prosperidade e da abundância no mundo exterior,
no mundo interior, a Lua, se é dispensadora da magia, da inspiração e
da clarividência, o é igualmente do terror e até da loucura. É bom
lembrar que desde o século III a.C., como atesta o historiador e poeta
didático egípcio de língua grega Mâneton, 4,81 (cerca de 263 a.C.), o
verbo σεληνιάζειν (seleniádzein), derivado de Σελήνη (Seléne),
Lua, significa “ser epiléptico”, donde “ser adivinho ou feiticeiro”, uma
vez que a epilepsia era considerada morbus sacer, uma “doença
sagrada”: é que as convulsões do epiléptico se assemelhavam às
agitações e “distúrbios” por que eram tomados os que entravam em
êxtase e entusiasmo, isto é, “na posse do divino”, sobretudo nos ritos
dionisíacos. No Novo Testamento, Mt 17,15, um pai aflito procurou
Jesus, para que lhe curasse o filho. A doença era lunar: Domine,
miserere filio meo, quia lunaticus est. “Senhor, tem compaixão de
meu filho, porque é lunático.”
Para encerrar este capítulo sobre Ártemis, a dea triformis, cabe
relembrar que Apolo e Ártemis eram gêmeos. Sobre estes necessário
se torna fazer um ligeiro comentário.
Todas as mitologias e culturas primitivas sempre revelaram um
interesse muito grande pelo fenômeno dos gêmeos. Pouco importa a
forma por que são imaginados: quer se apresentem sob moldes
perfeitamente simétricos, quer se manifestem inteiramente
diferentes, um escuro, outro luminoso, um voltado para o céu, outro
para a terra, um negro, outro branco, um com cabeça de touro, outro
com cabeça de escorpião, eles exprimem simultaneamente uma
intervenção do além e a dualidade de todo ser ou o dualismo de suas
tendências, espirituais e materiais, diurnas e noturnas. Sintetizam,
assim, o dia e a noite, os aspectos celeste e terrestre do cosmo e do
homem. Quando simbolizam as oposições internas do homem e a
luta que o mesmo deverá empreender para superá-las, traduzem
uma acepção sacrifical: necessidade de abnegação, de destruição, de
submissão e de renúncia de uma parte de si mesmo, com vistas ao
triunfo da outra. Cabe às forças espirituais da evolução progressiva
assegurar a supremacia sobre as tendências involutivas e regressivas.
Acontece, todavia, que os gêmeos podem ser absolutamente iguais,
duplas ou cópias um do outro; nesse caso, eles exprimem tão só a
unidade de uma dualidade equilibrada. Simbolizam a harmonia
interior obtida pela redução do múltiplo ao um. Transposto o
dualismo, a duplicidade torna-se apenas um efeito de espelho, o
efeito da manifestação.
Os gêmeos configuram, de outro lado, o estado de ambivalência
do universo mítico. Para as culturas primitivas, surgem quase
sempre carregados de uma força poderosa, protetora ou perigosa.
Adorados, mas igualmente temidos, os gêmeos estão sempre
carregados de um valor intenso: na África ocidental são mágicos, mas
entre os bantus eram sacrificados. Em todas as tradições, os gêmeos,
deuses ou heróis, lutam entre si, altercam, mas se auxiliam,
denunciando, dessa maneira, a ambivalência de sua situação,
símbolo da própria contingência de cada ser humano dividido em si
mesmo, ou seja, a tensão interna de um estado permanente. O medo e
a angústia do primitivo diante do aparecimento de gêmeos
configuram o temor da divisão exterior de sua ambivalência, o receio
da objetivação das analogias e das diferenças, a apreensão de uma
tomada de consciência individuante, o medo da ruptura da
indiferenciação coletiva. No fundo, os gêmeos configuram uma
contradição não resolvida.
A polaridade dos gêmeos é que ela mantém em si mesma “a
promessa da descoberta, da compreensão de si mesmo, tanto quanto
a ameaça da alienação e da desagregação”12. Se para Otto Rank os
gêmeos configuram a temática da oposição entre Narciso e o espelho,
o ser e o não ser, a vida e a morte, para Bachelard o homem tem
igualmente no espelho “a revelação de sua identidade e de sua
dualidade-revelação da realidade e da idealidade”13.
Como reflexo no espelho, o gêmeo reflete o outro idêntico e
impossível, que, no entanto, existe.
Os mitos acerca dos gêmeos dividem-se em dois grupos: gêmeos
de sexo oposto, que configuram, consoante Jung, o hermafrodito,
simbolizando a integração e a harmonia, conseguidas no fim do
processo de individuação, e gêmeos do mesmo sexo, que representam
a luta, o litígio, o conflito, o espelho, a morte de Narciso. Tudo isto,
porém, é muito relativo, porquanto os gêmeos, não importa o sexo da
dupla, são o símbolo geral da dualidade na semelhança e até mesmo
na identidade, porque estampam a imagem de todas as oposições
exteriores e interiores, complementares ou contrárias, absolutas ou
relativas, que se transformam numa tensão criadora.
Na mitologia indo-europeia os heróis gêmeos são, as mais das
vezes, benéficos, como os Açvins e os Dioscuros, Castor e Pólux: são
curandeiros, protegem os homens dos perigos e salvam os
navegantes. Os gêmeos védicos, Açvins, tinham a seu encargo,
sobretudo, rejuvenescer os velhos e conseguir marido para as jovens...
No México, entre os índios Pueblos, os Heróis Gêmeos, deuses da
manhã e da tarde, abriram o caminho para a humanidade nos mitos
cosmogônicos, quando o homem chegou à terra. Eliminaram os
monstros e transformaram em úteis as coisas caducas e imperfeitas,
tendo-se tornado os libertadores e os guias dos mortais. Em
numerosos outros mitos, porém, os heróis gêmeos se apresentam
como antagonistas: um é bom, o outro é perverso. Um constrói, o
outro procura destruir-lhes a ação criadora, como se observa entre os
iroqueses e os piaroas do Orenoco. Se passarmos ao mundo grecolatino, as coisas ainda são mais claras: Rômulo mata a Remo, e
Etéocles e Polinice morrem um às mãos do outro, lutando pela posse
de Tebas.
Ainda bem que Apolo e Ártemis não apenas simbolizaram, mas
realizaram a integração...
1. Τιτυός, em grego Tituov (Tityós), cujo nome é tido como uma reduplicação da raiz *teu,
“ser túmido, gordo, forte”, o que não parece provável, era filho de Zeus e Elara. Temendo os
ciúmes de Hera, o deus escondeu a amante nas entranhas da terra. Foi lá que nasceu o
Gigante Títio. Dele se serviu Hera para perseguir Leto, inspirando no Gigante um violento
desejo de possuí-la. Depois de tentar violentá-la, foi fulminado pelo raio de Zeus ou,
segundo outras fontes, foi liquidado a flechadas por Apolo e Ártemis. Ao tombar no solo,
seu corpo cobriu nove jeiras de terra. Lançado no Tártaro, foi condenado a ter o fígado
devorado por duas serpentes ou duas águias, mas o órgão renasce conforme as fases da lua.
2. AUGRAS, Monique. Op. cit., p. 22.
3. MONTAIGNE, Michel. Essais. Paris: NRF, 1953, I, 36, p. 247.
4. .Cariátides, aqui, é apenas um epíteto das jovens que dançavam em homenagem a
Ártemis Cariátis, a “protetora das nogueiras”, uma vez que a deusa possuía um templo num
bosque de nogueiras, junto à cidade de Cárias, no Peloponeso. Segundo Vitrúvio, I, 1,5, o
termo de arquitetura Cariátides, isto é, moradoras de Cárias, teria origem no fato de terem
os habitantes desta cidade, por ocasião das guerras greco-pérsicas, abraçado o partido dos
persas. Por isso, derrotados os invasores, suas mulheres foram escravizadas, de que é
símbolo a finalidade arquitetônica das “cariátides”, isto é, servirem de colunas (como
castigo) a uma cornija ou arquitrave. V. Dicionário mítico-etimológico, verbete.
5. Selene, em grego Σελ'ηνη, é derivada da mesma raiz que σέλας (sélas), “brilho”, *sawélios
> Ἤλιος(Hélios), “sol”, do indo-europeu *swel, “brilhar”, sânscrito svar – “sol”, latim sol.
Filha de Hiperíon e Teia, Selene era representada como uma jovem lindíssima, que percorria
o céu em carro de prata, tirado por dois cavalos. De Zeus teve uma filha, Pandia, “a
totalmente divina”. Foi amante de Pã, que a presenteou com um rebanho de bois brancos. Do
belo pastor Endímion ela teve cinquenta filhas.
6. A respeito de Hécate, veja-se o Vol. I, p. ....-.....
7. BRIFFAULT, Robert. The Mothers. 3 vols. New York: Macmillan, 1927.
8. O português sábado provém do latim sabbatu(m), que, por sua vez, é um empréstimo ao
hebraico šabbat, por intermédio do grego σάββατον (sábbaton). Quanto à etimologia, uns
fazem o hebraico šabbat provir do verbo šabat (cessar de); outros o relacionam com šeba‘
(sete), mercê do caráter rigorosamente periódico do sábado, de sete em sete dias. Há ainda os
que preferem explicá-lo como uma deformação de šabi‘at (dia sétimo). Seja como for, há que
se levar em consideração o acádico šapatu, por sua notável semelhança com o hebraico
šabbat: talvez este provenha daquele e o sentido primeiro do vocábulo seria descanso, repouso
da Lua.
9. VAN DEN BORN A. et al. Op. cit., verbete Sábado, p. 1340ss.
10. Ofato de o ciclo mensal da mulher estar relacionado com as fases da lua, o argumento de
que no sangue está a vida e que, por isso mesmo, “o contato com o sangue e até ver sangue”
eram considerados um perigo, não justificam tantos tabus e interditos, alguns
profundamente desumanos, que recaíam sobre a mulher menstruada. Considerada impura,
na fase do catamênio, era afastada do convívio social e tudo quanto fosse por ela tocado se
tornava contaminado ou perdia sua eficácia. Por que isso? Por que a mulher indisposta era
considerada pelos primitivos como uma verdadeira causa de infecção e de contaminação,
um mal que podia ser transmitido a todos quantos entrassem em contato com ela, a ponto
de até sua sombra ser tida como emanação mefítica? Por que grandes legisladores antigos
como Zoroastro, Manu e Moisés registraram em seus sistemas interditos concernentes à
menstruação? Ouçamos um pequeno trecho de Manu: “a sabedoria, a energia, a força, o
poder e a virilidade de um homem que se aproxima de uma mulher coberta com excreções
menstruais desaparecem por completo. Se ele a evita, enquanto ela permanece nesse estado,
sua sabedoria, sua energia, sua força, seu poder e virilidade tomarão novo impulso”
(BUHLER, G. The Laws of Manu, in: Sacred Books of the East. Oxford: Clarendon Press, 18791910, p. 135).
A Dra. Esther Harding, em sua excelente obra, Woman’s Mysteries, p. 63ss, que voltaremos a
citar mais adiante, e que estamos seguindo de perto neste estudo sobre a deusa-lua, também
discorda de que o tabu do catamênio se restrinja apenas ao horror do sangue em si mesmo e
tenta explicá-lo de maneira bem diversa. Vamos resumir-lhe a longa exposição sobre o
assunto. É verdade que o homem primitivo tinha horror ao sangue, que é a seiva da vida,
mas nenhum tabu existe com respeito às pessoas que sangram, quando este sangue provém
de uma ferida. Por que, então, o tabu acerca do sangue menstrual? Julga Harding que para o
espírito do primitivo a menstruação provém de uma espécie de infecção, de uma possessão do
demônio, que é preciso expulsar através de jejuns, fumigações, mortificações e isolamento da
paciente. Era essa, aliás, a terapia aplicada em casos de “possessão demoníaca”. Uma segunda
causa seria ditada pela própria mulher: já que os desejos e apetites intempestivos dos
homens se constituíam numa ameaça séria para ela, alguns mitos primitivos fazem supor
que, para se defender das exigências excessivas dos homens, as mulheres se impuseram
continência durante esse período, embora seu desejo sexual, como entre os animais, seja
particularmente forte quer imediatamente antes, quer imediatamente após a menstruação.
Nesse sentido, diz o Talmude que se uma mulher passar entre dois homens, no início de suas
regras, causará a morte de um; se passar no fim das mesmas, ela provocará simplesmente
entre eles uma violenta altercação. Um terceiro motivo para semelhante tabu seria o de
tornar possível a evolução dos povos primitivos. Sem essa salvaguarda, tornar-se-ia
impossível a homens e mulheres, consoante a Dra. Harding, o desenvolvimento de valores
especificamente humanos e a libertação do domínio absoluto do instinto animal.
Talvez se possa ver em todos esses tabus, sobretudo no que tange às restrições alimentares
que pesavam sobre a mulher menstruada, gestante ou de resguardo, como focalizamos no
Vol. I, p. 327-329, um complexo de castração por parte do homem.
11. HARDING, Esther. Woman’s Mysteries. New York: Longmans, Green & C., 1953, p. 32ss.
12. ZAZZO, René. Les jumeaux, le couple et la personne. Paris: PUF, 1960, p. 183.
13. BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves. Paris: Gallimard, 1957, p. 34
CAPÍTULO III
O mito de Apolo: Epidauro e o
Oráculo de Delfos
1
APOLO, em grego 'Απόλλή (Apóllon). Muitas têm sido as tentativas
de explicar o nome do irmão de Ártemis, mas, até o momento, nada
se pode afirmar com certeza. Há os que procuram aproximá-lo do
dórico ἄπελλα (ápella) ou mais precisamente de ἀπέλλαι (apéllai),
“assembleias do povo”, em Esparta, onde Apolo, inspirador por
excelência, seria o “guia” do povo, como Tiaz, com o nome de
Thingsaz, dirigia as reuniões dos germanos. Outros preferem recorrer
ao indo-europeu *apelo-, “forte”, que traduziria bem um dos ângulos
do deus do arco e da flecha, mas tais hipóteses não convencem.
Apolo nasceu no dia sete do mês délfico Bísio, que corresponde,
no calendário ático, ao mês Elafebólion, ou seja, segunda metade de
março e primeira de abril, nos inícios da primavera. Tão logo veio à
luz, cisnes, de uma brancura imaculada, deram sete voltas em torno
da ilha de Delos. Suas festas principais celebravam-se no dia sete do
mês. As consultas ao Oráculo de Delfos se faziam primitivamente
apenas no dia sete do mês Bísio, aniversário do deus. Sua lira possuía
sete cordas. Sua doutrina se resumia em sete máximas, atribuídas aos
sete Sábios. Eis aí o motivo por que o pai da tragédia, Ésquilo, o
chamou augusto deus Sétimo, o deus da sétima porta (Sept., 800). Sete
é, pois, o número de Apolo, o número sagrado, sobre que se falará
depois.
Zeus enviou ao filho uma mitra de ouro, uma lira e um carro,
onde se atrelavam alvos cisnes. Ordenou-lhes o pai dos deuses e dos
homens que se dirigissem todos para Delfos, mas os cisnes
conduziram o filho de Leto para além da Terra do Vento Norte, o
país dos Hiperbóreos, que viviam sob um céu puro e eternamente
azul e que sempre prestaram ao deus um culto muito intenso. Ali
permaneceu ele durante um ano: na realidade, uma longa fase
iniciática. Decorrido esse período, retornou à Grécia, e, no verão,
chegou a Delfos, entre festas e cantos. Até mesmo a natureza se
endomingou para recebê-lo: rouxinóis e cigarras cantaram em sua
honra; as nascentes tornaram-se mais frescas e cristalinas.
Anualmente, por isso mesmo, se celebrava em Delfos, com
hecatombes, a chegada do deus.
O filho de Zeus estava pronto e preparado para iniciar a luta, que,
aliás, foi rápida, contra Píton, o monstruoso dragão, filho da Terra,
que montava guarda ao Oráculo de Geia no monte Parnaso e que a
ira ainda não apaziguada da deusa Hera lançara contra Leto e seus
gêmeos.
Este deus que se está apresentando, já em roupas de gala,
paramentado e etiquetado, não corresponde ao que foi nos
primórdios o senhor de Delfos. Já se mostrou, no Vol. I, p. 143-144,
que o Apolo homérico ainda se comporta como uma divindade de
santuário, provinciano e sobremodo orientalizado.
O Apolo grego, o Apolo do Oráculo de Delfos, o “exegeta
nacional”, é, na realidade, resultante de um vasto sincretismo e de
uma bem elaborada depuração mítica.
Na llíada, I, pass., aparentando a noite, o deus de arco de prata,
Febo Apolo, brilha (e por isso é Febo, o brilhante) como a lua.
É necessário levar em conta uma longa evolução da cultura e do
espírito grego e mais particularmente da interpretação dos mitos,
para se reconhecer nele, bem mais tarde, um deus solar, um deus da
luz, de sorte que seu arco e suas flechas pudessem ser comparados ao
sol e a seus raios. Em suas origens, o filho de Leto estava
indubitavelmente ligado à simbólica lunar. No primeiro canto da
llíada, apresenta-se como um deus vingador, de flechas mortíferas: O
Senhor Arqueiro, o toxóforo, o portador do arco de prata, o argirótoxo.
Violento e vingativo, o Apolo pós-homérico vai progressivamente
reunindo elementos diversos, de origem nórdica, asiática, egeia e
sobretudo helênica e, sob este último aspecto, conseguiu suplantar
por completo a Hélio, o “Sol” propriamente dito1. Fundindo, numa só
pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão
diversificadas, o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras
complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de
que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num
só deus um vasto complexo de oposições. Tal fato possivelmente
explica, em terras gregas, como o futuro deus dos Oráculos
substituiu e, às vezes, de maneira brutal, divindades locais préhelênicas: na Beócia, suplantou, por exemplo, a Ptóos, que depois se
tornou seu filho ou neto; em Tebas, particularmente, sepultou no
olvido o culto do deus-rio Ismênio e, em Delfos, levou de vencida o
dragão Píton. O deus-Sol, todavia, iluminado pelo espírito grego,
conseguiu, se não superar, ao menos harmonizar tantas polaridades,
canalizando-as para um ideal de cultura e sabedoria.
Realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava a
suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las no sentido de uma
espiritualização progressiva, mercê do desenvolvimento da
consciência, com base no γνῶθι σ'αὐτόν (gnôthi s’autón),
“conhece-te a ti mesmo”.
Apolo é saudado na literatura com mais de duzentos atributos,
que o projetam como Σμινθεύς (Smintheús), um deus-rato, a saber,
um deus agrário, não propriamente como propulsor da vegetação,
mas como guardião das sementes e das lavouras contra os murídeos.
Como seu filho Aristeu, o filho de Leto zela pelos campos com seus
rebanhos e pastores, de que é, aliás, uma divindade tutelar. Com os
epítetos de Νόμιος (Nómios), “Nômio”, protetor dos pastores, e
καρνεῖος (Karneîos), “Carnio”, dos rebanhos e particularmente dos
carneiros, Apolo defende os campos e sua grei contra os lobos, daí
talvez seu nome de Λύκειος (L×keios), “Lício”.
Sua ação benéfica, porém, não se estende apenas ao campo: com a
designação de 'Αγυιεύς (Aguyieús), “Agieu”, representado por um
obelisco ou pilar, ele se posta à entrada das casas e guarda-lhes a
soleira. Vigia igualmente tanto a Fratria, com o nome de Phrátrios,
quanto os viajantes nas estradas, como atesta Ésquilo (Ag., 1086), e
nas rotas marítimas, sob a forma de delfim, predecessor zoomórfico
do deus, salva, se necessário, os marinheiros e tripulantes. Sob a
denominação de 'Ακέσιος (Akésios), “o que cura”, precedeu em
Epidauro, como médico, a seu filho Asclépio, de que também se
falará neste capítulo. Já na Ilíada, I, 473, curara a peste que ele
próprio havia lançado contra os aqueus, que lhe apaziguaram a ira
com sacrifícios e entoando-lhe um belo peã, nome este, que, sob a
forma de παιάν (paián), peã, após designar Παιήων (Paiéon),
“Peéon”, médico dos deuses, passou a qualificar outrossim não só
Apolo como deus que cura, mas ainda um canto sobretudo de ação
de graças.
Médico infalível, o filho de Leto exerce sua arte bem além da
integridade física, pois é ele um Καθάρσιος (Kathársios), um
purificador da alma, que a libera de suas nódoas. Mestre eficaz das
expiações, mormente as relativas ao homicídio e a outros tipos de
derramamento de sangue, o próprio deus submeteu-se a uma catarse
no vale de Tempe, quando da morte de Píton. Incentivava e defendia
pessoalmente aqueles com cujos atos violentos estivesse de acordo,
como foi o caso de Orestes, que matou a própria mãe Clitemnestra,
conforme nos mostra Ésquilo em sua Oréstia. Fiel intérprete da
vontade de Zeus, Apolo é Χπηστήριος (Khrestérios), um “deus
oracular”, mas cujas respostas aos consulentes eram, por vezes,
ambíguas, donde o epíteto de Λοxίας (Loksías), Lóxias, “oblíquo,
equívoco”. Deus da cura por encantamento, da melopeia oracular,
chamado, por isso mesmo, pai de Orfeu, que tivera com Calíope,
Apolo foi transformado, desde o século VIII a.C., em mestre do canto,
da música, da poesia e das Musas, com o título de Μουσηγέτης
(Museguétes), “condutor das Musas”: as primeiras palavras do deus,
ao nascer, diz o Hino homérico (Hh. Ap., I, 131-132) foram no sentido
de reclamar “a lira e seu arco recurvado”, para revelar a todos os
desígnios de Zeus.
Deus da luz, vencedor das forças ctônias, Apolo é o Brilhante, o
Sol.
2
Alto, bonito e majestoso, o deus da música e da poesia se fazia
notar antes do mais por suas mechas negras, com reflexos azulados,
“como as pétalas do pensamento”. Muitos foram assim seus amores
com ninfas e, por vezes, com simples mortais.
Amou a ninfa náiade Dafne, filha do deus-rio Peneu, na Tessália.
Esse amor lhe fora instilado por Eros, de quem o deus gracejava. É
que Apolo, julgando que o arco e a flecha eram atributos seus,
certamente considerava que as flechas do filho de Afrodite não
passavam de brincadeira. Acontece que Eros possuía na aljava a
flecha que inspira amor e a que provoca aversão. Para se vingar do
filho de Zeus, feriu-lhe o coração com a flecha do amor e a Dafne
com a da repulsa e indiferença. Foi assim que, apesar da beleza de
Apolo, a ninfa não lhe correspondeu aos desejos, mas, ao revés, fugiu
para as montanhas. O deus a perseguiu e, quando viu que ia ser
alcançada por ele, pediu a seu pai Peneu que a metamorfoseasse. O
deus-rio atendeu-lhe as súplicas e transformou-a em loureiro, em
grego δάφνη (dáphne), a árvore predileta de Apolo.
Com a ninfa Cirene teve o semideus Aristeu, o grande apicultor,
personagem do mito de Orfeu.
Também as Musas não escaparam a seus encantos. Com Talia foi
pai dos Coribantes, demônios do cortejo de Dioniso; com Urânia
gerou o músico Lino e com Calíope teve o músico, poeta e cantor
insuperável, Orfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, de que nascerá
Asclépio, terminaram tragicamente para ambos, como se verá mais
adiante: a ninfa será assassinada e o deus do Sol, por ter morto os
Ciclopes, cujos raios eliminaram Asclépio, foi exilado em Feres, na
corte do rei Admeto, a quem serviu como pastor, durante um ano.
Com Marpessa, filha de Eveno e noiva do grande herói Idas, o deus
igualmente não foi feliz. Apolo a desejava, mas o noivo a raptou num
carro alado, presente de Posídon, levando-a para Messena, sua pátria.
Lá, o deus e o mais forte e corajoso dos homens se defrontaram. Zeus
interveio, separou os dois contendores e concedeu à filha de Eveno o
privilégio de escolher aquele que desejasse. Marpessa, temendo que
Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, preferiu o
mortal Idas. Com a filha de Príamo, Cassandra, o fracasso ainda foi
mais acentuado. Enamorado da jovem troiana, concedeu-lhe o dom
da manteía, da profecia, desde que a linda jovem se entregasse a ele.
Recebido o poder de profetizar, Cassandra se negou a satisfazer-lhe
os desejos. Não lhe podendo tirar o dom divinatório, Apolo cuspiu-
lhe na boca e tirou-lhe a credibilidade: tudo que Cassandra dizia era
verídico, mas ninguém dava crédito às suas palavras.
Em Cólofon, o deus amou a adivinha Manto e fê-la mãe do
grande adivinho Mopso, neto de Tirésias. Mopso, quando profeta do
Oráculo de Apolo em Claros, competiu com outro grande mántis, o
profeta Calcas. Saiu vencedor, e Calcas, envergonhado e, por
despeito, se matou. Pela bela ateniense Creúsa, filha de Erecteu, teve
uma paixão violenta: violou-a numa gruta da Acrópole e tornou-a
mãe de Íon, ancestral dos Jônios. Creúsa colocou o menino num cesto
e o abandonou no mesmo local em que fora amada pelo deus. Íon foi
levado a Delfos por Hermes e criado no Templo de Apolo. Creúsa,
em seguida, desposou Xuto, mas, como não concebesse, visitou
Delfos e, tendo reencontrado o filho, foi mãe, um pouco mais tarde,
de dois belos rebentos: Diomedes e Aqueu. Com Evadne teve Íamo,
ancestral da célebre família sacerdotal dos iâmidas de Olímpia.
Castália, filha do rio Aqueloo, também lhe fugiu: perseguida por
Apolo junto ao santuário de Delfos, atirou-se na fonte, que depois
recebeu seu nome e que foi consagrada ao deus dos Oráculos. As
águas de Castália davam inspiração poética e serviam para as
purificações no Templo de Delfos. Era dessa água que bebia a Pítia.
Muitas foram as vitórias e os fracassos amorosos do deus Sol e a
lista poderia ser ainda grandemente ampliada. Quanto aos amores de
Apolo por Jacinto e Ciparisso devem ser interpretados não como um
episódio de homossexualismo, mas antes como a substituição de
antigas divindades agrárias pré-helênicas, como seus próprios
nomes de origem mediterrânea o indicam, por um deus solar.
JACINTO, em grego Ὑάκινθος (Hyákinthos), talvez com base na
raiz *weg, estar úmido, configure a primavera mediterrânea, estação
úmida e fértil, após a sequidão do estio, símbolo da morte prematura
do belo jovem. Filho do rei Amiclas e de Diomedes, era um
adolescente de rara beleza, que foi amado por Apolo. Divertia-se este
em arremessar discos, quando um deles, desviado pelo ciumento
vento Zéfiro, ou Bóreas, segundo outros, foi decepar a cabeça do
amigo. O deus, desesperado, transformou-o na flor jacinto, cujas
pétalas trazem a marca, que re lembra quer o grito de dor do deus
(AI), quer a inicial do nome do morto (Y).
Quanto a Ciparisso, em grego Κυπάρισσος (Kypárissos), não
possui etimologia segura, relacionando-se talvez com o semítico
gofer, “cipreste”, mas a hipótese é controvertida. Este, como todas as
árvores de folhas resistentes, era objeto de um respeito especial,
como “árvores da vida ou árvores da tristeza”. filho de Télefo, era um
dos favoritos de Apolo. Tinha por companheiro inseparável um
veado domesticado. Ciparisso, um dia, o matou acidentalmente e,
louco de dor, pediu aos deuses que fizessem suas lágrimas correrem
eternamente. Foi, por isso, transformado em cipreste.
Das três provas por que passou Apolo com os três consequentes
exílios (em Tempe, Feres e Troia), a terceira foi a mais penosa. Tendo
tomado parte com Posídon na conspiração urdida contra Zeus por
Hera e que fracassou, graças à denúncia de Tétis, o pai dos deuses e
dos homens condenou ambos a se porem ao serviço de Laomedonte,
rei de Troia. Enquanto Posídon trabalhava na construção das
muralhas de Ílion, Apolo apascentava o rebanho real. Findo o ano de
exílio e do fatigante trabalho, Laomedonte se recusou a pagar-lhes o
salário combinado e ainda ameaçou de lhes mandar cortar as
orelhas. Apolo fez grassar sobre toda a região da Tróada uma peste
avassaladora e Posídon ordenou que um gigantesco monstro
marinho surgisse das águas e matasse os homens no campo.
Não raro, Apolo aparece como pastor, mas por conta própria e
por prazer. Certa feita, Hermes, embora ainda envolto em fraldas, lhe
furtou o rebanho, o que atesta a precocidade incrível do filho de
Maia. Apolo conseguiu reaver seus animais, mas Hermes acabava de
inventar a lira e o filho de Leto ficou tão encantado com os sons do
novo instrumento, que trocou por ele todo o seu rebanho. Como
também tivesse Hermes inventado a flauta, Apolo a obteve
imediatamente, dando em troca ao astuto deus psicopompo o
caduceu.
Um dia em que o deus tocava sua flauta no monte Tmolo, na
Lídia, foi desafiado pelo sátiro Mársias, que, tendo recolhido uma
flauta atirada fora por Atená, adquiriu, à força de tocá-la, extrema
habilidade e virtuosidade.
Os juízes de tão magna contenda foram as Musas e Midas, rei da
Frígia. O deus foi declarado vencedor, mas o rei Midas se pronunciou
por Mársias. Apolo o puniu, fazendo que nascessem nele orelhas de
burro. No tocante ao vencido, foi o mesmo amarrado a um tronco e
escorchado vivo.
3
A mais séria aventura de amor do deus Sol foi com a ninfa
Corônis, fato que vai nos conduzir, se bem que de maneira sintética, a
um estudo sobre Asclépio e sua “cidade médica” de Epidauro.
Consoante o mito mais seguido, Asclépio (o Esculápio dos
latinos), cuja etimologia se desconhece até o momento, era filho do
deus Apolo e de uma mortal, Corônis, filha de Flégias, rei dos lápitas.
Temendo que o deus, eternamente jovem, por ser imortal, a
abandonasse na velhice, uniu-se, embora grávida, a Ísquis, que foi
morto por Apolo. Quanto a Corônis, foi liquidada a flechadas por
Ártemis, a pedido do irmão. Mas, como acontecera a Dioniso, o
rebento, certamente através de uma “cesariana umbilical”, foi
extraído do seio materno de Corônis e recebeu o nome de Asclépio.
Educado pelo Centauro Quirão2 no aprazível e regenerador monte
Pélion, o filho de Apolo fez tais progressos na medicina, que chegou
mesmo a ressuscitar vários mortos. Com medo de que a ordem do
mundo fosse transtornada, a pedido de Plutão, Zeus fulminou-o, mas
como Héracles, Asclépio foi divinizado. O rebento de Apolo e
Corônis possuía vários filhos, entre os quais os dois médicos
Podalírio e Macáon, que aparecem na Ilíada e as sempre jovens
Panaceia e Higiia. Como se vê, uma constelação em defesa da saúde:
dois médicos, uma panaceia e uma higiia, isto é, a própria saúde...
Asclépio é um herói-deus muito antigo e deve ter “vivido” lá pelo
século XIII a.C., pois já o encontramos, como médico, na célebre
expedição dos Argonautas, em companhia de heróis como Jasão,
Peleu, Héracles, os Dioscuros (Castor e Pólux) e tantos outros...
Fixando-se em Epidauro, onde o médico Apolo há muito reinava,
Asclépio, “o bom, o simples, o filantropíssimo”, como lhe chamavam
os gregos, desenvolveu ali uma verdadeira escola de medicina, cujos
métodos eram sobretudo mágicos, mas cujo desenvolvimento (em
alguns ângulos espantoso para a época) preparou o caminho para
uma medicina bem mais científica nas mãos dos chamados
asclepíades ou descendentes de Asclépio, cuja figura mais célebre foi
o grande Hipócrates.
Como herói, que foi deificado, Asclépio participa da natureza
humana e da natureza divina, simbolizando a unidade indissolúvel
que existe entre ambas, assim como o caminho que conduz de uma
para outra.
Mesmo na época histórica, a natureza do deus da medicina
permaneceu ambivalente, ambígua, entre herói e deus: assim as
oferendas lhe eram outorgadas como deus e os “enaguísmata” (os
sacrifícios) lhe eram ofertados como herói.
É precisamente esse culto secreto ao herói Asclépio, que era
“escondido” pelo Thólos (edifício abobadado, rotunda) de Epidauro,
famoso por sua luxuriosa ornamentação e seu misterioso Labirinto.
Neste, provavelmente, era “guardada” a serpente, réptil detentor para
os antigos do dom da adivinhação, por ser ctônia, e que simbolizava a
vida que renasce e se renova ininterruptamente, pois, como é sabido,
a serpente enrolada num bastão era o atributo do deus da medicina.
Assim os dois monumentos mais famosos de Epidauro se
encontravam lado a lado: o Templo para o deus e o Thólos para o
herói. Historicamente, Asclépio “residiu” em Epidauro, dos fins do
século VI a.C. até os fins do século V d.C. Onze séculos de glórias e de
curas incríveis!
À entrada do recinto sagrado do antigo hierón do deus da
“nooterapia”, isto é, da cura pela mente, sobre a arquitrave de
majestosos propileus, que formavam como um arco de triunfo, com
duas fileiras de colunas de mármore, estava gravada a mensagem
que sintetizava o grande segredo das “curas incríveis” e
incrivelmente modernas da medicina de Asclépio:
Puro deve ser aquele que entra no Templo perfumado.
E pureza significa ter pensamentos sadios.
A conclusão é simples: certamente em épocas mais recuadas só
havia cura total do corpo em Epidauro, quando primeiro se curava a
mente. Em outros termos, só existia cura, quando havia metánoia, ou
seja, transformação de sentimentos. Será que os sacerdotes de
Epidauro julgavam que as hamartíai (as faltas, os erros, as
démesures) provocavam problemas que levavam ao “encucamento”
e este agente mórbido, esta incubação “detonava” as doenças? De
qualquer forma, a missão de cura em Epidauro era uma das missões,
porque, basicamente, a cidade do deus-herói-Asclépio era um centro
espiritual e cultural. Dado que as causas das doenças eram
principalmente mentais, o método terapêutico era essencialmente
espiritual, daí a importância atribuída à nooterapia, que purifica e
reforma psíquica e fisicamente o homem inteiro. Procurava-se, a
todo custo, através do gnôthi s’autón (conhece-te a ti mesmo) que o
homem “acordasse” para sua identidade real.
A julgar pelas estelas (espécie de coluna destinada a ter uma
inscrição) do Museu de Epidauro, durante todo o grande período de
esplendor da história do Santuário de Asclépio, isto é, até fins do
século IV a.C., data das supracitadas estelas, as curas não eram
efetuadas com medicamentos, mas tão somente com o juízo e a
intervenção divina, bem como com a insubstituível metánoia. Essas
técnicas, os sacerdotes de Asclépio, muito mais pensadores
profundos que médicos, as conheciam muito bem, porque haviam
feito um grande progresso no que tange à psicossomática e à
nooterapia. Ao que parece, partiam eles do princípio de que a
Harmonia e a Ordem divina exercem influência decisiva sobre a
saúde psíquica e corporal. Recomendavam sempre aos doentes que
“pensassem santamente”, por isso estavam convencidos de que,
quando nossa consciência se mantém em estado de pureza e
harmonia, o físico torna-se, necessariamente, são e equilibrado. Não é
outra coisa, aliás, o que prega Platão em seu Banquete (186d) pelos
lábios do médico-filósofo Erixímaco. Era, portanto, o equilíbrio
biopsíquico o fator básico, o medicamento de uma cura irreversível!
Daí também, para os sacerdotes, a importância dos “sonhos” por
parte dos pacientes que dormiam (era a célebre enkoímesis, ação de
deitar-se, de dormir) no Ábaton (Santuário) de Epidauro. Esses
sonhos, essas manifestações do divino, essa “hierofania”, porque
Asclépio vinha visitar os pacientes e tocava as partes enfermas do
organismo, eram interpretados pelos sacerdotes que, em seguida,
“aviavam a receita”. Era o que se denomina mântica por incubação.
Com o correr do tempo e a experiência adquirida, as curas, por
meio de ervas, e a cirurgia fizeram também seus milagres. Uma coisa,
porém, é certa: só existia cura total, quando havia metánoia.
Epidauro, já o dissemos, era além do mais um centro cultural e de
lazer. Lá encontramos um Odéon, pequeno teatro fechado, onde se
ouvia música e se ouviam poetas; um Estádio para as competições
esportivas, que se realizavam de quatro em quatro anos; um Ginásio
para exercícios físicos; um Teatro, o mais bem conservado do mundo
grego e que foi construído, no século IV a.C., pelo grande arquiteto
Policleto, o Jovem; uma Biblioteca e numerosas obras de arte.
Havia, pois, em Epidauro, uma real metusía, uma communio, um
consortium, uma comunhão, um elo infrangível entre as cerimônias
culturais e cultuais, as doxologias (hinos laudatórios) com que os
sacerdotes reforçavam o sentimento religioso dos peregrinos e o
ritmo e a harmonia da música, da poesia e da dança, que eram
utilizadas por seu valor tranquilizante e seu efeito terapêutico
imediato sobre a alma e o corpo.
A tragédia e a comédia bem como a poesia épica e lírica
contribuíam para aumentar a espiritualidade e purificar a alma de
certas paixões desastrosas. A ginástica e as disputas atléticas
disciplinavam os movimentos e o ritmo interior do corpo,
multiplicando as possibilidades físicas e psíquicas do ser humano. A
contemplação artística e o fruir da beleza de tantas obras de arte, que
ornamentavam o Ábaton, tinham por escopo a elevação, a
espiritualização e humanização do pensamento. Todo esse conjunto,
espiritual e cultural, visava, em última análise, à catarse.
Mesmo à época da dominação romana (séc. II a.C.), quando o
emprego de medicamentos se generalizou, assim como a utilização
de meios mais modernos de higiene, dietética, cirurgia, hidroterapia,
purgantes... Asclépio e sua nooterapia jamais desapareceram:
purifica tua mente e teu corpo estará curado.
O tão citado verso do poeta latino do século I-II d.C., Décimo
Júnio Juvenal, não seria um eco da nooterapia asclepiana?
Orandum est ut sit mens sana in corpore sano (Sat., 10,356).
– O que se deve pedir é que haja uma mente sã num corpo são.
Estava com a razão o escritor norte-americano Henry Miller, não
há muito falecido, quando, em seu livro The Colossus of Maroussi
(1941), agudamente sintetizou o grande ideal nooterápico de
Epidauro. “A meu ver, não há mistérios nas curas que se realizaram
aqui, neste grande Centro Terapêutico da Antiguidade. Aqui o
médico era o primeiro a ser curado, o que constituía o grande
progresso de uma arte que não é médica, mas religiosa.”
4
A grande aventura de Apolo e que há de fazer dele o senhor do
Oráculo de Delfos foi a morte do Dragão Píton. Miticamente, a partida
do deus para Delfos teve como objetivo primeiro matar o
monstruoso filho de Geia, com suas flechas, disparadas de seu arco
divino. Seria importante não nos esquecermos do que representam
arco e flecha num plano simbólico: na flecha se viaja e o arco
configura o domínio da distância, o desapego da “viscosidade” do
concreto e do imediato, comunicado pelo transe, que distancia e
libera.
Quanto à guardiã do Oráculo de Geia pré-apolíneo, era, ao que
parece, a princípio, uma δράκαινα (drákaina), um dragão fêmea,
nascida igualmente da Terra, chamada Delfine.
Mas, ao menos a partir do século VIII a.C., o vigilante do Oráculo
primitivo e o verdadeiro senhor de Delfos era o dragão Píton, que
outros atestam tratar-se de uma gigantesca serpente. Seja como for, o
dragão, que simboliza a autoctonia e “a soberania primordial das
potências telúricas” e que, por isso mesmo, protegia o Oráculo de
Geia, a Terra Primordial, foi morto por Apolo, um deus patrilinear,
solar, que levou de vencida uma potência matrilinear, telúrica,
ligada às trevas. Morto Píton, Apolo teve primeiramente que
purificar-se, permanecendo um ano no vale de Tempe, segundo se
mencionou páginas atrás, tornando-se, desse modo, o deus
Kathársios, “o purificador”, por excelência. É que, e já se fez
referência ao fato no Vol. I, p. 80-81, todo μίασμα (míasma), toda
“mancha” produzida por um crime de morte era como que uma
“nódoa maléfica, quase física”, que contaminava o génos inteiro.
Matando e purificando-se, substituindo a morte do homicida pelo
exílio ou por julgamentos e longos ritos catárticos, como foi o
sucedido com Orestes, assassino de sua própria mãe, Apolo
contribuiu muito para humanizar os hábitos antigos concernentes
aos homicídios.
As cinzas do dragão foram colocadas num sarcófago e enterradas
sob o ὀμπαλός (omphalós), o umbigo, o Centro de Delfos, aliás o
Centro do Mundo, porque, segundo o mito, Zeus, tendo soltado duas
águias nas duas extremidades da terra, elas se encontraram sobre o
omphalós. A pele de Píton cobria a trípode sobre que se sentava a
sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa.
Embora ainda se ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a
relacionaram com δελφύς (delph×s), útero, a cavidade misteriosa,
para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às
perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego στόμιον
(stómion), que significa tanto cavidade quanto vagina, daí ser o
omphalós tão “carregado de sentido genital”. A descida ao útero de
Delfos, à “cavidade”, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma
tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, configuravam, de
per si, uma “união física” da sacerdotisa com Apolo. Para perpetuar a
memória do triunfo de Apolo sobre Píton e para se ter o dragão in
bono animo (e este é o sentido dos jogos fúnebres), celebravam-se lá
nas alturas do Parnaso, de quatro em quatro anos, os Jogos Píticos.
Do ponto de vista histórico, é possível ter-se ao menos uma ideia
aproximada do que foi Delfos arqueológica, religiosa e politicamente.
Múltiplas escavações, realizadas no local do Oráculo,
demonstraram que, à época micênica (séc. XIV-XI a.C.), Delfos era
um pobre vilarejo, cujos habitantes veneravam uma deusa muito
antiga, que lá possuía um Oráculo por “incubação”, cujo omphalós
certamente era da época pré-helênica. Trata-se, como se sabe, de
Geia, a Mãe-Terra, associada a Píton, que lhe guardava o Oráculo. Foi
na Época Geométrica (séc. XI-IX a.C.), que Apolo chegou a seu
habitat definitivo e, nos fins do século VIII a.C., a “apolonização” de
Delfos estava terminada; a manteía por “incubação”, ligada a
potências telúricas e ctônias, cedeu lugar à manteía por “inspiração”,
embora Apolo jamais tenha abandonado, de todo, algumas “práticas
como se observa no sacrifício de uma porca feito por Orestes em
Delfos, após sua absolvição pelo Areópago. Tal sacrifício em
homenagem às Erínias se constitui num rito tipicamente ctônio. A
própria descida da Pitonisa ao ádyton, ao “impenetrável”, localizado,
ao que tudo indica, nas entranhas do Templo de Apolo, atesta uma
ligação com as potências de baixo.
De qualquer forma, a presença do deus patrilinear no Parnaso, a
partir da Época Geométrica, é confirmada pela substituição de
estatuetas femininas em terracota por estatuetas masculinas em
bronze.
O novo senhor do Oráculo do monte Parnaso trouxe ideias novas,
ideias e conceitos que haveriam de exercer, durante séculos,
influência marcante sobre a vida religiosa, política e social da
Hélade. Mais que em qualquer outra parte, o culto de Apolo
testemunha, em Delfos, o caráter pacificador e ético do deus que tudo
fez para conciliar as tensões que sempre existiram entre as póleis
gregas. Outro mérito não menos importante do deus foi contribuir
com sua autoridade para erradicar a velha lei do talião, isto é, a
vingança de sangue pessoal, substituindo-a pela justiça dos
tribunais, como se comentou no Vol. I, p. 95-96.
Buscando “desbarbarizar” velhos hábitos, as máximas do
grandioso Templo Délfico pregam a sabedoria, o meio-termo, o
equilíbrio, a moderação. O γνῶθι σ'αὐτον (gnôthi s’autón),
“conhece-te a ti mesmo”, e o μηδὲν ἄγαν (medèn ágan), o “nada em
demasia” são um atestado bem nítido da influência ética e
moderadora do deus Sol.
E como Heráclito de Éfeso (século V a.C.) já afirmara (fr. 51) que “a
harmonia é resultante da tensão entre contrários, como a do arco e da
lira, Apolo foi o grande harmonizador dos contrários, por ele
assumidos e integrados num aspecto novo. “A sua reconciliação com
Dioniso”, salienta M. Eliade, “faz parte do mesmo processo de
integração que o promovera a padroeiro das purificações depois do
assassinato de Píton. Apolo revela aos seres humanos a trilha que
conduz da ‘visão’ divinatória ao pensamento. O elemento demoníaco,
implicado em todo conhecimento do oculto, é exorcizado. A lição
apolínea por excelência é expressa na famosa fórmula de Delfos:
‘Conhece-te a ti mesmo’. A inteligência, a ciência, a sabedoria são
consideradas modelos divinos, concedidos pelos deuses, em primeiro
lugar por Apolo. A serenidade apolínea torna-se, para o homem
grego, o emblema da perfeição espiritual e, portanto, do espírito. Mas
é significativo que a descoberta do espírito conclua uma longa série
de conflitos seguidos de reconciliação e o domínio das técnicas
extáticas e oraculares”3.
Deus das artes, da música e da poesia, é bom que se repita, as
Musas jamais o abandonaram. Note-se, a esse respeito, que os Jogos
Píticos, ao contrário dos Olímpicos, cuja tônica eram os concursos
atléticos, deviam seu esplendor sobretudo às disputas musicais e
poéticas. Em Olímpia imperavam os músculos; em Delfos, as Musas.
Em síntese, temos de um lado Geia e o dragão Píton; de outro, o
omphalós, Apolo e sua Pitonisa. Ora, se examinarmos as coisas mais
de perto, como já o esboçamos linhas acima, vamos encontrar em
Delfos o seguinte fato incontestável: Apolo com seu culto
implantou-se no monte Parnaso, porque substituiu a mântica ctônia,
por incubação, pelamântica por inspiração, embora se deva observar
que se trata tão somente da substituição de um interior por outro
interior: do interior da Terra pelo interior do homem, através do
“êxtase e do entusiasmo” da Pitonisa, assunto, aliás, controvertido e
que se tentará explicar. Ademais disso, convém repetir, os gregos
sempre ligaram Delfos a delph×s, útero, e a descida da sacerdotisa ao
ádyton é um símbolo claro de uma descida ritual às regiões
subterrâneas.
5
Antes de se discutir e apresentar algumas conjecturas sobre o
problema do “êxtase e do entusiasmo” que se apossariam da
sacerdotisa de Apolo, vamos dizer uma palavra sobre a própria Pítia
e sua ação mântica.
Pitonisa ou Pítia é o nome da intérprete de Apolo, que,
possivelmente, em estado de êxtase e entusiasmo, mas possuída de
Apolo, respondia às consultas que lhe eram feitas. O nome Pitonisa
ou Pítia provém de Píton, o dragão morto pelo filho de Leto e cuja
pele cobria a trípode de bronze em que se sentava a sacerdotisa. De
início, havia apenas uma Pítia, normalmente, parece, uma jovem
camponesa de Delfos, escolhida pelos sacerdotes de Apolo. Mais
tarde, a intérprete do deus deveria ter ao menos cinquenta anos.
Quando o Oráculo chegou a seu apogeu, entre os séculos VI e V a.C.,
havia três sacerdotisas e, à época da decadência do mesmo, século II
d.C., voltou a funcionar apenas uma.
Antes de qualquer consulta, segundo algumas fontes autorizadas,
ao menos no que concerne ao essencial, havia um ritual tanto para os
consulentes como para a sacerdotisa. Aqueles, após pagarem uma
taxa, que não era igual para todos, e se purificarem com água da
fonte Castália, ofereciam um sacrifício cruento ao deus: em geral
imolava-se um bode ou uma cabra.
Originariamente as consultas se faziam uma vez por ano, no dia
sete do mês Bísio, aniversário de Apolo. Com o aumento da clientela,
aquelas passaram a ser feitas no dia sete de cada mês, exceto nos
meses de inverno, em que o deus estava em repouso no país dos
Hiperbóreos.
Se o sacrifício oferecido pelos consulentes fosse favorável, quer
dizer, se o animal, cabra ou bode, antes de ser imolado, uma vez
aspergido com água fria, começasse a tremer, o dia era fasto. Nesse
caso, a Pítia, ricamente vestida e após purificar-se com água da
mesma fonte Castália, dirigia-se para o Templo de Apolo, seguida de
sacerdotes e dos consulentes. Feitas as fumigações de praxe com
folhas de loureiro, a árvore sagrada de Apolo, e com farinha de
cevada no “fogo eterno do deus Pítio”, a profetisa descia para o
ádyton, “o inacessível, o sacrossanto”, isto é, uma pequena sala
localizada sob a cela do Templo, enquanto os sacerdotes ou profetas
ficavam numa saleta ao lado, de onde formulavam em altas vozes as
suas perguntas. Estas eram expressas sob forma alternativa: ou seja,
“se era preferível fazer isto ou aquilo”.
A Pítia, após beber água da fonte Cassótis, que, dizem, corria no
ádyton, sentava-se na trípode e tocava no omphalós, que ficava junto
àquela. Em seguida, mastigando folhas de loureiro, respirava as
exalações (pneúmata) que proviriam de uma fenda no solo, o que,
aliás, diga-se logo, jamais foi detectado em Delfos, entrava em êxtase
e entusiasmo; “possuída de Apolo”, balbuciava palavras entrecortadas, que eram recolhidas pelos Sacerdotes. Essas palavras
“incoerentes” da Pitonisa eram redigidas, a princípio, em verso
hexâmetro e mais tarde também em prosa e oferecidas como
resposta às consultas formuladas. O sentido, as mais das vezes,
equívoco da resposta era, não raro, interpretado por exegetas.
De qualquer forma, “Os Oráculos” traduziam a vontade todopoderosa de Delfos, porque, para todo o mundo grego, Apolo foi
decididamente o árbitro e o garante da ortodoxia.
Os oráculos délficos são conhecidos por textos literários,
particularmente do historiador Heródoto (séc. V a.C.) e por
inscrições. Algumas respostas de Lóxias, sobretudo as mais antigas,
redigidas em hexâmetros datílicos, ficaram célebres por causa de seu
sentido obscuro e ambíguo. Sirva de exemplo a resposta do Oráculo
ao famoso rei da Lídia, Creso (séc. VI a.C.), que, em guerra contra Ciro,
rei da Pérsia, interrogou a Pítia a respeito da “destruição de um
grande império”. A Pitonisa respondeu com absoluta precisão: Se
Creso cruzar o rio Hális, destruirá um grande império.
O império destruído não foi o de Ciro, como supunha Creso, mas
seu próprio reino. O deus não mentiu, mas a resposta foi
terrivelmente ambígua.
A respeito dessa particularidade do Oráculo de Delfos, vale a
pena mencionar o fr. 247 de Heráclito: “O deus soberano, cujo
oráculo está em Delfos, nem revela, nem oculta coisa alguma, mas
manifesta-se por sinais”. Ou seja: Apolo não esconde a verdade,
apenas faz que se lhe compreenda a vontade.
No que se refere aos propalados vapores que embriagavam a
Pitonisa no ádyton e ao êxtase e entusiasmo da mesma, é necessário,
ao menos, ventilar o assunto, que é complexo sob alguns ângulos, e
estabelecer o status quaestionis.
As tão comentadas exalações, que, emanando do solo, no Parnaso,
inebriavam pastores, cabras e, mais tarde, a Pitonisa, fazendo com
que os primeiros, tomados de entusiasmo, começassem a profetizar e
os animais entrassem numa grande excitação, nenhum índice
geológico até o momento as comprovou. Também a existência do
ádyton tem sido posta em dúvida, mas com menos intensidade, por
isso que a inexistência do mesmo, hodiernamente, se poderia
explicar por abalos sísmicos.
Acerca do êxtase e do entusiasmo da sacerdotisa, os quais seriam
de origem dionisíaca, muito se tem discutido. Há os que,
simplesmente, os negam. É o caso de Mircea Eliade, que se apoia para
tal fato em Plutarco e numa assertiva de Platão. Para Plutarco4, “O
deus contenta-se em colocar na Pítia as visões e a luz que iluminam o
futuro: nisso consiste o entusiasmo”. Apenas o historiador grego se
esqueceu de comentar “como essas visões e essa luz eram colocadas
na profetisa”. Não poderiam ser pelo êxtase e pelo entusiasmo?
Com respeito a Platão, comenta o autor da História das crenças e
das ideias religiosas: “Tem-se falado do delírio pítico, mas nada
indica os transes histéricos ou possessões do tipo dionisíaco”. Platão
comparava o delírio (maneîsa) da Pítia à inspiração poética devida às
Musas e ao arrebatamento amoroso de Afrodite5. Esta opinião do
filósofo ateniense colidirá, todavia, com outras do mesmo autor.
Com efeito, para os antigos gregos, a manía, a loucura sagrada,
alicerçada no êxtase e no entusiasmo, era inseparável de Dioniso. E
Platão, em outras passagens, insiste muito nesse ponto. E bem antes
dele Eurípides, nas Bacantes, pelos lábios de Tirésias, afirma que Baco
e sua mania fazem prever, com certeza, o futuro.
A dificuldade maior é explicar a presença de Dioniso em Delfos.
Uma presença tão marcante, que, no inverno, quando Apolo se
retirava para o país dos Hiperbóreos, o deus do ditirambo reinava
soberano no Parnaso, sem, no entanto, se imiscuir pessoalmente no
Oráculo. Há os que argumentam que Dioniso deve ter precedido ao
filho de Leto em Delfos e, nesse caso, a Pítia seria uma mênade
apolinizada, o que justificaria o êxtase e o entusiasmo na mesma,
uma vez que é impossível se negar o “parentesco” da manía com a
mântica. Tal fato, porém, não implica que o êxtase e o entusiasmo
obrigatoriamente desaguem em processo mântico: as Mênades ou
Bacantes, embora possuídas da manía báquica, não eram profetisas!
Outros opinam que a sizígia de dois deuses antagônicos como
Apolo e Dioniso traduziria uma das características básicas do
apolinismo: a conciliação e a harmonização dos diversos cultos e
ritos helênicos.
De outro lado, Dioniso jamais ameaçou Apolo, que sempre se
considerou o único e verdadeiro deus oracular da Hélade; o deus do
êxtase e do entusiasmo jamais lhe fez concorrência nesse terreno.
Dos três filhos divinos dos amores de Zeus (Hermes, Dioniso e
Apolo), este último se reservou o direito de ser o autêntico e único
intérprete do pensamento de seu pai. Sob esse aspecto, talvez se
pudesse compreender a Pitonisa como uma espécie de conciliação
ctônio-dionisíaco-apolínea. Seja como for, acreditando-se que a Pítia
entrasse em êxtase e entusiasmo, a “técnica” seria dionisíaca, mas o
“efeito” era apolíneo.
6
Não menos importante foi, a par da religiosa, a influência
político-social do Oráculo de Delfos.
Apesar das grandes dissenções internas que sempre grassaram
entre os habitantes da Hélade, o Oráculo de Delfos foi durante
muitos séculos um oásis nesse deserto de divergências. Como uma
espécie de super-Estado neutro, o célebre oráculo foi uma
manifestação contínua da unidade espiritual do helenismo: mau
grado as lutas fratricidas que sempre enxovalharam a bandeira da
unidade política da Grécia, esta procurou manter a qualquer preço a
inviolabilidade de Delfos, o que prova que os gregos, a despeito de
sua desunião, compreendiam que este centro de poder moral era a
coisa mais preciosa que possuíam em comum. E se na Hélade, como
todos sabem, jamais existiu união política, uma união muito forte
sempre houve: a religiosa. Pois bem, o responsável direto por essa
aliança no campo religioso foi o Oráculo de Delfos, que era como um
ditador em matéria de crença: legislava, executava e julgava... A par
da influência religiosa de Delfos, é incontestável a sua influência
política. Não obstante suas tendências aristocráticas, o que vale dizer,
suas simpatias por Esparta, bem como as atitudes um pouco
equívocas que tomou nas guerras greco-pérsicas, a influência de
Delfos foi muito salutar à pátria de Homero. Os sacerdotes apolíneos,
homens de vasta cultura e de grande visão política, foram
verdadeiros condutores da política interna e externa da Hélade.
Graves decisões políticas foram ditadas pelo Oráculo: quer se
tratasse da guerra, da paz, da administração interna e sobretudo da
expansão sempre crescente do povo grego. Foi graças também a
Delfos que a colonização helênica se propagou por todo o
Mediterrâneo. Inúmeras colônias se fundaram sob a égide de Apolo, e
o mais curioso é que, após o estabelecimento de uma colônia, a
influência religiosa e política do Oráculo continuava a manifestar-se
em todos os setores da vida interna e externa do novo pedaço da
Grécia. Positivamente, não se sabe o que mais admirar: se os
conhecimentos geográficos e etnográficos de Delfos, se a prudência e
visão com que administravam cidades e colônias, quer do ponto de
vista político, quer do ponto de vista religioso.
Platão, ao enunciar em sua República, 427b-c, os deveres de um
verdadeiro legislador, é a Apolo que aconselha se peçam as leis
fundamentais do Estado, porque “esse deus, exegeta nacional,
intérprete tradicional da religião, se estabeleceu no centro e no
umbigo da Terra, para guiar o gênero humano”.
7
Eram muitas as festas e os locais em que se prestava culto a
Apolo, sob múltiplos epítetos, consoante a expressão de Calímaco,
2,70: Πάντη δ'ε τοι οὔνομα πουλύ (pánte dé toi únoma pul×) – por
toda parte és invocado com muitos nomes. Vamos nos restringir aos
principais. O mais antigo deles na Grécia europeia deve ter sido a
ilha de Delos, pois que Leto, antes mesmo do nascimento do filho,
prometera que Apolo ergueria na ilha um templo magnífico, onde
funcionaria um oráculo para atender a todos os homens (Hh. Ap., I,
79ss.). O “magnífico” Oráculo de Delos, na realidade, foi logo
suplantado pelo de Delfos e até mesmo pelos de Claros e Dídimo,
ambos na Ásia Menor.
O berço de Apolo, contudo, continuou a ser o ponto de reencontro
dos jônios, que para lá afluíam anualmente, nas célebres Panegírias
(reuniões solenes e festivas) para celebrar Apolo com jogos e coros
(Hh. Ap., I, 146ss.). A delegação mais pomposa nas Panegírias, era a de
Atenas, cujos Θεωροί (Theoroí), “Teoros” (legados, embaixadores),
em número quase sempre de três, presidiam, em nome da Cidade de
Atená, à Anfictionia da ilha de Apolo. Nessa ocasião, Atenas enviava
a Delos um navio, que se dizia ser o mesmo em que Teseu conduzira a
Creta as quatorze vítimas do Minotauro e as livrou do monstro.
Enquanto duravam as festividades de Apolo Délfico e a viagem da
“nau de Teseu”, nenhum condenado podia ser executado em Atenas,
como aconteceu com Sócrates. Estendendo à ilha sagrada essa ânsia
de pureza absoluta, os atenienses, em 426 a.C., proibiram que “se
nascesse e se morresse” em Delos e até mesmo os restos mortais de
antigos habitantes, que lá descansavam, foram transferidos. Somente
não se tocou nos sepulcros das Virgens Hiperbóreas, considerados
locais de culto.
Além de Delos, o deus possuía dois santuários em Atenas, o de
Apolo Delfínio e o de Apolo Pítio, tendo sido este último inaugurado
solenemente por Pisístrato. Igualmente na Beócia eram dois os seus
santuários: o de Apolo Ismênio, em Tebas, um dos mais antigos da
Hélade e, perto do lago Copaide, o de Apolo Ptóos. Em Argos era
cultuado com o nome de Apolo Lício e, em Esparta, com o de Apolo
Carnio. Na Ásia Menor ficaram célebres seus templos de Dídimo,
perto de Mileto, e particularmente o de Claros, onde o deus foi
associado à sua irmã e vizinha, a Ártemis de Éfeso. Na Grécia
setentrional, na costa de Epiro, ou mais precisamente, na ilha
Leucádia, Apolo era titular de um templo famoso no píncaro do
penhasco branco de Lêucade, Λευκὰς πέτρη (Leukàs pétre), “o
rochedo de Lêucade”, como já o denominava Homero, Odiss., XXIV,
11. Era nesse rochedo fatídico que se praticava em tempos recuados o
rito ancestral do καταποντισμός (katapontismós), isto é,
“lançamento ao mar”, hábito esse que foi amenizado e suavizado na
época clássica. A precipitação “histórica” nas ondas do mar, em
Lêucade, de uma vítima humana, o conhecido φαρμακός
(pharmakós), quer dizer, “o que é imolado pelas faltas dos outros”, o
bode expiatório, era um sacrifício que se fazia em benefício da
coletividade. Assegurava-se, destarte, a salvação do todo pela
imolação de um só ou de um número muito reduzido de pessoas.
A partir de uma data difícil de se determinar, talvez lá pelo
século VIII a.C., o katapontismós compulsório foi substituído pelo
voluntário. Só se lançavam ao mar, do rochedo de Lêucade, os que
desejavam uma purificação ou liberação pessoal, um meio, além do
mais, seguro, para se libertar de uma paixão amorosa incontrolável.
O exemplo mítico que servia de respaldo foi o salto de Safo,
loucamente apaixonada pelo jovem Fáon, como se pode ler nas
Heroides, XV, de Públio Ovídio Nasão6. O salto de Safo para a morte
foi interpretado pela exegese pitagórica, possivelmente criadora
dessa lenda biográfica, como derradeiro esforço para se vencer um
amor profano, transmutando-o em amor sagrado, ao contato
catártico da aura (ar) de Apolo.
A prática do sacrifício do φαρμακός (pharmakós) pela
comunidade, origem certamente do salto do rochedo de Lêucade,
aparece bastante mitigado numa das mais populares e frequentadas
festas de Apolo, as Targélias, celebradas em honra do Καθάρσιος
(Kathársios), o “Purificador”, não só em Atenas, mas entre todos os
jônios. Essas festas solenes realizavam-se nos dias seis e sete do mês
Targélion (maio-junho), quando se aguardava a colheita anual.
Durante as Targélias se conduziam em procissão ramos de oliveira
envoltos em pequenas faxas e se as solenidades terminavam com
concursos de canto e música, o dia seis era consagrado às
purificações da pólis, com a expulsão espetacular dos φαρμακοί
(pharmakoí). Em Atenas eram dois os “bodes expiatórios” humanos:
um trazia ao pescoço um colar de figos brancos e outro de figos
negros, o que era interpretado como representação dos dois sexos. As
vítimas eram perseguidas sem tréguas pela cidade inteira: batia-se
nos pharmakoícom ramos de figueira e réstias de cebola, elementos
tidos por altamente catárticos. Em seguida se tirava a sorte e uma das
vítimas era morta ou expulsa para terras distantes.
O alvo desse rito era sempre o mesmo: provocar a fertilidade do
solo com o afastamento de todo e qualquer flagelo e resgate de algum
“miasma” oculto e ainda não expiado.
Outra grande comemoração em honra de Apolo eram as
Pianépsias, no dia sete do mês Pianépsion (outubro-novembro),
quando se cozinhavam fava, πύανος (p×anos), e outros legumes com
farinha de trigo e se oferecia essa panspermía ao deus. Ainda em
Atenas o filho de Leto fazia jus a uma terceira festa, as Delfínias, em
homenagem a Apolo Delfínio, cujo santuário teria sido obra de Egeu,
quando de seu retorno de Delfos, conforme a Medeia de Eurípides, o
que poderia explicar como Apolo Delfínio, protetor dos barcos e dos
navegantes, foi parar num templo (Delphínion) de Atenas.
Em Roma, onde, pelo menos desde os inícios do século IV a.C., já
se cultuava o filho de Leto, Apolo acabou por tornar-se o protetor
pessoal de Augusto, o primeiro imperador romano, que lhe mandou
construir um templo no monte Palatino, bem ao lado do palácio
imperial. Quando, no ano 17 a.C., se celebravam os Jogos Seculares, o
hino que se cantou, o Carmen Saeculare, Canto Secular, composto
por Quinto Horácio Flaco, foi, em grande parte, uma homenagem a
Apolo e à sua irmã gêmea Ártemis. A abertura solene do hino não
deixa dúvidas a esse respeito:
Phoebe siluarumque potens Diana, lucidum caeli
decus, o colendi semper et culti, date quae precamur
tempore sacro.
(Carm. Saec., 1-4)
– Febo, e tu, senhora das florestas, Diana,
ornamento luminoso do céu, vós sempre adoráveis
e sempre adorados, concedei-nos o que deprecamos
na data sagrada.
8
Viu-se, no início deste capítulo, que Apolo é o augusto deus sétimo.
O sete é, pois, o número do senhor do Oráculo de Delfos, o que não é
mera casualidade, pois que o sete se constituía para os antigos numa
síntese da sacralidade. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant fazem
uma longa dissertação acerca do simbolismo do número em pauta.
Vamos tentar resumi-la no que ela tem, a nosso ver, de mais
importante.
Sete corresponde, de saída, aos sete dias da semana, aos sete
planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas celestes, às sete
pétalas da rosa, aos sete ramos da árvore cósmica e sacrifical do
xamanismo, mas alguns setenários se ampliam e tornam-se símbolos
de outros: a rosa de sete pétalas evoca os sete céus e as sete
hierarquias angélicas, todos conjuntos perfeitos. Desse modo, sete
designa a totalidade das ordens planetárias e angélicas, a totalidade
das mansões celestes, a totalidade da ordem moral, a totalidade das
energias, sobretudo na ordem espiritual, constituindo-se assim, para
os egípcios no símbolo da vida eterna, uma vez que configura um
ciclo completo, uma perfeição dinâmica. Cada período do ciclo lunar
dura sete dias e os quatro (número também perfeito) períodos do
ciclo (4 X 7) fecham o mesmo.
O filósofo judaico Fílon de Alexandria (séc. I d.C.) observa, a esse
respeito, que a soma dos sete primeiros números (1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6
+ 7) chega ao mesmo resultado: 28.
Sete indica o sentido de uma transformação após um ciclo
completo e de uma renovação positiva. Sete não é na Grécia tão
somente o número característico de Apolo, pois que surge ainda com
frequência em outras denominações: as sete Hespérides, as sete
Portas de Tebas, os sete chefes, os sete filhos e sete filhas de Níobe, as
sete esferas, as sete cordas da lira...
As circumambulações de Meca compreendem sete voltas. O
hexagrama, como o Selo de Salomão, desde que se lhe acrescente o
centro, torna-se um sete inteiro. A semana (< do baixo latim
septimana, 7 dias) possui seis dias ativos e um dia de repouso,
figurado pelo centro. No cômputo antigo, o céu tem seis planetas: o
sétimo é o sol, que está no centro. O hexagrama, como a palavra
indica, tem seis ângulos, seis lados ou seis pontas de estrelas,
figurando o centro como sétimo; as seis direções do espaço possuem
um ponto mediano ou central, que forma o número sete, donde se
conclui que sete simboliza a totalidade do espaço e a totalidade do
tempo. Associando-lhe o número quatro, que configura a terra com
os quatro pontos cardeais e o três, que representa o céu, sete simboliza
a totalidade do universo em movimento. O setenário sintetiza
igualmente a totalidade da vida moral, acrescentando às três
virtudes teologais, fé, esperança e caridade, as quatro virtudes
cardeais, a prudência, a temperança, a justiça e a força. As setes cores
do arco-íris e as sete notas da escala diatônica mostram o setenário
como regulador das vibrações, as quais traduziam para muitas
tradições primitivas a própria essência da matéria. Sete, já se
observou, é o fecho de um ciclo e de sua renovação: Deus criou o
mundo em seis dias e descansou no sétimo, transformando-o em dia
santificado, donde o sábado não é, na realidade, um repouso exterior
à criação, mas seu coroamento, seu fecho na perfeição. É isto que
evoca a semana, duração de um quarto lunar. Para o Ismaelismo o
sólido possui sete lados, seis faces mais sua totalidade, que
corresponde ao sábado. Tudo que existe no mundo é sete, porque
cada coisa possui sua ipseidade e seis lados. Os dons da inteligência,
afirmam igualmente os Ismaelitas, são sete, seis mais a ghaybat, o
conhecimento suprassensível. Desse modo, o arco-íris não possui sete
cores, mas seis: a sétima é o branco, síntese das seis outras.
Diz S. Clemente de Alexandria que emanam de Deus as seis
durações e as seis fases do tempo e nisto consiste o segredo do
número sete: o retorno ao Centro, ao Princípio. No fim do
desenvolvimento senário completa-se o setenário. Símbolo universal
de uma totalidade em movimento ou de um dinamismo total, sete é a
chave do Apocalipse, onde aparece quarenta vezes: sete igrejas, sete
estrelas, sete Espíritos de Deus, sete selos, sete trombetas, sete trovões,
sete cabeças, sete pestes, sete reis. Sete é o número dos céus búdicos. O
árabe Ibn Sina (Avicena, 980-1036) descreve os Sete Arcanjos
príncipes dos sete céus, que são os Guardiães de Henoc e
correspondem aos sete Rishi védicos. Estes habitam as sete estrelas
da Grande Ursa com as quais os chineses relacionam as sete
aberturas do corpo e as sete aberturas do coração. A lâmpada
vermelha das sociedades secretas chinesas tem sete braços como o
castiçal dos hebreus. Observe-se que o Ioga conhece igualmente sete
centros sutis: os seis chakra e o sahasrârapadma.
Quarenta e nove (7 X 7) é o número do Bardo, o estado
intermediário que se segue à morte, entre os tibetanos: tal estado dura
quarenta e nove dias, divididos, no início ao menos, em sete períodos
de sete dias. Acredita-se que as almas japonesas permanecem
quarenta e nove dias sobre o teto das casas, o que vem a dar no
mesmo.
O número sete é empregado com muita frequência na Bíblia: só
no Antigo Testamento aparece setenta e sete vezes, constituindo esta
cifra, de per si, um número mágico. Temos, assim, no Antigo
Testamento, entre outros exemplos: castiçal de sete braços; sete
espíritos que repousam sobre o tronco de Jessé; sete são os céus, onde
habitam as ordens angélicas; Salomão construiu o Templo em sete
anos (1Rs 6,38). Não apenas o sétimo dia, mas também o sétimo ano
era de repouso: todos os sete anos os servidores eram liberados, os
devedores perdoados. Pela própria transformação, que inaugura, o
número sete passa a ter um poder extraordinário: quando da tomada
de Jericó, sete sacerdotes, que levavam sete trombetas, deviam, no
sétimo dia, dar sete voltas em torno da cidade; Eliseu espirrou sete
vezes e a criança ressuscitou (2Rs 4,35). Um leproso se banhou sete
vezes no rio Jordão e saiu curado (2Rs 5,14); o justo cairá sete vezes e
tornará a se levantar (Pr 24,16). Sete animais puros de cada espécie
serão salvos do dilúvio. José sonhou com sete vacas gordas e sete
vacas magras.
Sete, enfim, é o número querido e preferido da aritmética bíblica.
Pelo fato de corresponder ao número dos planetas, sete caracteriza
sempre a perfeição, o que a gnose denomina πλήρωμα (pléroma),
pleroma, “o que está completo”. A semana tem sete dias em memória
do tempo que durou a criação. Se a festa pascal dos pães ázimos cobre
sete dias é certamente porque o Êxodo é tido como nova criação, a
criação salvadora.
Zacarias (3,9) fala dos sete olhos de Deus. Os setenários do
Apocalipse de João, como as sete lâmpadas que são os sete espíritos de
Deus (o que quer dizer o espírito inteiro de Deus), as sete cartas às sete
Igrejas (o que corresponde à Igreja inteira), as sete trombetas,
anunciam a execução final da vontade de Deus no mundo.
Assim se explica também por que sete é o número de Satã, que
tudo faz para imitar e copiar Deus, “o macaco de Deus”. Por isso a
besta infernal do Apocalipse tem sete cabeças. João, no entanto,
reserva, as mais das vezes, aos espíritos do mal a metade de sete, três e
meio, comprovando, dessa maneira, o fracasso total do Maligno,
porque, reduzido à metade, suas forças deixam de atuar. O dragão
não poderá ameaçar a mulher (a Igreja de Deus) por mais de 1260
dias (Ap 12,6), isto é, três anos e meio. Também em Ap 12,14 se fala de
três tempos e meio, para que a mulher fique fora do alcance da
serpente.
Sete configura o remate do mundo e a plenitude dos tempos.
Consoante Santo Agostinho, sete mede o tempo da história, o tempo
da peregrinação terrestre do homem. Se Deus elegeu este dia para
repousar, é porque Ele queria se distinguir da Criação, ser
independente dela e permitir-lhe descansar no próprio Deus. De
outro lado, o homem, através do número sete, que indica o repouso, a
cessação do trabalho, está convidado a voltar-se para Deus e apenas
em Deus descansar. Desse modo, para o Santo de Hipona, seis designa
uma parte, porque o trabalho está na parte; só o repouso (sete)
significa o todo, porque traduz a perfeição. Nós sofremos, por
conhecermos tão somente a parte, sem a plenitude do reencontro
com Deus. O que é parte, um dia, se dissipará e o sete há de coroar o
seis (De Ciuitate Dei, 11,31).
Segundo o Talmude, sete é símbolo da totalidade humana, macho
e fêmea, simultaneamente, o que se explica pela adição de quatro e
de três: é que Adão, nas horas de sua primeira jornada, recebeu a
alma, que lhe deu a existência por completo, à hora quarta e, à hora
sétima, recebeu sua companheira, permitindo-lhe desdobrar-se em
Adão e Eva.
Sem sair da Bíblia, e para terminar esta primeira parte do estudo
do sete com ela, porque os exemplos, citações e símbolos bíblicos do
sete poderiam ainda se multiplicar por sete vezes sete, vejamos uma
quadrinha do folclore nordestino, que é, por sua vez, uma
reminiscência de um episódio célebre da Sagrada Escritura (Tb 3,715; 7,1–10,13): Sete vezes fui casada,
Sete homens conheci;
E juro por fé de Cristo,
Inda estou como nasci.
Que mulher se teria casado sete vezes e permanecido virgem?
Trata-se, obviamente, da história de Sara, filha de Ragüel, de
Ecbátana. Sara, conforme o relato bíblico, se casara sete vezes, sem
consumar o matrimônio, porque os sete maridos haviam sido mortos,
nas sete noites de núpcias, pelo demônio Asmodeu, que habitava o
corpo da linda filha de Ragüel. Exorcizado por Tobias, Asmodeu
tentou fugir, mas foi acorrentado pelo anjo do Senhor e levado para
os desertos do alto Egito. Após três noites de oração, Sara e Tobias
consumaram em paz e no amor seu casamento.
Tudo isto aconteceu sete séculos antes de Cristo!
9
Paramos em Tobias e em seu grande amor por Sara. Vejamos,
agora, se bem que resumidamente, o símbolo de uma ave que é
exatamente a grande integração do amor.
Tão logo nasceu, Apolo foi levado para o país dos Hiperbóreos
por cisnes de uma brancura imaculada. Da Grécia à Sibéria, da Ásia
Menor aos povos eslavos e germânicos, um vasto conjunto de
mitologemas celebra o Cisne, cuja brancura, vivacidade e graça se
constituem numa verdadeira epifania da luz. Mas, assim como
existem duas colorações para o cisne, a branca e a negra, de duas
maneiras igualmente se nos apresenta a luz: a do dia, solar e
masculina, e a da noite, lunar e feminina. Na medida em que encarna
uma ou outra, o simbolismo da ave de Febo Apolo inflete numa ou
noutra direção. Sintetizando as duas, o que é frequente, o cisne se
torna andrógino, carregando-se mais ainda de mistério sagrado. Um
conto, de cunho popular e com inúmeras variantes, comum aos
povos altaicos, eslavos, escandinavos e iranianos, mostra, com muita
clareza, os dois lados do símbolo7.
Certa feita, um caçador surpreendeu três jovens lindíssimas que
se banhavam num lago solitário. Eram três cisnes, que se haviam
despido de seu manto de plumas para entrar na água. O astuto
caçador escondeu uma das “indumentárias”, o que lhe permitiu
desposar uma das jovens. Este cisne fêmea, após lhe dar onze filhos e
seis filhas, retomou sua plumagem e alçou voo em direção ao céu,
dizendo ao caçador as seguintes palavras: “Vocês, seres terrestres,
permanecerão na terra; eu, porém, pertenço ao céu e para lá voltarei.
Cada ano, na primavera, quando virem os cisnes passar, voando em
direção ao norte e, no outono, regressando ao sul, comemorem nossa
passagem com cerimônias especiais”.
Numa variante, entre os povos altaicos, o cisne fêmea é
substituído pela gansa, como o poderia ser pela gaivota ou pomba,
tantos são os avatares do cisne. Neste e em outros contos, a ave da luz,
de beleza fascinante e imaculada, configura a virgem celeste, que
será fecundada pela água ou pela terra – o lago ou o caçador –, para
dar origem ao gênero humano, deixando a luz celeste, neste caso, de
ser masculina e fecundante, para tornar-se feminina e fecundada.
A hierogamia egípcia Terra-Céu é significativa a esse respeito:
Nut, deusa do Céu, é fecundada por Geb, deus da Terra. Trata-se, no
caso, da luz lunar, leitosa e doce, de uma virgem mítica.
Mas é sobretudo na luz pura da Hélade que o cisne, companheiro
inseparável de Apolo, encarna com mais frequência a luz masculina,
solar e fecundante.
Se Apolo é também, como se viu, e em grau superlativo, o deus
das Musas e da mântica, o cisne é símbolo da força do poeta e da
poesia, o emblema do vate inspirado, a insígnia do sacerdote sagrado,
do druida vestido de branco, do bardo nórdico...
O mito de Zeus e Leda, comentado no Vol. I, p. 118-119, à primeira
vista, retoma a interpretação masculina e diurna do simbolismo do
cisne, mas examinando o mitologema um pouco mais de perto, pode
se chegar a uma outra conclusão, o que bem patenteia a
complexidade do mito e de seus símbolos...
Zeus, nos diz o mito, só se transformou em cisne, para conquistar
Leda, depois que esta, para fugir-lhe, se metamorfoseou em gansa. A
gansa, já se falou, é um avatar do cisne em sua acepção lunar e fêmea.
Os amores de Zeus-cisne e Leda-gansa representam, assim, uma
bipolarização do símbolo, o que leva a pensar que os gregos,
fundindo as duas acepções diurna e noturna, fizeram do cisne um
símbolo hermafrodito, em que Zeus e Leda são a mesma personagem.
Para Bachelard8, “a imagem do cisne é hermafrodito. O cisne é
feminino na contemplação das águas luminosas e é masculino na
ação. Para o inconsciente, a ação é um ato”. A imagem do cisne tornase, então, para Bachelard como a do Desejo, que busca a fusão das
duas polaridades do mundo, manifestadas em suas duas luminárias,
o sol e a lua. Pode-se, destarte, interpretar o canto do cisne como as
palavras quentes e eloquentes do amante, antes daquele momento
tão fatal à exaltação que é verdadeiramente a morte amorosa. O cisne
morre cantando e canta morrendo, convertendo-se, de fato, no
símbolo do desejo primeiro, que é o desejo sexual.
O canto do cisne parece estar latente na cadeia simbólica luzpalavra-sêmen, de acordo com a aproximação que faz Jung do
radical sven, do sânscrito svan, “murmurar”, chegando à conclusão de
que o canto do cisne (Schwan), ave solar, é tão somente a
manifestação mítica do isomorfismo etimológico da luz e da palavra.
No Extremo Oriente, o cisne é ainda símbolo de nobreza, de
elegância e de coragem. Símbolo também da música e do canto,
enquanto a gansa selvagem, cuja desconfiança se conhece bem, o é
da prudência. Da gansa se serve o I Ching para indicar as etapas de
uma progressão circunspecta, uma progressão, claro está, suscetível
de uma interpretação espiritual. O cisne e a gansa, porém, não se
distinguem com nitidez na iconografia hindu, de tal modo que o
cisne (hamsa) de Brahma, que lhe serve de montaria, possui o aspecto
da gansa. Aliás, o parentesco etimológico de hamsa, cisne e do latim
anser, ganso, parece claro. Hamsa, montaria de Varuna, é ave
aquática, mas, enquanto montaria de Brahma, é símbolo de elevação
do mundo informal para o céu do conhecimento.
O simbolismo do cisne além disso está ligado ao ovo do mundo,
que ele põe ou choca, como a gansa do Nilo, no Egito antigo; a hamsa
chocando Brahmanda nas águas primordiais da tradição hindu e ao
ovo de Leda e Zeus, de que nasceram os imortais Pólux e Helena (V.
Helena, o eterno feminino).
O cisne participa igualmente da simbólica da alquimia, uma vez
que a ave de Apolo sempre foi considerada como emblema do
mercúrio, de que participa pela cor, pela mobilidade e pela
volatilidade, configurada em suas asas.
O cisne expressa um centro místico e a união dos opostos (água –
fogo), em que se encontra seu valor arquetípico de andrógino.
O canto do cisne configura o mercúrio, que, condenado à morte e à
decomposição, transmite sua alma ao corpo interno, proveniente do
metal imperfeito, inerte e dissolvido.
Foi numa homenagem diáfana ao canto do cisne, à sizígia
indissolúvel do amor, a arte que faz que cada um seja ambos, que o
poeta fluminense de Bom Jardim, Júlio Mário Salusse, nos deixou o
lindíssimo soneto, Os Cisnes:
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul sem ondas, sem espumas.
Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!
1. Hélio, em grego Ἤλιος Hélios), da raiz indo-europeia *sawélios, “o que brilha”, é a
personificação do Sol. Hélio, o Sol, pertencia à geração dos Titãs, portanto um deus anterior
aos Olímpicos. Filho de Hiperíon e Teia, tinha por irmãos a Eos (Aurora) e Selene (Lua),
como se apontou no Vol. I, p. 165-166 e 283. Casou-se com Perseis, filha de Oceano e Tétis. Foi
pai da grande mágica Circe; de Eetes, rei da Cólquida; de Pasífae, mulher do rei Minos, e de
Perses, que destronou a Eetes, mas acabou sendo morto pela sobrinha Medeia, quando esta
retornou da Grécia. Hélio era representado como um jovem de grande beleza, com a cabeça
cercada de raios, como se fora uma cabeleira de ouro. Percorria o céu num carro de fogo
tirado por quatro cavalos de extraordinária velocidade: Pírois, Eoo, Éton e Flégon, nomes que
traduzem fogo, chama e brilho. Cada manhã, precedido pelo carro da Aurora, o deus
avançava impetuosamente por um itinerário que passava pelo meio do céu, chegando, à
tarde, ao Oceano (poente), onde banhava seus cavalos fatigados. Repousava num palácio de
ouro e, pela manhã, recomeçava seu trajeto diário. O itinerário de Hélio, porém, sob a terra
ou sobre o Oceano, que a cercava, foi substituído, com os progressos da astronomia grega,
pelo itinerário de Febo Apolo, bem mais longo, através da abóbada celeste, mas bem mais
correto. Tendo perdido “o caminho”, Hélio tornou-se uma divindade secundária no Panteão
helênico e, o mais tardar, a partir de Ésquilo, foi substituído por Febo Apolo. Hélio é
considerado no mito grego como o olho do mundo, aquele que tudo vê.
2. .Quirão, em grego Χείρων(Kheíron), nome que é, possivelmente, uma abreviatura de
χειροθρυγός (kheirurgós), “que trabalha ou age com as mãos”, cirurgião, pois que esse
Centauro foi um grande médico, que sabia muito bem compreender seus pacientes, por ser
um médico ferido. Filho do deus Crono e de Fílira, pertencia à geração divina dos Olímpicos.
Pelo fato de Crono ter-se unido a Fílira sob a forma de um cavalo, o Centauro possuía dupla
natureza: equina e humana. Vivia numa gruta, no monte Pélion, e era um gênio benfazejo,
amigo dos homens. Sábio, ensinava música, arte da guerra e da caça, a moral, mas sobretudo
a medicina. Foi o grande educador de heróis, entre outros, de Jasão, Peleu, Aquiles e Asclépio.
Quando do massacre dos Centauros por Héracles, Quirão, que estava ao lado do herói e era
seu amigo, foi acidentalmente ferido por uma flecha envenenada do filho de Alcmena. O
Centauro aplicou unguentos sobre o ferimento, mas este era incurável. Recolhido à sua
gruta, Quirão desejou morrer, mas nem isso conseguiu, porque era imortal. Por fim,
Prometeu, que nascera mortal, cedeu-lhe seu direito à morte e o Centauro então pôde
descansar. Conta-se que Quirão subiu ao céu sob a forma da constelação do Sagitário, uma
vez que a flecha, em latim sagitta, a que se assimila o Sagitário, estabelece a síntese dinâmica
do homem, voando através do conhecimento para sua transformação, de ser animal em ser
espiritual. Para a etimologia veja-se ainda o Dicionário mítico-etimológico.
3. .ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 107.
4. .PLUTARCO. Pítia, 7,397.
5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 104s.
6. Epistulae, Cartas, ou como foram chamadas mais tarde Heroidum Epistulae, Cartas de
Heroínas, ou ainda simplesmente Heroides, Heroides, são vinte e uma cartas de amor,
dirigidas por heroínas a seus amados e por estes àquelas, em forma de resposta (Cartas XVI,
XVIII e XX). Veja-se o Prefácio que fizemos à excelente edição das Heroides, do Prof. Walter
Vergna. Rio de Janeiro: Granet Lawer, 1975.
7. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 332ss.
8. BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 52.
CAPÍTULO IV
Dioniso ou Baco: o deus do êxtase e
do entusiasmo
1
DIONISO, em grego Διόνυσος (Diónysos), é palavra ainda sem
etimologia definida. Talvez o teônimo seja um composto do genitivo
Διο(ς) – (Dio(s) – nome do céu em trácio e de Νῦσα (Nysa), filho,
donde Dioniso seria “o filho do céu”. Quanto a Baco, em grego
Βάκχος (Bákkhos) e seus vários derivados, como Βάκχη (Bákkhe),
Bacante e o verbo βακχεύειν (bakkheúein) “ser tomado de um
delírio sagrado”, também não possuem um étimo seguro. A tentativa
de Carnoy1 de fazer “eclodir” Dioniso de um elemento διο (dio-),
“céu” e de nuzo, do indo-europeu * sneudh, “escorrer”, por ser Dioniso
“o deus da seiva úmida que circula nas plantas” é francamente voltar
à Volksetymologisch... V. Dicionário mítico-etimológico, verbete.
Trata-se, sem dúvida, de dois nomes importados, provavelmente
da Trácia. Quanto a Baco, deus grego e não romano (o latim
Bacchusque, à época da helenização de Roma e do sincretismo
religioso greco-latino, suplantou oLiberdos latinos, é mera
transliteração do grego Bákkhos); quanto a Baco, repetimos, que não
aparece em Homero, Hesíodo, Píndaro e Ésquilo, somente surgiu na
literatura grega no século V a.C., a partir de Heródoto e sobretudo no
Édipo Rei de Sófocles, v. 211.
Três outros epítetos de Dioniso, Iaco, Brômio e Zagreu merecem
igualmente um ligeiro comentário, Iaco, em grego Ἵακχος (Íakkhos),
é um avatar de Dioniso. Via-se nele o deus que conduzia a procissão
dos Iniciados nos Mistérios de Elêusis e que era identificado
misticamente com Baco. Etimologicamente, Iaco provém de ἰακχή
(iakkhé), “grande grito”. Trata-se, em princípio, de uma exclamação
ritual, de que nasceu a ideia da presença, no cortejo dos Iniciados, de
um daímon(gênio), o místico Iaco (o Iaco dos Mistérios), que
projetava, de certa forma, a alma coletiva e a expressão do
entusiasmo de que era tomada, como antegozo da iniciação, a
multidão dos peregrinos em marcha para Elêusis. Daímon de
Deméter, Iaco era o arkheguétes, o introdutor dos mistérios, como o
denomina, com justiça, Estrabão. Na comédia de Aristófanes, As Rãs,
316ss., o Coro dos Iniciados continua a invocá-lo na outra vida, como
seu guia e corifeu.
BRÔMIO, em grego Βρόμιος (Brómios), é um dos epítetos mais
frequentes de Dioniso nos hinos que imitam os cantos litúrgicos,
entoados em seu culto. Do ponto de vista etimológico, Βρόμιος
(Brómios) se prende a βρόμος (brómos), “estremecimento, frêmito,
ruído surdo e prolongado”, cuja fonte é o verbo βρέμειν (brémein),
“fremir, agitar-se”, donde Brômio é o “ruidoso, o fremente, o
palpitante”, significação que se harmoniza perfeitamente com a
agitação e o tremor, acompanhados de estertores e surdos rugidos,
que assinalavam o estado de transe com a presença do deus que se
apossou de seus adoradores.
ZAGREU, em grego Ζαγρεύς (Dzagreús), é um dos nomes pelos quais
é chamado o deus do êxtase e do entusiasmo no mundo
mediterrâneo e particularmente, ao que parece, na ilha de Creta.
Talvez o deus designe uma divindade, que, por força de analogias de
seu culto com o de Dioniso, com este se tenha confundido, em época
difícil de se precisar. Tendo-se tornado um dos nomes de Dioniso
místico e, tendo permanecido religiosamente mais fiel ao Dioniso
arcaico do antigo mundo insular, jamais se assimilou de todo ao
“segundo Dioniso”, que, conforme se verá, era filho de Sêmele.
A etimologia, já familiar aos antigos, do nome de Zagreu, como
Grande Caçador, tão defendida por Wilamowitz, é de cunho
popular. O deus, possivelmente, de origem oriental, é chamado
Zagreu sobretudo na Ásia Menor e em Creta. E se Zagreu, como
epíteto, raramente aparece em textos da época clássica, seu nome,
todavia, já é atestado desde o século VI a.C. Ésquilo, em fragmentos
de algumas de suas peças perdidas, faz de Zagreu o equivalente de
Hades ou Plutão, ou mesmo seu filho, mas Eurípides o menciona
entre as divindades cultuadas por confrarias religiosas que ele supõe
terem existido desde a época de Minos e cujos membros formam o
coro de sua tragédia Os Cretenses. Esse Grande Caçador é um
Caçador noturno: o coro da tragédia citada dá-lhe o epíteto de
nyktipólos, “noctívago”, o mesmo que empregara Heráclito para
designar os seguidores de Dioniso. A menção da omofagia, a alusão
ao orgiasmo e ao culto da Grande Mãe, a qualificação de boieiro
permitem adiantar que Eurípides situava Zagreu numa atmosfera
religiosa intencionalmente dionisíaca. Fundindo os dois, os Órficos
hão de fazer de Zagreu o primeiro Dioniso.
2
Dioniso é o deus da μεταμόρφωσις (metamórphosis), quer dizer,
o deus da transformação. Antes de chegarmos lá, uma ligeira
explicação de ordem histórica.
Até a década de 1950, muitos pensavam e escreviam que Dioniso,
deus importado, possivelmente da Trácia, havia chegado à Hélade
quando muito lá pelo século IX a.C., uma vez que seu primeiro
aparecimento teria sido na Ilíada, VI, 130-140, no famoso episódio de
Licurgo, narrado por Diomedes. Este herói conta como Licurgo, filho
de Drias e rei dos edônios, na Trácia, perseguiu a Dioniso e as suas
nutrizes sobre o monte Nisa2. Estas lançaram por terra seus tirsos e
fugiram; o deus, ainda adolescente, mas já possuído da loucura
sagrada, damanía, apavorado com as ameaças do rei, lançou-se ao
mar, onde foi acolhido por Tétis. Os deuses, todavia, se encarregaram
da vingança e Zeus cegou ao rei dos edônios.
Diga-se, logo, que a perseguição a Dioniso, sob a perspectiva
mítica, faz parte de um rito iniciático e catártico: a purificação pela
água. Este é um dos temas bem atestados em quase todas as culturas
primitivas. O episódio da perseguição aparece em determinados
momentos das festas e cerimônias a que o filho de Sêmele presidia.
Plutarco, falando das Agriônias, festas “selvagens e cruéis” em honra
de Dioniso, em Orcômeno, na Beócia, informa que, durante as
mesmas, uma das Miníades3 (as primeiras Mênades ou Bacantes da
tradição local) era sacrificada (simbolicamente, ao menos na época
histórica) pelo sacerdote do deus. Dioniso e seu séquito corriam,
perseguidos pelo sacerdote, em direção a um rio. Trata-se, como é
óbvio, de uma alusão a alguma prática de banho ritual, como
preliminar ou conclusão de uma cerimônia religiosa. Já se viu, no
Vol. I, p. 316, como os Iniciados, de modo tumultuoso, se dirigiam ao
mar para se purificarem, antes das cerimônias que se realizariam
pouco depois em Elêusis. Um mito da cidade tebana de Tanagra,
conservado por Pausânias, atesta que as mulheres tinham por hábito
purificar-se no mar, antes de se entregarem às orgias báquicas.
A perseguição de Dioniso por Licurgo insere-se e sintetiza, de
outro lado, a perseguição à vítima sacrifical, rito em que o deus se
apresenta, por vezes, em forma de touro ou de bode. Foi assim que
Penteu, vítima da μανία (manía), da loucura sagrada, como se há de
assinalar, desejando acorrentar o deus, o vê sob a forma de touro, que
não é outra coisa senão o próprio Dioniso dissimulado pela máscara:
Tu, que me guias, parece que tens um aspecto de touro.
Creio que nasceram cornos em tua cabeça.
Eras, anteriormente, um animal feroz?
Eis que te transformaste em touro!
(Eur. Bacantes, 920-922)
As perseguições a Dioniso pelos piratas etruscos ou por Perseu,
que, com seus soldados, precipitou o deus e suas “mulheres-do-mar”
no fundo do pântano de Lerna, se inscrevem na mesma linha de
raciocínio.
Se, porém, se analisar a perseguição de Licurgo e de Penteu sob
um ângulo mais político, poder-se-á ver em ambas, e a esse respeito
se falará um pouco mais adiante, uma séria e longa oposição à
penetração do culto de Dioniso na pólis aristocrática da Grécia
antiga.
Viu-se que o deus do êxtase e do entusiasmo, até mais ou menos a
década dos anos 1950, era considerado como uma divindade que
chegara tardiamente à Hélade. Pois bem, a partir de 1952, as coisas se
modificaram: é que a decifração de uma parte dos hieróglifos
cretomicênicos por Michael Ventris, segundo se mostrou no Vol. I, p.
54, ou mais precisamente, a decifração da Linear B, consoante a
classificação de Arthur Evans, demonstrou que o deus já estava
presente na Hélade, pelo menos desde o século XIV ou XIII a.C.,
conforme atesta a tableta X de Pilos. Há de se perguntar por que um
deus tão importante, já documentado no século XIV, só se manifesta
e de forma aparentemente grotesca, no século IX, e só a partir dos
fins do século VII a.C. tem sua entrada solene na mitologia e na
literatura? É quase certo que o adiado aparecimento de Dioniso e sua
tardia explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a
causas políticas. Por agora, porque se voltará ao assunto, apenas a
epígrafe: Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus
dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo o filho de Sémele era
uma séria ameaça à pólisaristocrática, à pólisdos Eupátridas, ao status
quovigente, cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses
olímpicos.
3
Um deus importado não penetra na Grécia sem um batismo de
ordem mítica. Consoante o sincretismo órfico-dionisíaco, dos amores
de Zeus e Perséfone nasceu o primeiro Dioniso, chamado mais
comumente Zagreu. Preferido do pai dos deuses e dos homens, estava
destinado a sucedê-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o
contrário. Para proteger o filho dos ciúmes de sua esposa Hera, Zeus
confiou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o esconderam
nas florestas do Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro
do jovem deus e encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. Com o
rosto polvilhado de gesso, a fim de não se darem a conhecer, os Titãs
atraíram o pequenino Zagreu com brinquedos místicos: ossinhos,
pião, carrapeta, “crepundia” e espelho. De posse do filho de Zeus, os
enviados de Hera fizeram-no em pedaços; cozinharam-lhe as carnes
num caldeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas
cinzas nasceram os homens, o que explica no ser humano os dois
lados: o bem e o mal. A nossa parte titânica é a matriz do mal, mas,
como os Titãs haviam devorado a Dioniso, a este se deve o que existe
de bom em cada um de nós. Na “atração, morte e cozimento” de
Zagreu há vários indícios de ritos iniciáticos. Diga-se, logo, que, sendo
um deus, Dioniso propriamente não morre, pois que o mesmo
renasce do próprio coração. A morte, desse modo, não afeta a
imortalidade do filho de Zeus, donde provém, certamente, sua
identificação com Osíris o “morto imortal” (Heród., 2,42; Plut., Ísis e
Osíris, 35,364 F) e com o imortal deus da morte, Plutão (Heráclito,
frag. 15). Destarte, a “morte” de Dioniso nada mais é que uma catábase
seguida, de imediato, de uma anábase.
De saída, cobrir o rosto com pó de gesso ou com cinzas é um rito
arcaico de iniciação: os neófitos, como assinala Mircea Eliade4,
cobriam as faces com pó de gesso ou cinza para se assemelharem aos
eídola, aos fantasmas, o que traduz a morte ritual. Em Atenas,
durante os mistérios de Sabázio, “este outro Dioniso”, um dos ritos
iniciáticos consistia em aspergir os neófitos com pó ou com gesso.
Demóstenes (384-322 a.C.), o maior orador da Hélade, em seu
universalmente famoso discurso, A Oração da Coroa, 259, desdenha
de seu adversário Ésquines, afirmando que o mesmo, para ajudar a
mãe, que se ocupava de magia, ungia os iniciados com argila e farelo.
Diga-se, aliás, de passagem, que, por etimologia popular, se associou
τίτανος (títanos), “gesso”, com Τιτᾶνες (Titânes), “Titãs”, o que de
qualquer forma patenteia o complexo místico-ritual.
Quanto aos brinquedos, que são verdadeiros símbolos de
iniciação, demarcando a idade infantil, por oposição aos sofrimentos
da adolescência, que àquela se seguem, são atestados em muitas
culturas. As crepundia, quer dizer, argolas de marfim ou pequenos
chocalhos, que se colocavam no pescoço das crianças, os ossinhos e o
pião tinham um sentido preciso: não existe teleté, isto é, cerimônia de
iniciação, sem “determinados ruídos”. Um deus se atraía e se atrai
com flauta e tambores... Acrescente-se também que crepundia e
ossinhos possuíam um decisivo poder apotropaico, pois repeliam
influências malignas e demoníacas. Lúcio Apuleio, nascido por volta
de 125 d.C., que foi um verdadeiro colecionador de iniciações no
segundo século de nossa era e que se vangloriava de ser iniciado nos
mistérios de Dioniso, fala de objetos misteriosos, usados por
iniciados: a esses objetos o escritor dá o nome de crepundia. O
espelho, a partir do qual, especulando, vemos o que somos e o que não
somos, objeto muito comum em ritos iniciáticos, tem, entre muitas
finalidades que se lhe atribuem, a de captar com a imagem, que nele
se reflete, a alma do refletido. Olhando-se no espelho, Zagreu tornouse presa fácil dos Titãs...
O dado central do mito foram o desmembramento do menino
divino e seu cozimento num caldeirão. Trata-se de um assunto
mítico com muitas versões e inúmeras variantes, mas, ao menos na
Grécia, todas convergem para um tema comum. Jeanmaire, em sua
obra monumental5, lembra que a cocção, sobretudo num caldeirão,
ou a passagem pelas chamas constitui uma operação mágica, um rito
iniciático, que visam a conferir um rejuvenescimento; especialmente,
em se tratando de uma criança, o rito tem por objetivo outorgar
virtudes diversas, a começar pela imortalidade. Viu-se, a esse
respeito, no Vol. I, p. 308-310, a tentativa de Deméter de imortalizar
Demofonte. Tétis submeteu Aquiles a idêntica cerimônia. As filhas
de Pélias, a conselho da mágica Medeia, cortam o pai em pedaços e
põem-no a cozer num caldeirão, com o fito de rejuvenescê-lo.
Acentua Mircea Eliade que “os dois ritos – desmembramento e
cocção ou passagem pelo fogo – caracterizam as iniciações
xamânicas. De fato, os Titãs comportam-se como Mestres de
iniciação, no sentido de que matam o neófito, a fim de fazê-lo
“renascer” numa forma superior de existência”.6 Plutarco (De Iside et
Osiride – Acerca de Ísis e Osíris, 35), falando do caráter iniciático dos
ritos dionisíacos em Delfos, quando as mulheres celebravam o
renascimento do filho de Sêmele, afirma que o cesto délfico
“continha um Dioniso desmembrado e prestes a renascer, um
Zagreu” e esse Dioniso “que renascia como Zagreu era ao mesmo
tempo o Dioniso tebano, filho de Zeus e de Sêmele”.
É que, de fato, Zagreu voltou à vida. Atená, outros dizem que
Deméter, salvou-lhe o coração que ainda palpitava. Engolindo-o, a
princesa tebana Sêmele tornou-se grávida do segundo Dioniso. O
mito possui muitas variantes, principalmente aquela segundo a qual
fora Zeus quem engolira o coração do filho, antes de fecundar
Sêmele. A respeito de Sêmele diga-se logo que se trata de uma avatar
de uma Grande Mãe, que, decaída, porque substituída em função de
grandes sincretismos operados no seio da religião grega, se tornou
uma simples princesa tebana, irmã de Agave, Ino e Autônoe, todas
filhas do legendário herói do ciclo tebano, Cadmo, e de Harmonia.
A etimologia de Σεμέλη (Seméle) e de Semelo, frígio ζεμελῶ
(dzemelô), postulada por P. Kretschmer, como oriunda do tracofrígio,
com o significado de “terra”, é hoje normalmente aceita.
Tendo, pois, engolido o coração de Zagreu ou fecundada por Zeus,
Sêmele ficou grávida do segundo Dioniso. Hera, no entanto, estava
vigilante. Ao ter conhecimento das relações amorosas de Sêmele com
o esposo, resolveu eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa
tebana, aconselhou-a a pedir ao amante que se lhe apresentasse em
todo o seu esplendor. O deus advertiu a Sêmele de que semelhante
pedido lhe seria funesto, uma vez que um mortal, revestido da
matéria, não tem estrutura para suportar a epifania de um deus
imortal. Mas, como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais
contrariar-lhe os desejos, Zeus apresentou-se-lhe com seus raios e
trovões. O palácio da princesa se incendiou e esta morreu
carbonizada. O feto, o futuro Dioniso, foi salvo por gesto dramático
do pai dos deuses e dos homens: Zeus recolheu apressadamente do
ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em
sua coxa, até que se completasse a gestação normal. Tão logo nasceu
o filho de Zeus, Hermes, o recolheu e levou-o, às escondidas, para a
corte de Átamas, rei beócio de Queroneia, casado com a irmã de
Sêmele, Ino, a quem o menino foi entregue. Irritada com a acolhida
ao filho adulterino do esposo, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou
seu filho caçula, Melicertes, num caldeirão de água fervendo,
enquanto Átamas, com um venábulo, matava o mais velho, Learco,
tendo-o confundido com um veado. Ino, em seguida, atirou-se ao mar
com o cadáver de Melicertes e Átamas foi banido da Beócia.
Temendo novo estratagema de Hera, Zeus transformou o filho em
bode e mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa,
onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que lá
habitavam numa gruta profunda.
Dois fatos aqui expostos chamam logo a nossa atenção. O
primeiro deles é a tenaz perseguição da ciumenta Hera contra o filho
de Sêmele e o segundo, a morte de Sêmele pelo fogo e a coxa de Zeus
como segundo ventre de Dioniso. Quanto ao primeiro, é suficiente
lembrar que a inimizade entre o deus do êxtase e do entusiasmo e a
rainha dos deuses era um fato consumado no mito grego. Através de
um fragmento de Plutarco, concernente às antigas festas beócias das
Δαίδαλα (Daídala), “Dédalas”, em honra de Hera, ficamos sabendo
que, em Atenas, e possivelmente na Beócia, se evitava
cuidadosamente todo e qualquer contato entre os objetos que
pertenciam ao culto de Hera e aqueles pertencentes ao de Dioniso.
Até mesmo as sacerdotisas das duas divindades não se
cumprimentavam. A verdadeira muralha que separava os dois
cultos era certamente consequência das características muito
diferentes desse par antitético: de um lado, Hera, a teleia, a saber, a
protetora dos casamentos, de outro, Dioniso, o deus das orgias, dos
“desregramentos”. O mais sério é que tanto as orgias báquicas como
as práticas coletivas das mulheres de Plateias, em homenagem a
Hera Teleia, tinham por cenário o monte Citerão, o que
inevitavelmente contribuía para açular os ânimos dos adeptos de
uma e de outra divindade e aumentar a tradicional rivalidade entre
os dois imortais do Olimpo. O segundo fato é a morte trágica de
Sêmele e o nascimento de Dioniso, da coxa de Zeus. Até mesmo à
época tardia, Dioniso ainda era chamado Pyriguenés, Pyrísporos, quer
dizer, “nascido ou concebido do fogo”, a saber, do raio. O próprio
nome do deus parece estar ligado a uma filiação com o deus celeste
indo-europeu Ζεύς (Dzeús), Zeus, genitivo Διός (Diós), que
apareceria no primeiro elemento do composto Dioniso. Reunindo
estas simples indicações, pode-se tentar reconstruir um mito
naturalista elementar: a Terra-Mãe (Sêmele) fecundada pelo raio
celeste do deus do Céu (Zeus), gerou uma divindade, cuja essência se
confunde com a vida que brota das entranhas da terra. Acontece, no
entanto, que, no mito tradicional, Sêmele não é mais uma Grande
Mãe, e sim uma princesa tebana, uma simples mortal. O raio de Zeus,
que fulminou a mãe de Dioniso, embora possa ser interpretado como
sinal de um hieròsgámos, que liga duas entidades míticas, o deus Céu
e a deusa Terra, no caso em pauta perde todo o seu conteúdo, porque
se trata da união, clandestina por sinal, do deus supremo com uma
virgem mortal. O mito, por isso mesmo, foi inteiramente refundido:
enganada pela astúcia da ciumenta Hera e desejosa de responder, à
altura, aos gracejos de suas irmãs, que não acreditavam estivesse ela
grávida de um deus, Sêmele concebeu o projeto louco de pedir a Zeus
que se lhe apresentasse em todo o esplendor de sua majestade divina.
A vaidosa princesa tebana sucumbiu fulminada e fez que o filho
nascesse precocemente. Esse nascimento prematuro da criança teve
por finalidade conferir a Dioniso uma divindade que a simples
ascendência paterna não lhe poderia outorgar. No mito grego é de
regra que a união de deuses e de mulheres mortais gere normalmente
um varão, dotado de qualidades extraordinárias, de areté e timé, mas
partícipe da natureza humana, donde um mero ser mortal. Salvo por
Zeus e completada a gestação na coxa divina, Dioniso será uma
emanação direta do pai, donde um imortal, figurando a coxa do deus
como o segundo ventre de Dioniso, tal qual o foi a cabeça do mesmo
Zeus em relação a Atená.
Esse tipo de nascimento talvez se reporte ao simbolismo de
adoção paterna, à reminiscência de um rito de “choco” ou à
persistência de lembrança de algum mito fundamentado num
ancestral andrógino.
No tocante ao simbolismo geral da coxa, é bastante lembrar que,
por sua função no corpo como suporte móvel, ela traduz igualmente
a força, que a Cabala compara com a firmeza de uma coluna. A coxa
de Zeus, em cujo interior Dioniso operou uma segunda gestação, tem
um significado evidentemente sexual e matrilinear. Consoante o
esquema clássico dos ritos iniciáticos, o mito quer significar que o
detentor de um dos mais célebres cultos da Antiguidade grega
recebeu sua educação iniciática ou “segunda gestação” na coxa de um
deus supremo, que pode, no caso em pauta, ser considerado como um
andrógino inicial. Coxa, no duplo nascimento de Dioniso, seria um
mero eufemismo para designar o ventre materno.
De qualquer forma, esse deus nascido duas vezes foi uma
divindade muito poderosa, talvez porque compartilhasse do úmido e
do ígneo. Com efeito, participante, por natureza, do elemento úmido,
o filho de Zeus sempre manteve íntima convivência com o elemento
ígneo. Sófocles, em Édipo Rei, 209-215, pede-lhe que venha com suas
tochas ardentes pôr cobro à peste lançada por Ares contra Tebas:
Invoco ainda o deus da tiara de ouro,
epônimo deste país,
Baco dos evoés, de rosto tinto de vinhaço,
para que, sem seu cortejo das Mênades,
avance em nosso socorro, com sua tocha ardente,
contra o deus que entre os deuses ninguém adora.
Nas Bacantes, 145-150, Eurípides, através do Coro, o invoca como
deus das tochas de chama ardente. Na realidade, é ao clarão das
tochas que se celebram suas orgias noturnas e só quando se via o
tremeluzir dos fachos sobre as montanhas é que se acreditava na
presença de Dioniso à frente de seu tíaso. Já na llíada e Odisseiase diz
que o corisco possuía um odor sulfurosoe a palavra pela qual se
designa enxofre, θεῖον (theîon), é a mesma que expressa o divino,
isto é, θεῖον (theîon), em sua essência mais geral. O local, onde caía
um raio, era posse do divino.
Nascido da coxa de Zeus, Dioniso se tornou tão poderoso, que
desceu até o fundo do Hades para de lá arrancar sua mãe Sêmele,
conferir-lhe a imortalidade (o que mostra ter sido Sêmele um dos
avatares da deusa terra), mudar-lhe o nome para Θνώνη (Thyóne),
Tione, e com ela escalar o Olimpo.
Viu-se que o filho de Zeus foi levado para o monte Nisa e
entregue aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Pois bem, lá, em
sombria gruta, cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se
entrelaçavam galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros
cachos de uva, vivia feliz o jovem deus. Certa vez, ele, ainda
adolescente, colheu alguns desses cachos, espremeu-lhes as
frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua
corte. Todos ficaram então conhecendo o novo néctar: o vinho
acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros, Ninfas e o
próprio filho de Sêmele começaram a dançar vertiginosamente ao
som dos címbalos, tendo a Dioniso por centro. Embriagados do
delírio báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos.
Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano,
em Atenas e por toda Ática, a festa do vinho novo, em que os
participantes, como outrora os companheiros de Baco, se
embriagavam e começavam a cantar e a dançar freneticamente, à
luz dos archotes e ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. Esse
desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os
“devotos do vinho” e do deus se embriagarem de êxtase e de
entusiasmo, cujo sentido bem como as consequências se explicitarão
mais adiante.
4
Deixemos, por agora, o mito e voltemos ao deus da vegetação, ao
deus dos campônios.
Dioniso somente fez seu aparecimento solene e “oficial” na pólis,
de Atenas, assim como na literatura grega e, por conseguinte, na
mitologia, a partir do século VI a.C. Por que tão tardiamente, se, como
se disse, o filho de Zeus e Sêmele já aparece “atestado” lá pelo século
XIV a.C.? A explicação não parece difícil. Dioniso é um deus
essencialmente agrário, deus da vegetação, deus das potências
geradoras e, por isso mesmo, permaneceu por longos séculos
confinado no campo7. É que Atenas, até os fins do século VII a.C., foi
dominada pelos Eupátridas, os bem-nascidos, os nobres, que, sendo
os únicos que se podiam armar, eram igualmente os únicos que
podiam defender a pólis, tornando-se esta propriedade dos mesmos.
Assim, o governo, as terras, o sacerdócio, a justiça sob forma temística
(expressa pela “vontade divina”) somente a eles, aos Eupátridas,
pertenciam de direito e de fato. Senhores de tudo, eram também
senhores da religião. Seus deuses olímpicos e patriarcais (Zeus,
Apolo, Posídon, Ares, Atená...), projeção de seu regime político, em
troca de hecatombes e de renovados sacrifícios, mantinham-lhes a
pólis e o status quo. A pólis e seus Eupátridas eram politicamente
guardados pelos imortais do Olimpo.
Somente no século VI a.C., com o enfraquecimento militar e, por
conseguinte, político dos Eupátridas, balançados pela criação do
sistema monetário (a terra até então era a forma principal de
riqueza), pelo vertiginoso desenvolvimento do comércio, pelo
descontentamento popular – a revolução era iminente, segundo
expressa o grande Sólon em seus Iambos e Elegias – e sobretudo pela
constituição do mesmo legislador, com sua famosa σεισάκθεια
(seisákhtheia), conforme já se comentou, inclusive acerca da reforma
solonina, no Vol. I, p. 156-161, quando se lançaram em Atenas as
primeiras sementes da democracia, é que o povo começou a ter certos
direitos na pólis. As sementes da democracia frutificaram-se
rapidamente, como é sabido, e de Sólon, passando por Pisístrato e
depois por Clístenes, Efialtes e Péricles, a árvore cresceu e o povo
teve, afinal, uma vasta sombra onde refugiar-se. Sua voz soberana se
fez ouvir: era a ekklesía, a assembleia do povo. Com o povo e a
democracia, Dioniso, de tirso em punho, seguido de suas Mênades ou
Bacantes, suas sacerdotisas e acólitas, fez sua entrada triunfal na
pólis de Atenas.
Além do mais, é conveniente acentuar que a “demora” de Dioniso
deve-se ainda ao próprio caráter do deus: o filho de Sêmele é o menos
“político” dos deuses gregos. Enquanto os outros imortais
disputavam a proteção, a posse e a eponímia das cidades helênicas,
não se conhece cidade alguma que se tenha colocado sob sua
proteção. Na realidade, Dioniso permaneceu estranho à religião da
família bem como à da pólis e, conforme acentua Jeanmaire, existe
latente no dionisismo, ao menos sob forma elementar, um conflito
entre a vocação religiosa e o conformismo social, embora sancionado
pela religião8. Ao contrário de Apolo, jamais houve um Dioniso
nacional e nem tampouco um Dioniso sacerdotal. Deus imortal,
talvez o filho de Sêmele tenha sido mais humano que o próprio
homem grego.
E se se esperou tanto por Dioniso, é ainda e sobretudo porque “sua
religião” colidia frontalmente com a religião “política” dos
Eupátridas, apoiados nos deuses olímpicos tradicionais e despóticos.
Expliquemo-nos. Na Grécia, as correntes religiosas místicas
(Mistérios, Orfismo, Pitagorismo, Dionisismo...) confluem para uma
bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnôsis);
purificação da vontade para receber o divino (kátharsis); e libertação
desta vida, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de
imortalidade (athanasía). Mas essa mesma sede de imortalidade,
preconizada por mitos naturalistas de divindades da vegetação, que
morrem e ressuscitam (Dioniso sobretudo), essencialmente
populares, chocava-se violentamente, e ver-se-á por quê, com a
religião oficial e aristocrática da pólis: os deuses olímpicos sentiamse ameaçados e o Estado também. Assim, a imortalidade na Grécia
tornou-se uma espécie de competição. Justificam-se, desse modo, na
Hélade, sob a tutela religiosa do Oráculo de Delfos, tantos apelos à
sophros×ne, à moderação: “gnôthi sautón”, conhece-te a ti mesmo; medèn
ágan, nada em demasia...
A respeito dessa oposição feita à penetração do culto de Dioniso
na Grécia escreveu Mircea Eliade: “Qualquer que seja a história da
penetração do culto dionisíaco na Grécia, os mitos e os fragmentos
mitológicos que aludem à oposição encontrada têm uma significação
mais profunda: eles nos informam ao mesmo tempo da experiência
religiosa dionisíaca e da estrutura específica do deus. Dioniso devia
provocar resistência e perseguição, pois a experiência religiosa, que
suscitava, punha em risco todo um estilo de vida e um universo de
valores. Tratava-se, sem dúvida, da supremacia ameaçada da religião
olímpica e de suas instituições. Mas a oposição denunciava ainda um
drama mais íntimo, e que aliás está abundantemente atestado na
história das religiões: a resistência contra toda experiência religiosa
absoluta, que só pode efetuar-se, negando-se o resto (seja qual for o
nome que se lhe dê: equilíbrio, personalidade, consciência, razão,
etc.)”9.
5
Poderia parecer estranho que um deus tão perseguido e tão
distante dos demais deuses olímpicos tenha sido tão festejado na
Hélade e sobretudo em Atenas, a pólis que sempre buscou o
equilíbrio apolíneo. Talvez se possa explicar o fenômeno, levando-se
em consideração dois fatos incontestáveis: a política de Pisístrato e,
de modo particular, o esvaziamento e a transformação do conteúdo
dionisíaco de algumas das festas que celebravam o deus do êxtase e
do entusiasmo.
Na realidade, a política de Pisístrato (605-527 a.C.), que tanto fez
por Atenas e por seu povo, buscou com afinco o nivelamento das
classes sociais e a conciliação dos diversos cultos, tentando realizar
uma verdadeira confraternização entre os deuses. Pois bem, foi a
partir principalmente desse tirano que em Atenas se celebravam
quatro grandes festas em honra do deus do vinho: Dionísias Rurais,
Leneias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias.
As Dionísias Rurais celebravam-se no mês Posídeon, o que
corresponde, mais ou menos, à segunda metade de dezembro. São as
mais antigas das festas áticas de Dioniso, mas pouco se sabe, até o
momento, a respeito das mesmas. Realizavam-se apenas nos
“demos”, isto é, nos burgos da Ática, dependendo o brilho de tais
festejos dos recursos de cada um dos cem demos que constituíam a
terra de Platão. A cerimônia central consistia num kômos, quer dizer,
aqui no caso, numa alegre e barulhenta procissão com danças e
cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os participantes dessa
ruidosa falofória cobriam o rosto com máscaras ou disfarçavam-se
em animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a
fertilidade dos campos e dos lares. Aristófanes, em sua comédia
engraçadíssima, Os Acarneus, 237ss., nos deixou uma caricatura
memorável dessas comemorações. Claro que tanto a falofória quanto
os demais ritos das Dionísias Ruraisprecederam ao filho de Sêmele,
mas este os incorporou integralmente, fazendo que se lhes esquecesse
a idade milenar.
A partir do século V a.C., no entanto, as Dionísias Rurais foram
enriquecidas com concursos de tragédias e comédias10. Inscrições
recentes provam que em muitos demos havia bons teatros, sobretudo
no Pireu, Salamina, Elêusis, Flia, Muníquia e Tórico.
As Leneias eram celebradas em pleno inverno, no mês Gamélion,
correspondente aos fins de janeiro e inícios de fevereiro, mas pouco
se conhece também acerca dessa festa muito antiga do deus do
vinho. O nome Leneias, em grego Λήναια (Lénaia), é uma
abreviatura já comum em Atenas, pois que a designação oficial da
festa era Dioniso do Lénaion, isto é, cerimônias religiosas dionisíacas
que se realizavam no Lénaion, local onde se erguia o mais antigo
templo do deus e, mais tarde também, um teatro. Segundo os
arqueólogos que se têm ocupado da topografia da Atenas antiga, esse
espaço consagrado ao deus do êxtase e do entusiasmo talvez se
localizasse ou nas vizinhanças da antiga Ágora e da rampa que
levava à Acrópole ou, ao contrário, na outra extremidade da rocha,
que sustem a Acrópole, isto é, aos pés de sua fachada oeste. Se ainda
se discute acerca da localização do Lénaion, nada de muito concreto
existe a respeito de sua etimologia. A fonte tradicional de Λήναιον
(Lénaion) é ληνός (lenós), “lagar”, quer dizer, “tanque ou instalação,
onde se espremiam as uvas para fabrico do vinho novo”, mas a
aproximação é de cunho popular.
Acerca das Leneias, as festas que se celebravam no Lénaion, são
pouquíssimas as informações. Sabe-se tão somente que Dioniso era
invocado com o auxílio do daduco, “o condutor de tochas”, e,
consoante uma glosa de um verso de Aristófanes, o sacerdote
eleusino, “trazendo na mão uma tocha”, exclamava: “Invocai o deus!”
Os participantes do festival gritavam em resposta: “Ó Iaco, filho de
Sêmele, distribuidor de riquezas!” Trata-se, como é claro, de uma
invocação para provocar fertilidade e a hierofania de Dioniso, que
deveria presidir às solenidades das Leneias. Estas, ao que tudo indica,
se iniciavam por uma procissão de caráter orgiástico, uma
indubitável reminiscência do Kômos antigo, a que se seguia um
duplo concurso de comédia e tragédia.
As Dionísias Urbanas celebravam-se na primavera, no mês
Elafebólion, fins de março, e a elas acorriam todo o mundo grego e
embaixadores estrangeiros. Duravam seis dias. O primeiro era
consagrado a uma majestosa procissão, de que a cidade inteira
participava. Nessa procissão transportava-se a estátua do deus do
Teatro, de seu templo, no sopé da Acrópole, até um templo arcaico de
Baco, perto da Academia, de onde o ícone era solenemente levado e
colocado, por fim, na Orquestra do Teatro, que, até hoje, tem o nome
do deus e que fica ao lado do santuário, de onde a estátua fora
retirada. Nos dois dias seguintes realizavam-se os concursos de dez
Coros Ditirâmbicos11, que, com seus cinquenta executantes cada um,
dançavam em torno do altar de Dioniso, na Orquestra. Os concursos
dramáticos ocupavam os três últimos dias. Sendo três os poetas
trágicos admitidos em concurso, representava-se cada manhã a obra
inteira de cada um deles, a saber, via de regra, no século V a.C., uma
tetralogia: três tragédias (de assunto correlato ou não), seguidas de
um drama satírico.
Embora ainda se discuta a origem da tragédia, até o momento não
se conseguiu explicá-la, sem fazê-la passar pelo elemento satírico,
quer dizer, a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do
drama satírico. Aristóteles12 nos informa que a tragédia, cuja
etimologia tradicional13 já nos recorda um elemento básico de
Dioniso, teve origem nos “solistas” do ditirambo e que surgiu
mediante um processo de transformação de peças satíricas, em cujo
transcurso passou de assuntos menores, de fábulas curtas, para
assuntos mais elevados, abandonando, com isso, o tom jocoso da
linguagem. O Drama Satírico é, pois, anterior à tragédia. Apesar do
nome, o Satírico, aqui em questão, nada tem a ver nem literária nem
etimologicamente com sátira14, não pretendendo criticar os defeitos
de uma pessoa ou de uma época. Seu nome se prende ao fato de as
personagens que lhe compunham o coro se disfarçarem em Sátiros,
os eternos companheiros de Dioniso. De outro lado, é necessário
acentuar que nenhuma contradição parece existir em Aristóteles
pelo fato de o mesmo afirmar que a tragédia teve sua gênese nos
solistas do ditirambo e que surgiu mediante um processo de
transformação de peças satíricas: se o ditirambo é um coro em honra
de Baco, com seus componentes certamente disfarçados em Sátiros, o
Drama Satírico há de ser uma fase mais evoluída daquele, isto é, uma
peça e um coro regular e literariamente estruturados.
Em suas origens, o Drama Satírico devia consistir em danças
mímicas e rituais em honra de Dioniso. Desenvolvendo-se, estas
deram origem a representações rústicas, executadas por um coro de
homens disfarçados em Sátiros, cujo corifeu reproduzia alguma
aventura de Dioniso. Com o passar dos anos, no entanto, uniram-se
ao Drama Satírico cerimônias de caráter fúnebre e regionais e a
alegria das primitivas representações deve ter desaparecido e outras
divindades ocuparam o posto antes exclusivo de Baco. No princípio
deve ter havido uma coexistência pacífica entre ditirambo, drama
satírico e tragédia, mas, à medida que esta, pelo seu tom sério e
majestoso, se desvinculou dos Sátiros e quase levou à morte o drama
satírico, houve, cerca de 490 a.C., a famosa reforma de Prátinas. Este
poeta é o verdadeiro introdutor do gênero em Atenas: devolveu a
Dioniso os coros, fixando por escrito os vários cânticos e partes do
drama satírico, dando-lhe, por isso mesmo, uma forma literária.
Destarte, Prátinas não apenas salvou o drama satírico, mas também
satisfez o povo, que, certamente sem compreender o pouco que restava
de Dioniso na tragédia, que passara de assuntos menores, satíricos,
para temas “mais elevados”, reclamou da ausência do deus do êxtase
e do entusiasmo com uma expressão que se tomou proverbial: oὐδὲν
πρὸς τὸν Διόνυσον (uden pràs tàn Diónyson), isto é, (a tragédia)
“nada tem a ver com Dioniso”!
A influência de Prátimas foi tão grande, que, a partir de sua
“reforma”, tornou-se obrigatória nas representações dramáticas a
tetralogia, ou seja, três tragédias e um drama satírico.
Em síntese: afastando-se consideravelmente de Baco e buscando
seus temas no ciclo dos mitos heroicos, a tragédia perdeu muito de
seu antigo caráter dionisíaco. E se é verdade que encontramos em
Dioniso uma das forças vivas que impulsionaram o
desenvolvimento do drama trágico como obra de arte, não se pode
igualmente esquecer que a tragédia, quanto ao conteúdo, foi
configurada por um outro campo da cultura grega, pelo mito dos
heróis. O drama satírico procurou manter as características
dionisíacas, ao menos em parte, pois conservou intactos alguns
elementos primitivos. Se Dioniso não é mais seu herói, a lembrança
do deus está assegurada pela presença dos Sátiros que lhe formam
obrigatoriamente o coro, ao menos no que nos chegou do Drama
Satírico: O Ciclope, de Eurípides e uma parte de Os Cães de Busca, de
Sófocles.
Dioniso,já o dissemos, é o deus da metamórphosis, o deus da
transformação. Um dos mais profundos conhecedores da tragédia
grega, A. Lesky15, é taxativo a esse respeito: “O elemento básico da
religião dionisíaca é a transformação. O homem arrebatado pelo
deus, transportado para seu reino por meio do êxtase, é diferente do
que era no mundo quotidiano”.
Assim, se essa “transformação” operada no homo dionysiacus pelo
êxtase e pelo entusiasmo, como se há de ver mais adiante, nas
Antestérias, levava inexoravelmente a romper com todos os
interditos de ordem política, social e “religiosa”, ela, ipso facto, ia de
encontro aos postulados da pólis, mesmo “democrática” e dos deuses
olímpicos, que lhe serviam de respaldo. Ora, se a tragédia é uma
liturgia e um verdadeiro apêndice da religião grega, como admiti-la,
se o deus do Teatro, na ótica da pólis, é exatamente o “contestador
religioso” da religião política dessa mesma pólis?
Desde Píndaro, o poeta dos príncipes e o príncipe dos poetas
líricos da Hélade, passando pelos trágicos Ésquilo e Sófocles, aquele
mais explicitamente que este, a poesia, em geral, e a tragédia, em
particular, visavam também a um propósito educativo.
Píndaro e Ésquilo, para não nos alongarmos em citações, fizeram
das Musas as porta-vozes de seu programa apolineamente educativo.
Na obra poética do condor de Tebas, a moderação, o
reconhecimento por parte do homem de que ele é tão somente o
“sonho de uma sombra” se constituem numa verdadeira mensagem
ético-educativa. Na Pítica, 3,59-62, o poeta deixa bem claro o
discurso do comedimento:
Não se deve pedir aos deuses senão o que convém
a corações mortais. É preciso ter o olhar fixo
nos próprios pés, para nunca esquecer sua condição.
Não aspires, minha alma, a uma vida imortal;
pelo contrário, exaure o campo do possível.
Na mesma obra (Pítíca, 8,76-78), mostrando ao herói campeão,
em Delfos, que a vitória é uma outorga do divino, repete-lhe a
mensagem da moderação:
A vitória não depende dos homens.
Somente a divindade outorga sucessos.
Ora eleva este ao céu, ora sua mão rebaixa aquele.
Saibas encontrar o teu caminho, observando a moderação.
O homem pindárico é realmente limitado, “metrado” por suas
próprias misérias e somente pode erguer-se de sua aflita limitação,
quando sobre ele descansa o calor salutar do olhar divino, como está
ainda no mesmo poema, Pítica, 8,95-97:
Seres efêmeros! Que é cada um de nós?
Que não é cada um de nós?
O homem é o sonho de uma sombra!
Mas, quando os deuses pousam
sobre ele um raio de sua luz,
então vivo fulgor o envolve
e adoça-lhe a existência.
Ésquilo é ainda mais rigoroso no tocante à ética trágica e à missão
educativa do poeta. Na comédia de Aristófanes, As Rãs, 1.045-1.056,
de que vamos transcrever apenas uma ponta do diálogo, quando
Eurípides censura a Ésquilo por não ter em suas tragédias uma só
parcela de amor, o autor de Prometeu Acorrentado traça a suprema
missão do poeta:
Eurípides - Sim, por Zeus, não tens uma única parcela de
Afrodite.
Ésquilo - Oxalá eu jamais a tenha. Sobre ti e sobre os teus ela
pesava tanto, que chegou mesmo a lançar-te por terra.
Eurípides - Sim ou não: é fictícia a história de Pedra que eu
compus?16
Ésquilo - Não, por Zeus, é verídica. O dever do poeta, no entanto, é
ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se
para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o
são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer somente coisas
honestas.
Moderação, comedimento, ética rigorosa, eis aí como a doutrina
apolínea do μηδὲν ἄγαν (meden ágan), do “nada em demasia”, e do
γνῶθι σ'αὐτόν (gnôthi s’autón), do “conhece-te a ti mesmo”, acabou
por se apossar da tragédia e da poesia em geral.
Até mesmo o esquema trágico, o caminhar do ánthropos, do
“simples mortal”, ultrapassando o métron, a sua medida, e tornandose, por isso mesmo, anér, “herói”, que, em consequência, acabará,
fatalmente, nos braços da Maria, do destino cego, é tipicamente uma
lição apolínea: “todas as coisas têm a sua medida ... “ Vejamos, mais de
perto, como Apolo, com seu comedimento, com seu gnôthi s’ autón, se
apossou da tragédia e fez do homo dionysiacus uma presa fácil da
Maria, valendo o esquema trágico para o ánthropos, como se fora um
aviso prévio: não te “dionizes”, não ultrapasses a medida da miséria
mortal, porque, se o fizeres, encontrarás os braços de bronze da
fatalidade cega ...
Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa de que se falou,
caíam semidesfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo
processo do ἔκστασις (ékstasis), “êxtase”. O sair de si implicava um
mergulho de Dioniso em seu adorador através do ἐνθουσιααμός
(enthusiasmós), “entusiasmo”. O homem, simples mortal, ἄνθρωπος
(ánthropos), em êxtase e entusiasmo, comungando com a
imortalidade, tornava-se ἀνήρ (anér), isto é, herói, um varão que
ultrapassou o μέτρον (métron), a medida de cada um. Tendo
ultrapassado sua medida mortal, o anér, o herói, transforma-se em
ὑποκριτής (hypokrités), aquele que responde em êxtase e
entusiasmo, a saber, o ator.
Essa ultrapassagem do métron pelo hypokrités se configura como
ὔβρις (hybris), um descomedimento, uma “démesure”, uma
violência, feita a si próprio e aos deuses imortais, o que desencadeia a
νέμεσις (némesis), a punição pela injustiça praticada, o ciúme
divino; o hypokrités, o anér torna-se êmulo dos deuses, o que vai
provocar a ἄτη (áte), a cegueira da razão; tudo quanto o hypokrités
fizer, daqui para diante e terá que fazê-lo, realizá-lo-á contra si
mesmo. Mais um passo e fechar-se-ão sobre ele as garras da Μοῖρα
(Moira), o destino cego.
No fundo, a tragédia grega, como encenação religiosa, é o suplício
do leito de Procrusto contra todas as “démesures”.
Esquematizando:
Métron (medida de cada um)
Ánthropos (simples mortal) ... ultrapassagem (êxtase e entusiasmo) ...
Anér
=
ATOR
↓
hybris (descomedimento, violência)
↓
némesis (castigo pela injustiça praticada, ciúme divino)
↓
áte (cegueira da razão)
↓
Moira (destino cego, punição)
Foi assim que a tragédia de Dioniso, esse deus cuja experiência
religiosa punha em risco todo um “estilo de vida e um universo de
valores”, exatamente porque, entranhado no homem pelo êxtase e
entusiasmo, abolia a distância entre o mortal e os imortais, pôde ser
aceita na pólis dos deuses olímpicos. “Desdionizada” em seu
conteúdo, “punida” em sua essência e exorcizada por Apolo, a
tragédia se tornou mais apolínea que dionisíaca. Despindo-se de
Dioniso e revestindo-se da indumentária solar e patriarcal de Apolo,
pôde ser tranquilamente agasalhada como liturgia.
A quarta grande festa dionisíaca e a mais antiga delas, consoante
o historiador Tucídides ( 460-395 a. C. aproximadamente), eram as
'Ανθεστήρια (Anthestéria), isto é, a “festa das flores”, que se
celebravam nos dias 11, 12 e 13 do mês Antestérion, fins de fevereiro,
inícios de março. Trata-se, como o próprio nome expressa, de uma
festa primaveril, em que se aguardava, portanto, a nova brotação, o
rejuvenescimento da natureza.
Embora nessas festas Dioniso imperasse inteiro, havendo, por
conseguinte, a quebra de todos os interditos, o Estado sempre os
tolerou, uma vez que toda ruptura com tabus de ordem política,
social e sexual visava não apenas à imprescindível fecundidade e à
fertilidade, mas era algo que atingia tão somente o mundo da
sensibilidade, sem chegar à reflexão, como na tragédia.
O primeiro dia das Antestérias denominava-se Πιθοιγία
Pithoiguía), vocábulo proveniente de píthos, “tonel”, e oignynai,
“abrir”: abriam-se os tonéis de terracota, em que se guardava o vinho
da colheita do outono, e transportavam-nos até um Santuário de
Dioniso no Lénaion, que só se abria por ocasião dessas festas da
primavera. Dessacralizava-se o vinho novo, quer dizer, levantava-se
o tabu que ainda pesava sobre a colheita anterior17 e, após uma
libação a Dioniso pela boa safra, dava-se início à bebedeira sagrada.
Possivelmente, como nas Dionísias Rurais e nas Leneias, também os
escravos participavam dessa confraternização, porque uma das
características fundamentais de Dioniso, “deus do povo”, é sua
universalidade social.
O segundo dia chamava-se Χόες (Khóes), de Χόος (Khóos),
cãntaro, cuja fonte é o verbo χέειν (khéein), “derramar”. Era o dia
consagrado ao concurso dos beberrões. Vencedor era aquele que
esvaziasse o cântaro (três litros e um quarto) mais rapidamente. O
prêmio era uma coroa de folhagens e um odre de vinho. Nesse
mesmo dia, em que se celebravam as Khóes, organizava-se uma
solene e ruidosa procissão para comemorar a chegada do deus à pólis.
Mas, como Dioniso está ligado,já se comentou, ao elemento úmido,
por ser uma divindade da vegetação, supunha-se que ele houvesse
chegado a Atenas, vindo do mar. É, por esse motivo, que integrava o
cortejo uma embarcação, que deslizava sobre quatro rodas de uma
carroça, puxada por dois Sátiros. Na embarcação via-se o deus do
êxtase, empunhando uma videira, ladeado por dois Sátiros nus,
tocando flauta. Um touro, destinado ao sacrifício, acompanhava o
barulhento cortejo, cujos componentes, provavelmente disfarçados
em Sátiros e usando máscaras, cantavam e dançavam ao som da
flauta. Quando a procissão chegava ao santuário do deus, no
Lénaion, havia cerimônias várias, de que participavam a Βασίλιννα
(Basílinna), isto é, a esposa do Arcante Rei e catorze damas de honra.
A partir desse momento, a Basílinna, a Rainha, herdeira da antiga
rainha dos primeiros tempos da cidade, era considerada esposa de
Dioniso, certamente representado por um sacerdote com máscara18.
Subia para junto dele na embarcação e novo cortejo, agora de caráter
nupcial, conduzia o casal para o Βουκολεῖον (Bukoleîon),
etimologicamente, “estábulo de bois”, mas, na realidade, uma antiga
residência real na parte baixa da cidade. Ali se consumava o hieràs
gámos, o casamento sagrado entre o “deus” e a rainha, conforme
atesta Aristóteles, Constituição de Atenas, L3, c5. Observe-se que o
local escolhido, o Bucolíon, atesta que a hierofania taurina de
Dioniso era ainda um fato comum. De outro lado, sendo a união
consumada na residência real e apresentando-se Dioniso como rei, o
deus estava exatamente exercendo a função sagrada da fecundação.
Essa hierogamia era, na realidade, o símbolo do casamento, da união
do deus com a pólis inteira, com todas as consequências que daí
poderiam advir.
O terceiro dia intitulava-se χύτροι (khytroi), “vasos de terracota,
marmitas”, cuja fonte é ainda o verbo χέειν (khéein), “derramar”.
Os khytroi são consagrados aos mortos e às Κῆρες (Kêres) :
configuravam, portanto, um dia nefasto, uma vez que as Queres
(Aleto, Tisífone e Megera), “deusas dos mortos”, são portadoras de
influências maléficas do mundo ctônio. Por isso mesmo, logo pela
manhã, se colhiam ramos com espinhos, cujo valor apotropaico é
bem conhecido, e com eles todos se enfeitavam; as portas das casas
eram pintadas com uma resina preta e todos os templos, exceto o
Santuário do Lénaion, eram fechados. Orava-se pelos mortos, que,
juntamente com as Queres, vagavam pela cidade, e à tarde ofereciase a Hermes, deus psicopompo, uma πανσπερμία (panspermía),
palavra composta de πᾶν (pân), “todo total” e σπέρμα (spérma),
“semente”, quer dizer, um tipo de sopa com mistura de todas as
espécies de sementes. Da panspermia a pólis inteira participava em
homenagem a seus mortos.
Chegada a noite, todos gritavam: “Retirai-vos, Queres, as
Antestérias terminaram”.
Soa estranho que, em meio ao regozijo da festa do vinho novo,
surjam os mortos e as Queres, veículos de terríveis miasmas. É bom,
todavia, não nos esquecermos de que Dioniso, sendo um deus da
vegetação, como Deméter e Perséfone, dele depende também a
próxima colheita. O hieràs gámos com a Basílinna, no dia anterior, e
a panspermia têm toda uma conotação de fertilidade. Além do mais,
os mortos (já que as sementes são sepultadas no seio da terra) e as
forças ctônias governam a fertilidade e as riquezas, de que, aliás, são
os distribuidores. Não é por metáfora que o senhor do reino dos
mortos se chamava Plutão, o rico por excelência, o qual, como se
mostrou, é uma deformação de Pluto, a “própria riqueza”. Num
tratado, atribuído ao grande médico Hipócrates, lê-se: “É dos mortos
que nos vêm os alimentos, os crescimentos e os germes”. Os mortos
sobem a este mundo em busca dos agradecimentos e dos sacrifícios
(frutos, cereais, animais ... ) daquilo que eles mesmos proporcionaram
aos vivos.
Para uma boa safra futura, um hieràs gámos, em que a semente
(spérma) de Dioniso é colocada no seio da Basílinna, hipóstase da
Terra-Mãe e, logo a seguir, uma panspermia pesavam muito no
mundo dos vivos e dos mortos.
De qualquer forma, as Antestérias eram a festa sagrada do vinho,
quando, então, os participantes dos festejos, sagradamente
embriagados, começavam a cantar e a dançar freneticamente, não
raro à noite, à luz dos archotes, ao som das flautas e dos címbalos, até
cair semidesfalecidos. É, nesse estado, que algo de sério e grave
acontecia, porque a embriaguez e a euforia, pondo-os em comunhão
com o deus, antecipavam uma vida do além muito diversa daquela
que, desde Homero até os grandes e patrilineares deuses olímpicos,
lhes era oferecida. É que, através desse estado de semi-inconsciência,
os adeptos de Dioniso acreditavam sair de si pelo processo do
ékstasis, o êxtase. Esse sair de si significava uma superação da
condição humana, uma ultrapassagem do métron, a descoberta de
uma liberação total, a conquista de uma liberdade e de uma
espontaneidade que os demais seres humanos não podiam
experimentar. Evidentemente, essa superação da condição humana e
essa liberdade, adquiridas através do ékstasis, constituíam, ipso facto,
uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de
convenções de ordem ética, política e social, o que explica, consoante
Mircea Eliade, a adesão maciça das mulheres às festas de Dioniso. E,
em Atenas, as coisas eram claras: nada mais reprimido e humilhado
que a mulher. Dioniso e suas Antestérias simbolizam a sua
libertação. Não era em vão que, unindo-se à Basílinna, ele contraía
núpcias com todas as mulheres da pólis de Atenas.
O ékstasis, todavia, era apenas a primeira parte da grande
integração com o deus: o sair de si implicava num mergulho em
Dioniso e deste no seu adorador pelo processo do ἐνθουσιασμός
(enthusiasmós), de ἔνθεος (éntheos), isto é, “animado de um
transporte divino”, de ἐν (en), “dentro, no âmago” e θεός (theós),
“deus”, quer dizer, o entusiasmo é ter um deus dentro de si,
identificar-se com ele, coparticipando da divindade. E se das
Mênades ou Bacantes, e ambos os termos significam a mesma coisa,
as possuídas, quer dizer, em êxtase e entusiasmo, delas, como dos
adoradores de Dioniso, se apossavam a μανία (manía), “a loucura
sagrada, a possessão divina” e as ὄργια (órguia), “posse do divino na
celebração dos mistérios, orgia, agitação incontrolável”, estava
concretizada a comunhão com o deus.
A mania e a orgia provocavam uma como que explosão de
liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma
distensão, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação.
É necessário, no entanto, não confundir essa explosão das
Mênades dionisíacas ou humanas (como acontece na gigantesca
tragédia euripidiana, As Bacantes) com “crises psicopáticas”, porque a
mania, loucura sagrada e a orgia, agitação incontrolável, inflação
anímica, possuíam indubitavelmente o valor de uma experiência
religiosa.
Viu-se que, no segundo dia das Antestérias, as Khóes, um touro,
que acompanhava o alegre cortejo, era destinado ao sacrifício. Ao que
tudo indica, esse sacrifício se realizava por diasparagmós e omofagia,
ou seja, por desmembramento violento do animal vivo e
consumação de seu sangue ainda quente e de suas carnes cruas e
palpitantes.
Diasparagmós,
em
grego
διασπαραγμόσ
verbo
διασπαράσσειν (diasparássein), “despedaçar”, era, pois, em termos
de religião, o rito do dilaceramento da vítima sacrificial (touro, bode,
corça, enho ... ) viva ou ainda palpitante e a consumação imediata do
sangue e da carne crua da mesma, isto é, a omofagia, ὠμοσαγία
(omofaguía), de ὠμός (omós), “cru” e o verbo φα (phaguetn),
“comer”.
Dioniso, como observa o erudito Ateneu, Dipnosofistas, ll,51,476a,
é frequentemente qualificado de touro pelos poetas, donde seus
epítetos de Taurófago, “devorador de touros”, que se encontra num
fragmento de Sófocles e num gracejo de Aristófanes (As Rãs, 357),
bem como de Omádio e Omeste, quer dizer, “o que come carne crua”.
O despedaçamento do touro, símbolo da força e da fecundidade, se de
um lado representava os sofrimentos de Dioniso, dilacerado pelos
Titãs, de outro, o fato de os e as Bacantes lhe beberem o sangue e lhe
comerem as carnes, pelo rito da omofagia, inseparável do transe
orgiástico, configurava a integração total e a comunhão com o deus.
É que os animais, que se devoravam, eram a hierofania, a encarnação
do próprio Dioniso. De outro lado, despedaçando animais e
devorando-os, os devotos de Dioniso integram-se nele e o
recompõem simbolicamente, o que, consoante Jung, configura a
conscientização de conteúdos divididos.
Uma divindade assim tão próxima e integrada no próprio
homem, um deus tão libertário e “politicamente” independente, não
poderia mesmo ser aceito pela pólis de homens e de deuses tão
apolineamente patrilineares e tão religiosamente repressivos.
Eis aí por que o deus do êxtase e do entusiasmo e suas Mênades
levaram tantos séculos para penetrar e ser “tolerados” por Atenas.
Mas, no dia em que transpuseram as muralhas da pólis, orientados
pela bússola da democracia, o grande deus acendeu na tímele, seu
altar bem no meio do Teatro de “Dioniso”, dois archotes: um ele o
consagrou ao êxtase, o outro, ao entusiasmo. Era a distensão. Ao
menos uma vez por ano ...
Sintetizando algumas das ideias expostas na obra célebre de
Walter Otto, Dionysos, Mircea Eliade mostrou que o filho de Sêmele é
realmente o deus da metamórphosis interna e externamente: bem
mais que todos os imortais do Olimpo, “Dioniso assombra pela
multiplicidade e pela novidade de suas transformações. Ele está
sempre em movimento; penetra em todos os lugares, em todas as
terras, em todos os povos, em todos os meios religiosos, pronto para
associar-se a divindades diversas, até antagônicas [ ... ] Dioniso é
certamente o único deus grego que, revelando-se sob diferentes
aspectos, deslumbra e atrai tanto os camponeses quanto as elites
intelectuais, políticos e contemplativos, ascetas e os que se entregam
a orgias. A embriaguez, o erotismo, a fertilidade universal, mas
também as experiências inesquecíveis provocadas pela chegada
periódica dos mortos, ou pela manía, pela imersão no inconsciente
animal ou pelo êxtase do enthusiasmós - todos esses terrores e
revelações surgem de uma única fonte: a presença do deus. O seu
modo de ser exprime a unidade paradoxal da vida e da morte. É por
essa razão que Dioniso constitui um tipo de divindade radicalmente
diversa dos Olímpicos”19. Walter Otto mostrou bem como o deus do
Teatro é capaz de múltiplas hierofanias: surge de repente e
desaparece misteriosamente. Nas Agriônias, as festas solenes que se
celebravam em sua honra na cidade beócia de Queroneia, de que já se
falou, as mulheres, num dado momento, procurando-o por toda
parte, voltavam com a notícia de que o deus havia regressado para
junto das Musas. Mergulhava no lago de Lema ou no mar e
reaparecia, como no segundo dia das Antestérias, sobre uma
embarcação. Todos esses desaparecimentos periódicos e hierofanias
tinham por escopo mostrar que Dioniso é um deus da vegetação e,
com efeito, suas festas mais populares se realizavam em função do
calendário agrícola. Como a semente, o deus morre para dar novos
frutos. Todas essas ocultações e retornos, aparecimentos e ausências
súbitas traduzem o surgimento e o desaparecimento da vida, o ciclo
da vida e da morte e, por fim, sua unidade.
Foi exatamente como deus da vegetação, da vida e da morte, que
Dioniso celebrou um solene hieràs gámos com Ariadne, em torno de
cuja união com o deus, na ilha de Naxos, se teceram narrativas
romanescas. Uma delas se relaciona com o retorno de Teseu a
Atenas, após eliminar o Minotauro. Tendo ajudado o herói ático a
escapar do Labirinto de Cnossos, Ariadne, apaixonada pelo filho de
Egeu, fugiu com ele. Quando o navio ateniense fez escala na ilha de
Naxos, Teseu a abandonou, adormecida na praia, por amor a outra
mulher. Diz-se ainda que foi em obediência a uma ordem dos deuses,
que não lhe permitiram desposá-la. Embora em prantos, quando viu
o navio de velas desfraldadas já fora da barra, logo se consolou com a
chegada intempestiva de Dioniso e seu cortejo de Sátiros e Mênades.
Fascinado pela beleza da jovem cretense, desposou-a elevou-a
consigo para o Olimpo. Como presente de núpcias, deu-lhe um
diadema de ouro, cinzelado por Hefesto. Quando o casal chegou à
mansão dos imortais, o diadema foi transformado em constelação.
A realidade dos fatos é bem outra. Ariadne é uma antiga deusa
egeia da vegetação, que foi suplantada, em Naxos e demais ilhas do
Mediterrâneo, por Dioniso. O hieràs gámos do deus com a filha de
Minos, isto, é a união de duas divindades protetoras da vegetação
pertence a um velho fundo de costumes religiosos, além de
possibilitar que uma antiga deusa “decaída”, suplantada em suas
funções e transformada em princesa, tivesse direito à apoteose.
Finalmente, no que diz respeito à existência concreta de tíasos20
secretos dionisíacos, mais claramente, de ritos secretos e iniciáticos
do deus, o assunto é ainda muito discutido. Autoridades de peso
como Nilsson e Festugiere negam a existência de um Mistério
Dionisíaco, por não existirem “referências precisas à esperança
escatológica”, ao menos na época clássica.
Jeanmaire21, embora sem muita objetividade, defende um rito
secreto dionisíaco, apontando a Trácia como berço desses Mistérios,
que se teriam difundido por uma série de ilhas gregas.
Eliade22, sem citar os locais onde se realizavam tais Mistérios,
argumenta que os desaparecimentos, as hierofanias de Dioniso, suas
catábases ao Hades (semelhantes à morte, seguida de ressurreição) e
sobretudo o culto de Dioniso-menino com ritos, que celebravam seu
“despertar”, seriam indícios de um desejo e de uma esperança de
renovação espiritual.
De qualquer forma, as coisas, até o momento, ainda não estão
muito claras. Dioniso, todavia, continua e continuará a ser,
independentemente de um “Mistério Dionisíaco”, o deus da
metamorphósis. O que já é muito!
Antes de Dioniso, costuma-se dizer, havia dois mundos: o mundo
dos homens e o inacessível mundo dos deuses. A metamórphosis foi
exatamente a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo
dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitaram
de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração.
De um ponto de vista simbólico, o deus da mania e da orgia
configura a ruptura das inibições, das repressões e dos recalques. Na
feliz expressão de Defradas, Dioniso “simboliza as forças obscuras
que emergem do inconsciente, pois que se trata de uma divindade
que preside à liberação provocada pela embriaguez, por todas as
formas de embriaguez, a que se apossa dos que bebem, a que se
apodera das multidões arrastadas pelo fascínio da dança e da música
e até mesmo a embriaguez da loucura com que o deus pune aqueles
que lhe desprezam o culto”23. Desse modo, Dioniso retrataria as
forças de dissolução da personalidade: a regressão às forças caóticas e
primordiais da vida, provocadas pela orgia e a submersão da
consciência no magma do inconsciente.
1. CARNOY, Albert. Op. cit., verbete.
2. O texto homérico fala tão somente que Dioniso foi perseguido no divino Νυσήιον
(Nyséion), o que é identificado com o monte Nisa, na Trácia. É conveniente lembrar que
Nisa faz parte da geografia mítica: os mitógrafos, além de Tebas, Naxos, Trácia ...,
localizavam Nisa desde o Cáucaso à Arábia, e do Egito à Líbia...
3. Miníades eram as três filhas do rei Mínias, de Orcômeno. Chamavam-se Leucipe, Arsipe e
Alcítoe. Seu mito é de ordem didática: tem por escopo mostrar como Dioniso castiga os que
lhe desprezam o culto. Conta-se que, durante uma festa em honra do deus, enquanto todas
as mulheres de Orcômeno percorriam as montanhas, no rito denominado ὀρειβάσια
(oreibásia), de ὄρος (óros), “montanha” e βαίνειν (baínein), “percorrer”, procissão nas
montanhas, oribásia, dançando freneticamente, as três irmãs permaneceram em casa,
fiando e bordando. Subitamente, porém, uma parreira começou a crescer em torno dos
tamboretes em que elas se sentavam e do teto corriam leite e mel. Clarões misterioros
surgiram por toda a casa e feras invisíveis rugiam, ao mesmo tempo em que se ouviam sons
agudos de flautas e a cadência surda dos tambores. Transtornadas, as Miníades foram
atacadas de loucura e tendo agarrado o pequeno Hípaso, filho de Leucipe, o despedaçaram,
tendo-o tomado por um veadinho. Em seguida, coroando-se de hera, juntaram-se às outras
mulheres nas montanhas. Em outras versões foram metamorfoseadas em morcegos,
símbolo da evolução espiritual obstruída.
4. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 214.
5. JEANMAIRE, H. Dionysos, Histoire du Culte de Bacchus. Paris: Payothèque, 1978, p. 386ss.
6. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 215.
7. Dioniso era um deus da árvore em geral. Como outros deuses da vegetação (Adônis,
Osíris...) pereceu de morte violenta, mas retornou à vida. Sua morte, sofrimentos e
renascimento eram representados em seus ritos. Assim, como toda e qualquer divindade da
vegetação, que passa, como a “semente”, uma parte do ano sob a terra, o deus do êxtase e do
entusiasmo é também uma divindade crônica, que morre, renasce, frutifica, torna a morrer e
retorna ciclicamente. O fato de Dioniso ser concebido sob forma animal, como touro ou
bode, representa apenas o espírito da vegetação, o espírito do grão, que, no momento da
colheita, se encarna num animal, em cujo corpo encontra guarida. O animal sacrificado nos
ritos dionisíacos é um animal desse tipo, quer dizer, o próprio deus. Ora, o sacrifício,
consoante as práticas antigas de caráter agrário, se consuma por desmembramento e
omofagia. O desmembramento tem por objetivo converter em talismãs, em amuletos de
fertilidade as partes do corpo do animal em que está concentrado o espírito da vegetação e a
omofagia expressa o desejo de assimilar as forças mágicas existentes nesse mesmo corpo.
Desse modo, os dados fundamentais (desmembramento, morte e retorno à vida) do mito de
Dioniso explicam-se através de ritos agrários.
8. JEANMAIRE, H. Op. cit., p. 8.
9. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 201.
10. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Origem e evolução. Rio de Janeiro: T.A.B., 1980,
p. 97ss.
11. Ditirambo, em grego διθύραμβος (dithyrambos), é uma canção coral cujo objetivo era,
quando do sacrifício de uma vítima, gerar o êxtase coletivo com a ajuda de movimentos
rítmicos, aclamações e vociferações rituais. Quando, a partir dos séculos VII-VI a.C., se
desenvolveu no mundo grego o Lirismo Coral, o ditirambo se tornou um gênero literário,
dado o acréscimo de partes cantadas pelo ἐxάρχων (eksárkhon), isto é, pelo “regente” do
hino sacro. Essas partes cantadas pelo “regente” eram trechos líricos em temas adaptados às
circunstâncias e à pessoa de Dioniso.
12. Aristóteles. Poétique, 1449a, 19-21. Texte établi et traduit par J. Hardy: Paris, “Les Belles
Lettres”, 1932.
13. O vocábulo tragédia provém de τραγαδία (tragoidía) e esta possivelmente de τράγος
(trágos), bode, ᾠδή (oidé), canto, e o sufixo (ía), donde o latim tragoedia e o nosso tragédia.
14. Satura ou sátira, esta na época imperial, é palavra latina. Trata-se do feminino do
adjetivo satur, -a, -um, “farto, sortido”. Satura lanx é um prato, uma travessa “farta”, “sortida”,
isto é, um prato com as primícias de frutas e legumes que se ofereciam à deusa Geres, por
ocasião da colheita. Depois substantivada, Satura (Sátira) passou a designar “mistura de
prosa e verso de assuntos e metros vários”. Em literatura, Satura (Sátira) é a crítica às
instituições e pessoas; a censura dos males da sociedade e indivíduos. Nada tem a ver com
Sátiro, Σάτυρος (Sátyros), que é palavra grega e que talvez signifique em etimologia
popular “de pênis em ereção”. Os Sátiros eram semideuses rústicos e maliciosos, com o nariz
arrebitado e chato, com o corpo peludo, cabelos eriçados, dois pequenos cornos e com
pernas e patas de bode. A confusão se deve ao fato de satírico ser um adjetivo que tanto pode
provir de sátira quanto de Sátiro, graças à simplificação ortográfica. V. Dicionário míticoetimológico, verbete.
15. LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 61.
16. Fedra, esposa de Teseu, na ausência deste, apaixonou-se perdidamente pelo enteado
Hipólito. Repelida pelo filho do primeiro matrimônio de Teseu, Fedra matou-se, mas deixou
uma mensagem mentirosa ao marido, acusando-lhe o filho de tentar violentá-la, o que irá
provocar a morte do inocente Hipólito. Sobre este tema Eurípides compôs a lindíssima
tragédia Hipólito Porta-Coroa.
17. Toda colheita era considerada um presente dos deuses. Assim, enquanto não se fizesse
uma consumação ritual e uma oferta das primícias aos imortais, para afastar quaisquer
influências maléficas, a safra estava interditada, era tabu.
18. Usar máscara é encarnar o deus que ela representa. Transformando o exterior, a máscara
transfi•
gura o interior, permitindo a quem a usa o desempenho de funções próprias de um ser
divino ou de•
moníaco. Claro está que toda máscara cobre muito pouco do exterior, mas desnuda o
interior ...
19. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 216.
20. Tiaso, em grego θίασος (thíasos), significa “um grupo de pessoas ou uma confraria que
celebra um sacrifício em honra de um deus”, sobretudo de Dioniso, percorrendo
barulhentamente as ruas, cantando, dançando e gritando.
21. JEANMAIRE, H. Op. cit., p. 43lss.
22. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 2lss.
23. CHEVALIER,Jean & GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 358.
CAPÍTULO V
Orfeu, Eurídice e o Orfismo
1
ORFEU, em grego 'Ορφεύς (Orpheús). Por ter descido às trevas do
Hades, alguns relacionam o nome do citaredo trácio, ao menos por
etimologia popular, com ὀρφνός (orphnós), “obscuro”, ὄρφπνη
(órphne), “obscuridade”, mas não se conhece, realmente, a etimologia
do herói.
Trata-se de uma personagem mítica, possivelmente de origem
trácia. Era filho de Calíope, a mais importante das nove Musas e do
rei Eagro. Este, por motivos político-religiosos, como se verá depois, é
frequentemente substituído por Apolo. De qualquer forma, Orfeu
sempre esteve vinculado ao mundo da música e da poesia: poeta,
músico e cantor célebre, foi o verdadeiro criador da “teologia” paga.
Tangia a lira e a cítara, sendo que passava por ser o inventor desta
última ou, ao menos, quem lhe aumentou o número de cordas, de
sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Sua maestria na
cítara e a suavidade de sua voz eram tais, que os animais selvagens o
seguiam, as árvores inclinavam suas copadas para ouvi-lo e os
homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e de
bondade.
O que importa é que Orfeu é um herói muito antigo, pois já o
encontramos na expedição dos Argonautas. Sua existência era tão
real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a
cabeça como verdadeira relíquia. Educador da humanidade,
conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos
“mistérios”, completou sua formação religiosa e filosófica viajando
pelo mundo. De retorno do Egito, divulgou na Hélade a ideia da
expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os
mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem
neles se iniciasse.
Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa
Eurídice, a quem amava profundamente, considerando-a como
dimidium animae eius, como se ela fora a metade de sua alma.
Acontece que um dia (o poeta latino do século Ia.e., Públio Vergílio
Marão nos dá, no canto 4,453-527, de seu maravilhoso poema As
Geórgicas, a versão mais rica e mais bela do mitologema) o apicultor
Aristeu tentou violar a esposa do cantor da Trácia. Eurídice, ao fugir
de seu perseguidor, pisou numa serpente, que a picou, causando-lhe a
morte. Inconformado com a perda da esposa, o grande vate resolveu
descer às trevas do Hades, para trazê-la de volta.
Orfeu, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal forma o
mundo ctônio, que até mesmo a roda de Exíon parou de girar, o
rochedo de Sísifo deixou de oscilar, Tântalo esqueceu a fome e a sede
e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher tonéis sem
fundo. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone
concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, todavia,
uma condição extremamente difícil: ele seguiria à frente e ela lhe
acompanharia os passos, mas, enquanto caminhassem pelas trevas
infernais, ouvisse o que ouvisse, pensasse o que pensasse, Orfeu não
poderia olhar para trás, enquanto o casal não transpusesse os limites
do império das sombras. O poeta aceitou a imposição e estava quase
alcançando a luz, quando uma terrível dúvida lhe assaltou o espírito:
e se não estivesse atrás dele a sua amada? E se os deuses do Hades o
tivessem enganado? Mordido pela impaciência, pela incerteza, pela
saudade, pela “carência” e por invencível póthos, pelo desejo grande
da presença de uma ausência, o cantor olhou para trás,
transgredindo a ordem dos soberanos das trevas. Ao voltar-se, viu
Eurídice, que se esvaiu para sempre numa sombra, “morrendo pela
segunda vez ... “ Ainda tentou regressar, mas o barqueiro Caronte não
mais o permitiu.
Inconsolável e sem poder esquecer a esposa, fiel a seu amor, Orfeu
passou a repelir todas as mulheres da Trácia. As Mênades, ultrajadas
por sua fidelidade à memória da esposa, fizeram-no em pedaços. Há
muitas variantes acerca da morte violenta do filho de Eagro. Vamos
destacar duas delas. Conta-se que Orfeu, ao retornar do Hades,
instituiu mistérios inteiramente vedados às mulheres. Os homens se
reuniam com ele em uma casa fechada, deixando suas armas à porta.
Uma noite, as mulheres enfurecidas, apoderaram-se dessas armas e
mataram Orfeu e seus seguidores. Outra variante nos informa que,
tendo servido de árbitro na querela entre Afrodite e Perséfone na
disputa por Adônis, Calíope teria decidido que o lindíssimo filho de
Mirra permaneceria uma parte do ano com uma e uma parte com
outra. Magoada e irritada com a decisão, Afrodite, não podendo
vingar-se de Calíope, vingou-se no filho. Inspirou às mulheres
trácias uma paixão tão violenta e incontrolável que cada uma queria
o inexcedível cantor só para si, o que as levou a esquartejá-lo e
lançar-lhe os restos e a cabeça no rio Hebro. Ao rolar da cabeça pelo
rio abaixo, seus lábios chamavam por Eurídice e o nome da amada
era repetido pelo eco nas duas margens do rio.
Punindo esse crime abominável das mulheres trácias, os deuses
devastaram-lhe o país com uma grande peste. Consultado o oráculo
sobre como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só se
extinguiria quando se encontrasse a cabeça do vate e lhe fossem
prestadas as devidas honras fúnebres. Após longas buscas, um
pescador finalmente a encontrou na embocadura do rio Meles, na
Jônia, em perfeito estado de conservação e ali mesmo foi erguido um
templo em honra de Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. A
cabeça sagrada do cantor passou a servir de oráculo. Se a lira do
poeta, a qual após longos incidentes, foi parar na ilha de Lesbos,
berço principal da poesia lírica da Hélade, a Psiqué do cantor foi
elevada aos Campos Elísios, aqui no caso sinônimo de Ilha dos BemAventurados ou do próprio Olimpo, onde, revestido de longas vestes
brancas, Orfeu canta para os imortais.
2
Exposto resumidamente o mitologema, pois as variantes são
inúmeras, vamos tentar fazer-lhe alguns comentários, abordando os
aspectos que nos parecem mais importantes, deixando para a
terceira e última parte uma visão sobre o Orfismo.
Orfeu desceu à mansão do Hades e poderia ter trazido a esposa de
volta, se não tivesse olhado para trás. A catábase de Orfeu é a do tipo
tradicional, xamânico: o iniciado morre aparentemente e na
contemplação do além, “encontrando-se”, torna-se detentor do saber
e dos mistérios, nos quais procurará orientar seus seguidores, para
que, preparando-se adequadamente nesta vida, “se encontrem” na
outra1.
Na realidade, o grande desencontro de Orfeu no Hades foi o de ter
olhado para trás, de ter voltado ao passado, de ter-se apegado à
matéria, simbolizada por Eurídice. Um órfico autêntico, segundo se
verá mais adiante, jamais “retorna”. Desapega-se, por completo, do
viscoso do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o
citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção
harmônica e definitiva com sua anima2 Eurídice. Seu
despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o
comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até
mesmo uma catábase ao mundo das sombras, somente escalou o
luminoso Olimpo após uma morte violenta numa fogueira no monte
Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções. Estas,
bem como os lados e os pontos cardeias, possuíam, nas culturas
antigas, um simbolismo muito rico.
A matrilinhagem sempre deu nítida preferência à esquerda: esta
pertence à feminilidade passiva; a direita, à atividade masculina,já
que a força está normalmente na mão direita e foi, através da força,
da opressão, que a direita, o homem, execrou a esquerda, a mulher. O
tabu dos canhotos sempre foi um fato consumado. Diga-se, aliás, de
passagem, que um dos muitos epítetos do Diabo é Canhoto. A
superioridade da esquerda estava, por isso mesmo, ligada à
matrilinhagem, entre outros motivos porque é a noite (oeste) que dá
nascimento ao dia, lançando o sol de seu bojo, parindo-o
diariamente. Daí, a cronologia entre os primitivos ser regulada pela
noite, pela Lua; daí também o hábito, desde tempos imemoriais, da
escolha da noite para travar batalha, para fazer reuniões, para
proceder a julgamentos, para realizar determinados cultos, como os
Mistérios de Elêusis e o solene autojulgamento dos reis da Atlântida ...
Observe-se que entre Grécia e Roma a designação de esquerda
diverge profundamente. Em latim, direita é dextera ou dextra, que
talvez, ao menos do ponto de vista da etimologia popular, pode se
aproximar de decet, “o que é conveniente”, e esquerda é sinistra, de
mau presságio, funesto, “sinistro”; em grego, direita é δεxιά (deksiá)
que, como se observa, tem a mesma raiz que o latim dextra e
significa “de bom augúrio, favorável” e esquerda é ἀριστερά
(aristerá), etimologicamente a “excelente, a ótima”, uma vez que
aristerá se prende ao superlativo ἄριστος (áristos), “o melhor, o
mais nobre, o ótimo”. Trata-se evidentemente de um eufemismo que
a inteligência grega engendrou para amortecer o impacto da
esquerda, da sinistra. Os pontos cardeais atestam igualmente não
apenas adicotomia matrilinhagem-patrilinhagem, mas também o
azar e a sorte, o perigo e a segurança. Talvez, partindo-se do inglês, as
coisas fiquem mais claras: West, “oeste”, cf. Wespero, é a tarde, a boca
da noite, como em grego ἑσπέρα (hespéra), “tarde”, em latim
uespera, “tarde” e em português véspera, vespertino ... Oeste é onde
“morre” o sol e começa a noite, donde em latim occidens, o que morre,
“ocidente”: é o lado nobre da matrilinhagem, e nefasto para a
patrilinhagem, porque é a esquerda. North, “norte”, cf. ner, debaixo”,
isto é, à esquerda do nascimento do sol. É também um dos lados
propícios à matrilinhagem. Daí Ner-eu, Ner-eidas, divindades da
água, vinculadas ao feminino. Easte, “leste”, cf. awes, ideia de
“brilhar”, em grego ἠώς (eós), “aurora”; em latim existe o adjetivo,já
da época da decadência, ostrus, -a, -um, “vermelho”, que está ligado a
oriens, “o que nasce”, o sol nascente. Aliás, púrpura em latim se diz
ostrum. Leste, à direita, é o lado nobre da patrilinhagem. South, “sul”,
cf. sawel, swen, “à direita do nascimento do sol”, é igualmente um dos
lados do masculino.
É assim que olhar para a frente é desvendar o futuro e possibilitar
a revelação; para a direita é descobrir o bem, o progresso; para a
esquerda é o encontro do mal, do caos, das trevas; para trás é o
regresso ao passado, às hamartíai, às faltas, aos erros, é a renúncia ao
espírito e à verdade.
Em Gênesis 19,17-26, uma das recomendações que os dois anjos
dejavé, enviados para destruir Sodoma e Gomorra, fizeram a Ló foi
que, abandonando Sodoma com a família, não olhasse para trás:
salua animam tuam, noli respicere post tergum - “salva tua vida, não
olhes para trás”, mas a mulher do patriarca olhou para trás e foi
transformada numa coluna de sal. Acerca desse episódio do Antigo
Testamento há uma excelente interpretação estruturalista do Dr. D.
Alan Aycok3, que, lato sensu, chega à mesma conclusão que
aventamos para a desobediência de Orfeu. A mulher de Ló foi
transformada em estátua de sal (símbolo, entre outros, de
purificação, esterilidade e contrato social, e os três significados
poderiam ser aplicados a Ló e sua família), por seu apego a uma
cidade condenada à ruína, por causa de seus pecados; quer dizer, a
esposa de Ló, olhando para trás, “voltou ao passado” e sofreu, com
isso, as consequências de sua desobediência a Javé.
Na Odisseia, X, 528, Ulisses, seguindo o conselho da feiticeira
Circe, dirigiu-se ao país dos mortos para consultar Tirésias. Segundo
a recomendação da temível maga, o esposo de Penélope deveria fazer
um sacrifício aos habitantes do Hades, ficando de costas para o
mesmo e, portanto, sem olhar para trás, já que o mundo dos mortos se
localizava no oeste, no ocidente.
No Édipo em Colono de Sófocles, 490, o Corifeu, após ensinar ao
alquebrado Édipo como fazer um sacrifício às Eumênides,
acrescenta: ἔπειτ' ἀφέρπειν ἄστροφος (épeit’ aphérpein
ástrophos), “retira-te, em seguida, sem olhar para trás”.
Nas Coéforas, 91-99, segunda tragédia da trilogia Oréstia, de
Ésquilo, Electra pergunta ao coro como deverá fazer libações sobre o
túmulo de seu pai Agamêmnon, assassinado pela esposa
Clitemnestra: Electra (dirigindo-se ao Coro)
Não sei o que dizer, ao derramar esta oferenda no túmulo de meu pai. Serd
que devo empregar a fórmula ritual: “que recompense os que lhe enviam esta
homenagem”! retribuindo-a com dddiva digna de seus crimes? Ou silenciosa,
de modo ultrajoso - pois foi assim que morreu meu pai - espalharei estas
libações no solo que as beberd e ir-me-ei, depois de atirar este vaso, sem olhar
para trds, como quem arroja um objeto lustral depois do uso? ...
Igualmente, na Écloga 8,101-103, Vergílio emprega, numa fórmula
de encantamento, o mesmo processo. A pastora Amarílis lançará
cinzas em água corrente, para trazer de volta ao campo seu amado
pastor Dáfnis:
Fer cineres, Amarylli, foras, riuoque fluenti transque caput iace, nec
respexeris. His ego Daphnim adgrediar; nihil ille deos, nil carmina curat.
- Traze para fora as cinzas, Amarílis, e lança-as por cima da cabeça, em água
corrente, mas não olhes para trás. Com isso pretendo atrair Dáfnis, que não
mais se preocupa nem com os deuses, nem com os encantamentos.
Na magia imitativa por contágio são inúmeros os métodos
empregados para a transferência de males e doenças. Essa permuta,
nas culturas primitivas (e até hoje), pode ser feita através de pedras,
troncos de árvores, frutos, ramos, flocos de algodão, peças do
vestuário. Basta friccionar a parte de que se sofre num desses objetos
e levá-lo inteiro ou fragmentado, em “determinadas horas” do dia ou
da noite (meio-dia, crepúsculo, meia-noite) para junto de uma árvore,
reentrância de pedra, encruzilhada, e aí abandoná-lo: a transferência
está feita, desde que, em se retirando, não se olhe para trás.
A Orfeu, buscando Eurídice, à mulher de Ló, fugindo da cidade
maldita, ou a nossos feiticeiros, fazendo seus despachos, a
recomendação é sempre a mesma: não olhar para trás. A exigência
feita a Orfeu pelo soberano dos mortos é parte integrante de outros
interditos que, nas culturas primitivas, pesavam sobre vários tipos de
atividade. O trabalhador, ao traçar o primeiro sulco na terra, para
depositar a semente, deveria permanecer em absoluto silêncio, como
as mulheres que dispunham o fio da teia para fazer o tecido, como os
encarregados de abrir uma sepultura e como aqueles que
acompanhavam um cortejo fúnebre. Iniciado o trabalho, não se
podia interrompê-lo e tampouco olhar para trás. Forças invisíveis
estavam presentes e podiam agastar-se com uma palavra dita
irrefletidamente ou mesmo irritar-se perigosamente por terem sido
vistas às escondidas.
Orfeu foi o homem que violou o interdito e ousou olhar o
invisível. Olhando para trás e, por causa disso, perdendo Eurídice, o
citaredo, ao regressar, não mais pôde tanger sua lira e sua voz divina
não mais se ouviu. Perdendo Eurídice, o poeta da Trácia perdeu-se
também como indivíduo, como músico e como cantor. É que a
hannonia se partiu. Atente-se para a etimologia deste vocábulo: em
grego ápµovía (harmonía) significa precisamente “junção das partes”.
Orfeu descompletou-se, desindividuou-se. A segunda parte do
symbolon se fora. O encaixe, a harmonia agora somente será possível,
se houver um “retorno perfeito”.
3
Ao regressar do Hades, como já se viu, Orfeu foi despedaçado
pelas Mênades e sua cabeça lançada no rio Hebro, tendo sido, mais
tarde, encontrada por um pescador.
A cerimônia do despedaçamento simbólico do neófito ou mesmo
iniciado, sempre relembrado no diasparagmós grego, quando se fazia
em pedaços um animal, para recordar o “renascimento” de Dioniso,
como se viu mais atrás, à p. 143, é um rito bem atestado em muitas
culturas e sua finalidade última, já o frisamos, é fazer o neófito ou o
iniciado renascer numa forma superior de existência. Assim o foi,
entre outros, com Osíris, Dioniso e Orfeu.
Quanto à cabeça ou crânio, é bom deixar bem claro que essa parte
nobre do corpo possuía em quase todas as culturas uma importância
extraordinária. A cabeça de um inimigo morto, mormente se fosse
um rei, um chefe, um general ou mesmo um simples combatente que
se tivesse destacado pela coragem, era oferecida como presa de honra
ao chefe tribal, ao rei ou ao guerreiro que houvesse praticado a
façanha de eliminar o inimigo.
Sede do pensamento e, por conseguinte, do comando supremo, o
crânio é o mais importante dos quatro centros (os outros três estão
situados na base doesterno, no umbigo e no sexo) em que, consoante
Chevalier e Gheerbrant4, os Bambara sintetizam sua representação
macrocósmica do homem. Homólogo, em muitas culturas, da
abóbada celeste, o Rig-Veda considera esta última como formada
pelo crânio do ser primordial. O culto do crânio, no entanto,
acrescentam os supracitados autores, não se restringe a cabeças
humanas. Entre os grandes caçadores de épocas primitivas, troféus
animais desempenhavam um papel ritual relevante, porque estavam
relacionados simultaneamente com a afirmação da superioridade
humana, atestada em suas aldeias pela presença do crânio de um
grande javali, e com a preocupação pela conservação da vida, uma
vez que, como vértice do esqueleto, o crânio se constitui no que há de
imperecível no corpo humano, isto é, a alma. Quem se apropria de
um crânio, apodera-se igualmente de sua energia vital, de seu mana.
O historiador latino Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), em sua História
Romana, 23, 24, conta que, em 216 a.C., tendo os gauleses cisalpinos
destruído o exército do cônsul romano Postúmio levaram em triunfo
os despojos e a cabeça do magistrado: Seu crânio, diz o historiador,
ornamentado com um círculo de ouro, servia-lhes de vaso sagrado na
oferenda de libações, por ocasião das festas. Os pontífices e os
sacerdotes do templo usavam-no como taça e, aos olhos dos gauleses, a
presa foi tão importante quanto a vitória.
Ponto culminante do esqueleto, com sua forma de cúpula e sua
função de centro espiritual, o crânio é muitas vezes denominado o
céu do corpo humano. Considerado como sede da força vital, do
mana do corpo e do espírito, quanto maior o número de crânios
reunidos, maior a energia que dos mesmos se desprende, o que
explica os montes de crânios encontrados nas escavações.
Símbolo da morte física, o crânio é análogo à putrefação
alquímica, como o túmulo o é do atanor: o homem novo sai do crisol,
onde o homem velho se destrói, para transformar-se.
Jung nos dá uma síntese admirável da eficácia da cabeça: “O culto
do crânio é um procedimento espalhado por toda parte. Na
Melanésia e na Polinésia são principalmente os crânios dos
ancestrais que estabelecem a relação com os espíritos ou servem de
paládios, como acontece, por exemplo, com a cabeça de Osíris, no
Egito. O crânio desempenha também papel considerável entre as
relíquias dos santos. [ ... ] A cabeça, e partes dela (como o cérebro), são
usadas como alimento de eficácia mágica ou como meio de
aumentar a fertilidade dos campos.
É de particular importância para a tradição alquímica o fato de
que na Grécia também se conhecia a cabeça oracular. Eliano5, por
exemplo, nos relata que Cleômenes de Esparta guardava a cabeça de
seu amigo Arcônidas numa panela contendo mel e a consultava
como oráculo. O mesmo se dizia da cabeça de Orfeu. Onians nos
lembra muito acertadamente que a ψυχή (psykhé), cuja sede era a
cabeça, corresponde ao “inconsciente” moderno, e isto naquele
estágio em que a consciência era localizada com o θυμός e o
φρέωες, dentro do peito ou na região do coração. Por isso é que a
expressão de Píndaro, designando a alma como αἰῶνος εἰδωλον
(imagem do éon), é sumamente significativa, pois o inconsciente não
produz apenas oráculos, como também sempre representa o
microcosmo”6.
Eis aí por que os deuses somente suspenderam o terrível flagelo
que devastava a Trácia, depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu
e se lhe prestaram as devidas honras fúnebres. Dotado de mana
inesgotável, o crânio do vate e cantor tornou-se paládio poderoso e
oráculo indiscutível.
4
Tem razão Mircea Eliade, ao afirmar que “parece impossível
escrever sobre Orfeu e o Orfismo sem irritar certa categoria de
estudiosos: quer os céticos e os ‘racionalistas’, que minimizam a
importância do orfismo na história da espiritualidade grega, quer os
admiradores e os ‘entusiastas’, que nele veem um movimento de
enorme alcance”7. Falar de Orfismo é, no fundo, descontentar a
gregos e troianos. Apesar dos pesares, vamos nós também entrar na
guerra ...
Na realidade, o Orfismo é um movimento religioso complexo, em
cujo bojo, ao menos a partir dos séculos VI-Va.C., se pode detectar
uma série de influências (dionisíacas principalmente, pitagóricas,
apolíneas e certamente orientais), mas que, ao mesmo tempo, sob
múltiplos aspectos, se coloca numa postura francamente hostil a
muitos postulados dos movimentos também religiosos supracitados.
Embora de maneira sintética, porque voltaremos obrigatoriamente
ao assunto mais abaixo, vamos esquematizar as linhas básicas de
oposição entre Orfeu e os princípios religiosos preconizados por
Dioniso, Apolo e Pitágoras. Se bem que o profeta da Trácia se
considere um sacerdote de Dioniso e uma espécie de propagador de
suas ideias básicas, de modo particular no que se refere ao aspecto
orgiástico, bem como ao êxtase e ao entusiasmo, quer dizer, à posse
do divino, o Orfismo se opõe ao Dionisismo, não apenas pela rejeição
total do diasparagmós e da omofagia, porquanto os órficos eram
vegetarianos, mas sobretudo pela concepção “nova” da outra vida,
pois, como se mostrou mais atrás, à p. 144, ainda que a religião
dionisíaca tente expressar a unidade paradoxal da vida e da morte,
não existem na mesma referências precisas à esperança escatológica,
enquanto a essência do Orfismo é exatamente a soteriologia.
Acrescente-se a tudo isto que, enquanto o êxtase dionisíaco se
manifestava de modo coletivo, o órfico era, por princípio, individual.
Curioso é que Orfeu era conhecido como “o fiel por excelência de
Apolo” e até mesmo, numa variante do mito, passava por filho de
Apolo e de Calíope. Sua lira teria sido um presente paterno e a grande
importância que os órficos atribuíam à kdtharsis, à purificação, se
devia ao deus de Delfos, uma vez que esta é uma técnica
especificamente apolínea. A bem da verdade, somente a última
afirmação é exata: os órficos realmente se apossaram da kdtharsis
apolínea, ampliando-a, no entanto, aperfeiçoando-a e sobretudo
“purificando-a” de suas conotações políticas. No tocante “à fidelidade
e à filiação” de Orfeu, ambas expressam a investida dos sacerdotes de
Delfos de se “apossarem” também de Orfeu, como, em grande parte,já
o haviam feito com Dioniso, “apolinizando-o” e levando-o para o
Olimpo. A catequese apolínea, todavia, não surtiu efeito com o filho
de Calíope, porque nada mais antagônico que Orfeu e Apolo. Este,
“exegeta nacional”, comandou a religião estatal com mão de ferro,
freando qualquer inovação com base no métron traduzido no
conhece-te a ti mesmo e no nada em demasia! Uma quase liturgia sem
fé, a religião da pólis se resumia, em última análise, num festival
sócio-político-religioso. Que prometia Apolo para o post mortem?
Quais as exigências éticas e morais da religião oficial? Que se
celebrassem condigna e solenemente as festas religiosas ... E depois?
Talvez a resposta tenha sido dada bem mais tarde por Quinto
Horácio Flaco: puluis et umbra sumus, somos pó e sombra! Pó e
sombra, nada além da triste escatologia homérica, que a religião
estatal, opressora e despótica teimava em manter sob a égide de
Apolo.
E até mesmo a kdtharsis apolínea visava primariamente à
purificação do homicídio, ao passo que os órficos purificavam-se
nesta e na outra vida com vistas a libertar-se do ciclo das existências.
A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.
Fundamentando-se numa singular antropologia, numa inovadora
teogonia e em novíssima escatologia, o Orfismo aprendeu a reservar
as lágrimas para os que nasciam e o sorriso para os que morriam ...
Entre o Pitagoricismo e o Orfismo, do ponto de vista religioso, há,
efetivamente, semelhanças muito grandes: o dualismo corpo-alma; a
crença na imortalidade da mesma e na metempsicose; punição no
Hades e glorificação final da Psiqué no Elísion; vegetarismo,
ascetismo e a importância das purificações. Todas essas semelhanças
levaram muitos a considerar erradamente o Orfismo como mero
apêndice do Pitagoricismo, mas tantas analogias não provam, como
acentua Mircea Eliade, “a inexistência do Orfismo como movimento
autônomo”. É muito possível, isto sim, que certos escritos religiosos
órficos sejam de cunho, inspiração ou até mesmo obra de pitagóricos,
mas não teria sentido pensar ou defender que a antropologia, a
teogonia, a escatologia e os rituais órficos procedam de Pitágoras ou
de seus discípulos. Os dois movimentos certamente se
desenvolveram paralela e independentemente.
Mas, se existem tantas semelhanças entre ambos, as diferenças
são também acentuadas, sobretudo no que tange ao social, à política,
ao modus uiuendi e ao aspecto cultural. Os pitagóricos organizavamse em seitas fechadas, de tipo esotérico. Movimento religioso de elite,
talvez não fosse impertinente lembrar a obrigatoriedade pitagórica
do silêncio e da abdicação, por parte de seus seguidores, da própria
razão em favor da autoridade do mestre. Consideravam a sentença
de seu fundador como a última palavra, uma espécie “de aresto
inapelável e expressão indiscutível da verdade”. Depois do αὐτὸς
ἔφη (autàs éphe), ipse dixit, “ele falou”, não havia mais o que discutir.
De outro lado, os pitagóricos eram homens cultos e dedicavam-se
a um sistema de “educação completa”: complementavam suas
normas éticas, morais e ascéticas com o estudo em profundidade da
música, da matemática e da astronomia, embora todas essas
disciplinas e normas visassem, em última análise, a uma ordem
mística.
Mircea Eliade sintetiza essa ciência pitagórica de finalidade
religiosa: “Entretanto, o grande mérito de Pitágoras foi ter assentado
as bases de uma ‘ciência total’, de estrutura holística, na qual o
conhecimento científico estava integrado num conjunto de
princípios éticos, metafísicos e religiosos, acompanhado de diversas
‘técnicas do corpo’. Em suma, o conhecimento tinha uma função ao
mesmo tempo gnosiológica, existencial e soteriológica. É a ‘ciência
total’, do tipo tradicional, que se pode reconhecer tanto no
pensamento de Platão como entre os humanistas do Renascimento
italiano, em Paracelso ou nos alquimistas do século XVl8.
O Pitagoricismo estava, ademais disso, voltado para a política. É
sabido que “sábios pitagóricos” detiveram o poder, durante algum
tempo, em várias cidades do sul da Itália, a Magna Graecia.
O Orfismo, ao contrário do Pitagoricismo, era um movimento
religioso aberto, de cunho democrático, ao menos na época clássica,
e, embora contasse em seu grêmio com elementos da elite,jamais se
imiscuiu em política e tampouco se fechou em conventículos de tipo
esotérico. Se bem que o Papiro Derveni, datado do século IV a.C. e
descoberto em 1962, perto da cidade de Derveni, na Tessalônica, dê a
entender que, em época remota,já que o papiro é um comentário de
um texto órfico arcaico, os seguidores de Orfeu se reuniam ou se
fechavam em verdadeiras comunidades, não se pode, no período
histórico, afirmar a existência de seitas órficas, no sentido de
“conventos” em que se trancassem. Talvez o Orfismo fosse mais uma
“escola”, uma comunidade, com seus mestres, que explicavam as
doutrinas e orientavam os discípulos e iniciados na leitura da vasta
literatura religiosa que o movimento possuía. Claro está que, com
exceção do Papiro Derveni e das lamelas, de que se falará mais
abaixo, os textos órficos de caráter “literário” que chegaram até nós
são poucos e alguns de época bem recente, mas é necessário
distinguir “a data da redação de um documento com a idade de seu
conteúdo” e alguns dos escritos órficos pertencem inegavelmente a
épocas bem tardias: uns pela data da redação, outros pelo conteúdo.
Feito esse ligeiro balanço das convergências e divergências entre
dionisismo, apolinismo, orfismo e pitagoricismo, vamos, agora, dar
uma ideia das datas de Orfeu, da antiguidade do Orfismo e de
algumas possíveis influências sobre ele exercidas pelo Oriente.
Se Orfeu é uma figura integralmente lendária, o Orfismo é
rigorosamente histórico. Enquanto Homero e Hesíodo iam dando
forma poética às concepções religiosas do povo, havia na Hélade,
desde o século VI a.C. ao menos, uma escola de poetas místicos que se
autodenominavam órficos, e à doutrina que professavam davam-lhe
o nome de Orfismo. Seu patrono e mestre era Orfeu. Organizavam-se,
ao que tudo indica, em comunidades, para ouvir a “doutrina”, efetuar
as iniciações e celebrar seu grande deus, o primeiro Dioniso,
denominado Zagreu. Abstendo-se de comer carne e ovos (princípios
da vida), praticando a ascese (devoção, meditação, mortificação) e
uma catarse rigorosa (purificação do corpo e sobretudo da vontade,
por meio de cantos, hinos, litanias), defendendo a metempsicose (a
transmigração das almas) e negando os postulados básicos da religião
estatal, o Orfismo provocou sérias dúvidas e até transformações no
espírito da religião oficial e popular da Grécia. Quando se disse, no
início deste capítulo, que Orfeu era um herói muito antigo, não se
estava exagerando. Se bem que o nome do poeta e cantor surja pela
vez primeira no século VI a.C., mencionado pelo poeta Íbico, de
Régio, Frg. lOA, Bergk: 'Ονομακλυτως 'Ορφήν (Onomaklytos
Orphén), “Orfeu de nome ilustre”, e ainda no mesmo século, o
citaredo tenha seu nome, sob a forma 'Ορφας (Orphas), gravado
numa métopa do Tesouro dos Siciônios em Delfos, seus adeptos o
consideravam anterior a Homero. Pouco importa que o profeta de
Zagreu tenha “vivido” antes ou depois do poeta da Ilíada. Se seus
seguidores assim o proclamavam, é porque acreditavam no fato ou
porque desejavam enfatizar e também aumentar-lhe a autoridade,
fazendo-o ancestral do próprio símbolo da religião oficial, e salientar
a importância de sua mensagem religiosa, cujo conteúdo contrasta
radicalmente com a religião olímpica. Uma coisa, porém, é inegável:
certos traços da “biografia” de Orfeu e o conteúdo de sua mensagem
possuem inegavelmente um caráter arcaizante e o que se conhece de
uns e de outro bastaria para localizar o esposo de Eurídice bem antes
de Homero.
Como os xamãs, Orfeu é curandeiro, músico e profeta; tem
poderes de encantar e dominar os animais selvagens; através de uma
catábase do tipo xamânico desce ao Hades à procura de Eurídice; é
despedaçado pelas Mênades e sua cabeça se conserva intacta,
passando a servir de oráculo; e, mais que tudo, é sempre apresentado
como fundador de iniciações e de mistérios. Mais ainda: embora se
conheçam apenas “os atos preliminares” dos mistérios e das
iniciações tidas como fundadas por Orfeu, como o vegetarismo, a
ascese, a catarse, os ἱεροὶ λόγοι (hierol lógoi), ou seja, “os livros
sagrados” que continham a instrução religiosa e particularmente as
posições teológicas cifradas na antropogonia, na teogonia, na
escatologia e na metempsicose, duas conclusões se impõem:
primeiro, se bem que se desconheçam a origem e a pré-história de
Orfeu e do Orfismo, ambos estão muito longe da tradição homérica e
da herança mediterrânea; segundo, as características xamânticas de
sua biografia e o conteúdo de sua mensagem, que se contrapõem por
inteiro à mentalidade grega do século VI a.C. e à religião olímpica de
Apolo, postulam para Orfeu e para o Orfismo uma época bem
arcaica.
R. Pettazzoni defende, se não a origem, pelo menos uma
influência marcante da trácia sobre o Orfismo: “Quaisquer que sejam
suas mais remotas origens, um fato não se discute: o Orfismo se
alimentou, desde cedo, de uma seiva religiosa proveniente da Trácia,
e esta, por ter mantido o orgiasmo em sua espontaneidade natural,
continuará a nutri-lo, graças às relações mais estreitas que, a partir
do século VI a.C., Atenas começou a manter com o mundo bárbaro
do Norte”9.
Não há dúvida de que não se podem negar certas influências
tracodionisíacas e, sobretudo, orientais sobre todo o Orfismo, mas
alguns de seus ângulos, de modo especial a escatologia, parecem
remontar a “uma herança comum imemorial, resultado de
especulações milenares sobre os êxtases, as visões e os
arrebatamentos, as aventuras oníricas e as viagens imaginárias,
herança, por certo, diferentemente valorizada pelas diversas
tradições”. No fundo, um arquétipo.
Na Grécia, o mais notável representante do Orfismo e da poesia
órfica foi o hábil versificador e imitador medíocre de Homero e
Hesíodo, o célebre Onomácrito (século VI a.C.), sobre quem dizia
Aristóteles, Frg. 7 Rose, que “a doutrina era de Orfeu, mas a expressão
métrica pertencia a Onomácrito”.
Antes de passarmos aos três pontos altos da doutrina órfica,
vamos estampar, a título de conclusão de quanto se disse até agora, a
admirável síntese dosábio e seguro professor sueco, Martin P.
Nilsson, acerca do Orfismo e de sua significação religiosa: “O
Orfismo é o compêndio e, ao mesmo tempo, o coroamento dos
agitados e complexos movimentos religiosos da época arcaica. A
constituição de uma cosmogonia em sentido especulativo, com o
encaixe de uma antropogonia que, antes do mais, pretende explicar a
dupla natureza do homem, composta de bem e de mal; o ritualismo
nas cerimônias e na vida; o misticismo na doutrina e no culto; a
elaboração de ideias acerca de uma vida no além, plástica e concreta,
bem como a transformação do inferno em um lugar de castigo por
influxo da exigência de reparação, segundo a ideia antiga de que a
vida no outro mundo é uma repetição da existência sobre a terra.
Tudo isto se pode constatar em outras partes, ao menos em esboço,
mas a grandeza do Orfismo reside em ter combinado o todo numa
estrutura harmônica. Sua realização genial foi situar o indivíduo e
sua relação com a culpa e com a reparação da mesma no próprio
âmago da religião. Desde o início, o Orfismo se apresentou como uma
religião de minorias seletas e, por isso mesmo, muitos se sentiram
repelidos por seus ritos primitivos e pela grotesca e fantástica
indumentária mitológica de suas ideias. A evolução seguiu depois
outro caminho: o ar claro e fresco do grande auge nacional, que se
seguiu à vitória sobre os persas, dissipou as trevas e fez que se
tornasse vitoriosa a tendência do espírito grego para a claridade e
beleza sensível. O Orfismo mergulhou, então, como seita desprezada,
nos estratos inferiores da população, onde continuou a vicejar até
que os tempos novamente se transformassem e viesse abaixo a
supremacia do espírito grego após meio milênio. Foi, então, que, mais
uma vez, saiu à tona e contribuiu para a derradeira crise religiosa da
antiguidade”10.
5
Os três pontos altos do Orfismo e sua mais séria contribuição
para a religiosidade grega foram a cosmogonia, a antropogonia e a
escatologia. Três inovações que hão de abalar os nervos da intocável
religião olímpica.
A cosmogonia órfica que, sob alguns aspectos, segue o modelo da
de Hesíodo, já por nós exaustivamente exposta nos capítulos IX, X,
XI, XII e XIII, do Vol. I, introduz novo motivo, aliás de caráter arcaico,
já que se repete em várias culturas: o cosmo surgiu de um ovo. Mas não
existe apenas este paradigma, pois são três as tradições cosmogônicas
transmitidas pelo Orfismo. A primeira delas está nas chamadas
Rapsódias Órficas11 : Crono, o Tempo, gera no Éter, por ele criado
juntamente com o Caos, o Ovo primordial, onde tem origem o
primeiro dos deuses, Eros, também chamado Fanes12, deus-criador,
andrógino. Daí por diante a sequência é a mencionada por Hesíodo,
ao menos até Zeus. Fanes (Eros) é, pois, o princípio da criação, que
gerou os outros deuses. Zeus, no entanto, engoliu a Fanes e toda a
geração anterior, criando um novo mundo. Observe-se que o tema da
absorção é um fato comum em várias culturas. Crono devorara os
filhos e o próprio Zeus engoliu sua esposa Métis, antes do
nascimento de Atená. O gesto de Zeus, no caso em pauta, é
significativo na cosmogonia órfica: de um lado, patenteia a tentativa
de fazer de um deus cosmocrata, isto é, de uma divindade, que
conquistou o governo do mundo pela força, um deus-criador; de
outro, reflete uma séria indagação filosófica do século VI a.C., pois,
como é sabido, o pensamento filosófico e religioso desta época
preocupou-se muito com o problema do Um e do Múltiplo. Guthrie
sintetiza bem essa indagação. Os espíritos religiosos do século VI a.C.
se perguntavam com certa ansiedade: “Qual a relação existente entre
cada indivíduo e o deus a que se sente aparentado? Como se pode
realizar a unidade potencial implícita tanto no homem quanto no
deus”? Por outra: “Qual a relação existente entre a realidade múltipla
do mundo em que vivemos e a substância única e original de onde
tudo procede?”13 O ato prepotente de Zeus, por conseguinte,
engolindo a Fanes e a todos os seres, simboliza a tentativa de explicar
a criação de um universo múltiplo a partir da Unidade.
O mito de Fanes, apesar dos retoques, tem uma estrutura arcaica e
reflete certas analogias com a cosmogonia oriental, principalmente
com a egípcio-fenícia. Como esta versão teogônica órfica é a mais
conhecida e, talvez, a mais importante na história do Orfismo, vamos
esquematizá-la:
A segunda tradição cosmogônica órfica é difusa e admite várias
alternativas. Em resumo, reduz-se ao seguinte: Nix (Noite) gerou
Úrano (Céu) e Geia (Terra), o primeiro casal primordial, donde
procede, como em Hesíodo, o restante da criação; ou Oceano, de que
emergiu Crono (Tempo), que, mais tarde, gerou Éter e Caos; ou ainda
Monds (UM) que gerou É ris (Discórdia), que, por sua vez, separou
Geia de Oceano (Águas) e de Úrano (Céu).
A terceira e última tentativa órfica de explicar a origem do
mundo foi recentemente revelada pelo já citado Papiro Derveni, em
que tudo está centrado em Zeus. Um verso de “Orfeu” (col. 13,12)
afirma categoricamente que “Zeus é o começo, o meio e o fim de
todas as coisas”.
Para Orfeu, Moira (Destino) é o próprio pensamento de Zeus (cal.
15,5-7): “Quando os homens dizem: Mafra teceu, entendem que o
pensamento de Zeus estipulou o que é o que será, bem como o que
deixará de ser”. Oceano (cal. 18, 7-11) não é mais que uma hipóstase de
Zeus, tanto quanto Geia (Deméter), Reia e Hera não passam de
nomes diferentes de uma única deusa, quer dizer, de uma Grande
Mãe.
Para explicar o ato criador do pai dos deuses e dos homens, o
texto afirma, sem mencionar a parceira, que Zeus fez amor “no ar”,
literalmente, “no alto, por cima”, nascendo então o mundo. A
unidade da existência (cal. 15,1-3) é igualmente proclamada: “o lógos
do mundo é idêntico ao lógos de Zeus”, donde se pode concluir com
Heráclito (Frg. B 32) que o nome que designa o “mundo” é “Zeus”.
Como se pode observar, a cosmogonia órfica, particularmente a
revelada pelo Papiro Derveni, caminhou a passos largos para uma
tendência monista.
Em conclusão: tomada em conjunto, a teogonia órfica possui
elementos provenientes da Teogonia de Hesíodo, que influenciou
quase todo o pensamento mitológico posterior respeitante ao
assunto. É assim que a Noite e o Caos tiveram importância
considerável nos contextos órficos. Estes elementos circularam por
meio de variantes arcaicas e tardias e acabaram sendo engastadas
num complexo mitológico órfico e individual. Outras facetas da
cosmogonia órfica, como o Tempo (Khrónos) e o Ovo dão mostras de
que se conheciam pormenores do culto e da iconografia orientais. O
Tempo, particularmente, trai sua proveniência oriental nos relatos
órficos pela forma concreta com que se apresenta: uma serpente
alada e policéfala. Tais monstros multidivididos são orientalizantes
nas suas características, principalmente de origem semítica, e
começam a surgir na arte grega por volta do século VIII a.C.
A antropologia, ou melhor, a antropogonia órfica, tem como
consequência o crime dos Titãs contra Zagreu, o primeiro Dioniso.
Segundo se mostrou mais atrás, às p. 121-122, após raptarem Zagreu,
por ordem de Hera, os Titãs fizeram-no em pedaços, cozinharam-lhe
as carnes num caldeirão e as devoraram. Zeus, irritado, fulminou-os,
transformando-os em cinzas e destas nasceram os homens, o que
explica que o ser humano participa simultaneamente da natureza
titânica (o mal) e da natureza divina (o bem), já que as cinzas dos
Titãs, por terem devorado a Dioniso-Zagreu, continham igualmente
o corpo do menino Dioniso.
O mito do nascimento do homem, a antropogonia, é muito mais
importante no Orfismo do que a Cosmogonia. Platão (Leis, 3,701B)
refere-se à antropogonia órfica, ao dizer que todos aqueles que não
querem obedecer à autoridade constituída, aos pais e aos deuses,
patenteiam sua natureza titânica, herança do mal. Mas cada ser
humano, diz o filósofo ateniense, carrega dentro de si uma faísca de
eternidade, uma chispa do divino, uma parcela de Dioniso, ou seja,
uma alma imortal, sinônimo do bem. Em outra passagem (Crátílo,
400C), alude à doutrina, segundo a qual o corpo é uma sepultura da
alma durante a vida e acrescenta que os órficos chamam assim ao
corpo, porque a alma está encerrada nele como num cárcere, até que
pague as penas pelas culpas cometidas. A Psiqué é a parte divina do
homem; o corpo, sua prisão.
Apagava-se, destarte, no mapa religioso órfico, a tradicional
concepção homérica que considerava o corpo como o homem mesmo
e a alma como uma sombra pálida e abúlica, segundo se mostrou no
Vol. 1, p. 153-154. Uma passagem importante de Píndaro (Frg. 131
Bergk) permite-nos compreender melhor como foi possível essa
mutação completa de valores. O corpo, diz o poeta tebano, segue a
poderosa morte; a alma, porém, que procede apenas dos deuses,
permanece. A alma, acrescenta, dorme, enquanto nossos membros
estão em movimento, mas aquele, que a faz dormir, mostra-lhe em
sonhos o futuro. Desse modo, se os sonhos são enviados pelos deuses
e a alma é divina, é preciso libertá-la do cárcere do corpo, para que
possa participar do divino, dos sonhos.
O homem, pois, tendo saído das cinzas dos Titãs, carrega, desde
suas origens, um elemento do mal, ao mesmo tempo que um
elemento divino, do bem. Em suma, uma natureza divina original e
uma falta original e, a um só tempo, um dualismo e um conflito
interior radical. Nos intervalos do êxtase e do entusiasmo, o
dualismo parece desaparecer, o divino predomina e libera o homem
de suas angústias. Essa bem-aventurança, todavia, passada a
embriaguez do êxtase e do entusiasmo, se evapora na triste realidade
do dia a dia. É bem verdade que a morte põe termo às tribulações,
mas, pela doutrina órfica da metempsicose, de que se falará logo a
seguir, o elemento divino terá obrigatoriamente que se “reunir” a seu
antagonista titânico, para recomeçar nova existência sob uma outra
forma, que pode ser até mesmo a de um animal. Assim, em um ciclo,
cujo término se ignora, cada existência é uma morte, cada corpo é um
túmulo. Tem-se aí a célebre doutrina do σῶμα-σῆμα (sôma-sêma),
do corpo (sôma) como cárcere (sêma) da alma. Assim, em punição de
um crime primordial, a alma é encerrada no corpo tal como no
túmulo. A existência, aqui neste mundo, assemelha-se antes à morte
e a morte pode se constituir no começo de uma verdadeira vida. Esta
verdadeira vida, que é a libertação final da alma do cárcere do corpo,
quer dizer, a posse do “paraíso”, sobre cuja localização se falará
também, não é automática, uma vez que, “numa só existência e numa
só morte”, dificilmente se conseguem quitar a falta original e as
cometidas aqui e lá. Talvez, e assim mesmo o fato é passível de
discussão, só os “grandes iniciados órficos” conseguiriam
desvincular-se da “estranha túnica da carne”, para usar da expressão
do órfico, filósofo e poeta Empédocles (Frg. B 155 e 126), após uma só
existência. A alma é julgada e, consoante suas faltas e méritos, depois
de uma permanência no além, retorna ao cárcere de novo corpo
humano, animal ou, até mesmo, pode mergulhar num vegetal.
Sendo o Orfismo, no entanto, uma doutrina essencialmente
soteriológica, oferece a seus seguidores meios eficazes para que essa
liberação se faça de um modo mais rápido possível, com os menores
sofrimentos possíveis, porquanto as maiores dores neste vale de
lágrimas são tão somente um pálido reflexo dos tormentos no além ...
Para um sério preparo com vistas a libertar-se do ciclo das
existências, o Orfismo, além da parte iniciática, mística e ritualística,
que nos escapa, dava uma ênfase particular à instrução religiosa,
através dos “hierol lógoi”, “dos livros sagrados”, bem como obrigava
seus adeptos à prática do ascetismo, do vegetarianismo e de rigorosa
catarse.
Mortificações austeras, como jejuns, abstenção de carne e de ovos,
ou, por vezes, de qualquer alimento, castidade no casamento ou até
mesmo castidade absoluta, como a do jovem vegetariano Hipólito na
tragédia euripidiana que tem o nome do herói consagrado à deusa
virgem Ártemis, meditação, cânticos, austeridade no vestir e no falar
são alguns dos tópicos que compõem o verdadeiro catálogo do
ascetismo órfico. Vegetarianos, os órficos não apenas se abstinham
de carne, mas também eram proibidos de sacrificar qualquer animal,
o que, sem dúvida, suscitava escândalo e indignação, por isso que o
sacrifício animal e o banquete sacrifical eram precisamente os ritos
mais característicos da religião grega. O fundamento de tal proibição
há de ser buscado primeiramente na doutrina da metempsicose14,
uma vez que todo animal podia ser a encarnação de uma alma, de
um elemento dionisíaco e divino e, por isso, virtualmente sagrado.
Além do mais, poderia estar animado pela psiqué de um parente, até
muito próximo ... De outro lado, abstendo-se de carne e dos
sacrifícios cruentos, obrigatórios no culto oficial, os seguidores do
profeta da Trácia estavam, sem dúvida, contestando a religião oficial
do Estado e proclamando sua renúncia às coisas deste mundo, onde
se consideravam estrangeiros e hóspedes temporários.
Com o sacrifício cruento em Mecone, assunto de que se tratou no
Vol. I, p. 175, Prometeu, tendo abatido um boi e reservado
astutamente para os deuses os ossos cobertos de gordura e para os
homens as carnes, desencadeou a cólera de Zeus. Profundamente
irritado com o logro do primeiro sacrifício que os mortais faziam aos
deuses por meio de Prometeu, o senhor do Olimpo privou aqueles do
fogo e pôs termo ao estado paradisíaco, quando os homens viviam
em perfeita harmonia com os imortais. Ora, com sua recusa em
comer carne, decisão de não participar de sacrifícios cruentos e
prática do vegetarianismo, os órficos visavam também, de algum
modo, a purgar a falta ancestral e recuperar a felicidade perdida.
Não bastam, no entanto, ascetismo e vegetarianismo para libertar
a alma do cárcere da matéria. Se a salvação era obtida sobretudo
através da iniciação, quer dizer, de revelações de cunho cósmico e
teosófico, a catarse, a purificação desempenhava um papel decisivo
em todo o processo soteriológico do Orfismo. É bem verdade que nas
ὄργια (órguia), nos orgiasmos dionisíacos, provocados pelo êxtase e
entusiasmo, se realizava uma comunhão entre o divino e o humano,
mas essa união, segundo se mostrou, era efêmera e “obtida pelo
aviltamento da consciência”. Os órficos aceitaram o processo
dionisíaco e dele não só arrancaram uma conclusão óbvia, a
imortalidade, donde a divindade da alma, mas ainda o enriqueceram
com κάθαρσις (kátharsis), a catarse, que, embora de origem
apolínea, foi empregada em outro sentido pelos seguidores de Orfeu.
Ainda que se desconheça a técnica purificatória órfica, além do
vegetarianismo, abluções, banhos, jejuns, purificação da vontade por
meio de exame de consciência, de cantos, hinos, litanias e, sobretudo,
a participação nos ritos iniciáticos, pode-se ter uma ideia do esforço
que faziam os órficos no seu afã catártico, através de uma citação
cáustica de Platão, que logo se transcreverá. Observe-se, todavia, que
nem todos esses vergastados pelo filósofo são adeptos de Orfeu. Ao
lado de homens sérios, verdadeiros purificadores órficos, ascetas e
adivinhos, aos quais o filósofo Teofrasto (cerca de 372-287 a.C.) dá o
nome de 'Ορφεοτελεοσταί (Orpheotelestaí), “iniciadores nos
mistérios órficos”, pululavam, desde o século VI a.C., os embusteiros,
charlatães, vulgares taumaturgos e curandeiros. Usando o nome de
Orfeu, conseguiam, as mais das vezes, embair a ignorância e a boa-fé
de suas vítimas. Fenômeno, seja dito de passagem, que se repete em
todas as épocas, sobretudo nas chamadas religiões populares. Foi
exatamente contra esses impostores que o autor do Fédon deixou em
sua República, 364b-365a, uma página mordaz, que, de certa forma,
nos ajuda a compreender um pouco mais a técnica purificatória do
Orfismo: “ ... sacrificantes mendigos, adivinhos, que assediam as
portas dos ricos, persuadem-nos de que obtiveram dos deuses, por
meio de sacrifícios e encantamentos, o poder de perdoar-lhes as
injustiças que puderam cometer, ou que foram cometidas pelos seus
antepassados [ ... ]. Para justificar os ritos, produzem uma multidão de
livros, compostos por Museu e por Orfeu, filhos da Lua e das Musas.
Com base nessas autoridades, persuadem não só indivíduos, mas
também Estados, de que há para os vivos e os mortos absolvições e
purificações [ ... ]; e essas iniciações, pois é assim que lhes chamam,
nos livram dos tormentos dos infernos”15
O terceiro e último ato do drama gigantesco da existência e da
morte é precisamente a sorte que aguardava a alma no além e o
caminho perigoso que a conduzia até lá e a trazia de volta ao mundo
dos vivos, para recomeçar uma nova tragédia. Estamos nos domínios
da Escatologia16.
Entre algumas obras apócrifas atribuídas a Hesíodo há uma
Catábase de Teseu e Pirítoo ao Hades. O Ulisses homérico já descera
igualmente até a periferia da outra vida. Pois bem, a catábase
homérica e hesiódica se enriqueceu com uma terceira, órfica, dessa
feita, a Κατάβασις εἰς Ἅιδου (Katábasis eis Haídu), “a Descida ao
Hades”. Pouco interessa a autoria desse poema, o que importa é
salientar que a escatologia é o ponto capital do Orfismo. Com a
mântica, a escatologia representa um segundo elemento decisivo nas
novas tendências religiosas do século VI a. C. Como Orfeu foi um dos
raros mortais a descer em vida à região das trevas, é muito natural
que seus seguidores construíssem, dentro dos novos padrões
religiosos órficos, uma nova escatologia, reestruturando inclusive
toda a topografia do além.
Se em Homero o Hades é um imenso abismo, onde, após a morte,
todas as almas são lançadas, sem prêmio nem castigo, e para todo o
sempre, segundo comentamos no Vol. I, p. 147-154, e se em Hesíodo,
conforme está no Vol. I, p. 188, já existe uma nítida mudança
escatológica, se não na topografia infernal, mas no destino de
algumas almas privilegiadas, o Orfismo fixará normas topográficas
definidas e reestruturará tudo quanto diz respeito ao destino último
das almas.
No tocante à topografia, o Hades foi dividido, orficamente, em
três regiões distintas: a parte mais profunda, abissal e trevosa,
denomina-se Tdrtaro; a medial, Érebo, e a mais alta e nobre, Elísion
ou 'Ηλύσια πεδία (Elysia pedía), os Campos Elísios. Ao que tudo
indica, os dois primeiros eram destinados aos tormentos que se
infligiam às almas, que lá embaixo purgavam suas penas, havendo,
parece, uma clara gradação nos suplícios aplicados: os do Tártaro
eram muito mais violentos e cruéis que os do Érebo. Os Campos
Elísios seriam destinados aos que, havendo passado pelos horrores
dos dois outros compartimentos, aguardavam o retorno. Isto
significa que a estada no Hades era impermanente para todos. Duas
observações se impõem: será que também os órficos desciam ao
Hades e estavam sujeitos aos castigos e à metempsicose ou à
ensomatose e, em segundo lugar, depois de quitadas todas as penas,
onde estaria localizado o “paraíso”? Quanto às almas dos órficos,
houve sempre uma certa hesitação a respeito de também elas
passarem pelo processo da transmigração ou reencarnação. Talvez,
pelo próprio exame das fontes órficas que se possuem, se possa
afirmar que o problema estaria na dependência de ser ou não um
iniciado perfeito (o que seria muito difícil) nos Mistérios de Orfeu ...
No que diz respeito à localização do “paraíso”, existem, igualmente,
algumas hesitações e contradições, mas, depois dos ensinamentos de
Pitágoras, de algumas descobertas astronômicas e dasespeculações
cosmológicas dos filósofos Leucipo e Demócrito, respectivamente
dos fins do século VI e fins do V a.C., se chegou à conclusão de que a
Terra era uma esfera e, em consequência, o Hades subterrâneo e a
localização da Ilha dos Bem-Aventurados no extremo Ocidente
deixaram “cientificamente” de ter sentido. O próprio Pitágoras, numa
sentença, afirma que a “Ilha dos Bem-Aventurados eram o Sol e a
Lua”, ainda que a própria catábase do grande místico e matemático,
porque também ele teria visitado o reino dos mortos, pressupunha
um Hades localizado nas entranhas da Terra. A ideia de se colocar o
“céu” lá no alto, na Lua, no Éter, no Sol ou nas Estrelas, tinha sua
lógica, uma vez que, ao menos desde o século V a.C., se considerava
que a substância da alma era aparentada com o Éter ou com a
substância das estrelas. A localização homérica do Hades nas
entranhas da Terra, entretanto, era tradicional e forte demais para
que o povo lhe alterasse a geografia ...
Feita esta ligeira introdução ao velho e novo Hades, vamos
finalmente acompanhar “um órfico” até lá embaixo e observar o que
lhe acontece. Nossa primeira fonte será Platão, que, desprezando a
tradição mitológica clássica e “estatal”, fundamentada em Homero e
Hesíodo, organizou uma mitologia da alma, com base na doutrina
órfico-pitagórica e em certas fontes orientais.
A segunda serão as importantíssimas lamelas17, pequenas
lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na ilha
de Creta.
Essas lamelas foram encontradas em túmulos órficos18, nas
cidades de Túrio e Petélia, na Magna Graecia, e datam dos séculos IV
e III a.C., bem como em Eleuterna, na ilha de Creta, séculos 11-1 a.C., e
possivelmente em Roma, século II d.C.
Apesar das diferenças de época e de procedência, as fórmulas
nelas gravadas têm, com diferenças mínimas, conteúdo idêntico. É
quase certo que procedem de um mesmo texto poético, que deveria
ser familiar a todos os órficos, como uma espécie de norma de sua
dogmática escatológica, o que os distinguia do comum dos homens e
traduzia sua fé na salvação final, a salvação da alma. A obsessão dos
iniciados órficos pela salvação os teria levado a depositar nos
túmulos de seus mortos não o texto inteiro, mas ao menos
fragmentos escolhidos, certas mensagens e preceitos que lhes
pareciam mais importantes do cânon escatológico. Tais fórmulas
serviam-lhes certamente de bússola, de “guia para sair à luz”, como o
impropriamente chamado Livro dos Mortos dos antigos egípcios,
como o Bardo Thôdol tibetano e o Livro Maia dos Mortos.
Voltemos, porém, à “viagem” órfica.
O ritual “separatista” se iniciava pelo sepultamento: um órfico
não se podia inumar com indumentária de lã, porque não se deviam
sacrificar os animais. Realizada a cerimônia fúnebre, com
simplicidade e alegria, afinal “as lágrimas se reservavam no Orfismo
para os nascimentos”, a alma iniciava seu longo e perigoso itinerário
em busca do “seio de Perséfone”. No Fédon (108a) e no Górgias (524a)
de Platão se diz que o caminho não é um só nem simples, porque
vários são os desvios e muitos os obstáculos: “A mim, todavia, quer
me parecer que ele não é simples, nem um só, pois, se houvesse uma
só rota para se ir ao Hades, não era necessária a existência de guias,já
que ninguém poderia errar a direção. Mas é evidente que esse
caminho contém muitas encruzilhadas e voltas: a prova disso são os
cultos e costumes religiosos que temos” (Fédon, 108a). A República
(614b) deixa claro que os justos tomam a entrada da direita,
enquanto os maus são enviados para a esquerda. As lamelas contêm
indicações análogas19 : “Sejas bem-vindo, tu que caminhas pela
estrada da direita em direção às campinas sagradas e ao bosque de
Perséfone”20. A alma é bem orientada em seu trajeto: “À esquerda da
mansão do Hades, depararás com uma fonte a cujo lado se ergue um
cipreste branco. Não te aproximes muito dessa fonte. Encontrarás, a
seguir, outra fonte: a água fresca jorra da fonte da Memória e lá
existem guardas de sentinela. Dize-lhes: ‘Sou filho de Geia e de Úrano
estrelado, bem o sabeis. Estou, todavia, sedento e sinto que vou
morrer. Dai-me, rapidamente, da água fresca que jorra da fonte da
Memória’. Os guardas prontamente te darão água da fonte sagrada e,
em seguida, reinarás entre os outros heróis”. As almas que se dirigiam
ao Hades bebiam das águas do rio Lete, a fim de esquecer suas
existências terrenas. Os órficos, todavia, na esperança de escapar da
reencarnação, evitavam o Lete e buscavam a fonte da Memória. Uma
das lamelas deixa claro esse fato: “Saltei do ciclo dos pesados
sofrimentos e das dores e lancei-me com pé ligeiro em direção à
coroa almejada. Encontrei refúgio no seio da Senhora, a rainha do
Hades”. Perséfone responde-lhe: “Ó feliz e bem-aventurado! Eras
homem e te tornaste deus”. No início da lamela há uma passagem
significativa. Dirigindo-se aos deuses ctônios, diz o iniciado: “Venho
de uma comunidade de puros, ó pura senhora do Hades, Eucles,
Eubuleu21 e vós outros, deuses ctônios. Orgulho-me de pertencer à
vossa raça bem-aventurada”.
A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas
refrigério, pelo longo caminhar da mesma em direção à outra vida,
mas sobretudo simboliza a ressurreição, no sentido da passagem
definitiva para um mundo melhor. Nós conhecemos bem esta sede
de água fresca, da água viva, através dos escritos neotestamentários
de países de cultura grega Oo 7,37; Ap 22,17). Evitando beber das
águas do rio Lete, o rio do esquecimento, penhor de reencarnações, a
alma estava apressando e forçando sua entrada definitiva no “seio de
Perséfone”. Mas, se a alma tiver que regressar a novo corpo, terá
forçosamente que tomar das águas do rio Lete, para apagar as
lembranças do além. Se para os gregos “os mortos são aqueles que
perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais
configura a morte, mas o retorno à vida. Desse modo, na doutrina de
Orfeu, o rio Lete teve parte de suas funções prejudicadas. Bebendo na
fonte da Memória, a alma órfica desejava apenas lembrar-se da bemaventurança. O encontro de uma árvore, no caso o cipreste branco,
símbolo da luz e da pureza, junto a uma fonte, a fonte da Memória, é
uma imagem comum do Paraíso, em muitas culturas primitivas. Na
Mesopotâmia, o rei, representante dos deuses na Terra, vivera junto
aos imortais, num jardim fabuloso, onde se localizava a Árvore da
Vida e a Água da Vida. Seria conveniente não nos esquecermos de
que em grego, παράδεισος (parádeisos), fonte primeira de paraíso,
significava também jardim. E ao que consta, o jardim do Éden estava
cheio de árvores e de fontes ... Essejardim do Éden (Gn 13,lO;Jl 2,3),
simbolizando o máximo de felicidade e sendo equiparado ao Jardim
de Deus (Is 51,3; Ez 31,8-9). Semelhante jardim concretiza os ideais da
futura restauração (Ez 36,35), da felicidade escatológica, que era
considerada como um retorno à bem-aventurança perdida dos
tempos primordiais. Passemos, agora, a acompanhar outra alma, que
talvez tenha tomado a entrada da esquerda ou tenha vindo muito
“carregada” do mundo dos vivos. Os sofrimentos que pesavam sobre
aqueles que haviam partido desta vida com muitas faltas são
vivamente desenhados por Platão, por uma passagem de Aristófanes,
pelo neoplatônico Plotino e até mesmo pela arte figurada.
“Mergulhados no lodaçal imundo, ser-lhes-á infligido um suplício
apropriado à sua poluição moral” (República, I, 363d; Fédon, 69c);
“esvair-se-ão em inúteis esforços para encher um barril sem fundo
ou para carregar água numa peneira”22 (Górgias, 493b; República,
363e); “como porcos agrada-lhes chafurdar na imundície” (Enéadas,
1,6,6). Aristófanes, num passo da comédia As Rãs, 145ss., descreve,
pelos lábios de Héracles, o que aguarda certos criminosos na outra
vida: “Verás, depois, um lodaçal imundo e submersos nele todos os
que faltaram ao dever da hospitalidade [ ... ]; os que espancaram a
própria mãe; os que esbofetearam o próprio pai ou proferiram um
falso juramento”. Um exemplo famoso dos tormentos aplicados no
Hades é a pintura do inferno com que o grande artista do século V
a.C., Polignoto, decorou a Λέσχη (Léskhe), “galeria, pórtico”, de
Delfos: nela se via, entre outras coisas, um parricida estrangulado
pelo próprio pai; um ladrão sacrílego sendo obrigado a beber veneno
e Eurínomo (uma espécie de “demônio”, segundo Pausânias, metade
negro e metade azul, como um moscardo) está sentado num abutre,
mostrando seus dentes enormes em sarcástica gargalhada e roendo
“as carnes dos ossos” dos mortos.
Todos esses criminosos e sacrílegos estavam condenados a passar
por penosas metempsicoses. Diga-se, logo, que é, até o momento,
muito difícil detectar a origem e a fonte de tal crença. Na Grécia, o
primeiro a sustentá-la e, possivelmente, a defendê-la foi o mitógrafo
e teogonista Ferecides de Siros (séc. VI a.C.), que não deve ser
confundido com seus homônimos, o genealogista Ferecides de
Atenas (séc. V a.C.) e Ferecides de Leros, posterior e muito menos
famoso que os dois anteriores. Apoiando-se em crenças orientais, o
mitógrafo de Siros afirmava que a alma era imortal e que retornava
sucessivamente à Terra para reencarnar-se. No século de Ferecides,
somente na Índia a crença na metempsicose estava claramente
definida. É bem verdade que os egípcios consideravam, desde tempos
imemoriais, a alma imortal e suscetível de assumir formas várias de
animais vários, mas não se encontra na terra dos faraós uma teoria
geral da metempsicose. Caso contrário, por que e para que a
mumificação? De qualquer forma, as teorias de Ferecides não
surtiram muito efeito no mundo grego. Os verdadeiros defensores,
divulgadores e sistematizadores da “ensomatose” e da metempsicose
foram o Orfismo, Pitágoras e seus discípulos, e o filósofo
Empédocles. A alma, pois, não quite com suas culpas, regressava
para reencarnar-se. O homem comum percorria o ciclo
reencarnatário dez vezes e o intervalo entre um e outro renascimento
era de mil anos, cifras que, no caso em pauta, são meros símbolos, que
expressam não quantidades, mas sim ideias e qualidades, o que, aliás,
se constitui na essência do número.
Finda a breve ou longa jornada, a alma podia finalmente dizer,
como está gravado em uma das lamelas: “Sofri o castigo que
mereciam minhas ações injustas [ ... ]. Venho, agora, como suplicante,
para junto da resplandecente Perséfone, para que, em sua
complacência, me envie para a mansão dos bem-aventurados”. A
deusa acolhe o suplicante justificado com benevolência: “Bem-vindo
sejas, ó tu que sofreste o que nunca havias sofrido anteriormente[ ... ].
Bem-vindo, bem-vindo sejas tu! Segue pela estrada da direita, em
direção às campinas sagradas e aos bosques de Perséfone”.
Um fragmento da tragédia euripidiana (sempre Eurípides!), Os
Cretenses (Frg. 4 72), atesta a presença na ilha de Minas, terra das
iniciações, da religião de Zagreu e, portanto, do Orfismo. O poeta nos
apresenta um coro de adeptos de Zagreu, numa palavra, de iniciados
órficos, que “erra na noite” e se alegra “por haver abandonado os
repastas cruentos”: “Absolutamente puro em minha indumentária
branca, fugi da geração dos mortais; evito os sepulcros e me abstenho
de alimentos animais; santificado, recebi o nome da bákkhos”. Este
nome, que é, ao mesmo tempo, o nome do deus, exprime a comunhão
mística com a divindade, isto é, o núcleo e a essência da fé órfica.
Bákkhos, Baco, é, como se sabe, um dos nomes de Dioniso, que era,
exatamente, sob seu aspecto orgiástico, a divindade mais importante
dos órficos. Nome esotérico e sagrado, bákkhos, “baco”, servirá para
distinguir o verdadeiro místico, o verdadeiro órfico, o órfico que
conseguiu libertar-se de uma vez dos liames do cárcere do corpo.
O Orfismo tudo fez para impor-se ao espírito grego. De saída,
tentou romper com um princípio básico da religião estatal, a secular
maldição familiar, segundo a qual, como já se comentou no Vol. I, p.
80-86, cada membro do génos era corresponsável e herdeiro das
hamartíai, das faltas cometidas por qualquer um de seus membros.
Os órficos solucionaram o problema de modo original: a culpa é
sempre de responsabilidade individual e por ela (e foi a primeira vez
que a ideia surgiu na Grécia) se paga aqui; quem não conseguir
purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras
reencarnações, até a catarse final. Mas, diante do citaredo trácio
erguia-se a pólis com sua religião tradicional, com suas criações
artísticas de beleza inexcedível e, mais que tudo, com seu sacerdote e
poeta divino, Homero. É bem verdade que, desde o início, o Orfismo
pediu socorro às Musas e Orfeu tentou modelar-se sobre a
personagem do criador da epopeia, tornando-se também, em suas
rapsódias e hinos, poeta e cantor, mas a distância entre Homero e
Orfeu é aquela mesma estabelecida por Hesíodo entre o Olimpo e o
Tártarο... E mais uma vez a Ásia curvou-se diante da Hélade! Foi, não
há dúvida, mais uma vitória da cultura que da religião, mas, com
isso, o Orfismo jamais passaria, na Grécia, de uma “seita”, de uma
confraria. Foi uma pena!
Na expressão feliz de Joseph Holzner23, é difícil precisar em seus
pormenores em que consiste a missão da Grécia na história da
salvação e qual foi a influência providencial dos Mistérios. Talvez
essa missão se encontre menos em minúcias precisas do que no todo
da mentalidade helênica. K. Prümm não se equivocou ao afirmar que
“a história do desenvolvimento espiritual da humanidade, apesar de
seus saltos e tropeços, apesar de sua descontinuidade, segue um
plano estabelecido por Deus”. No fundo deste plano existe um
projeto de salvação. O Cardeal Newman, na história do
desenvolvimento da doutrina cristã, insiste no papel providencial
dos Mistérios: “As transformações na história são, as mais das vezes,
preparadas e facilitadas por uma disposição providencial, pela
presença de certas correntes do pensamento e sentimentos humanos,
que apontam o rumo da futura transformação [ ... ]. Foi isto
exatamente o que aconteceu com o cristianismo, como exigia sua
alta transcendência. O cristianismo chegou, anunciado,
acompanhado e preparado por uma multidão de sombras,
impotentes e monstruosas, como são todas as sombras... “. Os que
acreditam seriamente na vontade salvífica universal de Deus devem
admitir que o Senhor não podia permanecer indiferente aos
inúmeros esforços, muitas vezes sinceros, desses gregos que foram
educados nos Mistérios. Os gregos, realmente, não tiveram os deuses
que mereciam. Esse povo extraordinário teve sede de amor e
submeteu-se, por isso mesmo, às exigências arbitrárias de seus
deuses. Foi, no entanto, enganado e traído por eles. Desse modo, do
ponto de vista religioso, a era helênica terminou profundamente
decepcionada. A antiguidade, já em seu declínio, retratou sua própria
alma no mito gracioso e profundo de Eros e Psiqué. A Psiqué grega,
que buscou por todos os caminhos, no céu, na terra e nos infernos, o
único alimento que podia satisfazer sua fome de amor, o amor
divino.
Mais um pouco, e as sombras, de que fala o Cardeal Newman,
haveriam de dissipar-se com os raios do Novo Sol, que brilharia
intensamente também no céu azul da Hélade. No Olimpo, Psiqué
celebrará suas núpcias com Eros.
Repetindo, mais uma vez, o pensamento lúcido de Jean Daniélou,
S.J., segundo quem uma coisa é a revelação e outra o modo como esta
revelação foi transmitida pelos escritores sacros, haurida, em grande
parte, nas civilizações antigas (e particularmente na grega,
acrescentaríamos) é que se pode avaliar bem os significantes com
que o Orfismo contribuiu para a formação do cristianismo nascente.
O mito grego ornamentou simbolicamente Orfeu com o nimbo
da santidade. Nas pinturas das catacumbas romanas ele aparece sob
a figura de citaredo e de cantor do amor divino. Nos mosaicos do
mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como BomPastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar
Cristo de “Orfeu báquico”.
A alma grega, realmente, não podia suportar a ruptura entre o
mundo dos homens e o mundo dos deuses, um mundo que entrega o
homem à morte e proclama a imortalidade dos deuses. Eis por que
tanto se lutou na Grécia órfico-pitagórico-platônica pela
imortalidade da alma. É que, existindo no homem aquele elemento
divino, aquela faísca de eternidade, de que tanto se falou, é preciso
libertá-la, constituindo-se essa liberação no tema central dos
mistérios gregos. Não há dúvida de que a gnose é filha bastarda da
antiguidade helênica: a alma, como diz Berdiaev deve forçosamente
retornar à sua pátria eterna.
Além da óbvia influência sobre Píndaro e sobretudo, juntamente
com o Piagoricismo, sobre a gigantesca síntese platônica da nova
“mitologia da alma”, o Orfismo chegou até os primeiros séculos da
era cristã, ainda com muita vitalidade. Em seguida, foi-se apagando
lentamente, mas Orfeu, mesmo independente do Orfismo, teve sua
figura reinterpretada “pelos teólogos judaicos e cristãos, pelos
hermetistas, pelos filósofos do Renascimento, pelos poetas, desde
Poliziano até Pape, e desde Novalis até Rilke e Pierre Emmanuel”.
Também nós, de língua portuguesa, tivemos a nossa reinterpretação
do mito de Orfeu e Eurídice: trata-se da tragédia de Vinícius de
Moraes, Orfeu da Conceição.
Em homenagem ao poeta carioca, vamos transcrever, do Segundo
Ato, um suspiro do violão de Orfeu em busca de sua bem-amada.
Enlouquecido com a morte de Eurídice, Orfeu desce o morro e
chega à Cidade, quer dizer, ao Irifemo: era dia de Carnaval. “Plutão”,
possivelmente diretor do clube “Os Maiorais do Inferno”, expulsa-o,
para que o poeta e cantor não perturbe a folia.
Vejamos uma fala da personagem principal de Vinícius, que bem
lhe caracteriza a catábase, do morro para a cidade:
Orfeu:
“Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro
sou conhecido - sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade
para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias
busco Eurídice. Todo o mundo canta, todo o mundo bebe: ninguém
sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a
que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem
Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou,
tudo se esqueceu. O que resta da vida é a esperança de Orfeu ver
Eurídice nem que seja pela última vez!”
1. A mordaz alusão de Platão, em O Banquete, 179d, à covardia de Orfeu, que “não soubera
morrer por amor a seu amor”, é apenas um meio de servir a seu objetivo, isto é, de mostrar
que o verdadeiro amor consiste na morte do amante pelo amado ou vice-versa. Para isso o
filósofo ateniense introduziu certas modificações na urdidura do mito.
2. Quando se fala de anima e animus, “feminino e masculino”, não se quer fazer referência a
determinações sexuais, mas a princípios, uma vez que anima e animus são arquétipos que
servem de elo entre o inconsciente profundo e o Eu, tanto na mulher quanto no homem.
3. LEACH, Edmund & AYCOCK, D. Alan. Structuralist Interpretations of Biblical Myth.
London: Cambridge, 1983, p. 113ss.
4. Ibid., p. 307ss.
5. Varia Historia, XII, 8.
6. JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1980, p.
247s. [Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB.]
7. Ibid., p. 199.
8. bid., p. 214s.
9. Ibid., p. 120.
10. Ibid., p. 40s.
11. São muitos os escritos atribuídos a “Orfeu”. Aliás, os órficos davam grande importância
aos 'Ιεροὶ Λόγοι (Hierol Lógoi), aos “textos sagrados”, aos Livros. Platão (República, 364e,
Crátilo, 402b, Filebo, 66c) fala de uma multiplicidade de livros compostos por Orfeu e
Museu, “seu filho ou discípulo”; Eurípides (Hipólito Porta-Coroa, 954) menciona as
escrituras órficas e Aristóteles (Da Alma, 410b28) conhecia as teorias da alma existentes
nos “pretensos versos órficos”. Uma grande quantidade de obras atribuídas a Orfeu é ainda
catalogada pela Suda. No tocante particularmente às denominadas Rapsódias ôificas, de que
subsistem muitos fragmentos (Kern, Frgs. 59-235), sobretudo através de citações em obras
neoplatônicas, é bom lembrar que se trata de uma compilação tardia em hexâmetros, cuja
data de composição é variável. É bem possível que crenças genuinamente arcaicas tenham
sido engastadas em alguns versos dessa Ilíada ôifica, apesar de sua composição e
compilação tardias.
12. Fanes, em grego Φάνης (Phánes), do verbo φαίνειν (phaínein), “brilhar, fazer-se visível,
aparecer” é o “Brilhante, a Luz que brilha”. Alado, andrógino e autógamo, brilhante e etéreo,
dá à luz as primeiras gerações divinas e é o criador supremo do cosmo.
13. GUTHRIE, W.K.C. The Greeks and their Gods. London: Cambridge, 1950, p. 319.
14. Existe, stricto sensu, uma diferença sensível entre reencarnação e metempsicose. A
primeira diz-se em grego ἐνσωμάτωσις (ensomátosis), “ensomatose”, é a reassunção pela
alma de um novo corpo humano; a segunda, μετεμψύχωσις (metempsykhosis),
“metempsicose”, é a transmigração da alma para um outro corpo, humano, animal ou até
para um vegetal.
15. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 205, n. 14.
16. Escatologia, do grego ἔσχατος (éskhatos), “extremo, último” e Λόγος “tratado, doutrina”,
é o tratado sobre os novíssimos, isto é, acerca do fim último do homem e da humanidade.
17. Alguns sábios e pesquisadores, como G. Zuntz, Persephone. Three Essays on Religion and
Thought in Magna Graecia. London: Oxford, 1971, p. 275-393, acham que as lamelas são de
origem pitagórica, mas a communis opinio se inclina por julgá-las órficas com influência
pitagórica. Enfim, lamelas óifico-pitagóricas ... Todas elas são marcadas com o sinal secreto
Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas
em pequenas placas hexagonais. Estas, presas em correntes de ouro, eram colocadas no
pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaportes para a eternidade.
18. Os Órficos sepultavam seus mortos em “cemitérios comunitários”, separados da sorte e
do mundo dos restantes mortais. Uma inscrição do século V a.C., descoberta na cidade grega
de Cumas (Sul da Itália), proibia que se enterrasse em determinado lugar quem não se
tivesse tornado bákkhos (que se explicará mais abaixo), isto é, quem não fosse iniciado. Tal
disposição testemunha a solidariedade firme e estreita dos adeptos de uma fé exclusiva e
esotérica, na qual as realidades da morte possuíam importância considerável e, em função
delas, o local e as condições da sepultura. Até na morte, os iniciados órficos desejavam ficar
à margem dos demais seres humanos. A colocação das lamelas na tumba confirma, de outro
lado, ideias e hábitos particulares, concernentes à sepultura: as lamelas, contrariamente ao
uso comum, não trazem o nome do morto. Nenhuma lápide faz que os vivos se lembrem do
nome e da descendência do falecido. O morto desejava que se esquecesse por completo o
invólucro em que, se em vida se sentia estranho e exilado, quanto mais na morte! As
palavras gravadas no metal incorruptível, secretas aos profanos e compreendidas apenas
por ele, eram o viático que o conduzia à outra vida, “puro numa companhia de puros”.
19. GUTHIE, W.K.C. Orpheus and the Greek Religion. London: Cambridge, p. l 7lss.
20. Perséfone, a esposa de Plutão e rainha do Hades, conforme o Vol. I, p. 307-309, simboliza
nas lamelas o termo final do ciclo reencamatório, “o paraíso”.
21. Eucles e Eubuleu, segundo parece, são grandes iniciados, ligados aos Mistérios de Elêusis.
22. Essa imagem concernente a encher um tonel sem fundo ou carregar água numa peneira,
configurada no suplício das Danaides, é interpretada por Platão como uma entrega
insaciável a paixões eternamente insatisfeitas. No Orfismo, talvez simbolize a punição dos
que, não tendo praticado as abluções catárticas, devem transportar por todo o sempre, mas
em vão, a água do banho purificador.
23. HOLZNER,Joseph. Ibid., p. 115.
CAPÍTULO VI
O mito de Narciso
1
NARCISO, em grego Νάρκισσος (Nárkissos). Comecemos pela
etimologia. Nárkissos, o nosso Narciso, não é uma palavra grega.
Talvez se trate de um empréstimo mediterrâneo, quem sabe da ilha
de Creta. De qualquer forma, uma aproximação com o elemento
νάρκη (nárke), que, em grego, significa “entorpecimento, torpor”,
cuja base talvez seja o indo-europeu *snerq, “encarquilhar, estiolar,
morrer”, é de cunho popular. Com o sentido de torpor, nárke já é
empregado por Aristófanes, Vespas, 713. Relacionando-se, depois,
com a flor narciso, que era tida por estupefaciente, nárke será a base
etimológica de nossa palavra narcótico e toda uma vasta família com
o elemento narc-.
Sob este enfoque, como demonstrou Murray Stein1, várias
associações se poderiam fazer com a flor narciso: ela é “bonita e
inútil”; fenece, após uma vida muito breve; é “estéril”; tem um
“perfume soporífero” e é venenosa, tal qual o jovem Narciso, que,
carentes de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso.
De outro lado, nárke, como fonte de narcose (sono produzido por
meio de narcótico), ajuda a compreender a relação da flor narciso
com as divindades ctônias e com as cerimônias de iniciação,
sobretudo as atinentes ao culto de Deméter e Perséfone. Narcisas
plantados sobre os túmulos, o que era um hábito, simbolizavam o
sorvedouro da morte, mas de uma morte que era apenas um sono. Às
Erínias, consideradas como entorpecedoras dos réprobos, ofereciamse guirlandas de narcisas. Uma vez que o narciso floresce na
primavera, em lugares úmidos, ele se prende à simbólica das águas e
do ritmo das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que
caracteriza sua ambivalência morte (sono)-renascimento. Na Ásia é
símbolo da felicidade e expressa os cumprimentos do Ano Novo, isto
é, de um ano que sucede ao sono do ano velho. Os ritos antigos, com
que se acordava o cansaço do ano velho, fazendo-o novo, são
hodiernamente substituídos, entre outros “ruídos”, por estrepitosos
foguetórios, cuja finalidade, possivelmente, é despertar e retemperar
as forças do laborioso e exausto ano velho ... No fundo, não existe ano
velho e ano novo, e sim mais um anniuersarius (de annus, “ano” e
uersare, “voltar constantemente”), quer dizer, um retorno anual, um
aniversário do tempo cíclico.
2
Quanto ao mito, Narciso era filho do rio Cefiso, em grego
Κήφισος (Képhisos), “o que banha, o que inunda”, desde que proceda
do indo-europeu *gwâp, *gwâph, “banhar, irrigar”, e da Ninfa Liríope,
que talvez signifique de voz macia como um lírio, isto é, λείριον
(leírion), “lírio”, e ὄψ (óps), “voz”, mas trata-se de mera hipótese.
Como se vê, voltamos à simbólica das águas. E, segundo se
comentou no Vol. 1, p. 279-280, um dos símbolos do rio, do
“escoamento” das águas, é a fertilidade. Acrescentemos, de passagem,
que determinados “seres” primordiais, como rios e montes, entre
outros, talvez por não se terem antropomorfizado, eram detentores
de uma grande energia sexual, como se demonstrou no Vol. I, p. 274275, em que o rio Aqueloo lutou bravamente com Héracles pela
posse de Dejanira. O fato é que são inúmeros os filhos de oceanos, rios
e montes ... Ora, se as ninfas, conforme se viu no Vol, I, p. 223-224, são
divindades também ligadas à água, vamos ter em Narciso e narciso
dois enamorados das águas.
Pois bem, Liríope foi vítima da insaciável energia sexual de
Cefiso, em cujas margens tranquilas ninfa alguma poderia passear
incólume. Um dia, foi a vez de Liríope. Uma gravidez penosa e
indesejável, mas um parto jubiloso e, ao mesmo tempo, de apreensão.
Não era concebível um menino tão belo! Na cultura grega, de modo
particular, beleza fora do comum sempre assustava. É que esta
facilmente arrastava o mortal para a h×bris, o descomedimento,
fazendo-o, muitas vezes, ultrapassar o métron. Competir com os
deuses em beleza era uma afronta inexoravelmente punida. Bastaria
o mito de Eros e Psiqué para testemunhá-lo! E Narciso era mais belo
do que os Imortais, que carregavam o peso da eveternidade,
embriagados de néctar e fartos de ambrosia ...
É que também a beleza era uma outorga do divino: constituía,
portanto, uma “démesure”, a ultrapassagem do métron, ufanando-se
alguém de um dom que não lhe pertencia. Némesis, ajustiça
distributiva e, por isso mesmo, a vingadora da injustiça praticada,
estava sempre atenta e pronta para punir os culpados.
Não importa: Narciso seria desejado pelas deusas, pelas ninfas e
pelos jovens da Grécia inteira! Mas uma beleza assim nunca vista
realmente conturbava o espírito de Liríope. Quantos anos viveria o
mais belo dos mortais? O temor levou a mãe preocupada a consultar
o velho cego Tirésias, o célebre Τειρεσίας (Teiresías), que é um
derivado do neutro τέρας (téras), sinal enviado pelos deuses, donde
“adivinho, profeta”.
Tirésias, porque era cego, possuía o dom da manteía, da
adivinhação. Era um uates, um profeta, dotado de uaticinium, do
poder da predição. Um parêntese para explicar algo importante: a
cegueira e a manteía de Tirésias eram consequência de um castigo e
de uma compensação. Ao atingir a época de sua dokimasía, a saber,
das “provas” de caráter iniciático por que passava todo jovem, ao
ingressar na efebia e, em seguida, participar da vida da pólis, Tirésias
escalou o monte Citerão e viu duas serpentes que se acoplavam num
ato de amor. O jovem Tirésias as separou, ou, consoante outras fontes,
matou a serpente fêmea. O resultado dessa intervenção foi
desastroso: o jovem se tornou mulher. Sete anos mais tarde, subiu o
mesmo Citerão e, encontrando cena idêntica, repetiu a intervenção
anterior, matando a serpente macho, e recuperou seu sexo
masculino. Tirésias era, portanto, alguém que tinha experiência dos
dois sexos. Sua desventura o tornou célebre: um dia em que lá no
Olimpo, Zeus, que terminara a consolidação do poder e se tornara
deus otiosus, discutia acaloradamente com sua esposa Hera. O objeto
da polêmica era deveras sério e complicado. Girava em torno do
amor: “quem teria maior prazer num ato de amor, o homem ou a
mulher?” Para dirimir dúvidas, foi chamado aquele que tinha
experiência de ambos os sexos. Tirésias respondeu, sem hesitar, que,
se um ato de amor pudesse ser fracionado em dez parcelas, a mulher
teria nove e o homem apenas uma. Hera, furiosa, o cegou, porque
havia revelado o grande segredo feminino e sobretudo porque, no
fundo, Tirésias estava decretando a superioridade do homem, causa
eficiente dos nove décimos do prazer feminino. Hera compreendeu
perfeitamente a resposta patrilinear do adivinho tebano: ao dar-lhe a
“vitória”, nove décimos de prazer, estava, na realidade, traçando um
perfil da superioridade masculina, da potência de Zeus,
simbolizando todos os homens, únicos capazes de proporcionar
tanto prazer à mulher.
Para compensar-lhe a cegueira e por “gratidão”, Zeus concedeulhe o dom da manteía, da profecia e o privilégio de viver sete
gerações humanas.
Foi ao grande profeta grego, ao mais célebre mántis, que Liríope
consultou: Narciso viveria muitos anos? A resposta do adivinho foi
lacônica e direta: si non se uiderit, “se ele não se vir” ... como narra
Ovídio (Met., 3,339ss.). Apenas isto. Narciso viveria longos anos,
desde que não se visse. Eis aí o seu drama, o problema da “visão”,
aquela mesma “visão” que Tirésias traz dissociada. A visão de
Tirésias, etimologicamente, “o adivinho, o profeta”, é a visão de
dentro para fora, por isso é mántis. Diga-se, de passagem, que, de
maneira muito constante, a mântica está relacionada com a serpente,
réptil ctônio por excelência e, por isso mesmo, em comunicação com
o mundo de baixo, depositário muito antigo da adivinhação. No
culto decisivamente ctônio, subterrâneo e ínfero de Trofônio, o
consulente oferecia bolos de mel às serpentes que habitavam no
Oráculo e até mesmo se acreditava que a outorga da resposta se
devesse a esse réptil, segundo nos informam a Suda, verbete
Τροφόνιος (Trophónios), e o Escoliasta de Aristófanes, Nuvens, 508.
No próprio Oráculo de Delfos, a mântica pré-apolínea, como se
mostrou mais atrás, às p. 97-98, tinha por guardiã e inspiradora a
serpente Píton. Alguns heróis devem sua própria faculdade
divinatória à serpente, tais como Heleno, Cassandra e Melampo,
conforme nos conta Apolodoro, 1,96. Como Tirésias, um outro
“vidente”, mítico, Poliido, matou também uma serpente, mas as
consequências foram bem diferentes: uma outra serpente acorre e
ressuscita a companheira, mediante uma erva miraculosa, de cujo
segredo se apossa Poliido para ressuscitar a Glauco, informa o
mesmo Apolodoro, 3,19.
Existem adivinhos, como Ofioneu, em grego serpente se diz ὄφις
(óphis), cujo nome possui estreita relação etimológica com
“serpente”, observou Pausânias, 4,10,5.
Acrescente-se, por fim, que a cegueira atribuída a numerosos
“videntes”, de Tirésias a Ofioneu, passando por Polimnestor
(Eurípides, Hécuba, 1265), Eveno (Heródoto, 9,93s.), Fórmio
(Pausânias, 7,5,7), está acoplada à esfera da mântica ctônia, trevosa.
Vê-se, adivinha-se de dentro para fora, das trevas para a luz ...
Voltemos, porém, a Narciso.
E as grandes paixões pelo filho do rio Cefiso começaram ... Jovens
da Grécia inteira e ninfas, como sonhara Liríope, estavam
irremediavelmente presas à beleza de Narciso, que, no entanto,
permanecia insensível. Entre as grandes apaixonadas do jovem da
Beócia estava a ninfa Eco, que, após um grave acontecimento,
acabara de regressar do Olimpo. É que a deusa Hera, desconfiada,
como sempre, e com razão, das constantes “viagens” do esposo ao
mundo dos mortais, resolveu prendê-lo lá em cima. Desesperado,
Zeus lembrou-se de Eco, ninfa de uma tagarelice invencível. A
esposa seria distraída pela ninfa e ele, Zeus, poderia dar seus passeios,
quase sempre de caráter amoroso, pelo habitat das encantadoras
mortais ...
A princípio, tudo correu bem, mas a ciumenta Hera, “a defensora
dos amores legítimos”, por fim, desconfiou, e sabedora do porquê da
loquacidade de Eco, condenou-a a não mais falar: repetiria tão
somente os últimos sons das palavras que ouvisse.
Mas Eco estava apaixonada pelo mais belo dos jovens! Era verão, e
Narciso partira para uma caçada, com alguns companheiros. Eco o
seguia, sem se deixar ver. Acontece que, tendo-se afastado em
demasia dos amigos, o jovem começou a gritar por eles ...
Antônio Feliciano de Castilho nos deu, com sua tradução do
latim em português castiço, o tom, primeiro das esperanças e, depois,
do desespero de Eco:
Dos sócios seus na caça extraviado
Narciso brada: Olá! Ninguém me escuta?
Escuta, lhe responde a amante Ninfa.
Ele pasma: em redor estira os olhos;
E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;
Convite igual ao seu parte dela.
Volta-se, nada vê: Por que me foges?
Clama; Por que me foges, lhe respondem.
Da mútua voz deluso, insiste ainda:
Juntemo-nos aqui. Frase mais doce,
Nem lha espera, nem quer; delira, e logo,
Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias
De o pôr por obra; da espessura rompe,
Vem de braços abertos, anelando,
Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo.
Ele foge; fugindo, ilude o abraço,
E Antes, diz, morrerei, que amor nos una.
Ela, imóvel, co’a vista o vai seguindo,
E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una2.
Tão friamente repelida, mas ardendo em paixão por Narciso, Eco
se isolou e se fechou numa imensa solidão. Por fim, deixou de se
alimentar e definhou, transformando-se num rochedo, capaz apenas
de repetir os derradeiros sons do que se diz. As demais ninfas,
irritadas com a insensibilidade e frieza do filho de Liríope, pediram
vingança a Nêmesis, que, prontamente, condenou Narciso a amar um
amor impossível.
Antes de seguirmos a derradeira etapa do breve e trágico
itinerário da beleza de Narciso, duas ou três pequenas observações se
fazem necessárias. A primeira delas é a respeito da relação NarcisoEco, sobre que falou o psiquiatra e analista junguiano, Dr. Carlos
Byington, em memorável conferência proferida em 1982, na
Faculdade Cândido Mendes, no Rio dejaneiro.
“Se Narciso, argumentou Byington, vai ser um símbolo central de
permanência em si mesmo, Eco, ao revés, traduz a problemática da
vivência de seu oposto. Para se compreender o mito, é preciso frisar
que Narciso e Eco estão em relação dialética de opostos
complementares, não só de masculino e feminino, mas sobretudo de
sujeito e objeto, de algo que permanece em si mesmo e de algo que
permanece no outro. Além do mais, a história de Eco está ligada à
dissociação conjugal de Zeus e Hera, porque Eco é castigada
exatamente por dar cobertura aos adultérios de Zeus. Tal castigo, no
entanto, não deve ser tomado sob uma relação de causa e efeito, o que
representa um mero discurso racional, para se compreender o mito,
mas como imagem de uma dissociação real entre o pai e a mãe dos
deuses e dos homens.
Narciso e Eco são dois caminhos provenientes de uma raiz
comum, do sofrimento cultural, e que buscam, através de suas
peripécias, se encontrar e se resolver. Acontece que, como se
encontram e não se resolvem, e mais ainda, se separam, nos fica desse
encontro-desencontro a marca de uma discórdia e de uma tragédia,
que muito nos elucida sobre a realidade do homem e da mulher, a
realidade da relação conjugal e, mais que tudo, a realidade do
desenvolvimento psicológico da personalidade individual e da
cultura.”
Saindo um pouco da análise psicológica, desejaríamos lembrar
que, na cultura maia, Eco é um dos atributos do grande deus ctônio
Jaguar, enquanto associado às montanhas, aos animais selvagens,
particularmente ao tapir, e ao tambor, que pode ser considerado em
todas as culturas como uma catrofania, quer dizer, a “manifestação
do poder urânico ou ctônio”, relacionado, destarte, com o simbolismo
da caverna, da gruta, da matriz. Em síntese, o tambor é o “eco” sonoro
da existência.
De outro lado, tem-se no mito um caso de imobilização: como se
viu, Eco foi transformada em pedra, como o herói Asdiwal3 ; e a
mulher de Ló, por ter olhado para trás, o foi em estátua de sal. Se a
interpretação da metamorfose da mulher de Ló talvez deva ser
analisada sob um ângulo um tanto diferente, como, deresto, o fez
Aycock4, a hermenêutica concernente à imobilização da jovem
ninfa grega e do herói dos índios Tsimshian pode ser concentrada no
símbolo da regressão e da passividade, que não representam
necessariamente um estado permanente, mas algo de passageiro,
precursor de uma transformação. Eco e Asdiwal evocariam, assim, a
noção de duplo, de sombra, de Golem5. Acrescente-se, por fim, que a
impermanência da transformação em pedra baseia-se no fato de que
a pedra e o homem exprimem um duplo movimento de subida e de
descida. O homem nasce de Deus e a ele retorna. A pedra bruta desce
do céu e, transmutada, a ele regressa.
É hora de se voltar à desdita do filho de Liríope. Estava-se
novamente no verão. O jovem Narciso, sedento, aproximou-se da
límpida fonte de Téspias para mitigar a sede. Como as flores que
Hipólito colhera para ofertar a Ártemis jamais haviam sido tocadas
nem mesmo pelas asas de ouro das abelhas da primavera, assim as
águas da fonte de Téspias eram tão puras, que nem sequer delas se
haviam aproximado os lábios ressequidos dos pegureiros. Ainda na
tradução poética de Antônio Feliciano de Castilho, sintamos a
atmosfera de pureza, de bucolismo, languidez e indolência que
cercava o jovem caçador Narciso (Met., 3,407-413):
Sem limos, toda esplêndida, manava,
Fonte argêntea, onde nunca os pegureiros,
Nunca do monte as cabras repastadas,
Nem outra qualquer grei, jamais desceram;
Ave alguma o cristal lhe não turbara,
Nem fera, nem caduca arbórea rama.
Com seu frescor em torno se lhe alastra
Mole tapete ervoso, e a cingem bosques,
Do lago contra os sóis perene escudo.
Da beleza do sítio, e do saudoso
Murmúrio cativado, aqui chegava,
Da calma, e do caçar opresso, o jovem.
Debruçou-se sobre o espelho imaculado das águas e viu-se. Viu a
própria imago (imagem), a própria umbra (sombra) refletida no
espelho da fonte de Téspias. Si non se uiderit, “se ele não se vir”,
profetizara Tirésias. Viu-se e não mais pôde sair dali: apaixonara-se
pela própria imagem. Nêmesis cumprira a maldição.
No mito de Narciso, narrado pelo mitógrafo grego Cânon (cerca
de 30 a.C.), o jovem é descrito como “extremamente belo, mas
orgulhoso para com Eros e em relação àqueles que o amavam”. Eis aí
a grande “hamartía” de Narciso que, como Hipólito, ultrapassou o
métron (o que Liríope temia) e, encastelado em sua beleza, comete
uma hybris, uma violência contra Eros, contra o amor-objeto e
contra o envolvimento erótico com o outro.
Ovídio, mais uma vez, em suas Metamorfoses, 3,414-428 nos
relata a grande tragédia.
Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais farte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos também de Apolo;
Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim,
A boca encantadora, o leve rubor que lhe colore a nívea pele.
Admira tudo quanto admiram nele.
Em sua ingenuidade deseja a si mesmo.
A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo os ardores que sente.
É uma chama que a si própria alimenta.
Quantos beijos lançados às ondas enganadoras!
Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes
Mergulhou inutilmente suas mãos nas águas.
O mesmo erro que lhe engana os olhos, acende-lhe a paixão.
Crédulo menino, por que buscas, em vão, uma imagem fugitiva?
O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá
o objeto de teu amor.
A sombra que vês é um reflexo de tua imagem.
Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece.
Tua partida a dissiparia, se pudesses partir ...
Inútil: sustento, sono, tudo esqueceu.
Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar seu falso enlevo, E por seus
próprios olhos morre de amor.
Procuram-lhe o corpo: havia apenas uma delicada flor amarela,
cujo centro era circundado de pétalas brancas. Era o narciso.
Por Narciso se perdeu Eco e por narciso se arruinou Perséfone.
É que esta, como se comentou no Vol. I, p. 307, tinha o hábito de
colher flores no campo. Desejando-a, o rei do Hades, Plutão, contou
com a conivência de Zeus. Este colocou um narciso às bordas de um
precipício e, ao aproximar-se para pegá-lo, a filha de Deméter caiu
no abismo. Lá embaixo, já a aguardava a carruagem de Plutão, que a
fez sua mulher.
Na realidade, foi o perfume estupefaciente do narciso que
embriagou Perséfone e arrastou-a para as trevas.
O Hino Homérico a Deméter (10-18) nos descreve a flor e seus
efeitos sobre Core:
A flor brilhava intensa e maravilhosamente, e provocava admiração De
quantos, então, a viram: deuses imortais e homens mortais.
De sua raiz brotou um caule de cem cabeças,
E das múltiplas carolas exalava um perfume que fazia sorrir
Todo o vasto Céu, a terra e a áspera tumefação das ondas do mar!
Maravilhada, a jovem estendeu, de uma só vez, ambas as mãos,
A fim de colher o lindo presente, mas a terra de vastos caminhos Se abriu na
planície de Nisa, e surgiu com seus cavalos imortais O Senhor, rico em
hóspedes, o filho de Crono, invocado sob tantos nomes.
Acerca da “paixão” e morte de Narciso, o historiador e mitógrafo
grego Pausânias (séc. II d.C.) nos deixou uma versão diferente.
Narciso tinha uma irmã gêmea, parecidíssima com ele e a quem
muito amava. Com a morte prematura da mesma, o jovem ficou
inconsolável e refugiou-se na solidão. Vendo-se na fonte de Téspias,
acreditou ele estar vendo a irmã e não mais conseguiu afastar-se dali.
De qualquer modo, Narciso ainda tenta, no Hades, ver-se nas
águas escuras do rio Estige!
Muitas têm sido as interpretações do mito de Narciso. Desde os
mais antigos, passando depois pelos neoplatônicos, teólogos cristãos,
críticos literários, até desembocar (e felizmente!) em Freud,Jung e
seus discípulos, o mitologema do mais belo dos mortais vem sendo
submetido à análise, à exegese e a variados tipos de hermenêutica,
sem que se tenha, até o momento, uma interpretação definitiva, e é
pouco provável que se venha a tê-la. Como muito bem faz ver
Murray Stein, “o escape ao intelecto é uma das características dos
mitos e uma de suas forças, e é precisamente esta qualidade que nos
leva a reflexões psicológicas mais profundas, que, de outro modo,
não seriam prováveis”6.
Vamos tentar fazer algumas reflexões sobre o mitologema de
Narciso, reflexões, evidentemente, já “pensadas” pelos antigos, como
Cânon, Filóstrato, Pausânias, neoplatônicos, S. Clemente de
Alexandria ... e modernamente “traduzidas” (aqui tradução se reveste
da conotação etimológica que lhe empresta Martin Heidegger em
Holzwege) para um outro universo de cultura.
Nossos guias serão Jung, o supracitado Murray Stein, o
seguríssimo ].O. de Meira Penna,James George Frazer, este com as
“devidas cautelas”, Norman O. Brown e as magníficas interpretações
do Dr. Carlos Byington, nos três seminários que juntos fizemos sobre
Narciso.
Claro está que, tratando-se de “terreno alheio”, vamos ser
sumamente cauteloso e sobretudo conciso, entre outros motivos,
para seguir o conselho do grande poeta latino Q. Horácio Flaco, esta
breuis, “sê breve” ...
Se o mito de Narciso deve ser enquadrado nos de Eros, o elemento
básico que separa o mitologema do filho de Liríope daqueles, como a
lindíssima narrativa de Eros e Psiqué, é a “natureza do amor de
Narciso”, que se apaixona, sem o saber, pela própria imagem refletida
na fonte de Téspias. Ou seja: o engano fatal do jovem tebano foi a
escolha errada do objeto do amor. Tratar-se-ia, no caso, de uma
espécie de advertência à violação dos impulsos do amor, que deve ser
dirigido a outro. Nesse caso, a libido deixa de se dirigir ao objeto, ao
“outro”, e retroage a uma atividade endopsíquica: assim, Narciso teria
cometido um como que incesto intrapsíquico. Do ponto de vista
subjetivo de Narciso, seu amor é realmente orientado para um objeto,
pois que ele descobriu uma face humana de uma beleza arrebatadora
e por ela se apaixonou. O desenlace trágico, todavia, no relato de
Ovídio, acima transcrito, é a conscientização de Narciso de que está
perdidamente apaixonado por sua própria imagem; de que sua
paixão é um autoamor, um amor do self e não um amor pelo outro.
Tal descoberta leva-o ao desespero e à morte, por uma reflexão
“patológica”. Reflectere, de re-, “novamente” e flectere, “curvar-se”,
significa etimologicamente, “voltar para trás”, donde reflexus,
“reflexo”, retorno, e reflexio, -anis, “inclinação para trás”. Jung
acentuou bem o que ele compreende por reflexão: “O termo reflexão
não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma
atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana,
face às necessidades das leis da natureza. Como bem o indica a
palavra ‘reflexio’, isto é, ‘inclinação para trás’, a reflexão é um ato
espiritual de sentido contrário ao desenvolvimento natural; isto é,
um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em
relação a um confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A
reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de
consciência”7.
Mas a reflexão, como a de Narciso, pode representar sério perigo.
Valendo-nos, mais uma vez, da clareza de Murray Stein, vejamos
mais de perto o problema.
“Se o mitologema de Narciso é baseado num tabu contra a
vaidade (o excessivo autoamor) e no horror do solipsismo (o eu como
única realidade), sua ‘advertência’ também fala de um tipo de
reflexão patológica. Mais precisamente, o mito fala de um
desenvolvimento patológico, exatamente isto que Jung chamou de
instinto de reflexão. ‘Reflexio’ significa ‘voltar atrás’. A libido cessa
de mover-se em direção ao objeto, sofrendo uma ‘psiquização’ e é
desviada para uma atividade endopsíquica.
Jung atribui a esse instinto a possibilidade da riqueza e da
complexidade psicológica. Trata-se de um instinto estritamente
humano e, sem ele, a cultura e a interioridade psíquica seriam
inconcebíveis. Mas, como Jung frisa, cada instinto (ele enumera
cinco) tem um potencial de expressão patológica. A patologia é
indicada, geralmente, quando um dos cinco instintos começa a
dominar o resto e a restringir sua progressão para a satisfação.
Narciso indicaria este desenvolvimento patológico no instinto de
reflexão: a atividade da reflexão (voltar-se para si mesmo) domina e
exclui a necessidade de alimentação, de sexualidade comum, da
atividade da entrada de qualquer pensamento ou impulso novos.
O que o jovem beócio ama é sua ‘reflexão’ que, como já foi visto
anteriormente, é sua ‘umbra’, sua alma-sombra. Ele está apaixonado
por sua alma. Esta relação entre autoimagem (imagem do self) e alma
é primitiva e atravessa as idades, e é este o aspecto que Frazer
enfatiza em sua interpretação do mito. Sob a influência da ‘anima’,
ama-se o que se autorreflete e reflete-se o que se ama. No caso de
Narciso, ele ama o próprio reflexo e, por isso, não pode jamais
abandonar as águas paradas da fonte, onde esta ação é possível”8.
O perigo que oferece o aprofundar-se em demasia na linha
narcísica de alma e amor-reflexão está não somente na
autocontenção, no solipsismo, no incesto intrapsíquico, mas também
no suicídio. De modo explícito, ao recusar comer, Narciso se suicidou.
Esse suicídio anoréxico foi motivado pela desilusão: a imagem
querida e amada, que surge no reflexo, não possui equivalência no
mundo real e objetivo.
Narciso se perdeu no momento em que se encontrou, se viu: si non
se uiderit. Sob esse aspecto, o mito do mais belo dos homens
assemelha-se ao de Édipo.
Ambos se arruinam, no momento em que a ἀναγνώρισις
(anagnórisis), o “conhecimento”, os conscientizou acerca do objeto de
seu amor: Narciso está apaixonado por sua própria imago, imagem,
umbra, sombra, e Édipo descobre que sua amada é sua própria mãe.
Desse modo, a tragédia de Sófocles Édipo Rei é alicerçada no horror
do solipsismo, além de evocar o tabu da vaidade.
A interpretação de James George Frazer9 relaciona o mito com o
reflexo, mas de modo diferente, seguindo a primitiva superstição de
que nas fontes, lagos e rios esconde-se o espírito das águas, preparado
para roubar a alma, a imagem do self, que neles, porventura, se
refletisse. Para o autor de The Golden Bough não se deve olhar o
próprio reflexo na água, para que os espíritos da mesma não venham
a arrastar esse reflexo, que é a própria alma, para debaixo das águas e
privar o homem de sua psiqué. A história, em seus primórdios,
consoante Prazer, era de um jovem que contemplou sua própria
imagem num lago, com tanta fascinação, que a perdeu para um
espírito oculto, vindo, por isso mesmo, a morrer. É conveniente, para
a interpretação do autor de The Golden Bough, não esquecer que
Narciso era filho do rio Cefiso e de uma náiade (do verbo grego
naíein, “habitar”), donde náiade era uma ninfa que habitava rios e
riachos, como Liríope e, por isso mesmo, Narciso estava inteiramente
agregado à água: aliás, ele nasce e morre junto à água, “perdido numa
reflexão passional, fitando introvertidamente as profundidades. Seu
itinerário leva ao ctônio, à desilusão e à morte”.
Nesse caso, o espírito das águas de que fala Prazer poderia estar
associado à mãe de Narciso, o qual teria perdido sua vida para uma
mãe-anima possessiva. Ovídio, em seus lindíssimos versos
supracitados, diz que Narciso vê na fonte de Téspias sua imagem
(imago) e sua sombra (umbra). Ora, as palavras que, em grego,
designam “sombra e reflexo”, respectivamente σκιά (skiá) e
εἴδωλον (eídolon) e, em latim, imago e umbra, têm relação também
com a morte. O morto, na Hélade, tornava-se eídolon, um reflexo
inteiro do finado. O poeta latino Horácio, já citado, escreveu
melancolicamente numa Ode (4,7,16): puluis et umbra sumus, somos
pó e sombra, isto é, morte. E, como se viu, Narciso procura ainda
desesperadamente no Hades ver-se nas águas escuras do rio Estige.
Sob este enfoque, a morte de Narciso é como se fora um retorno às
águas primevas.
Igualmente os neoplatônicos, sobretudo Plotino, deram sua
contribuição para um dos ângulos possíveis da hermenêutica do
mitologema em pauta.
Se narcisismo pode ser compreendido como uma repulsa, uma
rejeição do mundo-objeto e da relação sujeito-objeto, os
neoplatônicos viram em Narciso um símbolo do oposto: uma espécie
de fascinação sem esperança, como se fora um elo preso ao mundo
da matéria e das aparências.
Deixando de lado o jovem frio, indiferente ao amor e
autossuficiente, apresentam-no como vítima de uma ilusão de que a
imago, a imagem, a umbra, a sombra, são a única realidade. Mais
precisamente: o esquema neoplatônico vê o mitologema como o mito
equivalente à queda da alma na matéria. É, precisamente, nessa visão
neoplatónica que o símbolo do espelho é tão importante.
Mas que é o espelho? O Prof. Manuel Antônio de Castro nos dá,
em excelente artigo sobre conceito de literatura infantil, um enfoque
realmente “neoplatônico” de espelho: “Peguemos um espelho,
olhando-o, captamos dele a nossa imagem. Atentemos à imagem:
podemos achar que corresponde, mas a imagem não é o que somos:
ela é, sendo outra que não nós. [ ... ] O que é espelho? É o lugar a partir
do qual, especulando, colhemos o que somos e não somos”10.
Pois bem, a identificação, ou melhor, a relação do espelho com a
matéria é muito frequente: a alma, olhando de cima, de seu estado
puro, vislumbra um reflexo dela mesma na matéria e enamora-se de
si mesma. Descendo, para alcançar o objeto de seu amor, mergulha
na matéria e torna-se prisioneira do cárcere do corpo. Plotino (En.,
4,2,12) fazendo um paralelo do mito de Narciso com o espelho de
Dioniso, de que já se fez menção, mais atrás, à p ..... , afirma: “As almas
dos homens, vendo suas imagens no espelho de Dioniso, como se
fossem elas próprias, entraram neste domínio, dando um salto para
baixo do Supremo”.
Assim, o desejo das almas de entrar na vida material é
consequência de se terem elas olhado num espelho, “o mesmo
espelho no qual Dioniso se contemplara, antes de voltar-se para a
criação das coisas individuais”. O espelho funciona, dessa maneira,
para estimular na alma um desejo pelo corpo, pelo distinguível, pela
particularidade. Para os neoplatônicos este movimento simboliza
igualmente uma queda da unidade na multiplicidade, do Uno no
muito, do pleuroma na criatura.
4
Uma palavra ainda acerca da sombra e do tabu do reflexo em
Platão, no Novo Testamento e no folclore.
A umbra, a sombra, tem função ambivalente, já que possui
qualidades comuns à luz e às trevas. Na verdade, não pode existir
sombra sem luz, e estas estão de tal modo relacionadas, que, ao cair
da noite, ambas são devoradas pelas trevas. Assim, relacionando-se
com a luz e com as trevas e aflorando o problema do bem e do mal, a
essência da sombra pode manifestar-se através de funções
ambivalentes.
No plano filosófico e religioso é que se pode ver bem a dimensão
ambivalente da umbra. No início do sétimo livro da República de
Platão, os “prisioneiros” estão de costas para a saída da caverna, onde
se encontram encerrados. Ao longe, arde uma fogueira. Entre a
caverna e a fogueira transitam homens, transportando objetos
vários. Suas sombras projetam-se na parede da gruta, sendo as
mesmas observadas e discutidas pelos que estão de costas para a
saída. Tais sombras, tais reflexos constituem para Platão as imagens
das ideias verdadeiras, para nós ainda invisíveis. Buscando essas
sombras, estamos à procura da luz.
A prosperidade, a felicidade e a força de fertilidade da sombra,
associada à luz geradora da vida, estão patentes na Anunciação de
Maria, quando lhe disse o Anjo Gabriel: Spiritus Sanctus superueniet
in te, et uirtus Altissimi obumbrabit tibi (Lc 1,35). -O Espírito Santo
virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
A força curativa da umbra também é muito exaltada em várias
culturas. Nos Atos dos Apóstolos há uma passagem deveras
interessante a esse respeito: o povo colocava seus doentes ao longo
das ruas pelas quais deveria passar Pedro, para que a sombra do
apóstolo lhes curasse os males. Eis o texto: Magis autem augebatur
credentium in Domino multitudo uirorum ac mulierum: ita ut in
plateas eicerent infirmos, et ponerent in lectulis et grabatis, ut,
ueniente Petro, saltem umbra illius obumbraret quemquam eorum
(At 5,14-15). - Cada vez aumentava mais o número de homens e
mulheres que acreditavam no Senhor, de maneira que traziam os
doentes para as ruas, e punham-nos em leitos e enxergões, a fim de
que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos sua sombra algum deles.
Também a umbra e o reflexo têm muito em comum, pois surgem
ambos como “reproduções incorpóreas de um original e se acham
imbuídos de mistério e de sobrenaturalidade”. A estreita relação
entre sombra e reflexo é ilustrada por um episódio ocorrido na velha
Constantinopla. Um jovem apaixonado viu, de seus aposentos, sua
amada chegar à janela fronteiriça. De imediato, tomando um
espelho, captou-lhe a imagem e beijou-a ternamente. Denunciado, o
rapaz foi condenado a quarenta vergastas, e na sombra!
A par da força terapêutica e da fertilidade, porém, a umbra tem
seu lado negativo: assim, quando se volta para o lado das trevas, seus
efeitos benéficos desaparecem com ela. Surgem, então, as tendências
fantasmagóricas e demoníacas. Os mortos perdem a sombra, ou, por
outra, transformam-se eles próprios em sombras, imago, umbra,
eídolon e podem assustar os vivos: são as assombrações.
O nosso folclorista maior, Luís da Câmara Cascudo, seguindo em
muitos passos, em Anúbis e outros ensaios, cap. XIV, a obra de James
George Frazer, The Golden Bough, já por nós citada, colheu por lá e
em pesquisas pessoais vários exemplos que atestam os perigos da
sombra e o tabu dos reflexos, “que ainda permanecem vivos no
espírito popular do Brasil”.
A imagem reproduzida na água ou na superfície dos espelhos tem
uma impressão de sobrenaturalidade e de mistério. A alma pode
ficar inteira e real no reflexo exterior. Em quase todas as partes do
mundo havia proibição de contemplar-se em água parada: a imagem
na água é alma disponível às forças do mal e do demônio.
Faz mal, registrava Gonçalves Fernandes, olhar o rosto refletido
na água do fundo de uma cacimba: o diabo pode levar a alma da
pessoa para as profundezas do inferno.
Criança que olha no espelho custa a falar. Espelho quebrado é
sinal de morte: quebrou-se o reflexo, a imago, a alma. Olhar-se no
espelho, à noite, é perigoso: pode-se ver o diabo. Em casa onde há
mortos cobrem-se os espelhos durante três dias. Moça que deseja
conhecer o futuro noivo espera pela festa de Santa Luzia (13 de
dezembro), reza uma Salve-Rainha até o “nos mostrai” (ad nos
conuerte) e, com uma vela acesa na mão, vai olhar-se no espelho: o
futuro esposo fatalmente aparecerá ... A sombra do corpo é parte
integrante do mesmo e suscetível de todas as suas virtudes, poderes e
perigos. Quem brinca com sombra, assombra-se. Pisar na sombra de
alguém é uma agressão séria: é apossar-se da pessoa.
Em culturas primitivas não se podiam e em algumas ainda não se
podem tirar fotografias: a alma fica presa na imagem imóvel, à
disposição do fotógrafo. Se a alma (a imago) pode ficar prisioneira e
perder-se nas águas e no reflexo de um espelho, quando estamos
conscientes, imagine-se quando estamos adormecidos: a alma sem
ação, abandonada ao desconhecido, está à mercê dos inimigos.
Assim, não se deve acordar repentinamente uma pessoa adormecida:
a alma, que aproveitou uns momentos de liberdade para peregrinar
pelo mundo, pode não ter tempo de regressar e o despertado morre.
Não se deve dormir com sede: a alma irá fatalmente beber água e
poderá afogar-se num poço ou cacimba. Não se deve pintar nem
caricaturar a quem dorme: a alma, ao regressar de suas viagens, pode
não reconhecer seu habitat e passar adiante ... Não se deve dormir
com os braços cruzados sobre o peito: a alma deixa de voltar ao
corpo, uma vez que não pode atravessar o sinal da cruz.
Parte escondida e inconsciente da personalidade consciente ou
parcela do inconsciente coletivo, no dizer de Jung, a umbra, a imago
perdida de Narciso continua viva entre nós.
Consciente ou inconscientemente, o místico e nostálgico poeta
mineiro Alphonsus de Guimaraens nos deixou um belíssimo poema
sobre a morte provocada pelo espírito-ladrão das águas: ]
ISMÁLIA
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar ...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar ...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar ...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar. ..
Estava perto do céu,
Estava longe do mar. ..
E como um anjo pendeu
As asas para voar ...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar. ..
As asas que Deus lhe deu
Rufiaram de par em par ...
Sua alma subiu ao céu.
Seu corpo desceu ao mar...
1. STEIN, Murray. Narcissus. ln: Rev. Spring. New York: 32-53, 1976, p. 34.
2. NASÃO, Públio Ovídio (43 a.C-17 d.C.). Metamorfoses, 3,368-384. Rio dejaneiro:
Organização Simões, 1959 [Tradução de Antônio Feliciano de Castilho].
3. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1973, p. 152ss. [Tradução e coordenação de Maria do Carmo Pandolfo].
4. LEACH, Edmund & AYCOCK, D. Alan. Structuralist Interpretations of Biblical Myth.
London: Cambridge University Press, 1983, p. l 13ss.
5. Galem é uma espécie de homem-robô na lenda judaico-cabalística. Criado por meios
artificiais, em concorrência com a criação de Adão por Deus, Galem é mudo, porque os
homens não conseguiram dar-lhe o dom da palavra.
6. Op. cit., p. 32.
7. Ibid., p. 158, n. 9.
8. Ibid., p. 40.
9. Ibid., p. 233ss.
10. CASTRO, Manuel Antônio de. Conceito de Literatura Infantil. ln: Legenda. Rio de Janeiro,
7: 49-58, 1983.
CAPÍTULO VII
Hermes Trismegisto
1
HERMES, em grego 'Ερμῆς (Hermês) e também “herma, cipo, pilastra,
estela com cabeça de Hermes”, não possui etimologia confiável.
Derivar o nome do deus de ἔρμα (hérma), “cipo, pilar” que o
representa ou dos “montes de pedras” que o configuram, não é
correto, pois que o nome do deus é anterior à “herma que o
simboliza”.
Filho de Zeus e de Maia, a mais jovem das Plêiades1, Hermes
nasceu num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa
caverna do monte Cilene, ao sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e
colocado no vão de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da
fecundidade e da imortalidade, o que traduz, de saída, um rito
iniciático, o menino revelou-se de uma precocidade extraordinária.
No mesmo dia em que veio à luz, desligou-se das faixas,
demonstração clara de seu poder de ligar e desligar, viajou até a
Tessália, onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, guardado
por Apolo, que cumpria grave punição, de que se falou mais atrás, à
p. 89. Percorreu com os animais quase toda a Hélade, tendo amarrado
folhudos ramos na cauda dos mesmos, para que, enquanto andassem,
fossem apagando os próprios rastros. Numa gruta de Pilos sacrificou
duas novilhas aos deuses, dividindo-as em doze porções, embora os
imortais fossem apenas onze: é que o menino-prodígio acabava de
promover-se a décimo segundo. Após esconder o grosso do rebanho,
regressou a Cilene. Tendo encontrado uma tartaruga à entrada da
caverna, matou-a, arrancando-lhe a carapaça e, com as tripas das
novilhas sacrificadas, fabricou a primeira lira.
Apolo, o deus mântico por excelência, descobriu o paradeiro do
ladrão e o acusou formalmente perante Maia, que negou pudesse o
menino, nascido há poucos dias e completamente enfaixado, ter
praticado semelhante roubo. Vendo o couro dos animais
sacrificados, Apolo não teve mais dúvidas e apelou para Zeus. Este
interrogou habilmente ao filho, que persistiu na negativa.
Convencido de mentira pelo pai e obrigado a prometer que nunca
mais faltaria com a verdade, Hermes concordou, acrescentando,
porém, que não estaria obrigado adizera verdade por inteiro2.
Encantado com os sons que o menino arrancava da lira, o deus de
Delfos trocou o rebanho furtado pelo novo instrumento de som
divino. Um pouco mais tarde, enquanto pastoreava seu gado,
inventou a σῦριγx(syrinks), a “flauta de Pã”. Apolo desejou também
a flauta e ofereceu em troca o cajado de ouro de que se servia para
guardar o armento do rei Admeto. Hermes aceitou o negócio, mas
pediu ainda lições de adivinhação. Apolo assentiu e, desse modo, o
caduceu de ouro passou a figurar entre os atributos principais de
Hermes, que, de resto, ainda aperfeiçoou a arte divinatória,
auxiliando a leitura do futuro por meio de pequenos seixos.
2
Divindade complexa, com múltiplos atributos e funções, Hermes
parece ter sido, de início, um deus agrário, protetor dos pastores
nômades indo-europeus e dos rebanhos, daí seu epíteto de Crióforo,
por ser muitas vezes representado com um carneiro sobre os ombros.
Pausânias (2,3,4) deixa bem claro essa atribuição primária do filho
de Maia: “Não existe outro deus que demonstre tanta solicitude para
com os rebanhos e seu crescimento”.
Os gregos, no entanto, ampliaram-lhe grandemente as funções, e
Hermes, por ter furtado o rebanho de Apolo, se tornou o símbolo de
tudo quanto implica astúcia, ardil e trapaça: é um verdadeiro
trickster, um trapaceiro, um velhaco, companheiro amigo e protetor
dos comerciantes e dos ladrões ... Na tragédia Reso, 216s., erradamente
atribuída a Eurípides, o deus é chamado “Senhor dos que realizam
seus negócios durante a noite”.
Ampliando-lhe o mito, os escritores e poetas igualmente lhe
dignificaram as prerrogativas. Na Ilíada, XXIV, 334s., vendo o
alquebrado Príamo ser conduzido pelo filho de Maia através do
acampamento aqueu, Zeus exclama comovido:
Hermes, tua mais agradável tarefa é ser
o companheiro do homem; ouves a quem estimas.
Nesse sentido, como está na Odisseia, VIII, 335. Hermes,
mensageiro, filho de Zeus, é o dispensador de bens.
Além do mais, se qualquer oportunidade é uma dádiva do deus, é
porque ele gosta de misturar-se aos homens, tornando-se, destarte,
juntamente com Dioniso, o menos olímpico dos imortais.
Protetor dos viajantes, é o deus das estradas. Guardião dos
caminhos, cada transeunte lançava uma pedra, formando um
ἔρμαιον (hérmaion), isto é, literalmente, “lucro inesperado,
descoberta feliz” proporcionados por Hermes: assim, para se
agradecerem ou para se obterem bons lucros, formavam-se, em
honra do deus, verdadeiros montes de pedra à beira da estrada. Digase logo que uma pedra lançada sobre um monte de outras pedras
simboliza a união do crente com o deus ao qual as mesmas são
consagradas, pois que na pedra está a força, a perpetuidade e a
presença do divino. Também entre os judeus, para não citar outras
culturas, um acontecimento feliz se comemorava com um monte de
pedras, não raro um sinal de aliança entre Israel e Javé, como emjs
4,6-7: Para que seja sinal entre vós e, quando amanhã vos
perguntarem vossos filhos, dizendo: “que significam estas pedras?”,
vós lhes respondereis: as águas do Jordão desapareceram diante da
arca da aliança do Senhor, quando passava por ele, e por isso, se
puseram estas pedras, para servirem aos filhos de Israel de um eterno
monumento.
Para os gregos, todavia, Hermes regia as estradas, porque andava
com incrível velocidade, pelo fato de usar sandálias de ouro, e, se não
se perdia na noite, era porque, “dominando as trevas”, conhecia
perfeitamente o roteiro. Com a rapidez que lhe emprestavam suas
sandálias divinas e com o domínio dos três níveis, tornou-se o
mensageiro predileto dos deuses, sobretudo de seu pai Zeus e do
casal ctônio, Hades e Perséfone. De outro lado, conhecedor dos
caminhos e de suas encruzilhadas, não se perdendo nas trevas e
sobretudo podendo circular livremente nos três níveis, o filho de
Maia acabou por ser um deus psicopompo, quer dizer, um condutor de
almas, tanto do nível telúrico para o ctônio quanto deste para aquele:
numa variante do mito, foi ele quem trouxe do Hades para a luz a
Perséfone e Eurídice; na tragédia de Ésquilo, Os Persas, 629, guiou,
para curtos instantes na terra, o êidolon do rei Dario.
Para Mircea Eliade são as faculdades “espirituais” do deus
psicopompo que lhe explicam as relações com as almas: “Pois a sua
astúcia e a sua inteligência prática, a sua inventividade [ ... ], o seu
poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte em um piscar
de olhos, já anunciam os prestígios da sabedoria, principalmente o
domínio das ciências ocultas, que se tornarão mais tarde, na época
helenística, as qualidades específicas desse deus”3.
Está com a razão o sábio romeno, pois aquele que domina as
trevas e os três níveis, guiando as almas dos mortos, não opera
apenas com a astúcia e a inteligência, mas antes com a gnose e a
magia.
Embora, como frisa Walter Otto, “o mundo de Hermes não seja
um mundo heroico”, a esse deus psicopompo não apenas os deuses
mas igualmente os homens ficaram devendo algumas ações
memoráveis, levadas a efeito mais com a solércia e a magia do que
com a força.
Na Gigantomaquia, usando o capacete de Hades, que tornava
invisível o seu portador, lutou ao lado dos deuses, matando o gigante
Hipólito. Recompôs fisicamente a seu pai Zeus, roubando os tendões,
que lhe arrancara o monstruoso Tifão. Libertou a seu irmão Ares, que
os Alóadas haviam encerrado num pote de bronze, segundo se
comentou bem antes, à p. 42. Salvou a Ulisses e a seus companheiros,
estes já transformados em animais semelhantes a porcos,
oferecendo-lhe como defesa uma planta fabulosa, de caráter
apotropaico, denominada móli4, cujos efeitos neutralizaram por
completo a beberagem peçonhenta que lhe preparara a feiticeira
Circe, conforme nos conta Homero na Odisseia, X, 281-329.
A grande tarefa de Hermes, no entanto, consistia em ser o
intérprete da vontade dos deuses. Após o dilúvio, foi o portador da
palavra divina a Deucalião, para anunciar que Zeus estava pronto a
conceder-lhe a satisfação de um desejo. Por intermédio dele, o
consumado músico Anfião recebeu a lira, Héracles a espada, Perseu o
capacete de Hades. Após insistente súplica de Aterrá a seu pai Zeus,
foi ele o enviado à bela Calipso, com ordens para que permitisse a
partida de Ulisses, há sete anos prisioneiro da paixão da ninfa da ilha
Ogígia. Foi quem adormeceu e matou Argos, o gigante de cem olhos,
colocado pela ciumenta Hera como guardião da vaca lo. Levou ao
monte Ida, na Frígia, as três deusas, Hera, Aterrá e Afrodite, para que
o pastor Páris fosse o árbitro na magna querela provocada por Éris,
acerca da mais bela das imortais. Por ordem expressa de Zeus,
cumpriu a ingrata missão de levar a Prometeu, aguilhoado a uma
penedia, o ultimatum, para que revelasse o grande segredo que tanto
preocupava o pai dos deuses e dos homens. Conduziu o pequeno
Dioniso de asilo em asilo, primeiro para a corte de Átamas e depois
para o monte Nisa. A ele coube, igualmente, a gratíssima tarefa de
conduzir Psiqué para o Olimpo, a fim de que se casasse com Eros.
3
Poder-se-iam multiplicar as missões e as comissões de Hermes,
mas o que interessa mais de perto nesse deus tão longevo, que só
faleceu, se é que faleceu, no século XVII, “são suas relações com o
mundo dos homens, um mundo por definição ‘aberto’, que está em
permanente construção, isto é, sendo melhorado e superado. Os seus
atributos primordiais - astúcia e inventividade, domínio sobre as
trevas, interesse pela atividade dos homens, psicopompia - serão
continuamente reinterpretados e acabarão por fazer de Hermes uma
figura cada vez mais complexa, ao mesmo tempo que um deus
civilizador, patrono da ciência e imagem exemplar das gnoses
ocultas”5. Agilis Cyllenius, o deus rápido de Cilene, como lhe chama
Ovídio nas Metamorfoses, 2,720, 818, o filho de Maia para os helenos,
era o λόγιος (lóguios), o sábio, o judicioso, o tipo inteligente do grego
refletido, o próprio Lógos. Hermes é o que sabe e, por isso mesmo,
aquele que transmite toda ciência secreta. Não sendo apenas um
olímpico, mas igualmente ou sobretudo um “companheiro do
homem”, tem o poder de lutar contra as forças ctônias, porque as
conhece, como demonstrou Kerényi em sua obra capital sobre
Hermes6. Todo aquele que recebeu deste deus o conhecimento das
fórmulas mágicas tornou-se invulnerável a toda e qualquer
obscuridade. No Papiro de Paris, o deus de Cilene é chamado, por esse
motivo, “o guia de todos os magos”, πάντων μάγων ἀρχηγέτης
(pánton mágon arkheguétes). Através do livro de Lúcio Apuleio
sobre a bruxaria (De Magia, 31), ficamos sabendo que o feiticeiro o
invoca nas cerimônias como aquele que transmite conhecimentos
mágicos: Solebat aduocari ad magorum cerimonias Mercurius
carminum uector - “Mercúrio (nome latino de Hermes) costumava
ser invocado nas cerimônias dos magos como transmissor de
fórmulas mágicas”.
Inventor de práticas mágicas, conhecedor profundo da magia da
Tessália, possuidor de um caduceu com que tangia as almas na luz e
nas trevas, foi com esses atributos que Hermes mereceu estes versos
lindíssimos do maior poeta ocidental da antiguidade cristã, Aurélio
Clemente Prudêncio (cerca de 348 d.C.)7 :
Nec non Thessalicae doctissimus ille magiae
traditur extinctas sumptae moderamine uirgae
in lucem reuocasse animas [ ... ]
ast alias damnasse neci penitusque latenti
inmersisse Chao. Facit hoc ad utrumque peritus.
“Mercúrio conhece profundamente a magia da Tessália
e conta-se que seu caduceu conduzia as almas dos mortos
para as alturas da luz [ ... ]
mas que condenava outras à morte e as precipitava
nas profundezas do abismo entreaberto.
Ele é perito em executar ambas as operações”.
Ad utrumque peritus, “hábil em ambas as funções”, isto é, versado
em conduzir para a luz ou para as trevas: eis aí o grande título de
Hermes, o vencedor mágico da obscuridade, porque sabe tudo e, por
esse motivo, pode tudo.
Aquele que é iniciado pelo luminoso Hermes é capaz de resistir a
todas as atrações das trevas, porque se tornou igualmente um
“perito”.
Mesmo após a grande crise por que passou a religião grega, com o
martelamento dos templos de seus deuses pelo imperador Flávio
Teodósio, Hermes continuou vitorioso, através, claro está, de mil
vicissitudes.
Assimilado ao deus egípcio Tot, mestre da escritura e, por
consequência, da palavra e da inteligência, mago terrível e patrono
dos magos, que, já no século V a.C., era identificado a Hermes, como
ensina Heródoto (2,152), bem como ao inventivo e solerte Mercúrio
romano, o deus de Cilene, com o nome de Hermes Trismegisto, isto é,
“Hermes três vezes Máximo”, sobreviveu através do hermetismo e da
alquimia, até o século XVII.
No mundo greco-latino, sobretudo em Roma, com os gnósticos e
neoplatônicos, Hermes Trismegisto se converteu num deus muito
importante, cujo poder varou séculos. Na realidade, Hermes
Trismegisto resultou de um sincretismo, como já se assinalou, com o
Mercúrio latino e com o deus “ctônio” egípcio Tot, o escrivão da
psicostasia no julgamento dos mortos no Paraíso de Osíris e patrono,
na Época Helenística, de todas as ciências, sobretudo porque teria
criado o mundo por meio do lógos, da palavra.
Pois bem, em Roma, a partir dos primeiros séculos da era cristã,
surgiram muitos tratados e documentos de caráter religioso e
esotérico que se diziam inspirar-se na religião egípcia, no
neoplatonismo e neopitagoricismo. Esse vasto conjunto de escritos
que se acham reunidos sob a epígrafe de Corpus Hermeticum8,
“coleção” relativa a Hermes Trismegisto, fusão de filosofia, religião,
alquimia, magia e, sobretudo, de astrologia, tem muito pouco de
egípcio. Desse Corpus Hermeticum muito se aproveitou a Gnose, em
grego γνῶσις (gnôsis), “conhecimento”, que se pode definir como
conhecimento esotérico da divindade, que se transmite
particularmente através de ritos de iniciação.
Os gnósticos com seu gnosticismo, isto é, sincretismo religioso, um
amálgama greco-egípcio-judaico-cristão, surgido também nos
primeiros séculos de nossa era, procuraram conciliar todas as
tendências religiosas e explicar-lhes os fundamentos por meio da
gnose.
Como judiciosamente acentua Leonel Franca, essa erupção
religiosa se deveu particularmente à fadiga e à decepção carreadas
pelo ecletismo e sobretudo pela dúvida, o que fez os espíritos se
voltarem para um “comércio mais íntimo com a divindade”. Diz
Leonel Franca: “Fatigados pelo ecletismo e abatidos pela dúvida,
buscam os espíritos em novos processos de conhecimento e num
comércio mais íntimo com a divindade as bases de uma nova
metafísica e a natural expansão de sentimentos religiosos a que já
não podia satisfazer o Panteón despovoado de Roma. Desta
tendência nasceu o neoplatonismo fundado por Amônia Saca (176243), mas organizado e unificado em corpo de doutrina por Platino
(205-270), seu discípulo”9.
Plotino era um filósofo “egípcio”, de língua grega. Sua obra consta
de cinquenta e quatro dissertações, agrupadas por seu discípulo
Porfírio em seis séries de nove e, por isso, intituladas Ennéades,
Enéadas, cujo sistema místico é o desenvolvimento de um panteísmo
de emanação.
Emanação, palavra formada à base do verbo latino emanãre,
“manar, provir de, originar-se de”, como doutrina pode sintetizar-se
da seguinte maneira: acima de todos os seres eleva-se o Uno, a Grande
Mônada, a Unidade Absoluta, ser supremo e incognoscível (sem
inteligência, nem vontade, já que estes atributos implicam a
dualidade de sujeito e objeto), unidade simplicíssima e
suficientíssima, plenamente identificada consigo mesma na
contemplação e amor de si mesma.
Do Uno não se pode dizer o que ele é, apenas que é uno e bom, o
que o leva a “emanar-se”, a expandir-se para fora de si; desse Uno, por
emanação, degradação e dissemelhança, provém a Inteligência,
Λόγος (Lógos), Νοῦς (Nus), que contém em si todas as coisas, o
mundo dos inteligíveis. Da Inteligência, como princípio dinâmico,
emana a Alma do Mundo, caracterizada pela tendência essencial a
realizar as ideias eternas no mundo sensível. Como emanações
hierárquicas do Uno, Inteligência e Alma do Mundo constituem com
ele a trindade neoplatônica. Da Alma do Mundo provêm as almas
individuais ou forças plásticas que geram a matéria e a ela se unem,
constituindo os seres corpóreos e sensíveis. É, pois, a matéria a última
emanação em que se esgota o Uno, a essência suprema. A esse
processo objetivo de degradação do Uno em emanações sucessivas
corresponde um processo subjetivo de reintegração dos seres na
Grande Mônada, na unidade absoluta. Nessa “reabsorção”, a psiqué
passa por três estágios ou caminhadas: κάθαρσις (kátharsis),
catarse, purificação, através da qual se desliga de tudo o que é
sensível e se reune, se religa à Alma do Mundo; διαλεκτική
(dialektiké), dialética (o diálogo), pela qual se eleva à contemplação
das ideias e se “reune” à Inteligência; ἔκσρασις (ékstasis),
contemplação, êxtase, pelo qual a psiqué se despoja do sentimento da
própria personalidade para abismar-se inconscientemente na
Unidade Suprema. Toda a finalidade da doutrina é, como se vê, a
“reunião” extática, o retomo místico da alma à Grande Mônada: nisto
consiste precisamente a felicidade suprema do homem. Na realidade,
o que se buscava era uma religião de caráter universalista, uma
religião transistórica e primordial.
Hermes Trismegisto permaneceu também através da alquimia.
Alquimia, consoante Corominas10, procede do artigo árabe al +
kimyâ, “pedra filosofal” e, quanto à origem da palavra árabe, há duas
hipóteses: a base seria o grego χυμεία (khymeía), “mistura de
diversos líquidos”, derivada de χυμός (khymós), “suco, sumo”, ou o
copta chame, “negro”, nome aplicado aos egípcios e às artes que se
lhes atribuem.
Uma breve mas claríssima exposição sobre alquimia, como
introdução à interpretação de Jung, encontra-se em Monique Augras,
num livro precioso, já por nós citado. Vamos procurar seguir
Monique, sintetizando aquilo que nos parece mais importante para a
finalidade que temos em mira.
“A alquimia é uma ciência, ou melhor, uma filosofia ainda mal
conhecida. Baseava-se na teoria segundo a qual tudo no mundo
obedece às mesmas leis, e todos os objetos da natureza contêm a
energia vital. [ ... ] Para o alquimista, toda matéria contém a vida.
Na expressão mais alta, a ‘arte régia’ tendia a reconstituir o
processo pelo qual essa vida adulterada na terra, depois da queda de
Adão, perdeu sua pureza, mas pode reencontrá-la. A pureza, para o
homem moral, é a redenção ou regeneração, para a natureza é a
purificação ou perfeição. Trata-se, portanto, de participar da obra do
Demiurgo, do Criador, ajudando a Terra a reencontrar a sua
integração em Deus. [ ... ] Mas alquimia é, antes de tudo, mística.
Professam os (alquimistas) a crença de que, para realizar a grande
obra, a regeneração da matéria, devem procurar a regeneração de sua
alma.Já que se trata de processos análogos e até do mesmo processo, o
alquimista vai realizar a sua redenção espiritual paralelamente à
procura da ‘pedra filosofal’. [ ... ]Apedra representa a materialização
da energia, mas também a purificação da alma. Os alquimistas que
procuravam apenas fabricar ouro não eram verdadeiros adeptos,
pois, diz Hermes, O meu ouro não é ouro vulgar”11
Claro está que, sendo para iniciados, toda a terminologia que
descreve a obra, a busca da “pedra filosofal”, é vazada numa
linguagem criptográfica, cifrada, esotérica, hermética enfim. A
célebre Tabula Smaragdina, “Tábula de Esmeralda”, cuja tradução
para o latim data do século XII e cujo texto teria sido gravado pelo
próprio Hermes numa esmeralda, contém a base dessa busca. O
fundamento simbólico é a separação dos sexos e a “reunião” dos
mesmos, patenteando a oposição e o equilíbrio dos dois grandes
princípios do universo. Consoante a Tabula, a distribuição simbólica
masculino-feminino é a seguinte:
masculino: o sol, ouro, o fogo, o ar, o rei, o espírito de enxofre.
feminino: a luz, a prata, a terra, a água, a rainha, o espírito de
mercúrio.
Diga-se logo que o mercúrio dos alquimistas, quer dizer, Hermes,
é hermafrodito, porque é feminino, por ser branco e líquido, e é
masculino, por ser um metal seco. Esse hermafroditismo provém
exatamente do fato de simbolizar a complexio oppositorum, a “união
dos contrários”.
O occultus lapis, a pedra oculta, a pedra filosofal, que renascerá
das cinzas, será o homo nouus, o homem novo, a Fênix, a Rosa. Sendo
o universo formado de quatro elementos, ar,fogo, água e terra, sob o
aspecto de quatro estados, gasoso, sutil, líquido e sólido, a “pedra”, que
representa a unificação dos quatro, através do isolamento da energia
represada nos quatro elementos, é, por conseguinte, a quintessência,
simbolizada pelo número cinco ou pela Rosa que possui cinco pétalas.
A unidade do cosmo é configurada pelo Uróboro12, a serpente que
“morde a própria cauda”.
Da complexio opposítorum, da união dos contrários, sairá a
energia vital, a pedra. Já que os metais procedem dessa união, com
graus diferentes de maturação, é necessário recriar a matéria-prima,
a fim de fazê-la amadurecer até se obter o occultus lapis, a pedra
oculta. A matéria irá passar por uma experiência dramática, análoga
às “paixões” de determinados deuses dos Mistérios Greco-Orientais:
sofrimentos, morte e ressurreição. O opus magnum, “a grande
operação”, ou opus phílosophicum, a “operação filosófica”, fará com
que a matéria sofra, morra e ressuscite, como se fora o drama místico
do deus (paixão, morte e ressurreição), o qual se vê projetado sobre a
matéria, a fim de transmutá-la. O alquimista, portanto, tratará a
matéria tal qual o deus era tratado nos Mistérios: os minerais
padecem, morrem e renascem em uma outra forma, isto é, são
transmutados.
Essa transmutação, efetuada pelo opus magnum, e que tem por
objetivo único, simbolicamente, a Pedra Filosofal, faz a matéria
passar por quatro fases (segundo outros por cinco), que são
designadas segundo as cores que tomam os ingredientes na operação:
nigredo (preto), albedo (branco), citrinitas (amarelo), rubedo
(vermelho).
Após alguns ritos preliminares, como a construção do fogão
adequado, do atanor ( vaso especial) e de todos os ingredientes e
instrumentos que irão servir às manipulações, dava-se início à
operação: recriar a matéria-prima. Os contrários são encerrados no
atanor ou ovo filosófico. Estes contrários são o princípio enxofre
masculino, cujo símbolo é um rei vestido de vermelho, e o princípio
mercúrio feminino, configurado por uma rainha vestida de branco.
Desse “matrimônio filosófico” nascerá a matéria-prima. Em seguida,
procede-se ao cozimento: a matéria-prima é submetida a uma série
de operações dentro do ovo e passa por várias etapas e
transformações, representadas sucessivamente pelas cores preta,
branca, amarela e vermelha.
A nigredo, o “preto”, é a regressão ao estado fluido da matéria: é a
putrefação, a morte do alquimista, e como escreve o cabalista
Paracelso (1493-1541), “aquele que deseja entrar no Reino de Deus
deve entrar primeiramente com seu corpo em sua mãe e ali morrer”.
A “mãe”, no caso, é a primeira matéria, a massa confusa, o caos, o
abismo.
O acróstico, formado por Basile Valentin, é sugestivo a esse
respeito, VITRIOL: Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies
Occultum Lapidem, quer dizer: “Desce às entranhas da Terra e,
purificando-te, encontrarás a pedra secreta”.
A albedo, o “branco”, é o mercúrio, a iluminação, uma vez que a
pedra branca transforma todos os metais em prata; a rubedo, o
“vermelho”, é o enxofre, o sangue, a paixão, a sublimação; citrinitas, o
“amarelo”, é o Ouro, a Pedra, o Azoth (primeira e última letras do
alfabeto hebraico), o princípio e o fim de todas as coisas. O alfa e o
ômega.
Projetando sobre a matéria a função iniciática do sofrimento e
graças às operações alquímicas assimiladas aos tormentos e dores, à
morte e à ressurreição do iniciado, opera-se a transmutação, pois a
“substância” converte-se em Ouro. Sendo o Ouro o símbolo da
eternidade, essa transmutação alquímica é o grau máximo de
perfeição da matéria e, para o alquimista, corresponde ao término de
sua iniciação.
4
Viu-se logo no início deste capítulo que Hermes, em troca da
“flauta de Pã”, recebeu de Apolo, além do caduceu, lições de mântica,
de poder divinatório. Foi graças a esse dom do deus de Delfos, que o
“deus alquímico” fez jus a um templo na Acaia, onde respondia às
consultas de seus devotos pelo denominado processo das vozes.
Purificado, provavelmente com o mais simples processo da
ablução, o consulente dirigia-se para o fundo do templo, onde estava
a estátua de Hermes e dizia-lhe baixinho ao ouvido o seu desejo
secreto. Em seguida, tapava fortemente as orelhas com as mãos e
caminhava até o átrio do templo, onde, num gesto rápido, afastava as
mãos: as primeiras palavras ouvidas dos transeuntes eram a resposta
do oráculo e a decisão de Hermes. Esse método, direto e econômico,
popularizou-se, passando a voz humana “não provocada” a ter
poderes mágicos. Afinal, uox populi, uox Dei, a voz do povo é a voz de
Deus.
Em Portugal, consoante Luís da Cãmara Cascudo13, bem como no
Brasil, ir às vozes era uma técnica não apenas para saber das coisas,
mas sobretudo um método muito usado pelas moças casado iras,
certamente já em estado de titiite ...
Vamos transcrever apenas três excelentes informações de autores
portugueses, arroladas por Luís da Câmara Cascudo.
A primeira é de Teófilo Braga: “A voz humana tem poderes
mágicos; um feiticeiro: - Para saber se uma pessoa era morta ou viva,
dizia à janela: Corte do céu, ouvi-me! Corte do céu, falai-me! Corte do
céu, respondei-me! Das primeiras palavras que ouvia na rua acharia
a resposta” (Sentenças das Inquisições, ap. Boletim da Soe. de
Geografia. Sic!).
“Na Foz do Douro, costumam as mulheres andar às vozes para
inferirem pelas palavras casuais que ouvem do estado das pessoas
que estão ausentes.” Aliás, não é bem do estado das pessoas ausentes,
mas de sua disposição e disponibilidade matrimonial...
“D. Francisco Manuel de Melo, nos ‘Apólogos Dialogais’ (mais
precisamente nos ‘Relógios Falantes’, p. 24 da ed. brasileira de 1920,
Sic!), refere esta superstição: e com o próprio engano com que elas
traziam a outras cachopas do São João às quartas-feiras, e da Virgem
do Monte às sextas, que vão mudas à romaria, espreitando que diz a
gente que passa; donde afirmam que lhes não falta a resposta dos seus
embustes, se hão de casar com fulano ou não; e se fulano vem da
Índia com bons ou maus propósitos; ou se se apalavrou lá em seu
lugar com alguma mestiça, filha de Bracmene.”
Zacarias, pai de João Batista, por não ter acreditado nas palavras
do Anjo Gabriel, que lhe anunciava a gravidez da esposa Isabel, ficou
mudo. Ignorando a discussão acerca do nome que se deveria dar ao
recém-nascido, escolheu João, que ainda não fora usado em sua
geração (Lc 1,60-63).
Certamente por ter resolvido o problema, sem do mesmo ter
conhecimento, passou Zacarias a ser em Portugal “um mentor de
vozes”, como anotou o notável filólogo José Leite de Vasconcelos.
“J. Leite de Vasconcelos registra semelhantemente no Tradições
populares de Portugal (Porto, 1882, 258): Quando se quer saber
qualquer coisa, chega-se à janela, à hora das trindades (outros dizem
que a qualquer hora) e diz-se:
Meu São Zacarias,
Meu santo bendito!
foste cego, surdo e mudo,
tiveste um filho
e o nome puseste João.
Declara-me nas vozes do povo ... (formula-se o pedido).
Em seguida correm-se as ruas, sem parar, recolhendo-se os ditos
que se ouvem, e aplicando-os ao fim, no que eles têm de aplicável. A
fórmula diz-se três vezes, e a cerimônia dura três noites seguidas
(Minho). No Porto, antes de se correrem as ruas, vai-se rezar à
Senhora das Verdades (ao pé da Sé) e, enquanto se anda pelas ruas,
não se fala com ninguém. A isto chama-se ir às vozes”.
5
Hermes teve muitos amores e vários filhos. O mais importante de
todos, porém, foi Hermafrodito.
HERMAFRODITO, em grego 'Ερμαφρόδιτος (Hermaphróditos), “filho
de Hermes e de Afrodite”, por onde já se conclui que a grafia
Hermafrodita é descabida e simplesmente absurda. Hermafrodito foi
criado pelas Ninfas nas florestas do monte Ida, na Frígia, e era
dotado de uma beleza tão grande como a de Narciso. Aos quinze anos
pôs-se a percorrer o mundo. Viajando pela Ásia Menor, encontrou-se
um dia, na Cária, às margens de um lago, habitado pela Ninfa
Sálmacis, que por ele se apaixonou violentamente. Repelida pelo
jovem, fingiu conformar-se, mas, quando Hermafrodito se despiu e
se lançou às águas do lago, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu
aos deuses que, para sempre, lhes unissem os dois corpos em um só.
Os imortais ouviram-lhe a súplica e, assim, surgiu um novo ser, de
dupla natureza. Por seu lado, Hermafrodito implorou aos deuses, e
estes o atenderam, que todo aquele que se banhasse no lago da Ninfa
Sálmacis perdesse a virilidade.
O mito de Hermafrodito não passa, na realidade, de mera
repetição ou recapitulação do andrógino primordial, ou seja, o
Rebis14 (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete Hermafrodito).
A iconografia de Hermes apresenta-o com um chapéu de formato
especial, πέτασος (pétasos), o pétaso; com sandálias providas de
asas e segurando um caduceu com duas serpentes entrelaçadas na
parte superior.
A simbólica estampada na imagem clássica do deus alquímico
não é de difícil interpretação, como o demonstram Jean Chavalier e
Alain Gheerbrant e sobretudo Joseph L. Henderson. É o que se há de
ver muito resumidamente.
O chapéu, em muitas culturas, significou e significa ainda
determinadas prerrogativas e sinal de autoridade. Seu simbolismo,
como o da coroa, é o poder e a soberania. Embora se julgue que o
chapéu, substituindo os cabelos, como instrumento receptor de
influência celeste, configure o fecho do processo iniciático, uma
coisa não invalida a outra e nem, tampouco, interrompe a função
mediadora do cabelo, uma vez que as pontas ou pequenos cornos que
se colocavam sobre os chapéus e as pontas da coroa são concebidos
como cabelo, à imagem dos raios de luz.
Cobrindo a cabeça, sede da psiqué e da inteligência, o chapéu é
um símbolo de identificação. Segundo Jung, trocar de chapéu é trocar
de ideias, ter uma outra visão do mundo.
As sandálias, e as de Hermes eram dotadas de asas, separam a
terra do corpo pesado e vivente, daí a importância simbólica das
sandálias depostas, rito maçônico que evoca a atitude de Moisés no
monte Sinai, pisando descalço a terra santa. Descalçar a sandália e
entregá-la ao parceiro era entre os judeus a garantia de um contrato
(Rt 4,7-8).
Para os antigos taoístas as sandálias eram o substituto do corpo
dos imortais e seu meio de deslocamento no espaço: homens com solas
de vento, suas sandálias eram aladas. Instrumentos de imortalidade,
símbolos até mesmo de elixir da vida, compreende-se que tais
acessórios fossem muitas vezes fabricados por imortais-sapateiros.
As sandálias aladas, para Hermes e Perseu, são um símbolo de
elevação mística e, para o filho de Maia particularmente, configuram
o domínio dos três níveis.
O caduceu, em grego κηρύκειον (kerykeion), significa bastão de
arauto. Diga-se logo que o latim caduceus ou caduceum deve ser um
“empréstimo antigo, direto ou indireto”, talvez com intermediário
etrusco, ao grego dórico καρύκειον (karykeion) . Símbolo dos mais
antigos, sua imagem já se acha gravada, desde o ano 2600 a.C., na
taça do rei Gudea de Lagash. São várias as formas e múltiplas as
interpretações do caduceu; vamos nos restringir às essenciais, com
vistas principalmente ao deus alquímico. O caduceu, insígnia
principal de Hermes, é um bastão em torno do qual se enrolam, em
sentidos inversos, duas serpentes. Nesse enfoque, o caduceu serve de
equilíbrio aos dois aspectos do símbolo da serpente, a direita e a
esquerda, o diurno e o noturno, uma vez que esse réptil ctônio possui
duplo aspecto simbólico: um benéfico, outro maléfico, cujo
antagonismo e equilíbrio são representados pelo caduceu. Este
equilíbrio e esta polaridade estão bem claros nas correntes cósmicas,
configuradas pela dupla espiral. O mito do caduceu se reporta não só
ao Caos primordial, em que duas serpentes entram em luta, mas
ainda à sua polarização, momento em que Hermes as separa.
Enrolando-se em torno do caduceu, elas simbolizam o equilíbrio das
tendências contrárias em torno do axís mundí, do eixo do mundo, o
que nos leva a interpretar o bastão do deus de Cilene como um
símbolo de paz.
Sendo Hermes o mensageiro dos deuses e o guia dos seres na sua
transmutação, estas duas funções estão bem marcadas pelos dois
sentidos ascendente e descendente das correntes representadas pelas
duas serpentes.
Uma segunda interpretação é a de Henderson15, que se volta para
um outro lado, para o ângulo da fecundidade. O caduceu, com efeito,
simbolizando um falo em ereção com duas serpentes acopladas, é
uma das mais antigas representações indo-europeias, sendo
encontrado na Índia antiga e moderna, associado a numerosos ritos,
bem como na Grécia, onde se tornou insígnia de Hermes, e entre os
latinos, que o transferiram a Mercúrio. Espiritualizado, esse falo de
Hermes psicopompo penetra, na expressão de Henderson, a partir do
mundo conhecido no mundo desconhecido, em busca de uma
mensagem espiritual de libertação e de cura. Seria oportuno lembrar
que o caduceu é, hodiernamente, o emblema universal da ciência
médica.
O caduceu, todavia, só adquiriu um sentido pleno à época clássica
grega, quando as duas serpentes foram encimadas por asas; desde
então, transcendendo suas origens, o símbolo se converteu numa
síntese ctônio-urânia, como a representação do deus asteca
Quetzalcóatl, que, após seu sacrifício voluntário, renasceu para uma
ascensão celeste sob a forma de uma serpente emplumada.
O grande infortúnio dos deuses antigos é que eles eram
biografáveis e, por isso, morreram. Talvez por ter sido o
“companheiro do homem”, o Trismegisto morreu tão tarde e, bem
antes de suas exéquias, mereceu o quinto hino órfico:
Tu, mensageiro do deus, profeta do lógos para os mortais ...
O saber divino, diz Rahner, que nos libera de nós mesmos, que
vem a nosso encontro ἄνωθεν (ánothen) e θεόθεν (theóthen), do
alto e de Deus, é oλόγος προφορικός (lógos prophorikós), “a
palavra tornada audível”, e Hermes é justamente isto!
Hermes Trismegisto foi um deus tão importante, que, em Listra, a
multidão, ao ver um milagre de Paulo, tomou-o por Hermes e gritou
entusiasmada, pensando estar diante de deuses, de Paulo e de
Barnabé, sob forma humana, e isto porque Paulo parecia ser aquele
(Hermes), ὁ ἡγούμενος τοῦ λόγου (ho hegúmenos tû lógu),
“aquele que lhes dirigia a palavra” (At 14 ,11-12). Naquele dia, o
grande apóstolo, em companhia de Barnabé, deve ter convertido a
muitos, que certamente compreenderam que Paulo não era Hermes,
nem tampouco o Lógos, mas um simples instrumento do único e
verdadeiro Lógos.
1. Plêiades eram as filhas de Atlas e Plêione. Eram sete irmãs: Taígeta, Electra, Alcíone,
Astérope, Celene, Mérope e Maia. Exceto Mérope, que desposou Sísifo, todas se uniram a
deuses. A elas são atribuídas as instituições dos coros de dança e das festas noturnas. Foram
transformadas na constelação dita das Plêiades, por Zeus, que as livrou assim da implacável
perseguição do temível caçador Oríon, que se apaixonara por uma delas.
2. A propósito da busca de Apolo (no que foi ajudado pelos Sátiros) a seu rebanho furtado
por Hermes, Sófocles compôs o drama satírico Os cães de busca, que, infelizmente, não
chegou completo até nós.
3. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 109.
4. Móli, em grego μῶλυ (môly), que a etimologia popular aproximou do verbo μωλύειν
(molyein), “embotar, relachar, enfraquecer, esgotar”, isto é, móli é o antídoto que toma
ineficazes os venenos. A respeito dessa planta, antigos e modernos já fizeram correr muita
tinta, segundo nos mostra, com fartas citações e densa bibliografia, o extraordinário Hugo
Rahner S.J., em seu livro famoso Mythes grecs et mystere chrétien. Paris: Payot, 1954, p. 196ss.
Na realidade, não se pode fazer de móli uma ideia concreta, porque ela não expressa nome
algum de planta: trata-se de uma expressão poética e geral para designar um antídoto. Mais
precisamente, móli faz parte da botânica mítica e poética de Homero ...
Mas, como desde a antiguidade, passando pela Idade Média, essa planta de raízes negras e
flores brancas, se para os gregos era uma dádiva dos deuses e, portanto, um φάρμακον
ἐσθλόν (phármakon esthlón), um “antídoto eficaz”, para os Cristãos móli se transformou
num antídoto contra o demônio.
Na Antologia Palatina, XV, 12, um pequeno poema medieval, talvez da autoria de Léon le
Sage (886-912), patenteia a cristianização da planta dos deuses:
Desaparece, sombria caverna de Circe. Para mim, nascido do céu,
Seria uma vergonha alimentar-me com tuas glandes, como um animal!
Peço a Deus, pelo contrdrio, que me dê a flor que cura as almas,
Mólí, a boa medicina contra os maus pensamentos.
5. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 109.
6. KERÉNYI, K. Hermes der Seelenführer (Hermes, o condutor das Almas). Zürich: RheinVerlag, 1944.
7. Contra Symmachum, I, 94-98.
8. A denominação Corpus Hermeticum remonta ao século XV, quando Cosme de Médicis,
por volta de 1460, comprou um manuscrito grego e solicitou ao grande humanista e
latinista Marsílio Ficino (1433-1499) que o traduzisse para o latim. Trata-se de uma
literatura “hermética”, erudita: são dezessete tratados, que remontam, na sua quase
totalidade, ao século II d.C. Não seria fora de propósito estabelecer a complementaridade e a
diferença entre Hermetismo e Corpus Hermeticum (Coletãnea Hermética); Hermetismo é o
conjunto de crenças, ideias, práticas e ritos transmitidos através da vasta literatura
hermética, cujos textos foram redigidos entre os séculos III a.C. e II-III d.C. Dividem-se em
dois grandes grupos: tratados concernentes ao hermetismo popular (magia, alquimia,
astrologia, ciências ocultas), sendo os mais antigos, possivelmente do século III a.C., e o
Corpus Hermeticum, do século II d.C., de cunho muito mais erudito.
9. FRANCA, S.]. Leonel. Op. cit., p. 68s.
10. COROMINAS,]. Diccionario crítico etimológico de Ia Iengua castellana. 4 vols. Madrid:
Editorial Gredos, 1954, verbete.
11. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 66ss.
12. Ouróboros é palavra formada à base de um composto grego: oupá (urá), “cauda dos
animais” e βορός (borós), “voraz, glutão”, provindo esta última do verbo βιβρώσκειν
(bibróskein), “devorar, engolir”. A única forma correta em nossa língua é Uróboro. É que, por
“distração”, as pessoas se esquecem de que o ditongo ou em grego ou em “francês” soa em
português u ... Do ponto de vista simbólico, Uróboro configura a manifestação e a reabsorção
cíclica. É a união sexual em si mesma, é a serpens se ipsum impregnans, a serpente que se
fecunda a si mesma, autofecundadora, permanente, como demonstra a cauda mergulhada
em sua própria boca; é a perpétua transmutação da morte em vida e vice-versa,já que suas
presas injetara veneno em seu próprio corpo. Para usar da expressão de Bachelard. Uróboro é
a dialética material da vida e da morte, a morte que brota da vida e a vida que brota da
morte.
13. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1951, p.
33ss.
14. O autor do acróstico VITRIOL, Basile Valentin, criou, igualmente, e publicou a figura
simbólica Rebis numa obra hermética, Traité de l’Azoth, que data de 1659. Rebis, “feito de
dois, formado de duas coisas”, é o símbolo do andrógino. Os alquimistas denominam Rebis a
primeira decocção do “espírito mineral” misturado a seu próprio corpo, uma vez que é feito
de duas coisas, do masculino e do feminino, isto é, do dissolvente e do corpo solúvel, embora
se trate, no fundo, da mesma coisa e de matéria idêntica. Deu-se também o nome de Rebis à
matéria da “obra transformada em albedo, “no branco”, porque então aquela é um mercúrio
animado de seu enxofre e estes dois elementos, provenientes de uma mesma raiz,
constituem um todo homogêneo, assimilando-se destarte ao andrógino.
15. JUNG, C. Gustav et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 154ss.
CAPÍTULO VIII
Eros e Psiqué
1
EROS é o amor personificado. Em grego ἔρως (éros), do verbo
ἔρασθαι (érasthai) “desejar ardentemente”, significa com exatidão “o
desejo incoercível dos sentidos”. Em indo-europeu tem-se o elemento
(*e)rem “comprazer-se, deleitar-se” com o qual talvez se possa fazer
uma aproximação.
PSIQUÉ é igualmente a alma personificada. Em grego ψυχή (psykhé),
do verbo 2-ψύχειν (psykhein), “soprar, respirar”, significa tanto
“sopro” quanto “princípio vital”. V. Dicionário mítico-etimológico,
verbete Psiqué.
O mito de Eros e Psiqué, embora de origem grega, chegou até nós
inserido, como uma verdadeira novela, no romance Metamorfoses do
escritor latino Lúcio Apuleio1.
Narraremos primeiramente o mito, em sua essência, como está no
autor latino, mas despindo-o de sua indumentária romanesca e de
algumas tiradas cáusticas de Apuleio. Em seguida, faremos um
comentário sobre o mesmo, buscando a interpretação que nos
parecer mais adequada.
Em certa cidade havia um rei e uma rainha que tinham três filhas
lindíssimas. As duas mais velhas, ainda que fossem também muito
belas, podiam perfeitamente ser celebradas por louvores dos homens,
mas não havia linguagem humana capaz de descrever ou pintar a
formosura extraordinária da caçula. Assim começa o romance de
Psiqué, que era tão arrebatadoramente bela, que os mortais, em lugar
de pedi-la em casamento, adoravam-na como se fosse a própria
Afrodite, cujos templos e culto, por isso mesmo, haviam sido
esquecidos e abandonados. Psiqué se tornara a nova deusa do amor.
A nova Afrodite! E era sob os traços humanos da jovem princesa que
se procurava venerar a poderosa mãe de Eros.
Grande Mãe, origem de todos os elementos, alma do mundo inteiro,
como se autodenominava, vendo-se preterida por uma simples
menina, irritada com o confronto de beleza, a deusa chamou a seu
filho Eros, menino alado e de maus costumes, corruptor da moral
pública e provocador de escândalos, e deu-lhe uma incumbência
urgente. Levou-o à cidade, onde vivia a linda Psiqué, e pediu-lhe que
a fizesse apaixonar-se pelo mais horrendo dos homens. Beijou-o,
muitas vezes, com os lábios entreabertos e retornou a seu habitat
preferido, o bojo macio do mar.
O rei, casadas as duas filhas mais velhas e temendo, como Liríope,
a cólera dos deuses por causa da beleza da mais jovem, mandou
consultar o Oráculo de Apolo em Mileto. A resposta do deus mântico
foi direta e terrível: a jovem, coberta com uma indumentária fúnebre,
deveria ser conduzida ao alto de um rochedo, onde um monstro
horrível com ela se uniria. Eros, todavia, que, em lugar de ferir com
suas flechas a Psiqué, havia sido ferido por ela, ordenou ao vento
Zéfiro que a transportasse para um vale macio e florido, que se
estendia ao sopé da montanha. Após descansar de tantas emoções e
restaurada por um sonho reparador, a jovem princesa se ergueu e viu
logo, cercado por um bosque, à beira de uma fonte, um palácio de
sonhos: suas colunas de ouro serviam de suporte ao teto de cedro e
marfim; as paredes eram recamadas de baixos-relevos de prata; o
pavimento, confeccionado de mosaicos de pedras preciosas; os
imensos salões tinham paredes de ouro maciço. Uma obra digna de
Dédalo e de Hefesto! Deslumbrada com tanta beleza, Psiqué penetrou
no palácio e, a partir de então, foi servida não por escansões e criadas
em carne e osso, mas por uma multidão de Vozes, que lhe atendiam
até mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da
chegada da princesa ao vale dos encantos, Eros, sem se deixar ver, fez
de Psiqué sua mulher, mas, antes do nascer do sol, desapareceu
rápida e misteriosamente.
A cena se repetia todas as noites e a princesa acabou por
habituar-se à sua nova existência: as Vozes, atentas e solícitas,
consolavam-na da solidão.
A Fama2, porém, divulgou a “desdita” de Psiqué e as irmãs
casadas, tristes e cobertas de luto, deixando seus lares, apressaram-se
em visitar e confortar os pais.
Eros pressentiu a ameaça que pesava sobre a felicidade do casal e
avisou a esposa do perigo iminente: as irmãs, dentro em pouco,
viriam até o rochedo para chorá-la. Psiqué deveria fazer ouvidos
moucos às suas lamentações e nem sequer “olhar para elas”, para não
incidir no mesmo erro de Orfeu ... A jovem esposa tudo prometeu,
mas tão logo o amante se retirou, sem se deixar contemplar, como
acontecia todas as madrugadas, Psiqué se viu mais que nunca
prisioneira da própria felicidade, impedida de consolar e até mesmo
de se encontrar com suas irmãs.
Foi com muitas carícias e súplicas que conseguiu arrancar do
esposo permissão não apenas para vê-las, mas ainda o
consentimento para que Zéfiro as transportasse até seu palácio
paradisíaco. Apaixonado, Eros concordou com tudo, mas pediu-lhe e
suplicou que jamais tentasse ver-lhe o semblante, por mais que as
irmãs insistissem neste ponto.
O encontro, a princípio, foi um deslumbramento. Às lágrimas de
dor sucederam as manifestações de alegria e regozijo. Mas, à medida
que a inocente Psiqué ia-lhes abrindo as portas de sua doce ventura, a
abundância de suas riquezas, as sementes da inveja começaram a
germinar-lhes no coração. Apesar, todavia, das insistentes perguntas
de uma das irmãs acerca do marido e de tantas riquezas, Psiqué
inventou o que a situação embaraçosa lhe inspirava e, cumuladas as
irmãs de ouro e joias, fez que Zéfiro as levasse de volta ao rochedo. Já
agora envenenadas pelo fel da inveja, confrontaram sua desdita com
o destino da irmã: esta, mais jovem, “rebento de uma fecundidade
esgotada”, habitando um palácio de ouro, servida por Vozes, dando
ordens aos ventos e casada certamente com um deus; elas, mais
velhas, unidas a dois estafermos: um, “mais calvo que uma abóbora,
mais baixo e anão que um menino”, mais avarento que Caronte; a
outra desposara um ancião doente e sua função não era a de esposa,
mas de enfermeira ... Ocultando tudo dos pais, regressaram a seus
lares com uma ideia fixa: derrubar a ingênua Psiqué do pedestal de
sua bem-aventurança.
Eros, naquela mesma noite, voltou a advertir a esposa: Não vês o
perigo que de longe te ameaça? Se não procederes com a máxima
cautela, o destino se abaterá sobre ti. As bruxas traiçoeiras esforçamse por te armar uma cilada e a pior armadilha é persuadir-te a
contemplar meu rosto. Já te adverti muitas vezes de que nunca mais o
verás, se o contemplares uma única vez. [ . . . ] Dentro em breve teremos
um filho. Ainda uma menina, darás à luz uma criança. Se guardares
nosso segredo, ela será um deus; se o propalares, será tão somente um
ser mortal.
Psiqué exultou com a ideia de ter um filho divino e regozijou-se
com a dignidade do nome de mãe. Os dias se escoaram rápidos e o
esposo noturno voltou, dessa feita, mais incisivo em admoestá-la de
que chegara o momento decisivo: as bruxas já se aproximavam,
prontas para destruir-lhe a paz e a felicidade. As últimas palavras do
deus são significativas: deixa-as uivar do cume do rochedo, como as
Sereias, com sua voz fúnebre.
Novas lágrimas de Psiqué, novas promessas, novas juras de amor
e o deus apaixonado novamente se curvou aos caprichos da esposa.
As conspiradoras, entretanto, tal era a pressa em executar seu plano
sórdido, tão logo chegaram ao alto do rochedo, nem mesmo
esperaram por Zéfiro, lançando-se temerariamente no abismo. A
contragosto, o Vento as acolheu e depositou no solo. Com fingida
alegria congratularam-se com a irmã pela gravidez, conseguindo,
desse modo, desfazer qualquer suspeita. Em seguida, vieram as
perguntas, sempre as mesmas: queriam saber quem era o marido de
Psiqué. Esta, em sua ingenuidade, se contradisse: na primeira visita
dissera-lhes que o esposo era um jovem lindíssimo e agora o
descreveu como um homem de meia-idade, um riquíssimo
comerciante. Era o que lhes bastava: ou a irmã estava mentindo, e o
marido era um deus, ou ela simplesmente ignorava seu aspecto.
De qualquer forma, era preciso destruir a prosperidade de Psiqué.
Passaram uma noite em claro na casa dos pais e, já pela manhã,
estavam novamente no palácio de Eros. Com fingida e cínica
preocupação, mostraram à irmã o perigo que a ameaçava. Quem à
noite se deitava a seu lado não era um homem, mas uma serpente
enrascada em mil anéis, com as Jauces túrgidas de peçonha, a boca
larga como um abismo.
Lembraram-lhe o Oráculo de Apolo que a predestinava a unir-se
a um monstro, reforçando seu intento diabólico com a mentira: a
medonha serpente, segundo camponeses e caçadores da região, tem
sido vista à noitinha, atravessando o rio vizinho em direção ao
palácio.
O réptil aguardava apenas o momento oportuno para devorá-la,
bem como à criança que ela trazia no ventre. Elas, porém, as irmãs,
ali estavam prontas para ajudá-la! Transtornada, Psiqué confessoulhes a verdade: jamais contemplara o rosto do marido e pediu-lhes
súplice que a protegessem e assistissem. Vendo que tudo estava
aparelhado para o plano sinistro, há muito arquitetado, uma das
bruxas o transmitiu à insegura e desditosa esposa de Eros: deveria ela
preparar um punhal bem afiado e um candeeiro de luz bem forte.
Quando a “serpente imunda” mergulhasse em sono profundo, seria o
instante propício: iluminar-lhe cuidadosamente o rosto e de um só
golpe cortar-lhe a cabeça. Embora tivessem prometido que
permaneceriam a seu lado, até a “execução do monstro”, tão logo
perceberam que o veneno fizera seu efeito, apressaram-se em deixála. Sozinha, com o espírito transtornado, Psiqué se agita e parece
decidida a perpetrar o crime, mas eis que subitamente hesita, depois
resolve; vacila outra vez, desconfia das irmãs, se enfurece, lembra-se
dos ternos abraços do esposo... Seria ele, realmente, uma serpente
imunda? Numa palavra: Psiqué num mesmo corpo odeia o monstro e
ama o marido...
Eros a seu lado dormia tranquilamente. Como fora de si, a jovem
esposa reuniu todas as suas forças: numa das mãos o candeeiro, na
outra o punhal. Muito de leve aproximou a luz do rosto do marido.
Estava revelado o grande segredo: viu a mais delicada, a mais bela de
todas as feras. Eros, o deus do amor, ali estava diante de seus olhos. A
jovem empalidece, treme, cai de joelhos. Olhando-o, contempla-o
embevecida e, “especulando-o”, Psiqué, como Narciso, não mais pôde
tirar os olhos dele. Quis matar-se, mas o punhal se lhe resvalou da
mão. Percebendo ao lado do leito a aljava e as flechas do deus, ao
tocá-las, acabou ainda por ferir-se com uma delas. Agora, mais que
nunca, sua paixão seria eterna. Inflamada de amor, inclina-se sobre
ele e começa a beijá-lo como louca. Esquecida do candeeiro, deixa-o
curvar-se em demasia e uma gota de óleo fervente cai no ombro do
deus adormecido. Eros desperta num sobressalto e, ao ver
desvendado seu segredo, levantou voo no mesmo instante; sem dizer
uma só palavra, afastou-se rapidamente da esposa. Esta ainda tentou
segui-lo através das nuvens, segurando-lhe a perna direita, mas,
exausta, caiu ao solo.
2
Foi então que, descendo das alturas celestiais e pousando num
“cipreste”, Eros falou à sua amada: Quantas vezes não te admoestei
acerca do perigo iminente, quantas vezes não te repreendi
delicadamente. Tuas ilustres conselheiras serão castigadas em breve,
por suas pérfidas lições; quanto a ti, teu castigo será minha ausência.
Estava decretado o início do itinerário doloroso de outra Psiqué.
Fora de si, a princesa, desejando morrer, lançou-se às correntezas
de um rio próximo, mas as próprias águas, numa corcova,
repuseram-na em terra.
Pã, “o velho sábio”, que tranquilamente estava sentado numa
ribanceira vizinha, aconselhou-a a desistir da morte e a invocar Eros.
Dali partiu a jovem esposa e, após longa caminhada, chegou a uma
cidade, onde morava uma das irmãs. Narrou-lhe sua desdita e
mentiu-lhe, dizendo que Eros a desejava por esposa. A irmã, sem
mais delongas, alucinada de paixão e de inveja criminosa, dirigiu-se
para o rochedo fatídico e, invocando o deus do amor e a Zéfiro,
lançou-se no abismo: seu corpo se despedaçou nas pontas da rocha e
suas vísceras se espalharam pela encosta. Com igual ardil procurou a
segunda irmã, que teve o mesmo destino da primeira.
Enquanto Psiqué peregrinava, de cidade em cidade, em busca de
Eros, este jazia no leito, gemendo de dor pela queimadura sofrida. Foi
então que a Gaivota indiscreta buscou Afrodite no fundo do mar,
onde a deusa despreocupadamente nadava, e contou-lhe tudo a
respeito da doença do filho e da paixão do mesmo por Psiqué.
Indignada, a deusa deixou os domínios de Posídon e partiu para seu
palácio dourado e, como mãe-bruxa repressiva, descarregou sobre o
filho uma saraivada de insultos. Vale a pena transcrever algumas
linhas da explosão castradora da deusa do amor e “mãe de Eros”:
Porventura desejas impor-me uma rival como nora? Julgas,
realmente, devasso, asqueroso, sedutor intolerável, que somente tu
podes ter filho e que eu, por causa de minha idade, não mais poderia
conceber?
Pois é bom que saibas: gerarei um filho melhor do que tu, ou até
mesmo, para te humilhar, adotarei um de meus escravos e a ele
entregarei tuas asas, teu archote, as setas e tudo quanto carregas para
outro fim. Nada do que possuis vem de teu pai, tudo é meu!
A mãe, que não quer nora, mas o filho apenas para si, a mãe que o
beija “com lábios entreabertos”, deixou o palácio ardendo em fúria e
em ciúmes. Pediu a Deméter e a Hera, duas outras Grandes Mães, que
a ajudassem a encontrar a fugitiva Psiqué, mas, percebendo que
ambas, por medo de Eros, o lisonjeavam, abandonou-as no meio do
caminho e refugiou-se no mar.
Psiqué, no entanto, continuava seu roteiro de dor. Dois encontros
importantes com Deméter e Hera de nada lhe valeram: as DeusasMães, se bem que penalizadas com os sofrimentos da jovem esposa,
não podiam prestar-lhe qualquer auxílio. Dessa feita, temiam irritar
Afrodite ... Exausta e vendo malograr todas as suas tentativas de
encontrar o único “amor” de sua vida, Psiqué estava prestes a tomar
uma resolução extrema: entregar-se à sogra e procurar mitigar-lhe o
ódio com humilde submissão. E quem sabe não encontraria no
dourado palácio da deusa a quem tanto buscava? A poderosa
senhora do amor, nessas alturas, já conseguira com Zeus a preciosa
assistência de Hermes, para que anunciasse pelo mundo inteiro que
uma de suas escravas havia fugido e que recompensaria a quem
desse informação a respeito de seu paradeiro. O anúncio do
mensageiro dos deuses e dos homens apressou a deliberação da
amante de Eros. Sentindo-se perdida, encaminhou-se resolutamente
para o palácio da deusa. Já se aproximava do mesmo, quando foi
vista por Hábito, uma das escravas do palácio. A serva agarrou-a
brutalmente pelos cabelos e arrastou-a para junto de sua Senhora.
Quando esta viu Psiqué, um sorriso feroz iluminou-lhe as feições.
Após humilhá-la e insultá-la, entregou-a a duas outras escravas,
Inquietação e Tristeza, para que a torturassem. Flagelada e
supliciada de todas as maneiras, foi novamente conduzida à
presença da deusa. Como se novos insultos grosseiros não bastassem,
Afrodite investiu contra a indefesa menina: rasgou-lhe as vestes,
arrancou-lhe os cabelos e espancou-a da cabeça aos pés. Em seguida,
e foi o pior dos castigos, impôs-lhe as quatro célebres tarefas, como se
tivesse diante de si um novo Héracles! Manda trazer uma grande
quantidade de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, sementes de
papoula, lentilhas e fava, mistura tudo, fazendo com eles um só
monte e ordena a Psiqué de separá-los por espécie: trabalho para
aquela noite! A jovem nem mesmo tentou, pois a empreitada era
inexequível.
Uma formiguinha, porém, que por ali passava, pode avaliar a
impossibilidade de execução da tarefa e, revoltada com a
perversidade da deusa, resolveu convocar um batalhão de formigas e
pedir-lhes que todas juntas socorressem Psiqué, pois que todas são as
ágeis criaturinhas da Terra, a mãe de todos. Trabalhando
incansavelmente, ao anoitecer, as filhas da Terra já haviam separado
espécie por espécie e grão por grão. Furiosa, atribuindo o êxito de
Psiqué a Eros, a deusa insultou-a e atirou-lhe um pedaço de pão. Pela
manhã, convocou a “nora” e deu-lhe a segunda tarefa, impraticável e
mortal: trazer-lhe, custasse o que custasse, flocos de lã de ouro que
cobriam o dorso de ovelhas ferozes que vagueavam ali bem perto,
num bosque, à beira de um rio de imensos sorvedouros. Sem dizer
palavra, a jovem amante caminhou em direção ao bosque, não para
executar o trabalho ordenado, mas para precipitar-se nas águas
impetuosas do rio. Um simples e humilde Caniço verde, todavia,
salvou-a duas vezes da morte: suplicou-lhe que não lhe poluísse “as
águas sagradas” e ensinou-lhe como proceder para cumprir a ordem
recebida. O ardil consistia em não se aproximar das ovelhas,
enquanto o sol estivesse a pino, porque, com o calor, elas eram
tomadas de um furor terrível, atacavam com os chifres, davam
testadas e suas mordidelas eram venenosas e mortais. Era aguardar
tranquilamente, sob um plátano, que o calor diminuísse e o vento
fresco do rio as acalmasse. Passado o “furor”, as ovelhas iriam
descansar e deixariam flocos de lã presos nas árvores do bosque.
Bastaria sacudi-las e colher a quantidade desejada. Seguindo à risca
os conselhos do Caniço, Psiqué pode voltar para junto da “sogra” com
o regaço cheio de flocos de lã de ouro.
A deusa não se tocou e mais uma vez imputou o bom êxito da
tarefa à intervenção de Eros. O terceiro trabalho era o mais perigoso
até agora: tratava-se da busca da água perigosa. Entregou-lhe a
Grande Mãe um vaso de cristal e ordenou-lhe que escalasse um
rochedo íngreme e enchesse a urna numa fonte guardada de ambos
os lados por terríveis dragões. Dessa fonte rolavam as águas escuras,
que alimentavam dois rios infernais: o Cocito e o Estige.
Ao aproximar-se do rochedo, Psiqué ficou como que petrificada.
Nem chorar conseguia. Era até mesmo impossível escalar o rochedo
escorregadio. Mais prático seria desistir ou matar-se.
A águia de Zeus, todavia, lembrando-se da inestimável ajuda de
Eros, por ocasião do rapto de Ganimedes3, abriu suas asas imensas e
veio em socorro da amante do deus do Amor. Balanceando as asas, a
ave predileta de Zeus passou rápida por entre os dentes ferozes dos
dragões, encheu o vaso e o entregou a Psiqué.
O bom resultado do empreendimento, dessa vez, não foi
atribuído a Eros, mas à magia e à bruxaria. Foi com um sorriso
sinistro que Afrodite lhe deu a quarta e fatal empreitada. Passou-lhe
às mãos uma caixinha e ordenou-lhe que descesse ao fundo do
Hades. Lá deveria se apresentar a Perséfone e solicitar-lhe, em nome
da mãe de Eros, que lhe enviasse um “pouquinho de beleza imortal”,
uma vez que a deusa do Amor havia consumido toda a sua radiante
formosura nos cuidados com o filho doente. A tarefa teria que ser
executada no mesmo dia.
Foi então que Psiqué compreendeu que, na realidade, seu fim
estava próximo. Não havia mais enigmas: enviavam-na, claramente, à
própria morte.
Subiu, por isso mesmo, a uma Torre muito alta, a fim de
precipitar-se lá de cima. Era este, pensou, o atalho mais rápido para
chegar ao fundo do Hades.
A Torre, porém, falou com mansidão à esposa de Eros que não
recuasse ante a prova derradeira. Infundiu-lhe ânimo e instruiu-a
acerca do caminho mais curto para atingir o mundo dos mortos,
explicando-lhe, ao mesmo tempo, as precauções que deveria tomar
na longa caminhada pelas trevas.
A entrada que conduzia diretamente ao palácio do Orco, disse-lhe
a Torre, era pelo cabo Tênaro, no Peloponeso. Além do mais, deveria
ela levar na boca dois ó bolos e em cada mão um bolo de cevada e
mel. Os primeiros eram para pagar a passagem de ida e volta ao
barqueiro Caronte e os segundos para apaziguar o cão Cérbero, na
entrada e saída do Hades. Três tentações deveriam ser vencidas no
longo percurso. Uma vez percorrido um bom trecho do caminho,
Psiqué encontraria um burriqueiro coxo, conduzindo um asno
igualmente coxo, carregado de lenha. O condutor lhe pediria que
apanhasse algumas lascas caídas no chão, mas a jovem deveria fazer
ouvidos moucos à solicitação e prosseguir viagem. Já na barca de
Caronte, em plena travessia dos rios infernais, um velho ergueria do
fundo das águas as mãos pobres e imploraria que o puxasse para
dentro da embarcação, mas a amante de Eros não deveria se deixar
vencer pela piedade ilícita. Já do outro lado, ao se encaminhar para o
palácio de Plutão e Perséfone, encontraria umas velhas tecedeiras,
que lhe solicitariam ajuda. Sem atendê-las, prosseguiria em seu
caminho. A intenção diabólica de Afrodite era que a “nora” largasse
um dos bolos e, se assim acontecesse, ela entraria no mundo dos
mortos para nunca mais regressar.
Uma vez na mansão de Hades, seria gentilmente atendida por
Perséfone, que a convidaria a sentar-se e participar de um lauto
jantar. Psiqué recusaria ambas as gentilezas. Sentar-se-ia no chão e
aceitaria apenas um pedaço de pão preto. Exposto o motivo da
viagem e recebida a encomenda da deusa do Amor, deveria
imediatamente refazer o caminho de volta, mas, em hipótese
alguma, poderia abrir a caixinha, que continha a beleza imortal!
Ouvidas com toda a atenção as instruções e recomendações da Torre,
Psiqué partiu e fez exatamente quanto lhe fora dito. No retorno do
mundo das trevas, porém, já em plena luz, uma grande curiosidade
lhe assaltou o espírito:
Sou mesmo uma tola, disse de si para si. Trago comigo a beleza
divina e até agora não peguei um pouquinho para mim, a fim de
conquistar meu lindíssimo amante. Assim dizendo, abriu a caixinha.
Como no mito de Pandora, as mazelas sempre estão guardadas
em jarras e caixinhas! E a da esposa de Eros não continha beleza
alguma imortal, mas o sono estígio, que, espalhando-se, se apoderou
da curiosa Psiqué e a prostrou no meio do caminho, imóvel como um
cadáver.
Eros, já curado do ferimento produzido pelo óleo fervente, morto
de saudades da esposa, adivinhando o que se passava, escapou pela
janela do quarto, que lhe servia de cárcere e, num voo rápido e
nervoso, aproximou-se de Psiqué. Recolocou cuidadosamente na
caixinha o sono letárgico e despertou sua Bela Adormecída com o
leve toque de uma de suas flechas. Repreendeu-a “pela última vez”
com toda a delicadeza e pediu-lhe que cumprisse a missão de que
fora encarregada por Afrodite. Ele faria o resto.
Enquanto Psiqué se desempenhava de sua última tarefa, levando
a caixinha à mãe de Eros, este, temendo a ira materna, dirigiu-se
diretamente a Zeus e pediu-lhe que lhe advogasse a causa. Aceita a
incumbência, o senhor do Olimpo ordenou a Hermes que convocasse
todos os deuses para uma assembleia. Vale a pena transcrever uma
pontinha do discurso de Zeus, porque ele tem muito a ver com a
interpretação do mito:
Deuses, cujos nomes estão inscritos no arquivo das Musas, todos vós
conheceis muito bem, assim penso, este jovem que eu próprio eduquei.
Julgo ser conveniente refrear de uma vez por todas as desregradas
paixões de sua juventude. Chega de ouvir falar em seus escândalos
diários no mundo inteiro, mercê de seus galanteios e devassidões.
Chegou o momento de tirar-lhe qualquer oportunidade de praticar a
luxúria. Cumpre aprisionar-lhe o temperamento lascivo da meninice
nos laços do himeneu. Ele escolheu uma donzela e roubou-lhe a
virgindade. Que ele a possua, que ela o conserve para sempre, que ele
goze de seu amor e tenha Psiqué em seus braços por toda a eternidade.
Quanto a Afrodite, nada teria ela com que preocupar-se: este
casamento morganático, isto é, entre um deus e uma mortal, em nada
afetaria a dignidade e a nobreza da deusa do Amor, porquanto Zeus
faria que o mesmo se realizasse dentro dos cânones do melhor direito
civil, mas civil do Olimpo.
Aprovada por todos os imortais a união de Eros e Psiqué, o pai dos
deuses e dos homens ordenou a Hermes que a raptasse da Terra para
o Céu. Tão logo a jovem chegou à mansão dos deuses, Zeus foi-lhe ao
encontro com uma taça de ambrosia, a bebida da imortalidade: Bebe,
Psiqué, disse-lhe o deus supremo, e sê imortal. Eros, com efeito, jamais
abandonará teus braços, porquanto o vosso casamento será perpétuo.
Um esplêndido banquete nupcial foi servido aos imortais. Com
muito néctar e ambrosia, com muita música, dança e cantos
melodiosos, com muitas rosas e bálsamos, sob as bênçãos de
Afrodite, Eros e Psiqué se “reuniram” para sempre.
Desse enlace nasceu logo depois uma menina, que, na língua dos
mortais, se chama Volúpia, quer dizer, o prazer, a bem-aventurança.
3
São tantas as análises, interpretações e conjeturas acerca do mito
de Eros e Psiqué, que, se Apuleio as tivesse conhecido, teria escrito
várias outras Metamorfoses ... Aliás, o mito em pauta é a maior das
metamoifoses e é, sob esse enfoque, que se tentará decodificá-lo.
Na busca de uma interpretação plausível do mito de Eros e
Psiqué, recorremos, além dos neoplatônicos, sobretudo à obra erudita
de Neumann4, cuja análise nos pareceu a mais profunda e a mais
bem elaborada de quantas tivemos em mãos. Vamos, pois, segui-la,
traduzindo-a, não raro, ipsis litteris.
A beleza de Psiqué fez que se esquecesse Afrodite. Seus templos
foram fechados e abandonados e de todas as partes acudiam
forasteiros para ver e reverenciar não mais a mãe do Amor, mas uma
mera princesa. Irritada com a competição e com o desleixo de seu
culto, a deusa pediu a seu filho Eros para vingá-la e destruir a jovem
beldade, fazendo-a casar-se com o mais repulsivo dos homens.
Apesar de tanta beleza, porém, Psiqué não era amada, pois que todos
se aproximavam dela como se fosse uma das imortais e não uma
simples mulher.
Temendo pela filha, o rei consultou o oráculo e este a condenou
às núpcias da morte:
Sobre um rochedo escarpado, suntuosamente ataviada,
expõe, ó rei, tua filha, para as núpcias da morte.
Não esperes para genro alguém nascido de estirpe mortal,
mas um monstro cruel e viperino, que voa pelos ares:
feroz e cruel não poupa ninguém e tudo destrói aferro e fogo.
Faz tremer o próprio Zeus e aterroriza os imortais,
estremece os rios infernais e inspira horror às trevas do Estige.
Em obediência ao oráculo, os pais abandonam a jovem às núpcias
da morte com o monstro, mas surpreendentemente Psiqué é levada
pelo vento Zéfiro para um palácio encantado, onde passa a desfrutar
uma vida paradisíaca com Eros, seu amante invisível. As irmãs mais
velhas, corroídas de ciúme e inveja, resolvem destruir o idílio da
caçula. Não obstante as contínuas advertências do marido, ela
decide, a conselho das irmãs, surpreender o monstro dormindo e
matá-lo.
Executado o plano diabólico, Psiqué vê a seu lado o próprio Eros,
por quem se apaixona loucamente. Uma gota de azeite fervente,
porém, lhe cai no ombro. O deus desperta e, sem dizer palavra,
abandona a amante. Segue-se a busca de Psiqué, sua luta contra a
crescente ira de Afrodite e a execução das quatro tarefas que a deusa
lhe impõe. Abrindo a caixinha que lhe entregara Perséfone, a esposa
do filho de Afrodite mergulha num sono letárgico. Eros a salva, e,
imortalizada por Zeus, é festejada no Olimpo como esposa eterna do
eterno Amor.
Como se pode observar, o mito se divide em cinco partes: a
introdução; as núpcias da morte; a tentação de Psiqué e sua paixão; as
quatro provas e o desfecho feliz, com a imortalização da heroína.
É esta a ordem que segue Neumann na análise do mitologema e,
tendo-o tomado por guia, vamos perseguir com ele o mesmo roteiro.
Tema central do mito é inquestionavelmente o conflito entre
Afrodite e Psiqué. A deusa, “que surgiu das profundezas azuis do mar
e nasceu do borrifo das ondas espumantes”, dignou-se manifestar
sua divindade ao mundo e estaria vivendo entre os povos da terra. E
não obstante tanta gentileza e amizade pelos mortais, estes cada vez
mais se afastavam de seus templos e dos prazeres que somente ela
lhes poderia proporcionar. Tudo por causa de uma simples princesa
mortal! Ofensa mais grave para a deusa, todavia, era a crença
corrente entre os homens de que “o céu chovera novo e fecundante
orvalho e de que a terra germinara, como uma flor, uma segunda
Afrodite em todo o viço de sua mocidade”. Consoante tal convicção,
Psiqué não seria apenas uma encarnação da deusa, mas uma segunda
Afrodite, recém-concebida e recém-nascida. Se a mãe de Eros fora
concebida no bojo do mar, em virtude do esperma do falo decepado
de Úrano, sua antagonista nascera da terra, fecundada por uma gota
de orvalho, caído do céu. Com seus templos arruinados, as chamas de
seus altares extintas, seus leitos sagrados desrespeitados, seu culto
esquecido, e a cada dia crescendo a multidão que atravessava as
profundezas do mar para ver a nova Afrodite, a deusa deixou-se
dominar por uma cólera violenta. Afinal, ela, “a primeira mãe de
todas as coisas criadas, a fonte primordial de todos os elementos”, ser
posposta a uma simples princesa! Ferida em sua dignidade de
Grande Mãe, resolveu usar seu filho Eros para destruir a rival, ou
seja, para punir ὔβρις (hybris), a híbris, a “démesure”, o
descomedimento de uma pobre mortal, “lama imunda da terra”, que
ousara igualar-se a uma deusa numinosa. Sob este aspecto, o mito se
abre dentro dos padrões da tragédia grega.
4
Enquanto se encenava essa tragicomédia entre mãe e filho, Psiqué
estava irremediavelmente só, sem marido e sem amor e começou,
desse modo, a odiar “em si mesma a beleza que constituía o
encantamento de nações inteiras”. O pai, recorrendo ao oráculo de
Apolo, na expectativa de que a filha lindíssima obtivesse um marido,
recebeu a resposta terrível que já se conhece. Inicia-se, então, o
lúgubre cortejo para as núpcias da morte, insinuadas no prólogo do
drama. As tochas levemente acesas, “obstruídas por escura fuligem e
cinza”, as árias festivas da flauta nupcial “substituídas pelos
plangentes acordes da melopeia lídia” são elementos típicos do ritual
matrilinear das núpcias de morte, que precediam as lamentações por
Adônis. Trata-se, no caso, do tema primordial da noiva consagrada à
morte, que normalmente aparece sob a epígrafe de “a virgem e a
morte”, o que denota, consoante Neumann, “um fenômeno central da
psicologia feminina matrilinear”. Para o mundo matrilinear,
argumenta o psiquiatra israelense, “todo casamento é um rapto de
Core, a flor virginal, consumado por Hades, o violador, ou seja, um
simbolismo terreno do macho hostil. Desse modo, todo casamento é
como uma exposição no cume de um monte em mortal solidão e
uma espera pelo monstro masculino a quem a noiva é entregue. O
velar-se5 da noiva é sempre o velar, o encobrir do mistério, e o
matrimônio, como as núpcias da morte, é um arquétipo central dos
mistérios femininos. Na mais profunda experiência do feminino os
temas das núpcias de morte, da virgem sacrificada a um monstro,
feiticeiro, dragão ou espírito do mal, recontados em inúmeros mitos e
lendas, são igualmente um hieràsgámos. O caráter de rapto, que o
evento assume, expressa, relativamente ao feminino, a projeção típica da fase matrilinear - do elemento hostil sobre o homem. Nessa
linha de raciocínio é inadequado interpretar o crime das Danaides,
todas as quais, menos uma, mataram seus maridos na noite de
núpcias, como a resistência do feminino ao casamento e como a
dominação patrilinear do masculino. Indubitavelmente, tal
interpretação é correta, mas aplica-se tão somente à última fase de
um desenvolvimento, que ocorre muito antes.
“A situação fundamental do feminino [ ... ] prende-se à relação
primordial de identidade entre filha e mãe. A aproximação do
macho, por isso mesmo, sempre e em qualquer caso, significa
separação. O casamento é sempre um mistério, mas é também um
mistério de morte. Para o macho - e isto é inerente à oposição
essencial entre o masculino e o feminino - o casamento, como a
matrilinhagem o concebia, é antes do mais um sequestro, uma
aquisição, uma violação, um rapto”6.
No casamento greco-latino ao menos, diga-se, de caminho, o
“rapto” era substituído simbolicamente não só pela fuga simulada da
noiva, indo-lhe o marido ao encalço e reconduzindo-a ao cortejo
nupcial, que se realizava ao anoitecer, à luz das tochas, mas ainda,
quando a procissão atingia a casa do esposo, pelo gesto deste em
tomá-la nos braços e colocá-la dentro de seu novo lar.
No mundo moderno ainda se usa, de certa forma, a segunda
modalidade, mas, ao que tudo indica, o atraso intencional da noiva
em chegar ao local do casamento se configuraria numa simulação
simbólica de fuga.
Na análise desse profundo estrato mítico e psicológico é
necessário esquecer o desenvolvimento cultural e as formas que
assumiram as relações entre homens e mulheres e retroceder ao
fenômeno do primeiro encontro sexual entre eles. Não há de ser
difícil intuir que a significação desse encontro foi certamente muito
diversa para o masculino e para o feminino. O que para o masculino
é agressão, vitória, violação, satisfação dos desejos - basta que se
observe o mundo animal e se tenha a coragem de reconhecer este
nível como válido também para o ser humano - é, para o feminino,
destino, transformação e o mais profundo mistério da vida.
Não é por mero acaso, segundo observou agudamente Erich
Neumann, que o símbolo central da virgindade seja a flor e é
extremamente significativo que a consumação do matrimônio, a
destruição da virgindade, se denomine defloração. Para o feminino o
ato da defloração representa um verdadeiro e misterioso vínculo
entre um fim e um começo, entre um deixar-de-ser e penetrar na
vida real. Eis o motivo por que o ato de defloração representou
originariamente para o masculino algo numinoso e profundamente
misterioso. Em muitas culturas este ato foi, por isso mesmo,
abstraído da vida privada e executado como um rito. Acrescente-se,
além do mais, que a defloração nem sempre era consumada pelo
noivo, mas pelo rei, por um estranho e mais especificamente por
uma “divindade”, o que explica que a noiva, não raro, passava a
primeira noite de núpcias num templo. E, quando a tarefa era
desempenhada pelo noivo, rodeava-se o leito nupcial de divindades
ajudantes e cooperantes, conforme se mostrou no Vol. 1, p. 326-327.
De qualquer forma, torna-se patente quão decisiva deve ter sido,
na vida do feminino, a transição da “virgem-flor” para a “mãe-fruto”,
quando se leva em consideração a rapidez com que se esvai a
juventude feminina, sob condições primitivas, e com que pressa é
consumida a fecundidade, quando a mulher é submetida a trabalhos
pesados e penosos.
O tema das núpcias de morte ocupa, sem dúvida, uma posição
central no mitologema de Psiqué, se bem que, de início, o mesmo se
nos apresente apenas como uma simples vingança de Afrodite.
Conduzida pela multidão para o local onde se consumaria,
segundo todos acreditavam, seu fatídico himeneu, a jovem princesa
acompanha em prantos não a alegre e festiva procissão de suas
núpcias, mas o cortejo fúnebre de suas exéquias. Aos pais, abalados
com o destino da filha e hesitantes em executar o crime nefando,
Psiqué os exorta com palavras, que, nascidas de seu inconsciente,
estão em perfeita harmonia com o mistério do feminino face a essa
situação de morte. Sem discutir, sem protestar, sem desafiar ou
resistir, como agiria um ego masculino em situação idêntica, ela
aceita seu destino. Suas palavras são claras e firmes: Se nações e povos
me tributam honras divinas; se a uma só voz me consagram como a
nova Afrodite, então agora chegou o momento de vocês padecerem,
chorarem e me lamentarem como morta. Assumindo a hybris da
humanidade e não a sua própria, a de seu ego, e mais ainda sua
punição, declara estar pronta para o sacrifício: Estou ansiosa para
concluir esta união sagrada e contemplar o nobre esposo que me
aguarda. Por que não protelo e fujo de sua presença? Não nasceu ele
para destruir o mundo inteiro?
Deixada só no cume do rochedo, a princesa é arrebatada pelo
vento Zéfiro e suavemente transportada para um vale macio e
perfumado.
Vem, então, a grande surpresa, que, a princípio, dá a impressão de
um conto de fadas. Esta é a terceira parte do mito: Psiqué no paraíso
de Eros.
5
O casamento, que fora precedido por um autêntico préstito
fúnebre das “núpcias da morte”, é então consumado num cenário
típico das “Mil e Uma Noites”: Agora, quando a noite já ia avançada,
uma voz suave lhe chegou aos ouvidos. Ela temia por sua virgindade,
vendo-se completamente só. Tremia de horror e receava o
desconhecido muito mais que qualquer outro perigo que já houvesse
imaginado. Por fim chegou seu misterioso consorte; subiu ao leito e fez
Psiqué sua mulher, mas, antes do amanhecer, desapareceu
apressadamente.
Em breve, o que, de início, parecia estranho, por força do hábito
tornou-se um deleite e as Vozes alegravam sua solidão e
perplexidade. Logo depois, ela dá expansão à sua felicidade: Antes
morrer cem vezes que perder tão doce amor. Onde estiveres, eu te amo
e adoro apaixonadamente. Amo-te como amo a própria vida.
Comparado a ti, o próprio self de Eros seria nada.
Mas o êxtase em que murmura esposo doce como o mel ou minha
vida e amor é um êxtase de trevas. É um estado de desconhecimento
e cegueira, uma vez que seu grande amor podia ser sentido e ouvido,
mas não visto. Psiqué, todavia, parecia feliz e vivia em paradisíaca
bem-aventurança. Todo paraíso, no entanto, tem sua serpente e a
felicidade “noturna” da jovem esposa não poderia durar para sempre.
O intruso, a serpente venenosa desse Éden é representada pelas
irmãs, cuja irrupção deflagra a catástrofe, que, também aqui,
equivale à expulsão do paraíso.
Apesar da séria advertência de Eros, Psiqué encontrou-se com as
irmãs, que, cegas de inveja, planejavam destruir-lhe a felicidade. O
método arquitetado pelas “bruxas” foi o universalmente conhecido:
não se tratava, no fundo, de matar a Eros, mas de quebrar o tabu e
desvendar o mistério, a saber, fazer que a irmã visse o esposo.
Examinadas sob um ângulo superficial, a proibição de ver o marido,
de saber “quem ele era”, bem como a tentação das irmãs, motivadas
pelo despeito, poderiam ser enquadradas num conto de fadas, mas,
numa análise mais profunda, como o fez Neumann7, fica patente que
o tema em pauta comporta vários níveis extremamente
significativos. Qual seria o significado das irmãs no mito de Psiqué?
De saída, ambas se casaram, ou melhor, “foram casadas”, muito mal.
Suas núpcias, símbolo da escravidão patrilinear, são exemplos
típicos do que se poderia denominar a escravidão do feminino na
patrilinhagem. Diz-nos o texto de Apuleio que elas foram dadas a
reis estrangeiros, mas para que fossem suas serviçais. Uma delas
descreve o marido como mais velho que seu pai, mais calvo que uma
abóbora e mais frágil que uma criança. Dessa forma, seu papel era o
de filha e não de esposa. A outra não era menos infeliz: unira-se a um
doente, gotoso, já meio alquebrado, e sua função precípua era a de
enfermeira. Embora não se possa minimizar o tema óbvio da inveja
das irmãs, este, entretanto, não deve se constituir no ponto central da
interpretação da atitude das mesmas. Necessário se torna ressaltar
que ambas odiavam intensamente os homens, evidenciando, assim,
um ângulo típico da matrilinhagem. O sintoma mais evidente dessa
atitude matrilinear de repúdio aos homens é a caracterização que
elas fazem do esposo invisível de Psiqué. Quando falam dos abraços
de uma venenosa e asquerosa serpente, quando afirmam que Psiqué e
seu rebento serão devorados pelo monstro, expressam mais que a
inveja e o ciúme de mulheres sexualmente insatisfeitas. “Suas
mentiras, segundo Neumann - porque elas dizem a verdade num
tom difamador, como se fosse um mal-entendido - têm origem no
desgosto sexual de uma Psiqué matrilinear violada e insultada”8. O
êxito por elas alcançado deve-se à evocação que fazem na própria
Psiqué desse estrato matrilinear de ódio aos homens. Com isso
intensificam o conflito já existente no espírito da irmã, o qual pode
ser traduzido numa simples frase: no mesmo corpo ela odeia o
monstro e ama o marido.
Esta relação transparente com a matrilinhagem e com as
assassinas de maridos, as Danaides, é intensificada, quando as irmãs
aconselham Psiqué não a fugir do esposo desconhecido, mas a
decepar-lhe a cabeça com uma faca, o que estampa um antigo
símbolo de castração sublimado e elevado à esfera espiritual.
O macho hostil, a mulher como vítima do esposo-monstro, o
assassinato do homem e sua castração, símbolos matrilineares de
autodefesa ou dominação, como se explica que Psiqué tenha chegado
a esse ponto? Que significado tem tudo isto no mito de Eros e Psiqué?
Para Neumann, a atuação das duas irmãs matrilineares da heroína,
as quais odeiam homens, contrasta profundamente com o doce
enlevo e autoanulação da caçula, que se rendera por completo à
escravidão sexual do amante. O aparecimento delas introduz a
primeira perturbação nesse paraíso de prazeres. Desse modo,
consoante a interpretação do mesmo psiquiatra, “as figuras das irmãs
representam projeções reprimidas ou tendências matrilineares
inteiramente inconscientes da própria Psiqué e cuja erupção provoca
um conflito no interior da mesma, atuando aquelas como o aspectosombra da esposa de Eros. Desde a primeira visita das irmãs, Psiqué
adquire uma certa independência em relação ao marido e a si
própria. Repentinamente ela percebe que sua existência e
convivência com Eros não passam de uma prisão luxuriosa e sente
saudades da presença de seres humanos. Até então ela havia
flutuado na correnteza de um êxtase inconsciente, mas agora
começa a perceber a fantasmagórica irrealidade de seu paraíso
sensual e principia, em contato com o amante, a tomar
conhecimento de sua feminilidade. Faz cenas e envolve aquele que a
havia envolvido com murmúrios apaixonados”9. Assim, por mais
paradoxal que possa parecer, as irmãs-sombras (desde que se deixe
de lado a intriga superficial que as envolve) representam um aspecto
da consciência feminina que marcará todo o subsequente
desenvolvimento de Psiqué. Sem ele, ela não seria o que é, a saber, a
Psiqué feminina. Apesar de sua forma negativa, antimasculina e
assassina, a incitação das irmãs configura a resistência da natureza
feminina à situação e à atitude de Psiqué, bem como o início de uma
maior conscientização feminina. Isto não quer dizer que as irmãs
representam a consciência, são apenas sua sombra, seu lado
negativo, seu precursor. Mas, se Psiqué consegue passar de um estado
inteiramente de sombras para um estágio mais desenvolvido é
sobretudo porque se sujeitou à orientação negativa das irmãs. Bastoulhe quebrar o tabu que Eros lhe impusera, ao responder à sedução das
irmãs, para entrar em conflito com ele. Pois bem, este conflito é a
base de seu desenvolvimento. Na realidade, até o momento, Psiqué,
apesar de seu paraíso sensual, viveu na “sombra”, num perfeito
estado de servidão contra o qual a consciência feminina do selfe é
exatamente esta a atitude matrilinear do feminino deve protestar,
como fizeram as duas irmãs mais velhas. A existência da amante do
filho de Afrodite era uma não existência, um estar-no-escuro, um
êxtase de sensualidade, algo assim que poderia ser caracterizado
como uma situação em que ela está sendo devorada por um monstro.
Eros, enquanto fascinação invisível, é tudo aquilo que o Oráculo,
citado pelas irmãs, havia previsto: Psiqué, sem dúvida, é vítima de
Eros10.
Ora, a norma básica do matrimônio é a proibição, como
demonstrou Bachofen11, de a mulher ter relações individuais com o
homem: o macho é conhecido apenas como um poder anônimo. Para
a heroína esse anonimato acabou, mas a jovem incorreu na mais
profunda e imperdoável desgraça: sucumbiu à masculinidade do
marido e caiu em seu poder. Do ponto de vista matrilinear, só existe
uma saída para esse impasse: matar e castrar o masculino; e é
exatamente isto que as irmãs exigem de Psiqué. Mais uma vez é
necessário acentuar que as mesmas não configuram somente a
regressão, pois que um princípio feminino mais elevado está atuando
igualmente: sem dúvida, elas iluminaram o estado inconsciente da
irmã. Em seu “conflito” com Eros, apesar das constantes
recomendações e pedidos do esposo, Psiqué lhe resiste aos conselhos
de romper relações com as irmãs e com elas se encontra, o que parece
destoar de sua aparente suavidade. No decorrer desse “litígio”, ela,
finalmente, deixa escapar palavras reveladoras que são a chave de
seu estado interior: Não mais procurarei ver tua face e nem mesmo a
escuridão da noite poder d ser um obstáculo à minha felicidade, pois
tenho-te em meus braços, luz de minha vida. No momento exato em
que Psiqué dá mostras de aceitar a escuridão, isto é, a inconsciência
de sua situação e, quando no aparente abandono de sua consciência
individual, refere-se ao amante desconhecido como luz de minha
vida, nesse instante um sentimento até então desconhecido vem à
tona: ela fala negativamente de sua opressiva escuridão e de seu
desejo de conhecer o marido. Exorcizando seu próprio medo do que
está por acontecer, revela seu conhecimento inconsciente do que está
acontecendo. Antes era prisioneira das trevas, mas agora o impulso,
que a arrasta ao conhecimento da luz, se torna imperioso. A esposa
de Eros, sem dúvida, está muito longe de ser apenas a menina “gentil”
e “simples”. Ao contrário, a atitude das irmãs, com sua hostilidade e
protesto, corresponde exatamente ao que se passa no interior da
própria Psiqué. Atuado pelas irmãs, o protesto matrilinear aflora a
partir do exterior e a impele à ação. É exatamente esta situação que
torna possível o “conflito” em Psiqué: no mesmo corpo odeia o monstro
e ama o marido e foi essa constatação que permitiu às irmãs seduzila. Embora a jovem esposa ignorasse a aparência do marido, de há
muito a oposição monstro-amante vivia em seu inconsciente e foram
precisamente as irmãs que a conscientizaram do pressuposto aspecto
da “fera mortífera”. Não lhe sendo mais possível permanecer em seu
antigo estado inconsciente, ela é coagida a ver o verdadeiro aspecto
do parceiro e, apesar da ambivalência, a oposição entre a Psiqué que
odeia o monstro e ama o marido é projetada para o exterior,
obrigando-a a entrar em ação.
Armada com um punhal afiado e empunhando um candeeiro,
aproximou-se do amante e, na luz, reconheceu Eros. Tentou matarse, mas fracassou. Depois, enquanto se extasiava com a beleza do
marido, feriu-se numa de suas flechas. Inflamada de desejo, inclinouse para beijá-lo e uma gota de óleo fervente, caindo do candeeiro,
queimou e feriu o deus. Acordando sobressaltado e, constatando a
desobediência da esposa, abandonou-a imediatamente. E aqui se
inicia o drama de Psiqué, a busca da individuação, que sempre dói
muito, porque é um parto e um pacto extremamente difíceis.
Que experimenta Psiqué, quando, impulsionada pelas forças
matrilineares de ódio aos homens, se aproxima do leito para matar o
suposto monstro e descobre Eros? A palavra está com Neumann: “Se
reconstruirmos a grandeza mítica desta cena [...], perceberemos um
drama de grande profundidade e poder, uma transformação psíquica
de significado único. É o despertar de Psiqué como Psiqué, o
momento decisivo do destino na vida do feminino, no qual, pela vez
primeira, a mulher emerge de seu inconsciente e da clausura de seu
aprisionamento matrilinear e, num encontro individual com o
masculino, ama, ou seja, reconhece Eros. Este amor da jovem
princesa é um amor de tipo muito especial e, só se compreendermos
o que é novo nesta situação amorosa, é que podemos intuir o que isto
significa para o desenvolvimento do feminino, como é o
representado por Psiqué”12.
A Psiqué que se aproxima do leito, em que dorme Eros, não é mais
aquela criatura langorosa e envolvente, seduzida por seus sentidos,
que vivia no paraíso trevoso da sexualidade e do desejo.
Conscientizada pelas incursões de suas irmãs, ciente do perigo
iminente, ao aproximar-se do leito para matar o monstro, a besta
macho que a havia raptado do mundo superior em núpcias de morte
e arrastado para as trevas, ela assume a cruel e hostil militãncia da
matrilinhagem. Mas, ao brilho da nova e tênue luz com que ilumina
a escuridão inconsciente de sua antiga existência, reconhece Eros.
Ela, agora, ama. Conscientizada, ela experimenta uma transformação
radical: descobre que a dicotomia entre monstro e marido não é
válida. Atingida pela faísca do amor, tenta apunhalar-se, em outros
termos,fere-se com a flecha de Eros.
Com isto, abandonando o aspecto inconsciente infantil de sua
realidade, renuncia igualmente ao aspecto matrilinear de ódio aos
homens. À luz do “novo” amor, Psiqué reconhece Eros como um deus
que sintetiza em si o inferior e o superior e que é a sizígia dos dois
níveis.
Viu-se que Psiqué se deixou ferir na flecha de Eros e sangrou:
Assim, desapercebidamente, mas através de seu próprio ato, Psiqué se
apaixona pelo Amor. O que a amante de Eros experimenta agora
poderia ser chamado de uma segunda defloração, uma defloração
que se passa em seu interior. Esse ato de amor, com entrega
voluntária a Eros, é ao mesmo tempo um sacrifício e uma perda.
Psiqué não renuncia ao aspecto matrilinear de sua feminilidade,
mas o paradoxal da situação é que, em e através de seu ato de amor,
ela o eleva à sua essência autêntica e o exalta, simultaneamente, ao
seu nível amazônico13.
A Psiqué, que conheceu, porque viu Eros na luz, e que quebrou o
tabu de sua invisibilidade, não é mais a menina ingênua e infantil
em sua atitude contra o masculino. Não se trata mais da cativante e
da cativada: sua feminilidade se transformou a tal ponto, que ela
perdeu e realmente deveria perder o marido. O amor da amante que
explodiu, ao ver o amante, fez com que passasse a existir dentro dela
um Eros que não é mais aquele que dormia diante dela, ou seja, fora
dela. Seu Eros interior, imagem de seu amor, é, na realidade, uma
forma superior e invisível do Eros que dormia placidamente a seu
lado. Tal forma superior e invisível pertence à Psiqué consciente e
adulta, a uma Psiqué que deixou de ser criança. Pois bem, esse Eros
superior e invisível, interno a Psiqué, deverá necessariamente entrar
em conflito com sua imagem visível, revelada pela luz do candeeiro
e queimada pela gota de óleo fervente. O Eros oculto pelas trevas
ainda poderia ser uma encarnação de uma imagem qualquer de Eros,
mas este Eros visível é o divino, o filho de Afrodite, o qual, como tal,
não deseja também tal Psiqué! A tarefa urgente da amante é a
unificação da estrutura dual de Eros, que também se manifesta na
figura antitética de Eros e Ânteros, é a transformação do Eros
inferior no Eros superior, pois uma coisa é o Eros de Afrodite, outra, o
Eros de Psiqué.
Na interpretação lapidar de Neumann, “a perda do amante, neste
momento, é uma das mais profundas verdades dentre as verdades
deste mito. Este é o momento trágico em que toda Psiqué feminina
assume seu próprio destino. Eros foi ferido por Psiqué. A gota de óleo,
que o queimou, acordou-o e fê-lo ir embora, o que se constitui, de
qualquer forma, numa fonte de sofrimentos. Para ele, o deus
masculino, a amante era desejável, enquanto no escuro, e ele a
possuía com exclusividade. Afastada do mundo, vivendo apenas
para ele, sem participação e interferência em sua existência divina,
Psiqué se tornara apenas uma companheira para suas noites. Sua
insistência em manter-se no anonimato agrava ainda mais a
condição servil da parceira: a cada dia ela era mais devorada por
ele”14. Tentando matá-lo e ferindo-o, mas vendo-o, Psiqué emergiu da
escuridão e assumiu seu destino como mulher apaixonada, pois ela é
Psiqué, quer dizer, sua essência é psíquica e, por essa razão, uma
existência nas trevas não pode satisfazê-la15.
Ao libertar-se de Eros com um punhal e um candeeiro e, desse
modo, transcendendo-o e espancando a escuridão que ele lhe
impusera, a princesa despoja o amante de seu poder divino sobre ela.
Agora, os dois se defrontarão como iguais. Em um novo plano, quer
dizer, amando conscientemente, sua grande tarefa há de ser a de
unir-se de novo a ele e formar um todo em nova sizígia, uma vez que
a necessidade de uma junção a havia impelido ao sacrifício. Assim, a
iniciativa “criminosa” de Psiqué é o início de um desenvolvimento
que envolve não apenas a si mesma, mas que também atinge a seu
amante.
E Eros, como se comporta face a essa transformação?
O filho de Afrodite, segundo se mostrou, foi ferido por sua
própria flecha, quer dizer, amou Psiqué desde o início, mas esta,já se
falou, só começou a amá-lo, após “seu ato heroico”. Aquilo, porém,
que Eros denominava “seu amor” e o modo como o desempenhava
chocam-se com a amante e sua ação libertadora, “que acabou por
expulsar a Eros e a si mesma do paraíso da inconsciência urobórica”.
Foi através da esposa que ele, pela primeira vez, sofreu as
consequências de suas próprias flechas, aqui simbolizadas pela gota
de óleo fervente que lhe caiu no ombro. Que significa, porém, o óleo
fervente? O texto de Apuleio é elucidativo a esse respeito:
Ó candeeiro temerário e insolente, tu queimaste o próprio senhor do fogo.
O instrumento que provoca dor é uma arma cortante e
perfurante como a flecha, mas a substância que alimenta o candeeiro
é o princípio da luz e da sabedoria. O óleo, enquanto essência do
mundo vegetal, uma essência extraída da terra, usada para ungir o
rei, o senhor na terra, é um símbolo muito difundido em todas as
culturas. Assim, é significativo que, sendo a base da luz, para
iluminar, deve inflamar e queimar, para purificar.
Se, através de seu ato, Psiqué toma consciência de Eros e do amor
que sente pelo mesmo, este está apenas ferido, mas não
conscientizado do ato de amor e separação da amante. Em Eros tão
somente uma parte do processo se completou: a substância básica foi
inflamada e ele arde por causa dela. Trata-se, no entanto, do início de
uma transformação, mas involuntária e o deus a experimenta
passivamente.
Como se sabe, Eros era um menino, um jovem, o filho-amante de
sua Grande Mãe, cujas ordens transgrediu, amando Psiqué, em vez de
fazê-la infeliz.
Esse logro, todavia, não o libertou de Afrodite; atesta apenas que
ele a traiu, já que seu objetivo era que tudo se passasse em segredo, na
escuridão, às ocultas de sua mãe. Seu romance com a mais bela das
mortais é mais uma das “fugas” dos deuses gregos, longe da luz da
opinião pública, representada tipicamente pelas divindades
femininas. Mas o oculto e egoístico paraíso sensual do filho de
Afrodite foi iluminado por Psiqué, que rompeu a “participação
mística” com seu parceiro e lançou os dois no destino da separação,
que é a consciência. O amor, como expressão da totalidade do
feminino, não é possível nas trevas, como mero processo
inconsciente. Um encontro autêntico com o outro envolve a
consciência, apesar da separação e do sofrimento.
“A ação de Psiqué leva à individuação, na qual, como diz
Neumann, a personalidade experimenta a si mesma em relação a um
parceiro como o outro, quer dizer, não somente como unida a um
parceiro. A jovem fere e fere-se e, através desses ferimentos, desfaz-se
o vínculo original e inconsciente que os unia, criando, todavia, a
possibilidade de um novo encontro, pré-requisito do amor entre dois
indivíduos16. No Banquete de Platão, 189, 190, 191, a separação
operada por Zeus no andrógino, no Um, e a carência daí resultante,
isto é, o anseio de “reunir” o que havia sido dividido, é descrita como a
origem mítica do amor. Aqui a mesma concepção se repete em
termos do individual. Desse modo, a práxis de Psiqué “encerra a
idade mítica no universo arquetípico, na qual a relação entre os sexos
dependia tão somente da força superior dos deuses, que mantinham
os homens sob seu jugo. Inicia-se, então, a idade do amor humano, em
que a Psiqué, conscientemente, assume por si mesma a decisão
derradeira”.
Este fato, afirma Neumann, nos leva de volta ao ãmago do mito,
quer dizer, ao grave conflito entre a “nova Afrodite” e Afrodite, a
Grande Mãe. A rivalidade se inicia, quando os homens, adorando a
beleza de Psiqué, negligenciam o culto e os templos da deusa. A
contemplação pura da beleza contraria inteiramente o princípio
representado por Afrodite, que também é bela e configura a beleza,
mas esta é um meio apenas para se atingir um fim. Se este parece
sintetizar-se exclusivamente no desejo e na intoxicação sexual, na
realidade esse fim é a fertilidade: Afrodite é também uma Grande
Mãe, como Deméter e Hera. E apesar de a deusa do amor representar
o eterno ciclo da criação, ela é igualmente um dos aspectos do
arquétipo da matrilinear geratriz da vida e da fertilidade das coisas
vivas. A beleza, a sedução e o prazer por ela outorgados são
instrumentos de um “esporte celestial”, armas poderosas de que
dispõe e usa para a multiplicação das espécies. Mas a aliança entre a
deusa e Eros representa igualmente o atrativo da beleza e o encanto
das relações humanas, como se pode depreender das palavras de
Hera e Deméter, quando aquela explode em cólera por causa dos
amores de Eros por Psiqué:
Quem entre os deuses e os mortais te permitirá semear paixões
entre os homens, se proíbes teus próprios familiares de usufruírem os
encantos do amor e os excluis de todas as alegrias proporcionadas pela
fraqueza da mulher, um prazer que é permitido a todo mundo? O
“semear paixões” e a norma acerca da “fraqueza da mulher” são
atributos afrodíticos da Grande Mãe e que a deusa do amor, a “velha
Afrodite”, ainda representa em grau superlativo. Pois bem, este
aspecto torna-se evidente no conflito da deusa com Psiqué, que,
contrariando todos os preceitos do amor, é adorada em pura
contemplação. Assim agindo, a “nova Afrodite” interfere na esfera
dos imortais. Com sua práxis, o feminino, como força psíquica, entra
em litígio com a Grande Mãe e com seu aspecto terrível, ao qual o
feminino, em sua existência matrilinear, estivera subordinado.
Mais que isso, Psiqué não se rebela só contra a Grande Mãe
Afrodite, insurge-se ainda contra o amante masculino, Eros. Com seu
autossacrifício, a frágil amante abandonou tudo e assumiu a solidão
de um amor pelo qual renuncia, inconsciente e conscientemente, à
atração de sua beleza, que conduz ao sexo e à fertilidade. Agora,
porém, que viu seu amante Eros na luz, Psiqué coloca, lado a lado, o
princípio do amor, do encontro e da individuação com o princípio da
atração que fascina e com o da fertilidade das espécies. Acima do
preceito do amor material de Afrodite, enquanto deusa da atração
mútua entre os opostos, ergue-se o princípio do amor de Psiqué, que a
essa atração associa conhecimento, crescimento da consciência e
desenvolvimento psíquico. Do ponto de vista de Grande Mãe do
amor, a união do feminino com o masculino, como fato natural, não
é essencialmente diverso no homem e nos animais; a amante de Eros,
porém, transcendeu esse estágio, transformando-o numa psicologia
do encontro. Pela vez primeira, o amor individual de Psiqué rebela-se
contra o preceito coletivo da embriaguez sensual, encarnado em
Afrodite. Sua luta, agora, por isso mesmo, será em duas frentes:
contra a Grande Mãe Malvada, a sogra-bruxa, e contra Eros, a quem
terá que conquistar e desenvolver, transformando-o num amante
humano. O filho-amante de Afrodite, a quem ela beija com os lábios
entreabertos, numa relação incestuosa, filho que ela teme perder
para uma nora inimiga, terá que ser resgatado por Psiqué, de uma
esfera transpessoal da Grande Mãe, para ser trazido à esfera pessoal
da humana e amantíssima-nova-Afrodite.
Mas, por que essa regressão de Afrodite à condição de Mãe
Terrível?
Ouçamos Neumann: “Do começo ao fim deste mito, o princípio da
personalização secundária é dominante. Com o desenvolvimento da
consciência, fenômenos transpessoais e arquetípicos assumem uma
forma pessoal e tomam lugar na construção de uma história
individual, de uma situação humana de vida. A Psiqué humana é um
ego ativo que ousa opor-se, e com sucesso, a forças transpessoais. A
consequência desse grandioso posicionamento da personalidade
humana, aqui no caso feminina, é de enfraquecer o que antes era algo
todo-poderoso. O mitologema da nova Afrodite humana se fecha
com sua deificação. Paralelamente a divina Afrodite se humaniza,
bem como Eros que, através do sofrimento, prepara o caminho para a
união com a Psiqué humana.
Quando se torna claro para Afrodite que seu rebento masculino,
que sempre havia sido um escravo obediente, se excedera na função
de filho e amado, um instrumento e auxiliar, e se tornou
independente como amante, surge um conflito na esfera do
feminino e uma nova fase do desenvolvimento de Eros se inicia”17.
6
Ao deixar de fugir de Afrodite, o que se configura, na realidade,
numa busca de Eros, e ao render-se à deusa, Psiqué está preparada
para enfrentar a “morte certa”. Iria começar a parte mais dolorosa de
sua iniciação, que, em contexto religioso, sempre pressupõe a morte
do iniciando para o renascimento do homo nouus. A amante de Eros
vai, nesta quarta parte do mitologema, enfrentar “os trabalhos”.
O plano de Afrodite, para destruir a nora, gira em torno de quatro
tarefas. Ao realizá-las, Psiqué converte-se num Héracles feminino e
sua sogra desempenha papel idêntico ao de Hera, e madrasta do
herói do Peloponeso.
Consoante Neumann, “os trabalhos que Afrodite impõe à amante
do filho parecem, à primeira vista, não ter sentido nem ordem. Mas,
uma interpretação baseada no simbolismo do inconsciente mostra
que o contrário é o verdadeiro”18. É exatamente essa interpretação
que vamos transcrever, não raro, ipsis uerbis.
A primeira tarefa, como já se mostrou, consistia em separar de um
monte enorme de cereais as sementes e grãos de trigo, cevada, milho,
grãos-de-bico, papoula, lentilha e fava ... Tudo por espécie, e numa só
jornada noturna!
A deusa, ferida e “ameaçada” no mais fundo de seu ser,julga
simplesmente que o primeiro trabalho é impossível de se realizar.
Diga-se logo que o mesmo simboliza primeiramente “uma
mistura urobórica do masculino”, quer dizer, a típica promiscuidade
do estágio pantanoso de Bachofen, conforme se mostrou páginas
atrás. As criaturas que vêm ajudar a heroína não são as aves da deusa,
as pombas, que tanto auxiliaram a Cinderela, mas as formigas, a raça
“mirmidônica”19, as ágeis criaturinhas da Terra, a mãe de todos.
Foi, pois, com a ajuda imprescindível das formigas que Psiqué
conseguiu “ordenar a promiscuidade masculina”. Kerényi faz
menção do primitivo caráter humano dos povos-formiga, nascidos
da terra, e sua conexão com a “autoctonia”, a saber, com o caráter da
vida, que é oriunda da terra e particularmente com o caráter do
homem. “Aqui, como sempre”, são palavras textuais de Neumann, “os
animais ajudantes são símbolos do mundo dos instintos”. Se nos
lembrarmos de que as formigas, nos sonhos, são um símbolo
relacionado com o sistema nervoso vegetativo, começaremos a
entender por que essas forças ctônias, essas criaturas nascidas do
solo, são capazes de ordenar as sementes masculinas da terra. Psiqué
opõe à promiscuidade de Afrodite um princípio ordenador
instintivo. Enquanto a deusa do amor se atem à fertilidade do estado
pantanoso, que também é representado por seu filho sob a forma de
monstro-serpente fálico, Psiqué possui em si um princípio
inconsciente, que lhe permite selecionar, peneirar, correlacionar,
avaliar e, assim, encontrar seu próprio caminho em meio à confusão
do masculino. Contrariamente à oposição matriarca! da futura sogra,
para quem o masculino é fundamentalmente anônimo, como
demonstram, por exemplo, os ritos de Istar, Psiqué, mesmo em seu
primeiro trabalho, já alcançou o nível da seletividade. [ ... ] Não se
pode, de outro lado, esquecer um encontro importante da jovem
esposa com um experimentado “conquistador”, depois que o marido
a abandonou e depois que o rio lhe frustrara a tentativa de suicídio20,
provando-lhe assim que a regressão era impossível21.
Pã, o velho filósofo, o sábio, um “simples pastor”, apegado à terra,
aos animais e à natureza que, possuindo também poder divinatório,
percebeu, de imediato, o que se passava com a “nova Afrodite”. Seu
conselho, aparentemente tão singelo, fez que Psiqué continuasse
vivendo e encontrasse o rumo certo:
Dirige-te a Eros, o mais poderoso dos deuses, com preces fervorosas
e conquista-o com suave submissão, pois ele é um adolescente suave e
meigo.
Aparentemente os desordenados e incríveis trabalhos que
Afrodite impõe à nora são apenas perigos mortais, mas o conselho de
Pã - procura Eros e conquista-lhe o amor - dá pleno sentido ao que
parecia um absurdo. O deus-pastor faz que as tarefas passem a ter
um sentido novo e definitivo para o encontro com Eros, porque até
mesmo a passagem de um trabalho a outro torna-se um caminho em
direção ao amor.
A segunda tarefa ainda mais estranha consistia em trazer para a
deusa do amor flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de carneiros
ferozes que vagueavam num bosque, à beira de um rio caudaloso.
Após evitar que a desesperada Psiqué se lançasse nas correntezas, um
junco humilde ensinou-lhe como executar a ordem divina. Qual
seria o significado no mito desses flocos de lã e da “prudência” do
verde caniço?
As ovelhas, ou melhor, os carneiros, cuja lã Psiqué deveria
recolher, são descritos pelo junco como detentores de poderes
mágicos e destruidores. Semelhante alusão patenteia a relação do
carneiro com o sol, como se atesta no Egito ou no mito do Velocino
de Ouro. Psiqué é advertida para não transitar entre os “terríveis”
carneiros até que o sol se tenha posto, “pois, enquanto o violento calor
do sol os aquece, são possuídos de uma raiva feroz, tanto que, com seus
chifres agudos e sua fronte rija como pedra e, às vezes, com
mordeduras venenosas, investem furiosamente contra os mortais”.
Os carneiros do sol, consoante Neumann, simbolizam o poder
destrutivo masculino e correspondem, em consequência, ao
princípio negativo de morte, experimentado pela matrilinhagem.
“Essa castração”, contida na ordem da deusa, pode ser interpretada
como um “tomar posse de”, como uma opressão, uma
“despotencialização”, como o foi o gesto de Dalila, ao cortar os
cabelos de Sansão, o herói solar, e o crime das Danaides.
Psiqué estaria destruída pelo opressivo princípio masculino, se
enfrentasse os carneiros do sol, símbolos do tirânico poder espiritual
masculino, com o qual o feminino não se pode defrontar. Se o fizesse,
ela se abrasaria como Sêmele na epifania de Zeus ou enlouqueceria
como as Miníades, que se opuseram a Dioniso. A princesa, todavia, é
salva pelo humilde junco, o “cabelo da terra”, associado às águas
profundas, e que é contrário ao carneiro de fogo. Suas palavras caem
suavemente na consciência de Psiqué: seja paciente, aguarde o
momento propício. Nem sempre é dia alto e o sol é abrasador: nem
sempre o masculino é mortal. A tarde virá e com ela a noite, quando
o sol se põe, pois Hélio viaja para as entranhas da sagrada noite
escura, para junto de sua mãe, da esposa e de muitos filhos, e então o
princípio masculino se aproxima do feminino. Após o pôr do sol
surge a situação de amor, quando é seguro pegar os cabelos dourados
dos carneiros do sol que se acalmam e buscam o descanso. “Física e
psicologicamente”, interpreta Neumann, “estes cabelos-raios são
poderes masculinos da fertilização, e o feminino, como Grande Sol
no ventre da natureza. [ ... ] O feminino necessita apenas consultar
seus instintos para conseguir uma relação fecunda, ou seja, uma
relação amorosa com o masculino, ao cair da noite. [ ... ] Nesse
momento, quando o espírito solar masculino retorna às profundezas
do feminino, este encontra o fio dourado, a fértil semente da luz”22.
Num comentário-síntese aos dois primeiros trabalhos, Neumann
afirma serem ambos de “caráter erótico” e arremata: “É curioso que
Afrodite que havia apresentado esses trabalhos não como um
‘problema erótico’, mas como um separar de sementes e como uma
procura do fio de lã dourado, atribua a solução dos mesmos à ajuda
de Eros. Este, e ela o sabia perfeitamente, estava doente e preso em
seu palácio: Sei muito bem quem foi o autor secreto deste feito.
Apesar de tudo, parece existir alguma relação, uma certa empatia
oculta entre Afrodite e Psiqué, pois aquela compreendeu o caráter
erótico não apenas dos problemas que havia imposto, mas também
das soluções encontradas pela nora”23.
Para realizar a terceira tarefa, Psiqué deveria trazer para Afrodite
uma jarra cheia com a água que alimentava dois rios infernais, o
Cocito e o Estige.
A esposa de Eros não tinha esperança alguma de poder cumprir o
mandado que lhe fora imposto; porque, se de um lado a fonte
brotava nos píncaros de uma rocha encravada em íngreme
penhasco, de outra, era a mesma guardada por terríveis dragões.
Dessa feita, o deus ex machina de Psiqué foi a Águia de Zeus.
A tarefa é uma variante da busca da água da vida, a preciosa
substância difícil de se obter. A característica essencial da fonte é
que ela une o superior, o mais elevado, e o inferior, o mais profundo.
Trata-se, por conseguinte, de uma fonte circular urobórica que
alimenta as entranhas do mundo ctônio e que sobe novamente para
emanar da mais elevada rocha que coroa inacessível montanha. A
dificuldade consiste em captar numa jarra o líquido dessa fonte, que
configura a corrente da energia vital, um Oceano ou um Nilo, em
escala mítica reduzida. Afrodite considera o feito impossível, porque,
para ela, o fluxo da vida desafia a captura, a contenção. Trata-se de
movimento eterno, mudança perpétua, geração, nascimento e morte.
A qualidade essencial desse fluxo é que o mesmo não pode ser
contido. Psiqué, como jarro feminino, deverá sustá-lo, dar forma e
repouso ao que é informe e eternamente fluido. “Sob tal aspecto”,
comenta Neumann, “torna-se evidente que, além de sua significação
de energia incontida do inconsciente, o fluxo da vida é detentor de
um simbolismo específico em relação a Psiqué. Como o que enche a
urna-mandala, esse fluxo é gerativo-masculino como o poder
fecundante arquetípico de inumeráveis deuses-rios, espalhados pelo
mundo inteiro. Em relação à amante de Eros, esse fluxo é o poder
conquistador numinoso-masculino daquilo que penetra para
fecundar, isto é, do uróboro paternal. O problema insolúvel
apresentado pela deusa à nora e que esta resolve é o de encerrar,
conter essa energia, sem ser por ela despedaçada”24.
Para uma melhor compreensão, todavia, de todo o contexto e de
sua simbologia, é necessário, embora sumariamente, dar uma ideia
de alguns elementos que neles figuram. Que sentido possui o deus ex
machina, representado pela águia? E por que logo esta ave, símbolo
espiritual masculino, pertencente a Zeus e ao âmbito do ar? E
particularmente, por que se trata da mesma águia, que ergueu
Ganimedes ao Olimpo?
Existe, de saída, comenta Neumann, um paralelo evidente entre
Ganimedes e Psiqué: ambos são seres humanos amados por deuses e
arrebatados às mansões celestes como parceiros de seus amantes
divinos. A intervenção da águia insinua uma certa admiração de
Zeus pela princesa, afeição, aliás, que vai decidir, favoravelmente, o
desfecho da sofrida busca de Psiqué. O pai dos deuses e dos homens
apoia seu filho Eros, em parte por simpatia masculina, pois também
ele sabe o que é estar preso por amor e, em parte, como protesto
contra a Grande Mãe que, como Hera, refreia a liberdade de amar de
seu esposo e que, como Afrodite, empenha-se em reprimir
igualmente seu filho.
“Não é por acaso”, diz o mesmo psiquiatra, “que a relação amorosa
homossexual de Zeus e Ganimedes interfere positivamente no caso
de Eros e Psiqué. É que pares masculinos homoeróticos e
homossexuais atuam como ‘conflitantes’, assumindo a luta para se
libertarem do domínio da Grande Mãe. Também Eros, dentro dessa
mesma perspectiva, deverá abandonar sua condição de filhoamante, para que possa iniciar uma relação livre e independente com
Psiqué”.
Para o que aconteceu antes, é relevante o fato de que o aspecto
masculino espiritual, cujo símbolo central é a águia, venha em
auxílio da amante de Eros neste terceiro trabalho. “Se a segunda
tarefa consistiu em ‘amansar’ o princípio masculino hostil na ligação
erótica do que poderia ter sido destrutivo sob a forma de uróboro
paternal, este é uma reconciliação com o masculino, que vai
possibilitar a Psiqué estabelecer a comunicação com o mundo
espiritual masculino da águia de Ganimedes. [ ... ] O princípio
espiritual que dá ajuda, a águia do espírito masculino, que espreita a
pilhagem e a executa, possibilita-lhe conter um pouco do fluxo da
vida e dar-lhe forma. A águia, segurando a jarra, configura ajá
masculino-feminina espiritualidade de Psiqué, que, num único ato,
‘recebe’ como mulher, isto é, ‘recolhe’ como um jarro, e concebe, mas,
ao mesmo tempo, compreende e sabe como um homem. [ ... ] Assim, o
princípio masculino da águia permite-lhe receber uma parcela do
mesmo, sem que seja por ele destruída”25.
No primeiro trabalho forças instintivas cooperaram, para que ela
pudesse separar e ordenar o masculino; no segundo, um fio de lã é
separado da abundância escaldante da luz; no terceiro, uma urna
cheia de água é retirada da abundância do fluxo. Desse modo, em
planos diferentes, as três tarefas, uma vez executadas, significam que
Psiqué pode receber e assimilar o masculino e dar-lhe forma, sem
perigo de ser destroçada pelo destrutivo poder do numinoso.
Eis por que, a cada tarefa cumprida, a amante de Eros sobe um
degrau da escada que a levará paulatinamente a transformar-se,
transformando o amante.
Sob este último aspecto, argumenta o autor já tantas vezes citado,
“o desaparecimento de Eros ganha novo e misterioso significado.
Superficialmente, o filho de Afrodite desaparece, porque a amante
lhe desobedeceu às ordens. Em outro nível mais profundo, ele
‘retorna para a mãe’, o que é simbolizado pelo cipreste, árvore da
Grande Mãe, no qual pousa como pássaro, e também por sua volta à
prisão, ao palácio de Afrodite. Em nível ainda mais profundo, é
preciso compreender que Eros desaparece, porque Psiqué, com seu
candeeiro, não pode reconhecer nele o que ele era realmente.
Subsequentemente, fica evidenciado que Eros lhe revelou sua
verdadeira identidade gradualmente, no curso do próprio
desenvolvimento da amante. Sua manifestação depende dela: Eros é
transformado por e através de Psiqué. Através de cada uma das
tarefas, a amante apreende, sem o saber, uma nova categoria da
realidade do amado. Os trabalhos realizados ‘para ele’ são um
crescimento retilíneo, não só da consciência de si mesma, mas
também de seu conhecimento do amante. Precisamente porque isto
se dá por etapas e porque Psiqué age de forma a não ser arruinada
pelo destrutivo poder do numinoso, que também é Eros, ela se torna,
a cada trabalho, mais segura de si e mais amoldada ao divino poder e
à divina figura de Eros”26.
Com a independência do amor de Psiqué surge um fato novo e tão
sério, que a própria Afrodite julgava impossível pudesse existir no
feminino, a não ser que este possuísse “um coração intrépido e uma
prudência além da prudência característica da mulher”. A grande
deusa do amor não acreditava que mulher alguma possuísse tais
atributos masculinos. Mas o que salienta e assinala de modo ímpar o
desenvolvimento da jovem princesa, é que ela executou as três
primeiras tarefas indiretamente e com a cooperação do masculino,
mas não como um ser masculino. “Forçada a construir o lado
masculino de sua natureza, permaneceu fiel à sua feminilidade, o
que, decerto, está bem patente no quarto trabalho que lhe impôs a
deusa”27.
De outro lado, as três primeiras missões são executadas com a
assistência de “ajudantes”, quer dizer, por forças internas da
inconsciência da heroína. O último deverá ser realizado apenas por
ela mesma. Nos três anteriores, seus “auxiliares” pertenciam ao
mundo vegetal e animal; no derradeiro será “apoiada” pela Torre, um
símbolo da cultura humana. Naqueles, Psiqué lutou com o princípio
masculino, neste último entrará em litígio com o princípio feminino
central, com Afrodite-Perséfone. Se no terceiro trabalho a água da
vida, o fluxo, foi recolhido no mais alto penhasco, agora o objeto da
busca se localiza em profundezas insondáveis; está nas mãos da
própria Perséfone, a rainha do Hades.
Se não mais existem ajudantes, Psiqué terá o Apolo da TorreConselheira, cujo simbolismo é deveras importante. Como recintomandala é feminina: cidade, fortaleza e montanha, que possui como
equivalente cultural a torre em degraus ou a torre-templo, a
pirâmide. De outro lado, a torre é igualmente fálica, enquanto falo da
terra: árvore, muralha, pedra. A par dessa significação bissexual, ela é
também um edifício erigido por mãos humanas, donde uma
configuração do trabalho coletivo e espiritual dos homens. Símbolo
do conhecimento humano, é, por isso mesmo, designada como “a
Torre que vê longe”.
Dominando dois níveis, ela vê para baixo e vê para cima,
podendo, por isso mesmo, mostrar a Psiqué, enquanto indivíduo,
mulher e ser humano, como poderá derrotar a mortal aliança das
deusas, três das quais, Deméter, Afrodite e Hera, governam a esfera
divina superior, e a quarta, Perséfone, comanda a esfera divina
inferior. Não é por mero acaso, aliás, que três dos trabalhos são
realizados no mundo da luz e o quarto nas entranhas das trevas.
Completamente só, armada com as instruções da Torre, Psiqué
empreende a grande κατάβασις (katábasis), a perigosa “descida”,
em defesa de seu único amor, Eros.
Alguns pormenores da viagem, como o itinerário através do cabo
Tênaro, as moedas para pagamento da passagem a Caronte e o bolo
de mel e cevada para apaziguar o cão Cérbero, não são significativos,
uma vez que pertencem a temas tradicionais e não especificamente
ao mito de Psiqué. Outros fatos, no entanto, inerentes à catábase,
como a proibição de ajudar ao burriqueiro coxo, ao cadáver, às
fiandeiras e de não aceitar a cadeira e o lauto jantar, oferecido por
Perséfone, merecem um comentário, porque, segundo a Torre, são
“armadilhas” de Afrodite. Esta, com tantas ciladas, procura fazer com
que a nora fracasse, permanecendo para todo o sempre no Hades,
antes mesmo de transmitir à rainha dos mortos a derradeira tarefa
que lhe impusera. No quarto e último trabalho, como se salientou,
Psiqué, munida de uma caixinha, deveria solicitar a Perséfone, em
nome de Afrodite, que enviasse a esta “um pouquinho de beleza
imortal”.
Trágico é que cada um dos estratagemas da deusa do amor é fatal
por si mesmo. O burriqueiro coxo, o “perigoso” Ocno ou Aucno, de
quem, no ensaio de Bachofen28, se afasta Afrodite, segura uma corda,
cuja extremidade é devorada por um asno fálico. Atender-lhe à
solicitação, pegando a acha, símbolo fálico, que caíra no chão, seria
para sempre prender-se, na outra vida, ao sensualismo animalesco e
a uma tarefa inútil. O cadáver que, erguendo a mão podre, pede ajuda
para entrar na barca de Caronte, pode ser entendido, consoante
Neumann, como uma representação do perigo de ser possuído pelo
homem morto, a saber, pelo espírito ancestral. As fiandeiras,
símbolos da Grande Mãe (da vida e da morte), são as Queres, as
Parcas dos latinos, que trançam os fios da vida e da morte, segundo se
mostrou no Vol. I, p. 241-242.
Em suas mãos, no mundo das sombras, Psiqué seria apenas mais
uma dos que povoam o reino de Plutão. Por fim, as ofertas de
Perséfone, a cadeira e o alimento, não podiam em hipótese alguma
ser aceitos. Sentar-se numa cadeira, comer (e disto a própria rainha
dos mortos tinha experiência) e outras atitudes de intimidade e
identidade, que serão comentadas logo a seguir, estabelecem uma
permanência, uma fixação, como a respeito da cadeira aconteceu
com Teseu e Pirítoo (o que será exposto no mito dos Heróis, no Vol.
III) e sobretudo acerca do comer, como aconteceu com a própria
Perséfone, conforme se comentou no Vol. I, p. 322-323.
Tomadas em conjunto, as proibições e advertências da Torre têm
particular importância no mito que estamos examinando. Psiqué foi
advertida de que não ajudasse a Ocno, ao cadáver e às fiandeiras. As
palavras da Torre são claras: não te é lícito sentir piedade. O
comentário é mais uma vez de Erich Neumann: “Se, como iremos
demonstrar em seguida, todos os atos de Psiqué representam um rito
iniciático, esta proibição implica a insistência na ‘estabilidade do
ego’, característica de qualquer iniciação. Nos homens essa
estabilidade se manifesta como resistência à dor, à fome, à sede e
assim por diante, mas, na esfera feminina, evidencia a forma de
resistência à piedade. A firmeza do ego forte, concentrado em seu
objetivo, é expressa em inúmeros outros mitos, com suas imposições
de não se voltar, não olhar para trás, não responder, etc. [ ... ]
O feminino é ameaçado na estabilidade do ego pelo perigo da
distração, provocada pelo ‘relacionamento’, causada por Eros. Esta é
a difícil tarefa com que se defronta qualquer Psiqué feminina em seu
caminho para a individuação: ela deve abandonar o anseio pelo que
está próximo em função de um objetivo distante e abstrato. [ ... ] O
componente universal do relacionamento é tão essencialmente uma
parte da estrutura coletiva da Psiqué feminina, que Briffault a
considera o fundamento de toda comunidade e cultura humana, as
quais ele julga pertencentes ao grupo feminino com seu vínculo
entre mães e filhos. Mas este vínculo não é individual e sim coletivo,
pois pertence à Grande Mãe em seu aspecto de preservadora da vida
e de deusa da fertilidade, que não está interessada com o individual e
com a individuação, mas com o grupo que ela espera ‘seja fértil e se
multiplique’. Por esse motivo, a proibição de ter piedade traduz a luta
de Psiqué contra a natureza feminina. Originariamente, ‘ajudar’
sempre significou uma ‘participação mística’, que pressupõe e cria
uma identidade e, por isso, é perigosa. Pode, por exemplo, conduzir à
possessão por aquele que é ajudado. Nas Mil e Uma Noites, o herói
alivia a bruxa de sua carga e, como agradecimento, esta monta em
suas costas e não se deixa derrubar”29.
Desse modo, a ajuda, o comer em conjunto, o sentar-se, o aceitar
presentes ou ser convidado para ir à casa de outrem estabelecem
comunhão, identidade e um elo infrangível entre o ajudante e o
ajudado.
Eis por que Psiqué não se deve deixar mover pela piedade nem
aceitar os convites de Perséfone. Se assim agisse, jamais voltaria do
Hades.
7
A catábase de Psiqué ao reino de Plutão é uma viagem heroica e o
mais difícil de todos os seus trabalhos, porque requer a luta com a
própria morte em seu habitat.
A grande importância da catábase da jovem amante de Eros
reside no fato de que, através da descida, ela irrompeu da esfera
matrilinear e, em seu amor consciente por Eros, alcançou a esfera
psíquica, “a experiência feminina do encontro”, que é a pressuposição
da individuação feminina. As inimigas irmãs-sombra devem ser
configuradas como poderes ma trilineares, mas a intervenção de
Afrodite deslocou o conflito do plano pessoal para o transpessoal. Os
três trabalhos iniciais patentearam que a “queda” de Psiqué visava a
terminar com a atitude primordial da matrilinhagem. Por trás da
impossibilidade de realizá-los encontrava-se a caraterística
concepção matrilinear de um princípio masculino, que, conforme
esperava a deusa, seria fatal à sua nora. Com o desenrolar das tarefas,
esse princípio masculino manifestou-se como promiscuidade
masculina (as sementes); o masculino mortal (a lã de ouro) e o
masculino incontível (o fluxo da água da vida). Vencida esta etapa, a
deusa vai tentar “destruir” a amante do filho no quarto trabalho, que
é a busca da beleza divina, que deveria ser encerrada numa caixinha.
Abrindo-a, Psiqué cai num “sono semelhante à morte”. Que significa
essa caixinha que contém a beleza imortal e por que Psiqué, apesar
da admoestação da Torre, a abriu? Qual o sentido de seu sono estígio
e da intervenção de Eros, que a “liberta do sono da morte”?
O “creme” de beleza imortal representa, possivelmente, a eterna
juventude de Perséfone, a juventude eterna de Thánatos, a “morte” e,
por isso mesmo, Perséfone é κόρη (kóre), a “jovem”. Trata-se,
portanto, da beleza “do sono semelhante à morte”, conhecida nas
lendas da “Bela Adormecida” e da “Branca de Neve” a ele condenadas
pela Mãe Terrível, a madrasta, ou pela velha bruxa. É a beleza do
caixão de cristal, do qual, espera-se, Psiqué se liberte. É a beleza árida
e frígida da virgindade estéril, sem amor pelo homem, como
determina a matrilinhagem. O objetivo de Afrodite é fazer que a nora
“morra”, regredindo-a a seu antigo estado de Core-Perséfone, ao
estágio em que se encontrava antes de seu encontro com Eros.
Tem-se aí a sedução do narcisismo que tenta derrotá-la. Afrodite
deseja que Psiqué regrida, da mulher que amou Eros, que foi “raptada”
por seu amor por ele, para a virgem encarcerada no amor narcísico
de si mesma, como se estivesse encerrada no caixão de cristal.
Colocar o “creme” da beleza imortal nas mãos de Psiqué é um
ardil muito inteligente da deusa, que conhece como ninguém a
feminilidade. Que mulher resistiria a essa tentação e como poderia
uma Psiqué, em especial, não cair no engodo?
Surda à advertência da Torre, abre a caixinha e cai em sono
profundo. Mais uma vez, “fracassa”. Caindo no sono estígio, ela
retorna a Perséfone, como Eurídice, cujo marido, “ainda nas trevas”,
olhou para trás. Vencida pelo aspecto mortal da própria Afrodite,
torna-se Core-Perséfone e é conduzida novamente ao Hades, não por
Plutão, o noivo masculino da morte, mas pela vitoriosa Grande Mãe,
enquanto mãe da morte. Mas, assim como as exigências de Deméter
junto a Plutão não foram de todo bem-sucedidas, igualmente a
tentativa de Afrodite de fazer Psiqué regredir à matrilinhagem foi
em vão, uma vez que a jovem está grávida e sua gravidez de Eros é
símbolo de seu profundo vínculo individual com ele. A amante de
Eros não está preocupada, como Afrodite, com a fertilidade da
natureza, mas com a fertilidade do encontro individual. É evidente
que a independência de Psiqué começa no período da gravidez.
Enquanto esta na esfera matrilinear conduz a uma união entre mãe e
filha, aqui o despertar de Psiqué para a independência, que se inicia
com a gravidez, leva-a ao encontro do amor e da consciência.
O final feliz, devido a Eros, que desperta a esposa do sono da
morte não é uma simples intervenção do deus ex machina, tão
comum na literatura clássica, mas algo muito mais profundo. Por
que Psiqué fracassa, justamente, agora, no final? Seria apenas por
irresistível curiosidade feminina somada a uma vaidade narcísica?
Psiqué fracassa e precisava fracassar, porque ela é uma psiqué
feminina e é precisamente esse fracasso que lhe dá, sem que ela o
saiba, a vitória. Esta é a maior luta, que se conhece, contra o dragão.
Sabe-se que o método feminino de derrotar o monstro é aceitá-lo e
aqui essa perspicácia assume a surpreendente, mas não menos
eficiente, forma de fracasso da jovem princesa. Após palmilhar toda
a trilha de um grande herói, após desenvolver sua consciência e
estabilizar seu ego, ela se lança ingenuamente de volta nos braços de
Afrodite-Perséfone ... Tudo isto teria sido inútil? Seu gesto,
aparentemente tolo, visava tão somente a tornar-se atraente para
Eros?
Quando Psiqué decide abrir a caixinha e usar o “creme da beleza
imortal”, devia estar consciente do perigo a que se expunha. A Torre
a prevenira o suficiente. Mesmo assim, decidiu não entregar à
Grande Mãe o que conseguira a tão duras penas.
Tudo começou com o tema da beleza, que agora reaparece em
novo plano. Quando a princesa era chamada a nova Afrodite por
causa de sua beleza, que despertara o entusiasmo dos homens e a
inveja da deusa, esse dom era considerado por ela uma desgraça. Mas
agora, exatamente para aumentar sua beleza e torná-la digna de
Eros, está disposta a atrair sobre si mesma a maior das desgraças. Tal
mudança ocorreu por causa de Eros e isso exprime uma perspicácia
profundamente feminina. Psiqué é uma mortal em conflito com
deusas. Isto é mau o bastante, mas, na medida em que seu bemamado é também um deus, como poderá ela olhá-lo, contemplá-lo de
frente? Ela procede da esfera terrena, mortal, mas aspira a tornar-se
uma igual a seu amante divino. De modo muito feminino, ela intui
que seus atos e seu sacrifício final o comoveriam e o forçariam a
salvá-la.
É que, no início, Psiqué sacrificou-se ao paraíso escuro de Eros em
função de seu desenvolvimento espiritual, mas agora está prestes a
sacrificar seu desenvolvimento espiritual à beleza de AfroditePerséfone, que a tornará atraente para Eros. Ao agir dessa forma, ela
parece regredir realmente, mas esta não é uma regressão a algo do
passado, à posição matrilinear. Ao preferir a beleza ao conhecimento,
ela se concilia com a beleza de sua natureza. E porque ela o fez por e
para Eros, sua “antiga feminilidade” entra em nova fase. Já não é a
beleza fechada em si mesma, nem a beleza sedutora de Afrodite, que
só se interessa pelo “propósito natural”. Trata-se da beleza da mulher
que ama, que deseja ser bela para ser amada, que deseja ser bela para
Eros e para mais ninguém. Ao tomar tal decisão, ela renova o vínculo
com seu centro feminino, com seu self. Professa seu amor e agarra-se
ao encontro individual com Eros. Esse “toque” feminino, de mulher
que tudo sacrifica pelo amor, é, ao que parece, a razão recôndita que
leva Afrodite-Perséfone a perdoar a Psiqué e levantar subitamente
toda e qualquer oposição à deificação da amante de seu próprio filho.
Esse fracasso paradoxalmente feminino de Psiqué provoca a
intervenção de Eros, que, de jovem aventureiro e irresponsável, se
torna um homem, transformando o fugitivo queimado em salvador.
O salvador de uma Psiqué em outro nível.
Sob esse aspecto, o fracasso da nova Afrodite não é um naufrágio
regressivo e passivo, mas uma reversão dialética de seu
extraordinário devotamento.
Através do aperfeiçoamento de sua feminilidade e de seu amor, a
“bela adormecida” evoca a perfeita masculinidade de Eros.
Abandonando-se ao amor, ela recebe, sem o adivinhar, a redenção
através do amor.
Com essa redenção através do amor, Psiqué completou suas
quatro tarefas e, destarte, perfez o itinerário dos iniciados através dos
quatro elementos. Curioso, todavia, é que Psiqué feminina não deve
simplesmente peregrinar pelos quatro elementos, como os iniciados
masculinos nos Mistérios de Ísis. Ela terá que torná-los seus através
de sua práxis e de seus sofrimentos, assimilando-os como forças
auxiliares de sua natureza: as formigas, que pertencem à terra; o
caniço, que pertence à água; a águia de Zeus, que pertence ao ar; e a
ígnea e celestial figura do próprio Eros redentor, o próprio fogo.
Antes de se conscientizar de seus componentes masculinos e de
compreendê-los, antes de tornar-se um todo, graças ao
desenvolvimento de seu aspecto masculino, Psiqué encontrava-se na
posição de confronto com a totalidade da Grande Mãe em seu duplo
aspecto de Afrodite-Perséfone. O fim do confronto foi,
paradoxalmente, a “derrota vitoriosa” de seu comentado fracasso. Em
função de sua derrota vitoriosa, ela recuperou não só um Eros adulto,
mas ainda o contato com seu próprio self central feminino.
Reconciliados o masculino e o feminino, Psiqué foi recebida no
Olimpo como esposa de Eros. Seu guia foi Hermes, que, nessa missão,
exerceu sua verdadeira função de psicopompo, de guia da “alma
feminina”.
O arrebatamento de Psiqué, da Terra para o Céu, e sobretudo suas
núpcias com Eros, vistas sob o ângulo feminino, significam que a
faculdade de amar da alma individual é divina e que a
transformação pelo amor é um mistério que deifica. E essa
experiência da Psiqué feminina adquire especial importância face ao
mundo patrilinear antigo, no qual a existência coletiva das mulheres
estava subordinada às leis do princípio da fertilidade.
Se os mortais conquistaram seu lugar no Olimpo, o feito não se
deve a um herói masculino divinizado, mas a uma psiqué
apaixonada. A mulher humana, como indivíduo, escalou o Céu e, a
partir daí, na perfeição conquistada pelo mistério do amor, a mulher
encontrou-se lado a lado com os arquétipos da humanidade inteira,
os deuses imortais.
Do enlace Eros-Psiqué nasceu uma menina, que, “na linguagem
dos mortais”, se chama Volúpia; “volúpia” sem dúvida, mas algo
muito superior à sensualidade. Talvez, “na linguagem dos deuses”,
essa criança divina tenha recebido simplesmente o nome de mulher.
Fernando Pessoa, num poema lindíssimo, Eros e Psique30,
compreendeu, com a sensibilidade e a profundidade que lhe são
peculiares, a extensão desse amor-consumação, em que Eros,
buscando a Psiqué, acaba descobrindo que ele é a própria Psiqué,
transfigurada em Amor ...
Vale a pena mostrar este contraste:
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
1. Lúcio Apuleio, nascido por volta de 125 na cidade africana de Madauro e falecido após 170
d.C., é um dos grandes polígrafos da literatura latina, embora dominasse com tal perfeição a
língua de Homero, que se dizia de Apuleio que ele pensava em grego e escrevia em latim.
Sua obra mais famosa, e que, entre outras, chegou até nós, é o romance Metamorfoses,
também impropriamente denominado O Asno de Ouro, em onze livros. O assunto principal
da obra em pauta é a história de um jovem, chamado Lúcio, que foi metamorfoseado em
asno, e que só após muitas e grotescas aventuras recuperou a forma humana. No corpo do
romance, no entanto, o autor intercala várias historietas, que nada têm a ver com o enredo
principal. Entre elas, a de maior extensão, pois ocupa nada menos que o fim do livro IV e os
livros V e VI, é o mito de Eros e Psiqué. Em se tratando de mito grego, manteremos os nomes
dos deuses na língua de Eurípides, e só os transcreveremos em latim em caso de absoluta
necessidade.
2. Fama, em grego Φήμη (Phéme), dórico Φάμα (Pháma), do verbo φάναι (phánai), “dizer,
propalar”, é uma divindade que simboliza “a voz pública”. Filha da Terra, era dotada de uma
multiplicidade de olhos e ouvidos, que tudo viam e ouviam, e de outras tantas bocas para o
divulgar. Habitava, nos confins do mundo, um palácio de bronze cheio de orifícios por onde
penetravam e eram ampliadas todas as palavras que se diziam no mundo, por mais baixas
que fossem proferidas.
3. Ganimedes, em grego Γανυμήδης (Ganymédes), talvez de γάνος (gános), “líquido
brilhante” (vinho) e μήδεσθαι (médesthai), “ocupar-se de”, designando, assim, a função
exercida pelo mancebo troiano no Olimpo. Ganimedes era um jovem de grande beleza, filho
do rei Trós e de Calírroe. Guardava o rebanho paterno nas montanhas que cercam a cidade
de Troia, quando foi raptado pela Águia de Zeus, ou pelo próprio deus, com o indispensável
auxílio de Eros. Levado para o Olimpo, foi feito copeiro dos deuses, em substituição a Hebe,
que se casara com Héracles (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete).
4. NEUMANN, Erich. Apuleius: Amor und Psyche, mit einem Kommentar von Erich
Neumann: Ein Beitrag zur seelischen Entwicklung des Weiblichen (Apuleio: Amor e Psiqué,
com um comentário de Erich Neumann: uma contribuição ao desenvolvimento psíquico do
feminino). Zürich: Rascher Verlag, 1952
5. Observe-se, segundo se acentuou no Vol. I, p ..... , que νύμφη (nymphe) “noiva”, em
etimologia popular, é a que se cobre com um véu. Em latim, também já se disse, o verbo casar
se expressa diferentemente para o homem e para a mulher. Em relação àquele, “casar”, é
ducere uxorem, literalmente, “conduzir a mulher (para casa), comandar”, um como que
“apossar-se da mulher”; para esta “casar” é nubere, “cobrir-se com um véu”, velar-se,
recolher-se, ocultar-se.
6. Ibid., p. 62s.
7. I bid., p. 71.
8. Ibid., p. 72.
9. Ibid., p. 73.
10. Erich Neumann observa com muita argúcia que a vida de Psiqué no Éden sombrio de
Eros é muito semelhante ao mito do herói engolido pela baleia-dragão-monstro. É bem
verdade que a prisão de Psiqué nas trevas é superada, de certa forma, pelo prazer, “mas
também esta situação é arquetípica e não excepcional”. Como no percurso da viagem
marítima noturna o herói solar masculino acende uma luz no bojo do monstro e livra-se das
trevas; igualmente Psiqué liberta-se da “noite”, por estar equipada com luz e punhal. No mito
solar masculino, todavia, a ação do herói é violenta, porque sua função principal é matar o
monstro. Mesmo que se trate de aquisição de “conhecimento”, o herói coloca em primeiro
plano a morte e o desmembramento da baleia-dragão-monstro. Na variante feminina, a
necessidade de “saber” permanece vinculada à outra maior, a necessidade de amar. Se bem
que Psiqué seja compelida a ferir, ela continua a manter um nexo ainda mais forte com seu
amante, a quem jamais deixou de conciliar e transformar.
11. BACHOFEN,JohannJakob. Op. cit., p. 140ss.
12. Ibid., p. 77s.
13. Por nível amazônico entenda-se o que expôs Bachofen em sua obra,já por nós citada, Das
Mutterrecht, “O Matriarcado”. Para que se compreenda bem a análise de N eumann, por
vezes apoiada em Bachofen, vamos sintetizar o ângulo da tese bachofiana que nos interessa
no momento.Johann Jakob Bachofen (1815-1887), historiador do direito e filólogo suíço de
língua alemã, na obra supracitada, estuda a Matrilinhagem como força político-social
dentro da ginecocracia, quer dizer, do poder senhorial feminino. A Matrilinhagem, assim
concebida, resulta da maternidade tomada como um princípio, cujas consequências, amor,
fraternidade, igualdade e liberdade, teriam determinado em tempos antigos (o que parece
confirmado, até hoje, em culturas ditas primitivas) a vida de povos ginecocráticos, que se
mantiveram, por longo tempo, fiéis a tais postulados. Após longas pesquisas,
fundamentadas na história e, não raro, na intuição e no mito, o estudioso suíço concluiu que,
em épocas muito remotas, as relaçôes sexuais eram promíscuas e, por isso mesmo, somente
era indiscutível o parentesco matrilinear. Sabia-se quem era a mãe, jamais o pai. Desse
modo, somente à mulher se poderia atribuir a consanguinidade. Ela, unicamente ela, era a
autoridade, a legisladora: governava tanto o grupo familiar como o social. Tratava-se da
ginecocracia, o poder, o governo da mulher. Tal supremacia era expressa não apenas na
esfera da organização social, mas ainda e sobretudo na religião.
A religião olímpica, dos deuses de cima, Zeus, Apolo, Ares, Posídon, Aterrá, fora precedida
por outra, em que deuses, figuras maternas, eram as divindades do Hades, debaixo, ctônias:
Erínias, Deméter, Perséfone.
Supôe Bachofen que, através de um longo processo “histórico”, a constituição ginecocrática
teria passado por três fases: heterismo, de ἑταιρισμός (hetairismós), “vida ou condição de
companheira, de cortesã”, aqui, mais em sentido social, isto é, a fase em que, não existindo
casamento, a mulher era mulher de todos. Eis por que, nesse estágio, o “pai” é chamado
Udeis, “Ninguém”. E era óbvio que assim acontecesse: afinal, a maternidade é natural e a
paternidade mentalmente adquirida. O símbolo do heterismo é a vegetação caótica dos
pântanos. O amazonismo é a segunda etapa da ginecocracia: é o estágio agressivo da mulher,
uma espécie de imperialismo feminino. Amazonismo é palavra formada com base no grego
ἀμαxών (amadzón), “amazona”, que a etimologia popular fazia provir de ἀ (a) não e μαxός
(madzós) seio. Segundo se acreditava, as Amazonas, mulheres guerreiras, que habitavam o
Ponto Euxino, a Cítía ou a Lídia, mutilavam o seio direito para que pudessem manejar com
mais destreza o arco. Só concebiam relaçôes sexuais com adventícios: os filhos homens eram
emasculados e empregados, quando não eliminados, em serviços inferiores. Uma projeção
do amazanismo é o mito das Danaides e das Lemniades. O símbolo é o nomadismo, a
agressividade da natureza. A terceira e última fase é o demetrismo, vocábulo derivado de
Δημήτηρ (Deméter), a Terra-Mãe, a terra cultivada. É a etapa do sedentarismo, da
agricultura organizada, do “casamento”, mas, ao que parece, por livre escolha da mulher,
uma vez que o prestígio social, a família e a religião continuavam sob sua égide. Dado o
poder matrilinear, a dominação matronímica, a designação do país natal era feita pelo
vocábulo mátria, de mater, mãe; pátria, de pater, pai, seria criação da androcracia, quer
dizer, da patrilinhagem.
Modernamente, os denominados três estágios ginecocráticos de Bachofen vêm sendo
interpretados como estratos e fases psíquicas, particularmente a fase urobórica,
caracterizada pela relação de identidade, e não como um fato histórico ou social.
14. Ibid., p. 81.
15. Psiqué repete, “num plano bem diferente”, consoante Neumann, o ato matrilinear das
Amazonas, que sacrificavam sua feminilidade, mutilando, como vimos, um dos seios, não
apenas para combater como um homem em sua luta com o masculino pela independência,
mas também para fortalecer a Grande Deusa da matrilinhagem, Ártemis de Éfeso. Esta se
nos apresenta na arte figurada coberta com um manto cheio de seios, símbolos, se não os
próprios seios, dos seios a ela sacrificados pelas Amazonas.
16. Ibid., p. 85s.
17. Ibid., p. 92.
18. Ibid., p. 93.
19. Consoante o mito, Éaco, o mais piedoso dos homens, era filho de Zeus e da ninfa Egina.
Como a ilha Enone (mais tarde chamada Egina), onde nascera, era inteiramente
despovoada, pediu ao pai divino que transformasse em homens as numerosas formigas ali
existentes. Zeus concordou e o povo nascido da terra, quer dizer, das formigas, que lhe
habitavam as entranhas, recebeu o nome de Mirmidões, em grego Μυρμιδόνες
(Myrmidónes) e formiga se diz μύρμηx (myrmeks), que é, por sinal, do “gênero masculino”,
mas a aproximação etimológica é de cunho popular.
20. Várias vezes Psiqué foi “tentada” pelo suicídio, por sua desvantagem com o mundo
arquetípico, no caso, a natureza dos deuses. Somente com uma crescente integração, com o
desenvolvimento psíquico do self, é que a humana Psiqué poderá resistir a esses ataques.
Como se pode observar, no início de cada trabalho é tomada pelo dsespero e vê o suicídio
como única saída. Consoante Neumann, esse tema se insere num contexto significativo: “Por
uma reviravolta surpreendente, as núpcias de morte, a que Psiqué fora condenada, são
substituídas pelo escuro paraíso de Eros. Mas a consumação dessas núpcias de morte que o
Oráculo de Apolo havia predito (e o Oráculo não pode falhar) é uma exigência arquetípica
de sua relação com Eros”. Até agora, a jovem princesa não havia se conscientizado desse fato,
que só se manifestara em sua tendência ao suicídio. Mas sua viagem ao mundo ctônio
significa que ela deverá, agora, olhar conscientemente a morte de frente. Mas algo há de
mudar: no final de seu desenvolvimento, ela enfrentará a situação mortal como alguém
transformado. Essa “viagem extrema” tomar-se-á possível para Psiqué somente quando,
através das tarefas, ela adquirir o conhecimento que de longe transcenderá seu mero
conhecimento intuitivo inicial. Mercê de sua união com as formigas, o junco e a águia, a
amante de Eros será capaz de adotar a atitude de conhecimento que é representado pela
“Torre que vê longe”.
21. Ibid., p. 95ss.
22. Ibid., p. 101s.
23. Ibid., p. 102.
24. Ibid., p. 103s.
25. Ibid., p. 105s.
26. Ibid., p. 106s.
27. As tarefas nos mitos são normalmente três, mas para Psiqué existe um quarto trabalho
adicional: quatro é o símbolo da totalidade.
28. BACHOFEN,JohannJakob. Versuch über die Grabersymbolik der Alten (Ensaio sobre o
simbolismo dos túmulos na antiguidade). Stuttgart: Krõner Verlag, 1954. Este ensaio (além
de outros, inclusive alguns capítulos de Das Mutterrecht) do mestre suíço foi traduzido para
o inglês por Ralph Manheim com o título de Myth, Religion and Mother Right-Selected
Writings of]]. Bachof en. Princeton: Princeton University Press, 1973, p. Slss. Quanto a Ocnus,
Ocno ou Aucnus, Aucno, como lhe chamou o gramático latino Sérvio Mauro Honorato, é
uma personagem do mito grego.
Ὄκνος (Óknos), que provém de ὄκνος (óknos), “preguiça, indolência” é a personificação da
inércia e do sensualismo. No mito em geral, o velho Ocno é representado trançando uma
corda que um burro devora. Em Eros e Psiqué o ancião arrasta no Hades, num vaivém
ininterrupto, o burro que transporta achas, que vão caindo, à medida que ele se movimenta.
É inútil pegá-las, porque, quando o animal reinicia a caminhada, elas voltam a cair. O
castigo de Ocno, portanto, como o das Danaides, que tentam encher um barril sem fundo, é
um eterno recomeçar. Em nosso mito, Ocno foi condenado a semelhante suplício por sua
indolência e sensualidade, uma vez que tanto o trançar como a corda e o burro, que a
devora, são símbolos fálicos, mas inúteis e falhos, no caso em pauta: o burro é estéril, a acha
cai e a corda é roida. O paralelo com o mito das Danaides é significativo: estas, que mataram
os maridos, despejam água, detentora de grande energia sexual, num barril, num “útero” sem
fundo. Bachofen, no ensaio supracitado, ao decodificar Ocno, limitou-se a fazê-lo em
relação ao ato de trançar e a outros pormenores, sem tocar no mito de Eros e Psiqué. O
estudioso suíço nos apresenta duas personagens diferentes: a primeira é o penitente do
Hades e a segunda, certamente por ter, após a reencarnação, se iniciado nos Mistérios
Órficos, o Ocno redimido. Isto explica as duas gravuras principais, estampando Ocno no
Columbário da Porta Latina, em Roma.
29. Ibid., p. 112ss.
30. PESSOA, Fernando. Poesias. 5. ed. Lisboa: Edições Ática, 1958. Este poema me foi
lembrado pelo colega e amigo, Prof. Luís Filipe Ribeiro, a quem agradecemos.
APÊNDICE
Deuses olímpicos e arquétipos
masculinos
No Vol. III de nossa Mitologia grega, o último capítulo foi
consagrado a “uma heroína forte”, Clitemnestra. A poucas páginas do
fecho desse mito indubitavelmente trágico e doloroso, resolvemos
fazer uma espécie de apêndice, estampando as características básicas
de todas as mulheres, pois os arquétipos do sexo feminino projetam
“a existência de cada uma das grandes deusas”. Para individualizá-los
melhor, fizemos uma inversão: primeiro levantamos os arquétipos
das deusas e, em seguida, fizemos que os mesmos retornassem às suas
legítimas detentoras, as mulheres. De outro lado, a fim de que os dois
quadros finais constantes do Volume supracitado, em que
sintetizamos as atribuições das deusas, sua natureza e respectiva
junção arquetípica, ficassem bem claros e inteligíveis, esboçamos, de
saída, um pequeno retrato de cada uma das olímpicas.
Todo esse trabalho, que, na realidade, se tornou bem árduo, foi
inspirado não apenas no estudo das divindades presentes nos
Volumes I e II de Mitologia grega, mas sobretudo teve por fonte e
ponto de Apolo a obra muito importante de Jean Shinoda Bolen,
Goddesses in Everywoman. New York: Harper & Row, 1984.
Acontece, todavia, que meus leitores, particularmente “as
leitoras”, sempre me cobraram os arquétipos masculinos, que
projetaram os deuses prepotentes (illo tempore!) da Hélade. Alguns
“repressores” perguntavam com um sorriso, por vezes malicioso: “e
nós, os homens, não projetamos nada?” Parecia-me estar na Grécia
dos fins do séc. VI e inícios do V a.C., quando os espectadores
segundo uma versão corrente, sentindo-se burlados com a ausência
do deus do teatro na tragédia, já então apolinizada, reclamaram com
insistência: ούδὲν πρὸς τὸν Διόνυσιον (udèn prós tòn Diónyson),
“isto”, quer dizer, a tragédia contaminada pela doutrina do
morigerado deus de Delfos “nada tem a ver com Dioniso”. Os poetas
responderam aos apelos do público, introduzindo o Drama Satírico
em que se reviviam as gestas e aventuras grotescas do filho de Zeus e
Sêmele, representado pelos eternos companheiros do deus, os Sátiros
e o velho beberrão Sileno, como se pode ver no Ciclopede Eurípides,
por nós traduzido e comentado.
Aguardei pacientemente que as circunstâncias me permitissem
rever o Vol. II, como já o fizéramos com o I, e ampliá-lo de uma vez
por todas com as tão esperadas projeções masculinas...
Esperávamos igualmente o anunciado livro da supracitada
psiquiatra norte-americana, que iria complementar os arquétipos
femininos. Afinal, em 1989, foi editado Gods in Everyman. San
Francisco: Harper & Row, 1989, com as funções arquetípicas de todos
os homens...
Curioso é o relato de Shinoda Bolen no Prefácio: “Men who have
heard me lecture on the goddesses have repeatedly asked, What
about us?” Era o “isto nada tem a ver com Dioniso”... “E nós os
homens”, diziam os leitores de Shinoda Bolen, “não somos
retratados?” Pois bem, para agradar a gregos e troianos, vamos
procurar, com base na obra citada e em nossos três Volumes de
Mitologia grega, encaixar cada homem em um ou mais deuses da
Hélade. Seguiremos, para tanto, método idêntico ao empregado no
Volume III: primeiro um breve levantamento dos caracteres dos oito
grandes olímpicos e em seguida os quadros em que se resumem suas
atribuições, natureza e respectivas funções arquetípicas.
Jean Shinoda Bolen divide os oito grandes imortais em dois
grupos: os deuses senhoriais, reis de cada um dos três níveis, Zeus,
Posídon, Hades e os cinco rebentos de Zeus: Apolo, Ares, Hermes,
Hefesto e Dioniso, obedecendo esta ordem a um critério meu, muito
pessoal.
Zeus é o deus indo-europeu “do céu e da luz”. Foi salvo pela mãe
Reia de ser engolido, como seus irmãos, pelo pai Crono. Tendo-se
aquele aconselhado com Métis, a Prudência, esta lhe forneceu uma
droga maravilhosa, graças à qual o pai se viu coagido a vomitar os
filhos que havia devorado. Apoiando-se em Hades e Posídon, seus
irmãos, devolvidos à luz por Crono, Zeus, para se apossar do governo
do mundo, iniciou um duro combate contra ele e seus tios, os Titãs.
A luta gigantesca durou dez anos. Por fim, venceu o futuro
grande soberano do Olimpo. Crono e os Titãs foram encarcerados no
Tártaro. Para obter tão retumbante vitória, o filho de Reia, seguindo
as sugestões de Geia, libertou do Tártaro os Ciclopes e os
Hecatonquiros, que lá haviam sido lançados por Crono. Agradecidos,
os Ciclopes deram a Zeus o raio e o trovão; a Hades ou Plutão, um
capacete mágico, que tornava invisível a quem o usasse e a Posídon
presentearam-no com o tridente, capaz de abalar a terra e o mar.
Terminada a refrega, os três grandes imortais receberam por
sorteio seus respectivos domínios: Zeus obteve o céu; Posídon, o mar;
Hades ou Plutão, o mundo subterrâneo, igualmente denominado
Hades, ficando, porém, Zeus com a supremacia no universo.
Geia, todavia, irritada com os Olímpicos, por lhe terem
aprisionado no Tártaro os Titãs, seus filhos, excitou contra os
vencedores primeiro os Gigantes e, em seguida, o monstruoso Tifão.
Derrotados os primeiros com o auxílio dos irmãos, Zeus, sozinho,
enfrentou corajosamente a Tifão e o sepultou sob o monte Etna.
Tendo esmagado o último inimigo, Zeus estava preparado para pôr
cobro às violentas sucessões das dinastias divinas e assumir, em
definitivo, o governo do universo.
O triunfo do filho caçula de Crono patenteia a vitória da ordem
sobre o Caos, das divindades da luz sobre as potências ctônias e
primordiais.
Consolidado o poder, o deus da claridade celebrou seu
hieròsgámos, suas núpcias sagradas, com Hera, a protetora, desde
então, do casamento e da família. Além dessa união legítima,
todavia, o senhor do Olimpo teve inúmeras ligações com imortais e
simples mortais. Para não estender em demasia o catálogo de tantos
amores extraconjugais, bastaria citar as uniões com as deusas Métis,
Têmis, Eurínome, Deméter, Mnemósina, Leto, Maia e com as heroínas
Sêmele, Alcmena, Dânae, Europa, Io, Leda et aliis...
É necessário, no entanto, levar em conta que Zeus é um deus da
fertilidade: é ómbrios e hyétios, quer dizer, é chuvoso. Trata-se de
uma divindade dos fenômenos atmosféricos, por isso que do deus do
céu depende a fecundidade da terra. De outro lado, é mister não
esquecer que a significação profunda de tantas ligações e aventuras
amorosas obedece antes do mais a um critério religioso (a
fertilização da terra por um deus celeste, pois afinal todas as deusas e
mulheres são projeções da Terra-Mãe), bem como a um intento
político: ligando-se a deusas e heroínas pré-helênicas, o deus
consuma a unificação e o sincretismo que hão de fazer da religião
grega um calidoscópio de crenças, cujo chefe e guardião é o próprio
Zeus.
Observa-se, todavia, em determinadas atitudes do poderoso pai
dos deuses e dos homens o que se convencionou chamar de
Complexo de Zeus. Trata-se de uma tendência a monopolizar a
autoridade e a destruir nos outros toda e qualquer manifestação de
autonomia, segundo se patenteia na Ilíada, VIII, 19-27. O temor de
que sua autocracia, sua dignidade e seus direitos não fossem
devidamente acatados e respeitados tornaram Zeus extremamente
sensível e sujeito a explosões coléricas, não raro calculadas.
Descobrem-se nesses complexos as raízes de um manifesto
sentimento de inferioridade intelectual e moral, com evidente
necessidade de uma compensação social, através de exibições de
autoritarismo.
Posídon, antigo deus-cavalo indo-europeu, que significaria,
etimologicamente, “o mestre, o senhor, o esposo da terra”, reinou
primeiro sobre as águas do mundo ctônio, mas, após a vitória de Zeus
sobre os Titãs e a divisão do governo do mundo entre os três grandes
imortais do Olimpo, passou a ser o senhor do mar. Desde a Ilíada,
Posídon é apresentado como o rei dos oceanos. Com seu tridente o
deus não apenas domina ou encrespa as ondas, provoca borrascas,
sacode os rochedos, mas também faz brotar nascentes, o que dá a
impressão de que, exceto os rios, ele tem o governo das águas
correntes, fontes, nascentes e ribeiros.
Embora tenha lutado valentemente contra os Titãs, o soberano
dos mares nem sempre foi muito dócil à superioridade e autoridade
de seu irmão Zeus. Tal independência explica o ter participado com
Hera e Atená de uma conspiração para destronar o senhor do
Olimpo, o que para sempre estabeleceu entre os dois irmãos um certo
distanciamento e desconfiança mútua. Deus de grande atividade e
intuição, era, no entanto, de grande instabilidade emocional.
Facilmente irritável, convertia-se em inimigo implacável e cruel de
seus ofensores, como o foi de Ulisses, na Odisseia. Litigante e
autossuficiente, disputou com os outros imortais a eponímia e a
proteção de diversas cidades gregas. Sempre vencido, vingava-se
inapelavelmente. Foi senhor de muitos amores, todos fecundos. Mas,
enquanto os filhos de Zeus eram heróis benfeitores da humanidade,
os de Posídon, em sua maioria, se apresentam como gigantes
terríveis, disformes e violentos, como o Ciclope Polifemo, o perverso
Crisaor, os Alóadas, Oto e Efialtes, os salteadores Cércion e Cirão, o
antropófago Lamo e tantos outros.
Hades, cuja etimologia se desconhece, mas que o povo teimava
em aproximar de awidés, “invisível, tenebroso”, é irmão de Zeus e
Posídon, como já se mencionou. Herdeiro do reino dos mortos,
localizado “no seio das trevas brumosas”, o nome Hades, “o invisível”
em etimologia popular, segundo se frisou, raramente se proferia: o
deus era tão temido, que não o nomeavam por medo de excitar-lhe a
cólera. Normalmente era invocado por meio de eufemismos, sendo o
mais comum Plutão, em grego Plúton, “o rico”, que, com um sufixo
inédito, procede de plûtos, “riqueza, abundância” ou do nome do
próprio deus dispensador da “abundância de bens”, Plûtos, Pluto,
confundido depois com Hades.
Plutão é, pois, “o rico” com referência não apenas a seus hóspedes
inumeráveis, mas também às riquezas inexauríveis das entranhas da
terra, constituindo--se estas na fonte profunda de toda produção
vegetal e mineral. Isto explica o Corno da Abundância com que é
frequentemente representado. Pródigo, beneficia a todos, fazendo
germinar as sementes que se enterram no seio da terra.
Tranquilo em sua majestade de “deus subterrâneo”, permanece
confinado no sombrio Hades. Sensível, introvertido, mas violento e
inflexível, comanda o mundo dos mortos como um “Zeus
subterrâneo”.
Não encontrando com quem casar-se, raptou Core-Perséfone,
filha de Deméter, a deusa da vegetação. Não teve filhos, porque o
mundo das trevas é estéril.
Apolo, sem etimologia definida até o momento, é um deus
tipicamente oriental, mas que, com o tempo, soube angariar
características helênicas muito acentuadas. Filho de Zeus e de Leto, o
futuro detentor do Oráculo de Delfos, o “exegeta nacional”, como lhe
chamava Platão, é, na realidade, resultante de um vasto sincretismo e
de uma bem elaborada depuração mítica. É mister levar em conta
uma longa evolução da cultura e do espírito grego e mais
particularmente da interpretação dos mitos, para se reconhecer nele,
bem mais tarde, um deus solar, um deus da luz, de sorte que seu arco
e suas flechas pudessem ser comparados ao sol e a seus raios. No
primeiro canto da llíada, apresenta-se como um deus vingador, de
flechas mortíferas. Violento e implacável, o Apolo pós-homérico vai
progressivamente reunindo elementos diversos de origem nórdica,
asiática, egeia e sobretudo helênica e, sob este último aspecto,
conseguiu suplantar por completo a Hélio, o “Sol” propriamente dito.
Fundindo numa só pessoa e em seu mito influências e funções
diversificadas, o senhor de Delfos tornou-se uma figura mítica
deveras heterogênea. São tantos seus atributos, que se tem a
impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades,
sintetizando num só deus um vasto complexo de oposições. Tal fato
possivelmente explica como o futuro deus da mântica substituiu,
por vezes, de maneira brutal, divindades como Píton, que guardava
um antigo Oráculo de Geia no monte Parnaso. O novo deus, todavia,
iluminado pelo espírito grego, conseguiu, se não superar, ao menos
harmonizar tantas polaridades, canalizando-as para um ideal de
cultura e sabedoria. Realizador do equilíbrio e da harmonia dos
desejos, não visava a suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las
no sentido de uma espiritualização progressiva, mercê do
desenvolvimento da consciência. Seu lema é gnôthi s’autón,
“conhece-te a ti mesmo”, freio com que “o exegeta nacional”
mantinha, das alturas do Parnaso, a unidade religiosa da Hélade.
Alto, bonito, majestoso, altivo como os eupátridas, o deus da
música, da poesia e da mântica jamais conseguiu encontrar-se ou
encontrar segurança em suas múltiplas relações amorosas, tendo
permanecido solteiro, apesar dos inúmeros filhos que deixou.
Ares certamente está relacionado com o grego aré, “desgraça,
infortúnio”, pois, desde o panteão homérico, apresenta-se como deus
da guerra e da violência. Filho de Zeus e Hera, Ares era dotado de
coragem cega e brutal; é o espírito da batalha que se rejubila com a
carnificina e o sangue. O próprio pai o chama de o mais odioso de
todos os imortais que habitam o Olimpo (Il., V, 830ss.). Enquanto
Apolo é a reflexão, a prudência, Ares se notabiliza pelos músculos e
pela força física.
Na Guerra de Troia colocou-se ao lado dos troianos, talvez para
agradar Afrodite, sua amante, mas tal opção não importa muito, uma
vez que o deus não está preocupado com a causa que defende. Seu
prazer, seja de que lado combata, é participar da violência e do
sangue.
De estatura gigantesca e “de físico perfeito”, como lhe chama o
aleijado e complexado Hefesto, o deus da guerra não se casou.
Preferiu, já que era apenas “físico”, amar uma pletora de mortais e
deusas imortais. Seus filhos, como Deîmos, o Terror, e Phóbos, o Medo,
Cicno, Diomedes Trácio, Licáon, Tereu, foram cruéis e sanguinários.
A mais séria de suas aventuras amorosas foi a que teve com Afrodite,
casada, no momento, com Hefesto. Este surpreendeu o casal de
amantes em flagrante adultério e o envolveu numa rede invisível.
Uma vez libertado, Ares fugiu para a Trácia, país selvagem, de clima
rude, percorrido frequentemente por povos sanguinários.
Pública e solenemente desprezado pelos próprios pais, era
ridicularizado por seus pares e até pelos poetas, que se regozijavam
em chamá-lo, entre outros epítetos deprimentes, de bebedor de
sangue, flagelo dos homens, deus das lágrimas.
Ares jamais se adaptou ao espírito grego (exceto talvez em
Esparta), convertendo-se num antípoda do equilíbrio apolíneo.
Hermes, em grego Hermês, que também significa “herma, cipo,
pilastra, estela com uma cabeça de Hermes”, não possui etimologia
confiável. Filho de Zeus e Maia, a mais jovem das Plêiades, nasceu
num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa gruta do
monte Cilene. Apesar de enfaixado e colocado no vão de um
salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade e da imortalidade,
o menino revelou-se de uma precocidade extraordinária. No mesmo
dia em que veio à luz, desligou-se das faixas, demonstração clara de
seu poder de atar e desatar, viajou até a Tessália, onde furtou uma
parte do rebanho de Admeto, guardado por Apolo. De retorno a
Cilene, encontrou uma tartaruga à entrada da caverna; matou-a,
arrancando-lhe a carapaça e, com as tripas de uma novilha
sacrificada, fabricou a primeira lira.
Apolo, o deus mântico por excelência, descobriu o paradeiro do
larápio, mas, encantado com os sons que o menino arrancava da lira,
trocou o rebanho furtado pelo instrumento de som divino. Logo
depois, com seu poder inesgotável de criatividade, Hermes inventou
a syrinks, “flauta de Pã”. Apolo desejou também o novo instrumento
e ofereceu em troca o cajado de ouro com que apascentava o rebanho
de Admeto. O filho de Maia aceitou a permuta, mas, habilíssimo
negociador, pediu ainda lições de mântica, de adivinhação. Apolo
concordou e, desse modo, o caduceu de ouro passou a figurar entre os
atributos principais do astuto Hermes, que, de resto, ainda
aperfeiçoou a arte divinatória, auxiliando a leitura do futuro por
meio de pequenos seixos.
Deus agrário, de início, protetor dos pastores nômades e dos
rebanhos, os gregos aumentaram-lhe grandemente as funções, e
Hermes, por ter furtado o rebanho de Apolo, tornou-se o símbolo de
tudo quanto implica astúcia, ardil e embuste: é um autêntico
trickster, um trapaceiro, velhaco, amigo e protetor dos comerciantes.
Ampliando-lhe o mito, os escritores e poetas lhe dignificaram as
prerrogativas. Na Ilíada, XXIV, 334ss., vendo o alquebrado Príamo
ser conduzido pelo filho de Maia através do acampamento aqueu,
Zeus exclama:
Hermes, tua mais agradável tarefa é ser
o companheiro do homem; ouves a quem estimas.
Neste sentido, o núncio dos imortais é o dispensador de bens. Se
qualquer oportunidade é uma dádiva do deus, é porque ele gosta de
misturar-se aos homens, tornando-se, destarte, juntamente com
Dioniso, o menos olímpico dos deuses.
Protetor dos viajantes, tornou-se o guardião das estradas. E se não
se perdia na noite, era porque, dominando as trevas, conhecia
perfeitamente o roteiro. Circulando livremente nos três níveis
(olímpico, telúrico e ctônio), era o mensageiro predileto de Zeus e dos
soberanos do mundo de baixo, Plutão e Perséfone. Deus, por isso
mesmo, psicopompo, isto é, um condutor de almas de um nível para
outro. Quem possui tão grande privilégio, não opera tão somente
com a astúcia e a inteligência, mas antes com a gnose e a magia. Tal
fato elucida ser ele o inventor das práticas mágicas, o conhecedor de
plantas apotropaicas, o perito consumado em alquimia e o mais
eloquente dos imortais. Com o epíteto de Hermes Trismegisto, “o três
vezes máximo”, sobreviveu através do hermetismo e da alquimia, até
o séc. XVII.
Hermes não se casou, mas teve muitos amores e vários filhos.
Hefesto, segundo alguns etimólogos, significaria “o fogo nascido
nas águas celestes” (V. Dicionário mítico-etimológico, verbete).
Filho de Zeus e de Hera, consoante Homero (Il., I, 573ss.), ou vindo
ao mundo sem união de amor, conforme Hesíodo (Teog., 927), o deus
coxo e senhor das forjas teve um nascimento complicado. Hera,
continua Hesíodo, por cólera e desafio lançado ao esposo (Teog., 928),
gerou sozinha o filho. O ódio da deusa e o desafio ao esposo se
deveram ao nascimento de Atená, que saiu da cabeça de Zeus, sem o
concurso da esposa.
Para o defeito físico do deus das forjas há igualmente duas
versões. Hera discutia violentamente com o marido a propósito de
Héracles e Hefesto ousou tomar a defesa da mãe. Zeus, enfurecido,
agarrou-o por um dos pés e lançou-o do alto do Olimpo. O deus rolou
pelo espaço o dia todo e, à tarde, caiu na ilha de Lemnos. Com a
queda ficou aleijado e manquitolava de ambas as pernas, o que lhe
trouxe muitos problemas de ordem psíquica. Na segunda versão,
Hefesto já teria nascido coxo e deformado. Humilhada com a
fealdade e defeito físico do filho, Hera o atirou dos píncaros do
Olimpo. O infeliz, após rolar pelo vazio um dia inteiro, caiu no mar.
Recolhido por Tétis e Eurínome, passou nove anos numa gruta
submarina, o que mostra o longo período iniciático do deus coxo. Nas
profundezas do mar, Hefesto fez sua longa aprendizagem:
trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se “o
mais engenhoso de todos os filhos do céu”. Em sua longa carreira de
ferreiro e ourives divino, o artista multiplicou suas criações, forjando
e confeccionando os mais preciosos, belos e surpreendentes objetos
de arte que já se viram. A obra-prima do coxo genial, porém, foi “a
criação” da primeira mulher. Por solicitação de Zeus, modelou em
argila uma mulher ideal, fascinante, irresistível, Pandora. Não a
moldou apenas, foi além do artista: animou-a com um sopro divino,
deu-lhe alma, vida.
Fisicamente an odd number, um mutilado, só teve por mulheres a
grandes belezas. Já na Ilíada, XVIII, 382, está unido a Cáris, a Graça
por excelência; Hesíodo, Teog., 945s., lhe atribui Aglaia, a mais jovem
das Cárites, mas Zeus, para “compensar tudo”, deu-lhe em casamento
a própria beleza, a deusa do amor, Afrodite. Essa ânsia de beleza por
parte de Hefesto traduziria, segundo alguns intérpretes, menos o
sentimento de um doloroso contraste físico do que a ideia profunda
que o artista possuía da suprema beleza. Parece que essa visão
preenche o ângulo estético do problema, mas, ao que tudo indica, há
uma causa mais recôndita e séria. É bem possível que se trate da
busca de uma complementaridade: o coxo e deformado tenta
completar-se na beleza de Afrodite e esta, apenas encanto físico,
procura a genialidade do artista. Cada um está buscando no outro
aquilo que lhe falta, o que, em casamento, pode ser um forte índice de
fracasso. A sizígia Hefesto-Afrodite foi um desastre. A deusa do amor
encantou-se por Ares. Quando o ourives divino surpreendeu os
amantes em flagrante adultério, sua reação, após prender os dois
numa rede invisível, é dura e amarga, como atesta a Odisseia, VIII,
308-310:
– Afrodite, filha de Zeus, por ser eu coxo, me desonra
continuamente e prefere o pernicioso Ares, que é belo e tem membros sãos. Eu,
porém, sou aleijado...
Aí está o magno problema pessoal de Hefesto, que procura suprir
sua deficiência física não apenas com sua extrema habilidade
artística, mas também com excessiva serventia, procurando sempre
agradar a todos. No primeiro canto da Ilíada é alvo de chacota por
parte de seus irmãos imortais. Em meio às gargalhadas de seus pares,
o deus claudica atarefado pelos salões do Olimpo, sempre na ânsia de
servir. É o mais prestativo e humilde dos deuses gregos e, certamente
por isso mesmo, o truão da corte celeste.
Dioniso, em grego Diónysos, talvez seja um composto provindo do
trácio com o sentido de “o filho do céu”, o que estaria bem de acordo
com o nascimento difícil e dramático do deus. A nobre tebana
Sêmele, amada por Zeus, ficou grávida de Dioniso. A princesa, por
instigação de Hera, que se disfarçara em escrava, pediu ao amante
divino que se lhe apresentasse em todo o seu esplendor. O deus
relutou, mas como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais
contrariar-lhe os desejos, manifestou-se-lhe epifanicamente com
seus raios e trovões. O palácio de Sêmele se incendiou e esta morreu
carbonizada. Zeus recolheu apressadamente do ventre da amante o
fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se
completasse a gestação normal. Tal gesto dramático fez de Dioniso
um deus, porque se nascesse de Sêmele seria apenas um herói. A coxa
de Zeus serviu-lhe de segundo ventre. De qualquer forma, esse deus
nascido duas vezes foi uma divindade muito poderosa, talvez porque
compartilhas-se do úmido e do ígneo. Com efeito, participante, por
natureza, do elemento úmido, o filho de Zeus manteve íntima
convivência com o elemento ígneo, como é invocado por Sófocles no
Édipo Rei, 209-215. Nascido o deus, começou a peregrinação, para se
evitar nova cilada da ciumenta deusa Hera, que jamais deixou em
paz as amantes e os filhos adulterinos do esposo. Da corte de Átamas,
o pequeno Dioniso, sob a forma de bode, foi levado por Hermes para
o monte Nisa, onde os Sátiros e as Ninfas passaram a cuidar do
futuro deus do vinho. Pois bem, no monte Nisa, em sombria gruta,
cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se entrelaçavam
galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva,
vivia feliz o filho de Sêmele. Este, certa vez, colheu alguns dos
cachos, espremeu-lhes as frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco
em companhia de sua corte. Todos ficaram conhecendo o novo
néctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros,
Ninfas e o próprio Dioniso começaram a dançar vertiginosamente ao
som dos címbalos, tendo o deus por centro. Embriagados do delírio
báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos.
Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se a cada ano,
em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os
participantes se embriagavam e começavam a dançar
freneticamente, à luz dos archotes e ao som dos címbalos, até cair
desfalecidos. Esse desfalecimento se devia não só ao novo néctar,
mas ao fato de os devotos de Baco (epíteto do deus) se embriagarem
de êxtase e de entusiasmo. Ékstasis, “êxtase”, é um sair de si interno,
uma espécie de transformação, uma catarse; enthusiasmós,
“entusiasmo”, é “deus dentro de nós”, é a posse, o mergulho de Dioniso
naqueles que se prepararam pelo êxtase para recebê-lo. É a
comunhão com a imortalidade. Essa transformação, essa
metamórphosis operada nos adoradores do deus levava-os a romper
inexoravelmente com todos os interditos de ordem política, social e
“religiosa” da pólis. A manía, “mania” a loucura sagrada, a possessão
divina e as órguia, a “orgia”, a posse do divino na celebração dos
mistérios, a agitação incontrolável, que colocavam o homem em
comunhão com o deus, levavam-no à descoberta de uma libertação
total, à conquista de uma liberdade que os demais seres humanos não
podiam experimentar. Evidentemente essa superação da condição
humana e essa liberdade adquiridas, através do êxtase e do
entusiasmo, constituíam uma libertação de interditos, de tabus, de
regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social. Daí a
antinomia Dioniso-Apolo: num, o desvincular-se de todos os tabus;
no outro, o comedimento, a moderação, a ética rigorosa cifradas no
“conhece-te a ti mesmo” e no rigoroso “nada em demasia”.
Caracteres tão díspares explicam por que Dioniso levou tantos
séculos para entrar na pólis de Atenas. Um dia penetrou, deixou seu
culto e viajou... Retornaria no ano seguinte por ocasião das
Antestérias, da festa do vinho novo. O deus do êxtase e do
entusiasmo não tem propriamente um lar fixo. Está sempre a
peregrinar e chega quando não é esperado, normalmente vindo do
mar, do elemento úmido. Retorna para cantar, dançar, liberar,
“desreprimir”!
De qualquer forma, o elemento básico da religião dionisíaca é a
transformação. O homem liberado, arrebatado pelo deus,
transportado para seu reino por meio do êxtase e do entusiasmo, é
diferente do que era no mundo quotidiano. A metamórphosis, a
transformação, foi a escada que permitiu ao homem penetrar no
mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo,
aceitaram de bom grado “alienar-se” na esperança de uma
transfiguração.
Dioniso não se casou e nem poderia fazê-lo: havia contraído
núpcias indissolúveis com a libertação de todos os mortais. Deixou,
no entanto, vários filhos e amou particularmente a Ariadne, a
princesa da ilha de Creta, a Afrodite minoica.
Eis aí, em traços muito gerais, um esboço e um retrato dos oito
grandes deuses olímpicos, projetados pelos homens. Que cada um,
agora, procure nos dois quadros que se seguem, elaborados pela Drª
Jean Shinoda Bolen (em que introduziremos algumas alterações), o
deus ou os deuses que projetou e através dele(s) esboce seu
autorretrato interno.
Certos homens, bem mais que a mulher, são muito “cautelosos” e
temem revelar-se. Arranquem, ao menos uma vez, o prósopon, a
persona, “a máscara”, como lhe chamavam respectivamente os
gregos e latinos e tenham a coragem de reflectere, “de dobrar-se e
olhar-se por dentro”. Lembremo-nos de que a máscara cobre muito
pouco e desnuda o restante...
I – QUADRO GERAL DOS OITO DEUSES OLÍMPICOS
Deuses e suas Natureza
atribuições
Função arquetípica
Outras
características
importantes
Zeus: deus do Deus
céu (Olimpo). patrilinear
Senhor dos raios
e
trovões.
Domínio
da
vontade e do
arbítrio.
Rei,
senhor
do Legítima esposa:
Olimpo, pai do céu. Hera. Inúmeras
Executivo.
amantes.
Conquistador. Hábil
em fazer alianças.
Galanteador
e
amante contumaz.
Henrique VIII
(Inglaterra),
Luiz
XIV
(França),
Napoleão
Bonaparte,
Getúlio
Vargas
Posídon: deus do Deus
mar,
das patrilinear
tempestades e
terremotos.
Domínio
da
emoção e do
instinto.
Rei,
senhor
dos
mares, pai da terra.
Domínio
das
profundidades, das
emoções primordiais.
Instintivo, emotivo.
Inimigo implacável.
Eugene
O’Neill,
Beethoven,
Rubem Braga
Hades: deus do Deus
mundo
patrilinear
subterrâneo.
Domínio
das
almas
e
do
inconsciente.
Rei recluso. Domínio Legítima esposa: P.
Vergílio
das
imagens, Perséfone.
Marão, Dante,
fantasias e sombras.
C.G.
Jung,
Machado de
Assis
Apolo: deus do Filho
Determinador
Legítima esposa:
Anfitrite.
Algumas
amantes. Vários
filhos, em sua
maioria
violentos
ou
monstruosos.
bem- Solteiro.
Alguns
representantes
típicos
Ésquilo,
sol, da música, protegido de sucedido de metas a
da mântica.
Zeus
alcançar. Legalista,
conservador.
Excelente irmão.
Fracassos
no Píndaro,
amor.
Vários Juscelino
filhos
com Kubitschek,
amantes.
George Bush
Ares: deus da Filho
guerra.
rejeitado
Impulsivo, violento,
apaixonado,
agressivo e sujeito a
reações
físicas.
Amante arrebatado.
Solteiro. Amante
ardente
de
Afrodite. Vários
filhos, violentos
como o pai.
Robert
Kennedy, John
McEnroe, João
Saldanha
Hermes:
deus
mensageiro dos
imortais,
psicopompo,
companheiro do
homem.
Filho
protegido
e
estimado por
seus pares
Andarilho,
grande Solteiro. Alguns
capacidade
de filhos
com
comunicação.
várias amantes.
Excelente
guia.
Trabalhador,
diplomata;
sumamente esperto e
trapaceiro, donde
“sociopata”.
Marco
Polo,
Barão do Rio
Branco, Von
Ribbentrop,
Tancredo
Neves
Hefesto:
deus
das
forjas.
Grande ourives.
Dioniso: deus do
vinho, do êxtase
e do entusiasmo.
Filho
Artista consumado.
rejeitado
e Um gênio criativo.
ridicularizado Trabalha na solidão.
por seus pares
Dioniso: deus do Filho
vinho, do êxtase protegido
e do entusiasmo. com desvelo
Dinâmico, libertário,
sem
repressões,
amante
entusiasta,
místico.
Casado
com
Afrodite e por
ela
traído.
Fracassado no
amor.
Michelangelo,
James Joyce,
Aleijadinho,
Carlos
Drummond de
Andrade
Solteiro.
Algumas
amantes. Grande
amor: Ariadne.
Eurípides,
André Gide,
Fernando
Pessoa,
Affonso
Romano
de
Sant’Anna
II – TABELA DOS OITO DEUSES SOB ENFOQUE
JUNGUIANO
Deuses
Visão
junguiana
psicológica Dificuldades
psicológicas
Pontos de apoio
Zeus
Normalmente
extrovertido.
Definitivamente racional.
Intuitivo e sensível.
Posídon Ora
introvertido,
extrovertido.
Definitivamente
sentimental.
Autoritário. Cruel, por Hábil no uso do poder.
vezes. Inflação.
Resoluto.
Imaturidade
Prolífico.
emocional.
ora Emotividade
Leal.
destrutiva.
Fácil
acesso
Instabilidade
sentimentos.
emocional. Excessiva
autoestima.
Hades
Definitivamente
introvertido.
Definitivamente sensível.
Vive alheio ao tempo.
Apolo
Normalmente
Arrogância.
extrovertido.
Intuitivo. Distanciamento
Reflexivo. Visão do futuro. emocional.
Age
distância.
Ares
Definitivamente
extrovertido.
Definitivamente
sentimento e sensação.
Vive o presente.
Hermes Normalmente
extrovertido.
Definitivamente intuitivo.
Geralmente meditativo.
Inadequação
social. Mundo
de
Distorção da realidade. interiores.
Depressão,
Baixa Desprendido.
autoestima.
aos
imagens
Rico.
Sabe apreciar a claridade e
a forma. Hábil em atingir
à metas.
Reação
emocional. Integração psicossomática.
Abusivo. Intempestivo. Expressividade emocional.
Bode expiatório. Baixa
autoestima.
Impulsivo.
Visão do presente,
passado
e
futuro.
“Adulescens aeternus”.
Hefesto Definitivamente
Inadequação
introvertido.
Bufão.
Definitivamente
autoestima.
sentimento e sensação.
Busca do presente.
Capacidade
para
compreender significantes
e
significados.
Amigo.
Comunicador de ideias.
social. Criatividade,
Baixa engenhosidade. Habilidade
manual. Capacidade para
ver e criar o belo.
Dioniso Ora
extrovertido,
ora Distorção
na Apreciação da experiência
introvertido.
autopercepção. Abuso sensorial.
Intensidade
Definitivamente sensação. da essência.
apaixonada.
Amor
à
Vive o presente imediato.
natureza.
Complementação bibliográfica do
Volume I
ARAÚJO, Rosangela N. de. Roteiro trágico de um herói. Rio de
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JUNITO DE SOUZA BRANDÃO, falecido em 15/05/96, aos 71
anos, foi professor titular de Língua e Literatura Grega e de
Língua e Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa
Úrsula e na Universidade Gama Filho. Era Licenciado em Letras
Clássicas, tinha doutorado e livre-docência em Literatura Grega.
Ministrava, além de suas aulas normais nas universidades
supracitadas, cursos regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e
principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na Sociedade
Brasileira de Psicologia Analítica da mesma cidade.
Mapa do Mundo Helênico
© 1986, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
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Diagramação: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Juliana Teresa Hannickel Conversão para eBook: SCALT
Soluções Editoriais ISBN 9786557131121
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Brandão, Junito de Souza, 1926-1995.
Mitologia grega, vol. III / Junito de Souza Brandão. 21. ed. - Petrópolis, RJ : Vozes,
2015.
Bibliografia.
6• reimpressão, 2021.
1. Mitologia grega - História I. Título.
07-6314
Índices para catálogo
CDD-292.0809
sistemático:
1. Mitologia grega : História 292.0809
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda.
SUMÁRIO
Prefácio
Ligeira introdução
I. Introdução ao Mito dos Heróis
II. Perseu e Medusa
III. Héracles e os Doze Trabalhos
IV. O Mito de Teseu
V. Jasão: o Mito dos Argonautas
VI. Belerofonte e a luta contra Quimera
VII. Faetonte: uma ascensão perigosa
VIII. Os Labdácidas: o Mito de Édipo
IX. Ulisses: o Mito do Retorno
X. Uma heroína forte: Clitemnestra
Complementação bibliográfica dos volumes I e II
PREFÁCIO
O convite do professor Junito de Souza Brandão, para que eu
escrevesse o prefácio deste terceiro e último volume do seu tratado
de “Mitologia grega”, é para mim motivo de intensa satisfação.
Faltava, em língua portuguesa, uma obra séria e, ao mesmo tempo,
didática como esta sobre tema de tão grande relevância.
O terceiro volume nos fala dos mitos dos heróis. Aprendemos com
a Psicologia Analítica de C.G. Jung, através do conceito de arquétipo,
a importância dos mitos para a estruturação e desenvolvimento de
nossa consciência individual e coletiva.
A presença e a compreensão do dinamismo do herói é de
primordial importância na evolução e estruturação de nossa
personalidade. Sempre que algo novo e transformador vai ser
implantado em nossa consciência pessoal e coletiva algum
dinamismo heroico deverá estar ativado.
A tarefa de melhor conhecer as possibilidades da consciência
individual e coletiva do ser humano é bastante árdua. Neste sentido,
a feliz descrição que Junito Brandão faz das múltiplas facetas, bem
como dos variados comportamentos dos numerosos heróis da
riquíssima mitologia grega, muito pode nos ajudar.
O herói é aquele que se exaure na sua missão, vive para a sua causa.
Como seres que não são deuses nem humanos, são intermediários
entre o mundo da consciência e o inconsciente. São “daímones”, são o
traço-de-união entre o mundo dos homens e o mundo divino.
Símbolos fortíssimos de transformação são sempre dotados de
forte carga emocional, de grande potencial transformador, trazendo
vida nova e fertilizando, a partir do inconsciente, a nossa
consciência.
O conhecimento das características dos heróis, a sua complicada e
às vezes dupla origem, seu comportamento, ora encantador, ora
agressivo, destrutivo ou desonesto; seus defeitos, sua morte trágica
como coroamento de sua vida, seus diferentes destinos após a morte,
ora ajudando ora prejudicando os humanos, tudo nos enriquece e
amadurece para experimentarmos as infinitas possibilidades das
transformações humanas.
O herói, como arquétipo, está sempre constelado nas grandes
transformações. Assim temos o herói matriarcal, implantando o
dinamismo da grande mãe, fertilizando e organizando o mundo em
função dos princípios de procriar, nutrir, cuidar e acolher. O herói
patriarcal implanta sua lei, a moral espiritual, a palavra, a coerência,
o sacrifício do espontâneo para se atingir um objetivo. O herói da
alteridade implanta o respeito à individualidade, a busca do outro
lado das coisas, da outra face, dos lados negados ou não
desenvolvidos na consciência pessoal e coletiva. Finalmente temos o
herói da sabedoria, da transcendência, que nos leva a enxergar o
sentido da vida e da morte e a nos preparar para regressarmos ao
Todo de onde viemos e para onde retornamos.
Temos na adolescência uma fase em que por excelência o
arquétipo do herói está constelado em nossa personalidade. É a hora
da grande batalha para se sair do mundo parental, para a morte
simbólica dos pais e do filho, para assim poder surgir o indivíduo, o
adulto.
Nesta fase, o herói, presente em nossa personalidade, assume as
mais variadas características, dependendo de diferentes aspectos
bio-psico-sociais e da natureza onde vivemos. Em nível coletivo ele
vai assumir características próprias do momento cultural de
determinada sociedade.
O perigo de se ficar identificado com o arquétipo do herói, como
com qualquer outro arquétipo, é ultrapassar o “métron”, a medida
humana. Isto fica bem caracterizado nos mitos e expresso na famosa
frase do oráculo de Delfos “gnôthi s’autón” – o célebre “conhece-te a
ti mesmo” do tempo de Apolo.
Somos humanos e não deuses ou semideuses, e por isso devemos
ter nos heróis inspiradores e modelos de transformação e não
modelos de identificação.
Que a rica e agradável leitura dos mitos dos heróis gregos ajude o
leitor a se dar conta da pujança e potencialidade de sua
personalidade, bem como da riqueza cultural da civilização grega.
O professor Junito Brandão dedicou muito de sua vida ao estudo de
culturas antigas, principalmente da greco-romana. Nós, que
frequentamos seus cursos e temos com ele a satisfação de um
convívio pessoal, sabemos do conhecimento e erudição do professor
Junito Brandão neste campo. Sabemos também do amor e do carinho
que ele dedica ao ensino e do quanto lhe custou a obra realizada.
Como ser humano ele também tem aquela faísca divina que o herói
Prometeu roubou dos deuses para o homem. Mas a dele é bem
grande! Produziu muita luz. Ele é um “herói” pela obra que oferece à
cultura brasileira como mestre e escritor, porém sem perder sua
condição humana.
Nós, analistas, ficamos agradecidos em especial ao professor Junito
Brandão por esse trabalho que é um verdadeiro símbolo de
transformação e enriquecimento para o povo brasileiro. Tenho a
certeza de que o leitor fará muito bom proveito desse ato heroico do
grande mestre.
Dr. Nairo de Souza Vargas
Psiquiatra e analista junguiano (São Paulo)
Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
LIGEIRA INTRODUÇÃO
Este terceiro volume foi sem dúvida um parto difícil. Tive por
momentos a impressão de que a vingativa deusa Hera retivera Ilítia
no Olimpo e, como não dispunha de um Hefesto para abrir-me o
crânio, os meus heróis provocaram-me cefalalgias homéricas...
O primeiro problema a enfrentar foi a carência de uma
bibliografia adequada e confiável em nossa língua. Tal fato obrigoume a “importar” nestes últimos três anos uma razoável “biblioteca
heroica” que se acha, por sinal, indicada nos dois primeiros volumes
e sobretudo nas notas de rodapé e bibliografia deste terceiro.
Acontece, no entanto, que exceto as obras formidáveis de Angelo
Brelich, Philippe Sellier e, em parte, as de H. Jeanmaire, Joseph
Campbell, Marie Delcourt, Martin P. Nilsson, Otto Rank, Robert
Graves e K. Kerényi, que assim mesmo focalizam tão somente as
funções do herói, as demais falam de tudo um pouco, “inclusive” de
alguns aspectos dos paladinos que nasceram para servir...
Somando tudo, cheguei à conclusão de que o único recurso era
voltar às origens. Com a paciência e persistência das formiguinhas do
mito de Eros e Psiqué, debrucei-me resoluta e corajosamente sobre
Homero, Hesíodo, Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Platão,
Apolônio de Rodes, Apolodoro, Pausânias, Ovídio,
Higino, entre outros, e refiz o caminho ao contrário do que
planejara. Primeiro,
Grécia e Roma, e depois o que os modernos pensaram, repetiram e
disseram!
Alguns heróis, como Aquiles, Agamêmnon, Menelau e uns quantos
que escaparam da “neurose e da banalização” das duras análises de
Paul Diel, não foram individualmente retratados, porque já se
encontram mais que estudados e analisados nos dois primeiros
volumes e, às vezes, até mesmo retomados neste terceiro.
Para os comentários “simbólicos” apoiei-me em Jean Chevalier &
Alain Gheerbrant, J.E. Cirlot e Yves Bonnefoy.
C. Gustav Jung, Marie-Louise von Franz, Erich Neumann, J.
Henderson, Jean Shinoda Bolen e Paul Diel tiveram sempre a palavra
final, quando se tratava de interpretação psicológica. O capítulo VIII,
que versa sobre Édipo, foi lido pelo psiquiatra e analista junguiano, e
mais que isto, meu amigo, Dr. Walter Boechat, cujo nihil obstat me
encorajou muito.
Com todo esse aglomerado e sincretismo bibliográfico me foi
possível, Deo Iuuante, montar este penoso e fatigante terceiro
volume sobre o Mito dos Heróis. Estou consciente de que dei apenas a
saída. Ainda falta muito o que dizer sobre o herói grego,
principalmente porque, até o momento, se desconhece todo o ritual
concernente à sua necessária e indispensável iniciação.
Teria que agradecer a muitas pessoas amigas que não só me
incentivaram, mas ainda pela ajuda que me emprestaram.
Dina Maria M.A. Martins Ferreira, Léa Bentes Cardozo e Fred
Marcos Tallmann, todos professores, mais uma vez se encarregaram
da parte datilográfica. Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo, probo e
extremamente culto, reviu este terceiro volume e fez-me preciosas
sugestões, particularmente com respeito à parte estilística. Augusto
Ângelo Zanatta, manu fraterna, elaborou com sua conhecida
proficiência os índices, em cuja tarefa contou com a preciosa
colaboração de Cléa Paula Braga e Valderes Barboza. À minha equipe
muito especial de revisão, de ternura e de amizade, Bluma
Waddington Vilar de Queiroz, Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo,
Heraldo José Abreu Leitão, Monika Leibold e Zaida Maldonado, que
se debruçou horas a fio sobre as provas paginadas do segundo e deste
terceiro volume, para escoimá-los dos erros tipográficos, minha
gratidão sine fine. Com esta equipe sui generis temos em mente
outros labores mais altos e difíceis. A todos um cordial muito
obrigado.
Rio de Janeiro, 20 de junho de 1987
Junito Brandão
CAPÍTULO I
Introdução ao Mito dos Heróis
1
A etimologia, a origem e a estrutura ontológica de herói ainda não
estão muito claras. Talvez se possa falar com certa desenvoltura
acerca de “suas funções” e, assim mesmo, tomando-se como ponto de
partida sobretudo a Grécia. É claro que todas as culturas primitivas e
modernas tiveram e têm seus heróis, mas foi particularmente na
Hélade que a “estrutura”, as funções e o prestígio religioso do herói
ficaram bem definidos e, como acentua Mircea Eliade, “apenas na
Grécia os heróis desfrutaram um prestígio religioso considerável,
alimentaram a imaginação e a reflexão, suscitaram a criatividade
literária e artística”1.
Etimologicamente, ἥρως (héros) talvez se pudesse aproximar do
indo-europeu serva, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti,
“ele guarda” e o latim seruare, “conservar, defender, guardar, velar
sobre, ser útil”, donde herói seria o “guardião, o defensor, o que
nasceu para servir”.
Não importa muito que Píndaro2, em suas Olímpicas, 2,2, tenha
distinguido três categorias de seres: deuses, heróis e homens e que
Platão, no Crátilo, 397ss tenha acrescentado os demônios como uma
quarta espécie na galeria dos protetores e intermediários entre os
mortais e os imortais.
A nós interessa, nesta Introdução, discutir-lhe a possível origem, as
características e particularmente as funções e os “serviços” que
sempre prestaram nesta vida e post mortem.
Em sua obra clássica, E. Rohde3 defende com ênfase a tese de que
os heróis estariam estreitamente ligados aos deuses do mundo
subterrâneo, às divindades ctônias, mas se originariam de homens
célebres, que, após a morte, desceram ao Hades e aí habitam em
companhia dos deuses de baixo, dos quais muito se aproximariam
pelo poder e pela influência que exercem sobre os homens. H.
Usener4 advoga, em obra publicada logo após a de Rohde, uma teoria
diametralmente oposta: os heróis teriam origem divina. Como os
daímones, os “demônios”, aqueles proviriam de divindades
“decaídas”, “momentâneas” ou “privativas”, o que Usener denominou
Sondergötter (deuses particulares), quer dizer, divindades
“especializadas em funções específicas”. Um pouco mais tarde, surgiu
a obra de L.R. Farnell5, que procurou conciliar a teoria evemerista de
Rohde com a mítica de Usener: os heróis seriam tanto seres humanos
quanto divindades particulares, ou seja, uma verdadeira mistura ou
fusão de tipos, uma vez que, para Farnell, os heróis não possuem a
mesma origem, apresentando-se escalonados em sete categorias.
Desse modo, teríamos desde heróis de origem divina até os
simplesmente criados por eruditos e poetas... A teoria conciliatória de
Farnell fez e ainda faz sucesso, pois até mesmo o seguríssimo Nilsson
a abraçou, ao afirmar que os heróis constituíam um grupo muito
heterogêneo (“the heroes were a very mixed company”)6. Neste grupo
promíscuo o erudito sueco incluiu as divindades locais decadentes,
os ancestrais das grandes famílias, personagens históricas e algumas
outras categorias.
A polêmica em torno da origem divina ou humana do herói se
apoiava particularmente nos dois tipos diferentes de sacrifícios, que
eram oferecidos aos deuses e heróis, e no rito com que eram
executados, consoante a documentação até então existente. Aos
deuses se sacrificava pela manhã, aos heróis, à tarde; aos deuses se
ofereciam vítimas brancas, aos heróis, pretas; aos deuses o sacrifício
se fazia sobre um βωμός (bomós), um altar colocado sobre um
embasamento; aos heróis, sobre uma simples ἐσχάρα (eskhára),
uma lareira ou braseiro, instalado no chão; as vítimas oferecidas aos
deuses se degolavam com o pescoço voltado para o alto, as dedicadas
aos heróis com o pescoço inclinado para baixo, para o centro da
Terra, para que o sangue caísse diretamente num βόθρος (bóthros),
num fosso sacrifical. Mas, como diferença fundamental se
argumentava que o sacrifício aos deuses era sob forma de θυσία
(thysía), isto é, uma oblação em que apenas uma parte da vítima era
ofertada aos imortais, enquanto a parte restante – a melhor delas –
era consumida pelos sacrificantes, graças a Prometeu. Aos heróis se
sacrificava mediante o ἐναγισμός (enaguismós), isto é, sob forma
de cerimônia fúnebre, que comportava o όλόκαουτος (holókautos),
o holocausto, isto é, o consumo total da vítima pelas chamas. É que,
tendo-se tornado “sagrada”, porque ofertada aos mortos ou aos
semideuses, como transparece na própria etimologia do ἐναγίζειν
(enaguídzein), “sacrificar aos mortos ou aos semideuses infernais”, o
consumo da carne da vítima era vetado aos mortais. No fundo, como
se pensava, tratava-se de um problema catártico: seria “impuro” tudo
quanto se oferecia ao mundo dos mortos.
Embora estas afirmações minuciosas a respeito dos ritos e
sacrifícios aos deuses e heróis – o que postularia a origem humana
destes últimos – provenham de um período tardio da civilização
grega, não há dúvida de que na época clássica a diferença entre
sacrificar a um deus, ὡς θεῷ θύειν (hos theôi th×ein) e sacrificar a
um herói, ὡς ἥρῳ ἐναγίζειν (hos héroi enaguídzein), era corrente e
habitual, como aparece, entre outros, em Heródoto, 2,44.
Bastaria, no entanto, essa diferença de ritos e sacrifícios para
confirmar a origem evemerista dos heróis? De outro lado, tais
modalidades ritualísticas seriam absolutas na religião grega?
Em artigo substancioso, A.D. Nock7propriamente anulou as teorias
de Rohde, Usener e Farnell, demonstrando, com documentação bem
mais recente, que fundamentar a origem dos heróis na diferença
sacrifical da θυσία (thysía), na consumação de uma parte da vítima
pelos sacrificantes e no όλόκαουτος (holókautos), no holocausto,
na “queima” total das carnes da mesma, não tinha mais sentido e não
correspondia à verdade dos fatos. De saída, Nock não vê dado algum
concreto que prove que, através da thysía, se estabelecesse a
comunhão entre o deus e os sacrificantes, por meio da consumação
“dividida” das carnes da vítima (p. 148ss), nem tampouco, através do
holocausto, se pode comprovar, segundo o autor, que a abstenção das
carnes da vítima, por parte dos sacrificantes, se deva ao fato de a
mesma ser consagrada a um herói, a um morto, e, portanto, impuro
(p.
156).
Em
segundo
lugar,
Nock
demonstra
que,
independentemente de qualquer teoria, as diferenças mesmas entre
ritual divino e heroico são bem menos nítidas do que realmente se
pensava: em poucas páginas (p. 144ss) o sábio americano reuniu um
número respeitável de cultos heroicos em que as carnes das vítimas
eram consumidas pelos sacrificantes. Aliás, a respeito do horário dos
sacrifícios heroicos, o próprio Nilsson já havia observado que, em
numerosos casos, os mesmos se realizavam em pleno sol da manhã...
Se o grande número de exemplos catalogados por Nock não permite
argumentar-se com a exceção, a antiguidade dos documentos
igualmente não autoriza que se vejam neles deformações ou
produtos do relaxamento de uma organização originária. Com isso, o
autor chegou a conclusões inteiramente diferentes das estampadas
nas obras de Rohde, Hermann Usener e Farnell. Não se trata aqui,
como deixa claro Brelich, de casos em que as formas do culto heroico
se tenham confundido com as do culto divino, como processos
secundários de uma decadência, mas, ao contrário, da diferença entre
os dois tipos rituais, diferença essa que poderia ser fruto de um
processo de “legalização”, de sistematização, que se observa em
muitos outros setores da religião grega”8.
Em sua obra clássica sobre os heróis, Gli eroi greci, já por nós
citada mais de uma vez, Angelo Brelich, após observar que, numa
religião tão plástica como a grega, embora exista uma diferença
muito grande entre um herói e outro, o que se deve ao “princípio
informador de uma religião politeísta que tende a diferenciar e a
fixar em formas plásticas suas múltiplas experiências e exigências”,
chega à conclusão de que é possível, mutatis mutandis, traçar um
retrato do herói grego. Para o pesquisador italiano assim poderia ser
descrita a estrutura morfológica dos heróis: “virtualmente, todo herói
é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que
tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte
divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os
mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico;
oherói é, além do mais, ancestral de grupos consanguíneos e
representante prototípico de certas atividades humanas
fundamentais e primordiais. Todas essas características demonstram
sua natureza sobre-humana, enquanto, de outro lado, a personagem
pode aparecer como um ser monstruoso, como gigante ou anão,
teriomorfo ou andrógino, fálico, sexualmente anormal ou impotente,
voltado para a violência sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o
sacrilégio e para a transgressão dos limites e medidas que os deuses
não permitem sejam ultrapassados pelos mortais. E, embora o herói
possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que
marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo,
desde o início, é ameaçada por situações críticas. Assim, após
alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas
extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão
mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói
está condenado ao fracasso e a um fim trágico”9.
Mircea Eliade remata o magnífico retrato do herói, traçado por
Brelich, com as seguintes palavras: “Utilizando uma fórmula
sumária, poderíamos dizer que os heróis gregos compartilham uma
modalidade existencial sui generis (sobre-humana, mas não divina)
e atuam numa época primordial, precisamente aquela que
acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. A sua atividade se
desenrola depois do aparecimento dos homens, mas num período
dos ‘começos’, quando as estruturas não estavam definitivamente
fixadas e as normas ainda não tinham sido suficientemente
estabelecidas. O seu próprio modo de ser revela o caráter inacabado e
contraditório do tempo das ‘origens’ [...]”10.
Como se pode observar, tanto Angelo Brelich quanto Mircea Eliade
traçam apenas a “estrutura morfológica” do herói, mas evitam opinar
claramente sobre a origem do mesmo. E, como estávamos falando
exatamente acerca de sua gênese, é necessário, para concluir, voltar a
ela.
Se talvez não se deva mais, após os argumentos de Nock, defender
a origem humana ou divina dos heróis, e nem tampouco sua
procedência mista, preconizada por Farnell, como foram
“fabricados” esses seres maravilhosos, que encantam e recreiam a
nossa imaginação?
Não seria mais simples dizer que o herói, seja ele de procedência
mítica ou histórica, seja ele de ontem ou de hoje, é simplesmente um
arquétipo, que “nasceu” para suprir muitas de nossas deficiências
psíquicas? De outra maneira, como se poderia explicar a similitude
estrutural de heróis de tantas culturas primitivas que,
comprovadamente, nenhum contato mútuo e direto mantiveram
entre si? Da Babilônia às tribos africanas; dos índios norteamericanos aos gregos; dos gauleses aos incas peruanos, todos os
heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais, têm um mesmo
perfil e se encaixam num modelo exemplar.
Otto Rank tentou mesmo formular um esquema do que ele
denominou a lenda-padrão do herói11. Vamos imitá-lo ou até mesmo
transcrevê-lo, fazendo-lhe, no entanto, algumas achegas ou
podando-o naquilo que nos parece supérfluo. Consoante Rank, o
herói descende de ancestrais famosos ou de pais da mais alta
nobreza: habitualmente é filho de um rei. Seu nascimento é
precedido por muitas dificuldades, tais como a continência ou a
esterilidade prolongada, o coito secreto dos pais, devido à proibição
ou ameaça de um oráculo, ou ainda por outros obstáculos, como o
castigo que pesa sobre a família. Durante a gravidez ou mesmo
anterior à mesma, surge uma profecia, sob forma de sonho ou de
oráculo, que adverte acerca do perigo do nascimento da criança, uma
vez que esta põe em perigo a vida do pai ou de seu representante. Via
de regra, o menino é exposto num monte ou num “recipiente”, cesto,
pote, urna, barco, é abandonado nas águas, as mais das vezes, do mar.
É recolhido e salvo por pessoas humildes: pastor, pescador, ou por
animais, e é amamentado por uma fêmea de algum animal, ursa,
loba, cabra... ou ainda por uma mulher de condição modesta.
Transcorrida a infância, durante a qual o adolescente, não raro, dá
mostras de sua condição e natureza superiores, o “futuro herói” acaba
descobrindo, e aqui as circunstâncias variam muito, sua origem
nobre. Retorna à sua tribo ou a seu reino, após façanhas memoráveis,
vinga-se do pai, do tio ou do avô, casa-se com uma princesa e
consegue o reconhecimento de seus méritos, alcançando, finalmente,
o posto e as honras a que tem direito. Mas, após tantas lutas, o fim do
herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada post
mortem. Diga-se, de caminho, que, para Rank, o mito do herói é uma
projeção da “novela familiar”: a neurose infantil “estancada”, a luta
do menino contra o pai e suas tentativas de libertar-se de seus
genitores: “Na medida em que dispomos dos elementos mencionados
acima, passa a ter fundamento nossa analogia do ‘eu’ do menino com
o herói do mito, em virtude das tendências coincidentes entre as
novelas familiares e os mitos heroicos, uma vez que o mito revela, ao
longo de todo o seu desenvolvimento, um esforço por libertar-se dos
pais, e esse mesmo desejo se depreende das fantasias individuais do
menino, quando busca sua emancipação. Nesse sentido o ‘eu’ do
menino se comporta como o herói do mito e, na realidade, o herói
deve ser interpretado sempre como um ‘eu’ coletivo, dotado de todas
as excelências”. E, mais adiante, remata o estudioso austríaco: “Na
realidade, os mitos dos heróis equivalem, em função de muitas de
suas características essenciais, às ideias delirantes de alguns
psicóticos, que sofrem de delírios de perseguição e grandeza, isto é, os
paranoicos. Seu sistema delirante está construído de forma muito
semelhante ao mito do herói, revelando assim os mesmos temas
psicológicos que a novela familiar do neurótico”12.
Em todo caso, as portas da pesquisa e das conclusões continuam
abertas, até mesmo para os heróis...
2
Expostas essas ligeiras observações sobre a origem do herói,
passaremos agora a uma síntese acerca de suas atividades e
características fundamentais, em sua maioria, aliás, já estampadas
nos comentários supracitados de Brelich e complementadas por
Eliade. Nosso objetivo é dar-lhes uma forma didática, fazer-lhes
alguns acréscimos e acompanhar o itinerário, do berço ao túmulo,
desse paladino, que nasceu “para servir”.
Via de regra, os heróis têm um nascimento complicado, como
Perseu, Teseu, Héracles e muitíssimos outros. Descendem de um deus
com uma simples mortal: Minos, Sarpédon e Radamanto, filhos de
Zeus e Europa; Castor, Pólux, Clitemnestra e Helena, do mesmo Zeus
e Leda; Asclépio, de Apolo e Corônis; ou de uma deusa com um
mortal: Eneias e Aquiles, frutos respectivamente dos amores de
Afrodite e Anquises e de Tétis e Peleu ou, por vezes, lhe é atribuída
uma “dupla paternidade”: Teseu é filho de Posídon e “Egeu”; Héracles,
de Zeus e “Anfitrião”. Neste último caso, como acentua Jung, falando
sobre os arquétipos, “toda criança vê nos pais uma ‘parelha divina’,
cuja ‘mitologização’ continua, as mais das vezes, até a idade adulta e
somente é abandonada após uma ingente resistência. Pois bem, o
medo de perder, no curso da vida, essa conexão com a fase prévia,
instintiva e arquetípica da consciência, é geral e foi exatamente esse
temor que provocou, desde muito, que se agregassem aos pais carnais
do recém-nascido dois padrinhos, um godfather e uma godmother,
como se chamam em inglês, ou um Götti e uma Gotte, como se diz em
alemão da Suíça, os quais devem cuidar do bem-estar espiritual do
afilhado. Tais padrinhos representam a ‘parelha’ de deuses, que
aparece no nascimento da criança e patenteia o tema do duplo
nascimento”13. Os heróis podem ter ainda um nascimento irregular,
em consequência de um incesto: Egisto é fruto do incesto de Tieste
com sua filha Pelopia, e a “ninhada tebana”, Etéocles, Polinice,
Antígona e Ismene, provém de Édipo com sua própria mãe Jocasta...;
acrescente-se, ademais, que muitos heróis, além do nascimento
difícil ou irregular, são expostos, por força normalmente de um
oráculo, que prevê a ruína do rei, da cidade, ou por outros motivos,
caso o recém-nascido permaneça na corte ou na pólis. É assim que
Páris, Édipo e Egisto são expostos num monte. O primeiro o foi
porque sua sobrevivência, como sonhara sua mãe Hécuba, ameaçava
Troia, conforme se comentou no Vol. I, p. 107; Édipo, porque, segundo
o oráculo, estava condenado a cometer parricídio e casar-se com a
própria mãe; e Egisto, porque Pelopia fora violada, como vimos no
Vol. I, p. 89; outros são expostos nas águas do mar, como Perseu, que
punha em perigo a vida de seu avô, o rei Acrísio, conforme se verá no
capítulo seguinte; Reso, Reso, 926s; e, segundo algumas versões, os
gêmeos Pélias e Neleu, filhos de Posídon e Tiro, além de Tenes e sua
irmã Hemítea... Em geral, o exposto é recolhido por uma pessoa
humilde e criado numa corte: Édipo, no palácio de Pólibo e Mérope,
em Corinto; Perseu, no de Polidectes, na ilha de Sérifo. Alguns
expostos em montes, como Egisto e Páris, são alimentados por um
animal: o troiano Páris o foi por uma ursa; Egisto, por uma cabra,
segundo se mostrou no Vol. I, p. 89, onde, por sinal, se comentou
igualmente o simbolismo da alimentação de um herói ou futuro rei
por um animal.
De qualquer forma, exatamente por ser um herói, a criança já vem
ao mundo com duas “virtudes” inerentes à sua condição e natureza: a
τιμή (timé), a “honorabilidade pessoal”, e a ἀρετή (areté), a
“excelência”, a superioridade em relação aos outros mortais, segundo
se viu no Vol. I, p. 151, o que o predispõe a gestas gloriosas, desde a
mais tenra infância ou tão logo atinja a puberdade: Héracles, contase, aos oito meses, estrangulou duas serpentes enviadas por Hera
contra ele e seu irmão Íficles; Teseu, aos dezesseis anos, ergueu um
enorme rochedo sob o qual seu pai Egeu havia escondido a espada e
as sandálias; o jovem Artur, e somente ele, foi capaz de arrancar a
espada mágica de uma pedra...
3
Dado importante, para que o herói inicie seu itinerário de
conquistas e vitórias, é a “educação” que o mesmo recebe, o que
significa que o futuro benfeitor da humanidade vai desprender-se
das garras paternas e ausentar-se do lar, por um período mais ou
menos longo, em busca de sua “formação iniciática”. A partida, a
educação e, posteriormente, o regresso representam, consoante
Campbell14, o percurso comum da aventura mitológica do herói,
sintetizada na fórmula dos ritos de iniciação separação-iniciaçãoretorno, “que poderia receber o nome de unidade nuclear do
monomito”15, isto é, partes integrantes e inseparáveis de um mesmo e
único mitologema.
Separando-se dos seus e, após longos ritos iniciáticos, o herói inicia
suas aventuras, a partir de proezas comuns num mundo de todos os
dias, até chegar a uma região de prodígios sobrenaturais, onde se
defronta com forças fabulosas e acaba por conseguir um triunfo
decisivo. Ao regressar de suas misteriosas façanhas, ao completar sua
aventura circular, o herói acumulou energias suficientes para ajudar
e outorgar dádivas inesquecíveis a seus irmãos.
Jasão, tão logo abandonou a corte de Iolco, foi entregue ao grande
educador de heróis, o Centauro Quirão, de que já se falou no Vol. II, p.
93. Aos vinte anos organizou a célebre Expedição dos Argonautas.
Navegou com seus cinquenta e cinco heróis através das “rochas
azuis”, as Ciâneas, também denominadas Simplégades, “as rochas que
se fecham”, chegou à Cólquida, venceu as “provas” impostas por
Eetes, enganou o dragão que guardava o Velocino de Ouro e
regressou com o mesmo, para disputar com o usurpador Pélias o
trono que a ele Jasão cabia de direito e de fato. Prometeu, o filantropo,
vencidas tantas fadigas e renúncias, escalou o Olimpo, roubou o fogo
celeste e recuperou a humanidade. Eneias, após tantos sofrimentos
“em terra e no mar”, acompanhado da Sibila de Cumas, desceu aos
Infernos e, após cruzar os mortais rios do Hades e passar pelo
monstruoso Cérbero, pôde afinal dialogar com o eídolon, a umbra, a
sombra de seu pai Anquises. Todas as coisas lhe foram reveladas: o
destino das almas, o destino de Roma, que ele iria fundar, e sobretudo
como suportar tantas aflições e sofrimentos que ainda teria pela
frente.
Eneias, o “piedoso Eneias”, voltou ao mundo da luz através da porta
de marfim, para realizar todas as tarefas que as Parcas lhe
impuseram16. Uma representação majestosa das lutas por que passa o
herói no esquema separação-iniciação-retorno é a lenda das Grandes
Batalhas que travou o príncipe Gautama Sakyamuni, o Buddha,
desde a renúncia às comodidades e prazeres da corte paterna até a
difícil “iluminação perfeita”, estado de liberação, que lhe possibilitou
sair de sob a “quarta árvore” e comunicar a todos o conhecimento do
caminho17.
Fato de certa forma semelhante é registrado no Antigo
Testamento, Ex 19–20, quando Moisés, completados três meses da
partida do povo de Israel do Egito e sua penosa caminhada pelo
deserto, chegou ao Monte Sinai e, sozinho, o escalou para ir falar a
Javé, que lhe entregou as Tábuas da Lei e ordenou-lhe que voltasse
com elas para Israel, o povo do Senhor.
Como é dado observar, do Oriente ao Ocidente, o mito do herói
segue normalmente o modelo da unidade nuclear exposto acima: a
separação do mundo, a penetração em alguma fonte de poder e um
regresso à vida, a fim de que todos possam usufruir das energias e
dos benefícios outorgados pelas façanhas do herói.
Este, no entanto, apesar de haver nascido com uma timé e uma
areté especiais, terá que preparar-se para a execução de suas magnas
tarefas. É precisamente a esse preparo que se dá o nome de educação
do herói.
Consoante Júlio Pólux, gramático e retor alexandrino do séc. II d.C.,
em seu dicionário Ονομαστικόν (Onomastikón), Onomástico, II, 4,
Hipócrates dividia a vida humana em oito períodos de sete anos. A
educação clássica e sobretudo a da época helenística, a partir do séc.
IV a.C., ocupava as três primeiras etapas. A primeira fase,
denominada παιδίον (paidíon), “idade infantil”, ia de 1 a 7 anos, e a
“educação” era ministrada em casa; a segunda, παῖς (paîs), o
“menino”, de 7 a 14 anos, era a idade em que a criança, quer dizer, o
menino, “o sexo masculino”, escapava à vigilância materna e iniciava
seu período escolar propriamente dito. A etapa seguinte, chamada
μειράκιον (meirákion), “adolescente”, de 14 a 21 anos, o período da
efebia, era coroado, de certa forma, por um estágio de formação
cívica e militar.
Quanto à mulher, em tese, ela percorria, ao menos a partir da época
helenística, as mesmas etapas educativas que os jovens, podendo até
mesmo, como em Esparta, participar de exercícios físicos na Palestra
e no Ginásio, mas o “ideal de mulher” não é o da que estuda e
“participa”, mas aquele traçado, com gulosa satisfação machista, por
Iscômaco, no Econômico, 7, de Xenofonte, ao descrever para Sócrates
o que era, por ocasião de seu casamento, a esposa “por ele escolhida”:
“ela estava com quinze anos, quando entrou em minha casa. Até
então fora submetida a uma extrema vigilância, a fim de que nada
visse, nada ouvisse e nada perguntasse. Que poderia eu desejar mais?
Tenho nela uma mulher que aprendeu não só a fiar a lã, para fazer
um manto, mas ainda como distribuir tarefas às escravas fiandeiras.
Quanto à sobriedade, ela foi muito bem instruída. Excelente, não?”
Eis aí uma síntese da educação ateniense da época da decadência,
porque a espartana sempre foi bem diversa. Este quadro, em que se
estampa resumidamente o essencial da educação ministrada aos
jovens de Atenas, é necessário para que se compreenda a educação
mítica dos heróis, que, em linhas gerais, é uma transposição daquela.
É claro que se omitiu, até o momento, a formação religiosa, sobretudo
o catálogo de ritos de passagem, os imprescindíveis ritos iniciáticos,
mas, no decorrer da exposição sobre a educação dos heróis, faremos
alguns comentários a esse respeito.
Vários foram os mestres dos heróis, como Lino, Eumolpo, Fênix,
Forbas, Cônidas..., mas o educador-modelo foi o pacífico Quirão, o
mais justo dos Centauros, na expressão de Homero, Ilíada, XI, 832.
Muitos heróis passaram por suas mãos sábias, na célebre gruta em
que residia no monte Pélion: Peleu, Aquiles, Asclépio, Jasão, Actéon,
Nestor, Céfalo... lista que é enriquecida por Xenofonte, em sua obra
Cinegética, 1,21 (Tratado sobre a Caça) com mais catorze nomes!
Quirão era antes do mais um médico famoso, donde sua arte
primeira era a Iátrica, mas seu saber enciclopédico, como aparece
nos monumentos figurados e literários, fazia do educador de Aquiles
um mestre na arte das disputas atléticas, Agonística, e talvez
praticasse e ensinasse ainda a arte divinatória, Mântica. Não para aí,
todavia, a versatilidade de Quirão: ministrava igualmente a seus
discípulos conhecimentos relativos à caça, Cinegética; à equitação,
Hípica, bem como lhes ensinava a tanger a lira e o arremesso do
dardo... Mais que tudo, no entanto, o fato de ser Quirão um médico
ferido, um xamã, e residir numa gruta evocam, de pronto, sua função
mais nobre e indispensável aos jovens “históricos”, mas sobretudo
aos heróis míticos, a saber, a ação de fazê-los passar por ritos
iniciáticos, que outorgavam aos primeiros o direito à participação na
vida política, social e religiosa da pólis e aos segundos a
imprescindível indumentária espiritual, para que pudessem
enfrentar a todos e quaisquer monstros... Diga-se, de passagem, que os
Efebos eram iniciados por mestres igualmente históricos, que, em
Atenas, se chamavam Σοφρονισταί (Sophronistaí), os Sofronistas,
isto é, os preceptores, os monitores e, em Esparta, Εἰρένες (Eirénes),
os Írenos.
Infelizmente se conhece muito pouco acerca desses ritos de
passagem, tendo chegado até nós apenas algumas informações
exteriores, cuja interpretação ainda é, por vezes, muito discutida. O
restante, por ser um ritual secreto, se perdeu nas montanhas, nas
grutas, nas cavernas e nos templos, onde se celebravam os mistérios.
Do que se tem notícia, ao menos sumária, pode-se destacar o corte
do cabelo, a mudança de nome, o mergulho ritual no mar , a passagem
pela água e pelo fogo, a penetração num Labirinto , a catábase ao
Hades , o androginismo, o travestismo, a hierogamia. A esse respeito,
com o respaldo da obra já citada de Angelo Brelich, Mircea Eliade faz
as seguintes ponderações: “Certos heróis (Aquiles, Teseu etc.) são
associados aos ritos de iniciação dos adolescentes, e o culto heroico é
frequentemente executado pelos efebos. Muitos episódios da saga de
Teseu são, na verdade, provas iniciatórias: o seu mergulho ritual no
mar, prova equivalente a uma viagem ao outro mundo, e
precisamente no palácio submarino das nereidas, fadas kourotróphoi
(quer dizer, em grego, ‘nutridoras dos jovens’) por excelência; a
penetração de Teseu no labirinto e seu combate com o monstro
(Minotauro), tema exemplar das iniciações heroicas; e, finalmente, o
rapto de Ariadne, uma das múltiplas epifanias de Afrodite, no qual
Teseu conclui a sua iniciação por meio de uma hierogamia. Segundo
H. Jeanmaire, as cerimônias que constituíam as Thésia18ou Theseîa
seriam provenientes dos rituais arcaicos que, numa época anterior,
marcavam o retorno dos adolescentes à cidade, depois de sua
permanência iniciatória na savana. Da mesma forma, certos
momentos da lenda de Aquiles podem ser interpretados como
provas iniciatórias: ele foi criado pelos Centauros, isto é, foi iniciado
na savana por Mestres mascarados ou que se manifestavam sob
aspectos animalescos; suportou a passagem pelo fogo e pela água,
provas clássicas de iniciação, e chegou inclusive a viver entre as
moças, vestido como uma delas, seguindo um costume específico de
certas iniciações arcaicas de puberdade.
Os heróis são igualmente associados aos Mistérios: Triptólemo tem
um santuário, e Eumolpo o seu túmulo, em Elêusis (Pausânias, 1,38,6;
1,38,2). Além disso, o culto dos heróis é solidário dos oráculos,
principalmente dos ritos de incubação que visam à cura (Calcas,
Anfiarau, Mopso etc.); alguns heróis estão, portanto, relacionados
com a medicina (em primeiro lugar Asclépio)”19.
4
Passaremos em revista, embora resumidamente, alguns dos tópicos
relacionados acima com os ritos iniciáticos, particularmente os ritos
de passagem em conexão com a efebia, o corte do cabelo, a mudança
de nome, o travestimento e a hierogamia, porque do fogo já se falou
no Vol. I, p. 292; do Labirinto já se deu uma ideia no Vol. I, p. 65, e
acerca do mesmo se voltará a falar no capítulo sobre Teseu; a
catábase ao Hades, já diversas vezes mencionada, será retomada no
mito de Héracles.
Em seguida, trataremos de algumas características físicas dos
heróis e do vínculo dos mesmos com a Agonística, a Mântica, a
Iátrica e com outras funções de que se ocupavam nesta vida e post
mortem os que “nasceram para servir”.
Embora os Mistérios houvessem absorvido o grosso da herança das
iniciações tribais e, na época clássica, a organização social e religiosa
fosse bem diferente daquelas, a importância da passagem para a
idade adulta continuou a ser uma exigência institucional e ritual,
que possuía um evidente aspecto religioso, o qual se manifestava
ainda num forte nexo com o culto dos heróis. Os Efebos atenienses
prestavam seu juramento no santuário de Agrauro ou Agraulo, filha
do herói Cécrops. Era por meio de uma representação de Efebos, que
Atenas participava das festas Eantias, na ilha de Salamina, em
homenagem ao grande herói local Ájax. O documento mais antigo de
uma participação ativa dos Efebos – ou, mais precisamente, dos
κοῦρο (kûroi), “jovens”, como antigamente se designavam os
membros dessa classe de idade – num culto heroico está na Ilíada, II,
550ss, em que eles oferecem um sacrifício ao herói Erecteu. Em
Esparta, o sistema complexo de classes de idade e da passagem
relativa de uma para outra estava concentrado no culto de Ártemis
Órtia, mas, conforme Pausânias, 3,14,16, no ritual agonístico entre os
Σφαιρεῖς (Sphaireîs), nome dado aos Efebos em Esparta, celebravase um sacrifício diante de uma antiga estátua de Héracles.
De qualquer forma, a classe de idade, mormente em Atenas, não
interessava apenas ao Estado, mas sobretudo à unidade tribal, o que
explica a importância ritual atribuída à festa das Apatúrias, de que,
lamentavelmente, se conhece muito pouco. Aliás, a respeito dessa
festa ateniense já fizemos um ligeiro comentário no Vol. II, p. 26.
Vamos aqui tão somente reexplicá-la com um ou outro pormenor a
mais. Sabe-se, com certeza, que, à época histórica, a festa era estatal,
pois que, de resto, era celebrada em honra de Zeùs Phrátrios e Athenà
Phratría, uma festa das Fratrias20, por conseguinte. As Apatúrias,
celebradas em outubro, ao que parece, duravam três dias: nos dois
primeiros faziam-se sacrifícios e banquetes e no terceiro,
denominado Κουρεῶτις (kureôtis), os pais de família
apresentavam os filhos legítimos (nascidos durante o ano ou já com
três ou quatro anos de idade?) para que fossem regularmente
inscritos em sua respectiva Fratria. Pois bem, era exatamente,
durante os festejos do terceiro dia, denominado Κουρεῶτις
(kureôtis), que se procedia ao corte ritual do cabelo dos Efebos, que
comemoravam sua entrada na Efebia, levando a Héracles o
oinistérion, quer dizer, um grande vaso cheio de vinho e, após a
libação, ofereciam-no a beber aos presentes.
A palavra Κουρεῶτις (kureôtis) não possui, até o momento, uma
etimologia segura. Talvez esteja ligada à Κουρά (kurá), “ação de
cortar”, e ao verbo Κείρειν (keírein), “cortar”, uma vez que o rito
“epônimo” de kureôtis é o corte do cabelo à escovinha, tanto para os
Efebos como para os heróis, o que demonstra tratar-se de um rito
iniciático. É bem verdade que o corte do cabelo ou de apenas uma
mecha aparece como forma sacrifical e constitui um rito de luto,
como se pode observar nas Coéforas, 6s, de Ésquilo e se repete na
Electra, 51ss de Sófocles, mas, de outro lado, se encontra com muita
frequência também o corte do cabelo em conexões diversas com o
fenômeno religioso de mudança de idade ou até mesmo de “estado”.
Se, em Atenas, o ritual se fazia no início da Efebia, em Esparta o rito
era bem mais rigoroso: os jovens cortavam-no aos doze anos, como
informam Xenofonte, República dos Lacedemônios, 11,3 e Plutarco,
Licurgo, 16,6 e só o deixavam crescer novamente ao término de sua
ἀγωγή (agogué), de sua longa educação iniciática, isto é, aos trinta
anos, segundo o mesmo Plutarco, Licurgo, 22,1.
Também a mulher praticava o mesmo rito: às vésperas do
casamento, de “mudança de estado”, as jovens ofereciam uma mecha
ou parte do cabelo a um herói ou a uma heroína. Em Trezena é o
herói Hipólito, conforme a tragédia homônima de Eurípides,
Hipólito Porta-Coroa, 1425s, quem recebe a oferta de madeixas das
jovens, πρὸ γάμου (prò gámu), “antes do casamento”, na expressão
de Pausânias, 2,32,1. Por ocasião da festa das Hiperbóreas,
companheiras de Leto, mortas em Delos, não só os jovens, mas
também as jovens, naturalmente πρὸ γάμου (prò gámu) ofereciam
madeixas junto ao túmulo das heroínas, consoante Heródoto, 4,34.
Qual seria, afinal, o sentido desse rito iniciático, histórico e
“heroico” de corte e oferta de madeixas ou de grande porção do
cabelo, quando da mudança de idade e de “estado”?
Van Gennep chama-o rito de passagem ou, mais precisamente, rito
de separação, e explica o que denomina: “Os ritos de separação
compreendem em geral todos aqueles nos quais se corta alguma
coisa, principalmente o primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a
cabeça [...]”21. E bem mais adiante, voltando ao assunto, assim se
expressa o sábio germânico: “Na realidade, aquilo que se denomina ‘o
sacrifício dos cabelos’ compreende duas operações distintas: a) cortar
os cabelos; b) dedicá-los, consagrá-los ou sacrificá-los. Ora, cortar os
cabelos é separar-se do mundo. Dedicar os cabelos é ligar-se ao
mundo sagrado e mais especialmente a uma divindade ou a um
demônio, que o indivíduo torna, assim, seu parente. Mas esta é apenas
uma das formas de utilização dos cabelos cortados, nos quais reside,
do mesmo modo que no prepúcio ou nas unhas cortadas, uma parte
da personalidade. [...] Do mesmo modo, o rito de cortar os cabelos ou
uma parte da cabeleira (tonsura) é utilizado em muitas
circunstâncias diferentes. Raspa-se a cabeça da criança para indicar
que entra em outro estágio, a vida. Raspa-se a cabeça da moça, no
momento de casar-se, para fazê-la mudar de classe de idade. Assim
também as viúvas cortam os cabelos para quebrar o vínculo criado
pelo casamento, sendo a deposição da cabeleira sobre o túmulo um
reforço do rito. Às vezes cortam-se os cabelos do morto, sempre com
a mesma ideia. Ora, existe uma razão para que o rito de separação
afete os cabelos; é que estes são pela forma, cor, comprimento e modo
de arranjo um caráter distintivo, facilmente reconhecível, individual
ou coletivo”22.
Em síntese, para Van Gennep cortar o cabelo é separar-se do
profano para mergulhar no sagrado, buscando, com isso, o neófito,
iniciar uma vida nova.
Outro fato muito importante na iniciação heroica e histórica é a
mudança do nome. Jasão somente deixa seu mestre Quirão aos vinte
anos, após receber um novo nome, consoante Píndaro, Píticas, 4,104 e
119. Outro que mudou de nome, por obra da arte iniciática do mesmo
preceptor, foi Aquiles, conforme testemunha Apolodoro, 3,172.
Igualmente Teseu só recebe seu verdadeiro nome, ao término da
adolescência, quando foi reconhecido pelo pai, no dizer de Plutarco,
Teseu, 4,1. O próprio Héracles, antes de tornar-se “a glória de Hera”,
antes do término dos Doze Trabalhos, chamava-se Alcides. Também
e sobretudo Simão recebeu o nome de Pedro (Jo 1,42), após o olhar
fixo do Senhor, e foi sobre este rochedo que se ergueu o Castelo
indestrutível, contra o qual nem mesmo as portas do Inferno
prevalecerão (Mt 16,18). Na Índia védica, num rito de passagem, de
separação e sobretudo de agregação, no décimo dia de nascimento, a
criança recebia dois nomes, um comum, que a agregava ao mundo, e
o outro, que a separava de todos, porque se tratava de um nome
secreto, de que só a família tinha conhecimento. Em culturas
primitivas, via de regra, a criança mudava de nome tantas vezes
quantas as etapas de seu crescimento e, possivelmente, do seu
desenvolvimento iniciático. É assim que a mesma recebe, de início,
uma denominação vaga, depois um nome pessoal conhecido, a seguir
um nome pessoal secreto e, por fim, talvez como acréscimo a este
último, um nome de família, de clã, de sociedade secreta.
Desse modo, o nome (secreto, religioso) separa o “nominado” de seu
mundo anterior, profano, impuro, para integrá-lo no sagrado, o que
explica a mudança de nome entre religiosos atuais.
A respeito da extraordinária importância do nome, comenta Luís
da C. Cascudo: “O nome é a essência da coisa, do objeto denominado.
Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome, porque o
nome é a forma e a substância vital. No plano utilitário as coisas só
existem pelo nome. [...] Conhecer o nome de alguém, usá-lo, é dispor
da pessoa, participando-lhe da vida mais íntima”23.
Eis aí o motivo por que os heróis, as cidades, os deuses, além do
nome conhecido, possuíam um outro, o secreto. Moisés morreu sem
saber o nome de Deus, o que não deve ser interpretado como tabu ou
superstição, mas simplesmente como um “hábito bem oriental”. Pois
bem, em Ex 3,6, quando Moisés chegou através do deserto ao monte
de Deus, Horeb, o Senhor se lhe deu a conhecer, dizendo: “Eu sou o
Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”.
Acatando a ordem de ir ao encontro dos filhos de Israel no Egito,
Moisés, todavia, quis saber como responder ao povo, se este lhe
perguntasse qual o nome do Deus que o enviara, ao que Javé retrucou:
“Eu sou aquele que sou. E disse: Assim dirás aos filhos de Israel:
Aquele que é enviou-me a vós” (Ex 3,14). Em Jz 13,17-18, quando
Manoá, pai de Sansão, desejou saber o nome do anjo com quem
dialogava, este lhe respondeu: “Por que perguntas tu o meu nome, que
é admirável?” E mais não disse. Maomé, segundo se sabe, preceituava
que Alá possuía cem nomes, mas só se conheciam noventa e nove! O
centésimo era secreto, inefável. Se a Dioniso se atribuíam 96 nomes e
a Osíris 100, Ísis possuía 10.000!... E assim, como descobrir o
verdadeiro, o inefável? Aliás, no impropriamente denominado Livro
dos mortos, a alma, ao chegar diante de Osíris, para recitar as célebres
confissões negativas, diz-lhe, de saída: “Eu te conheço e conheço
também o nome das quarenta e duas divindades que estão contigo
nesta sala das duas Maât...”24Conhecer o nome de Osíris e das
quarenta e duas divindades, que lhe vão ouvir as confissões
negativas, é para a alma, que vai ser julgada, um pré-requisito
psicológico de salvação. Se uma palavra em si já é mágica, e se o
nome é parte da pessoa, ou da coisa, conhecê-lo é dispor da pessoa ou
do objeto, porque também as coisas e os objetos têm alma, vida; têm
energia, têm mana. Por saber o nome de seu arco, Ulisses foi o único a
retesá-lo, no célebre episódio da matança dos Pretendentes, Odis.,
XXI, 409-412.
De outro lado, mutilar ou apagar o nome de uma pessoa, de um
animal ou de um objeto é condená-los à impotência ou à morte.
Quando Amenófis IV, o famoso Akhnaton, tentou impor Aton
(Disco Solar) como deus único do Egito, mandou martelar o nome de
Amon nas inscrições monumentais. Nas paredes de monumentos
egípcios, os hieróglifos que estampam nomes de animais ferozes ou
perigosos aparecem mutilados, tirando-lhes, com isso, toda e
qualquer eficácia maléfica. Recordando a tradição egípcia de “matar
o nome”, fazendo-o raspar dos monumentos, Javé, no Dt 29,20,
ameaça destruir os que não guardarem a aliança, adorando outros
deuses: “o Senhor apague o seu nome de debaixo do céu”.
O supracitado Luís da C. Cascudo arrola uma série de informações
e superstições acerca do tabu do nome, as quais merecem ser lidas25.
Concluindo o que se disse a respeito do nome, vale a pena citar uma
observação de Jung: “Somente a mente primitiva acredita no ‘nome
verdadeiro’. No conto de fadas, alguém pode reduzir a pedaços o
corpo do pequeno Rumpelstilz simplesmente pronunciando o seu
verdadeiro nome. O chefe tribal oculta o seu verdadeiro nome e
adota paralelamente um nome exotérico, para uso diário, a fim de
que ninguém o enfeitice, conhecendo seu verdadeiro nome. No Egito,
quando se sepultava o faraó, davam-se-lhe os verdadeiros nomes dos
deuses, em palavras e em imagens, a fim de que ele pudesse obrigar
os deuses a cumprir suas ordens, só com o conhecimento dos seus
verdadeiros nomes. Para os cabalistas, a posse do verdadeiro nome de
Deus significa a aquisição de um poder mágico. Em outras palavras:
para a mente primitiva, o nome torna presente a própria coisa. ‘O que
se diz, torna-se realidade’, diz o antigo ditado a respeito de Ptah”26.
5
Antes de se dar uma palavra acerca do travestismo e do hieròs
gámos, do casamento sagrado do herói, vamos abordar, se bem que de
maneira concisa, o problema do androginismo no mundo heroico,
porque, por paradoxal que se nos afigure, as três coisas estão
intimamente relacionadas.
Mas, para se falar da concepção de andrógino no mito, é necessário
começar por uma obra importante do filósofo da Academia. Platão,
no Banquete27, 189e, 193d, pelos lábios do criativo e imaginoso poeta
cômico Aristófanes, faz ampla dissertação acerca do ἀνδρόγυνος
(andróguynos), palavra composta de ἀνήρ, ἀνδρός (anér, andrós),
macho, “homem viril”, e de γυνή guyné), fêmea, mulher. Consoante
o filósofo ateniense, “outrora nossa natureza era diferente da que
vemos hoje. De início, havia três sexos humanos, e não apenas dois,
como no presente, o masculino e o feminino, mas a estes
acrescentava-se um terceiro, composto dos dois anteriores, e que
desapareceu, ficando-lhe tão somente o nome: o andrógino era um
gênero distinto, que, pela forma e pelo nome, participava dos dois
outros, simultaneamente do masculino e do feminino, mas hoje lhe
resta apenas o nome, um epíteto insultuoso” (Banquete, 189e). Este
ser especial formava uma só peça, com dorso e flancos circulares:
possuía quatro mãos e quatro pernas; duas faces idênticas sobre um
pescoço redondo; uma só cabeça para estas duas faces colocadas
opostamente; era dotado de quatro orelhas, de dois órgãos dos dois
sexos e o restante na mesma proporção. Para Platão, os três sexos se
justificam pelo fato de omasculinoproceder de Hélio (Sol); o
feminino, de Geia (Terra) e o que provém dos dois origina-se de
Selene (Lua), “a qual participa de ambos”. Esses seres, esféricos em
sua forma e em sua movimentação, tornaram-se robustos e
audaciosos, chegando até mesmo a ameaçar os deuses, com sua
tentativa de escalar o Olimpo. Face ao perigo iminente, Zeus
resolveu cortar o andrógino em duas partes, encarregando seu filho
Apolo de curar as feridas e virar o rosto e o pescoço dos operados
para o lado em que a separação havia sido feita, para que o homem,
contemplando a marca do corte, o umbigo, se tornasse mais humilde,
e, em consequência, menos perigoso. Desse modo, o senhor dos
imortais não só enfraqueceu o ser humano, fazendo-o caminhar
sobre duas pernas apenas, mas também fê-lo carente, porque cada
uma das metades pôs-se a buscar a outra contrária, numa ânsia e
num desejo insopitáveis de se “reunir” para sempre. Eis aí, consoante
Platão, a origem do amor, que as criaturas sentem umas pelas outras:
o amor tenta recompor a natureza primitiva, fazendo de dois um só,
e, desse modo, restaurar a antiga perfeição. É conveniente, porém,
acrescentar que não havia tão somente o andrógino, mas também
duas outras “fusões”, igualmente separadas por Zeus, a saber, de
mulher com mulher e de homem com homem, o que explica, no
discurso de Aristófanes, o homossexualismo masculino e
feminino28.
Pois bem, o androginismo como o homossexualismo masculino são
temas comuns no mito dos heróis, mas aquele se manifesta, não raro,
de maneira atenuada, através do travestismo, da mudança de sexo e
do hieròs gámos. Do androginismo puro existem pouquíssimos
exemplos na mitologia clássica. Além dos casos conhecidos de
Hermafrodito, de que se falou no Vol. I, p. 212, e de Himeneu29, os
demais são conhecidos através de uma documentação tardia. O herói
ateniense Cécrops, por exemplo, conforme a Suda, verbete, é
διφυήια (diphyés), quer dizer, “de natureza dupla”, no sentido de que
a parte superior de seu corpo era de um homem e a parte inferior, de
mulher. Nono, poeta épico de Panópolis, do século VI d.C., em seu
poema Dionisíacas, 9,310s, atesta que o rei Átamas, de que se falou no
Vol. II, p. 124, aleitou seu próprio filho Melicertes. A Dioniso,
acrescenta Apolodoro, 3,28, o mesmo Átamas o educava como se fora
mocinha.
Mais frequentes, todavia, são os heróis que mudam de sexo.
Tirésias, de que se tratou no Vol. II, p. 183-184, escalou duas vezes o
monte Citerão: na primeira foi transformado em mulher e, na
segunda, recuperou novamente o sexo masculino. Acrescente-se logo
que esses repetidos cambiamentos de sexo na Antiguidade já eram
considerados “como forma de expressão de uma natureza
propriamente andrógina”, segundo resulta da representação de um
espelho etrusco, em que Tirésias, no Hades, aparece com aspecto de
hermafrodito. Igualmente na Eneida de Virgílio, 6,448, o lápita
Ceneu aparece como mulher: Ceneu, outrora mulher, amada por
Posídon, foi por ele, como recompensa, transformada em homem,
segundo o historiador Acusilau, século VI a.C., frag. 40a. De outras
personagens, menos conhecidas no mito, se narram fatos
semelhantes: Síton, pai de Palene, por cuja mão se batia com os
pretendentes, como Enômao pela mão de Hipodamia, somente em
Ovídio, Metamorfoses, 4,280, aparece modo uir, modo femina, ora
como homem, ora como mulher. De Ífis narra o mesmo poeta, Met.,
9,666ss, que, de fato, era mulher, mas fora educada como homem.
Tendo-se apaixonado por outra mulher, foi por Ísis metamorfoseada
em homem, no dia do casamento. Siprete, ao contrário, era homem,
mas, durante uma caçada, tendo visto Ártemis nua, foi pela mesma
transformado em mulher. Leucipo ou Leucipe também era mulher,
mas para evitar que o pai a suprimisse, a mãe vestia-a como menino.
No dia do casamento, Leto a metamorfoseou em homem. Em Festo,
na ilha de Creta, Leucipe possuía um culto com festa própria,
denominada Έκδύσια (Ekd×sia), Ecdísias, e os novos esposos
passavam a primeira noite de núpcias sob sua estátua sagrada.
Viram-se, até aqui, alguns casos de travestismo: moças, travestidas
de rapazes, acabam por tornar-se realmente homens. Outros mitos
abdicam do elemento prodigioso da metamorfose, conservando
apenas o motivo do travestismo: neste caso trata-se normalmente de
homens travestidos de mulher, que, no entanto, não precisam mudar
de sexo para aparecer como homens, o que efetivamente o são. Não é
difícil, por isso mesmo, ver que entre os dois grupos existe algo de
comum: um início sexualmente ambíguo e, em seguida, uma
definição. O exemplo mais conhecido de travestismo no mito é,
talvez, o de Aquiles que, na corte de Licomedes, na ilha de Ciros,
vivia como moça, entre as filhas do rei, para fugir, conforme o
propósito de sua mãe Tétis, ao triste destino (morrer jovem) que o
aguardava, e se cumpriu, na Guerra de Troia (Apol., 3,174). Na corte
de Licomedes, enquanto não foi desmascarado pelas astúcias do
solerte Ulisses, Aquiles era estrategicamente chamado Pirra (Hig.,
Frag. 96), “a ruiva”, pelo fato de ser muito louro. Pirro, o ruivo, será o
nome de seu filho, que mais tarde o trocará por Neoptólemo (Plut.,
Pirr., 1,2). Héracles, por duas vezes, como veremos em seu
mitologema, se vestiu de mulher: na primeira, quando a serviço da
rainha Ônfale (Ov., Fastos, 2,319ss) e, na segunda, quando, num
momento crítico, foi obrigado a disfarçar-se em mulher diante de
seus inimigos, os Méropes, muito numerosos. Após vencê-los, o herói
se purificou e tomou por esposa a Calcíope, filha de Eurípilo, rei da
Ilha de Cós e chefe dos Méropes. A esse mito se prende, em
Antimaquia, na ilha citada, o hábito religioso de os sacerdotes de
Héracles e os noivos se vestirem de mulher. A forma de expressão
mais atenuada de certa indeterminação sexual, na mitologia como
na vida real, é a permanência de traços femininos em personagens
do sexo masculino e vice-versa. Quando Teseu chegou a Atenas, os
trabalhadores que estavam construindo o santuário de Apolo
Delfínio pensaram tratar-se de uma παρθένος ἐν ὥρα γάγου
(parthénos en hórai gámu), “de uma donzela pronta para casar-se”,
na expressão simples e precisa de Pausânias, 1, 19,1. Um rito ateniense
de travestismo estreitamente ligado ao mito de Teseu eram as festas
denominadas ‘Ωσχοφόρια (Oskhophória), em que dois efebos,
vestidos de mulher, “transportavam ramos de videira carregados de
uvas”, segundo informação de Plutarco, Teseu, 23,2. Diga-se, aliás, de
caminho, que entre os adolescentes, levados a Creta por Teseu, duas
“moças” eram jovens travestidos.
Síntese e coroamento, não apenas da vida heroica, mas ainda e
sobretudo de um androginismo atenuado e simbólico é o hieròs
gámos, as núpcias sagradas do herói. O casamento representa, no caso
em pauta, o encontro da metade perdida, reunindo e restaurando,
desse modo, a antiga perfeição, como diz o autor do Banquete. Essa
difícil recomposição talvez explique a importância que se dá no mito
ao hieròs gámos e às lutas travadas pelo herói para realizá-lo.
Pisandro, de Camiro, na ilha de Rodes, poeta épico do século VII
a.C., escreveu, segundo consta, um vasto poema de sessenta cantos,
Ήρωικαὶ Θεογαμίαι (Heroikaì theogamíai), “Núpcias divinas dos
heróis”, de que quase nada nos resta. Nesta obra o autor reunira
diversos mitos célebres, relativos a núpcias heroicas. A citação de
Pisandro é tão somente para mostrar que não foram apenas as
guerras, os campeões olímpicos, os Argonautas, Prometeu, Édipo,
Medeia... que mereceram as bênçãos das Musas, mas que igualmente
os hieroì gámoi ocuparam seu espaço como temas tradicionais da
literatura e da arte. As bodas famosas de Tétis e Peleu, a cuja
celebração até os deuses compareceram, já são pressupostas na
Ilíada, XVIII, 48s; de igual esplendor foi a união de Cadmo e
Harmonia, de que falam os poetas Teógnis, 15s; Píndaro, Píticas,
3,87ss; Safo, a gigantesca poetisa da ilha de Lesbos, celebrou (frag. 55)
o casamento de Heitor e Andrômaca. Píndaro dedicou um peã (frag.
64) às núpcias de Níobe e Anfião; o casamento solene de Admeto e
Alceste figurava no trono de Amiclas, segundo Pausânias, 3,18,16; o
de Jasão e Medeia, na arca de Cípselo, informa o mesmo historiador,
5,18,3; o de Pélops e Hipodamia, ou ao menos seu antecedente direto,
a luta entre Enômao e Pélops, estava esculpido no frontão oriental do
templo de Zeus em Olímpia.
Já se disse que o herói tem que superar grandes obstáculos e até
mesmo arriscar, por vezes, a própria vida, acrescentaríamos, para
conseguir a metade perdida... Héracles, já se falou no Vol. I, p. 274,
lutou bravamente com o rio Aqueloo pela posse de Dejanira, segundo
relato de Apolodoro, 1,64; Pélops, veja-se o Vol. I, p. 86, matou
traiçoeiramente o sogro Enômao, para ter a Hipodamia; Admeto,
para ter Alceste, executará a difícil, mas simbólica tarefa, de jungir
um leão e um javali a uma carruagem; Jasão superou inúmeras
provas, como veremos no mito dos Argonautas, a fim de se casar com
Medeia. Outra prova de altíssima importância nas núpcias do herói é
quando este é obrigado a lutar com verdadeira multidão de
pretendentes pela mão da bem-amada. E, nesse caso, a heroína que
nos vem logo à mente é Helena, a filha de Zeus e de Leda, a Helena,
que, já aos nove anos, fora raptada por Teseu e que, após seu
casamento e adultério, provocou a suprema prova heroica, a Guerra
de Troia, como se mostrou no Vol. I, p. 113. Mas, se Helena, graças à
poesia homérica, que lhe conservou todo o esplendor incomparável
da figura mítica, é a mais célebre das heroínas, não é todavia a única
que fez palpitar os corações dos heróis: são bem conhecidos os
numerosos pretendentes pré e pós-matrimoniais da “fidelíssima”
Penélope, como se mostrará no mito de Ulisses.
Um derradeiro assunto ainda inserido no conteúdo do
androginismo simbólico e do hieròs gámos “prejudicado” de heróis
célebres como Peleu (Hes., frag. 79; Pínd., Nemeias, 5,27ss e 4,53ss);
Belerofonte (Il., VI, 160ss); Hipólito (Eur., Hipólito Porta-Coroa,
passim) e outros menos famosos, como Fênix (Apol., 3,175), Eunosto,
Tenes... é o tema que, já há algum tempo, se convencionou chamar de
motivo Putifar30, fato narrado em Gênesis 39,7-20, a respeito da
inteireza, caráter e temor de Deus por parte de José. Assim, o motivo
Putifar pode ser definido como acusação infundada de adultério,
tramada por uma mulher, com a qual o injustamente acusado e,
quase sempre punido, se recusou a ter relações sexuais. Na mitologia
heroica da Grécia, como em muitas outras culturas anteriores a ela, o
motivo Putifar é amplamente difundido. Para alguns heróis, como
Tenes, que se recusou a prevaricar com Filônome, segunda esposa de
seu pai Cicno, o “motivo” se constitui no ponto de partida de todo o
seu mitologema; para Hipólito, que igualmente repeliu sua madrasta
Fedra, aquele se torna o episódio central; para outros é tão-só mais
um incidente em meio a tantas vicissitudes mais importantes, como
é o caso de Peleu, que rechaçou as pretensões indecorosas de
Astidamia, esposa de seu hospedeiro e amigo Acasto. De qualquer
forma, o motivo Putifar representa sempre uma situação crítica para
o herói, conjuntura essa que se resolve ora tragicamente, com a
morte, no caso de Hipólito e Eunosto, com a cegueira, como na
punição de Fênix; ora de maneira menos violenta, como prova
superada através de riscos tremendos, como a exposição de Tenes;
com o exílio e a vida ameaçada, no caso de Belerofonte ou,
eventualmente, a vítima se vinga mais tarde, de modo cruel, de quem
o caluniou, como Peleu, que esquartejou Astidamia.
6
Feita esta resenha a respeito do androginismo em íntima
correlação com o travestismo e o hieròs gámos do herói, voltemos
ainda mais um pouco nossa atenção para o androginismo, de que se
fará, em conjunto com os dois aspectos citados, uma interpretação
mais simbólica.
Para Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Mircea Eliade e, em parte,
para Angelo Brelich, cujas obras já foram exaustivamente citadas em
capítulos anteriores, o androginismo inicial é apenas um aspecto,
uma projeção antropomórfica de Fanes, do ovo cósmico, cujo esquema
se estampou no Vol. II, p. 164. Encontramo-lo na aurora de qualquer
cosmogonia e no “fecho” de toda escatologia, pois tanto no início
quanto no fim do mundo e do ser manifestado se depara a plenitude
da unidade fundamental, onde se confundem os opostos, seja porque
ainda não passam de potencialidade, seja porque alcançaram sua
conciliação, sua integração final. Aplicada ao homem, é natural que
o andrógino, símbolo de uma unidade primeva, possua uma
expressão sexual, apresentada como idade da inocência ou virtude
primeira, vale dizer, a idade de ouro a ser reconquistada. Mas a
primeira bipartição do andrógino, que, cosmicamente criada, passou
a diferenciar noite e dia, céu e terra, é idêntica à do Yin e Yang, que
agrega a estas oposições fundamentais as do frio e do calor, do
macho e da fêmea. É o mesmo que no Japão, Izanagi e Izanami, a
princípio confundidos no ovo do Caos; de igual maneira, Ptah, no
Egito, e Tiamat na Babilônia. Consoante o Rig-Veda, o andrógino é a
vaca pintada, que é o touro de fértil semente. Ser duplo, possuidor
dos atributos dos dois sexos, ainda unidos, mas prestes a separar-se, o
andrógino explica perfeitamente a significação cosmogônica da
escultura erótica indiana, em que Çiva, divindade andrógina,
identificada com o princípio informal da manifestação, é, não raro,
representada enlaçando estreitamente a Shakti, sua própria potência,
configurada como divindade feminina.
Traços de androginismo se notam igualmente em Dioniso, Castor e
Pólux, Adônis e Cibele, o que faz lembrar Izanagi e Izanami. Os
exemplos poderiam multiplicar-se, porque, em termos, como
demonstram as antigas teogonias gregas, toda divindade é
andrógina, o que faz com que a mesma não necessite de parceiro ou
parceira para procriar.
A androginia, símbolo da totalidade, surge, portanto, no início
como no fim dos tempos. Na visão escatológica da salvação, o ser
recompõe uma plenitude em que se anula a separação dos sexos, o
que evoca, em muitos textos tradicionais, o mistério do casamento, o
hieròs gámos, “reunindo”, desse modo, Çiva e sua Shakti.
Se bem que universalmente confirmada, a crença na unidade
original, que o homem deve recompor post mortem, é seguida, na
maioria dos sistemas cosmogônicos, de uma necessidade imperiosa
de diferenciar totalmente os sexos neste mundo. É que o ser humano
jamais nasce inteiramente polarizado no seu sexo. Segundo os
Bambaras, “é lei fundamental da criação que cada ser humano seja
simultaneamente macho e fêmea em seu corpo e em seus princípios
espirituais”, como a Rebis hermética, que é igualmente sol e lua, céu e
terra, essencialmente um, aparentemente duplo, enxofre e mercúrio.
Enfatizando a androginia como uma das características da
perfeição espiritual, escreve Mircea Eliade: “Com efeito, tornar-se
macho e fêmea ou não ser nem macho nem fêmea são expressões
plásticas através das quais a linguagem se empenha em descrever a
metánoia, a conversão, a inversão total dos valores. É igualmente tão
paradoxal ser macho e fêmea quanto o tornar-se novamente criança,
nascer de novo, passar pela porta estreita”31.
O retorno ao estado primordial, a liberação das contingências
cósmicas se efetuam pela complexio oppositorum, “pela conjugação
dos opostos” e pela realização da Unidade primeira.
Masculino e feminino são apenas um dos aspectos de uma
multiplicidade de opostos, cuja interpenetração é necessário que
novamente se consuma.
O androginismo explícito, atenuado, alusivo, simbólico, não
importa o nome ou o “grau”, está, como se mostrou, intimamente
correlacionado com o travestismo e o hieròs gámos como rito de
passagem, uma típica situação iniciática, em que o menino passa a
adolescente e este se “completa” no casamento. Na Grécia, como em
outras culturas, o télos, a “realização” do matrimônio está
estreitamente vinculada ao télos da consecução da idade adulta e da
iniciação que o sanciona.
Na Grécia atual, como lembra Kerényi, ainda se chama o casal de
τό άνδρόγυνον (tò andróguynon), o andrógino...32
Em síntese, o androginismo é a “nostalgia da totalização”.
Para Jung, “o homem, nos mitos, sempre exprimiu a ideia da
coexistência do masculino e do feminino num só corpo. Tais
intuições psicológicas se acham projetadas de modo geral na forma
da sizígia divina, o par divino, ou na ideia da natureza andrógina do
Criador”33.
7
O herói está ligado, como se mencionou, à Luta, muitas vezes
traduzida e reduzida ao que se denomina Trabalhos; à Agonística; à
Mântica; à Iátrica e aos Mistérios. Vamos esquematizar cada um
destes aspectos.
O termo herói, comenta Brelich, permaneceu nas línguas
modernas sobretudo com o sentido de guerreiro, de combatente
intrépido. E talvez tenha sido este o significado mais antigo da
palavra e é principalmente esta a conceituação que Homero
empresta aos bravos da Guerra de Troia. À mesma conotação se deve
a heroização em massa dos que tombaram em Maratona contra os
bárbaros de Dario (Paus., 1,32,4).
Hesíodo restringiu igualmente o conceito de herói àqueles que
combateram em Troia e em Tebas. Efetivamente, excetuando-se a
morte, nada realça tanto um número tão grande de heróis como o
qualificativo de combatente. Tal predicado se expressa mais
frequentemente na mitologia, mas, logo se verá, ele se encontra
presente também no culto. Note-se, de passagem, que o “caráter de
combatente” distingue, de certa forma, os heróis dos deuses. É
verdade que estes também combatem, ou melhor, combateram, até
consolidar sua posição divina, como aconteceu na Titanomaquia e
na Gigantomaquia, segundo se viu no Vol. I, p. 212 e 358, e sua
participação nas lutas humanas reduz-se à poesia épica. De resto, o
heroísmo divino em combate ou fora dele é nulo porque, exceto um
ou outro arranhão que os imortais possam receber, como Ares,
Afrodite, Hera, Hades, conforme se pode ler num passo célebre da
Ilíada, V, 376-404, esses ferimentos, repetimos, nenhuma
consequência maior podem provocar, uma vez que, como a mesma
Ilíada, V, 402, se apressa em dizer em relação a Hades ferido por
Héracles: Apolo pôde tranquilamente curá-lo οὐ μὲν γαρ τι
καταθνητός γἐτέτυκτο (u mèn gár ti katathnetós gu’etétykto),
“porque ele (Hades) não havia nascido mortal!” Ao contrário, quer se
trate de gestas prodigiosas, de tarefas inauditas, de Trabalhos
gigantescos, como os de Héracles, Perseu, Teseu, Belerofonte e de
tantos outros, executados contra monstros, feras, salteadores,
bandidos, em proveito próprio ou da comunidade; quer se trate de
guerra ou de μονομαχία (monomakhía), isto é, de “combate
singular”, a razão da existência do herói é a Luta. Os deuses, não
podendo morrer, pararam de lutar...
Dissemos que o espírito bélico do herói está igualmente presente
no culto. Pois bem, um dos motivos principais do culto do herói é a
proteção que o mesmo dispensa à sua pólis em guerra. Teseu, segundo
Plutarco, Teseu, 35,5, foi visto em Maratona à frente dos atenienses.
Outra personagem, que os soldados gregos não conseguiram
identificar no furor da batalha, mas cujo nome, Équetlo ou Equetleu,
foi revelado pelo Oráculo de Delfos, lutava também, como um louco,
em Maratona, empunhando uma charrua, em defesa de Atenas,
informa Pausânias, 1,32,4. Igualmente, em Delfos, insurgiram-se
contra os persas dois heróis locais, Fílaco e Autônoo (Heród., 8,34-39;
Paus., 10,8,7). Contra os mesmos inimigos e ainda contra os celtas
foram vistos pelejando os heróis Hipéroco, Laódico e Neoptólemo.
Na batalha de Salamina contra os persas de Xerxes, o herói-serpente
Quicreu foi identificado sobre uma das naves gregas (Paus., 1,35,1).
Não é, porém, apenas sob forma de visões ou mito que se
manifestava na Grécia a convicção de que os heróis protegiam
efetivamente as tropas de sua pólis, mas essa mesma persuasão
alimentava um culto real e verdadeiro. Assim, antes da grande
batalha de Salamina, os gregos, comandados por Temístocles,
invocaram os dois famosos heróis locais, Télamon e Ájax Telamônio,
pai e filho, pedindo-lhes proteção e ajuda (Heród., 8,64), e mandaram
“prender a ambos”, isto é, suas estátuas, as quais, no passado, os
eginetes, quer dizer, os habitantes da ilha de Egina, haviam
emprestado aos tebanos em guerra contra Atenas! (Heród., 5,80). Nas
guerras, os cretenses sacrificavam a seus heróis Idomeneu e Meríones
(Diod., 5,79,4). Antes da batalha de Plateias, que baniu os persas do
território grego, celebrou-se um solene sacrifício em honra dos sete
heróis epônimos, os “arquéguetas” locais (Plut., Aristides, 11). Um
ponto é pacífico: o culto dos heróis e, particularmente, a conservação
de suas “relíquias” tinham por escopo a proteção dispensada pelos
mesmos em caso de guerra. Foi, por essa razão, que os espartanos,
usando de um embuste, se apossaram dos ossos de Orestes guardados
em Tégea (Heród., 1,67), conseguindo, assim, após duas derrotas,
apossar-se da cidade. Igualmente os atenienses, por ocasião da luta
contra Esparta, pela posse da cidade macedônica de Anfípolis,
tomaram suas precauções, mandando procurar os ossos de Reso, o
célebre rei da Trácia, morto por Ulisses naIlíada.Possuir os restos
mortais ou mesmo as estátuas de seus heróis locais é ter uma
inexpugnável muralha espiritual; perdê-los é entregar a cidade ao
inimigo...
Muito mais opulenta, todavia, é a mitologia do herói guerreiro: é tão
rica e conhecida, que se torna supérflua qualquer exemplificação.
Basta abrir a Ilíada e a Odisseia de Homero e contemplar o desfile
gigantesco de Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Menelau, Ulisses, Ájax,
Diomedes, Heitor, Páris, Eneias... Existe, no entanto, uma pequena
questão que ainda levanta certa dúvida na Epopeia e enseja uma
pergunta: como se travavam os combates? Ninguém ignora que as
“guerras épicas” se decidiam, em boa parte, numa série de
monomaquias, de justas, de lutas singulares entre os grandes heróis,
ficando os demais contendores num plano muito inferior. É difícil
pensar e admitir que essa modalidade de luta, essa “situação poética”,
corresponda à realidade militar de qualquer época. Tratar-se-ia,
então, de uma exigência poética, de um expediente para caracterizar
melhor as personagens ou de uma tradição mítica? Talvez se pudesse
responder um pouco evasivamente, dizendo que nem a monomaquia
na guerra coletiva e nem tampouco a própria guerra coletiva sejam
resultantes de exigências do gosto épico, cabendo nesse caso à
monomaquia o importante papel de reflexo do núcleo mítico. Os
heróis enfeitam a luta, os demais morrem anonimamente! Com
efeito, imaginar-se um Héracles ou um Teseu, à frente de um
exército, seria um total remodelamento do mito. Um herói autêntico
é, no fundo, um solitário. “Valente, diria Ibsen, é o que está só”.
A Agonística, em grego ἀγωνιστική (agonistiké), é luta, disputa
atlética.
Agonistiké,
“agonística”,
prende-se
a
άγών
(agón),
“assembleia, reunião” e, em seguida, “reunião dos helenos para os
grandes jogos nacionais”, os próprios jogos, os concursos, as disputas.
Pois bem, a agonística é como que um prolongamento das lutas dos
heróis nos campos de batalha, porque também no agón os
contendores usam de vários recursos bélicos e, em dependência do
certame, expõem, muitas vezes, a vida, embora, em tese, a agonística
não vise a eliminar o adversário. Seja como for, o agón é uma das
formas mais características do culto heroico, se bem que o culto
agonístico não seja exclusivamente heroico, porque também os
deuses têm sua participação nos mesmos. Para não multiplicar os
nomes, vamos lembrar apenas os jogos em honra de Tlepólemo na
ilha de Rodes, os de Alcátoo em Mégara; aqueles em homenagem a
Trofônio em Lebadia; os realizados em Oropo, para celebrar o grande
herói Anfiarau; os de Fílace em memória da Protesilau; os de Cedrias
ou também da ilha de Rodes em honra dos Dioscuros, Castor e Pólux.
A essas disputas atléticas, dedicadas inteiramente a heróis, somamse as consagradas a algumas divindades. Entre essas disputas de
caráter religioso avultam os quatro grandes Jogos Pan-Helênicos, mas
inclusive nestes os heróis têm sua participação, ao menos em seus
primórdios. Segundo uma tradição, os agônes pan-helênicos, Jogos
Olímpicos, Píticos, Ístmicos e Nemeus, eram, em suas origens,
consagrados a heróis e, só mais tarde, compuseram o culto divino
(Teócrito, 12,32s; 12,29 e 12,34). Antes de pertencer a Zeus, o culto
agonístico de Olímpia era celebrado em honra de Pélops; os Nemeus,
mais tarde consagrados também a Zeus, eram, a princípio, dedicados
a um menino, morto por uma serpente, Ofeltes-Arquêmoro; os
Ístmicos o eram ao herói Melicertes, ou a Sínis ou ainda a Cirão, antes
de caírem no domínio de Posídon; os Píticos, consagrados a Apolo,
haviam sido instituídos para honrar ou “aplacar” a serpente-dragão
Píton34, vítima do próprio deus. Um outro ponto de contato entre o
culto agonístico e o culto heroico se encontra nos locais onde
treinavam os heróis para as disputas atléticas: as palestras e os
ginásios, já que inúmeros dentre estes eram dedicados a heróis.
Embora Hermes se tenha consagrado como protetor inconteste das
palestras, a seu lado sempre se encontra Héracles, concebido como o
ideal atlético. A consistência religiosa de consagração desses locais
aos heróis aparece bem nitidamente na cidade de Messena, em cujo
ginásio figuravam, além de Hermes, Héracles e Teseu (Paus., 4,32,1).
O ginásio de Argos estava construído em torno do túmulo do herói
Quilárabis e de seu pai Estênelo (Paus., 2,22,8s). O ginásio de Craníon,
em Corinto, tinha como titular a Belerofonte (Xen., Helênicas, 4,4,4).
Em Trezena, ginásio e estádio estavam sob a proteção de Hipólito
(Paus., 2,32,3). O de Delfos recordava um fato acontecido a um herói
célebre: estava construído exatamente no local em que Ulisses fora
ferido na caçada ao javali (Paus., 10,8,8) deixando-lhe uma cicatriz,
que marcará na Odisseia, XIX, 467-475, um momento dramático
para o herói. Em Esparta, onde a educação física era levada muito
mais a sério que no restante da Grécia, a rua que conduzia ao estádio,
além de ser marcada pelo túmulo do herói Eumedes, possuía uma
estátua de Héracles, a quem os sphaireîs, os jovens próximos da
maturidade, sacrificavam antes de seu combate ritual. Junto ao
estádio se encontravam os locais de culto dos Dioscuros Afetérios e
mais adiante o templo do herói Alcon, filho de Hipocoonte, e no
espaço reservado ao combate ritual havia as estátuas de Héracles e
Licurgo (Paus., 3,14,6ss; 3,15,ls).
A conexão entre culto agonístico e culto heroico era tão séria, que
os grandes e mais célebres atletas foram heroicizados, como é o caso,
entre outros, de Cleomedes de Astipaleia, Eutimo de Locros e
Teógenes de Tasos. Acrescente-se, além do mais, que o povo grego
considerava os grandes Jogos Pan-Helênicos como os
acontecimentos religiosos centrais da vida nacional. Pausânias, 1,10,1,
colocava num mesmo plano os Mistérios de Elêusis e os Jogos
Olímpicos35.
A mitologia da agonística aparece mais abundante e rica em
nomes do que em formas e temas plásticos. Mas se os heróis míticos
são celebrados com jogos, é porque “devem” ter sido grandes atletas
durante sua “existência terrena”. As primeiras grandes disputas
atléticas, míticas, claro está, em Olímpia e Nemeia, possuem a
listagem tradicional dos vencedores. Nela figuram importantes
personagens da mitologia heroica, como os Dioscuros, Héracles, os
“sete” da expedição contra Tebas e alguns outros nomes, que se
imortalizaram também em diversas modalidades esportivas,
sobressaindo cada um em determinada especialidade agonística:
Héracles é vencedor no pankrátion (luta e pugilato); Castor, na
corrida; Pólux, na luta; na corrida de carros, Iolau; no hipismo, Iásio;
Etéocles, na corrida; Polinice, na luta; Anfiarau no salto; Adrasto, no
hipismo...36
Todos estes grandes “campeões”, no entanto, passaram por longa
fase de treinamento (rito iniciático, como já se frisou) com mestres
especializados, destacando-se, dentre eles, Quirão. Somente Héracles,
segundo Apolodoro, 2,63, teve por “treinadores” a Anfitrião, seu pai;
Autólico, avô de Ulisses; Êurito, rei de Ecália; Castor e Lino... Trata-se,
portanto, de um atleta bem preparado!
No que tange à origem da agonística, a communis opinio é de que a
mesma proviria do culto dos mortos, isto é, teria como função
primeira homenagear a personagens célebres, a heróis, após sua
morte. De fato, agônes, sob o aspecto de jogos fúnebres, são temas
obrigatórios da épica heroica. Desde o XXIII canto da Ilíada, em que
se homenageia Pátroclo, com disputas atléticas, ao VIII da Odisseia,
nos agônes dos Feaces, passando pelo V canto da Eneida, em que se
disputam jogos em memória de Anquises, pai de Eneias, e chegando,
para não citar outros, ao também poeta latino Públio Papínio Estácio
(40-96 d.C.) com sua Tebaida, os agônes têm sua presença garantida
na epopeia.
Os jogos fúnebres, todavia, não são privativos da epopeia.
Aparecem, “desde o tempo dos heróis”, para celebrar até mesmo
personagens sem grande relevo mítico, como Azane, filho de Arcas
(Paus., 8,4,5; Estácio, Tebaida, 4,292) ou figuras heroicas de maior
projeção, como as competições em honra de Pélias, cantadas por
vates líricos, como Íbico, Estesícoro e Simônides, consoante Ateneu,
4,172Ds.
De outro lado, talvez fosse mais correto refletir ainda um pouco
acerca da exclusiva proveniência da agonística do culto dos mortos.
Os funerais não se constituem na ocasião única em que se realizam
memoráveis disputas atléticas. A tradição nos legou um bom
número de agônes célebres, em que se estipulava como prêmio a mão
de uma jovem. Um destes, por sinal, está em correlação com os Jogos
Olímpicos, como já se falou: a fraudenta disputa entre Pélops e
Enômao, pela mão de Hipodamia. Existem outros agônes míticos
com o mesmo escopo. Entre eles, a disputa por Penélope, vencida por
Ulisses (Paus., 3,12,1); a luta por Marpessa, ganha por Idas; a contenda
por Atalante (Apol., 3,107); pelas segundas núpcias das Danaides
(Pínd., Píticas, 9,111ss), assassinas de seus primeiros maridos; pela
filha de Anteu (Pínd., Píticas, 9,105ss); pela mão de Dejanira, em que
Héracles levou de vencida ao rio Aqueloo e até Peleu terá que lutar
para conquistar Tétis (Pínd., Nemeias, 3,35s)...
E os agônes não param nas disputas de belas mulheres. Existem
ainda cerradas competições pela soberania, pelo reino: Endímion
decide sua própria sucessão através de um célebre agón entre seus
filhos e essa contenda famosa assumirá um valor “prototípico” nos
Jogos Olímpicos (Paus., 5,8,1). Um outro agón pelo poder, mas de
caráter cosmogônico, e que figura na perspectiva mítica de Olímpia,
é a luta entre Zeus e Crono (Paus., 5,7,10; 8,2,2). Diga-se, logo, que o
certame pela mão da bem-amada ou pelo reino pode ter como
alternativa da vitória a própria morte: Érix desafiou a Héracles, para
obter o rebanho de Gerião, e ofereceu, em caso de derrota, o próprio
reino (Diod., 4,23; Paus. 3,16,4; 4,36,4). É claro que o êxito efetivo de
luta entre Héracles e Érix era a vida ou a morte.
O herói também participa da Mântica. Em grego, μαντική
(mantiké), de mavntir (mántis) “adivinho, profeta ou profetisa”, é a
arte de “predizer o futuro”.
A Mântica na Grécia se apresenta sob formas diversas e como o
herói não tem acesso a todas elas, talvez fosse oportuno apontar
primeiro os vários aspectos da arte divinatória. Grosso modo, a
mântica engloba diferentes técnicas, podendo ser: dinâmica ou por
inspiração direta; indutiva (piromancia, eonomancia, hepatoscopia,
oniromancia...); ctônia, por incubação, e cleromancia37. Esta divisão é
apenas de cunho didático e está longe de ser completa: dá conta
somente das técnicas mais conhecidas e mais usadas na Hélade e em
outras culturas. As diferenças entre elas, sua importância e emprego
serão resumidamente explicados linhas abaixo. Conquanto os
poderes oraculares estivessem concentrados nas mãos de Apolo, o
senhor todo-poderoso de Delfos, outros deuses e muitos heróis, sem o
prestígio, claro está, do deus pítico, exerceram-nos igualmente na
Grécia antiga. E fato curioso, na Hélade, é que, ao lado de famosos
heróis “videntes”, como Tirésias, Calcas, Anfiarau, Anfíloco, Mopso,
cuja arte divinatória faz parte intrínseca de seu mito, existem outros,
como Ulisses, Protesilau, Sarpédon, Menesteu, Autólico, Pasífae38, Ino,
Héracles em Bura, Glauco em Delos, Aristômenes na Messênia, Orfeu
Laio... para os quais a mântica é apenas um apêndice de seu
mitologema. Uma coisa, porém, parece fora de dúvida: no oráculo
heroico parece prevalecer a mântica por incubação, sem dúvida a
mais empregada por Homero39, e a cleromancia. Se bem que quase
nada se saiba de preciso acerca dos oráculos de Ulisses na Etólia
(Lícofron, 799; Aristóteles, frag. 1211); de Menesteu, na península
ibérica (Estrabão, 3,140), de Autólico, em Sinope (Estrabão, 12,546) e
de outros mais, os documentos, se bem que escassos, atestam que nos
oráculos de Pasífae, Ino, Anfiarau, Calcas, Mopso e Tirésias
predominava a ἐγκοίμησις (enkoímesis), isto é, a incubação. Em
alguns casos, como nos de Calcas e Anfiarau, o consulente deveria
fazer um sacrifício e depois dormir sobre a pele da vítima, o que,
diga-se, de caminho, excluía o holocausto! Um culto heroico de que
resulta concretamente que não era por incubação é o de Héracles, em
Bura, na Acaia: pela localização do oráculo numa gruta, em local
bastante inacessível, acredita-se que lá funcionava a cleromancia,
cuja antiguidade na Grécia é comprovada. Possivelmente se
lançavam quatro ossos no interior da caverna e, a cada golpe,
correspondia uma resposta, que era anotada numa tabuinha.
O fato de o culto oracular apolíneo estar muitas vezes associado ao
culto ou à reminiscência de um herói não deve causar estranheza,
uma vez que, como se sabe, o deus de Delfos, não raro, se sobrepôs ao
herói de um local, que ali possuía um oráculo. O fenômeno já era
conhecido dos antigos, como no caso do oráculo de Tilfusa: o Hino
Homérico a Apolo, 244ss, parece aludir ao fato. No caso de Delfos, já
se comentou o episódio no Vol. II, p. 96ss, as coisas são bem claras: o
deus suplantou a Píton, antigo senhor do oráculo e, depois, o associou
a seu próprio culto. O nome de sua sacerdotisa, Pitonisa, não deixa
dúvidas a respeito. Fato semelhante aconteceu com o herói Ptóos,
segundo se mostrou, em parte, no mesmo Vol. II, p. 87: Ptóos manteve
um culto separado do de “Apolo Ptóos”, que lhe ocupara o oráculo.
Na Cilícia, ao lado de “Apolo Sarpedônio”, existia um culto oracular
consagrado ao próprio herói Sarpédon. De qualquer forma, com
oráculos “independentes” ou associados ao deus mântico da Hélade,
todos os adivinhos estão a serviço de Apolo e figuram, muitas vezes,
como seus filhos: é o caso de Mopso de Malos; Mopso, o argonauta
(Valério Flaco, l,383s); Anfiarau (Higino, frag. 70); Calcas, Íamo...
A grande diferença entre Apolo e seus “associados” e “filhos” é que
aquele fundamenta sua Mântica na inspiração direta e estes na
ctônia, por incubação, e na cleromancia, embora também estas sejam
consideradas como um dom de Apolo, Ilíada, I, 72. Para se ter uma
ideia da oposição entre mântica apolínea e a ctônia é aconselhável
ler uma passagem significativa de Eurípides, Ifigênia em Táuris,
1259ss. Para os gregos em geral, todavia, essas diferenças eram
meramente “culturais”. Todas as formas divinatórias eram canônicas
e ortodoxas e, não raro, certamente, uma questão de gosto, de
“devoção” ou de possibilidades e meios político-econômicos: uma
consulta “proveitosa” ao aristocrático Oráculo de Delfos poderia estar
condicionada ao ouro de Creso ou à astúcia política de Filipe da
Macedônia... O povo consultava oráculos mais simples! Afinal, como
diz Aquiles (Il., I, 63), “o sonho é também uma mensagem de Zeus”:
καί γὰρ τὄναρ εκ Διότιν (kaì gàr t’ónar ek Diós estin). E Zeus era
o deus de todos...
O herói também é médicoe tal é a conexão entre Mânticae Iátrica,
que é impossível separar os dois tópicos, a não ser, como fizemos, por
motivos didáticos.Iátrica, em grego Ἰατρική (Iatriké), de ἰατρός
(iatrós), “médico”, é a “arte de curar”.
Como vimos, a mântica ctônia é a forma característica do oráculo
heroico. Pois bem, a incubação tem por objetivo essencial, na maioria
dos casos, a cura, e a atividade terapêutica dos deuses e dos heróis se
exerce principalmente através das respostas do oráculo. Apolo, deus
mântico por excelência, era, ao menos a princípio, um deus-médico, e
assim se torna visível a íntima correlação entre iátrica e mântica no
majestoso epíteto que lhe empresta o grande trágico Ésquilo,
Eumênides, 62: ἰατρόμαντις (iatrómantis), quer dizer, o médicomântico, “o que sabe curar através de seus oráculos”.
Anfiarau, como já se disse, era adivinho e possuía um oráculo por
incubação, mas esse oráculo se ocupava sobretudo de iátrica, como
demonstra a presença em seu santuário de uma verdadeira
constelação de médicos e médicas: Apolo Peéon40, Panaceia, Íaso,
Higiia, Atená Peônia e, mais que tudo, o testemunho de Pausânias,
1,34,4, segundo o qual os “curados” lançavam moedas de ouro e prata
numa fonte próxima ao santuário, o que, de saída, atesta um local de
“cura”. Asclépio, o herói-deus, de que já se falou no Vol. II, p. 93s,
cognominado o “grande médico”, desempenhava suas funções
iátricas nos monumentais santuários de Epidauro, Cós e Atenas
mediante a incubação: aparecia pessoalmente nos sonhos e dava
respostas concernentes às doenças e à cura das mesmas. Igualmente
Calcas (Estrabão, 6,284) e Podalírio, filho de Asclépio, eram
detentores de oráculos por incubação com finalidade terapêutica.
Há, todavia, heróis, que, mesmo não possuindo oráculos, eram
depositários de culto terapêutico. Para não se estender em nomes, é
bastante citar: Macáon, filho de Asclépio; Alexanor, Górgaso,
Polemócrates e Nicômaco, filhos de Macáon; Hemítea, filha de
Estáfilo; Oresínio de Elêusis e Aristômaco de Maratona... e até mesmo
heróis, sem nexo algum com a iátrica, podiam ser invocados como
médicos, em determinadas regiões: Héracles o era em Hieto, na
Beócia (Paus., 9,24,3); Heitor, em Troia, e até o rei Reso.
Uma característica da mitologia iátrica, que não causa surpresa, é
sua conexão com Asclépio, não por ter sido ele um grande médico e
ser filho de Apolo, o iatrómantis, mas porque seu mestre havia sido
Quirão, o educador de tantos heróis sob tantos aspectos! (Il., IV, 219).
A fonte primeira onde todos beberam é sempre do pacífico Centauro.
Pátroclo curou a Eurípilo de um ferimento (Il., XI, 828ss), porque
aprendera a “arte” com Aquiles, que, por sua vez, a recebera de
Quirão. O próprio filho de Tétis exercita sua ciência médica,
medicando a Pátroclo e, desse modo, a intervenção do grande herói,
curando a um seu companheiro, passou a ser uma espécie de tema
obrigatório na épica: Ulisses ferido é curado por Autólico (Odiss.,
XIX, 449ss); Eneias o é por Iápix (Eneida, 12,391ss).
Mas não é só de feridas físicas que cuidam os heróis com poderes
médicos: curam também a loucura. Héracles, vítima de insânia mais
de uma vez, foi curado por Antiquíreo, epônimo de Antícira, a cidade
de origem do heléboro, ou o foi, segundo uma variante, por Medeia
(Diod., 4,55,4). Antíope, enlouquecida por Dioniso, recuperou a razão
por meio de Foco (Paus., 9,17,6). As filhas de Preto, rei de Tirinto (Ov.,
Metamorfoses, 15,322ss) foram enlouquecidas pelo mesmo deus ou
por Hera e curadas por Melampo. O adivinho tebano Bácis, curando
a loucura das mulheres da Lacônia (Paus., 10,12,11), foi ele próprio
enlouquecido. Esse fato conduz, aliás, a um motivo mítico deveras
interessante: o do doente-médico ou médico-doente. Quirão, que
ensinou a curar e curou tantos ferimentos, recebeu de Héracles uma
ferida incurável (Apol., 2,85). Podalírio (Il., XI, 834s), em
determinado momento, “necessita de um excelente médico”.
Mais conhecido é um outro motivo que se pode expressar por
somente cura aquele que provocou o ferimento. O mito mais
divulgado a esse respeito é o de Télefo, que, ferido por Aquiles, só
podia ser curado pelo herói ou por sua lança. Somente Helena, cuja
familiaridade com drogas é atestada já na Odisseia, IV, 219ss, poderá
curar da cegueira por ela produzida ao poeta Estesícoro, conforme a
Suda, verbete Στησίχορος (Stesíkhoros).
O herói é uma personagem especial, que sempre deve estar
preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até
mesmo para as perigosas catábases à outra vida. As iniciações da
efebia servem-lhe de escudo e de respaldo para as grandes gestas
nesta vida, mas a iniciação nos Mistérios parece predispô-lo para a
última aventura, para a derradeira agonia: a morte, que, na realidade,
o transformará no verdadeiro protetor de sua cidade e de seus
concidadãos. E fato curioso, como se verá, alguns heróis, após a
morte, passam a ter igualmente direito a um culto mistérico!
O maior dos iniciados foi certamente Héracles, que mereceu
inclusive o epíteto sagrado de Μύστης (M×stes), consoante o poeta
alexandrino Lícofron, 1328, qualificativo, diga-se, de caminho, que
não significa apenas iniciado, mas também iniciador nos Mistérios.
Figurava inclusive o filho de Alcmena ao lado dos Dioscuros (Xen.,
Helênicas, 6,3,6) como o protótipo mítico do iniciado estrangeiro em
Elêusis, tendo a Teseu como fiador ateniense41. Igualmente Hipólito
(Eurípides, Hipólito, 24s) era iniciado nos Mistérios eleusinos.
Aristeu o era, segundo Diodoro, 4,82,6, nos Mistérios de Dioniso.
Se é tão pobre a documentação acerca da iniciação de heróis nos
Mistérios, o mesmo não acontece com o culto mistérico que a muitos
deles era prestado post mortem. Entre “esses muitos” estão os filhos de
Medeia; Melicertes, o filho caçula de Ino e Átamas; os Dioscuros;
Dríops; Hipodamia; Ino. Nos Mistérios de Andaina, na Messênia, o
túmulo do herói Êurito estava localizado dentro do próprio templo
(Paus., 4,3,10). A quase todos os Mistérios gregos, e até mesmo aos de
Elêusis, estavam associados cultos heroicos, como os de Triptólemo
(Paus., 1,38,6) e Eubuleu. Eumolpo possuía seu túmulo (Paus., 1,38,2) e
Hipótoon, um templo na cidade sagrada de Deméter e Perséfone. Até
mesmo os heróis tebanos, que tombaram na expedição dos Epígonos,
foram sepultados em Elêusis (Plut., Teseu, 29,5).
8
O herói é, em princípio, uma idealização e para o homem grego
talvez estampasse o protótipo imaginário da καλοκαγαθία
(kalokagathía), a “suma probidade”, o valor superlativo da vida
helênica. Aristóteles, Política, 7,1332b, é explícito, ao afirmar que os
heróis eram física e “espiritualmente”, κατά τήν ψυχήν (katà tèn
psykhén), superiores aos homens. Sob esse enfoque o herói surge aos
nossos olhos externos e sobretudo “internos”, como alto, forte, bonito,
solerte, destemido, triunfador... É bem possível que Perseu,
Belerofonte, Teseu, Agamêmnon, Aquiles, Heitor, Diomedes, Ájax
Telamônio, Meléagro, Páris, Jasão, Orestes, Peleu e tantos outros, que
engalanam os grandes ciclos heroicos, merecessem “oniricamente”,
epítetos até mais pomposos! De outro lado, segundo observa o já tão
citado Angelo Brelich, esses seres extraordinários se notabilizam por
certas formas específicas de criatividade, comparáveis às façanhas
incríveis dos heróis civilizadores das sociedades arcaicas.
Considerados autóctones42, a saber, como nascidos diretamente da
“terra” e seus primeiros habitantes, são ancestrais de raças, povos e
famílias importantes, como os cadmeus descendem de Cadmo; os
cecrópidas de Cécrops; os argivos de Argos; os árcades de Arcas...
Eméritos fundadores de cidades e colônias, inventam e revelam
muitas instituições humanas, como as leis que governam a cidade, as
normas da vida urbana, a monogamia, a metalurgia, a escrita, o
canto, a tática militar. Instituem jogos esportivos; participam
ativamente de guerras, da mântica, da iátrica e dos mistérios. E mais
que tudo, em cometimentos gigantescos, varrem da terra os
bandidos, as feras e os monstros...
Mas este é tão somente um lado dessa personagem tão polimórfica
e ambivalente, embora prototípica de tantas atividades humanas.
Observando-a mais de perto, nota-se que a beleza e a bravura de
Aquiles podem ser empanadas física e moralmente por caracteres
monstruosos: um herói aparece igualmente e com muita frequência
sob forma anormalmente gigantesca ou como baixinho; pode ter um
aspecto teriomorfo e andrógino; apresentar-se como fálico;
sexualmente anormal ou impotente; pode ser aleijado, caolho, ou
cego; estar sujeito à violência sanguinária, à loucura, ao ardil e
astúcia criminosa, ao furto, ao sacrilégio, ao adultério, ao incesto e,
em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale dizer, dos
limites impostos pelos deuses aos seres mortais.
Alguns exemplos colhidos entre centenas de outros poderão dar
uma ideia dos atributos contraditórios, da vasta complexio
oppositorum desses seres “divinamente monstruosos”.
De saída, como se está falando de atributos contraditórios, é
conveniente lembrar que o herói tem a faculdade de ser tanto uma
fonte quase inesgotável de bons serviços quanto de maldição,
sobretudo quando ofendido nesta vida ou depois da morte, o que
pode ser, de certa forma, confrontado com a ambivalência das
divindades ctônias Erínias-Eumênides. Argos, que tantos benefícios
trouxera à Argólida, enlouqueceu e induziu ao suicídio a Cleômenes,
que violara o direito de asilo do santuário do herói, incendiando-lhe
o bosque e fazendo perecer os suplicantes (Paus., 3,4,1). Mas vamos às
anomalias: Héracles, dotado de três fileiras de dentes, possuía uma
altura de mais de três metros. O gigantismo, porém, não é específico
do principal herói grego: a altura, ou melhor, a “altitude” de Aquiles
era de cinco metros e noventa e quatro centímetros! Os ossos de
Orestes encontrados em Tégea permitem atribuir-lhe uma estatura
de quatro metros e sessenta e dois centímetros! (Heród., 1,68). E, ao
lado desses “píncaros heroicos”, poder-se-iam alinhar igualmente
Teseu, Pélops, Aristômaco, Oto, Oríon43. Mas, paralelamente a esse
gigantismo anormal, surgem heróis de baixa estatura, se bem que em
documentação bastante rara e reticente, talvez para não lhes
deslustrar a majestade física, a qual se concilia melhor com a
tendência idealizante e com o conceito de superioridade. A Ilíada, II,
527ss já nomeia dois baixinhos: Ájax Oileu e Tideu. A este último se
refere Atená, falando a Diomedes ferido, V, 801: Tideu, enfatiza a
deusa, “era de baixa estatura, mas era um guerreiro”. Também Mínias
era baixo. Ulisses, o solerte Ulisses, além de feio, era de pequena
estatura. Na Odisseia, IX, 515s diz o Ciclope Polifemo, tendo Ulisses a
seu lado, que sua cegueira pelo herói havia sido predita por um
adivinho, mas que aguardava um homem alto e belo. Aliás, na Ilíada,
III, 210, já se alude à baixa estatura do esposo de Penélope, o que é
complementado por Lícofron, 1244, e Tzetzes, que chamam a Ulisses
de Νάνος (Nános), nada menos que anão...44Outra deformidade
comum dos belos e destemidos heróis é o teriomorfismo: Cécrops, já
se mencionou, era ofiomórfico; Lico, representado sob a forma de
lobo, era licomórfico e Egeu, sob a de cabra, era egimórfico. São
muito numerosos os nomes de animais na mitologia heroica e, por
vezes, esses nomes se adquirem através de metamorfoses, o que
parece explicar que tais heróis pertenciam primitivamente “a mitos
de origens de espécies animais”, vale dizer, trata-se de mitos de
diferenciação de seres primordiais, que não são ainda nem
totalmente homens, nem inteiramente animais. Desse modo, Céleo,
no mito eleusino, é o picanço, o popular pica-pau; Alópeco, a raposa.
Quanto a Arcas, cujo nome está ligado a árktos ou árkos, “urso”,
percebe-se logo que é filho de Calisto, metamorfoseada em “ursa” por
Ártemis, a “senhora dos animais”. Por vezes, a metamorfose nada tem
a ver com o nome: Hécuba foi transformada em cadela (Eurípides,
Hécuba, 1205ss); Hipômenes e Atalante, em leões (Apol., 3,105s); Io,
em vaca (Hes., frag. 187).
Como já se falou da “monstruosidade” do androginismo, além do
gigantismo, nanismo e teriomorfismo, vamo-nos ocupar, agora, com
as demais deficiências físicas dos heróis. Estes estão marcados por
uma gama tão ampla de outras anomalias em seus corpos, que seria
impossível, dentro de um capítulo, citar e comentar a todas.
Mencionaremos, por isso mesmo, apenas as principais com seus
respectivos portadores. Entre estas destacam-se a policefalia, a
acefalia, a gibosidade, gagueira, coxeadura e cegueira.
Policéfalo era Gerião (Hes., Teogonia, 285), enquanto Argos era
polioftalmo. Molo, irmão (Diod., 5,79) ou filho (Apol., 3,17) de
Deucalião, era acéfalo: cortaram-lhe a cabeça por haver tentado
violentar uma ninfa ou uma jovem cretense. A estátua acéfala de
Tritão em Tanagra (Paus., 9,20,4) repetia uma história análoga à de
Molo. Míscelo, herói colonizador (Diod., 8,17), era corcunda.
Lembremo-nos de que Tersites, além de corcunda, era coxo (Il., II,
216-219). Bato (Heród., 4,155) era gago e seu neto homônimo era coxo
(Heród., 4,161).
São muito numerosos os heróis coxos ou com defeitos e cicatrizes
nas pernas, mas neste campo existem no mito várias atenuações,
devidas à idealização dos heróis. Em certos casos a anormalidade das
pernas ou dos pés é tão somente mencionada, sem uma ligação
efetiva com o mito, como no caso de Édipo, que conserva apenas o
nome de pés inchados, sem maiores consequências, aparentemente,
para o mito! Em outras personagens, todavia, inteira ou parcialmente
míticas, a coxeadura assume uma função mítica e religiosa: a
deformidade, tida por castigo divino, passa a ser considerada como
um obstáculo à sucessão ou como uma indignidade. Dos dois filhos
mais velhos do rei ateniense Codro, Nileu não aceita ficar
subordinado a seu irmão Médon, porque este é coxo (Paus., 7,2,1). Na
história de Agesilau, que era coxo (Plut., Ages., 2,2,3,4), o mito se
insere num contexto em parte determinado por um oráculo
ambíguo, que adverte o povo acerca de um rei aleijado. Quanto a
cicatrizes e ferimentos, eles normalmente se localizam nos pés, nos
joelhos e pernas. Filoctetes é, sem mais, definido por Sófocles,
Filoctetes, 486 e 1032, como χωλός (kholós) “coxo” e Télefo é
cognominado aquele que tem “um ferimento na coxa” (Apol., 3,17).
Em alguns casos, a cicatriz, particularmente, apresenta pouco relevo
no conjunto do mito, mas enseja inserções importantes no relato: na
Odisseia, XIX, 393, a cicatriz de Ulisses, além de provocar uma cena
emocionante de ἀναγνώρισις (anagnórisis), de “reconhecimento”
entre o herói e sua velha ama Euricleia, motiva uma longa narrativa
a respeito da caçada ao javali. Aquiles possuía, como único ponto
vulnerável de seu corpo, o calcanhar: é que, segundo uma variante do
mito, o osso do calcanhar do pé direito do herói, ainda menino, se
queimara na malograda tentativa de Tétis de imortalizar o filho, e
Quirão o teria substituído por um osso do gigante Dâmiso. O mesmo
Quirão, segundo já se comentou no Vol. II, p. 90, embora não fosse
herói, mas o educador de heróis, também foi, sem oquerer, ferido, em
torno do joelho, por uma flecha envenenada de Héracles (Apol., 2,85).
Numa das variantes do mito de Belerofonte, segundo a grandiosa
exposição pindárica (Ístmicas, 7,44ss), documentada por Aristófanes
de Bizâncio (257-180 a.C.), verbete Ταρσός (Tarsós), o herói
querendo escalar o Olimpo, cavalgando Pégaso, foi lançado do céu à
terra. O local em que ele tombou, a cidade de Tarso, recebeu tal nome
porque o herói fraturou o tarso do pé esquerdo!
Outro ponto sensível na “monstruosidade” física dos heróis é a
cegueira, que aparece com grande frequência entre os adivinhos
míticos, Tirésias, Eveno, Fórmio e entre poetas míticos, como
Demódoco (Odisseia, VIII, 64), semilendários, como Homero
(Tucídides, 3,104,5) e históricos, como Estesícoro45. Existem, porém,
muitos outros heróis, que, por um motivo ou outro, são cegos ou
perdem a visão por efeito de um ato criminoso: o gigantesco caçador
Oríon foi cegado pelo rei Enópion, porque aquele lhe violentara a
esposa; Fênix o foi pelo próprio pai Amintor, por lhe ter seduzido a
concubina, chamada Clícia ou Ftia (Aristófanes, Acarnenses, 421;
Apol., 3,175); Anquises, pai de Eneias, perdeu a vista, porque, um dia,
bêbado, se vangloriou de seus amores com Afrodite (Sérvio M.
Honorato, Eneida, 2,35); Erimanto ficou cego por ter visto a mesma
deusa nua.
A cegueira, todavia, “não é a única forma de anormalidade”: há
heróis monoftalmos, como o famoso Óxilo, que, por sinal, às vezes, é
citado não diferentemente do herói germânico Odin, como
trioftalmo (Paus., 5,3,5; Apol., 2,175), desde que se somem ao seu os
olhos de seu cavalo, segundo se comentou no Vol. I, p. 107. Outra
observação importante, conforme acentua Brelich, é que, “de modo
surpreendente, a anormalidade dos olhos resulta da anormalidade
das pernas, havendo entre os dois defeitos físicos, tão diferentes na
realidade, uma singular equivalência mítica”46. Não se trata de
acasos, enfatiza o mesmo autor, em que o herói aparece ora coxo, ora
cego, como Édipo, que, “coxo” no nome, acabou por rasgar os próprios
olhos, mas antes de fatos em que as duas deficiências físicas se
apresentam alternativamente, mercê de um castigo divino, por
exemplo. Licurgo, de quem já se fez menção, numa das variantes de
seu mito, desejando, por ódio a Dioniso, cortar-lhe todos os pés de
videira, feriu ou cortou a própria perna; na versão homérica (Il., VI,
139), em punição da hostilidade ao mesmo deus, o rei dos edônios,
além da perna, perdeu igualmente a vista. O supracitado Anquises,
que ficara cego, por ter imprudentemente relatado seus amores com
Afrodite, na variante de Sófocles, frag. 344, se tornara também
coxo47. O acontecido com Oríon é ainda mais original, porque suas
duas deficiências procedem de dois mitos independentes: um é o
mito da cegueira; outro aquele em que um escorpião lhe mordeu
mortalmente o calcanhar (Nicandro, Theriaká, 13ss – “Mordeduras
de animais selvagens e seu tratamento”).
Há um outro ângulo ainda mais sério na “monstruosidade” do
herói: seu comportamento social, ético e moral. Não apenas Héracles,
mas vários outros são vítimas da polifagia, isto é, de um apetite
insaciável. Lepreu, epônimo da cidade de Lépreon, na Acaia,
desafiou, entre outros, a Héracles para uma competição glutônica.
Cada um devorou um boi inteiro. Por fim, vencido, Lepreu foi morto
por seu rival (Paus., 5,5,4). Também Sileu enfrentou ao filho de
Alcmena para um concurso, mas, dessa feita, o vencedor seria o que
bebesse mais. Igualmente vencido, Sileu foi assassinado. Mas a
polifagia não está restrita ao ciclo de Héracles. É verdade que este é,
por vezes, chamado búphagos, “que devora um boi”, mas existe um
glutão, ou mais de um com o nome próprio de Búfago, sem nenhuma
relação com Héracles. Idas, irmão de Linceu, dividiu um boi em
quatro porções, mas acabou por devorá-lo sozinho (Apol., 3,135). Na
Odisseia, VII, 215ss e IX, 5ss, para decepção dos idealizadores da
figura de Ulisses, o grande comilão é exatamente o protagonista,
citado inclusive na República de Platão, 3,390B; 9,162. Ateneu (séc. III
d.C.), em sua obra importantíssima Dipnosofistas, “Banquete de
Sofistas”, ao falar da polifagia (10,411Ass), afirma que Adefagia era
detentora inclusive de um culto na Sicília (416B) e acrescenta que
diversos atletas, “agonistas”, entre os quais heroicizados, possuíam
igualmente um apetite hercúleo: Mílon de Crotona, Titormo da
Etólia, Astíanax de Mileto.
Ao lado, porém, da proverbial polifagia, os heróis cultuavam uma
outra adefagia: seu apetite sexual era tão voraz quanto seu estômago.
Como sempre, o campeão é Héracles: numa só noite, ele fecundou as
cinquenta filhas de Téspio (Paus., 9,27,7). Outros, mais comedidos
(Apol., 2,66), julgam que o fato se passou em cinquenta noites
consecutivas, mas os “conciliadores”, para não racionalizar, em
demasia, a potência hercúlea, transformaram o prodigioso em
“fantástico”: a façanha teria sido consumada em sete noites
sucessivas, possuindo o herói a sete tespíades por noite. A que sobrou,
serviu de sobremesa... Não para aí, no entanto, o descomedimento
sexual dos heróis. Existem ainda duas modalidades de violência
carnal que os mesmos praticam constantemente: o rapto de
mulheres e a violência propriamente dita, traduzida sob a forma de
adultério, estupro, incesto... Teseu, o “ideal do espírito ateniense”,
raptou a Helena, a mesma que Páris ou Alexandre raptaria mais
tarde, quando a menina contava apenas nove anos de idade... Raptou,
além do mais, a lindíssima princesa minoica Ariadne e a amazona
Hipólita, o que provocou a guerra das Amazonas contra Atenas.
Acompanhado de seu fraterno amigo Pirítoo, desceu ao Hades e
tentou raptar Perséfone! Teseu e Páris, porém, não são os únicos: os
Dioscuros, Castor e Pólux, se apossaram violentamente das
leucípides, filhas de Leucipo (Teóc., 20,137ss); Cadmo se apossa da
princesa Europa; Aquiles rapta, em Tanagra, as estratonices. E os
exemplos poderiam multiplicar-se, como os que vamos apontar em
relação à violência carnal propriamente dita e, nesse contexto, por
vezes, nem as deusas escapam...
Oríon, que, na ilha de Quios, já usara de violência contra a esposa
ou filha de seu hospedeiro Enópion, tentou ainda estuprar a deusa
Ártemis ou, segundo outros, a tentativa de estupro teria sido contra a
fiel companheira desta, a hiperbórea Ópis (Apol., 1,27) como já o
haviam tentado contra a mesma deusa Actéon e Alfeu, e igualmente
fizera Títio contra Leto (Odiss., XI, 580s) e Ixíon contra Hera (Pínd.,
Píticas, 2,26s). Mais numerosos ainda são os casos de tentativa de
violência sexual praticada pelos heróis contra indefesas vítimas
humanas: Ájax violenta Cassandra; Sísifo deflora Anticleia, filha de
Autólico e mãe de Ulisses; Héracles se apossa pela força de Auge, que
se torna mãe de Télefo. “O mais excelente nos combates e nos
conselhos” (Pínd., Nemeias, 8,7s); “o mais religioso dos gregos” (Plut.,
Teseu, 10,2); “o mais piedoso de todos” (Apol., 3,159), o justíssimo
Éaco, também ele possuiu pela violência a Psâmate (Apol., 3,158)...
Diferentemente do incesto involuntário de Édipo, que se pode
classificar como um erro trágico, a infração de muitos heróis, tanto
nos incestos quanto nos adultérios, é consumada em sã consciência.
Tieste pratica incesto com a própria filha Pelopia; Eneu com a filha
Gorge, de que nasce Tideu; Óxilo possui a própria irmã Hamadríada;
Erecteu, a filha Prócris; Macareu, a irmã Cânace! Também os
adultérios são muitos. Não se trata nestes de violência, mas de
sedução. Aérope, mulher de Atreu, torna-se amante de Tieste; Egisto,
na ausência de Agamêmnon, seduz-lhe a esposa Clitemnestra;
Prócris se deixa induzir em adultério por uma personagem que ela
ignora tratar-se de seu próprio marido travestido. Os numerosos
adultérios de Penélope, “a fiel esposa de Ulisses”, que, a bem da
verdade, só aparecem na literatura a partir do século III a.C., mas que
parece pertencerem ao estrato pré-homérico do mito, desfiguram
muito a imagem idealizada dessa ínclita senhora! Em violento
contraste com essa fome sexual, tem-se, no mito, também a
impotência heroica! Esclarece com certa razão Brelich que, se Freud
tivesse conhecido o mito do herói Íficlo, filho de Fílaco, que nada tem
a ver com Íficles, filho de Anfitrião e Alcmena, teria certamente
criado um termo psicanalítico, Complexo de Íficlo, em vez de
complexo de castração. Há duas explicações para a impotência desse
herói: na primeira, Íficlo, só ao ver a faca ensanguentada com que o
pai estava castrando os carneiros, perdeu a virilidade; na segunda,
estando o pai a podar as árvores (note-se que em grego e em latim um
mesmo verbo pode ser empregado no sentido de podar e castrar:
καθαίρέιν [kathaírein] e putare), quis afastar o filho, tendo, para
isso, lançado a faca para cravá-la numa árvore perto do lugar em que
estava Íficlo, mas fê-lo com tanto azar, que aquela feriu os órgãos
genitais do filho, tornando-o impotente. Igualmente Bato, fundador
da colônia grega de Cirene na África, era, ao que tudo indica, um
herói euiratus. O homossexualismo é outra presença constante no
mito dos heróis. Vamos citar, tão somente, os três exemplos clássicos
no mundo dos “homens”, uma vez que alguns deuses, se não o
praticaram habitualmente, tiveram em várias ocasiões
comportamentos homossexuais, como é o caso de Zeus com
Ganimedes e de Apolo com Jacinto. Laio, hóspede de Pélops, raptoulhe, por paixão incontrolável, o filho Crisipo (Apol., 3,44), o que irá
provocar a “culpa primordial” dos labdácidas, como se mostrará no
mito de Édipo. Tântalo, personagem extremamente contraditória,
rapta o jovem troiano Ganimedes. É tradição mítica que o
homossexualismo tenha sido introduzido na Hélade por Laio, mas
Apolodoro, 1,6, afirma categoricamente que “o primeiro de todos a
amar o masculino” foi Tâmiris, cantor de Trácia, o qual já aparece na
Ilíada, II, 595, passo em que, tendo desafiado as Musas, estas, após
vencê-lo, fizeram do mesmo um “impotente”, πήρόν (perón) no
grego homérico. Nestas circunstâncias, diga-se de passagem, é
possível conciliar as duas tradições: Laio teria sido o primeiro
homossexual ativo e Tâmiris, o passivo.
A violência dos heróis, no entanto, não se limita ao campo sexual.
Talvez sua tarefa mais brutal seja “matar”, já feita abstração da
guerra, das lutas e das justas, “espaços naturais do derramamento de
sangue e da atividade característica do herói”. Afora tudo isto, são
poucos os heróis que não tenham cometido, ao menos, um homicídio.
“A motivação desses homicídios, argumenta Brelich, é tão vária,
muitas
vezes
tão
contraditória
e
sobretudo
tão
desproporcionadamente insignificante, que dá a impressão de que na
maior parte das vezes seja puramente secundária: o importante é o
homicídio e não sua causa”48. E se o introdutor do homicídio (é que
cada aspecto da vida humana, bom ou mau, possui um herói como
iniciador) foi Ixíon (Ésquilo, Eumênides, 718), Héracles, que matou
tantas vezes, alicerçado em motivações várias, foi igualmente o
iniciador dos homicídios “por acaso”, quase por uma distração. Conta
Pausânias, 2,13,8 que o filho de Alcmena, em seguida a uma simples
irritação, matou com o polegar ao pequenino Êunomo, copeiro do rei
Eneu. Heróis e heroínas matam “por acaso” ou, segundo expressão
técnica, praticam o φόνος ἀκούσιος (phónos akúsios), o
“homicídio involuntário”, cuja eficácia literária é reconhecida por
Aristóteles49. Foi assim que Perseu, lançando um disco, matou, sem o
querer, a seu avô Acrísio e, de maneira semelhante, Óxilo causou a
morte de seu irmão Térmio (Paus., 5,3,7). Peleu, arremessando mal a
lança, matou o sogro Eurítion (Apol., 3,163) na célebre caçada da
Caledônia; Tideu assassinou involuntariamente ao irmão Olênio,
Anfitrião ao sogro Eléctrion, Céfalo a esposa Prócris. O exemplo mais
antigo na literatura se encontra na Ilíada, XXIII, 85ss, em que
Pátroclo, οὐκ ἐθέλων (uk ethélon), “sem o querer”, mata Eanes, filho
de Anfídamas. Uma variante do mito é o caso em que o herói,
querendo assassinar alguém, mata, por fatalidade, a um parente,
como Aédon, que, desejando exterminar os filhos de Níobe, golpeia o
próprio filho. Uma segunda variante é aquela em que o herói,
querendo matar a uma pessoa, o faz, mas logo em seguida descobre
tratar-se do próprio pai: além do caso de Édipo, que mata a Laio, temse no mito o episódio de Altêmenes, que mata a seu pai Catreu,
confundindo-o com um pirata (Apol., 3,16). Há, todavia, muitas
outras causas que levam o herói à prática de homicídio: mata por
inveja, como Pélops assassina a Estinfalo (Apol., 3,159) ou como Peleu
e Télamon, que matam a seu meio-irmão Foco; por ciumes, como Io
que liquida os filhos de Temisto; por vingança, como Anfião e Zeto,
que assassinam a Dirce; “por encomenda”, como Alcméon, que, a
pedido de seu pai Anfiarau, mata a própria mãe Erifila (Apol., 3,86);
por loucura, como Héracles, que mata os próprios filhos tidos com
Mégara.
Uma observação importante é que, na lista negra de homicídios
praticados por heróis, a percentagem de parentes assassinados é
muito grande: pais, como Laio, Agamedes, Têmenos (Apol., 2,178);
mães, como Clitemnestra, Erifila; filhos, como Toxeu, assassinado
por Eneu, ou os de Héracles, bem assim os de Ino; irmãos, como
Etéocles e Polinice; maridos, como os quarenta e nove assassinados,
numa só noite, pelas Danaides, suas esposas; esposas, como Mégara,
morta por Héracles (Eur., Héracles, 999-1000), ou Antíope,
assassinada por Teseu (Ov., Heroides, 4,119); sogros, como Eléctrion,
que morre às mãos de Anfitrião e ainda se poderia ir mais longe...
Havia até mesmo, na Antiguidade, catálogos em que se registraram
esses tipos violentos de assassinatos entre familiares. Um exemplo
bem claro são as chamadas Fabulae (Fábulas)50de C. Higino Júlio,
erudito do século I a.C. Nas Fábulas 238, 239, 240, 241, 244 e 245
pode-se ler: 238 (qui filias suas occiderunt, os que mataram suas
filhas), 239 (matres quae filios interfecerunt, mães que assassinaram
seus filhos), 240 (quae coniuges suos occiderunt, esposas que
eliminaram seus maridos), 241 (qui coniuges suas occiderunt,
maridos que mataram as mulheres), 244 (qui cognatos suos
occiderunt, pais que assassinaram os filhos), 245 (qui soceros et
generos occiderunt, os que mataram sogros e genros)...
Vamos estampar mais um tipo de crime nessa ânsia sanguinária
dos heróis e, em seguida, passaremos a outras deformações dessas
criaturas extraordinárias, mas profundamente marcadas pela
complexio oppositorum.
O homicídio pode, além do mais, ser conjugado com o sacrilégio:
Ájax Oileu violenta Cassandra junto ao altar da deusa Atená e
Neoptólemo mata o rei Príamo sobre o altar de Zeus Herquio.
Aquiles, apaixonado pelo filho caçula de Príamo, Troilo, assassina-o
dentro do templo de Apolo.
A verdade sobre o lado negro dos heróis, porém, não termina por
aqui. Os atos de intemperança sexual e a violência sanguinária não
esgotam os excessos de sua natureza irrequieta, irascível e
tumultuosa, porquanto o herói pratica outrossim e com frequência a
arte sutil da astúcia e da ladroagem. Héracles, quase sempre se inicia
por ele, furtou a valiosa manada de éguas de Ífito e, quando este, que
ignorava a identidade do ladrão, saiu para procurá-las, o herói o
matou traiçoeiramente, violando o direito de hospitalidade (Odiss.,
XXI, 22ss). Como forma ainda mais grosseira de traição basta
lembrar o episódio dos Molíones, Ctéato e Êurito, que, a serviço de
Augias, derrotaram numa batalha ao herói. Mais tarde, quando da
celebração dos terceiros Jogos Ístmicos, os Molíones foram enviados
para representá-lo na festa e Héracles os matou numa emboscada
(Pínd., Olímpicas, 10,25ss; Paus., 5,2,1). Na epopeia, o supremo “ideal
da astúcia”, cuja intenção dolosa e desonesta é escamoteada sob a
forma e o epíteto de prudência, de habilidade, e de trickster, é
representado por Ulisses. É curioso, todavia, e de feição contraditória
o fato de Homero caracterizar a verdadeira natureza do herói,
lembrando que, genealogicamente, Ulisses era neto de Autólico e que
este fora instruído por Hermes na arte do perjúrio e do furto (Odiss.,
XIX, 395ss). Há de se recordar ainda, como aliás se verá no mito do
herói, a torpe traição por ele arquitetada contra seu grande rival
Palamedes, que, em função da mesma, foi inocentemente lapidado
(Apol., 3,8). Ao lado de Ulisses, mestre da solércia criminosa e de seu
avô Autólico, que, na Ilíada, X, 267, aparece explicitamente como
ladrão, se alinham outros, tão ou mais célebres que os dois anteriores.
Sísifo, primeiro rei de Corinto, de que se apossou pela violência, foi
tão astuto, segundo se comentou no Vol. I, p. 238, que, por duas vezes,
conseguiu ludibriar a própria Morte (Thánatos). Não menos
criminosamente arguto foi Tântalo, igualmente comentado no Vol. I,
p. 83s, que furtou dos deuses o néctar e a ambrosia (Pínd., Olímpicas,
l,60ss). Jasão e Medeia, através de uma “grande cilada”, μἐγα δόλος
(mégas dólos), comenta Apolônio de Rodes, Argonáuticas, 4,421ss,
despedaçaram Apsirto, irmão da própria Medeia. Com a ajuda de
Mírtilo, segundo se viu no Vol. I, p. 86, Pélops usando de um
estratagema sórdido, matou a Enômao. Foi através de uma fraude
contra Ájax Telamônio que Menelau ganhou as armas de Aquiles.
As citações e exemplos poderiam ir ainda muito longe, mas o que
se deseja acentuar é a ambivalência dessa “criatura” singular. Suas
inúmeras qualidades e serviços extraordinários em favor da pólis e
da comunidade, mas também suas fraudes, roubos, solércia
criminosa, bem como todas as violências e “monstruosidades”
anteriormente apontadas, não se aplicam a este ou àquele tipo de
herói, mas, em maior ou menor escala, o todo dessa vasta complexio
oppositorum faz parte integrante da vivência heroica.
9
Se o herói tem um nascimento difícil e complicado; se toda a sua
existência terrena é um desfile de viagens, de arrojo, de lutas, de
sofrimentos, de desajustes, de incontinência e de descomedimentos, o
último ato de seu drama, a morte, se constitui no ápice de seu πάθος
(páthos), de sua “prova” final: a morte do herói ou é traumática e
violenta ou o surpreende em absoluta solidão. Afirma Brelich que
ainda não se fez uma estatística, e é pena, mas acrescenta que a
maioria dos heróis morre tragicamente. Uns se matam, como Ájax
Telamônio, Hêmon, Antígona, Jocasta, Fedra, Egeu. A guerra, as
justas e as vinganças são as grandes ceifadoras. Basta abrir a Ilíada e
o final da Odisseia, que se passa a nadar num mar de sangue. Da
morte de Reso, Pátroclo e Heitor até o massacre dos pretendentes, no
XXII canto da Odisseia, a cruenta seara do deus Ares produziu frutos
em abundância!
Quanto ao assassínio pode ser o mesmo agravado, segundo se viu
mais acima, pelo grau de parentesco entre o criminoso e a vítima ou
ainda pela crueldade com que foi praticado: Foco é sacrificado pelos
próprios irmãos Peleu e Télamon; Agamêmnon é traiçoeiramente
morto pela esposa Clitemnestra e esta pelo próprio filho Orestes.
Alguns, além de mortos, são esquartejados, como Orfeu (Apol., 1,14),
Apsirto e Penteu (Eur., Bacantes, 1125ss). Outros o são igualmente,
mas por animais: Lino e Actéon foram dilacerados por cães; Abdero
(Apol., 2,97), Glauco, Diomedes (Diod., 4,15,3) e Hipólito (Verg., En.
7,767) foram despedaçados por éguas e cavalos. Uns tantos são
fulminados por Zeus, como Asclépio, Capaneu (Sóf., Antígona, 127ss),
Salmoneu (Diod., 4,68,2), Erecteu (Higino, Fab., 46), Idas (Pínd.,
Nemeias, 10,71), Licáon ou seus filhos (Apol., 3,98). Por vezes os
heróis são vítimas de acidentes fatais: Orestes, o argonauta Mopso,
Ofeltes (Apol., 3,65), Épito (Paus., 8,4,7), Citéron, Eurídice (Verg.,
Geórgicas, 4,457), Hespéria (Ov., Metamorfoses, 11,769ss) são mortos,
em circunstâncias várias, por mordidelas de serpentes; Héracles, tão
valente e vigoroso, incendiou-se num simples manto que, por
ciumes, lhe enviara a esposa Dejanira. Desesperado de dor, o
gigantesco herói, segundo se verá, lançou-se numa fogueira no
monte Eta. Teseu, que vencera o Minotauro, foi empurrado pelas
costas para um abismo. Ulisses, o mais solerte dos gregos, foi
assassinado por um simples adolescente, que, por acaso, era seu
filho... Aquiles pereceu, ingloriamente, por uma simples flecha
lançada talvez ao acaso por Alexandre ou Páris, o menos autêntico
dos heróis troianos da Ilíada. Também um herói, como Édipo, pode
morrer, ouvindo apenas os balbucios do silêncio, em absoluta
solidão.
A morte do herói, todavia, se constitui no clímax de sua
δοκιμασία (dokimasía), do “conjunto de provas” por que passou esse
espancador de trevas. A morte é seu último grau iniciático, quando
então, como se expressa Sófocles no último verso de Édipo em
Colono, 1779, πάντως γὰρ εχει τάδε κῦρος (pántos gàr ékhei táde
kyros), “quando então a história se fecha em definitivo”. Acta est
fabula, terminou a tragédia ou a comédia...
É a morte, no entanto, que lhe confere e proclama a condição
sobre-humana. “Se, por um lado, diz Eliade, não são imortais como os
deuses, por outro os heróis se distinguem dos seres humanos pelo
fato de continuarem a agir depois da morte. Os despojos dos heróis
são carregados de temíveis poderes mágico-religiosos. Os seus
túmulos, relíquias, cenotáfios atuam sobre os vivos durante longos
séculos. Em determinado sentido, poderíamos dizer que os heróis se
aproximam da condição divina graças à sua morte: gozam de uma
pós-existência ilimitada, que nem é larvária nem puramente
espiritual, mas consiste numa sobrevivência sui generis, uma vez que
depende dos restos, traços ou símbolos dos seus corpos.
Com efeito, e contrariamente ao costume geral, os despojos dos
heróis são enterrados no interior da cidade; são mesmo admitidos
nos santuários”51, como acontece com os “restos mortais” de Pélops e
Neoptólemo, guardados respectivamente nos templos de Zeus em
Olímpia e no de Apolo em Delfos. Seus túmulos e cenotáfios, no
centro da Ágora, transformam-se no centro do culto heroico, onde se
realizam sacrifícios, não raro acompanhados de lamentações
fúnebres e até de “coros trágicos”, como acontecia em Sicione, em
homenagem a Adrasto (Heród., 5,67). Em Esparta, consoante
Xenofonte, República dos Lacedemônios, 15,9, os reis mortos eram
cultuados “não como homens, mas como heróis” e acrescenta
Heródoto, 6,58, que dessa forma de veneração fazia parte igualmente
a lamentação ritual.
Desse modo, a morte do herói transforma-o em δαίμων (daímon),
num intermediário entre os homens e os deuses, num escudo
poderoso que protege a pólis contra invasões inimigas, pestes,
epidemias e todos os flagelos. Partícipe de uma “imortalidade” de
cunho espiritual, garante a perenidade de seu nome, tornando-se,
destarte, um arquétipo, um modelo exemplar para quantos “se
esforçam por superar a condição efêmera do mortal e sobreviver na
memória dos homens”.
Na realidade, a grande tarefa desse dáimon é chegar à unidade na
multiplicidade. Sua morte é a anagnórisis, o conhecer-se por inteiro.
Com ela se fecha o uróboro. Sua vitória final, seu triunfo derradeiro
desencadeiam e liberam novamente o fluir da vida no corpo do
mundo. Em síntese, o herói é o umbigo do mundo, através do qual
irrompem as energias que alimentam o cosmo.
Quanto ao destino final do herói, vale dizer, no que se refere à sua
escatologia, não é fácil determiná-lo, seja por carência de
documentação, seja porque jamais houve na Hélade uma doutrina
permanente sobre os novíssimos: existiram e coexistiram na mesma,
de Homero a Plotino, tantas escatologias quantos os grandes
“momentos culturais” por que passou a pátria de Sófocles. Com
efeito, uma das singularidades da religião grega face às demais na
Antiguidade é que aquela não possuiu uma teologia organizada. Esse
fato ajuda a explicar as tremendas oscilações escatológicas que
surgiram, do século IX a.C. ao século III d.C.
Se na Odisseia, XI, 467ss, Aquiles, em companhia de “quase” todos
os heróis aqueus, está mergulhado nas trevas do Hades, este mesmo
herói, em outras tradições, participa da luminosidade eterna da ilha
de Leuce. O próprio Homero não sabe muito bem o que fazer com
Héracles: no mesmo canto XI, 601ss da Odisseia, Ulisses vê nas
sombras do Hades o eídolon, “o corpo astral” do grande herói, mas
“ele próprio”, αὐτός (autós), está no Olimpo em companhia de
Hebe... O destino de alguns, porém, está claro e definido: Ganimedes
foi elevado aos céus; o grande Héracles, “apesar de Homero”,
certamente se banqueteia inteiro, em companhia de Hebe no
Olimpo; o egrégio Menelau, sua Helena e outros se deliciam na Ilha
dos Bem-Aventurados, cujo rei é o agora sorridente Crono que, após
uma longa passagem pelo Hades, fez as pazes com Zeus na “doutrina
órfica” e se tornou soberano de imortais menores! Alguns foram
tragados vivos pela Mãe-Terra, como Trofônio, Anfiarau, Ceneu,
Altêmenes, e devem ser felizes lá embaixo. Uns quantos, como Ixíon,
Sísifo, Tântalo, as Danaides, foram condenados, no Tártaro, a um
suplício eterno!
Com respeito à sorte dos demais, e são centenas e centenas, quase
tudo se ignora. Talvez continuem a viver e a agir, como os heróis
epictônios e hipoctônios de Hesíodo, segundo se explicou no Vol. I, p.
185.
Seja como for, uma vez que foram heróis, após sua atormentada
carreira pelo vale de lágrimas, devem ter passado, na feliz expressão
de Brelich, “para uma outra espécie de existência, formalmente
semelhante àquela dos deuses”, de onde continuam a exercer
influência sobre os acontecimentos humanos.
Para encerrar este capítulo, uma derradeira indagação se impõe:
em que consistiria, afinal, a tão decantada e comprovada
ambivalência heroica? O herói acumula, como fartamente se
mostrou, atributos contraditórios. De natureza excepcional,
ambivalente, não raro aberrante e monstruosa, o herói se revela
resplandecente e tenebroso, simultaneamente bom e mau, benfeitor
e flagelo. Dominado por uma ὅβρις (hýbris) incoercível, sua
“démesure”, seu descomedimento não conhece fronteiras nem
limites. Se Antígona (Sóf., Antígona, 460ss) e Alceste (Eur., Alceste,
280ss) foram capazes, a primeira de morrer, para que o irmão fosse
sepultado, e a segunda de entregar-se voluntariamente nos braços de
Thânatos, por amor aos filhos e ao marido, ao pedido de Heitor
(Ilíada, XXII, 338ss), agonizante a seus pés, para que não lhe
entregasse o corpo aos cães, mas à solicitude de seus pais e amigos
troianos, Aquiles, ardendo em hýbris, respondeu que desejaria que o
ódio o levasse a dividir o corpo do esposo de Andrômaca em pedaços,
para devorá-los crus!
Ora, atitudes tão antagônicas demandam forçosamente uma
explicação, que não parece muito difícil. Dotado de timé e areté, mais
perto dos deuses que dos homens, o herói está sempre numa situação
limite e a areté, a excelência leva-o facilmente a transgredir os
limites impostos pelo métron, suscitando-lhe o orgulho desmedido e
a insolência (hýbris). Foi necessário que Apolo, no canto XXII, 8ss da
Ilíada, lembrasse a Aquiles, que avançava como um furacão contra
Ílion, o abismo insondável que se interpõe entre um deus e um
mortal, embora premiado com a timé e a areté. Tal conclusão, porém,
explica, de certa forma, as atitudes ambíguas do herói, mas não as
justifica. É preciso puxar o fio de mais longe.
Mircea Eliade viu a solução do problema, como não poderia deixar
de ser, no afastamento do herói para o illud tempus, para o tempo das
origens: “Todos esses traços ambivalentes e monstruosos, esses
comportamentos aberrantes, evocam a fluidez do tempo das
‘origens’, quando o ‘mundo dos homens’ ainda não havia sido criado.
Nessa época primordial, as irregularidades e os abusos de toda
espécie (isto é, tudo aquilo que será denunciado mais tarde como
monstruosidade, pecado ou crime) suscitam, direta ou
indiretamente, a obra criadora. No entanto, é em consequência das
suas criações – instituições, leis, técnicas, artes – que surge o ‘mundo
dos homens’, onde as infrações e os excessos serão proibidos. Depois
dos heróis, no ‘mundo dos homens’, o tempo criador, o illud tempus
dos mitos, está definitivamente encerrado”52.
Angelo Brelich usa, para explicar as “mil faces” do herói, como
diria Joseph Campbell, do mesmo processo de Eliade, isto é, do recuo
do herói ao illud tempus, ao tempo das origens.
Numa tradução mais ou menos livre, com alguns enxertos nossos,
eis o pensamento de Brelich: Embora toda e qualquer generalização
esteja sujeita a restrições, pode-se dizer, grosso modo, que todas as
religiões do tipo arcaico empenharam-se em garantir e perpetuar a
ordem existente, o status quo vigente. Em todas ou em quase todas, no
entanto, tinha-se consciência de que esta ordem atual – ordem do
cosmo, da natureza, da sociedade, das instituições – não existiu desde
todo o sempre, ab aeterno, mas se formou de uma vez por todas num
passado mais ou menos distante, que se pode chamar “o tempo do
mito”, o qual confere à ordem existente seu valor sagrado e imutável.
Pois bem, foi daquele tempo qualitativamente diverso do tempo
profano que surgiu, mediante a ação de seres extraordinários, a
grande transformação das coisas, a qual acabou por lhes outorgar o
estado atual. É mister, todavia, acentuar, mais uma vez, que tudo
quanto existe possui suas raízes naquele mundo ambivalente dos
começos, um mundo integralmente diferente do atual. Eis o motivo
por que, no tempo presente, para consolidar, vez por outra, a ordem
permanente, ameaçada pelo desgaste do tempo profano, é preciso
recorrer ao “tempo do mito”, reatualizando-o com toda a sua
desordem primordial, para fazer ressurgir do mesmo, e de novo, a
ordem permanente. Donde se conclui que a ambivalência do “tempo
do mito”, condição da ordem e fonte de sua sacralidade, “mas,
simultaneamente, desordem, o reverso da ordem atual (no bem ou
no mal, paradisíaco ou monstruoso, se não ambos ao mesmo tempo),
é um estado de imperfeição, um estado simplesmente não-humano.
Pois bem, as personagens que agem nessa ambivalência são
igualmente monstruosas e imperfeitas, mas se constituem
simultaneamente nos agentes sobre-humanos da transformação
criadora de que surge a ordem atual”. A ambivalência do herói
mítico, seu lado luminoso e sua face escura, essa notória complexio
oppositorum, fazem parte integrante, ipso jacto, do todo de sua
personalidade, plasmada illo tempore, no tempo das origens. E é
como agente e garante da transformação criadora, de que surgiu a
ordem existente no mundo atual, que é também, no fundo, obra sua,
que o herói está sempre pronto para defender o status quo vigente.
A propósito desse esforço das religiões arcaicas em garantir e
perpetuar a ordem existente, talvez não seja fora de propósito
acrescentar que, para K. Kerényi53, bem assim, com mais prudência,
para Brelich, os deuses são efetivamente “as formas” sobre as quais
uma determinada civilização politeísta organizou, por articulação, a
ordem que essa mesma cultura quer seja permanente em seu mundo.
Experiência e criação – ambas historicamente condicionadas – não
se separam jamais nitidamente, pois que toda experiência já é criação
e toda criação se fundamenta na experiência. As divindades não são
“realidades”
simplesmente
“descobertas”
e
passivamente
contempladas, mas sobretudo formas “impostas” por uma cultura ao
próprio mundo. Com todos os tipos particulares de culto, incluindose neles a narração dos mitos, uma religião visa a reafirmar, a
consolidar e a plasmar os deuses, que não são imortais simplesmente
porque a própria realidade é permanente, coisa, aliás, discutível, por
isso que é diversa a realidade de cada cultura, mas que devem ser
imortais, na medida em que uma civilização religiosa do tipo arcaico
almeje que o mundo conserve a ordem e a forma construídas por essa
mesma civilização. A tendência conservadora, característica das
religiões antigas, é a fonte e o garante da imortalidade dos deuses.
Os heróis, esses ἡμίθεοι (hemítheoi), esses semideuses, mais
próximos dos deuses que dos homens, esses indispensáveis
intermediários entre os mortais e os imortais, tiveram também por
função, mantendo o status quo, apregoar a imortalidade de seus
“pais”.
E os psiquiatras, como visualizam o herói? Vamo-nos restringir ao
capítulo Os mitos antigos e o homem moderno, do Dr. Joseph L.
Henderson, inserido em obra importante, já por nós citada, da
autoria de Jung e mais cinco excelentes colaboradores54. Não se
traduzirá nem tampouco se resumirá o capítulo por inteiro, mas se
fará apenas uma síntese daquilo que se julga indispensável para uma
visão mais ampla do que se expôs nesta Introdução ao mito do herói.
Iniciando por consignar que os mitos do herói variam muito em
suas particularidades, mas, quando observados mais de perto, vê-se
logo que todos são estruturalmente muito semelhantes, o psiquiatra
norte-americano afirma que, não obstante terem sido desenvolvidos
por grupos ou indivíduos comprovadamente sem nenhum contato,
todos esses mitos possuem um modelo universal, vale dizer, todos
têm por infraestrutura um arquétipo. Se é de todo impossível pensar
num contato cultural entre tribos africanas, os incas peruanos e os
gregos, é possível, todavia, descobrir em todas essas culturas o relato
do nascimento complicado de um menino, suas primeiras mostras
de força sobre-humana, sua rápida ascensão ao poder ou sua
proeminência, as lutas gigantescas e triunfais contra monstros e
forças do mal, seus desvios, motivados pela hýbris e sua queda,
devida à traição ou o sacrifício “heroico”, cujo desfecho é a morte, não
raro trágica. “Tal modelo, afirma o psiquiatra em pauta, possui
significado psicológico tanto para o indivíduo como para toda uma
sociedade, que tem uma necessidade análoga de estabelecer a
identidade coletiva”55. Existe uma outra característica importante do
mito do herói, que fornece uma boa pista para análise do mesmo. Em
muitos dos relatos míticos heroicos, a primitiva fraqueza da
personagem é compensada com a ajuda, sob forma hierofânica, de
figuras tutelares ou guardiãs, que o assistem na realização de tarefas
que o herói jamais poderia executar sozinho. No mito grego, a
presença de divindades protetoras é muito comum: Eneias era
protegido por Afrodite; Teseu era guardado por Posídon; Perseu por
Atená; Hipólito por Ártemis; Orestes por Apolo; Aquiles, além de
Tétis, estava sob a guarda do centauro Quirão. “Essas figuras divinas
ou semelhantes a deuses são os representantes simbólicos da
totalidade da psiqué, a maior e a mais abrangente identidade que
prodigaliza a força de que carece o ego pessoal. Essa incumbência
específica de tutela indica que a função essencial do mito do herói é
desenvolver a consciência do ego individual, para que se dê conta de
sua própria força e fraqueza, o que lhe servirá de respaldo para as
grandes e duras tarefas que terá pela frente. Quando o indivíduo
superou a prova inicial e entra na fase madura da vida, o mito do
herói perde sua importância. A morte simbólica do herói convertese, por assim dizer, na consecução da maturidade”56.
É preciso levar em conta, no entanto, que o esquema acima, traçado
pelo Dr. Henderson, é por demais abrangente, uma vez que engloba
um ciclo completo, do nascimento à morte. É essencial reconhecer,
nas próprias palavras do autor, que em cada uma das etapas deste
ciclo “existem formas especiais da história do herói aplicáveis ao
estágio particular alcançado pelo indivíduo no desenvolvimento da
consciência de seu ego e com o problema específico que se coloca
num dado momento. A saber: a imagem do herói evolui de uma
forma que reflete cada etapa do desenvolvimento da personalidade
humana”.
E, mais adiante, diz o psiquiatra norte-americano: e não obstante
estar o herói em conflito com a sombra57, o que Jung denominou “a
batalha pela liberação, na luta do homem primitivo para alcançar a
consciência, esse conflito se expressa através da luta entre o herói
arquetípico e as potências cósmicas do mal, personificadas em
dragões e outros monstros. No desenvolvimento da consciência
individual, a figura do herói representa os meios simbólicos com os
quais o ego emergente ultrapassa a inércia da mente inconsciente e
libera o homem maduro do desejo regressivo de voltar ao estado
bem-aventurado da infância, a um mundo dominado pela figura
materna”58.
O herói é, pois, o que é: uma complexio oppositorum. E assim sendo,
talvez se pudesse encerrar o presente capítulo com uma outra
“conjugação dos opostos”: se de um lado a “idealização é um
apotropismo secreto, porque se idealiza, quando se quer conjurar um
perigo”, de outro, não se pode abandonar por completo a “idealização
heroica”, porque “quando o homem perde a capacidade de idealizar,
sobrevém fatalmente a morte do mundo heroico”, um mundo que
faz falta, porquanto “uma das grandes crises do mundo moderno é a
esterilização da imaginação”.
É bom não esquecer que o termo imaginatio, “imaginação”, é
correlato de imago, “imagem”, e perder a “imagem” pode não ser
muito conveniente...
1. ELIADE, Mircea. Op. cit. T. I, vol. 2, p. 124.
2. Dada a carência de uma bibliografia básica emlíngua portuguesa sobre o Mito dos heróis,
demos a este capítulo uma extensão bem maior do que havíamos planejado de início. A
finalidade é abrir para os interessados umcampomais amplo de pesquisa comuma
bibliografiamínima,mas atualizada e comas fontes greco-latinas, onde o herói está inteiro,
presente e atuante, aomenos no que tange às suas “funções” e características. Para a redação
do presente capítulo, recorremos, por issomesmo, aos poemas homéricos, particularmente à
Ilíada; às obras de Píndaro; a algumas tragédias gregas; vez por outra a Xenofonte
eHeródoto (Histórias),mas principalmente a Apolodoro (Biblioteca histórica), Pausânias
(Descrição da Grécia) e Plutarco; Ovídio (Metamorfoses) e Higino (Fábulas). Para a parte
teórica nossos guias foram, entre outros, Joseph Campbell (The Hero with a thousand faces);
Otto Rank (El mito del nacimiento del héroe); Károly Kerényi (Miti e misteri);Mircea Eliade
(História das crenças e das ideias religiosas, t. I, vol. 2) e sobretudo o profundo e
documentadíssimo Angelo Brelich, de cuja obramonumental (Gli eroi greci)muito nos
aproveitamos, traduzindo-lhe trechos e orientando-nos por outros. Os demais autores, que
poderão ser consultados comproveito para uma boa compreensão do Mito dos heróis,
aparecem alinhados na bibliografia do primeiro, mas particularmente neste terceiro
volume. Para não repetir os títulos das obras únicas supracitadas de Apolodoro, Pausânias e
Heródoto, citamos, por vezes, apenas os nomes dos autores, seguidos dos capítulos e demais
indicações necessárias. Adotamos, além do mais, quando necessário, para os nomes dos
autores gregos e latinos, as abreviaturas convencionais: Pín(daro); Sóf(ocles); Eur(ípides);
Heród(oto); Xen(ofonte); Apol(odoro); Paus(ânias); Plut(arco); Ov(ídio) e Hig(ino).
3. ROHDE, Erwin. Psyche. Leipzig: Tübingen, 1893, p. 134.
4. USENER, H. Götternamen. Bonn: Cohen, 1897, p. 248ss.
5. FARNELL, L.R. Greek Hero Cults and Ideas of Immortality. Oxford: Oxford University
Press, 1921, p. 71ss.
6. NILSSON, Martin. The Minoan-Mycenaean Religion and its Survival in Greek Religion.
Lund, 1950, p. 585.
7. NOCK, A.D. In: Harvard Theological Review, p. 141ss, citado por Angelo BRELICH. Op. cit.,
p. 17s.
8. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 18.
9. Ibid., p. 313s.
10. Op. cit., p. 118s.
11. RANK, Otto. El mito del nacimiento del héroe. Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 79s.
12. Ibid., p. 86ss.
13. JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e inconsciente colectivo. Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 63s.
14. CAMPBELL, Joseph. The Hero with a thousand faces.Princeton: Bollingen Paperback
Printing, 1978, p. 30ss.
15. O neologismo monomito é, ao que parece, uma criação de James JOYCE. Finnegans Wake.
New York: Viking Press, 1939, p. 581. 22
16. MARÃO, Públio Vergílio. Eneida, 6, 886-889.
17. O problema, segundo Campbell, é que o estado de Buddha, ou Iluminação, não pode ser
comunicado, mas tão somente se aponta o caminho para a iluminação. Esse tipo de doutrina
da incomunicabilidade da verdade, que paira acima de nomes e formas, é básico nas
grandes tradições orientais e platônicas. Enquanto as verdades científicas são
demonstráveis por meio de hipóteses racionalmente fundamentadas em fatos observáveis,
o mito e o ritual são apenas guias, símbolos para que se possa chegar à iluminação
transcendental, cujo passo definitivo depende de cada um individualmente em sua própria
experiência silenciosa. Assim se explica que um dos termos sânscritos para designar “sábio”
seja muni, o “silencioso”. Sakyamuni, um dos títulos de Gautama Buddha, significa o
silencioso ou sábio (muni) do clã dos Sakya. Embora fundador de uma religião mundial, o
último ponto de sua doutrina permanece oculto e, necessariamente, em silêncio.
18. Thésiadeve ter sido um engano: em grego as festas de Teseu se
denominavamThéseiaouTheseîa
19. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 120.
20.Fratriva (Phratría), Fratria era, em Atenas, uma associação de cidadãos, unidos pela
comunidade de sacrifícios e repastos religiosos, formando uma divisão política. Após Sólon
(séc. VI a.C.), uma Fratria era composta de trinta famílias e cada Tribo de três Fratrias.
Desse modo, como Atenas estava dividida em quatro Tribos, havia doze Fratrias e trezentas
e sessenta famílias.
21 VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 62 [Tradução de
Mariano Ferreira].
22. Ibid., p. 141s.
23. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios. Rio de Janeiro: Edições Funarte, 2.
ed. 1983, p. 111.
24. BARGUET, Paul. Le Livre des Morts des anciens égyptiens. Paris: Cerf, 1967.
25. Ibid., p. 112ss.
26. JUNG. C.G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 325 [Tradução de D. Mateus
Ramalho Rocha OSB].
27. Banquete, em nossa língua, não traduz muito bem o grego συμπόσιον (sympósion),
palavra formada por ούν (s×n), “com, juntamente”, e o v. πίνειν (pínein), “beber”, donde “beber
em companhia de”. A tradução latina, já atestada em Cícero, Ad fam., 9, 24, 3, compotatio,
“ação de beber em conjunto” poderia, talvez, desfazer qualquer equívoco. Ao que parece, os
gregos distinguiam σύνδειπον (s×ndeipnon), em latim concenatio, o “comer junto”, o banquete
propriamente dito, com muita comida e muita bebida, como aliás, afirma Pausânias, no
Banquete, 176, de συμπόσιον (sympósion), em que se bebia, e certamente muito, mas se
tratava também de algum assunto, de algum temasério, como acontece no Banquetede
Platão, em que se discorre sobre o amor. O nosso banquete atual parece que reuniu tudo:
comida, bebida e... os indigestos e soporíferos discursos!
28. Ao que parece, o relato de Platão acerca do andrógino e das fusões homem-homem,
mulher-mulher, que, separados, estes dois últimos, deram origem, respectivamente, aos
pederastas e às heterístrias, provém da antropogonia fantástica de Empédocles de
Agrigento (séc. V a.C.), segundo se pode depreender dos fragmentos 60 e 61, Diels, da obra do
filósofo agrigentino.
29. Himeneu, em grego ϓμέναιος (Hyménaios), talvez proceda de ύμήν (hymén), “grito do
cântico nupcial” e seria, eventualmente, idêntico à ύμήν (hymén), hímen, película,
membrana. Himeneu é o deus que conduz o cortejo nupcial e miticamente era filho de
Apolo com uma das três Musas, Calíope, Clio ou Urânia ou ainda filho de Dioniso e de
Afrodite. Vários mitos tentam explicar a invocação do nome de Himeneu por ocasião dos
cortejos nupciais. O que passamos a resumir parece ser o mais corrente. Conta-se que
Himeneu era um jovem ateniense de tamanha beleza, que comumente era confundido com
uma lindíssima adolescente. Embora de condições modestas, apaixonou-se por uma jovem
eupátrida e, desesperado por não poder desposá-la, seguia-a, de longe, aonde quer que ela
fosse, como Eco, se bem que, em condições diversas, buscava sempre a Narciso. Certa feita,
moças atenienses nobres foram a Elêusis oferecer sacrifícios a Deméter, mas uma súbita
irrupção de piratas as raptou a todas, incluindo-se Himeneu, mais uma vez identificado
como uma simples e linda mulher. Após longa travessia, os piratas chegaram a uma costa
deserta e, extenuados, dormiram. Himeneu, com grande ousadia, matou a todos e, tendo
deixado as jovens em lugar seguro, voltou só a Atenas e se prontificou a devolvê-las, desde
que se lhe desse em casamento aquela que ele amava. Concluído o pacto, as atenienses
foram devolvidas às suas famílias. Em memória desse feito, o nome de Himeneu é invocado,
como de bom augúrio, em todos os casamentos.
Segundo o gramático latino Sérvio M. Honorato, Eneida, 4,99 e 127, Himeneu era
“reconhecido” em Pompeia como andrógino.
30. O motivo Putifar surge pela primeira vez, num contexto mais profano, no conto
novelesco egípcio Os dois irmãos, isto é, a estória lindíssima do herói Anpu e Bata e, um
pouco mais tarde, em contexto religioso, no relato bíblico supracitado e no mito grego.
31. ELIADE, Mircea. Méphistophélès et l’Androgyne. Paris: Gallimard, 1962, p. 132.
32. KERÉNYI, K. Die Mythologie der Griechen. Zürich: Rhein, 1951, p. 170.
33. JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1980, p.
27s. [Tradução de D. Mateus Ramalho Rocha, OSB].
34. Stricto sensu, Píton não é um herói, mas por seu paralelismo com Pélops, Ofeltes e
Melicertes; pelo fato de possuir um túmulo precisamente no santuário de Apolo, o que o
coloca em situação idêntica à de Jacinto; pelo fato de Apolo ter sido obrigado a purificar-se
por havê-lo assassinado; por seu caráter teriomorfo, com ampla correspondência no mundo
heroico e, finalmente, por sua faculdade mântica, Píton, lato sensu, poderia ser considerado
herói.
35. Os nomes dos vencedores eram inseridos em documentos oficiais e nestes se
fundamentava a cronologia grega. Assim, cada Olimpíada se realizava (porque eram quatro
os jogos nacionais) de quatro em quatro anos. Em Olímpia, o primeiro campeão foi Corebo.
Diga-se, de passagem, que as estátuas dos vencedores ornamentavam não apenas os locais
da competição, mas ainda as praças públicas de suas respectivas cidades.
36. Este elenco de campeões pode ser visto e ampliado em Pausânias, 589, e Apolodoro, 3,66.
37. Mântica dinâmica ou por inspiração direta é a de Delfos, em que Apolo fala
“diretamente” por intermédio de sua Pitonisa; indutiva é aquela em que o mántis procede
por “conclusão”, examinando determinados fenômenos, tais como o fogo (piromancia), o voo
das aves (eonomancia), o fígado das vítimas (hepatoscopia), os sonhos (oniromancia); ctônia,
por incubação, como já se explicou no vol. II, p. 98, 184-185, era aquela em que o consulente,
deitando-se (incubare é estar deitado) por terra (ctônia), normalmente num recinto sagrado,
tinha sonhos, que eram interpretados pelo mántis; cleromancia é a adivinhação pela ação de
tirar a sorte. No que diz respeito à oniromancia, é conveniente acrescentar que existem dois
tipos de intérpretes de sonhos: o ὀνειροκρίτες (oneirokrítes), “o que explica o sonho alheio” e o
ὀνειροπόλος (orneiropólos), “o que interroga os deuses, observando o próprio sonho”.
38. Esta Pasífae, detentora em Tálamas, na Lacônia, de um oráculo por incubação, era de tão
grande importância política, que os Éforos dormiam no recinto do mesmo, para consultá-la
a respeito de assuntos de interesse do Estado (Plut., Cleômenes, 7,2 e Ágis, 9,2), parece que
nada tem a ver com a homônima heroína cretense. Há diferentes versões para sua
identidade: filha de Atlas e mãe de Zeus, Cassandra, Dafne e até de Selene! (Paus. 3,26,1).
39. Exceção, certamente, à regra é o caso de Teoclímeno, na Odisseia, XX, 350ss, e
possivelmente o de Heleno, na Ilíada, VII, 44.
40. É preciso não confundirΠαιάν (Paián), Peã, epíteto de Apolo, mas também “hino de ação
de graças” a este deus, sobretudo por “uma cura” obtida, com Παιήων (Paiéon), Peéon, médico
dos deuses, que igualmente qualificava Apolo, conforme se mostrou no Vol. II, p. 88.
41. “Estrangeiros”, normalmente, estavam excluídos dos Mistérios de Elêusis. Para serem
admitidos nos mesmos, tinham que tornar-se primeiro cidadãos atenienses. Eis aí o motivo
por que Teseu se fez “garante” de Héracles (Plut., Teseu, 30,5).
42. Há que se fazer, em grego, uma distinção entre αύτόχθων (autókhthon), autóctone, e
γηγενής (gueguenés), gégenes: autóctone é o que nasce diretamente da “terra” e nela
permanece; gégenes é igualmente o que nasce “da terra”, como os Gigantes, mas não tem um
posto fixo na mesma. Assim, nem todo “gégenes” é autóctone, mas todo autóctone é
“gégenes”.
43. Quando Píndaro diz nas Ístmicas, 4,53, que Héracles era μορφάν βραχύς, ψυξάν δἄκαμπτος
(morphàn brakh×s, psykhàn d’ákamptos), “de baixa estatura, mas de alma invencível”, não
estaria o poeta querendo exaltar a superioridade do espiritual sobre o físico? Tratar-se-ia de
um “outro” Héracles ou o gigantismo para o pensamento grego era uma metáfora, um
exagero, cujo escopo era enaltecer a natureza sobre-humana do herói?
44. Veja-se, a respeito do “tema de Ulisses”, a obra de W.B. STANFORD. The Ulysses Theme.
London: Oxford, 1954, p. 254.
45. O grande poeta lírico Estesícoro (635-555 a.C.), consoante o mito, fora cegado por Helena,
cujo rapto havia sido cantado pelo vate grego do sul da Itália. Recuperou-a, através de uma
Palinódia, de uma retratação, em que afirmava que a Helena, levada a Troia por Páris, era
tão somente um eídolon, uma “imagem” da verdadeira rainha de Esparta.
46. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 247.
47 Na introdução e tradução que fizemos do único Drama Satírico que nos chegou completo,
o Ciclope de Eurípides, chamamos a atenção para os versos 637-641, em que os Sátiros,
acovardados, para não participarem do cegamento do Ciclope, fingem-se coxos e com a visão
perturbada pela poeira e pelas cinzas, que eles próprios não sabem de onde vêm. Veja-se
Teatro grego. Eurípides - Aristófanes (O Ciclope, As Rãs, As Vespas). Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo, 1987, p. 65.
48. BRELICH, Angelo, Op. cit., p. 254.
49. Aristóteles, na Poética, 1453b, reconhece a eficácia literária do assassinato de parentes
em geral, mas considera que o efeito é mais convincente quando o herói só vem a saber
depois a identidade da vítima.
50. Trata-se, na realidade, de 277 “mitos” ao que parece, escritos e denominados Fabulae
(Fábulas) por este liberto do imperador Augusto.
51. ELIADE, Mircea. Op. cit., p. 121.
52 Ibid., p. 123.
53. KERÉNYI, Károly. Umgang mit Göttlichem (Convivência com o Divino). Göttingen: 1955,
p. 43s.
54. JUNG, C.G. et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1964, p. 110ss.
55. Ibid., p. 110.
56. Ibid., p. 111s.
57. Por umbra, “sombra”, compreende-se o conjunto de aspectos ocultos, reprimidos,
desfavoráveis ou até mesmo execráveis da personalidade. Mas, essa obscuridade, comenta
Henderson, “não é exatamente o contrário do ego consciente. Assim como o ego contém
atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui, de seu lado, boas qualidades: instintos
normais e impulsos criadores. Ego e umbra, destarte, embora separados, estão
inextricavelmente ligados de uma forma muito parecida com a relação que se estabelece
entre pensamento e sensação”.
58. Ibid., p. 118.
CAPÍTULO II
Perseu e Medusa
1
PERSEU provém do grego Περσεύς (Perseús), a respeito de cuja
etimologia ainda não se chegou a um acordo. Admitindo-se,
conforme ensina Carnoy, que a base do nome do herói seja a raiz
bherêk, “brilhar”, com a necessária dissimilação k>s, como em
peristerá (pomba), a saber, “ser branca ou cinza-claro”, Perseu
encarnaria o “sol nascente”.
Herói argólico, o filho de Zeus e Dânae possui uma genealogia
famosa, figurando, de resto, como um dos ancestrais diretos de
Héracles.
Reduzindo ao mínimo necessário o mito de sua extensa e nobre
linhagem, vamos ver que tudo começou no Egito. Com efeito, de
Zeus e Io nasceu Épafo, cuja filha Líbia, unida a Posídon, engendrou
os gêmeos Agenor e Belo. Enquanto o primeiro reinou na Síria, o
segundo permaneceu no Egito. Do enlace sagrado do rei Belo com
Anquínoe, filha do rio Nilo, nasceram os gêmeos Egito e Dânao.
Temendo o irmão, pois que gêmeos, sobretudo quando do mesmo
sexo, entram normalmente em conflito, Dânao fugiu para a
Argólida, onde reinava Gelanor, levando as cinquenta filhas que
tivera de várias mulheres. Conta-se que, ao chegar ao palácio real,
Gelanor lhe cedeu pacificamente o poder. Uma variante, todavia,
narra que se travou entre os dois um longo torneio retórico e que,
logo após o mesmo, ocorreu um prodígio: surgiu da floresta vizinha
um lobo, que, precipitando-se sobre o rebanho de Gelanor, matou
instantaneamente o touro. O povo viu nisto a indicação do forasteiro
para rei. Dânao, então, fundou Argos, onde, aliás, mais tarde se
localizou seu túmulo, e mandou erguer um santuário a Apolo Lício,
ou seja, Apolo, deus-Lobo.
Os cinquenta sobrinhos de Dânao, no entanto, inconformados com
a fuga das primas, pediram ao rei de Argos que esquecesse a
inimizade com Egito e, para selar o pacto de paz, pediram-nas em
casamento. O rei concordou, mas deu a cada uma das filhas um
punhal, recomendando-lhes que matassem os maridos na primeira
noite de núpcias. Todas as Danaides cumpriram a ordem paterna,
menos Hipermnestra, que fugiu com seu noivo Linceu1. Este, mais
tarde, vingou-se, matando o sogro e as quarenta e nove cunhadas, as
Danaides, que foram condenadas no Hades a encher de água,
eternamente, um tonel sem fundo, castigo cujo simbolismo já foi
parcialmente comentado.
De Linceu e Hipermnestra nasceu Abas, que, casado com Aglaia,
foi pai dos gêmeos Acrísio e Preto, nos quais se reviveu o ódio que
mantiveram um contra o outro seus avôs Dânao e Egito. Contava-se
mesmo que a luta entre Acrísio e Preto se iniciara no ventre materno.
Depois, quando moços, travaram uma guerra violenta pela posse do
trono de Argos. Desse magno certame saiu vencedor Acrísio, que
expulsou o irmão da Argólida, tendo-se este refugiado na Lícia, onde
se casou com Antia, que os trágicos denominavam Estenebeia, filha
do rei local Ióbates. Este, à frente de um exército lício, invadiu a
Argólida, apossando-se de Tirinto, que foi fortificada com muralhas
gigantescas, erguidas pelos Ciclopes. Os gêmeos, por fim, chegaram a
um acordo: Acrísio reinaria em Argos e Preto em Tirinto, ficando,
desse modo, a Argólida dividida em dois reinos.
Reunindo num quadro o que se disse do mitologema, tem-se:
1. Ésquilo reviveu em sua tragédia As Suplicantes, a primeira de que se compõe a trilogia As
Danaides, o mito das filhas de Dânao. Em se tratando de obra literária, o enfoque esquiliano,
claro está, diverge bastante do mitologema.
Quadro 1
Tendo desposado a Eurídice, filha de Lacedêmon, herói epônimo
da Lacedemônia, cuja capital era Esparta, o rei de Argos teve uma
filha, Dânae, mas, desejando um filho, consultou o Oráculo. Este
limitou-se a responder-lhe que Dânae teria um filho que o mataria.
De Preto e Estenebeia nasceram as célebres prétidas, Lisipe, Ifianassa,
Ifínoe e um homem, Megapentes.
2
Temendo que o oráculo se cumprisse, Acrísio mandou construir
uma câmara de bronze subterrânea e lá encerrou a filha, em
companhia da ama.
Zeus, todavia, o fecundador por excelência, penetrou na inviolável
câmara de Dânae por uma fenda nela existente e, sob a forma de
chuva de ouro, engravidou a princesa, que se tornou mãe de Perseu.
Durante algum tempo, o menino pôde, com a cumplicidade da ama,
ser conservado secretamente, mas, no dia em que o rei teve
conhecimento da existência do neto, não acreditou que o mesmo
fosse filho de Zeus, atribuindo-lhe o nascimento a alguma ação
criminosa de seu irmão e eterno rival Preto.
Após ordenar a execução da ama, encerrou mãe e filho num cofre
de madeira e ordenou fossem lançados ao mar. A pequena arca,
arrastada pelas ondas, foi dar à ilha de Sérifo, uma das Cíclades, onde
reinava o tirano Polidectes. Um irmão do rei, de nome Díctis,
etimologicamente a rede, pessoa muito humilde, os “pescou” e
conduziu para sua casa modesta na ilha, encarregando-se de
sustentá-los. Perseu tornou-se rapidamente um jovem esbelto, alto e
destemido, segundo convém a um “herói”. Polidectes, apaixonado por
Dânae, nada podia fazer, uma vez que o jovem príncipe mantinha
guarda cerrada em torno da mãe e o rei não queria ou não ousava
apossar-se dela pela violência.
Certa feita, Polidectes convidou um grande número de amigos,
inclusive Perseu, para um jantar e no curso do mesmo perguntou
qual o presente que os amigos desejavam oferecer-lhe. Todos
responderam que um cavalo era o único presente digno de um rei.
Perseu, no entanto, respondeu que, se Polidectes o desejasse, ele lhe
traria a cabeça de Medusa. Na manhã seguinte, todos os príncipes
ofereceram um cavalo ao tirano, menos o filho de Dânae, que nada
ofertou. O rei, que há muito suspirava por Dânae e, vendo em Perseu
um obstáculo, ordenou-lhe fosse buscar a cabeça da Górgona, sem o
que ele lhe violentaria a mãe. Este é o grande momento da separação
e da iniciação: o herói afasta-se do respaldo materno e vai mergulhar
em grandes aventuras, em busca de sua libertação dos “poderes
inconscientes maternos”.
Mas, antes de seguirmos com Perseu para suas gestas iniciáticas,
matando a “monstros” e libertando dos mesmos a uma frágil
donzela, é mister que se faça um ou outro comentário acerca de
alguns tópicos desenvolvidos linhas acima.
Deixando-se de lado os problemas dos gêmeos e da dupla
paternidade, porque já se falou a respeito dos mesmos,
respectivamente no capítulo II, 6, do Vol. II e na Introdução ao mito
dos heróis, vamos nos concentrar nos simbolismos da criança
exposta, da câmara de bronze e da chuva de ouro.
Consoante a já citada mais de uma vez Marie Delcourt2, a
exposição de recém-nascidos obedece a vários critérios. Uns o são
porque, tendo nascido deformados, refletem a ira divina. Nesse caso,
os expostos tornam-se, não raro, φαρμακοί (pharmakói), vale dizer,
“purificadores das faltas da comunidade”, verdadeiros bodes
expiatórios. O exposto, entretanto, pelo fato mesmo de ser objeto da
cólera divina e carregar as faltas de sua pólis, torna-se intocável,
sacer, “sagrado”, e se é salvo, o que quase sempre acontece, dos
ingentes perigos que a exposição acarreta, converte-se, com
“mudança de sinal”, num ser altamente benéfico para a mesma
comunidade que o banira. Muitos são expostos por força da predição
de um oráculo ou por motivos outros, que seria fastidioso enumerar,
como é o caso de Édipo, Perseu, Páris, Egisto, Atalante, Télefo, Tenes,
Karna, Rômulo e Remo, Moisés, Semíramis... os quais, em geral, são
filhos de deuses com mulheres mortais ou de deusas tom homens ou
ainda aparentados com divindades e que, por isso mesmo, sempre
escapam à morte, como aconteceu, entre muitos outros casos, com o
jovem Tenes3.
Esses expostos, de qualquer forma, constituíam uma ameaça aos
pais, ao avô, ao rei e à própria comunidade. Assim sendo, conforme se
comentou no Vol. I, p. 94, o significado da exposição converte-se
num ordálio, no juízo de um deus, do qual, se a criança sair sã e salva,
estará predestinada a grandes feitos, a um destino brilhante, sendo,
por este motivo, “promovida”, enquanto o expositor é castigado.
Observe-se, todavia, segundo comentário feito na supracitada p. 94,
que o rito da exposição habilita o “provado” a ser recebido num
grupo social que, normalmente, por força de deformações físicas ou
predição oracular, o repeliria. Desse modo, a prática acobertada pelo
mito da criança exposta aplicava-se a pessoas que, de certa maneira,
tinham que lutar para conquistar uma alta posição, mais comumente
um reino. No fundo, o tema em pauta remonta a antigos ritos de
provas iniciáticas, cujo escopo era introduzir o jovem na classe dos
adultos.
De outro lado, o cofre ou arca em que é colocada a criança e o
lançamento daquela no mar tem um sentido religioso preciso, que
transcende até mesmo o rito iniciático de passagem. O encerramento
numa arca ou cofre traduz sentimentos que permeiam o mito do
menino predestinado: aquele que entra numa arca sai da mesma
engrandecido, como o jovem Comatas do poema de Teócrito, 7,78ss4.
Inversamente, o conto da criança eleita é influenciado pelo caráter
misterioso e numinoso da arca interdita, “sagrada”: Perseu e Télefo
saem da lárnax (termo técnico grego para designar arca, urna
funerária, sarcófago) menos violentos, mas igualmente tão
espantosos quanto Erictônio, pois a arca é uma espécie de
tabernáculo onde o exposto se torna um semideus, um “demônio”,
um herói destemido. A imagem dessa prisão probatória sugere
sensações muito vivas e claras: grande risco, probabilidade mínima
de salvação, mas de uma salvação triunfante, com a presença
atuante da divindade. A inclusão numa arca configura um começo
absoluto.
Além do mais, todos os mitos relativos à exposição de crianças ou
de adolescentes traduzem uma hostilidade violenta entre o exposto e
sua família, o que reflete o antagonismo profundo existente entre a
organização familiar e a organização dos jovens, a tal ponto que o
adolescente, após ser admitido na classe dos adultos, passando pela
efebia, propriamente morria e renascia com outro nome. Sair da arca
lançada ao mar, como ser rejeitado pela família, isto é, sair da “arca
da adolescência”, é escapar do ventre da morte para uma vida plena,
adulta e gloriosa, mas igualmente terrível e perigosa.
Aliás esses antigos heróis se prolongaram em “muitos irmãos”, por
longo espaço de tempo, como os Grabkinder, “as crianças saídas de
túmulos”, da idade média germânica, de que fala Jacob Grimm em
sua obra Deutsche Rechtsaltertümer, p. 461 (Código Antigo de Povos
Germânicos), citada por Delcourt5.
“No norte, diz Grimm, quando um pobre Freigelassner, “liberto”,
abandonava seus filhos, eram os mesmos expostos numa fossa, sem
alimento algum, de sorte que deveriam fatalmente morrer. O que
sobrevivesse, o senhor o retirava do túmulo e o criava”. Trata-se,
claro está, do predestinado. Igualmente, segundo o costume
lombardo, salvava-se dentre as crianças expostas aquela que se
agarrava ao venábulo do rei, comprovando, assim, sua vitalidade
superior.
Aquele que escapa vivo do ordálio é detentor de um duplo
prestígio: a vitória sobre a morte, que tantas vezes o acariciou, e a
eleição divina, que lhe restituiu a vida e o encaminhou para o
triunfo6.
Quanto à exposição na água, é preciso levar em conta que esta, na
sua polaridade, como fonte da vida e fonte da morte, criadora e
destruidora, para os expostos funciona, quase sempre, como ἀμνίον
(amníon), como “um invólucro”, que guarda e protege, como o
“líquido amniótico”.
Diz Otto Rank que “nos contos de fadas adaptados à ideação
infantil e sobretudo às teorias sexuais infantis o nascimento do ser
humano é configurado frequentemente pela ação de alçar a criança
de um poço ou de um lago. Alguns relatos folclóricos nos mostram
que os recém-nascidos saem de um poço para a luz. Em certos ritos
nacionais se expressa idêntica interpretação. Quando um celta
estava em dúvida a respeito de sua paternidade, colocava o recémnascido sobre um escudo enorme e punha-o a flutuar nas águas de
um rio. Se estas empurrassem o escudo para as margens, a
paternidade era legítima, mas, se a criança se afogasse, estava
provado que a mulher praticara adultério, pelo que também ela
estava condenada a morrer”7. Como os filhos nascem da “água”, a
arca simboliza o ventre materno, de sorte que o abandono nas águas
representa diretamente o processo de nascimento ou de um
“renascimento catártico”.
No tocante à chuva de ourocom que Zeus fecundou a Dânae, tratase, simbolicamente, do esperma do Céu, fecundando a Terra: um
hieròs gámos, um casamento sagrado, que se transforma
numthaleròs gámos, numa “união fértil”, uma “conjugação amorosa”
entre um deus fecundador, Zeus, e uma grande mãe, Dânae.
Iolande Jacobi opina que “a presença da chuva é como um
aguaceiro que diminui a tensão e fertiliza a terra. Em mitologia se
considerava com frequência que a chuva era uma ‘união amorosa’
entre o céu e a terra. Nos Mistérios de Elêusis, depois que tudo havia
sido purificado com água, invocava-se primeiro o céu: ‘Chove!’ e, em
seguida, a terra, “Frutifica!” Com essas expressões se queria traduzir o
matrimônio sagrado dos deuses. Desse modo, pode-se afirmar que a
chuva representa uma ‘solução’ no sentido literal da palavra”8.
Para Diel, “nascendo da chuva de ouro, a sublimidade do menino
não poderia ser mais bem caracterizada: a névoa, tombando do céu,
sob a forma de chuva, e fecundando a terra, é símbolo do espírito.
Dânae é uma mulher terrestre, configuração frequente da própria
terra. A sublimidade está bem marcada, porque a chuva fecundante
é de ouro: amarelo e brilhante, o ouro é um símbolo solar. Perseu é,
pois, o herói filho da terra, engendrado pelo espírito. O mito de seu
nascimento o registra, desse modo, como herói vencedor”9.
A interpretação de Diel está, como se vê, de acordo com a
etimologia de Perseu, “o sol nascente”, aventada por Carnoy, segundo
se expôs logo no início do presente capítulo.
3
Feitas estas ligeiras observações, agora podemos partir com Perseu
para suas gestas iniciáticas, que o habilitarão à conquista da donzela
e esta à posse do reino, uma vez que, segundo se há de mostrar, uma
coisa está estreitamente vinculada à outra.
Como já se assinalou na Introdução ao mito dos heróis, o herói, ao
partir para seus longos e difíceis trabalhos, é assessorado por uma ou
mais divindades, já que o mesmo, por sua origem sobre-humana, o
que lhe conferia a timé e a areté, facilmente se deixava dominar pela
hýbris, tornando-se presa fácil do descomedimento.
Para evitar ou ao menos refrear os “desmandos heroicos” e
sobretudo para dar-lhe respaldo na execução de tarefas impossíveis,
todo herói conta com o auxílio divino. Perseu terá por coadjutores
celestes a Hermes e Atená, que lhe fornecerão os meios necessários
para que leve a bom termo a promessa imprudente feita a Polidectes.
Conforme o conselho dessas divindades, o filho de Dânae deveria
procurar primeiro as fórcidas, isto é, as três filhas de Fórcis,
divindade marinha da primeira geração divina. Esses três monstros
denominavam-se também Greias, quer dizer, as “Velhas”, as quais,
aliás, já haviam nascido velhas. Chamavam-se Enio, Pefredo e Dino,
que possuíam em comum apenas um olho e um dente. O caminho
para chegar até elas não era fácil, pois habitavam o extremo
ocidente, no país da noite, onde jamais chegava um só raio de sol.
Mas era imprescindível que Perseu descesse ao país das sombras
eternas, porquanto somente as Greias conheciam a rota que levava
ao esconderijo das Górgonas e tinham exatamente a incumbência de
barrá-la a quem quer que fosse. Mais importante ainda: eram as
únicas a saber onde se escondiam determinadas ninfas, que
guardavam certos objetos indispensáveis ao herói no cumprimento
de sua missão.
Ajudado por Hermes, o deus que não se perde na “noite” e no
caminho, e pela inteligência de Atená, que espanca as trevas, Perseu
logrou chegar à habitação das Greias, que, por disporem de um só
olho, montavam guarda em turno, estando duas sempre dormindo. O
herói se colocou atrás da que, no momento, estava de vigília e, num
gesto rápido, arrebatou-lhe o único olho, prometendo devolvê-lo,
caso a Greia lhe informasse como chegar às misteriosas ninfas. Estas
sem a menor resistência ou dificuldade, entregaram-lhe o que,
segundo um oráculo, era indispensável para matar a Górgona:
sandálias com asas, uma espécie de alforje denominado quíbisis, para
guardar a cabeça de Medusa e o capacete de Hades, que tornava
invisível a quem o usasse. Além do mais, o próprio Hermes lhe deu
uma afiada espada de aço e Atená emprestou-lhe seu escudo de
bronze, polido como um espelho. Com essa verdadeira panóplia o
herói dirigiu-se imediatamente para o esconderijo das Górgonas10,
tendo-as encontrado em sono profundo. Eram três as
impropriamente denominadas Górgonas, uma vez que só a primeira,
Medusa, é, de fato, Górgona, enquanto as outras duas, Ésteno e
Euríale só lato sensu é que podem ser assim denominadas. Estes três
monstros tinham a cabeça aureolada de serpentes venenosas, presas
de javali, mãos de bronze e asas de ouro e petrificavam a quem as
olhasse. Não podendo, por isso mesmo, fixar Medusa, Perseu pairou
acima das três Górgonas adormecidas, graças às sandálias aladas;
refletiu o rosto de Medusa no polido escudo de Atená e, com a espada
que lhe deu Hermes, decapitou-a. Do pescoço ensanguentado do
monstro nasceram o cavalo Pégaso e o gigante Crisaor, filhos de
Posídon, que foi o único deus a se aproximar das Górgonas e ainda
manter um comércio amoroso com Medusa. Posteriormente a cabeça
do monstro foi colocada, conforme se comentou no mesmo Vol. I, p.
251, no escudo de Atená e assim a deusa petrificava a quantos
inimigos ousassem olhar para ela. Neste mesmo capítulo, tomando
por base a obra de Diel, ensaiamos uma interpretação do olhar
petrificador da Górgona por excelência. Vamos voltar ao mesmo
autor e tentar ampliar-lhe um pouco mais a hermenêutica simbólica.
Quem fixa Medusa se petrifica. Perguntam os autores do
Dictionnaire des symboles, já tantas vezes citado, se isto não se deve
ao fato de Medusa refletir a imagem de uma culpabilidade pessoal. E
acrescentam que o reconhecimento da falta, alicerçado no
conhecimento de si mesmo, pode se perverter em exasperação
doentia, em consciência escrupulosa e paralisante.
Em seguida vêm, novamente, as palavras de Diel: “O
reconhecimento pode ser e o é, quase sempre, uma forma específica
de exaltação imaginativa: um arrependimento exagerado. O exagero
da culpa inibe o esforço reparador [...]. Não basta descobrir a falta: é
mister suportar-lhe o olhar de maneira objetiva, sem exaltação e sem
inibição, vale dizer, sem exagerá-la, mas outrossim sem minimizá-la.
O próprio reconhecimento deve estar isento de excesso de vaidade e
de culpabilidade”11.
Medusa simboliza, portanto, a imagem deformada daquele que a
contempla, uma autoimagem que petrifica pelo horror, ao invés de
esclarecer de maneira equânime e sadia.
Voltemos, no entanto, ao futuro rei de Tirinto. Tendo colocado a
cabeça da Górgona no alforje, o herói partiu. Ésteno e Euríale saíramlhe em perseguição, mas inutilmente, porquanto o capacete de Plutão
o tornara invisível.
4
Partindo do ocidente, dessa verdadeira catábase, Perseu dirigiu-se
para o oriente, e chegou à Etiópia, onde encontrou o país assolado
por um flagelo. É que Cassiopeia, esposa do rei local, Cefeu, pretendia
ser mais bela que todas as nereidas ou que a própria deusa Hera,
segundo outras versões. Estas, inconformadas e enciumadas com a
presunção da rainha, solicitaram a Posídon que as vingasse de tão
grande afronta. O deus do mar enviou contra o reino de Cefeu um
monstro marinho que o devastava por inteiro. Consultado o Oráculo
de Amon, este declarou que a Etiópia só se livraria de tão grande
calamidade se Andrômeda fosse agrilhoada a um rochedo, à beiramar, como vítima expiatória ao monstro, que a devoraria.
Pressionado pelo povo, o rei consentiu em que a filha fosse exposta,
como Psiqué, às “núpcias da morte”.
Foi nesse momento que chegou o herói argivo. Vendo a jovem
exposta ao monstro, Perseu, como acontecera, em outras
circunstâncias, a Eros em relação a Psiqué, se apaixonou por
Andrômeda, e prometeu ao rei que a salvaria, caso este lhe desse a
filha em casamento. Concluído o pacto, o herói, usando suas armas
mágicas, libertou a noiva e a devolveu aos pais, aguardando as
prometidas núpcias. Estas, no entanto, ofereciam certas dificuldades,
porque Andrômeda já havia sido prometida em casamento a seu tio
Fineu, irmão de Cefeu, que planejou com seus amigos eliminar o
herói. Descoberta a conspiração, Perseu mostrou a cabeça de Medusa
a Fineu e a seus cúmplices, transformando-os a todos em estátuas de
pedra. Há uma variante que mostra o herói em luta não contra Fineu,
mas contra Agenor, irmão gêmeo de Belo. É que Agenor, instigado
por Cefeu e Cassiopeia, que se haviam arrependido de prometer a
filha em casamento ao vencedor das Górgonas, avançou contra este
com duzentos homens em armas. Perseu, após matar vários inimigos,
já cansado de lutar, petrificou os demais com a cabeça de Medusa,
inclusive o casal real.
Antes de retornarmos com Perseu e Andrômeda à ilha de Sérifo,
vamos fazer um ligeiro comentário à luta do herói contra o monstro
e seu casamento com a princesa, o que o habilita ao poder. Do ponto
de vista do mito, como se mostrou na Introdução, capítulo I, Perseu
está completando o mandala, fechando o uróboro com a separaçãoiniciação-retorno.
Citado por Delcourt, diz esquematicamente Jeanmaire em Couroï
et Courètes, p. 314, que “o duelo do herói contra o monstro e,
naturalmente, sua vitória sobre o mesmo, é a façanha que o habilita à
realeza”12. Judiciosamente acrescenta a pesquisadora belga que é
necessário intercalar entre a vitória sobre o monstro e a conquista do
poder um episódio muito constante: o casamento do herói com uma
princesa.
A luta contra o monstro não oferece mistério para o mito: trata-se
de um antigo rito iniciático por que passava todo adolescente e todo
aquele que se preparava para assumir o poder, mas quase nada se
sabe com precisão em que consistiam realmente esses ritos. A
respeito da habilitação do herói ou do futuro rei ao poder, possuímos
o que o mito nos informa, mas a realidade histórica das provas nos
escapa quase que por completo. Talvez, como afirma Delcourt, à
guisa de hipótese, deveríamos fazer uma montagem mental para
tentar recompor essas provas: poderíamos imaginar “perigosas
encenações de combates formidáveis contra instrutores revestidos
de disfarces animais”. Já Dumézil deplorava essa carência quase
absoluta de documentação acerca do conteúdo desses ritos
iniciáticos: “É de se lamentar que as iniciações não sejam conhecidas
diretamente através da descrição dos rituais e nem mesmo pelos
mitos que os traduziam, mas por meio de narrativas épicas relativas
a um ou o outro herói mais ou menos fabuloso e nas quais se inseriu,
remoçando-se, o assunto religioso”13.
Vencer o monstro é a condição para a conquista da princesa e com
ela celebrar um hieròs gámos, porquanto, sendo a vitória sobre o
monstro a comprovação do fecho iniciático, o casamento, o hieròs
gámos simboliza a “maturidade” do herói e da heroína, vale dizer, da
que passou também pela “prova”, no caso a da exposição e cumpriu
seu papel de φαρμακός (pharmakós), de “vítima emissária”. Em
muitas culturas primitivas a passagem para a classe dos adultos se
fazia acompanhar, segundo observa Marie Delcourt, de casamentos
simultâneos: os jovens de ambos os sexos, que haviam passado pelas
provas, conquistavam, ao mesmo tempo, o direito de ascender a uma
nova classe, a dos casados, o que comprova a solidariedade das
iniciações14.
Mas, curiosamente, o efeito benéfico do hieròs gámos provinha da
mulher.
Consoante a tese de Frazer, a realeza se transmitia pela princesa,
reminiscência de um regime matrilinear arcaico, pré-indo-europeu,
donde primeiro casar e depois reinar. Em primeiro lugar, segundo se
mostrou, luta-se com o monstro para se salvar a “exposta”. A
princesa emissária, φαρμακός (pharmakós), uma vez liberada e
depois de passar pelo ordálio, carrega-se de influxos salutares, de
energias, características dos eleitos dos deuses. São exatamente estas
as energias que vão ser injetadas pela princesa no herói salvador, que
dessa forma se habilitará a assumir o poder.
Frazer procura comprovar o hieròsgámos e seu influxo benéfico
por via matrilinear, recorrendo a exemplos sobretudo da “história” e
do mito romano15.
Desse modo, consoante o autor, a realeza era transmitida através
da linha feminina, e nas monarquias antigas, contrariamente aos
hábitos posteriores, a rainha é hereditária e o rei é que é eletivo. O
etnólogo inglês observa com razão que nenhum rei de Roma teve
como sucessor o próprio filho, embora muitos deles tivessem
deixado descendência masculina. Numa Pompílio desposou a filha
de Tito Tácio, rei dos sabinos, e tornou-se o segundo rei romano,
sucedendo ao sogro, que invadira Roma. Anco Márcio tinha por mãe
a filha de Numa, e Sérvio Túlio sucedeu no trono a Tarquínio, o
Antigo, após desposar-lhe a filha. Tarquínio, o Soberbo, herdou o
trono, porque se casou com a filha de Sérvio. “Isto significa, continua
Frazer, que a sucessão no âmbito da realeza romana parece ter sido
determinada por certas normas que se haviam estratificado em
sociedades primitivas de muitas partes do mundo, a saber, a
exogamia, o casamento beena e o parentesco feminino. Exogamia é o
princípio que obriga o homem a contrair matrimônio em outro clã
que não o seu; casamento beena é a norma que coage o esposo a
deixar a casa paterna para viver na família da esposa e parentesco
feminino é o sistema que faz provir da mulher e não do homem a
filiação e a transmissão do nome da família”16.
O mesmo Frazer encontra tradições análogas no mito grego.
Recém-chegados a Atenas, como Cécrops e Anfictião, se casam com
as filhas de seus predecessores, tornando-se reis. De outro lado, para
explicar por que os filhos não sucederam a seus pais, como era de
praxe em época posterior, inventam-se motivos, geralmente um
homicídio, voluntário ou involuntário, que os obrigam a deixar sua
cidade. Após muitas aventuras, os exilados conquistam um reino ao
mesmo tempo que uma esposa. Éaco reinava na ilha de Egina. Todos
os seus descendentes emigraram e quase todos passam a viver e
reinar na pólis de sua respectiva esposa: Télamon17, em Salamina;
Teucro, em Chipre; Peleu, na Ftiótida; Aquiles, na ilha de Ciros;
Neoptólemo, no Epiro. Cálidon, na Etólia, se casa com a filha de
Adrasto, rei de Argos. Seu filho Diomedes, de igual maneira, torna-se
rei de Dáunia, na Itália. Tântalo é rei da Lídia: seu filho Pélops reina
em Pisa, porque se casou com Hipodamia, filha de Enômao; seu neto
Atreu reinou em Micenas e seu bisneto Menelau reinou em Esparta,
pólis de sua esposa Helena. Existe, até mesmo, um mito antigo que
faz igualmente de Agamêmnon, bisneto de Tântalo, rei da Lacônia,
pátria de sua mulher Clitemnestra...
Muitos outros exemplos da posse do reino pela linha matrilinear
poderiam ainda ser aduzidos, mas os apontados situam bem o
problema.
É necessário, todavia, ter em mente o que se desenvolveu na
Introdução: os casamentos heroicos, sejam quais forem suas origens e
“linhas condutoras”, as mais das vezes pressupõem lutas, que se
configuram sob o aspecto de provas iniciáticas: a “razzia”, a justa
entre os pretendentes, o combate de morte contra o pai da
pretendida, o conflito de gerações, a luta contra um monstro...
De qualquer forma, uma coisa é certa: o casamento, o hieròs gámos
está estreitamente ligado ao reino. Casar para reinar!
Do ponto de vista da psicologia analítica, a luta contra o monstro e
sua destruição, e bem assim a libertação da donzela e o casamento do
herói com a mesma podem simbolizar a liberação da anima do
aspecto “devorador” da imagem materna.
5
Acompanhado, pois, da esposa Andrômeda, Perseu retornou à ilha
de Sérifo, onde novos problemas o aguardavam. Em sua ausência,
Polidectes tentara violentar-lhe a mãe, sendo preciso que ela e Díctis,
a quem o tirano igualmente perseguia, se refugiassem junto aos
altares dos deuses, considerados e respeitados como locais
invioláveis.
O herói, sabedor de que o rei se encontrava reunido no palácio com
seus amigos, penetrou salão a dentro e transformou Polidectes e toda
a corte em estátuas de pedra. Tomando as rédeas do poder, entregou
o trono a Díctis, o humilde pescador que o criara. Devolveu as
sandálias aladas, o alforje e o capacete de Plutão a Hermes, a fim de
que este os restituísse às suas legítimas guardiãs, as ninfas. A cabeça
de Medusa, Atená a espetou no centro de seu escudo18.
Deixando para trás o reino de Díctis, o herói, em companhia de
Andrômeda e Dânae, dirige-se para Argos, sua pátria, uma vez que
desejava conhecer seu avô Acrísio. Este, sabedor das intenções do
neto, e temendo o cumprimento do oráculo, fugiu para Larissa, onde
reinava Tentâmides. Ora, Acrísio assistia, como simples espectador,
aos jogos fúnebres que o rei de Larissa mandava celebrar em
memória do pai. Perseu, como convém a um herói, participava dos
agônes, e lançou o disco com tanta infelicidade, ou, por outra, com o
endereço certo fornecido há tantos anos atrás pelo oráculo, que o
mesmo vitimou Acrísio.
Cheio de dor com a morte do avô, cuja identidade lhe era
desconhecida, Perseu prestou-lhe as devidas honras fúnebres,
fazendo-o sepultar fora de Larissa. Não ousando, por tristeza e
contrição, dirigir-se a Argos, para reclamar o trono que, de direito, lhe
pertencia, foi para Tirinto, onde reinava seu primo Megapentes, filho
de Preto, e com ele trocou de reino. Assim, Megapentes tornou-se rei
de Argos e Perseu reinou em Tirinto.
Uma variante obscura do mito narra a violenta oposição feita por
Perseu a Dioniso que, com suas Mênades, tentava introduzir seu culto
orgiástico em Argos. O herói perseguiu ao deus do êxtase e do
entusiasmo e o afogou no Lago de Lerna. Havia sido assim que
Dioniso terminara sua vida terrestre e, escalando o Olimpo, se
reconciliara com a deusa Hera.
À época romana, o mito do filho de Dânae foi deslocado para a
Itália. A arca que transportava mãe e filho não teria chegado à ilha de
Sérifo, mas às costas do Lácio. Recolhidos por pescadores, foram
levados à corte do rei Pilumno. Este desposou Dânae e com ela
fundou a cidade de Árdea, antiga capital dos Rútulos, situada no
Lácio, perto do mar Tirreno, como está em Vergílio, Eneida, 7,411s.
Turno, rei dos Rútulos, o grande adversário de Eneias, descendia
desse enlace, pois que Pilumno era avô do herói itálico, ainda
consoante a Eneida, 9,3s.
De Perseu e Andrômeda nasceram os seguintes filhos: Perses,
Alceu, Estênelo, Helio (que é preciso não confundir com Hélio, deus
Sol), Mestor, Eléctrion e Gorgófone. Pois bem, Héracles, assunto de
nosso próximo capítulo, é bisneto de Perseu, ao menos no que tange
ao lado materno...
2. DELCOURT, Marie. Oedipe ou la Légende du conquérant. Liège: Bibliothèque de la Faculté
de Philosophie et Lettres, 1981, p. 1ss.
3. Tenes se inscreve, como Hipólito, no “motivo Putifar”, segundo se viu na Introdução ao
mito dos heróis, capítulo I. Caluniado pela madrasta Filônome, que por ele se apaixonara,
sem ser correspondida, foi encerrado pelo pai, Cicno, numa arca, juntamente com a irmã
Hemíteia, também filha do primeiro matrimônio de Cicno, e lançado ao mar. O cofre de
madeira, com a proteção de Posídon, avô dos dois jovens, foi dar na ilha de Lêucofris, que daí
por diante passou a chamar-se Tênedos, do nome de Tenes, que os habitantes da ilha
aclamaram rei.
4. Comatasera um pastor de Túrio, na Itália do Sul, que fazia constantessacrifícios às Musas
com vítimas escolhidas no rebanho de seu senhor. Este o encerrou num sarcófago, dizendolhe que suas deusas favoritas descobririam um meio de salvá-lo. Três meses depois, aberto o
sarcófago, o jovem Comatas estava vivo e sadio: as Musas enviaram-lhe abelhas, que o
alimentavam diariamente.
5. Ibid., p. 56s.
6. Ibid., p. 57.
7. RANK, Otto. Op. cit., p. 88s.
8. JUNG, C.G. et al. Op. cit., p. 280s.
9. DIEL, Paul. Le symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1952, p. 102.
10. A respeito das Greias e das Górgonas já se falou bastante exaustivamente no capítulo XI,
2, p. 250-251, do Vol. I, tanto do ponto de vista etimológico e mítico quanto sob o aspecto
simbólico.
11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 93-97.
12. Ibid., p. 104.
13. DUMÉZIL, G. Les mythes romains: I – Horace et les Curiaces. Paris: Gallimard, 1942, p. 30.
14. Ibid., p. 150.
15. FRAZER, J.G. The Golden Bough. London: The Macmillan Press, 1975, p. 200ss.
16. Ibid., p. 201.
17. Embora na llíada não apareça nenhum parentesco entre Peleu e Télamon, é conveniente
não nos esquecermos do “pulmão do mito”, que são as “variantes”. Além do mais, em todas as
épocas se identificaram personagens com o mesmo nome ou com nomes semelhantes, para
atender, quase sempre, a reivindicações de cidades, de templos e sobretudo a genealogias.
Acrescente-se, de caminho, que Peleu foi banido juntamente com Télamon, porque ambos
assassinaram a seu irmão Foco. Peleu chegou a Ftia e desposou Antígona, filha do rei local
Eurítion, que deu àquele um terço de seu reino. Na caçada de Cálidon, Peleu, “sem o querer”,
matou ao sogro, assumindo sozinho a posse do reino da Ftiótida. Observe-se que neste mito,
como em tantos outros, encontram-se associados os dois temas: a morte do velho rei,
“daquele que não mais fecunda” e o casamento com a princesa, penhor de conquista do reino
18. A temível cabeça de Medusa se tornou tão importante, que acabou até mesmo se
transformando em amuleto mágico para afugentar certas doenças, como aparece numa
pintura de Perseu, segurando a cabeça do monstro, com a seguinte inscrição:ϕuv(ge)
podavgra Perseuvr se diwvki (Phy(gue) podágra Perseús se dióki) – “vai embora, podagra,
Perseu te persegue”.
CAPÍTULO III
Héracles e os Doze Trabalhos
1
HÉRACLES, em grego Ήρακλῆς (Heraklês), é interpretado em
etimologia popular como palavra composta de Ήρα (Héra), “Hera” e
κλέος (kléos), “glória”, ou seja, o que fez a glória de Hera, saindo-se
vitoriosamente nos doze trabalhos gigantescos que a deusa lhe
impôs. Pergunta, entretanto, Carnoy, se a etimologia citada não
resultaria de uma confusão entre o nome da deusa, que o perseguia, e
o nome ἦρα (êra), sem aspiração, e que significa serviço, uma vez que
o herói realmente pode ser chamado “aquele que gloriosamente
serviu por suas gestas célebres”. Quanto ao nome latino do deus,
Hércules, este provém do grego Heraklês, possivelmente com um
intermediário etrusco hercle. Seja como for, trata-se de mais um
nome mítico sem uma etimologia satisfatória.
Quadro 2
Muito embora seja Zeus, no mito, e não Anfitrião, o pai de Héracles,
este vem a ser bisneto de Perseu pelo lado materno, pois Alcmena,
sua mãe, é filha de Eléctrion e neta de Perseu. O quadro anterior
torna mais clara a genealogia do maior dos heróis gregos.
Já tendo sido mencionados todos os filhos de Perseu e Andrômeda
no fim do capítulo anterior, vamos nos preocupar apenas com Alceu
e Eléctrion.
Enquanto neto de Alceu, o filho de Alcmena é chamado
igualmente Άλκείδης (Alkeídes), Alcides, nome proveniente de
ἀλκή (alké), “força em ação, vigor”. Em tese, até a realização
completa dos Doze Trabalhos, o herói deveria ser chamado tão
somente de Alcides, pois só se torna a “glória de Hera”, Héracles, após
o término de todas as provas iniciáticas impostas pela deusa. É assim,
aliás, que lhe chama Píndaro, Olímpicas, 6,68: “o rebento ilustre da
raça de Alceu”.
É extremamente difícil tentar expor, já não diria em ordem
racional, mas até mesmo com certa ordem, o vasto mitologema de
Héracles, uma vez que os mitos, que lhe compõem a figura,
evoluíram ininterruptamente, desde a época pré-helênica até o fim
da Antiguidade greco-latina.
Variantes, adições e interpolações várias de épocas diversas,
algumas até mesmo de cunho político, enriqueceram de tal modo o
mitologema, que é totalmente impraticável separar-lhe os mitemas.
O único método válido, a nosso ver, para que se tenha uma visão de
conjunto desse extenso conglomerado, é dividir a estória de Héracles
em ciclos, fazendo-os preceder dos mitos concernentes a seu
nascimento, infância e educação. Vamos, assim, tentar estabelecer
uma divisão mais ou menos didática nesse longo mitologema, a fim
de que se possa ter uma ideia das partes e, quanto possível, do todo.
Nosso esquema “artificial” funcionará, pois, da seguinte maneira:
1 – nascimento, infância e educação de Héracles;
2 – o ciclo dos Doze Trabalhos;
3 – aventuras secundárias, praticadas no curso dos Doze
Trabalhos;
4 – gestas independentes do ciclo anterior; e
5 – ciclo da morte e da apoteose do herói.
2
O Hino homérico a Héracles, 1-8, em apenas oito versos, nos traça o
destino completo do herói incomparável:
É a Héracles, filho de Zeus, que vou cantar,
ele que é de longe o maior dentre os que habitam a
terra.
Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros,
deu à luz, após unir-se ao Crônida de sombrias
nuvens.
Errou e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar
imensos;
em seguida triunfou, graças à sua bravura,
e, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis.
Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso
e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos.
Anfitrião, filho de Alceu, casara-se com sua prima Alcmena, filha
de Eléctrion, rei de Micenas, mas, tendo involuntariamente causado
a morte de seu sogro e tio, foi banido por seu tio Estênelo, rei
suserano de Argos, e de quem dependia o reino de Micenas. Expulso,
pois, de Micenas, Anfitrião, em companhia da esposa, refugiou-se em
Tebas, onde foi purificado pelo rei Creonte. Como Alcmena se
recusasse a consumar o matrimônio, enquanto o marido não lhe
vingasse os irmãos, mortos pelos filhos de Ptérela1, Anfitrião, obtida
a aliança dos Tebanos e com contingentes provindos de várias
regiões da Grécia, invadiu a ilha de Tafos, onde reinava Ptérela. Com
a traição de Cometo, a vitória de Anfitrião foi esmagadora.
Carregado de despojos, o filho de Alceu se aprestou para regressar a
Tebas, com o objetivo de fazer Alcmena sua mulher.
Pois bem, foi durante a ausência de Anfitrião que Zeus, desejando
dar ao mundo um herói como jamais houvera outro e que libertasse
os homens de tantos monstros, escolheu a mais bela das habitantes
de Tebas para ser mãe de criatura tão privilegiada. Sabedor, porém,
da fidelidade absoluta da princesa micênica, travestiu-se de
Anfitrião, trazendo-lhe inclusive de presente a taça de ouro por onde
bebia o rei Ptérela e, para que nenhuma desconfiança pudesse ainda,
porventura, existir no espírito da “esposa”, narrou-lhe longamente os
incidentes da campanha. Foram três noites de um amor ardente,
porque, durante três dias, Apolo, por ordem do pai dos deuses e dos
homens, deixou de percorrer o céu com seu carro de chamas.
Ao regressar, logo após a partida de Zeus, Anfitrião ficou muito
surpreso com a acolhida tranquila e serena da esposa e ela também
muito se admirou de que o marido houvesse esquecido tão depressa a
grande batalha de amor travada até a noite anterior em Tebas... Um
duelo que fora mais longo que a batalha na ilha de Tafos! Mais
espantado e, dessa feita, confuso e nervoso ficou o general tebano,
quando, ao narrar-lhe os episódios da luta contra Ptérela, verificou
que a esposa os conhecia tão bem ou melhor que ele. Consultado, o
adivinho Tirésias revelou a ambos o glorioso adultério físico de
Alcmena e o astucioso estratagema de Zeus. Afinal, a primeira noite
de núpcias compete ao deus e é por isso que o primogênito nunca
pertence aos pais, mas a seu Godfather... Mas Anfitrião, que esperara
tanto tempo por sua lua-de-mel, se esquecera de tudo isto e, louco de
raiva e ciumes, resolveu castigar Alcmena, queimando-a viva numa
pira. Zeus, todavia, não o permitiu e fez descer do céu uma chuva
repentina e abundante, que, de imediato, extinguiu as chamas da
fogueira de Anfitrião. Diante de tão grande prodígio, o general
desistiu de seu intento e acendeu outra fogueira, mas de amor, numa
longa noite de ternura com a esposa.
Com tantas noites de amor, Alcmena concebeu dois filhos: um de
Zeus, Héracles; outro de Anfitrião, Íficles. Acontece que Zeus,
imprudentemente, deixara escapar que seu filho nascituro da
linhagem dos persidas reinaria em Argos. De imediato, a ira e o
ciume de Hera, que jamais deixou em paz as amantes e os filhos
adulterinos de seu esposo Zeus, começaram a manifestar-se.
Ordenou a Ilítia, deusa dos partos, sobre quem já se falou no Vol. II, p.
60, e que, diga-se mais uma vez, é uma hipóstase da própria rainha
dos deuses, que retardasse o mais possível o nascimento de Héracles
e apressasse o de Euristeu, primo de Alcides, porquanto era filho de
Estênelo. Nascendo primeiro, o primo do filho de Alcmena seria
automaticamente o herdeiro de Micenas. Foi assim que Euristeu veio
ao mundo com sete meses e Héracles com dez! Este acontecimento é
narrado minuciosamente na Ilíada, XIX, 97-134.
Fazia-se necessário, todavia, iniciar urgentemente a imortalidade
do herói. Zeus arquitetou um estratagema, cuja execução, como
sempre, ficou aos cuidados de Hermes: era preciso fazer o herói
sugar, mesmo que fosse por instantes, o seio divino de Hera. O
famoso Trismegisto conseguiu mais uma vez realizar uma façanha
impossível: quando a deusa adormeceu, Hermes colocou o menino
sobre os seios divinos da imortal esposa de Zeus. Hera despertou
sobressaltada e repeliu a Héracles com um gesto tão brusco, que o
leite divino espirrou no céu e formou a Via Láctea! Existe uma
variante que narra o episódio de maneira diversa. Temerosa da “ira
sempre lembrada da cruel Juno”, como diria muito mais tarde
Vergílio, Eneida, 1,4, com respeito ao ressentimento da deusa contra
Eneias, Alcmena mandou expor o menino nos arredores de Argos,
num local que, depois, se chamou “Planície de Héracles”. Por ali
passavam Hera e Atená e a deusa da inteligência, vendo o exposto,
admirou-lhe a beleza e o vigor. Pegou a criança e entregou-a a Hera,
solicitando-lhe desse o seio ao faminto. Héracles sugou o leite divino
com tanta força, que feriu a deusa. Esta o lançou com violência para
longe de si. Atená o recolheu e levou de volta a Alcmena, garantindo-
lhe que podia criar o filho sem temor algum. De qualquer forma, o
vírus da imortalidade se inoculara no filho de Zeus e Alcmena. Mas o
ódio de Hera sempre teve pernas compridas. Quando o herói contava
apenas oito meses, a deusa enviou contra ele duas gigantescas
serpentes. Íficles, apavorado, começou a gritar, mas Héracles,
tranquilamente, se levantou do berço em que dormia, agarrou as
duas víboras, uma em cada mão, e as matou por estrangulamento.
Píndaro, nas Nemeias, 1,33-63, disserta poética e longamente sobre a
primeira grande gesta de Héracles. Anfitrião, que acorrera de espada
em punho, ao ver o prodígio, acreditou, finalmente, na origem divina
do “filho”. E o velho Tirésias, mais uma vez, explicou o destino que
aguardava o herói.
A educação de Héracles, projeção da que recebiam jovens gregos da
época clássica, começou em casa. Seu primeiro grande mestre foi o
general Anfitrião, que o adestrou na difícil arte de conduzir bigas.
Lino foi seu primeiro professor de música e de letras, mas enquanto
seu irmão e condiscípulo Íficles se comportava com atenção e
docilidade, o herói já desde muito cedo dava mostra de sua
indisciplina e descontrole. Num dia, chamado à atenção pelo grande
músico, Héracles, num assomo de raiva, pegou um tamborete, outros
dizem que uma lira, e deu-lhe uma pancada tão violenta, que o
mestre foi acordar no Hades. Acusado de homicídio, o jovem
defendeu-se, citando um conceito do implacável juiz dos mortos,
Radamanto, segundo o qual tinha-se o direito de matar o adversário,
em caso de legítima defesa. Apesar da quando muito legítima defesa
cerebrinamente putativa, Héracles foi absolvido. Em seguida, vieram
outros preceptores: Eumolpo prosseguiu com o ensino da música;
Êurito, rei de Ecália, que bem mais tarde terá um problema muito
sério com o herói, ensinou-lhe o manejo do arco, arte em que teve
igualmente por instrutor o cita Têntaro e, por fim, Castor o exercitou
no uso das demais armas. Héracles, porém, sempre se portou como
um indisciplinado e temperamental incorrigível, a ponto de,
temendo pela vida dos mestres, Anfitrião o mandou para o campo,
com a missão de cuidar do rebanho.
Enquanto isso, o herói crescia desproporcionadamente. Aos
dezoito anos, sua altura chegava a três metros! E foi exatamente aos
dezoito anos que Héracles realizou sua primeira grande façanha, a
caça e morte do leão do monte Citerão. Este animal, de porte fora do
comum e de tanta ferocidade, estava causando grandes estragos nos
rebanhos de Anfitrião e do rei Téspio, cujas terras eram vizinhas das
de Tebas. Como nenhum caçador se atrevesse a enfrentar o monstro,
Héracles se dispôs a fazê-lo, transferindo-se, temporariamente, para
o reino de Téspio. A caçada ao leão durou cinquenta dias, porque,
quando o sol se punha, o caçador retornava, para dormir no palácio.
Exatamente no quinquagésimo dia, o herói conseguiu sua primeira
grande vitória. Acontece, porém, que Téspio, pai de cinquenta filhas,
e desejando que cada uma tivesse um filho de Héracles, entregavalhe uma por noite, e foi assim que, durante cinquenta dias, o herói
fecundou as cinquenta jovens, de que nasceram as tespíades. A
respeito da divergência do tempo que durou essa proeza sexual do
filho de Alcmena já se falou na Introdução, capítulo I, onde se
mostrou, igualmente, que a potência sexual de Héracles não teve
competidor, ao menos no mito. É possível que nos civilizados tempos
modernos a Surmâle de Jarry lhe possa servir de parâmetro...
Ao retornar do reino de Téspio, Héracles encontrou nas
vizinhanças de Tebas os delegados do rei de Orcômeno, Ergino, que
vinham cobrar o tributo anual de cem bois, que Tebas pagava a
Orcômeno, como indenização de guerra. Após ultrajá-los, o herói
cortou-lhes as orelhas e o nariz e, pendurando-os ao pescoço de cada
um, os enviou de volta, dizendo-lhes ser este o pagamento do tributo.
Indignado, Ergino, com um grande exército, marchou contra
Tebas. Héracles desviou o curso de um rio e afogou na planície a
cavalaria inimiga. Perseguiu, em seguida, a Ergino e o matou a
flechadas. Antes de retirar-se com os soldados tebanos, impôs aos
mínios de Orcômeno o dobro do tributo que lhes era pago por Tebas.
Foi nesta guerra que morreu Anfitrião, lutando bravamente ao lado
do filho.
O rei Creonte, grato por tudo quanto o filho de Alcmena fizera por
Tebas, deu-lhe em casamento sua filha primogênita Mégara,
enquanto a caçula se casava com Íficles, tendo este, para tanto,
repudiado sua primeira esposa Automedusa, que lhe dera um filho,
Iolau. De Héracles e Mégara nasceram oito filhos, segundo Píndaro;
três, conforme Apolodoro; sete ou cinco, consoante outras versões.
Não importa o número. Talvez o que faça pensar é a reflexão de
Apolodoro de que Héracles somente foi pai de filhos homens, como
se de um macho quiçá só pudessem nascer machos... (Apol., 2,7,8).
Hera, porém, preparou tranquilamente a grande vingança. Como
protetora dos amantes legítimos, não poderia perdoar ao marido seu
derradeiro adultério, ao menos no mito, sobretudo quando Zeus
tentou dar a essa união ilegítima com Alcmena o signo da
legitimidade (Diod., 4,9,3; Apol., 2,4,8), fazendo o menino sugar o
leite imortal da esposa.
Foi assim que a deusa lançou contra Héracles a terrível Λύσσα
(L×ssa), a raiva, o furor, que, de mãos dadas com a ἄνοια (ánoia), a
demência, enlouqueceu por completo o herói. Num acesso de insânia,
ei-lo matando a flechadas ou lançando ao fogo os próprios filhos.
Terminado o morticínio dos seus, investiu contra os de Íficles,
massacrando dois. Sobraram dessa loucura apenas Mégara e Iolau,
salvos pela ação rápida de Íficles.
Recuperada a razão, o herói, após repudiar Mégara e entregá-la a
seu sobrinho Iolau, dirigiu-se ao Oráculo de Delfos e pediu a Apolo
que lhe indicasse os meios de purificar-se desse ἀκούσιος φόνος
(akúsios phónos), desse “morticínio involuntário”, mas mesmo assim
considerado “crime hediondo”, na mentalidade grega. A Pítia
ordenou-lhe colocar-se ao serviço de seu primo Euristeu durante
doze anos, ao que Apolo e Atená teriam acrescentado que, como
prêmio de tamanha punição, o herói obteria a imortalidade.
Existem variantes acerca dessa submissão de Héracles a Euristeu,
que, aliás, no mito é universalmente tido e havido como um poltrão,
um covarde, um deformado física e moralmente. Incapaz, até
mesmo, de encarar o herói frente a frente, mandava-lhe ordens
através do arauto Copreu, filho de Pélops, refugiado em Micenas.
Proibiu, por medo, que Héracles penetrasse no recinto da cidade e,
por precaução, mandou fabricar um enorme jarro de bronze como
supremo refúgio. E não foi preciso que o herói o atacasse, para que
Euristeu “usasse o vaso”. Mais de uma vez, como se verá, o rei de
Micenas se serviu do esconderijo, só à vista das presas e monstros que
lhe eram trazidos pelo filho de Alcmena. Numa palavra: Euristeu,
incapaz de realizar mesmo o possível, impôs ao herói o impossível,
vale dizer, a execução dos célebres Doze Trabalhos.
Dizíamos, porém, que existem variantes, que explicam de outra
maneira a submissão de Héracles ao rei de Micenas. Uma delas relata
que Héracles, desejando retornar a Argos, dirigiu-se ao primo e este
concordou, mas desde que aquele libertasse primeiro o Peloponeso e
o mundo de determinados monstros. Uma outra, retomada pelo
poeta da época alexandrina, Diotimo, apresenta Héracles como
amante de Euristeu. Teria sido por mera complacência amorosa que
o herói se submetera aos caprichos do amado, o que parece, aliás,
uma ressonância tardia do discurso de Fedro no Banquete de Platão,
179.
As variantes apontadas e outras de que não vale a pena falar, bem
como a “condição de imortalidade”, sugerida ou imposta por Apolo e
Atená, provêm simplesmente da reflexão do pensamento grego
sobre o mito: a necessidade de justificar tantas provações por parte
de um herói idealizado como o justo por excelência. Para as religiões
de mistérios, na Hélade, os sofrimentos de Héracles configuram as
provas por que tem que passar a psiqué, que se libera paulatina, mas
progressivamente, dos liames do cárcere do corpo.
3
Os Doze Trabalhos são, pois, as provas a que o rei de Argos, o
covarde Euristeu, submeteu seu primo Héracles. Num plano
simbólico, as doze provas configuram um vasto labirinto, cujos
meandros, mergulhados nas trevas, o herói terá que percorrer até
chegar à luz, onde, despindo a mortalidade, se revestirá do homem
novo, recoberto com a indumentária da imortalidade.
Quanto ao número DOZE, trata-se de algo muito significativo. Para
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant2“é o número das divisões espáciotemporais, o produto dos quatro pontos cardeais pelos três níveis
cósmicos. Divide o céu, visualizado como uma cúpula, em doze
setores, os doze signos do zodíaco, mencionados desde a mais alta
Antiguidade [...]. A combinação de dois números 12x5 origina os
ciclos de 60 anos, quando se culminam os ciclos solar e lunar. Doze
simboliza, pois, o universo em seu desenvolvimento cíclico espáciotemporal. Configura igualmente o universo em sua complexidade
interna. O duodenário, que caracteriza o ano e o zodíaco, representa a
multiplicação dos quatro elementos, água, ar, terra e fogo, pelos três
princípios alquímicos, enxofre, sal e mercúrio, ou ainda os três
estados de cada elemento em suas fases sucessivas: evolução,
culminação e involução”.
Na simbólica cristã, o doze tem um significado todo particular. A
combinação do quatro do mundo espacial e do três do tempo
sagrado, dimensionando a criação-recriação, produz o número doze,
que é o do mundo concluído. Doze é outrossim o número da
Jerusalém celeste: 12 portas, 12 apóstolos, 12 cadeiras...; é o número do
ciclo litúrgico do ano de doze meses e de sua expressão cósmica, que
é o Zodíaco.
Para os escritores sagrados doze é o número da eleição, o número
do povo de Deus, da Igreja. Jacó gerou doze filhos, ancestrais
epônimos das doze tribos de Israel (Gn 35,23ss). A árvore da vida
estava carregada com doze frutos; os sacerdotes tinham doze joias.
Doze eram os Apóstolos. A Jerusalém celestial do Apocalipse 21,12
estava assinalada com o número doze: “E tinha um muro grande e
alto com doze portas; e nas portas doze anjos, e uns nomes escritos,
que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel”. Logo a seguir,
em 21,14, diz o Apocalipse: “E o muro da cidade tinha doze
fundamentos e neles os doze nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro”.
E o doze e seus múltiplos continuam por todo o capítulo 21.
Os fiéis dos fins dos tempos serão 144.000, 12.000 de cada uma das
doze tribos de Israel (Ap 7,4-8; 14,1).
Também em torno daTávola Redondado rei Artur sentavam-se
doze cavaleiros.
Doze é, por conseguinte, o número de uma realização integral, de
um fecho completo, de um uróboro. Desse modo, no Tarô, a carta do
Enforcado (XII) marca o fim de um ciclo involutivo, seguido pelo da
morte (XIII), que deve ser tomado no sentido de renascimento.
Mostraremos esse décimo terceiro trabalho de Héracles...
Voltemos às fadigas do herói-deus dos Helenos. Os mitógrafos da
época helenística montaram um catálogo dos Doze Trabalhos em
duas séries de seis. Os seis primeiros tiveram por palco o Peloponeso
e os seis outros se realizaram em partes diversas do mundo então
conhecido, de Creta ao Hades. Advirta-se, porém, que há muitas
variantes, não apenas em relação à ordem dos trabalhos, mas
igualmente no que tange ao número dos mesmos. Apolodoro, por
exemplo, só admitia dez.
Exceto a clava, que o próprio herói cortou e preparou de um tronco
de oliveira selvagem, todas as suas demais armas foram presentes
divinos: Hermes lhe deu a espada; Apolo, o arco e as flechas; Hefesto,
uma couraça de bronze; Atená, um peplo; e Posídon ofereceu-lhe os
cavalos.
LEÃO DE NEMEIA3
Nemeia, nome de uma cidade e de um bosque na Argólida, foi o
cenário do primeiro trabalho do herói. O Leão de Nemeia era um
monstro de pele invulnerável, filho de Ortro, e este, filho de Tifão e
de Équidna4, um outro monstro, sob forma de mulher-serpente. Esse
Leão possuía uns irmãos célebres e terríveis: Cérbero, Hidra de Lerna,
Quimera, Esfinge de Tebas... Criado pela deusa Hera ou à mesma
emprestado pela deusa-Lua “Selene”, para provar Héracles, o
monstro passava parte do dia escondido num bosque, perto de
Nemeia. Quando deixava o esconderijo, o fazia para devastar toda a
região, devorando-lhe os habitantes e os rebanhos. Entocado numa
caverna, com duas saídas, era quase impossível aproximar-se dele. O
herói atacou-o a flechadas, mas em vão, pois o couro do leão era
invulnerável. Astutamente, fechando uma das saídas, o filho de Zeus
o tonteou a golpes de clava e, agarrando-o com seus braços
possantes, o sufocou. Com o couro do monstro o herói cobriu os
próprios ombros e da cabeça do mesmo fez um capacete.
Não insistimos em outros pormenores acerca desta primeira tarefa
de Héracles, porque todos os episódios relativos ao Leão de Nemeia,
inclusive a parte simbólica, foram estudados no Vol. I, p. 269.
Igualmente se mostrou no Vol. II, p. 154-157, a importância da posse
do crânio do inimigo abatido. Quanto à pele, com que o herói cobriu
os ombros, além da invulnerabilidade, possuía como toda pele de
determinados animais um mana, uma enérgueia muito forte,
simbolizando, desse modo, a “insígnia da combatividade vitoriosa”do
filho de Alcmena.
HIDRA DE LERNA
Como já se mostrou no Vol. I, p. 256, também este monstro com seu
simbolismo foi bem estudado, pelo que nos abstemos de fazer
repetições inúteis. Desejamos tão-somente acrescentar a
interpretação simbólica e psicológica de Paul Diel, que nos parece
muito pertinente. Para o autor de Le symbolisme dans la mythologie
grecque, p. 208, “as múltiplas cabeças do monstro de corpo de
serpente configuram os vícios múltiplos, nos quais se prolonga o
‘corpo’ da perversão, a vaidade. Vivendo num pântano, a Hidra é
particularmente caracterizada como símbolo dos vícios banais.
Enquanto o monstro viver, enquanto a vaidade não for dominada, as
cabeças, símbolo dos vícios, renascerão, mesmo que, por uma vitória
passageira, se consiga cortar uma ou outra. Para vencer o monstro,
Héracles usa a espada, arma de combate espiritual, conjugada ao
archote, que cauteriza as feridas, a fim de que, uma vez cortadas, as
cabeças não mais possam renascer. O archote simboliza a
purificação sublime”.
JAVALI DE ERIMANTO
Erimanto é uma escura montanha da Arcádia, onde se escondia
um monstruoso javali, que Héracles deveria trazer vivo ao rei de
Argos. Com gritos poderosos, o herói fê-lo sair do covil e, atraindo a
besta-fera para uma caverna coberta de neve, o fatigou até que lhe
foi possível segurá-lo pelo dorso e conduzi-lo ao primo. Ao ver o
monstro, Euristeu, apavorado, escondeu-se no jarro de bronze, de que
se falou mais acima.
O simbolismo do javali está diretamente relacionado com a
tradição hiperbórea, com aquele nostálgico paraíso perdido, onde se
localizaria a Ilha dos Bem-Aventurados. Nesse enfoque, segundo
comentam J. Chevalier e Alain Gheerbrant, o javali configuraria o
poder espiritual, em contraposição ao urso, símbolo do poder
temporal. Assim concebida, a simbólica do javali estaria relacionada
com o retiro solitário do druida nas florestas: nutre-se da glande do
carvalho, árvore sagrada, e a javalina com seus nove filhotes escava a
terra em torno da macieira, a árvore da imortalidade. A respeito de
toda a simbólica do javali já se falou no Vol. II, p. 67-68.
Héracles, apoderando-se do símbolo do poder espiritual, escala
mais um degrau no rito iniciático.
CORÇA DE CERINIA
Essa corça de Cerinia, segundo Calímaco, Hino a Ártemis, 98ss, era
uma das cinco que Ártemis encontrou no monte Liceu. Quatro a
deusa as atrelou em seu carro e a quinta a poderosa Hera a conduziu
para o monte Cerinia, com o fito de servir a seus intentos contra
Héracles. Consagrada à irmã gêmea de Apolo, esse animal, cujos pés
eram de bronze e os cornos de ouro, trazia a marca do sagrado e,
portanto, não podia ser morta. Mais pesada que um touro, se bem que
rapidíssima, o herói, que deveria trazê-la viva a Euristeu, perseguiu-a
durante um ano. Já exausto, o animal buscou refúgio no monte
Artemísion, mas, sem lhe dar tréguas, Héracles continuou na caçada
e, quando a corça tentou atravessar o rio Ládon, na Arcádia, ferindoa levemente, Alcides logrou apoderar-se dela. Quando já se dirigia a
Micenas, encontrou-se com Apolo e Ártemis. Estes tentaram tirar-lhe
o animal, mas, afirmando cumprir ordens de Euristeu, o filho de
Alcmena conseguiu, por fim, prosseguir seu caminho.
Píndaro apresenta uma versão acentuadamente mística dessa
longa perseguição. Consoante o poeta tebano, Olímpicas, 3,29ss,
Héracles teria seguido a corça em direção ao norte, através da Ístria,
chegando ao país dos Hiperbóreos, onde, na Ilha dos BemAventurados, foi benevolamente acolhido por Ártemis.
A interpretação pindárica é como que uma antecipação da única
tarefa realmente importante do herói, sua liberação interior. Sua
estupenda vitória, após um ano de tenaz perseguição, apossando-se
da corça de cornos de ouro e pés de bronze, tendo chegado ao norte e
ao céu eternamente azul dos Hiperbóreos, configura a busca da
sabedoria, tão difícil de se conseguir. A simbólica dos pés de bronze
há que ser interpretada a partir do próprio metal. Enquanto sagrado,
o bronze isola o animal do mundo profano, mas, enquanto pesado, o
escraviza à terra.
Têm-se aí os dois aspectos fundamentais da interpretação: o
diurno e o noturno dessa corça. Seu lado puro e virginal é bem
acentuado, mas o “peso do metal” poderá pervertê-la, fazendo-a
apegar-se a desejos grosseiros, que lhe impedem qualquer voo mais
alto.
Paul Diel vai um pouco mais longe na hermenêutica da corça dos
pés de bronze: “A corça, como o cordeiro, simboliza uma qualidade do
espírito, que se contrapõe à agressividade dominadora. Os pés de
bronze, quando aplicados à sublimidade, configuram a força da
alma. A imagem traduz a paciência e o esforço na consecução da
delicadeza e da sensibilidade sublime, especificando, igualmente,
que essa mesma sensibilidade representada pela corça, embora se
oponha à violência, possui um vigor capaz de preservá-la de toda e
qualquer fraqueza espiritual”5que está bem configurada nos pés de
bronze.
De outro lado, embora consagrada a Ártemis, a corça, no mito
grego, é propriedade de Hera, deusa protetora do amor legítimo e do
himeneu. Símbolo essencialmente feminino, o brilho de seus olhos é,
muitas vezes, cotejado com a limpidez do olhar de uma jovem. O
Cântico dos Cânticos usa o nome da corça numa fórmula de
esconjuro, para preservar a tranquilidade do amor:
“Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças do
campo, que não perturbeis nem acordeis a minha amada, até que ela
queira” (2,7).
AVES DO LAGO DE ESTINFALO
Numa espessa e escura floresta, às margens do lago de Estinfalo, na
Arcádia, viviam centenas de aves de porte gigantesco, que
devoravam os frutos da terra, em toda aquela região. Segundo outras
fontes, eram antropófagas e liquidavam os passantes com suas penas
aceradas, de que se serviam como de dardos mortíferos. A
dificuldade consistia em fazê-las sair de seus escuros abrigos na
floresta. Hefesto, a pedido de Atená, fabricou para o herói umas
castanholas de bronze. Com o barulho ensurdecedor desses
instrumentos, as aves levantaram voo e foram mortas com flechas
envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna.
Uma interpretação evemerista do mito faz dessas aves filhas de
um certo herói Estinfalo. Héracles as matou, porque lhe negaram
hospitalidade, concedendo-a, logo depois, a seus inimigos, os
moliônides, isto é, Ctéato e Êurito.
Com suas flechas certeiras, símbolo da espiritualização, Héracles
liquidou as Aves do lago de Estinfalo, cujo voo obscurecia o sol. Como
o pântano, o lago reflete a estagnação. As aves que dele levantam voo
simbolizam o impulso de desejos múltiplos e perversos. Saídos do
inconsciente, onde se haviam estagnado, põem-se a esvoaçar e sua
afetividade perversa acaba por ofuscar o espírito.
A vitória do filho de Alcmena é mais um triunfo sobre as “trevas”.
ESTÁBULOS DE AUGIAS
Rei de Élis, no Peloponeso, Augias, filho de Hélio, era dono de um
imenso rebanho. Mas, tendo deixado de limpar seus estábulos
durante trinta anos, provocou a esterilidade nas terras da Elida, por
falta de estrume. Para humilhar o primo, Euristeu lhe ordenou que
fosse limpá-los.
O herói, antes de iniciar sua tarefa, pediu a Augias, como salário,
um décimo do rebanho, comprometendo-se a remover a montanha
de estrume num só dia. Julgando impossível a empresa, o rei
concordou com a exigência feita. Tendo desviado para dentro dos
estábulos o curso de dois rios, Alfeu e Peneu, a tarefa foi executada
com precisão e espantosa rapidez. Augias, no entanto, deixou de
cumprir a promessa, e, como o herói tomara por testemunha o jovem
Fileu, o rei expulsou de seu reino ao filho de Alcmena.
Para se vingar, o herói reuniu um exército de voluntários da
Arcádia e marchou contra Élis. Augias, tendo colocado à frente das
tropas seus dois sobrinhos, Ctéato e Êurito, os moliônides, conseguiu
repelir o ataque de Héracles, que, além do mais, quase perdeu seu
irmão Íficles, que foi gravemente ferido em combate. Mais tarde,
todavia, quando da celebração dos terceiros Jogos Ístmicos, como os
habitantes de Élis tivessem enviado os moliônides para representálos nos Agônes, o herói, como se comentou na Introdução, cap. I, os
matou numa emboscada. Não satisfeito, organizou uma segunda
expedição contra a Élida: tomou a cidade de Élis, matou Augias e
entregou o trono a Fileu, que, anteriormente, testemunhara a seu
favor. Foi após essa vitoriosa campanha contra Augias que Héracles
fundou os Jogos Olímpicos, como recorda Píndaro, Olímpicas, 10,25s.
Segundo Diel, os estábulos do rei Augias “configuram o
inconsciente. A estrumeira representa a deformação banal. O herói
faz passar as águas do Alfeu e Peneu através dos estábulos imundos,
o que simboliza a purificação. Sendo o rio a imagem da vida que se
escoa, seus acidentes sinuosos refletem os acontecimentos da vida
‘corrente’ [...]. Irrigar o estábulo com as águas de um rio significa
purificar a alma, o inconsciente da estagnação banal, graças a uma
atividade vivificante e sensata”6.
Estes seis primeiros Trabalhos de Héracles têm por cenário, já se
mostrou linhas acima, em 3, a própria Hélade; os seis últimos, mais
difíceis e penosos – afinal a iniciação é um progresso na dor –,
levarão o filho de Alcmena para outras paragens. Trata-se, no fundo,
de um caminhar em direção a Thánatos, conforme se há de mostrar.
TOURO DE CRETA
Minos, rei de Creta, prometera sacrificar a Posídon tudo quanto de
especial saísse do mar. O deus fez surgir das espumas um touro
maravilhoso. Encantado com a beleza do animal, o rei mandou leválo para junto de seu rebanho e sacrificou a Posídon um outro.
Irritado, o deus enfureceu o touro, que saiu pela ilha, fazendo
terríveis devastações. Foi este animal feroz, que lançava chamas
pelas narinas, que Euristeu ordenou a Héracles de trazer vivo para
Micenas. Não podendo contar com o auxílio de Minos, que se recusou
a ajudá-lo, o herói, segurando o monstro pelos chifres, conseguiu
dominá-lo e, sobre o dorso do mesmo, regressou à Hélade. Euristeu o
ofertou à deusa Hera, mas esta, nada querendo que proviesse de
Héracles, o soltou. O animal percorreu a Argólida, atravessou o Istmo
de Corinto e ganhou a Ática, refugiando-se em Maratona, onde
Teseu, mais tarde, o capturou e sacrificou a Apolo Delfínio.
Como já se discorreu sobre a simbologia do touro no Vol. II, p.35ss,
resta-nos apenas acrescentar que a vitória de Héracles sobre o touro
feroz, que lançava chamas pelas narinas, é o triunfo sobre a força
bruta da tendência dominadora.
A cada trabalho o grande herói vai se aperfeiçoando e se
encontrando...
ÉGUAS DE DIOMEDES
Diomedes, filho de Ares e Pirene, o cruel rei da Trácia, possuía
quatro éguas, Podargo, Lâmpon, Xanto e Dino, que eram alimentadas
com as carnes dos estrangeiros que as tempestades lançavam às
costas da Trácia. Euristeu ordenou a Héracles de pôr termo a essa
prática selvagem e trazer as éguas para Argos. O herói foi obrigado a
lutar com Diomedes, que, vencido, foi lançado às suas próprias
bestas antropófagas. Após devorarem o rei, as éguas estranhamente
se acalmaram e foram, sem dificuldade alguma, conduzidas a
Micenas. Euristeu as deixou em liberdade e as mesmas acabaram
sendo devoradas pelas feras do monte Olimpo.
Foi durante a caminhada do herói em direção à Trácia que se
passou o episódio da ressurreição de Alceste, tema de que se
aproveitou Eurípides em sua tragédia homônima, que traduzimos
para Bruno Buccini Editor, Rio de Janeiro, 1968. Quando Héracles
passou pela Tessália, mais precisamente por sua capital, Feres, o luto
se apossara do palácio real. É que o rei, Admeto, tendo sido sorteado
pelas Queres para baixar ao Hades, conseguira, por intervenção de
Apolo, que as Moiras o poupassem, até novo sorteio, se alguém se
oferecesse para morrer em seu lugar. Acontece que a empresa não era
fácil e até mesmo os pais de Admeto, já idosos, recusaram-se a fazer
tão grande sacrifício pelo filho. Somente Alceste, sua esposa, apesar
de jovem e bela, num gesto heroico, espontaneamente se prontificou
a dar a vida pelo marido. Quando Admeto se preparava para
solenemente celebrar as exéquias da esposa, eis que surge Héracles,
pedindo-lhe hospitalidade. Não obstante a tristeza e o luto que
pesavam sobre o palácio real, o rei de Feres acolheu dignamente o
filho de Alcmena. Ao ser informado, um pouco mais tarde, do que se
passava, Héracles, apelando para seus braços possantes, dirigiu-se
apressadamente para o túmulo da rainha. E foi num combate
gigantesco que o grande herói levou de vencida a Thánatos, a Morte,
arrancando de suas garras a esposa de Admeto, Alceste, mais jovem e
mais bela que nunca.
Para Paul Diel, do ponto de vista simbólico, sendo as éguas, no
relato em pauta, “símbolo da perversidade, as éguas antropófagas de
Diomedes configuram a perversidade que devora o homem: a
banalização, causa da morte da alma”7.
CINTURÃO DA RAINHA HIPÓLITA
Foi a pedido de Admeta, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera
argiva, que Héracles, acompanhado por alguns voluntários,
inclusive Teseu, seguiu para o fabuloso país das Amazonas, a fim de
trazer para Admeta o famoso Cinturão de Hipólita, rainha dessas
guerreiras indomáveis. Tal Cinturão havia sido dado a Hipólita pelo
deus Ares, como símbolo do poder temporal que a Amazona exercia
sobre seu povo. A viagem do herói teve um incidente mais ou menos
sério. Tendo feito escala na ilha de Paros, dois de seus companheiros
foram assassinados pelos filhos de Minos. É que Nefálion, um dos
filhos do rei cretense com a ninfa Pária, havia se estabelecido na ilha
supracitada com seus irmãos Eurimedonte, Crises e Filolau e com
dois sobrinhos, Alceu e Estênelo. Pois bem, foram esses filhos de
Minos que, com seu gesto impensado, provocaram a ira de Héracles,
que, após matar os quatro irmãos, ameaçou exterminar com todos os
habitantes de Paros. Estes mandaram-lhe uma embaixada,
implorando-lhe que escolhesse dois cidadãos quaisquer da ilha em
substituição aos dois companheiros mortos. O herói aceitou e, tendo
tomado consigo Alceu e Estênelo, prosseguiu viagem, chegando ao
porto de Temiscira, pátria das Amazonas. Hipólita concordou em
entregar-lhe o Cinturão, mas Hera, disfarçada numa Amazona,
suscitou grave querela entre os companheiros do herói e as
habitantes de Temiscira. Pensando ter sido traído pela rainha,
Héracles a matou. Uma variante relata que as hostilidades se
iniciaram, quando da chegada de Alcides. Tendo sido feita
prisioneira uma das amigas ou irmã de Hipólita, Melanipe, a rainha
das Amazonas concluiu tréguas com o filho de Alcmena e
concordou em entregar-lhe o Cinturão em troca da liberdade de
Melanipe.
Foi no decorrer dessa luta, relata uma variante, que Teseu, por seu
valor e desempenho, recebeu de Héracles, como recompensa, a
Amazona Antíope.
No retorno dessa longa expedição, o herói e seus companheiros
passaram por Troia, que, no momento, estava assolada por uma
grande peste. O motivo do flagelo, já relatado no Vol. II, p. 92, foi a
recusa do rei Laomedonte em pagar a Apolo e a Posídon os serviços
prestados por ambos na construção das muralhas de Ílion. Enquanto
Apolo lançara a peste contra Tróada, Posídon fizera surgir do mar
um monstro que lhe dizimava a população. Consultado o oráculo,
este revelou que a peste só teria fim se o rei expusesse sua filha
Hesíona para ser devorada pelo monstro. A jovem, presa a um
rochedo, estava prestes a ser estraçalhada pelo dragão, quando
Héracles chegou. O herói prometeu a Laomedonte salvar-lhe a filha,
se recebesse em troca as éguas que Zeus lhe ofertara por ocasião do
rapto de Ganimedes. O rei aceitou, feliz, a proposta do herói e este, de
fato, matou o monstro e salvou Hesíona. Ao reclamar, todavia, a
recompensa prometida, Laomedonte se recusou a cumpri-la. Ao
partir de Troia, Héracles jurou que um dia voltaria e tomaria a
cidade. E o cumpriu, segundo se verá.
Para Paul Diel a vitória de Héracles sobre as Amazonas é
extremamente significativa, porquanto se trata de “um símbolo
representativo de um dos dois aspectos da escolha nefasta que
concerne necessariamente quer à mulher muito dominadora, quer à
muito banal. Ora, as Amazonas são simbolicamente caracterizadas
como mulheres assassinas de homens: no fundo, desejam substituílos, rivalizar com os mesmos, opondo-se a eles, combatendo-os, ao
invés de completá-los. Já que todo simbolismo se reporta à vida da
alma, a Amazona, assassina da alma, é, indubitavelmente, a mulher
que se opõe, de maneira doentia, histérica, à qualidade essencial, a
única que interessa ao mito: o impulso espiritual. Esse antagonismo
embota a força essencial, própria da mulher, a qualidade de amante e
de mãe, o calor da alma. Existem, claro está, mulheres cuja força
espiritual ultrapassa a da maioria dos homens. A exclusividade da
escolha só tem importância para o homem e a mulher dotados de
qualidades que ultrapassam a norma e que, para se desenvolver,
exigem a complementação; e o que o mito estigmatiza através do
símbolo ‘Amazona’ (o que a mulher neurótica realiza) é a ausência da
virtude especificamente feminina e a predominância de uma
rivalidade exaltada, puramente imaginativa, com a virtude
masculina. O símbolo ‘Héracles, vencedor da rainha das Amazonas’,
exclui da história do herói, atraído pela banalização, o atrativo
contagiante de um tipo feminino, que, normalmente, é perigoso para
os heróis sentimentais”8.
Os Trabalhos de Héracles, tomados em bloco, configurariam a luta
contra a
banalização.
Paul Diel preocupou-se, todavia, apenas com o lado “amazônico”
da excursão vitoriosa do herói, mas deixou de lado o motivo
principal da viagem, a busca do Cinturão de Hipólita.
Na realidade, o cinturão, conforme nos mostram Chevalier e
Gheerbrant, possui um simbolismo muito rico. Vamos tentar
sintetizá-lo.
O cinturão ou simplesmente o cinto, atado em torno dos rins, por
ocasião do nascimento, religa o um ao todo, ao mesmo tempo que liga
o indivíduo. Toda a ambivalência de sua simbólica está resumida
nestes dois verbos, ligar e religar.
Religando, o cinto dá maior segurança e tranquilidade, reanima,
transmite força e poder; ligando, acarreta, ao revés, a submissão, a
dependência e, por conseguinte, a restrição, escolhida ou imposta, da
liberdade. Materialização de um engajamento, de um juramento, de
um voto feito, o cinto assume um valor iniciático, sacralizante e,
materialmente falando, torna-se uma insígnia visível, as mais das
vezes honrosa, que traduz a força e o poder de que está investido seu
portador. Para não multiplicar os exemplos, é bastante observar as
“faixas” dos judocas, de cores variadas e significativas, os cinturões,
em que se penduram as armas e os inumeráveis cintos votivos,
iniciáticos e de aparato, mencionados pelas tradições e ritos de todas
as culturas.
Na Bíblia, o cinto é símbolo de uma união estreita, de um vínculo
permanente, no duplo sentido de união na bênção e de tenacidade na
maldição (Sl 108,18-19):
Vestiu-se de maldição como de veste,
e ela penetrou como água nas suas entranhas,
e como azeite nos seus ossos.
Que ela seja para ele o vestido com que se cobre,
e como o cinto com que se cinge.
Os judeus celebravam a Páscoa, consoante a ordem de Javé, com
um cinto em torno dos rins9, pois que o cinto, como está em Jr 13,1-11,
é um elo precioso que une Javé a seu povo.
A composição simbólica do cinturão espelha a vocação de seu
portador, configura a humildade ou o poder, designando sempre
uma escolha e um exercício concreto dessa escolha. Quando Cristo
diz a Pedro que, jovem, ele se cingia, mas um tempo viria em que
outro o haveria de cingir (Jo 21,18), isto significa também que Pedro
podia outrora escolher seu destino, mas que, depois, ele
compreenderia o apelo da vocação:
Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e
ias aonde desejavas; mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos,
outro te cingirá e te levará para onde tu não queres.
O cinto é igualmente apotropaico: protege contra os maus
espíritos, como os “cinturões” de proteção em torno das cidades as
defendem dos inimigos.
Para Auber, citado por Chevalier e Gheerbrant, “cingir os rins nas
caminhadas ou em toda e qualquer ação viva e espontânea
significava para os antigos uma prova de energia e, por conseguinte,
de desprezo pela frouxidão e indolência; era ainda um sinal de
continência nos hábitos e de pureza no coração [...]. Para S. Gregório,
cingir os rins era um símbolo de castidade”10. É nesse sentido que,
ligado à continência, pode-se interpretar o cinto de couro ou corda,
usado em certas ordens e congregações religiosas. Mas o símbolo não
para por aí, pois que os rins, consoante a Bíblia, configuram também
não só o poder e a força, mas igualmente a justiça, como diz Isaías 11,5:
A justiça será o cinto dos seus lombos e a fé o talabarte de seus rins.
Símbolo de ligar e religar, símbolo de humildade e submissão,
símbolo do poder e da justiça, mas igualmente do “poder castrador”,
símbolo da continência, o Cinturão de Hipólita passou do “poder
castrador” para o poder de continência: deixou de ser usado por uma
Amazona, para guarnecer os rins de Admeta, sacerdotisa de Hera.
BOIS DE GERIÃO
Quinto Horácio Flaco, numa Ode, 2,14,7s, deveras melancólica, nos
fala do tríplice Gerião, retido para sempre na água sinistra, que será,
um dia, transposta por todos nós... Gerião, filho de Crisaor e,
portanto, neto de Medusa, era um gigante monstruoso de três
cabeças, que se localizavam num corpo tríplice, mas somente até os
quadris. Habitava a ilha de Eritia, situada nas brumas do Ocidente,
muito além do imenso Oceano, segundo já se falou no Vol. I, p. 254.
Seu imenso rebanho de bois vermelhos era guardado pelo pastor
Eurítion e pelo monstruoso cão Ortro, filho de Tifão e Équidna, não
muito longe do local onde também Menetes pastoreava o rebanho de
Plutão, o deus dos mortos. Foi por ordem de Euristeu que Héracles
deveria se apossar do rebanho do Gigante e trazê-lo até Micenas. A
primeira dificuldade séria era atravessar o Oceano. Para isso tomou
por empréstimo a Taça do Sol. Tratava-se, na realidade, de uma Taça
gigantesca, em que Hélio, o Sol, todos os dias, à noitinha, após
mergulhar nas entranhas catárticas do Oceano, regressava a seu
palácio, no Oriente. A cessão da Taça por parte de Hélio não foi,
entretanto, espontânea. O herói já caminhava, havia longo tempo,
pelo extenso deserto da Líbia, e os raios do Sol eram tão quentes e o
calor tão violento, que Héracles ameaçou varar o astro com suas
flechas. Hélio, aterrorizado, emprestou-lhe sua Taça. Chegando à
ilha de Eritia, defrontou-se, de saída, com o cão Ortro, que foi morto a
golpes de clava.
Em seguida, foi a vez do pastor Eurítion. Gerião, posto a par do
acontecido pelo pastor Menetes, entrou em luta com o herói, às
margens do rio Ântemo, mas foi liquidado a flechadas. Terminadas
as justas, embarcou o rebanho na Taça do Sol e reiniciou a longa e
penosa viagem de volta, chegando primeiramente a Tartesso, cidade
da Hispânia Bética, localizada na foz do rio Bétis. Foi durante todo
esse tumultuado retorno à Grécia que se passou a maioria das gestas
extraordinárias, que são atribuídas ao filho de Zeus no Mediterrâneo
ocidental. Já em sua viagem de ida libertara a Líbia de um semnúmero de monstros e, em seguida, para lembrar sua passagem por
Tartesso, ergueu duas colunas, de uma e de outra parte, que separa a
Líbia da Europa, as chamadas Colunas de Héracles, isto é, o Rochedo
de Gibraltar e o de Ceuta.
Em seu caminho de volta, foi diversas vezes atacado por bandidos,
que lhe cobiçavam o rebanho. Tendo partido pelo Sul e pelas costas
da Líbia, Héracles regressou pelo Norte, seguindo as costas da
Espanha, e depois as da Gália, passando pela Itália e a Sicília, antes de
penetrar na Hélade. Todo esse complicado itinerário do herói estava,
outrora, juncado de Santuários a ele consagrados. A todos estavam
vinculadas lendas e mitos locais, que mantinham, de certa forma,
alguma relação com o episódio do Rebanho de Gerião. Na Ligúria foi
atacado por um bando de aborígenes belicosos. Após grande
carnificina, o herói, percebendo que não havia mais flechas em sua
aljava e, como estivesse em grande perigo, invocou a seu pai Zeus,
que fez chover pedras do céu e com estas pôs em fuga os inimigos.
Ainda na Ligúria, dois filhos de Posídon, Ialébion e Dercino,
tentaram tomar-lhe os bois, mas foram mortos após cruenta disputa.
Continuando seu caminho através da Etrúria, atingiu o Lácio, em
cuja travessia, exatamente no local onde se ergueria a futura Roma,
foi obrigado a matar o monstruoso e hediondo Caco, cujo mito é
relatado pormenorizadamente por Evandro a Eneias (Eneida, 8,193267). Após ser hospedado pelo rei Evandro, o herói prosseguiu
viagem, mas em Régio, na Calábria, fugiu-lhe um touro, que
atravessou a nado o estreito que separa a Itália da Sicília e foi, desse
modo, que miticamente a Itália recebeu seu nome, pois que, em
latim, uitulus significa “vitelo, vitela, bezerro”. Héracles foi ao
encalço do animal e, para reavê-lo, teve que lutar e matar o rei Érix,
deixando-lhe o reino entregue aos nativos, mas profetizando que, um
dia, um seu descendente se apoderaria do mesmo. Isto realmente
aconteceu, na época histórica, quando um “descendente” de Héracles,
o lacedemônio Dorieu, fundou uma colônia, na Sicília, na região dos
Élimos.
Finalmente, o herói, com todas as cabeças de gado, encaminhou-se
para a Grécia; mas ao tocar a margem helênica do mar Jônio, o
rebanho inteiro foi atacado por moscardos, enviados por Hera.
Enlouquecidos, os animais se dispersaram pelos contrafortes das
montanhas da Trácia. O herói os perseguiu e cercou por todos os
lados, mas só conseguiu reunir uma parte. O rio Estrímon, que, por
todos os meios, procurara dificultar essa penosa caçada ao rebanho
disperso, foi amaldiçoado e é por isso que seu leito está coberto de
rochedos, tornando-o impraticável à navegação.
Ao termo dessa acidentada “peregrinação iniciática”, o infatigável
filho de Alcmena entregou ao rei de Micenas o que sobrara do
rebanho, que foi sacrificado a Hera.
Angelo Brelich observa argutamente que o roubo do rebanho e a
disputa pelo mesmo têm um sentido religioso e social no mito,
grandemente significativo.
Tem razão o autor, ao afirmar que os heróis raramente se dedicam
ao furto de tesouros, como Trofônio e os seus, mas sim ao de
rebanhos, assunto muito frequente na mitologia heroica. Pausânias,
4,6,3ss, viu bem a origem social do problema, ponderando que a
riqueza “naqueles tempos” consistia antes do mais na posse de
grandes armentos. Diga-se, aliás, de caminho, que em latim pecunia,
“dinheiro, riqueza”, provém de pecu, “rebanho”, donde peculium,
“pecúlio”, pequena parte do rebanho doada ao escravo, que guardava
o armento; depois, pecúlio tomou um sentido mais lato de
propriedade particular; de pecu se derivou igualmente, em latim,
peculatus, concussão, “peculato”, que seria, fugindo “em parte” aos
moldes jurídicos, uma como que rapinagem do suor do rebanhopovo... Acrescente-se logo que, se o latim grex, gregis possui também
o sentido de “rebanho, manada”, egregius, “egrégio, importante”, é a
“grei”, a ovelha ou o carneiro de escol, tirado do (e) rebanho (grex,
gregis), como diz o gramático Sextus Pompeius Festus, De Verborum
Significatione, “Acerca do significado das palavras”, 21,20: unde et
egregius dictus e grege lectus, “donde também egrégio se diz do que
foi escolhido do rebanho (e grege)”.
Voltemos, porém, à pilhagem e à disputa do rebanho, a grande
fonte de riquezas, illo tempore. Vimos como Héracles, após furtar os
bois de Gerião, foi assediado em todo o percurso de seu retorno à
Hélade por outras personagens míticas, que tentam arrebatar-lhe o
rebanho, como Ialébion e Dercino (Apol., 2,109), o monstruoso Caco e
Érix. Grandes acontecimentos míticos, acrescenta Brelich11, se
relacionam com o rebanho, pouco importa que seja com o furto, a
defesa ou com a vingança pelo roubo do mesmo. Hesíodo, Trabalhos
e Dias, 161-163, falando dos heróis criados por Zeus, acrescenta que,
na Guerra Tebana, muitos deles “pereceram, lutando em defesa dos
rebanhos de Édipo”. O litígio entre Anfitrião e Ptérela, segundo se
viu, teve por causa o roubo do rebanho de Eléctrion.
O furto de rebanhos, no entanto, se prende igualmente a um
motivo de caráter religioso: o casamento. O cometimento central de
Melampo em furtar os bois de Fílaco e do filho deste último, Íficlo,
era possibilitar que seu próprio irmão Bias obtivesse a mão de Pero,
filha de Neleu, em troca do rebanho furtado (Od., XI, 281ss). A
exigência de um rebanho como preço da mão de uma jovem aparece
igualmente no mito de Ifídamas.
É preciso levar em conta, entretanto, que o rapto de mulheres e o
furto de rebanhos, fatos em si mesmos reprováveis e reprovados pela
sensibilidade moderna e certamente pelo classicismo grego, eram
empreendimentos comuns e normais naquela época de formação dos
mitos e espelhavam o hábito real de uma sociedade arcaica de
guerreiros nômades. Desse modo, pode-se acreditar que esses roubos
e raptos se constituíam, ao contrário, em gestas extraordinárias e
dignas de um herói.
No que diz respeito ao simbolismo dessa exaustiva tarefa do herói,
Paul Diel julga que a morte de Gerião, o gigante de três corpos,
configura a vitória de Héracles sobre o índice de três formas de
perversidade: a vaidade banal, a devassidão e a dominação despótica.
BUSCA DO CÃO CÉRBERO
O décimo primeiro Trabalho imposto por Euristeu ao primo foi a
κατὰβαοις (katábasis), a “catábase” ao mundo dos mortos, para de
lá trazer Cérbero, cão de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e
dorso eriçados de serpentes, guardião inexorável do reino de Hades e
Perséfone. Impedia que lá penetrassem os vivos e, quando isto
acontecia, não lhes permitia a saída, a não ser com ordem expressa de
Plutão.
Jamais Héracles, como Psiqué, teria podido realizar semelhante
proeza, se não tivesse contado, por ordem de Zeus, com o auxílio de
Hermes e Atená, quer dizer, com o concurso do que não erra o
caminho e da que ilumina as trevas. Pessoalmente, o herói se
preparou, fazendo-se iniciar nos Mistérios de Elêusis, que, entre
outras coisas, ensinavam como se chegar com segurança à outra
vida.
Segundo a tradição mais seguida, o herói desceu pelo cabo Tênaro,
na Lacônia, uma das entradas clássicas que dava acesso direto ao
mundo dos mortos.
Vendo-o chegar ao Hades, os mortos fugiram espavoridos,
permanecendo onde estavam apenas Medusa e Meléagro. Contra a
primeira o herói puxou a espada, mas Hermes o advertiu de que se
tratava apenas de um eídolon, de uma sombra vã; contra o segundo,
Héracles retesou seu arco, mas o desventurado Meléagro contou-lhe
de maneira tão comovente seus derradeiros momentos na terra, que o
filho de Alcmena se emocionou até as lágrimas: poupou-lhe o
eídolon e ainda prometeu que, no retorno, lhe desposaria a irmã
Dejanira. O mito de Meléagro, cuja vida dependia do tempo em que
ficasse aceso um tição, e a luta de Héracles com o rio Aqueloo pela
mão de Dejanira, já foram relatados, respectivamente, nos Vols. I, p.
274, e II, p. 182.
Mais adiante, encontrou Pirítoo e Teseu, vivos, mas presos às
cadeiras, em que se haviam sentado no banquete fatal, assunto de
que se tratará no capítulo seguinte. Um pouco mais à frente deparou
com Ascálafo e resolveu libertá-lo. Esse Ascálafo, filho de uma ninfa
do rio Estige e de Aqueronte, estava presente no jardim do Hades,
quando Perséfone, coagida por Hades, comeu um grão de romã, o que
lhe impedia a saída do mundo ctônio. Tendo-a denunciado, o filho
de Aqueronte foi castigado por Deméter, que o transformou em
coruja, segundo se viu no cap. I, 4, do Vol. II. Existe, porém, uma
variante: para castigar a indiscrição de Ascálafo, a senhora de Elêusis
colocara sobre ele um imenso rochedo. Foi desse tormento que o
herói o libertou, embora a deusa tenha, em contrapartida,
substituído um castigo por outro, transformando-o em coruja.
Héracles não foi só o maior dos heróis, mas igualmente o mais
humano de todos eles. Mais uma vez o encontramos penalizado com
a sorte alheia: vendo que no Hades os mortos eram apenas eídola,
fantasmas abúlicos, resolveu “reanimá-los”, mesmo que fosse por
alguns instantes. Para tanto, tendo que fazer libações sangrentas aos
mortos, imaginou sacrificar algumas reses do rebanho de Hades.
Como o pastor Menetes quisesse impedi-lo até mesmo de se
aproximar dos animais, o herói o apertou em seus braços possantes,
quebrando-lhe várias costelas. Não fora a pronta intervenção de
Perséfone, Menetes iria aumentar, mais cedo, o número dos abúlicos
do Hades...
Finalmente Héracles chegou diante de Plutão e, sem mais, pediulhe para levar Cérbero para Micenas. Hades concordou, desde que o
herói não usasse contra o monstro de suas armas convencionais, mas
o capturasse sem feri-lo, revestido apenas de sua couraça e da pele do
Leão de Nemeia. Héracles agarrou-se com Cérbero e, quase sufocado,
o guardião do reino dos mortos perdeu as forças e aquietou-se.
Subindo com sua presa, passou por Trezena e dirigiu-se rapidamente
para Micenas. Vendo Cérbero, Euristeu refugiou-se em sua
indefectível talha de bronze.
Não sabendo o que fazer com o monstro infernal, Héracles o levou
de volta a Plutão.
Embora já se tenha dito alguma coisa a respeito do simbolismo de
Cérbero, no Vol. I, p. 255-256, voltaremos ainda ao assunto no
capítulo sobre Teseu.
A respeito da κατὰβαοις (katábasis), da “descida” de Héracles ao
Hades, sabe-se que esta configura o supremo rito iniciático: a
catábase, a morte simbólica, é a condição indispensável para uma
anábase, uma “subida”, uma escalada definitiva na busca da
ἀναγνώρισις
(anagnórisis),
do
autoconhecimento,
da
transformação do que resta do homem velho no homem novo. A esse
respeito escreveu acertadamente Luc Benoist: “A viagem
subterrânea, durante a qual os encontros com os monstros míticos
configuram as provações de um processo iniciático, era, na realidade,
um reconhecimento de si mesmo, uma rejeição dos resíduos
psíquicos inibidores, um ‘despojamento dos metais’, uma ‘dissolução
das cascas’, consoante a inscrição gravada no pórtico do templo de
Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’”12.
POMOS DE OURO DO JARDIM DAS HESPÉRIDES
Quando do hieròs gámos, do casamento sagrado de Zeus e Hera,
esta recebeu de Geia, como presente de núpcias, algumas maçãs de
ouro. A esposa de Zeus as achou tão belas, que as fez plantar em seu
Jardim, no extremo Ocidente. E, como as filhas de Atlas, que ali perto
sustentava em seus ombros a abóbada celeste, costumavam pilhar o
Jardim, a deusa colocou os pomos e a árvore em que estavam
engastados sob severa vigilância. Um dragão imortal, de cem
cabeças, filho de Tifão e Équidna, e as três ninfas do Poente, as
Hespérides, Egle, Eritia e Hesperaretusa, isto é, a “brilhante, a
vermelha e a Aretusa do poente”, exatamente o que acontece com as
três colorações do céu, quando o sol vai desaparecendo no ocidente,
guardavam, dia e noite, a árvore e seus pomos de ouro. A derradeira
tarefa do herói incansável consistia, exatamente, em trazê-los a
Euristeu. O primeiro cuidado de Alcides foi pôr-se a par do caminho
a seguir para chegar ao Jardim das Hespérides e, para tanto, tomou a
direção do Norte. Atravessando a Macedônia, foi desafiado por
Cicno, filho de Ares e Pelopia, uma das filhas de Pélias. Violento e
sanguinário, assaltava sobretudo os peregrinos, que se dirigiam ao
Oráculo de Delfos. Após assassiná-los, oferecia-lhes os despejos a seu
pai Ares. Em rápido combate o herói o matou, mas teve que
defrontar-se com o próprio deus, que pretendia vingar o filho. Atená
desviou-lhe o dardo mortal, e o herói, então, o feriu na coxa,
obrigando Ares a fugir para o Olimpo.
Depois, através da Ilíria, alcançou as margens do Erídano (rio Pó) e
aí encontrou as ninfas do rio, filhas de Zeus e Têmis, as quais viviam
numa gruta. Interrogadas por Héracles, elas lhe revelaram que
somente Nereu era capaz de informar com precisão como chegar ao
Jardim das Hespérides. Nereu, para não indicar o itinerário,
transformou-se de todas as maneiras, mas o filho de Zeus o segurou
com tanta força, que o deus das metamorfoses acabou por revelar a
localização da Árvore das Maçãs de Ouro. Das ondas do mar,
residência de Nereu, o herói chegou à Líbia, onde lutou com o gigante
Anteu, filho de Posídon e de Geia. De uma força prodigiosa, obrigava
a todos os que passavam pelo deserto líbico a lutarem com ele e
invariavelmente os vencia e matava. Héracles, percebendo que seu
competidor, quando estava prestes a ser vencido, apoiava
firmemente os pés na Terra, sua mãe, e dela recebia energias
redobradas, deteve-o no ar e o sufocou. Tomou por esposa, em
seguida, a mulher da vítima, Ifínoe, e deu-lhe um filho, chamado
Palêmon.
Para vingar seu amigo Anteu, os Pigmeus, que habitavam os
confins da Líbia e não tinham mais que um palmo de altura,
tentaram matar Héracles, enquanto este dormia. O herói, tendo
acordado, pôs-se a rir. Pegou os “inimigos” com uma só das mãos e os
levou para Euristeu.
Atravessando o Egito, Héracles quase foi sacrificado por Busíris,
tido na mitologia grega como o rei do Egito, mas seu nome não
aparece em nenhuma das dinastias faraônicas. Seria Busíris uma
corruptela de Osíris?
Acontece que a fome ameaçava o Egito, pelas más colheitas
consecutivas e um adivinho de Chipre, Frásio, aconselhou o rei a
sacrificar anualmente um estrangeiro a Zeus, para apaziguar-lhe a
cólera e fazer que retornasse a prosperidade ao país. A primeira
vítima foi exatamente Frásio. Héracles, logo que lá chegou, o rei o
prendeu, enfaixou-o, o coroou de flores (como se fazia com as
vítimas) e o levou para o altar dos sacrifícios. O herói, todavia, desfez
os laços, matou Busíris e a todos os seus assistentes e sacerdotes. Do
Egito passou à Ásia e na travessia da Arábia viu-se forçado a lutar
com Emátion, filho de Eos (Aurora) e de Titono e, portanto, um
irmão de Mêmnon. Emátion quis barrar-lhe o caminho que levava ao
Jardim das Hespérides, porque não desejava que Héracles colhesse os
Pomos de Ouro. Após matá-lo, o herói entregou o reino a Mêmnon e
atravessou, em seguida, a Líbia até o “Mar Exterior”; embarcou na
Taça do Sol e chegou à margem oposta, junto ao Cáucaso. Escalandoo, libertou Prometeu. Como sinal de gratidão, o “deus filantropo”
aconselhou-o a não colher ele próprio as Maçãs, mas que o fizesse por
intermédio de Atlas. Continuando o roteiro, Héracles chegou ao
extremo ocidente e, de imediato, procurou Atlas, que segurava a
abóbada celeste sobre os ombros. Héracles ofereceu-se para sustentar
o céu, enquanto aquele fosse buscar As Maçãs. O gigante concordou
prazerosamente, mas, ao retornar, disse ao filho de Zeus que iria
pessoalmente levar os frutos preciosos a Euristeu. Héracles fingiu
concordar e pediu-lhe apenas que o substituísse por um momento,
para que pudesse colocar uma almofada sobre os ombros. Atlas nem
sequer desconfiou. O herói, então, tranquilamente, pegou as Maçãs de
Ouro e retornou a Micenas. De posse das Maçãs, Euristeu ficou sem
saber o que fazer com elas e as devolveu a Héracles. Este as deu de
presente a Atená, a deusa da Sabedoria. A deusa repôs as Maçãs de
Ouro no Jardim das Hespérides, porque a lei divina proibia que esses
frutos permanecessem em outro lugar, a não ser no Jardim dos
Deuses.
Fechara-se o Ciclo. A gnôsis estava adquirida. E Héracles quase
pronto para morrer. Agora, sim, já podia chamar-se Héracles, isto é,
em etimologia popular, Hera + Kléos, “a glória de Hera”...
Para Chevalier e Gheerbrant, a maçã é realmente apreciada sob
vários enfoques diferentes, “mas todos eles acabam convergindo
para um ponto comum, quer se trate do Pomo da Discórdia,
outorgado a Afrodite por Páris; quer dos Pomos de Ouro do Jardim das
Hespérides, frutos da imortalidade; quer do Pomo consumido por
Adão e Eva ou do Pomo do Cântico dos Cânticos, que traduz, ensina
Orígenes, a fecundidade do Verbo divino, seu sabor e seu odor. Tratase, em quaisquer circunstâncias, da maçã como símbolo ou meio de
conhecimento, mas que pode ser tanto o fruto da Árvore da Vida
quanto o fruto da árvore da Ciência do bem e do mal: conhecimento
unitivo, que confere a imortalidade, ou conhecimento distintivo, que
provoca a queda”13.
E. Bertrand, citado pelos autores do Dictionnaire des symboles14,
opina que “o simbolismo da maçã lhe advém do fato de a mesma
conter em seu interior, formado por alvéolos, que envolvem as
sementes, uma estrela de cinco pontas, um pentagrama, símbolo
tradicional da sabedoria. Eis aí o motivo pelo qual os iniciados
fizeram do pomo o fruto do conhecimento e da liberdade. E, portanto,
comer a maçã significa para eles um abuso da inteligência para
conhecer o mal, um insulto à sensibilidade por desejá-lo e à
liberdade, por fazê-lo. O encasulamento do pentagrama, símbolo do
homem-espírito, no interior das carnes da maçã, configura, além do
mais, a involução do espírito na matéria carnal”.
Alexandre Magno, buscando a Água da Vida, na Índia, encontrou
maçãs que prolongavam a vida dos sacerdotes por quatrocentos
anos. “Na mitologia escandinava a maçã é tida como o fruto
regenerador e rejuvenescedor. Os deuses comem maçãs e
permanecem jovens até o ragna rök, vale dizer, até o fecho do ciclo
cósmico atual”15.
Para Paul Diel, a maçã, por sua forma esférica, significaria, no seu
todo, os desejos terrestres ou a complacência nesses desejos. O
interdito de Javé teria como objetivo admoestar o homem contra a
predominância desses anseios, que o arrastariam para uma vida
animal, por uma espécie de regressão, contraponto da vida
espiritualizada, sinal, esta sim, de uma evolução progressiva.
Semelhante advertência divina faria com que o homem tomasse
conhecimento dessas duas direções: a escolha entre a via dos desejos
materiais e a da espiritualidade. A maçã seria, pois, o símbolo desse
conhecimento e a opção de uma necessidade, a necessidade de
escolha.
A escolha de Héracles foi clara: optou pela via do espírito,
preparando-se, destarte, para escalar o último degrau, que o levaria
aos braços de Hebe, a Juventude perpétua. O herói, mesmo assim,
ainda teria que esperar um pouco. O último degrau é sempre o mais
difícil. Os sofrimentos em terra e no mar e, por fim, as chamas no
monte Eta, lhe dariam o direito de brindar com Zeus à imortalidade!
4
As aventuras secundárias, os πάρεργα (párerga), “as gestas
acessórias”, praticadas no curso dos Doze Trabalhos, foram quase
todas comentadas neste ou em capítulos anteriores, mas teremos que
completá-las.
Uma delas, certamente das mais importantes, foi a morte dos
Centauros, seres monstruosos, metade homens, metade cavalos. Esse
episódio da vida tumultuada do herói está ligado ao Terceiro
Trabalho, a caçada ao Javali de Erimanto.
Quando o filho de Alcmena se dirigia para a Arcádia, passou pela
região de Fóloe, onde vivia o Centauro Folo, epônimo do lugar.
Dioniso o presenteara com uma jarra de vinho hermeticamente
fechada, recomendando-lhe, todavia, que não a abrisse, enquanto
Héracles não lhe viesse pedir hospitalidade. Segundo outra versão, a
jarra era propriedade comum de todos os Centauros. De qualquer
forma, acolheu hospitaleiramente o herói, mas tendo este, após a
refeição, pedido vinho, Folo se escusou, argumentando que o único
vinho que possuía só podia ser consumido em comum pelos
Centauros. Héracles lhe respondeu que não tivesse medo de abrir a
jarra e Folo, lembrando-se da recomendação de Dioniso, o atendeu.
Os Centauros, sentindo o odor do licor de Baco, armados de rochedos,
árvores e troncos avançaram contra Folo e seu hóspede. Na refrega,
Héracles matou dez dos irmãos de seu hospedeiro e perseguiu os
demais até o cabo Mália, onde o Centauro Élato, tendo se refugiado
junto a Quirão, foi ferido por uma flecha envenenada de Héracles,
que, sem o desejar, atingiu igualmente o grande educador dos heróis,
provocando-lhe um ferimento incurável, conforme se comentou, em
nota, no Vol. II, p. 92. Quando se ocupava em sepultar seus
companheiros mortos, Folo, ao retirar uma flecha do corpo de um
Centauro, deixou-a cair no pé e, mortalmente ferido, sucumbiu logo
depois. Após fazer-lhe magníficos funerais, o herói prosseguiu em
direção ao monte Erimanto.
Uma outra aventura de “estrada” está vinculada ao Sexto Trabalho,
a limpeza dos Estábulos de Augias. Banido da Élida pelo rei, Héracles
refugiou-se em Óleno, na corte de Dexâmeno. As versões diferem
muito, mas todas convergem para um ponto comum: a tentativa do
Centauro Eurítion de violar Hipólita ou Mnesímaca, filha de
Dexâmeno. Conta-se que o rei dera a filha em casamento ao arcádio
Azane. Eurítion, convidado para o banquete das núpcias, tentou
raptar a noiva, mas Héracles, chegando a tempo, o matou.
Uma outra versão dá conta de que o herói seduzira Hipólita, mas
prometera que, após executar sua tarefa junto a Augias, voltaria para
desposá-la. Na ausência de Héracles, Eurítion resolveu cortejar a
moça. Dexâmeno, por medo do violento Centauro, não ousou
contrariar-lhe a vontade e marcou o casamento. Foi então que o herói
chegou e matou a Eurítion, casando-se com Hipólita.
Algumas gestas de Héracles são praticamente independentes do
grande ciclo dos Doze Trabalhos. Uma delas já havia sido anunciada
pelo próprio herói, que prometera regressar a Troia, para vingar-se
de Laomedonte, que não lhe dera a recompensa prometida pela
libertação de Hesíona, segundo se viu mais acima, por ocasião do
retorno de Héracles do país das Amazonas.
Tendo reunido um respeitável exército de voluntários, partiu o
filho de Alcmena com dezoito naves de cinquenta remadores cada
uma. Uma vez no porto de Ílion, deixou os navios sob os cuidados de
uma guarnição, comandada por Ecles, e dirigiu-se para as muralhas
de Troia com o grosso de seus soldados.
Laomedonte, estrategicamente, atacou os navios e matou Ecles,
mas o herói, voltando rapidamente sobre seus passos, obrigou o rei,
como aconteceria “mais tarde” com os Troianos, a refugiar-se por trás
das muralhas de Ílion. Isso feito, começou o cerco da cidade, que,
aliás, não durou muito, porquanto um dos bravos voluntários da
expedição, Télamon, transpôs, por primeiro, as muralhas de Troia.
Furioso e já possuído da hýbris, por ter sido ultrapassado em valor, o
herói investiu sobre o companheiro para matá-lo. Télamon, num
gesto rápido, abaixou-se e começou a ajuntar pedras. Intrigado, o
filho de Zeus e Alcmena perguntou-lhe o motivo de comportamento
tão estranho. Télamon respondeu-lhe, ateniensemente, que reunia
pedras para levantar um altar a Héracles Vitorioso. Satisfeito e
comovido, o herói lhe perdoou a audácia... Tomada a cidade, o
Vitorioso matou a flechadas a Laomedonte e a todos os seus filhos
homens, exceto Podarces, ainda muito jovem. Casou Hesíona com
Télamon e pôs à disposição da princesa o escravo que a mesma
desejasse. Hesíona escolheu seu irmão Podarces e como Héracles
argumentasse que aquele deveria primeiro tornar-se escravo e, em
seguida, ser comprado por ela, a princesa retirou o véu com que se
casara e o ofereceu como resgate do menino. Esse fato explica a
mudança de nome de Podarces para Príamo, o futuro rei de Troia,
nome que “miticamente” significaria o “comprado”, o “resgatado”16.
No retorno, o herói se envolveu, melhor dizendo, foi envolvido em
duas novas aventuras. Uma, graças a Hera, que, com o indispensável
auxílio de Hipno, pôs o esposo Zeus a dormir profundamente e,
aproveitando-se disso, levantou uma grande tempestade, que lançou
o navio do herói nas costas da ilha de Cós. Os habitantes, pensando
tratar-se de piratas, receberam os vencedores de Troia a flechas e
pedras. Tal atitude hostil não impediu o desembarque do herói e seus
comandados, que, em ação rápida, tomaram a ilha e mataram o rei
Eurípilo. Héracles uniu-se, em seguida, à filha de Eurípilo,
Calciopeia, e fê-la mãe de Téssalo, cujos filhos, Fidipo e Ântifo,
tomarão parte mais tarde na Guerra de Troia. Destruída Ílion, Fidipo
e Ântifo estabeleceram-se na Tessália, assim chamada em
homenagem a seu pai Téssalo.
Há uma variante que narra o desembarque em Cós de maneira
diversa. Na tempestade todos os navios foram tragados pelas ondas,
exceto o do herói. Tendo este desembarcado na ilha, encontrou o
filho de Eurípilo, Antágoras, que guardava o rebanho paterno.
Héracles, com fome, pediu-lhe um carneiro, mas Antágoras propôs o
animal como prêmio ao vencedor de uma justa entre os dois. Como a
população da ilha julgasse que Antágoras estivesse sendo atacado,
avançou furiosa contra o herói. Afogado pela multidão, Héracles
refugiou-se na cabana de uma mulher e, travestido, conseguiu fugir,
dirigindo-se para a planície de Flegra, onde tomaria parte, ao lado
dos deuses, na luta contra os Gigantes, segundo se comentou no Vol.
I, p. 222.
Outra vitoriosa expedição de Héracles foi contra Pilos, cujo rei
Neleu tinha onze filhos, sendo o mais velho Periclímeno e o caçula,
Nestor.
Héracles se havia irritado com Neleu, que se recusara a purificá-lo,
quando do assassinato de Ífito, cuja desdita se verá mais abaixo.
Periclímeno tivera mesmo a audácia de expulsar o herói da cidade de
Pilos, tendo-se a isto oposto unicamente o caçula, Nestor. Diga-se, de
passagem, que a vingança de Héracles contra o rei de Pilos vinha-se
amadurecendo há muito tempo, porquanto, na guerra contra
Orcômeno, Neleu lutara contra Héracles e os Tebanos, por ser genro
de Ergino, ou ainda porque o rei de Pilos tentara apoderar-se de uma
parte do rebanho de Gerião. Seja como for, o herói tinha motivos de
sobra para invadir Pilos e o fez. O episódio principal da guerra foi a
luta entre Héracles e Periclímeno. Este possuía por pai “divino” a
Posídon, que dera ao filho o dom de transformar-se no que desejasse:
águia, serpente, dragão, abelha... Para atacar o filho de Alcmena,
Periclímeno metamorfoseou-se em abelha e pousou na correia que
lhe prendia os cavalos. Atená, vigilante, advertiu a Héracles da
proximidade do inimigo, que foi morto por uma flecha ou esmagado
entre os dedos do herói. Durante a batalha, Héracles causou
ferimentos em várias divindades: feriu a deusa Hera, no seio, com
uma flecha; Ares, na coxa, com a lança, bem como a Posídon e Apolo
com a espada.
Tomada Pilos, o filho de Zeus e Alcmena matou a Neleu e a todos
os seus filhos, exceto Nestor, que outrora lhe advogara a purificação.
Ao filho caçula de Neleu, aliás, consoante uma tradição conservada
por Pausânias, foi entregue o reino de Pilos.
Uma terceira expedição do herói foi dirigida contra Esparta, onde
reinavam Hipocoonte e seus vinte filhos, os hipocoôntidas, que
haviam exilado os herdeiros legítimos do poder, Icário e Tíndaro. O
motivo alegado para essa guerra foi de repor no trono de Esparta os
dois príncipes injustamente afastados do mesmo, mas havia uma
motivação especial por parte de Héracles: vingar a morte violenta de
seu sobrinho Eono. Este passeava por Esparta, quando
repentinamente, ao passar diante do palácio real, foi atacado por um
cão, de que se defendeu, atirando-lhe pedras. Os hipocoôntidas, que
certamente já buscavam um pretexto para eliminá-lo, avançaram
sobre Eono e espancaram-no até a morte. Existe ainda uma versão
que atesta terem sido os hipocoôntidas aliados de Neleu na guerra
precedente.
Héracles reuniu seus companheiros na Arcádia e pediu o auxílio
do rei Cefeu e de seus vinte filhos. Embora hesitante, o rei com seus
filhos seguiu o herói. Foi uma luta sangrenta, mas coroada por
grande vitória, embora o herói fosse obrigado a lamentar não apenas
a morte de seu aliado o rei Cefeu e de seus filhos, mas igualmente a
de seu irmão Íficles. Esmagados os hipocoôntidas e entregue o trono
a Tíndaro, Héracles dirigiu-se para o monte Taígeto, onde, no templo
de Deméter Eleusínia, foi curado por Asclépio de um ferimento na
mão, provocado por um dos hipocoôntidas.
Para comemorar vitória tão importante, mandou erguer em
Esparta dois templos, um em honra de Atená e outro em
homenagem a Hera, que nenhuma atitude hostil tomara contra ele
nesta campanha.
A derradeira expedição do herói se deveu à chamada aliança com
Egímio, rei
dos Dórios.
Este rei era filho de Doro, ancestral mítico e epônimo dos Dórios.
Ameaçado em seu reino pelos violentos Lápitas, a cuja frente estava
Corono, Egímio apelou para Héracles, já, a essa época, casado com
Dejanira e a quem prometeu um terço de seu reino, em caso de
vitória. Com grande facilidade o herói livrou Egímio dos Lápitas,
mas recusou pessoalmente a recompensa, pedindo-lhe tão somente
que a reservasse para os heraclidas, o que, aliás, foi cumprido à risca
por Egímio; este, tendo adotado Hilo, filho de Héracles com Dejanira,
dividiu seu reino em três partes iguais: seus filhos Dimas e Pânfilo
ocuparam as duas primeiras e Hilo, a terceira.
Após essa vitória, Héracles retomou uma velha disputa com um
povo vizinho de Egímio, os Dríopes, que habitavam o maciço do
Parnaso. É que, expulso de Cálidon, por motivos que veremos mais
abaixo, Héracles, ao atravessar o território dos Dríopes em
companhia de Dejanira e de Hilo, o menino teve fome. O herói, tendo
visto o rei local Teiódamas preparando-se para arar a terra com uma
junta de bois, solicitou-lhe comida para Hilo. Face à recusa descortês
e desumana do rei, Héracles desatrelou um dos bois, preso ao arado, e
o comeu com a esposa e o filho. Teiódamas correu à cidade e
retornou com uma pequena tropa. Apesar da disparidade, Héracles,
com o auxílio de Dejanira, que foi ferida em combate, conseguiu
repelir os Dríopes, matando-lhes o rei. Como os Dríopes tivessem
igualmente se aliado aos Lápitas contra Egímio, o herói resolveu
ampliar a campanha, sobretudo para vingar também o deus Apolo,
cujo santuário havia sido profanado por Laógoras, novo rei dos
Dríopes.
Foi uma guerra muito rápida. Com a morte de seu novo soberano e
a invasão de Héracles, os Dríopes abandonaram em definitivo o
maciço do Parnaso, fugindo em três grupos: o primeiro para a Eubeia,
onde fundaram a cidade de Caristo; o segundo para Chipre e o
terceiro foi prazerosamente acolhido por Euristeu, o eterno inimigo,
que lhes permitiu fundar três cidades em seu território.
Após a vitória sobre os Dríopes, Héracles seguiu para a cidade de
Ormínion, no sopé do monte Pélion, para vingar-se de Amintor, que,
certa feita, proibira ao herói atravessar-lhe o reino. Héracles matou o
rei e apoderou-se de Ormínion. Diodoro expõe uma variante:
Héracles pedira em casamento Astidamia, filha de Amintor. Este,
por estar o herói unido a Dejanira, não consentiu nas núpcias. Louco
de ódio, Héracles tomou a cidade e levou consigo Astidamia, com
quem teve um filho, chamado Ctesipo.
5
Expostas as aventuras principais de Héracles, vinculadas ou não
aos Doze Trabalhos, vamos agora acompanhá-lo no denominado
ciclo da morte e da apoteose.
Até o momento, como se pôde observar, apesar de nossos esforços
em imprimir uma certa ordem na vida atribulada e nas gestas, por
vezes, bastante desconexas do herói, tivemos que fazer concessão ao
“mito”, e à sua intemporalidade, antecipando aventuras e adiando
outras. Felizmente, a partir do ciclo da morte e da apoteose, o
mitologema do filho de Alcmena segue em linha mais ou menos reta,
partindo de Dejanira, passando por Íole e Ônfale, e terminando nos
braços da divina Hebe. É esse itinerário de liberação do inconsciente
castrador materno e do encontro da animaque vamos perseguir.
Diga-se, a bem da verdade, que esse cosimento do mito e de suas
inúmeras variantes se deve, antes do mais, aos poetas trágicos que,
coagidos a imitar “uma ação séria e completa, dotada de extensão” e
com duração de “um período do sol” (Arist., Poética, 1449b),
souberam dar unidade ao extenso drama final do herói. Pois bem, o
fio condutor desse drama é Dejanira e a tragédia, que elaborou a
síntese, foi escrita por Sófocles,Traquínias, infelizmente pouco
citada pelos que se dedicam ao Teatro grego.
O casamento com Dejanira, viu-se na catábase do herói em Busca
do Cão Cérbero, foi acertado entre Héracles e Meléagro. A séria
dificuldade para obter a mão da princesa, isto é, a luta com o rio
Aqueloo, já foi por nós exposta no Vol. I, p. 274-275. Após as núpcias,
Héracles permaneceu com a esposa por algum tempo na corte de seu
sogro Eneu. Perseguido, todavia, pela fatalidade, matou
involuntariamente o pequeno copeiro real, Êunomo, filho de
Arquíteles, parente de Eneu. Embora aquele tivesse perdoado ao
herói a morte do filho, Héracles não mais quis ficar em Cálidon e
partiu com Dejanira e com o filho Hilo, ainda muito novinho. Foi
durante essa viagem em direção ao exílio em Tráquis, porque,
segundo uma variante, o filho de Zeus fora expulso do reino de Eneu,
que o herói travou uma terceira e derradeira luta com Nesso. Esse
Centauro habitava as margens do rio Eveno e exercia o ofício de
barqueiro.
Apresentando-se Héracles com a família, primeiramente o lascivo
Centauro o conduziu para a outra margem, e, em seguida, voltou
para buscar Dejanira. No meio do trajeto, como se recordasse de uma
grave injúria de Héracles, tentou, para vingar-se, violar Dejanira que,
desesperada, gritou por socorro. O herói aguardou tranquilamente
que o barqueiro alcançasse terra firme e varou-lhe o coração com
uma de suas flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna.
Nesso tombou e, já expirando, entregou a Dejanira sua túnica
manchada com o sangue envenenado da flecha e com o esperma que
ejaculara durante a tentativa de violação. Explicando-lhe que a
túnica seria para ela um precioso talismã, um filtro poderoso, com a
força e a virtude de restituir-lhe o esposo, caso este, algum dia,
tentasse abandoná-la.
Com a esposa e o filho chegou finalmente a Tráquis, na Tessália,
onde reinava Cêix, sobrinho de Anfitrião. Foi durante sua
permanência na corte de seu “primo” Cêix que o herói teve que
enfrentar um sério dissabor. Como Êurito, rei de Ecália, “o mais hábil
dos mortais no arco”, tivesse desafiado a Grécia inteira, prometendo a
mão de sua filha Íole a quem o vencesse (veja-se nisso a disputa da
mão da princesa), Héracles resolveu competir com seu ex-mestre no
manejo do arco e o venceu. Não tendo o rei cumprido a promessa,
porque, pessoalmente, ou por conselho de todos os filhos, exceto
Ífito, temesse que o herói viesse novamente a enlouquecer e matasse
a Íole e os filhos que dela tivesse, Héracles resolveu, como sempre,
vingar-se.
A respeito dessa guerra de Héracles contra Êurito há várias versões
e variantes. Vamos seguir aquela que nos parece mais lógica. Face,
pois, à recusa do rei de Ecália, o herói invadiu a cidade e incendiou-a,
após matar Êurito e seus filhos, com exclusão de Ífito e Íole, de quem
fez sua concubina. Ífito, que herdara o famoso arco paterno, presente
de Apolo a seu pai, partira para Messena, onde, na corte do rei
Orsíloco, tendo se encontrado com Ulisses, resolveram ambos, como
penhor de amizade, trocar as armas: o esposo de Penélope presenteou
Ífito com sua espada e lança e este deu a Ulisses o arco divino com o
qual, diga-se logo, o herói da Odisseia matará, “bem mais tarde”, os
pretendentes.
Quando Ulisses encontrou Ífito na cidade de Messena, este andava
à procura de um rebanho de éguas ou de bois, que Héracles havia
furtado ou, segundo outra versão, que o avô de Ulisses, Autólico, o
maior de todos os ladrões da mitologia heroica, havia roubado e
confiado a Héracles. Este, interrogado por Ífito, não só se recusou a
entregar o rebanho, mas ainda o assassinou. Relata uma outra
variante que Héracles era apenas suspeito do roubo e que Ífito o
procurara para pedir-lhe ajuda na busca do armento. O herói
prometeu auxiliá-lo, mas, tendo enlouquecido pela segunda vez, o
lançara do alto das muralhas de Tirinto.
Recuperada a razão, o herói dirigiu-se a Delfos e perguntou à Pítia
como poderia, dessa feita, purificar-se. Esta simplesmente se recusou
a responder-lhe. Ferido de hýbris, o filho de Alcmena ameaçou
saquear o santuário e, para provar que não estava gracejando,
apossou-se da trípode sagrada, sobre que se sentava a Pitonisa, e
disse-lhe que iria fundar em outro local um oráculo novo, a ele
pertencente. Apolo veio imediatamente em defesa de sua sacerdotisa
e travou-se uma luta perigosa entre os dois. Zeus interveio e os
separou com seu raio. Héracles devolveu a trípode, mas a Pítia viu-se
coagida a dar-lhe a “penitência” pela morte de Ífito e outras “faltas”
ainda não purgadas. Para ser definitivamente purificado, deveria
vender-se como escravo e servir a seu senhor por três anos; o
dinheiro apurado com a transação seria entregue à família de Ífito
como preço de sangue. Comprou-o a rainha da Lídia, Ônfale, por três
talentos de ouro.
Durante todo esse tempo, Dejanira permaneceu em Tráquis e o
herói levou Íole como sua concubina.
A respeito da nova senhora de Héracles existem duas versões.
Originariamente, o mito de Ônfale parece localizar-se na Grécia,
mais precisamente no Epiro, onde ela aparece como Epônima da
cidade de Onfálion. Muito cedo, porém, o mito foi deslocado para a
Lídia, onde se revestiu de opulenta e pitoresca indumentária oriental,
ampla e sofregamente explorada pelos poetas e artistas da época
helenística. Com deslocamento igualmente de um nome próprio
grego, a lindíssima Ônfale passou a ser filha de Iárdano17, rei da
Lídia. Segundo outros autores, a princesa seria filha ou viúva do rei
Tmolo, que lhe deixara o reino. Sabedora das proezas de seu escravo,
impôs-lhe, basicamente, quatro trabalhos, que consistiam em
limpar-lhe o reino de malfeitores e de monstros. O primeiro deles foi
contra os Cercopes, coletivo para designar dois facínoras que
empestavam a Lídia, Euríbates e Frinondas, também chamados Silo
e Tribalo, filhos de Teia, uma das filhas de Oceano. Teia, aliás, que
lhes apoiava o banditismo, mais de uma vez, os pôs de sobreaviso
contra um certo herói, chamado Μελαμπῦγος (Melamp×gos),
“Melampigo”, isto é, “de nádegas escuras”, vale dizer, com as nádegas
cobertas de pelos negros, que, para os antigos gregos, era um sinal de
força. Altíssimos e de uma força descomunal, assaltavam os
viajantes e, em seguida, os matavam. Um dia em que Héracles dormia
à beira de uma estrada, os Cercopes tentaram acometê-lo, mas o
herói despertou e, após dominar os filhos de Teia, os amarrou de pés
e mãos e prendeu cada um deles na ponta de um longo varal.
Colocou o pesado fardo sobre os ombros, como se fazia com os
animais que se levavam ao mercado e encaminhou-se para o palácio
de Ônfale. Foi nessa posição que Silo e Tribalo, vendo as nádegas de
Héracles, compreenderam a profecia de sua mãe e pensaram num
meio de libertar-se. Descarregaram sobre o herói uma saraivada tão
grande de chistes e graçolas apimentadas, que Héracles, coisa que há
muito não experimentava, foi tomado de um incrível bom humor e
resolveu soltá-los, sob a promessa de não mais assaltarem e matarem
os transeuntes.
O juramento, entretanto, não durou muito e os Cercopes voltaram
à sua vida de pilhagem e assassinatos. Irritado, Zeus os transformou
em macacos e levou-os para duas ilhas que fecham a baía de
Nápoles, Próscia e Ísquia. Seus descendentes aí permaneceram e, por
isso, na Antiguidade essas duas ilhas eram denominadas Pithecusae,
“Ilhas dos Macacos”.
A segunda tarefa consistia em libertar a Lídia do cruel Sileu, filho
de Posídon. Sileu era um vinhateiro, que obrigava os transeuntes a
trabalhar de sol a sol em suas videiras e, como pagamento, os
matava. Héracles colocou-se a seu serviço, mas, em vez de cultivar as
videiras, arrancou-as a todas e se entregou a todos os excessos.
Terminada a faina, matou Sileu com um golpe de enxada.
Segundo a tradição, Sileu possuía um irmão, chamado Diceu, o
Justo, cujo caráter correspondia ao significado de seu nome. Após a
morte do vinhateiro, o herói hospedou-se na casa de Diceu, que criara
e educara uma sobrinha muito bonita, filha de Sileu. Enfeitiçado
pela beleza da moça, o herói a desposou. Tendo se ausentado por
algum tempo, a jovem esposa, não suportando as saudades do
marido, e julgando que ele não mais voltaria, morreu de amor.
Regressando, o herói, desesperado, quis atirar-se a qualquer custo
na pira funerária da mulher, sendo necessário um esforço sobrehumano para dissuadi-lo de tão tresloucado gesto.
O terceiro trabalho imposto pela soberana da Lídia tinha por alvo
a Litierses, filho de Midas, e denominado o Ceifeiro maldito.
Hospedava gentilmente todo e qualquer estrangeiro que passasse por
suas terras e, no dia seguinte, convidava-o a segar o trigo em sua
companhia. Se recusasse, cortava-lhe a cabeça. Se aceitasse, tinha que
competir com ele, que saía sempre vencedor e igualmente decapitava
o parceiro, escondendo-lhe o corpo numa paveia.
Héracles aceitou-lhe o desafio e tendo-o vencido e mitigado com
uma canção, o matou. Uma variante ensina que o herói resolveu
matar Litierses, porque este mantinha por escravo a Dáfnis, que
percorria o mundo em busca de sua amante Pimpleia, raptada pelos
piratas. Ora, como Litierses a houvesse comprado, iria fatalmente
matar o pastor Dáfnis, não fora a intervenção do herói, que, além do
mais, após a morte do Ceifador maldito, entregou-lhe todos os bens a
Dáfnis e Pimpleia.
A quarta e última tarefa consistia em livrar a Lídia dos Itoneus, que
constantemente saqueavam o reino. Héracles moveu-lhes guerra
sangrenta. Apoderou-se de Itona, a cidade que lhes servia de refúgio;
após destruí-la, trouxe todos os sobreviventes como escravos.
Face a tanta coragem, pasma com gestas tão gloriosas e vitórias tão
contundentes, ônfale mandou investigar as origens do herói. Ciente
de que era filho de Zeus e da princesa Alcmena, de imediato o
libertou e se casou com ele, tendo-lhe dado um filho, chamado
Lâmon ou, segundo outras fontes, seriam dois os filhos de Héracles
com Ônfale: Áqueles (Agelau) e Tirseno. A partir desse momento,
terminaram os trabalhos do filho de Zeus e Alcmena. Todo o tempo
restante do exílio, agora doce escravatura, Héracles o passou no ócio,
nos banquetes e na luxúria. Apaixonada pelo maior de todos os
heróis, Ônfale se divertia revestida da pele do Leão de Nemeia,
brandindo a pesada clava de seu amante, enquanto este,
indumentado com os longos e luxuosos vestidos orientais da rainha,
fiava o linho a seus pés...
Mas essa modalidade de exílio, ao menos para os heróis, costuma
terminar rapidamente e, por isso mesmo, o amante de Ônfale
preparou-se para a partida.
Desejando, após a vitória sobre Êurito e o fim do exílio, erguer um
altar em agradecimento a seu pai Zeus, mandou um seu servidor,
Licas, pedir a Dejanira que lhe enviasse uma túnica que ainda não
tivesse sido usada, conforme era de praxe em consagração e
sacrifícios solenes. Admoestada pelo indiscreto Licas de que o herói
certamente a esqueceria, por estar apaixonado por Íole, Dejanira
lembrou-se do “filtro amoroso” ensinado e deixado por Nesso, e
enviou-lhe a túnica envenenada com o sangue da Hidra de Lerna e
com o esperma do Centauro. Ao vesti-la, a peçonha infiltrou-se-lhe
no corpo. Alucinado de dor, pegou Licas por um dos pés e o lançou ao
mar. Tentou arrancar a túnica, mas esta se achava de tal modo
aderente às suas carnes, que estas lhe saíam aos pedaços. Não mais
podendo resistir a tão cruciantes sofrimentos, fez-se transportar de
barco para Tráquis. Dejanira, ao vê-lo, compreendendo o que havia
feito, se matou. O retorno de Héracles assemelha-se, pois, a uma
espécie de Odisseia ao contrário. Ulisses, remoçado por Atená, recebe
o beijo de sua Penélope, sob os primeiros sorrisos da Aurora de dedos
cor-de-rosa; Héracles, com as carnes aos pedaços, contempla, já
agonizante, o suicídio de sua Dejanira, sob as maldições silenciosas
do monstruoso Centauro Nesso.
Após entregar Íole a Hilo, pedindo que com ela se casasse, tão logo
tivesse idade legal, escalou, cambaleando, o monte Eta, perto de
Tráquis. No píncaro do monte mandou erguer uma pira e deitou-se
sobre ela. Tudo pronto, ordenou que se pusesse fogo na madeira, mas
nenhum de seus servidores ousou fazê-lo. Somente Filoctetes, se bem
que relutante e a contragosto, acedeu, tendo recebido, por seu gesto
de coragem e compaixão, um grande presente do herói agonizante:
seu arco e suas flechas. Conta-se que, antes de morrer, Héracles
solicitou a Filoctetes, única testemunha de seus derradeiros
momentos, que jamais revelasse o local da pira. Interrogado, sempre
se manteve firme e fiel ao pedido do herói. Um dia, porém, tendo
escalado o monte Eta, sob uma saraivada de perguntas, feriu
significativamente a terra com o pé: estava descoberto o segredo.
Bem mais tarde (é uma das versões) Filoctetes foi punido com uma
ferida incurável no mesmo pé18.
Tão logo as línguas do fogo começaram a serpear no espaço, fez-se
ouvir o ribombar do trovão. Era Zeus que arrebatava o filho para o
Olimpo.
Acerca dos momentos derradeiros de Héracles neste vale de
lágrimas existe uma variante. O herói não teria morrido torturado
pela túnica impregnada do sangue da Hidra e do sêmen de Nesso,
mas se teria abrasado ao sol e se teria lançado num regato caudaloso,
perto de Tráquis, para extinguir as chamas, morrendo afogado. O
ribeiro, em que se precipitara, teve, a partir daí, suas águas sempre
quentes. Esta seria a origem das Termópilas (águas termais), entre a
Tessália e a Fócida, onde existia e existe até hoje uma fonte de água
quente.
A morte de Héracles, em ambas as versões, teve por causa eficiente
o fogo: era preciso, simbolicamente, que o herói se purificasse por
inteiro, despindo-se dos elementos mortais devidos à sua mãe mortal
Alcmena. Também Deméter tentou imortalizar nas chamas a
Demofonte e Tétis a Aquiles, expondo-o ao calor de uma lareira,
esquecendo-se apenas de que o segurava pelo calcanhar!
Admitido entre os Imortais, Hera se reconciliou com o herói:
simulou-se, para tanto, um novo nascimento de Héracles, como se ele
saísse das entranhas da deusa, sua nova mãe imortal. Sófocles, nas
Traquínias, 1105, compreendeu bem essa mensagem, ao escrever que,
na hora da morte, o herói dissera que “se chamava assim (Héracles, ‘a
glória de Hera’) por causa da mais perfeita das mães”.
Seu casamento com Hebe, deusa da juventude eterna, é apenas uma
ratificação da imortalidade do novo imortal. Se Hebe, até então,
servia aos Imortais o néctar e a ambrosia, penhores da imortalidade,
a partir de agora ela se servirá a Héracles como garantia dessa
mesma imortalidade. Uma imortalidade conseguida por seus
trabalhos, sua timé e sua areté, mas sobretudo por seus sofrimentos:
τῷ πάθει μάθος (tôi páthei máthos), “sofrer para compreender”,
escreveu Ésquilo na Oréstia (Agam., 177).
6
“O mais popular de todos os heróis gregos, como atestam a
constância e a frequência de seus aparecimentos na tragédia e
particularmente na comédia, foi o único celebrado por todos os
Helenos”. Seu culto abrangeu uma universalidade tal, que até mesmo
uma cidade como Atenas, tão cônscia de suas peculiaridades, não só
se vangloriava de haver precedido a todo o mundo grego em prestar
honras divinas ao herói (Diod., 4,39,1), mas também de lhe haver
consagrado mais santuários do que ao herói ateniense Teseu (Eur.,
Héracles, 1324-1333; Plut., Teseu, 35,2).
Cabe, por conseguinte, a indagação: será Héracles um herói ou um
deus? Desde que Sófocles (Traquínias, 811) o disse “o mais destemido
dos homens”19, ἄριστος ἀριστός (áristos andrôn), ou como o
apodaram, com ligeiras alterações sinonímicas, Eurípides (Héracles,
183), Aristófanes (Nuvens, 1049 e Hino a Héracles, já citado), a
qualidade de herói atribuída a Héracles não sofreu qualquer solução
de continuidade. Afinal, não era o herói definido pelos gregos como
um ser à parte, ferido de hýbris, excepcional, sobre-humano,
consagrado pela morte?
Mas, se entre o homem, o ánthropos, e o herói, o anér, a diferença se
mede pela timé e a areté, o herói e o deus existe aquele abismo
insondável, lembrado por Apolo ao fogoso Diomedes na Ilíada, V,
441-442: haverá sempre duas raças distintas, a dos deuses imortais e a
dos homens mortais que marcham sobre a terra. Eis aí, portanto, o
grande paradoxo de Héracles: enquanto filho de Zeus e de Alcmena,
apesar de tantas gestas gloriosas, teve que escalar o monte Eta para
purgar tantos descomedimentos, inerentes “à sua condição de herói”
e desvincular-se, nas chamas, do invólucro carnal; enquanto
“iniciado”, escala apoteoticamente o monte Olimpo e, como
renascido de Zeus e Hera, torna-se imortal entre os Imortais, no
júbilo dos festins (Odisseia, XI, 601-608).
Ἥρως θεός (Héros theós), herói-deus, como diz Píndaro, Nemeias,
3,22, Héracles se eternizou nos braços de Hebe, a Juventude eterna.
Tomados em conjunto, os Doze Trabalhos se constituem na escada
por que sobe o herói até os píncaros do monte Eta, onde realiza o
décimo terceiro, a vitória sobre a morte. Observe-se, aliás, que as três
últimas tarefas do herói configuram um namoro com Thánatos. Em
Gerião, o grande pastor, “em seus campos brumosos, muito além do
ilustre Oceano”, está retratado um segundo Hades; seu cão Ortro, de
duas cabeças, é irmão de Cérbero, o guardião do reino das sombras,
aonde desce Héracles e de onde retorna vitorioso, com o pastor da
morte em seus braços; para colher os pomos de ouro, mais uma vez o
filho de Alcmena terá que transpor os limites do imenso Oceano
(Eurípides, Hipólito, 742ss) e penetrar no jardim encantado das
Hespérides cantoras (Hesíodo, Teog., 215, 275,517), sedutoras filhas de
Nix (Noite) e irmãs das Queres e das Moîras...
Este derradeiro Trabalho, diga-se de passagem, “numa versão mais
antiga, como atesta Bonnefoy, era suficiente para abrir a Héracles o
caminho do Olimpo. Sem conflitos. Sem sofrimentos. E, talvez, sem
que lhe fosse necessário morrer a morte de um mortal”20.
Desse modo, tendo arrostado o Além, Héracles venceu a morte e a
tradição multiplicou indefinidamente essa vitória, relembrando
como o herói feriu ao deus Hades (Il., V, 395ss) ou prendeu Thánatos
na cadeia de seus braços (Eurípides, Alceste, 846s).
Vencer a morte é um sonho do ideal heroico, que concentra todo o
valor da vida na “esfuziante juventude”, a ἀγλαὴ ἥβη (aglaè hébe);
vencer a velha idade, flagelo terrível, que aniquila os nervos e os
músculos dos braços e das pernas do guerreiro. Héracles, o Forte,
triunfou portanto da velhice, desposando a eterna Juventude.
A época clássica, no entanto, já impregnada de Orfismo, fez que o
herói escalasse o Eta, onde se encerra sua carreira mortal sobre uma
pira, “como se, para penetrar no Olimpo, o herói tivesse necessidade
de conhecer a morte; como se a morte de Héracles negasse nele a
mortalidade: morrer, morrer, porém, através do fogo purificador,
sobre o monte Eta, onde reina Zeus” (Sófocles, Traquínias, 200, 436,
1191; Filoctetes, 728s).
De qualquer forma, só o aniquilamento do Héracles humano
permitiu a apoteose do filho de Zeus; mas ainda não se deu a devida
importância à tensão que constantemente reenvia Héracles da morte
dos mortais para a morte que imortaliza21.
Na Introdução ao mito dos heróis já se fez menção de um fato
curioso: muitos e grandes heróis, que tantas vezes contemplaram a
morte de perto e de frente, e a desafiaram, pereceram de maneira
pouco mais que infantil. Parece que, em dado momento, quando
Láquesis sorteia o fio da vida, o herói, por mais astuto que seja, perde
o itinerário da luz, como Agamêmnon, Aquiles, Ulisses, Teseu...
Héracles, o Forte, não escapou a essa armadilha da Moîra. Sófocles
pôs majestosamente em cena a queda, o desabamento do “mais nobre
de todos os homens” convertido num objeto de pena e de ignomínia.
O maior exterminador de monstros e de Gigantes (Píndaro, Nemeias,
7,90; Sófocles, Traquínias, 1058s; Eurípides, Héracles, 177ss)
transforma-se num monstro urrante, vítima da crueldade e traição
que ele tantas vezes combateu e venceu.
Fica patente no mito de Héracles que a força física é ambivalente,
na medida em que ela se apoia apenas na hýbris, no excesso, na
“démesure”. Assim o herói oscila entre o ánthropos e o anér, entre o
homem ou sub-homem, e o herói, o super-homem, sacudido
constantemente, de um lado para outro, por uma força que o
ultrapassa, sem jamais conhecer o métron, a medida humana de um
Ulisses, que soube escapar a todas as emboscadas do excesso. Talvez
se pudesse ver nesses dois comportamentos antagônicos a
polaridade Ares-Atená, em que a força bruta do primeiro é
ultrapassada ou “compensada” pela inteligência astuta da segunda.
Desse modo, antes de ser arrebatado para junto dos Imortais, o
filho de Alcmena conheceu, mais e melhor que todos os mortais, a
humilhação e o aviltamento. Vistos do Olimpo ou do Hades, seus
Trabalhos são tidos por gestas ignominiosas e destino miserável (Il.,
XIX, 133; Od., XI, 618s): o flagelo dos monstros conheceu a escravidão
às ordens de Euristeu ou de Ônfale; por duas vezes Ánoia ou L×ssa
dele se apossaram, levando-o a matar os próprios filhos e essa
demência não o abandonou a não ser para reduzi-lo à fragilidade de
uma criança ou de uma mulher (Eurípides, Héracles, 1424).
O grande momento de sua queda, todavia, se inscreve no episódio
do ato final em que Dejanira se transmuta em homem e Héracles em
mulher22. Na tragédia de Sófocles Dejanira se apunhala, como um
herói, como Ájax, em vez de se enforcar, morte tipicamente
feminina, segundo a tradição (Sófocles, Traquínias, 930s), enquanto
o herói grita e chora como uma mulher, ele, o Forte, o másculo, que, no
infortúnio, se revela uma simples mulher (Sófocles, Traquínias, 10711075). E é uma mulher com um físico de mulher sem nenhum traço de
um macho, que o destrói, sem mesmo dispor de um punhal (Sófocles,
Traquínias,
1062s).
Como
Δηιάνειρα
(Deiáneira),
etimologicamente, talvez provenha do v. δηιοῦν (deïûn), “matar,
destruir”, e ἀνήρ (anér), “homem, marido”, e signifique “a que mata o
marido”, viu-se em Héracles o símbolo de uma vigorosa denegação
da fraqueza face à hostilidade materna de Hera, figurando Dejanira
como a mãe perversa23.
Para encerrar esta parte do capítulo, um derradeiro paradoxo do
mais jovem imortal do Olimpo. É deveras impressionante a
multiplicidade de facetas que o herói assumiu no lógos filosófico e a
propensão de sábios e intelectuais, desde os Órficos e Pitagóricos,
passando pelos Sofistas, em anexar-lhe a figura como modelo
exemplar, como exemplar uirtutis. “Desse modo, a força bruta
passou a ser um terreno inexplorado para o desenvolvimento desse
exemplar uirtutis e já que o herói escravizado e humilhado pelos
prepotentes se tornou um deus, os moralistas viram no seu destino
um símbolo da própria condição humana: a encarnação mesma da
eficácia do sofrimento”. “Sofrer para compreender”, já adiantara o
religiosíssimo Ésquilo. Um herói, voltado eminentemente para a
Φύσις (ph×sis), para a “natureza”, de repente passa a ser dotado de
extraordinária capacidade deliberativa, capaz mesmo de “escolher os
Trabalhos” e os sofrimentos como norma de vida, tornando-se um
campeão do νόμος (nómos), da lei e dos costumes24. E o herói se
desdobrou, como se fora executar um décimo quarto Trabalho, que
seria a busca da ἀρετή (areté), da “virtude estoica”.
Antes que os Sofistas se apoderassem desse novo Héracles, todo
reflexão, sentado meditativamente em locais solitários ou nas
encruzilhadas, o amante da música, o herói da ação energética da
força moral, o justo fatigado e sofredor, a hagiografia órficopitagórica já transformara o mito em paradigma significativamente
edificante.
Coube, todavia, ao sofista Pródico, século V a.C., autor de um
apólogo denominado na tradição latina Hercules in biuio, “Héracles
na encruzilhada”, mostrar um herói novo, que, com uma constância
invencível, sobrepujou todos os obstáculos, para tornar-se digno de
uma glória imperecível. Pois bem, foi desse apólogo que se
aproveitou Xenofonte para nos dar em seus Απομνημονεύματα
(Apomnemoneúmata), que o escritor latino Aulo Gélio traduziu por
Commentarii, “Memórias”, “Memoráveis”, como querem outros, um
retrato decorpo inteiro do novo Héracles, inteiramente retocado pelo
pincel órfico-pitagórico. A alegoria se encontra no livro segundo,
capítulo I, 21-33 dos Memoráveis, quando do diálogo sobre a
temperança entre Sócrates e Aristipo.
Sentado num local solitário, Héracles adolescente pesa as
vantagens e os inconvenientes, respectivamente, do caminho da
“virtude”, ἀρετή (areté), e daquele do “vício”, κακία (kakía). Dele se
aproximam duas mulheres, que, pela estatura e porte, são hipóstases
de duas deusas, cujos nomes são Areté e Kakía. Como no Discurso
Justo e no Discurso Injusto das Nuvens, 889-1114, de Aristófanes,
comédia por nós traduzida, cada uma defende sua causa diante do
jovem em busca de uma diretriz para sua vida, que está começando.
Kakía, ricamente indumentada e com olhares gulosos, fala contra
todo e qualquer esforço e contenção, e faz uma bela apologia do ócio
e do prazer; Areté, vestida de branco, de olhar modesto e pudico,
disserta com absoluta precisão acerca da felicidade e do bem, mas
estes só se alcançam, diz ela, através do trabalho e da fadiga, com o
sacrifício e a submissão do corpo à inteligência.
É bem verdade que o prólogo se encerra com a luminosa peroração
de Areté, mas o público de Pródico, ou melhor, o público ateniense
sabia perfeitamente que o jovem Héracles, em nome da Εύδαιμονία
(Eudaimonía), da Felicidade, elegera o caminho estreito dos Doze
Trabalhos.
Não há dúvida, acentua Bonnefoy, de que este apólogo evidencia
temas estranhos àquilo que se constituiu até o século V a.C. no
núcleo do mitologema de Héracles. Na referência à escolha dos dois
caminhos tem-se reconhecido uma alusão a Hesíodo que, nos
Trabalhos e Dias, 287-292, já opõe a via da κακότης (kakótes), do
vício, da miséria à da ἀρετή (areté), do mérito e do trabalho; a
alegoria, igualmente, parece ecoar, no concurso de eloquência entre
Areté e Kakía, uma versão sofística do julgamento de Páris ou
Alexandre, para outorga do Pomo da Discórdia: apenas um
julgamento sem Hera, um julgamento ao contrário, em que o herói
prefere Areté-Atená a Afrodite-Kakía. Um dilema evidentemente
desconhecido pelo Héracles do mito, cuja virilidade e
descomedimento se ajustam perfeitamente ao auxílio meio à
distância de Atená e à presença integral dos prazeres de Afrodite! Por
fim, a opção de Héracles está certamente relacionada com a escolha
de Aquiles, morrer jovem, mas gloriosamente, ou morrer idoso,como
qualquer mortal, tema favorito das escolas atenienses do século V
a.C., em que a Areté e Kakía se dava o sentido tradicional de
“bravura” e “covardia”25.
Uma coisa, todavia, é definitiva: como núcleo do apólogo, bem
distante dos órfico-pitagóricos e dos sofistas, baloiçando, como
convinha a um herói de seu porte, entre dois polos antagônicos, o
herói fez sua escolha e preferiu o que o mito lhe oferecia, uma vida
de trabalhos e de dores, mas também de prazeres e desregramentos,
quando os Trabalhos o permitiam...
Reinterpretando, porém, à maneira órfico-pitagórica, as façanhas
do herói numa perspectiva moralizante, que superlativava o esforço,
Pródico construiu um Héracles edificante, fazendo esquecer as
representações amorais do herói.
No fecho desse longo percurso, triturado pela máquina
moralizante órfico-pitagórico-prodiciana, eis um novo Héracles:
casto, sábio, modelo de virtude!
Héracles, realmente, se tornara por fim o que ele sempre foi, desde
o Hino Homérico aos estoicos, um ἄριστος ἀριστός (áristos
andrôn), “o melhor dos homens”. É que, e aqui está a diferença, a
expressão áristos andrôn, “o maior, o melhor dos heróis”, adquiriu, no
decorrer dos séculos, a conotação de “o melhor dos homens”.
Também ἀρετή (areté), que é da mesma família etimológica que
ἄριστος (áristos), e que designava originariamente “o valor
guerreiro” se enriqueceu paulatinamente com uma carga de
interioridade, até tornar-se algo semelhante a que se poderia chamar
“virtude”.
A história do destino de Héracles acabou por contrair núpcias
indissolúveis com a areté, adquirindo o herói um perfil de
urbanidade e civilidade que Homero e Hesíodo estavam longe de
imaginar...
7
Ao mito de Héracles achamos por bem acrescentar este apêndice
por julgá-lo apropriado e como um complemento ao estudo do
umbigo. A respeito do ὀμφαλός (omphalós), do umbigo como centro
do mundo, como canal de comunicação entre os três níveis, celeste,
telúrico e ctônio, já se falou no Vol. II, p. 61-62. Igualmente na p. 97 do
mesmo volume se voltou a mencionar o ὀμφαλός τῆς γῆς
(omphalòs tês guês), o umbigo como centro de Delfos, vale dizer,
como centro do mundo, demarcado por vontade de Zeus. Em ambos
os capítulos supracitados, a relação de ὀμφαλός (omphalós) com o
sexo ficou bem atestada. No capítulo II se aludiu à importância do
umbigo como centro, pelo fato de o muito santo ter criado o mundo
como se fora um embrião e este crescer a partir do omphalós, só se
desenvolvendo e espalhando-se depois. Chamamos a atenção, por
isso mesmo, para determinadas estatuetas africanas, nas quais a
dimensão dada ao umbigo é bem mais importante do que a atribuída
ao membro viril, uma vez que é daquele centro que provém a vida.
No capítulo III fomos mais explícito, procurando relacionar
etimologicamente Δελφοί26(Delphói), Delfos, sede do Oráculo de
Apolo, com δελφύς (delph×s), matriz, útero, cavidade misteriosa
aonde descia a Pitonisa, para tocar o omphalós, a “pedra”, o umbigo
sagrado, que marcava o centro da terra, antes de responder às
perguntas dos consulentes. Dizíamos, então, que esse omphalós
estava carregado de “sentido genital”, uma vez que a descida ao útero
de Delfos, à “cavidade”, onde profetizava a Pítia, e o fato de a mesma
tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, símbolo fálico,
configuravam, de per si, uma “união física” da sacerdotisa com
Apolo.
Vínhamos, pois, já há algum tempo, perseguindo essa relação
umbigo-sexo, quando, em recente viagem ao México, deparamos no
gigantesco Museu Antropológico da capital dos astecas com a obra –
a um tempo erudita e carregada de bom humor guareschiano – do
ítalo-mexicano Tibón.27Já a conhecíamos de citações, mas, lendo e
relendo-a, descobrimos exatamente o que nos faltava, sobretudo,
quando a cotejamos com outro livro do mesmo autor28: uma
explanação, o mais possível documentada, acerca do caráter erótico
do umbigo. O motivo por que deslocamos este apêndice para o final
do capítulo sobre Héracles é de fácil explicação: o último amor
humano do herói foi Ônfale. Ora, ὀμφαλη (Omphále), Ônfale,
“umbigo feminino”, é como se fora o feminino de ὀμφαλός
(Omphalós), o “umbigo masculino”. Dado o relacionamento íntimo
de Héracles com a rainha da Lídia, esta se nos apresenta, no todo,
como uma res erotica, “uma Ônfale” do herói.
Opina Gutierre Tibón que o Cântico dos Cânticos, arbitrariamente
atribuído a Salomão, rei de Israel e Judá (cerca de 970-930 a.C.), seja o
primeiro monumento literário em que se exalta metaforicamente o
umbigo feminino como símbolo de beleza29: o omphalós merecedor
de tão grande encômio é o de Sulamita. Eis o texto bíblico:
Que verás tu na Sulamita senão coros de dança dum acampamento?
/ Quão belos são os teus pés / no calçado que trazes, ó filha do príncipe!
/ As juntas de teus músculos são como colares, / fabricados por mão de
mestre. Teu umbigo é uma taça feita ao torno, / que nunca está
desprovida de licores (Ct 7,1-2).
De qualquer forma, seja qual for a interpretação que se dê ao texto,
o umbigo, no caso, é apresentado como índice de atração sexual. Não
foi, aliás, por escrúpulo de “protesto”, mas por injustificada pudicícia,
que Martinho Lutero não aceitou a tradução do original hebraico
shorer por “umbigo” e o transformou em “regaço”: Dein Schoss ist wie
ein runder Becher, dem nimmer Getränke mangelt, isto é: “teu regaço
é como uma taça redonda em que nunca faltam bebidas”.
Se o ompbalós de Sulamita é como uma taça feita ao torno, redonda
e profunda, é porque o “umbigo perfeito, comenta Tibón, deveria ser
anular, côncavo, fundo”, embora os hebreus, por proibição da Lei,
não tenham deixado nenhuma representação do mesmo.
A carência de reprodução iconográfica do umbigo entre os árabes
pelo mesmo veto legal que incidia sobre os hebreus não desanimou,
no entanto, o infatigável pesquisador mexicano, que, após descobrir
que México, em náuatle, significa no umbigo da Lua, não mais parou
com suas buscas onfálicas...
Da cultura hebraica, Tibón se aventura pela vastidão do texto do
riquíssimo patrimônio literário oriental das Mil e uma noites e da ars
amandi das sete partes do Kâma Sûtra, segundo Mallanaga
Vâtsyâyana. Nas primeiras são destacados dois textos em que se
exalta eroticamente o omphalós: Seu pescoço recorda o do antílope e
seus seios, duas romãs. [...] Seu umbigo poderia conter vários gramas de
unguento de benjoim. Um pouco mais abaixo diz Sherazade: Seu
umbigo poderia conter certa quantidade de almíscar, o mais suave dos
aromas (VIII, 33). E consoante Tibón, que cita o Dr. Woo Chan
Cheng, o uso do almíscar no umbigo feminino funciona como
afrodisíaco olfativo para o homem30.
No Kâma Sûtra se encontram três passagens que aguçam nossa
atenção para o erotismo umbilical. A primeira se acha no capítulo
sobre os beijos, onde se afirma que na Índia oriental os amantes
beijam as mulheres também no cotovelo, nos braços e no umbigo31; a
segunda referência está no capítulo sobre a arte das carícias, onde se
ensina que se deve marcar com as unhas o corpo da amada no
umbigo, nas pequenas cavidades que se formam em redor das nádegas
ou então nas virilhas32. O terceiro passo será citado mais adiante.
Para não sair tão depressa da cultura asiática, o autor mexicano
apresenta e descreve a estátua da deusa de Bali, Rati (Umbigo 1),
Grande mãe protetora da fertilidade, que se acha estampada na obra
de Campbell33. Rati, “a delícia erótica”, é representada com o braço
direito segurando os seios, estilizados à maneira de dois falos
monstruosos e com a esquerda sustém o ventre prenhe, coroado por
um omphalós saliente, com dois orifícios, que se assemelham a dois
dentes caninos contrapostos. Os olhos semicerrados e o sorriso da
deusa, com a boca semiaberta e retorcida para a esquerda, expressam
simultaneamente a voluptuosidade e a dor de um parto iminente e
contínuo.
Se os gregos visualizavam o belo como splendor ordinis, como
mesótes, como busca do meio-termo, tudo fizeram em sua arte
inimitável para “estabelecer as proporções precisas da beleza”. E, por
isso mesmo, vendo no omphalós uma interseção, um balizamento, o
limite entre a excitação e o prazer, o grande escultor ateniense
Praxíteles, nascido em 390 a.C., insistiu em que o umbigo deveria
estar exatamente entre os seios e o sexo. Sua Afrodite, denominada
Afrodite de Cnido, a primeira estátua feminina inteiramente despida
no mundo grego, e que ainda é possível “imaginar”, graças a uma
cópia romana (Umbigo 2), apresenta um omphalós perfeito, redondo
e profundo, como o da própria Ônfale (Umbigo 3), cuja estátua
lindíssima, por sinal, em companhia de Héracles, se encontra no
Museu Nacional de Nápoles. Nesse conjunto artístico HéraclesÔnfale, ela com a pele do Leão de Nemeia sobre os ombros e com a
clava do herói na mão direita, ele indumentado com o leve e
vaporoso traje feminino da rainha, segurando o fuso com a mão
direita, é possível ver em Ônfale, personificação do próprio
omphalós, uma submissão de Héracles ao princípio feminino, uma
vez que à cicatriz onfálica poder-se-ia dar um enfoque de
dependência inconsciente pré-natal mãe-filho. De outro lado, sendo
andrógino o umbigo, “nele se fundem os dois sexos, que readquirem
no centro do corpo sua unidade originária”34, como nos mostra
Platão no Banquete, 190-191.
Gustav Jung viu na sizígia Héracles-Ônfale a integração animusanima: “O mito de Héracles apresenta todos os aspectos
característicos de um processo de individuação: as viagens em
direção aos quatro pontos cardeais, quatro filhos, submissão ao
princípio feminino,
insconsciente”35.
ou
seja,
a
Ônfale,
que
simboliza
o
A perfeição umbilical, todavia, diga-se de caminho, não está
apenas na Índia, na Judeia ou na Grécia, pois o omphalós redondo e
profundo já se encontra na arte neossumeriana, como atesta a
chamada deusa alada (Umbigo 4) do Museu do Louvre, dos inícios
do segundo milenário a.C.
O umbigo, que para Platão é a marca indelével da separação do
andrógino primordial (Banquete, 190-191) e é por isso que “cada uma
das metades pôs-se a buscar a outra”, na ânsia de completar-se pelo
centro, tem conotação bem diversa no homem e na mulher. Tibón
sintetiza bem a causa dessa “disparidade”: “O umbigo muda de
essência, de caráter, quando pertence ao sexo feminino. Como
demonstramos nas páginas precedentes, ele é parte do atrativo do
corpo da mulher, imprescindível adorno do ventre. Assim como as
aréolas masculinas são neutras, meras decorações do tórax,
igualmente o é o umbigo viril. A ambivalência mítica do umbigo
converge para o âmbito puramente feminino: é um apelo erótico a
mais”36.
Mas não se trata apenas de um apelo erótico a mais, pois que existe
também uma “convergência ideal de umbigo e útero”, como aliás
assinala com precisão o já tantas vezes citado Gutierre Tibón.
Quando Ártemis, a pedido de seu irmão gêmeo Apolo, matou a
Corônis, que estava grávida de Asclépio, fato por nós comentado no
Vol. II, p. 92, o deus da medicina veio ao mundo mediante uma
incisão, a partir do omphalós, no ventre da amante do ciumento deus
de Delfos. Uma gravura anônima do século XVII, estampada por
Tibón e intitulada Aesculapii ortus, “Nascimento de Esculápio”,
mostra-nos Asclépio saindo do umbigo de Corônis como se fosse do
próprio útero da desditosa princesa.
“A crença infantil, comenta o autor, de que as crianças saem do
orifício umbilical obedece a um simbolismo arquetípico: a
identidade do omphalós e do útero como centro da vida”37. E citando
a Erich Neumann38, para quem este simbolismo engloba
inconscientemente o da natureza feminina da Terra, mãe por
antonomásia, o autor conclui sabiamente, ao dizer que, se a MãeTerra pare, cada manhã, o Sol, cada noite, a Lua e as estrelas, as
plantas e os alimentos, ela é a mãe universal. “O umbigo, centro que
nutriu o ser humano, em sua existência pré-natal, equivale, pois, ao
útero, não apenas da mulher, mas também antropocosmicamente ao
do universo”39.
Até mesmo de um ponto de vista linguístico, a identificação
umbigo-útero pode ser abonada em várias culturas, como no
sânscrito nábhila, que tanto pode significar cavidade quanto vulva;
Cuzco, “umbigo”, esclarece Tibón, “en quechua actual equivale a
vagina”40e Delphói, “Delfos”, relacionado etimologicamente com
delph×s, como se disse mais acima, é o grande centro umbilical do
mundo, exatamente por ser o útero da Terra...
Mas, pelo fato mesmo de ser identificado com o útero, de se
constituir em zona erótica, o omphalós passou a ter não apenas
muitos amigos na literatura e na arte figurada, mas igualmente
inimigos implacáveis, que se estendem, pelo menos, de Lutero a Mr.
William H. Hays, considerado por Tibón como o onfalófobo, o
inimigo número um do umbigo das “outras mulheres”! A história
relatada com bastante malícia por Tibón a respeito desse “Mister” é
deveras reveladora e edificante!
Nomeado censor do cinema norte-americano, em 1922, Mr. Hays
publicou o Código do Pudor e proibiu que se exibissem umbigos nos
filmes. Os diretores cinematográficos deram tratos à bola e
inventaram todos os expedientes possíveis para vedar o pomo da
discórdia: cinturões, certamente mais fortes e largos que os de
Hipólita, folhas, franjas, rosáceas... Para cima do maldito omphalós
não havia problema: Au dessus du nombril pas de pêché, “acima do
umbigo não há pecado”, divisa que Tibón diz pertencer a uma seita
medieval francesa.
Certo dia, porém, o puritano Mr. Hays foi levado ao tribunal pela
esposa, cuja acusação contra o marido estava vinculada a tendências
que àquela não se afiguravam muito normais e bem pouco puritanas.
Aos meritíssimos juízes igualmente determinadas inclinações do
implacável censor lhes pareceram uma total abrogação do Código do
Pudor e concederam o divórcio à peticionária. Antes de deixar de ser
Mrs. Hays, a infeliz dama fez a seguinte declaração: “Meu marido,
Oríon infatigável, confunde alegremente o umbigo de Vênus com a
flor mais pura da procriação”. Sublata causa, tollitur effectus,
supressa a causa, está eliminado o efeito! E Mr. Hays, um “tarado
umbilical”, divulgado o motivo do divórcio, deixou de exercer sua
ditadura censória e o Código do Pudor foi arquivado ad perpetuam
rei memoriam. Foi um triunfo em Hollywood, e o omphalós, há tanto
tempo reprimido, graças a Mr. Hays, explodiu, tornando-se o símbolo
da liberdade cinematográfica41e de outras liberdades...
Na arte plástica o melhor exemplo que talvez se conheça do
umbigo diabólico, fonte do pecado, é o quadro do pintor flamengo
Peter Huys (Umbigo 5), citado, estampado e analisado por Tibón42. O
quadro, que está no Museu do Prado, em Madri, se compõe de um trio:
Céu, Purgatório, Inferno. Esta última é a parte que nos interessa:
veem-se no “Tártaro” cenas terríveis, em que os condenados são
atormentados por demônios sádicos, híbridos entre formas humanas
e animais, armados de lanças, tridentes e punhais. Um dos demos
força um condenado, já de ventre estufado, a beber; mais abaixo, à
esquerda, um outro dianho, com a cabeça coberta por um funil,
espeta, com enorme punhal, o umbigo de uma segunda vítima,
submetida a idêntico suplício, a fim de que a água escorra do ventre
intumescido e o castigo possa prosseguir ininterruptamente. O
condenado apoia a mão direita num jarro vazio, mas um terceiro
demônio, com cabeça de burro, tapa-lhe a boca e ameaça-o com uma
faca. Este último condenado, possivelmente, era algum ancestral de
Mr. Hays!
Após o divórcio do arquiinimigo onfálico, os umbigos, livres e
triunfantes, passaram até a merecer as honras de concursos em
praias de grande frequência nos Estados Unidos, para escolha do
umbigo-padrão. Houve dois, que se saiba, ambos em 1971, e as
campeãs, segundo se pode ver pelas fotografias, tinham o
denominado umbigo da Afrodite de Cnido, isto é, redondo e
profundo. Uma das vencedoras ganhou como prêmio, além de uma
coroa, como rainha onfálica, uma linda joia, de forma quadrada, mas
vazada, para que, posta sobre o umbigo, este ficasse à mostra... É o
cobrir para ser visto! Daí para cá se criaram todos os tipos de
coberturas onfálicas: rosáceas, mãos espalmadas, relógios, folhas... na
realidade, coberturas opacas e transparentes, para cobrir descobrindo
o umbigo.
Nessas alturas há de se pensar: pobre Ônfale, que jamais imaginou
que a civilização dos grandes civilizados haveria de transformar o
omphalós, símbolo místico do centro, símbolo da fecundidade,
porque ligado à Grande Mãe, em objeto estético e erótico! Ônfale e os
mitólogos podem ficar tranquilos. Nil noui sub sole, nada de novo no
mundo dos homens, pois que os arquétipos trocam apenas de
indumentária, mas são sempre os mesmos: o deus supremo dos
astecas, Tezcatlipoca, usava sobre o umbigo uma pedra verde, o jade,
porque esta pedra preciosa é carregada de Yang, quer dizer, de
energia cósmica, sendo, por isso mesmo, dotada de qualidades
solares, imperiais, indestrutíveis. Imagem da tríade suprema, o Céu, o
Homem e a Terra, o jade é o centro, o axis mundi, o eixo do mundo,
que os sustenta, fazendo que o UM reúna os três. Colocado sobre o
omphalós, enquanto materialização do princípio Yang, o jade
preserva e defende o corpo de todas as ameaças e até mesmo da
decomposição, figurando assim um apotropismo.
As modernas “ônfales” que, ainda há pouco e para o futuro, “porque
tudo retorna”, cobriam e cobrirão estética e eroticamente os umbigos,
apenas não sabiam e, possivelmente, não compreenderão por que o
fazem ou hão de fazê-lo. Um dia, talvez, hão de sabê-lo: afinal, scire
est reminisci, o conhecimento é reminiscência, consoante Platão. E os
arquétipos, de quando em quando, são passados a limpo!
À medida, porém, que o omphalós se tornou objeto de concurso, ou
melhor, omofagicamente um objeto de consumo, passou a merecer,
de acordo com seu formato e tipo de “provocação”, ao menos para Mr.
Hays, uma nomenclatura apropriada. Assim é que, com Tibón e por
dever de ofício, acabei por cooperar para o catálogo, distinguindo os
seguintes tipos de omphalói:
a) umbigo de Afrodite de Cnido ou igualmente o de Vênus de Milo:
redondo e profundo, como o de Barbarella (Umbigo 6);
b) umbigo saliente ou convexo, aliás socialmente condenado por
Vâtsyâyana no Kâma Sûtra: não case com mulher de nariz
achatado, de umbigo saliente43 (Umbigo 7), que talvez merecesse
igualmente o apodo de Bellybutton, o “botão do ventre”, como
aparece na estátua da Nióbida Ferida, que é réplica de um bronze
grego de 440 a.C.;
c) umbigo ophthalmós: é o que possui forma de olho, com a
pálpebra semicerrada (Umbigo 8);
d) umbigo em grão de café, que ostenta uma espécie de corte
vertical no meio; há os que consideram esse tipo de omphalós
como o mais belo e erótico da espécie (Umbigo 9);
e) umbigo de Nefertiti: é o do tipo horizontal, que, aliás,
historicamente falando, é um omphalós “recente”: a esposa de
Amenófis IV ou Akhnaton viveu no século XIV a.C. e o umbigo
horizontal mais antigo que descobri é o de uma estatueta calcária,
que se encontra no Naturhistorisches Museum de Viena; a
estatueta em pauta é chamada poeticamente Vênus de Willendorf
e remonta ao Paleolítico, vale dizer, a 21.000 anos a.C.! (Umbigo
10);
f) umbigo felinus: é o vertical, também denominado olho-de-gato,
como aparece num mármore do século V a.C. que talvez retrate o
Nascimento de Afrodite (Umbigo 11); e
g) umbigo lóxias, meio torto, dextrogiro ou sinistrogiro, isto é,
assimétrico, com rebordo para a direita ou para a esquerda
(Umbigo 12), como se pode ver na estatueta de bronze dos fins do
século V a.C. e nesta “Ônfale moderna” (Umbigo 13).
E o umbigo dos umbigos, o de Ônfale, como seria? Simplesmente
como o de Afrodite de Cnido (Umbigo 3).
É conveniente deixar claro que ainda existem outros tipos de
omphaloí, mas a preocupação foi mostrar, e com uma possível
seriedade, que, desde muito cedo, o umbigo, além de centro, além de
canal da vida e, certamente, por isso mesmo, passou a configurar
também uma forte conotação sexual. Até aqui, porém, era o mito, era
o império da Grande Mãe. A sociedade de consumo, no entanto, de
início, o tabuizou e reprimiu, mas a liberdade que passou a campear,
sobretudo a partir da década dos anos cinquenta, transformou o
centro sagrado em centro profano e erótico: Delfos com sua Pitonisa
emigrou para as praias com sereias de biquínis. Nascera uma outra
onfaloscopia...
Este apêndice sobre a última esposa de Héracles neste mundo,
Ônfale e seu omphalós, não poderia terminar sem ao menos uma
breve referência à exaltação musical do umbigo. De origem africana,
como o samba, a umbigada é, em princípio, uma dança de roda, em
que um dançarino ou dançarina, no meio do círculo formado por
certo número de participantes da festa, após executar alguns passos,
ao som de determinados instrumentos musicais, dá uma umbigada
na pessoa que escolhe entre as da roda. A escolhida vai para o meio e
as umbigadas se sucedem num crescendo.
Luís da Câmara Cascudo, citando Alfredo de Sarmento, diz o
seguinte: “Em Luanda, e em vários outros presídios e distritos, o
batuque difere [...]. Consiste também o batuque num círculo formado
pelos dançadores, indo para o meio um preto ou uma preta, que,
depois de executar vários passos, vai dar uma umbigada (a que
chamam semba) na pessoa que escolhe entre as da roda, a qual vai
para o meio do círculo substituí-lo”44. Mais adiante, ensina o próprio
Cascudo: “A pancada com o umbigo nas danças de roda, como um
convite intimatório para substituir o dançarino solista, tem a maior
documentação para dizer-se de origem africana.
Em Portugal ocorre no fandango e no lundu, como uma invitation
à la danse, como vemos na punga do Maranhão, nos cocos de roda ou
bambelôs e em certos sambas. Também aparece como uma
constante, usada por todos os componentes no decurso da dança e
não apenas para o convite à substituição. Nesse caso está o batuque
paulista, que não é de roda, mas em filas paralelas e as umbigadas
são sucessivas”45. Os versinhos citados pelo autor sintetizam bem o
compromisso erótico da umbigada:
São sete menina,
São sete fulô;
São sete umbigada
Certeira qu’eu dou.
Alceu Maynard Araújo, falando do batuque, é muito claro e feliz,
ao interpretar a umbigada como “representação do ato genésico”, isto
é, “uma dança do ritual de procriação”. Vamos ouvi-lo: “É uma dança
do ritual de procriação. Há mesmo uma figuração coreográfica,
chamada pelos batuqueiros ‘granché’, ‘grancheno’ ou ‘canereno’, na
qual pai não dança com filha, porque é falta de respeito dar
umbigada; então executam movimentos que nos fazem lembrar a
coreografia da ‘grande chaîne’ (grande corrente) do bailado clássico
(Granché é mesmo deturpação dos vocábulos franceses, muito
usados na dança da quadrilha). Evitam o ‘incesto’, executando o
‘cumprimento’ ou ‘granché’, ‘pois é pecado (sic!) dançar (e a dança só
consiste em umbigadas) nos seguintes casos: pai com filha, padrinho
com afilhada, compadre com comadre, madrinha com afilhado, avó
com neto ou batuqueiro jovem’. Se porventura, por um descuido, um
batuqueiro bate uma umbigada na afilhada, esta lhe diz: ‘a bênção,
padrinho’. O padrinho mais que depressa vem lhe dando as mãos
alternadamente até perto da fileira onde estão os batuqueiros, sem
batucar. Esta atitude tomada na dança do batuque, para os
‘folcloristas’ sem preparação sociológica, é traduzida apenas como
‘dança do respeito’. Mas o ‘cumprimento’ examinado à luz da
antropologia cultural mostrará que os batuqueiros fazem o ‘granché’,
porque este evitará o incesto, o que temem praticar. Por isso mesmo é
evitado por meio do ‘granché’, pois aquele tabu sexual é uma
observância já encontrada nas sociedades pré-letradas. Só este
argumento, sem falar dos movimentos da umbigada, que no fundo
são uma representação do ato genésico, nos dá prova suficiente para
afirmarmos que o batuque é uma dança do ritual da reprodução”46.
Como se observa, voltamos ao omphalós como centro da
fecundação, mas, igualmente, mercê do tabu, como centro erógeno e
erótico. A proibição da umbigada entre pessoas consanguíneas ou
aparentadas, para “evitar o incesto”, é um sinal claro do tabu do
umbigo.
Jorge Amado também colaborou, em Jubiabá, para colorir a
umbigada: “Agora toda a sala rodava. Os pés batiam no chão, os
umbigos batiam nos umbigos, as cabeças se tocavam, estavam todos
embriagados, uns de cachaça, outros de música”47.
Como nas Antestérias gregas e nas Saturnais romanas, o carnaval,
mormente o carnaval carioca, é uma desrepressão total e uma quebra
violenta de interditos de ordem social e política. Pois bem, na década
dos anos sessenta, gastando os derradeiros momentos de liberdade, o
biguinho, ainda meio timidamente, ousou botar a cabeça de fora.
João de Barro e Jota Júnior, no carnaval carioca de 1962,
“compuseram buliçosa marchinha, caricaturando a moda chamada
Saint-Tropez”48, que consistia em deixar o biguinho de fora, o que se
constituía, para a época, numa audácia e descomedimento social
imperdoável. Eis a marchinha:
Ulalá... Ulalá
Você é mais você
1. Ptérela era um dos muitos descendentes de Perseu. Durante o reinado de Eléctrion em
Micenas, os filhos de Ptérela foram reclamar aquele reino, ao qual diziam ter direito, uma
vez que ali reinara um seu bisavô, Mestor, irmão de Eléctrion. Este repeliu indignado as
pretensões dos príncipes, que, como vingança, lhe roubaram os rebanhos. Desafiados pelos
filhos de Eléctrion para um combate, houve grande morticínio, tendo escapado apenas dois
contendores, um de cada família. Foi por amor de Alcmena que Anfitrião empreendeu a
guerra contra Tafos. Havia, no entanto, um oráculo segundo o qual, em vida do rei Ptérela, a
ilha jamais poderia ser tomada. É que a vida do rei estava ligada a um fio de cabelo de ouro
que Posídon implantara na cabeça do mesmo. Aconteceu, no entanto, que Cometo, filha de
Ptérela, se apaixonara por Anfitrião e, enquanto o pai dormia, arrancou o fio de cabelo
mágico, provocando-lhe assim a morte e a ruína de Tafos.
2. Op. cit., p. 365s.
3. As fontes básicas de referência na literatura greco-latina sobre os Doze Trabalhos
encontram-se na Ilíada, VIII, 132ss; XIV, 639ss; XVIII, 117ss; XIX 132ss; Sófocles, Traquínias,
1091ss; Eurípides, Héracles, 15ss; Teócrito, Idílios, 24,82ss; Apol., 2,4,12; Diod., 4,10ss; Verg.,
Eneida, 8,299; Ov., Metamorfoses, 9,182ss.
4. Équidna foi estudada, inclusive com seu simbolismo, no capítulo XI, 2, do Vol. I.
5. DIEL, Paul. Op. cit., p. 209.
6. Ibid., p. 207s.
7. Ibid., p. 208.
8. Ibid., p. 207.
9. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 185s.
10. Ibid., p. 185.
11. BRELICH, Angelo. Op. cit., p. 258ss.
12. BENOIST, Luc. Signes, symboles et mythes. Paris: PUF, 1975, p. 69.
13. Ibid., p. 776.
14. Ibid., p. 776.
15. ELIADE, Mircea. Traité d’histoire des religions. Paris: Payot. 1949, p. 252.
16. Πρίαμος (Príamos), “Príamo”, provém possivelmente da raiz prei, pri, como se pode ver
pelo latim prior, “anterior”, pri(s)mo > primus, “o primeiro, o chefe, o guia”; veja-se o grego
πράμος (prámos), πρόμος (prómos), “o que luta na primeira linha, o primeiro, o chefe”.
17. Na realidade, Ἰάρδανος (Iárdanos), Iárdano, designa em Homero o nome de um rio da
Élida (Il., VII, 735) ou de Creta (Od., III, 292) e só a partir de Heródoto, 1,7, ao que parece, é que
surge como rei da Lídia, pai de Ônfale.
18. O ferimento incurável de Filoctetes (devido a outra causa) e a importância do arco e das
flechas de Héracles, para a tomada de Troia, constituem o pano de fundo da tragédia de
Sófocles, Filoctetes, encenada em 409 a.C.
19. BONNEFOY, Yves. Op. cit., p. 492.
20. Ibid., p. 494.
21. Ibid., p. 494.
22. Leve-se em conta a ideia grega generalizada da fragilidade física da mulher e de sua
capacidade de astúcia cruel (Hécuba, Medeia, Clitemnestra, Fedra...). Acentue-se, de outro
lado, que o suicídio normal da mulher se praticava por enforcamento (Fedra, Antígona,
Jocasta...).
23. SLATER, Ph. E. Greek Mythology and the Greek Family. Boston: BUP, 1968, p. 339 e 352.
24. BONNEFOIY, Yves. Op. cit., p. 496.
25. Ibid., p. 497.
26. Delph×s, “matriz, útero”, talvez se relacione com o sânscrito garbhah, “uterus, foetus”, e
com o latim uulua, “vulva” (Émile BOISACK, Dictionnaire étymologique de la langue
grecque. Heidelberg: Carl Winter, 1950, verbete).
27. TIBÓN, Gutierre. El ombligo como centro erótico. México: Fondo de Cultura Económica,
1984.
28. TIBÓN, Gutierre. El ombligo, centro cósmico. México: Fondo de Cultura Económica, 1979.
29. Acerca da origem e do conteúdo dos cinco poemas de que se compõe o Cântico dos
Cânticos, diz A. VAN DEN BORN, no Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes,
1977, p. 237ss, que há opiniões várias e divergentes. A interpretação cultual e mítica que via
nos Cânticos uma coleção de hinos que celebravam originalmente um hieròs gámos de
divindades orientais da fertilidade, “coleção essa adotada como lenda festiva para a festa
cananeia e israelita primitiva dos ázimos, celebrada na primavera, para cantar o despertar
da natureza”, vem sendo abandonada em favor de algo bem mais canônico. O Cântico dos
Cânticos teria um sentido literal, próprio, bem mais profundo: significaria “primeiramente o
amor de Javé por seu povo, e depois, in sensu consequenti, à luz do cumprimento no NT, o
amor de Cristo pela Igreja, o povo de Deus do NT”.
A 40ª edição da Bíblia Sagrada, São Paulo, Paulinas, 1984, p. 718, resume assim o problema:
“Se, porém, (o Cântico aos Cânticos) cantasse propriamente amores profanos, não teria sido
por certo jamais inserido entre os livros inspirados das Escrituras. Foi, portanto, tradição
constante e unânime da Sinagoga judaica, como o é da Igreja cristã, que no Cântico, sob a
alegoria de amores profanos, celebra-se o amor mútuo entre Deus e seu povo, entre Deus e o
fiel piedoso”.
30. TIBÓN, Gutierre. Op. cit., p. 28.
31. VÂTSYÂYANA, Mallanaga. Kâma Sûtra. Rio de Janeiro: Império, 1965, p. 33.
32. Ibid., p. 42.
33. CAMPBELL, Joseph. The Mythic Image. Princeton: PUP, 1974, p. 270.
34. TIBÓN, G. Op. cit., p. 52.
35. JUNG, C.G. The Archetypes and the Collective Unconscious. Princeton: PUP, 1975, p. 324.
36. Ibid., p. 53.
37. Ibid., p. 58.
38. NEUMANN, Erich. The Great Mother. Princeton: PUP, 1974, p. 32.
39. TIBÓN, G. Op. cit., p. 58
40. Ibid., p. 59.
41. Ibid., p. 70s.
42. Ibid., p. 72ss.
43. VÂTSYÂYANA, Mallanaga. Op. cit., p. 85.
44. CASCUDO, Luís da Câmara.Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: INL, 1954, p.
561.
45. Ibid., p. 627.
46. ARAÚJO, Maynard Alceu. Documentário folclórico paulista. São Paulo: Departamento
Municipal de Cultura, 1952, p. 11ss.
47. AMADO, Jorge. Jubiabá. 26. ed. São Paulo: Martins, 1971, p. 154.
48. ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965.
Quadro 3
Com umbiguinho de fora
Garota de Saint-Tropez
Laranja da Bahia
Tem umbiguinho de fora,
Por que é que você, Maria,
Escondeu o seu até agora...
Héracles, mesmo sentado meditativamente nas encruzilhadas
sofisto-estoicas, coagido a escolher entre Atená-Areté e AfroditeKakía, jamais poderia imaginar que sua Ônfale percorresse itinerário
tão longo – de Salomão a João de Barro, do Kâma Sûtra à Garota de
Saint-Tropez!
De qualquer forma, a enérgueia do herói, após a vitória final, é
inesgotável, por isso que ele é o umbigo do mundo, através do qual
irrompem as energias que alimentam o cosmo.
CAPÍTULO IV
O Mito de Teseu
1
TESEU, em grego Θησεύς (Theseús), talvez provenha de um
elemento indo-europeu teu, “ser forte” > teues, “força” > te(u)s-o > teso
> theso, isto é, “o homem forte por excelência”, que libertou a Grécia
de tantos monstros.
Quanto à genealogia do herói ateniense, é bastante verificar o
Quadro da p. 24 do Vol. I, e o que a seguir estampamos, para se
concluir que o êmulo de Héracles possui em suas veias o sangue
divino de três deuses: descende longinquamente de Zeus, está “bem
mais próximo” de Hefesto e é filho de Posídon1.
A árvore genealógica da página seguinte, embora um pouco
podada, mostra com mais clareza os dois últimos parentescos do
fundador mítico da democracia ateniense.
Herói essencialmente de Atenas, Teseu é o Héracles da Ática.
Tendo vivido, consoante os mitógrafos, uma geração antes da Guerra
de Troia, dois de seus filhos, Demofoonte e Ácamas, participaram da
mesma. Bem mais jovem que o filho de Alcmena, foi-lhe, no entanto,
associado em duas grandes expedições coletivas: a busca do Velocino
de Ouro e a guerra contra as Amazonas, como se
1. As fontes básicas da Antiguidade clássica que servem de referência ou enfocam Teseu são
as seguintes: Homero, Odisseia, XI, 322ss; 631; Baquílides, 18,16s; Eurípides, Hipólito PortaCoroa, passim; Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2,15; Plutarco, Teseu, 3ss; 6ss;
15ss; 24; 26ss; 30s; 35ss; Apolodoro, Biblioteca, 3,16,ls; 2,6,3; Pausânias, Descrição da Grécia,
1,2,1; 1,27,7; 1,20,3; 1,17,6; 1,44,8; 2,33,1; 2,1,3; 5,11,14; 10,28,2s; 10,29,9; 15,2; 41,7; Diodoro Sículo,
Biblioteca Histórica, 4,28; 4,59; 4,61; 4,62,4; 6,4; Ovídio, Metamorfoses, 7,704ss; 8,174ss;
Heroides, 10; Higino, Fábulas 37, 30 e 241.
Quadro 4
mostrou no capítulo anterior. Como todo herói, “o filho de Posídon”
teve uma origem deveras complicada. Segundo o mito, Egeu, rei de
Atenas, não conseguindo ter um filho com várias esposas sucessivas,
dirigiu-se a Delfos para consultar Apolo. A Pítia respondeu-lhe com
um oráculo tipicamente “Lóxias”, proibindo-lhe “desatar a boca do
odre antes de chegar a Atenas”. Não tendo conseguido decifrar o
enigma, Egeu decidiu passar por Trezena, cidade de Argólida, onde
reinava o sábio Piteu. Foi no decorrer do percurso Delfos-Trezena
que o rei de Atenas aportou em Corinto, exatamente no momento em
que Medeia, no relato de Eurípides, Medeia, 663ss, já decidida a matar
Creonte, a princesa Creúsa e os próprios filhos, mas sem saber para
onde fugir, resolveu tomar a decisão tremenda. É que tendo recebido
do rei de Atenas a promessa de asilo, em troca de “fazê-lo gerar uma
descendência, por meio de determinados filtros”, a desventurada
esposa de Jasão encontrou, afinal, a saída tão ansiosamente esperada.
Eis suas palavras de júbilo, após o juramento do soberano da cidade
de Palas Atená.
Ó Zeus, ó Justiça de Zeus, ó luz de Hélio!
Agora, amigas, bela vitória teremos sobre meus inimigos,
e já estamos a caminho.
Agora tenho esperança de que meus adversários serão
castigados:
este homem surgiu quando estávamos a ponto de naufragar,
como porto seguro de minhas resoluções,
porto em que ataremos as cordas da popa,
quando chegarmos à cidade e à acrópole de Palas (Med.,
764-771).
Egeu haveria de lamentar, um pouco mais tarde, como se verá, o
asilo inviolável prometido à mágica da Cólquida!
De Corinto o rei de Atenas navegou diretamente para Trezena.
Piteu, após ouvir a recomendação da Pítia, compreendeu-lhe, de
imediato, a mensagem2. Embriagou o hóspede e, mandando levá-lo
para o leito, pôs junto dele sua filha Etra. Acontece, todavia, que, na
mesma noite em que passara ao lado do rei de Atenas, a princesa
tivera um sonho: aparecera-lhe Atená, ordenando-lhe que fosse a
uma ilha bem próxima do palácio real, a fim de oferecer-lhe um
sacrifício. Ali lhe surgiu pela frente o deus Posídon, que fez dela sua
mulher. Foi desse encontro, nas horas caladas da noite, que Etra ficou
grávida de Teseu, que o rei de Atenas sempre pensou tratar-se de um
filho seu.
Temendo seus sobrinhos, os palântidas, que lhe disputavam a
sucessão, o rei, após o nascimento de Teseu, se preparou para
retornar a Atenas, deixando o filho aos cuidados do avô, o sábio
Piteu, e a um grande pedagogo, Cônidas, ao qual os atenienses, à
época histórica, sacrificavam um carneiro, às vésperas das Θησεῖα
(Theseîa), festas solenes em honra de Teseu. Antes de partir,
entretanto, escondeu ritualmente, sob enorme rochedo, sua espada e
sandálias, recomendando a Etra que, tão logo o menino alcançasse a
adolescência, se fosse suficientemente forte para erguer a rocha,
retirasse os objetos escondidos e o procurasse em Atenas.
P. Diel oferece, a nosso ver, magnífica interpretação dessa primeira
prova iniciática a que será submetido o futuro soberano da Ática.
Depois de ponderar que, como filho de Posídon, no plano mítico,
Teseu percorreria o roteiro trágico de todo herói, afirma o mestre
francês: “Teseu não seria, por conseguinte, um herói, se porventura
sucumbisse sem lutar, se não tivesse uma firme disposição espiritual,
se o espírito, sob forma positiva, não fosse igualmente seu pai mítico.
Consoante o processo simbólico, mais comumente seguido, Egeu
representa simultaneamente o ‘pai corporal’ e o rei mítico, o espírito.
Lega a seu filho as insígnias da sublimidade e da espiritualidade.
Obrigado a retornar a Atenas, esconde sob um rochedo sua espada (a
arma do herói, combatente espiritual) e suas sandálias (cuja função,
na marcha através da vida, é ‘armar’, proteger o pé, símbolo da alma).
Atingida a adolescência, Teseu se mostrou capaz de seguir o apelo
do espírito. O entusiasmo da juventude lhe assegurou força
suficiente para erguer a rocha, configuração do peso esmagador da
terra (desejo telúrico). Empunhou a espada, calçou as sandálias e foi
ao encontro do pai, seu ‘pai corporal’ e igualmente seu pai mítico. O
herói partiu em busca do espírito”3.
Na realidade, tão logo atingiu a adolescência, após oferecer,
segundo o costume, parte de seu cabelo a Apolo, em Delfos, o jovem
foi informado por Etra do segredo de seu nascimento e do
esconderijo das sandálias e da espada paterna. Sem dificuldade
alguma, como Artur ou Sigmund, que arrancaram sua Nothung, a
(espada) “necessária”, de uma pedra ou de uma árvore, o herói
ateniense ergueu a rocha e retirou os objetos “necessários” para as
provas que iriam começar.
Aconselhado pela mãe e pelo avô a dirigir-se a Atenas por mar,
Teseu preferiu a rota terrestre, ao longo do Istmo de Corinto,
infestado de bandidos, uma vez que, com o exílio de Héracles na
Lídia, junto a Ônfale, salteadores e facínoras até então camuflados,
haviam retomado suas atividades... Competia, pois, ao herói ático
reiniciar a luta para “libertar-se” e libertar a Grécia de tantos
monstros.
2
O primeiro grande encontro foi com Perifetes, um malfeitor cruel,
filho de Hefesto e Anticleia. Coxo, apoiava-se numa muleta ou clava
de bronze com que atacava os peregrinos que se dirigiam a Epidauro.
Teseu o matou e fez da clava uma arma terrível na eliminação de
tantos outros bandidos que encontraria pela vida.
Comentando esta primeira vitória do filho de Posídon, Paul Diel
faz uma observação deveras interessante: “esta arma simbólica, a
maça de Perifetes, está destinada a exercer uma função precisa na
história de Teseu. É necessário lembrar que o esmagamento sob o
peso da terra, de que a clava é uma forma de expressão, pode
significar tanto a ruína devida à perversidade quanto sua punição
legal. A maça na mão do criminoso é a configuração da perversidade
destruidora; manejada pelo herói, converte-se em símbolo da
destruição e da perversidade. De posse da arma do malfeitor, Teseu a
usará com mais frequência que a espada recebida de Egeu. A clava de
Perifetes, porém, não poderá jamais substituir legitimamente a arma
‘outorgada pela divindade’. Embora nas mãos de um herói, ela
continua a ser uma expressão da brutalidade. A troca de arma é o
primeiro sinal de uma transformação secreta que toma corpo na
atitude do filho de Etra. A vitória sobre o assassino de Epidauro
traduz a advertência ainda latente de que a ligação filial com
Posídon não tardará a manifestar-se. De outro lado, também Perifetes
é filho de Posídon. Teseu vence e mata, por conseguinte, seu irmão
mítico e simbólico; triunfa de seu próprio perigo, mas sua vitória
permanece incompleta. Apossando-se da arma do assassino,
prepara-se para exercer o papel do vencido4. A vitória sobre
Perifetes, como o próprio nome indica, é a peripécia da vida de Teseu:
esse triunfo marca o princípio da ruína do herói”5.
O segundo encontro vitorioso do filho de Etra foi com o perigoso e
cruel gigante Sínis que, com músculos de aço, vergava o tronco de
um pinheiro até o solo e obrigava os que lhe caíam nas mãos a
mantê-lo neste estado. Vencidos pela retração violenta da árvore, os
infelizes eram lançados a grande distância, caindo despedaçados.
Não raro, Sínis vergava duas árvores de uma só vez e amarrava a
cabeça do condenado à copa de uma delas e os pés à outra, fazendo a
vítima dilacerar-se.
Submetido à primeira prova, Teseu vergou o pinheiro com tanta
força, que lhe quebrou o tronco; e depois subjugou Sínis, amarrou-o e
o submeteu à segunda prova, despedaçando-o no ar.
Em honra do arqueador de pinheiros, como lhe chama Aristófanes,
As Rãs, 966, que era igualmente filho de Posídon, Teseu teria
instituído os Jogos Ístmicos, considerados como os agônes fúnebres de
Sínis6.
Acrescente-se que essa personagem tinha uma filha, chamada
Perigune, que se escondera numa plantação de aspargo, enquanto seu
pai lutava com Teseu. Unindo-se, depois, ao herói ateniense, foi mãe
de Melanipo, que, por sua vez, foi pai de Ioxo, cujos descendentes
tinham devoção particular pelos aspargos, aos quais, afinal das
contas, deviam o fato de “ter nascido”.
Prosseguindo em sua caminhada, o jovem herói enfrentou a
monstruosa e antropófaga Porca de Crômion, filha de Tifão e
Équidna e que se chamava Feia, nome de uma velha bruxa que a
criara e alimentava. O filho de Egeu a eliminou com um golpe de
espada.
Consoante Chevalier e Gheerbrant, a Porca é o símbolo da
fecundidade e da abundância, rivalizando, sob esse aspecto, com a
vaca. Divindade selênica, a Porca é a mãe de todos os astros, que ela
devora e devolve alternadamente, se são diurnos ou noturnos, para
permitir-lhes viajar pela abóbada celeste. Desse modo, engole as
estrelas, ao aproximar-se a aurora, e as pare novamente ao
crepúsculo, agindo de maneira inversa com seu filho, o Sol. Vítima
predileta de Deméter, a Porca simboliza o princípio feminino,
reduzido à sua única prerrogativa de reprodução7.
No caso em pauta, a Porca de Crômion configura o princípio
feminino devorador.
Tendo chegado às Rochas Cirônicas, Teseu enfrentou o assassino e
perverso Cirão. Filho de Pélops ou Posídon, segundo alguns
mitógrafos, instalou-se estrategicamente à beira-mar, nas terras de
Mégara, nos denominados Rochedos Cirônicos, por onde passava a
estrada, ladeando a costa; obrigava os transeuntes a lavarem-lhe os
pés e depois os precipitava no mar, onde eram devorados por
monstruosa tartaruga.
Teseu, em vez de lavar-lhe os pés, o enfrentou vitoriosamente e
jogou-lhe o cadáver nas ondas, para ser devorado pela tartarugagigante.
Existe uma variante, segundo a qual Cirão era filho não de Pélops
ou Posídon, mas de Caneto e Heníoque, filha de Piteu. Nesse caso,
Cirão e Teseu eram primos germanos. Supunha-se, por isso mesmo,
que, para expiar esse crime, Teseu fundara, não em honra de Sínis,
mas em memória do primo, os Jogos Ístmicos.
Para Paul Diel, Cirão é um símbolo muito forte: “Esse gigante
monstruoso obrigava os que lhe caíam às mãos, os viajantes (da
vida), a lavar-lhe os pés, isto é, forçava-os à servidão humilhante, na
qual a banalização mantém os vencidos. O homem, escravo da
banalização, é forçado a servir ao corpo, e a exigência de Cirão
simboliza esta servidão em seu aspecto mais humilhante. ‘Lavar os
pés’ é um símbolo de purificação. Mas esse ato de purificar a alma
morta do monstro banal (banalização – morte da alma)8, em vez de
significar uma autopurificação, vale apenas como um trabalho
insensato, simples pretexto para eliminação da vítima.
O monstro (a banalização), sentado no topo de um rochedo,
enquanto sua infeliz vítima está absorvida na tarefa humilhante,
precipita-a no abismo do mar profundo, onde será devorada por
gigantesca tartaruga. O rochedo e os abismos marinhos são símbolos
já suficientemente explicados. Quanto à tartaruga, seu traço mais
característico é a lentidão de movimentos. Imaginada como
monstruosa e devoradora, retrata o aspecto que é inseparável da
agitação banalmente ambiciosa: o amortecimento de qualquer
aspiração”.
A quinta e arriscada tarefa de Teseu foi a luta com o sanguinário
Damastes ou Polipêmon, apelidado Procrusto, isto é, “aquele que
estica”. O criminoso assassino usava de uma “técnica” singular com
suas vítimas: deitava-as em um dos dois leitos de ferro que possuía,
cortando os pés dos que ultrapassavam a cama pequena ou distendia
violentamente as pernas dos que não preenchiam o comprimento do
leito maior. O herói ático deu-lhe combate e o matou, preparando-se
para a sexta vitória contra o herói eleusino Cércion, filho de Posídon
ou de Hefesto e de uma filha de Anfíction. O gigante de Elêusis
obrigava os transeuntes a lutarem com ele e, dotado de força
gigantesca, sempre os vencia e matava. Teseu o enfrentou: levantouo no ar e, lançando-o violentamente no solo, o esmagou. Cércion é
apenas mais um primo liquidado por Teseu, mas Procrusto merece
um ligeiro comentário: reduzindo suas vítimas às dimensões que
desejava, o “monstro de Elêusis” simboliza “a banalização, a redução
da alma a uma certa medida convencional”. Trata-se, no fundo,
como asseveram, com propriedade, Chevalier e Gheerbrant, da
perversão do ideal em conformismo. Procrusto configura a tirania
ética e intelectual exercida por pessoas que não toleram e nem
aceitam as ações e os julgamentos alheios, a não ser para concordar.
Temos, assim, nessa personagem sanguinária, a imagem do poder
absoluto, quer se trate de um homem, de um partido ou de um
regime político9.
3
Vencida a primeira etapa, derrotados os monstros que a ele se
opuseram, do Istmo de Corinto a Elêusis, o herói chegou aos
arredores de Atenas. Com tanto sangue parental derramado, Teseu
dirigiu-se para as margens do rio Cefiso, o pai de Narciso, onde foi
purificado pelos Fitálidas, os ilustres descendentes de um herói
epônimo ateniense, Fítalo. Coberto com uma luxuosa túnica branca
e com os cabelos cuidadosamente penteados (na realidade
indumentado femininamente, como se comentou no capítulo I, 5), o
herói foi posto em ridículo por uns pedreiros que trabalhavam no
templo de Apolo Delfínio. Sem dizer palavra, Teseu ergueu um carro
de bois e atirou-o contra os operários.
Feito isto, penetrou incógnito na sede de seu futuro reino, mas,
apesar de não se ter identificado, precedia-o uma grande reputação
de destruidor de monstros, pelo que o rei temeu por sua segurança,
pois que Atenas vivia dias confusos e difíceis. Medeia, que se exilara
na cidade, com o fito de dar a Egeu uma “bela descendência”, fizera
uso de filtros diferentes: casara-se com o rei e propriamente se
apossara das rédeas do governo.
Percebendo logo de quem se tratava, a mágica da Cólquida, sem
dar conhecimento a Egeu de quanto sabia, mas, pelo contrário,
procurando alimentar-lhe o medo com uma rede de intrigas em
torno do recém-chegado, facilmente o convenceu a eliminar o
“perigoso estrangeiro”, durante um banquete que lhe seria oferecido.
Com pleno assentimento do marido, Medeia preparou uma taça de
veneno e colocou-a no lugar reservado ao hóspede. Teseu, que
ignorava a perfídia da madrasta, mas querendo dar-se a conhecer de
uma vez ao pai, puxou da espada, como se fosse para cortar a carne, e
foi, de imediato, reconhecido por Egeu. Este entornou o veneno
preparado pela esposa, abraçou o filho diante de todos os convivas e
proclamou-o seu sucessor.
Quanto a Medeia, após ser repudiada publicamente, mais uma vez
foi execrada e exilada, dessa feita, para a Cólquida10.
Existe uma variante, certamente devida aos trágicos, no que se
refere ao reconhecimento de Teseu pelo pai. Conta-se que, antes de
tentar o envenenamento do enteado, Medeia o mandou capturar o
touro gigantesco que assolava a planície de Maratona e que não era
outro senão o célebre Touro de Creta, objeto do sétimo Trabalho de
Héracles.
Apesar da ferocidade do animal, que lançava chamas pelas
narinas, o herói o capturou e, trazendo-o peado para Atenas,
ofereceu-o em sacrifício a Apolo Delfínio. Ao puxar a espada para
cortar os pelos da fronte do animal, como estipulavam os ritos de
consagração, foi reconhecido pelo pai.
O episódio da captura do Touro de Maratona é significativo para
Diel: capturando e matando o animal, símbolo da dominação
perversa, Teseu dá provas de que pode governar e, por isso mesmo, é
convidado a compartilhar do trono com Egeu, “seu pai corporal,
símbolo do espírito”.
Foi durante a caçada desse touro que se passou a estória de Hécale,
assunto de um poema homônimo de Calímaco de Cirene (310-240
a.C.).
Hécale era uma anciã, que habitava o campo e teve a honra de
hospedar o herói na noite que precedeu a caçada ao Touro de
Maratona. Havia prometido oferecer um sacrifício a Zeus, se Teseu
regressasse vitorioso de tão arrojada empresa. Ao retornar, tendo-a
encontrado morta, o filho de Egeu instituiu em sua honra um culto a
Zeus Hecalésio.
Se bem que marcado, aliás como todo herói, pela hýbris e por um
índice normal de enfraquecimento, Teseu, com a captura e morte do
Touro de Maratona, provará dentro em breve a todos os seus súditos
que a força que subsiste nele resulta de sua timé e areté, vale dizer, de
sua ascendência divina. Com o espírito bem armado e a alma
protegida, o filho de Posídon soube e saberá, graças à inocência de
sua juventude, ultrapassar todas as barreiras que ameaçavam barrarlhe a caminhada para o “trágico e para a glória”. Uma vez
reconhecido pelo pai e já compartilhando do poder, teve logo
conhecimento da conspiração tramada pelos primos e, de imediato
(o herói nasceu para o movimento e para as grandes e perigosas
tarefas) se aprestou para a luta. Os Palântidas, que eram cinquenta,
inconformados com a impossibilidade de sucederem a Egeu no trono
de Atenas, resolveram eliminar Teseu. Dividiram suas forças, como
bons estrategistas, em dois grupos: um atacou a cidade abertamente e
o outro se emboscou, procurando surpreender pela retaguarda. O
plano dos conspiradores foi, todavia, revelado por seu próprio
arauto, Leos, e Teseu modificou sua tática: massacrou o contingente
inimigo emboscado e investiu contra os demais, que se dispersaram e
foram mortos. Relata-se que, para expiar o sangue derramado de seus
primos, o herói se exilou, passando um ano em Trezena. Esta é a
versão seguida por Eurípides em sua tragédia, belíssima por sinal,
Hipólito Porta-Coroa. Mas, como o poeta ateniense acrescenta que
Teseu levara em sua companhia a Hipólito, o filho do primeiro
matrimônio com Antíope, uma das Amazonas, já falecida, bem como
a segunda esposa, Fedra, que se apaixonara pelo enteado, dando
origem à tragédia, segue-se que a “cronologia” foi inteiramente
modifica-da por Eurípides. Com efeito, colocar a expedição contra as
Amazonas antes do massacre dos Palântidas é contrariar toda uma
tradição mítica. Em todo caso, como diz Horácio, Epist., 2,3,9-10:
Pictoribus atque poetis
quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.
– Os pintores e os poetas sempre gozaram do direito
de usar quaisquer liberdades...
4
Foi por “essa época” que Teseu se viu no dever de enfrentar novo e
sério problema. Com a morte de Androgeu, filho de Pasífae e Minos,
rei de Creta, morte essa atribuída indiretamente a Egeu – que,
invejoso das vitórias do herói cretense nos Jogos que mandara
celebrar em Atenas, o enviara para combater o Touro de Maratona –
eclodiu uma guerra sangrenta entre Creta e Atenas. A morte de
Androgeu se deveria, narra uma variante, não a Egeu, mas aos
próprios atletas atenienses, que, ressentidos com tantas vitórias do
filho de Minos, mataram-no. Haveria, por outro lado, um motivo
político, pois que Androgeu teria sido assassinado por suas ligações
com os Palântidas.
De qualquer forma, Minos, com poderosa esquadra, após apossar-se
de Mégara, marchou contra a cidade de Palas Atená. Como a guerra
se prolongasse e uma peste (pedido de Minos a Zeus) assolasse
Atenas, o rei de Creta concordou em retirar-se, desde que,
anualmente, lhe fossem enviados sete moços e sete moças, que
seriam lançados no Labirinto, para servirem de pasto ao Minotauro.
Teseu se prontificou a seguir para Creta com as outras treze vítimas,
porque, sendo já a terceira vez que se ia pagar o tributo ao rei
cretense, os atenienses começavam a irritar-se contra Egeu.
Relata-se ainda que Minos escolhia pessoalmente os quatorze
jovens e dentre eles o futuro rei de Atenas, afirmando que, uma vez
lançados inermes no Labirinto, se conseguissem matar o Minotauro,
poderiam regressar livremente à sua pátria.
O herói da Ática partiu com um barco ateniense, cujo piloto,
Nausítoo, era da ilha de Salamina, uma vez que Menestes, neto de
Ciro, rei desta ilha, contava-se entre os jovens exigidos por Minos.
Entre eles estava também Eribeia ou Peribeia, filha de Alcátoo, rei de
Mégara.
Uma variante insiste que Minos viera pessoalmente buscar o
tributo anual e na travessia para Creta se apaixonara por Peribeia,
que chamou Teseu em seu auxílio. Este desafiou ao rei de Cnossos,
dizendo-lhe ser tão nobre quanto ele, embora Minos fosse filho de
Zeus. Para provar a areté do príncipe ateniense, o rei de Creta lançou
no mar um anel e ordenou ao desafiante fosse buscá-lo. Teseu
mergulhou imediatamente e foi recebido no palácio de Posídon, que
lhe devolveu o anel. Mais tarde, Teseu se casou com Peribeia, que se
celebrizou muito tempo depois como mulher de Télamon, pai de
Ájax, personagem famosa da Ilíada e da tragédia homônima de
Sófocles.
À partida, Egeu entregou ao filho dois jogos de vela para o navio,
um preto, outro branco, recomendando-lhe que, se porventura
regressasse vitorioso, içasse as velas brancas; se o navio voltasse com
as pretas, era sinal de que todos haviam perecido.
Comentando a imposição tirânica do rei de Cnossos em relação às
vítimas que eram devoradas pelo Minotauro, diz Paul Diel: “na
Antiguidade, Minos foi sempre muito festejado por sua proverbial
sabedoria. O mito relata que o rei de Creta venceu os atenienses com
o auxílio de Zeus, o que expressa a justiça da causa. Após a vitória,
porém, traindo sua habitual sabedoria, impôs a Atenas condições
tirânicas, obrigando-a a enviar sete moços e sete moças para serem
devorados pelo monstruoso Minotauro, que habitava um Labirinto
subterrâneo. [...] Raramente o alcance psicológico do sentido secreto
de um mito aparece com tanta clareza através do frontispício
fabuloso. Minotauro significa o touro de Minos. Associando ao nome
o símbolo do ‘Touro’, chega-se, através de Minotauro, à dominação
perversa exercida por Minos. Obtém-se assim, por simples
substituição, a chave para a tradução do episódio, pois se o
Minotauro represen-ta a dominação perversa exercida por Minos –
pormenor que reflete um estado psíquico do rei – todos os outros
aspectos ocultos devem derivar desta interpretação e contribuir para
colocá-la em evidência. Ora, esta dominação monstruosa (o
Minotauro) é produto de Pasífae e Posídon (legalidade da perversão).
O Minotauro é pois ‘o filho’ da perversão de Pasífae. A dominação
perversa de Minos é gerada pela perversão de Pasífae, o que significa,
no plano psicológico, que Minos é levado pela esposa a esquecer sua
proverbial sabedoria. Mas Pasífae não pode influenciar o rei a não ser
por seus conselhos, donde resulta como sentido, tão inesperado
quanto evidente, um dado psicológico muito simples, mas que
revela, com respeito a razões de Estado e acontecimentos mundiais,
uma causa secreta que em vão se procurará nos tratados de história:
foi por insistência e conselhos de sua mulher que Minos impôs aos
atenienses condições de paz, cuja injustiça tirânica é simbolizada
pelos jovens destinados a servir de pasto ao monstro. Poder-se-ia
dizer, e até com certa razão, que a dominação perversa se nutre de
carne humana. Em outros termos: Posídon, sob forma de touro, e
portanto a perversão, sob forma de dominação tirânica, inspira a
Pasífae os conselhos perversos que fazem nascer o Minotauro, a
injustiça despótica de Minos. Este, no entanto, envergonha-se do
monstro gerado por sua mulher e o esconde aos olhos dos homens.
Minos e Pasífae repelem a verdade monstruosa, a dominação
perversa do rei que é habitualmente sábio. Escondem a vontade
monstruosa no inconsciente: aprisionam o Minotauro no Labirinto.
O construtor do Labirinto foi Dédalo; o que significa que Dédalo,
atilado e pérfido, teceu a intriga que anulou a sabedoria de Minos.
Por um enganoso raciocínio, deu respaldo aos conselhos de Pasífae,
conseguindo assim vencer a resistência e as hesitações do rei. Este
raciocínio, ilusório mas aparentemente válido, é uma construção
complicada, labiríntica. No labirinto do inconsciente a dominação
perversa de Minos, o Touro de Minos, continua a viver. O rei, no
entanto, é incessantemente obrigado a opor-se à sua sabedoria, a
‘nutrir’ sua atitude monstruosa com base em motivos falsos e a
‘alimentar’ seu remorso obsedante, seu arrependimento não
confessado, por um raciocínio ilusório, o que o torna incapaz de
reconhecer seu erro e renunciar às condições infligidas aos
atenienses. As condições tirânicas realmente impostas encontram-se,
nesse caso, substituídas pelo tributo simbólico destinado a alimentar
o monstro: o sacrifício anual dos jovens inocentes de Atenas. [...]
O ilogismo do mito, os símbolos ‘Minotauro’ e ‘Labirinto’ tornam-se
assim reduzidos à verdade psicológica, à realidade, frequente e banal,
de uma intriga palaciana. Esta tradução do sentido oculto do
nascimento do monstro e da história de sua prisão se patenteia na
medida em que se mostra válida para traduzir igualmente o episódio
central do mito, isto é, o combate do herói contra o monstro. [...]
Teseu decide, pois, combater o Minotauro, isto é, resolve opor-se à
dominação exercida por Minos sobre os atenienses, abolindo a
imposição tirânica.
Mas, pelo mesmo fato de o Labirinto, em que está escondido o
monstro simbólico, ser o inconsciente de Minos, este adquire, de per
si, uma significação simbólica: retrata o “homem” mais ou menos
secretamente habitado pela tendência perversa da dominação. Até
mesmo o rei Minos, até mesmo o homem dotado de sabedoria (da
justa medida) pode sucumbir à tentação dominadora. Esta
generalização representativa estende-se igualmente ao herói
convocado para lutar contra o monstro. Teseu não se curvará à
opressão provinda de outrem, mas enfrentando-a, mesmo
vitoriosamente, corre o risco de se tornar prisioneiro da fraqueza
banal inerente à natureza humana: a vaidade de acreditar que o
descomedimento da justa medida nas relações humanas seria uma
prova de força, e assim justificar a tentação de reprimir seus
semelhantes com medidas injustas. É pois muitíssimo significativo
que o monstro acantonado no Labirinto do inconsciente, sendo
irmão mítico de Teseu por descendência de Posídon, constitui o
perigo essencial para o herói. Como todo herói que combate um
monstro, Teseu, ao se defrontar com o Minotauro, luta contra sua
própria falta essencial, contra a tentação perversa que o habita
secretamente. [...]
Dois perigos inerentes a esta situação de natureza psíquica
aguardam o herói: deverá enfrentar o monstro (a dominação de
Minos, que é seu próprio perigo) e terá, se vitorioso, que encontrar o
caminho que o conduza para fora do Labirinto, símbolo, lato sensu,
do perigo das aberrações inconscientes de todo ser humano e,
portanto, igualmente de Teseu. Para triunfar, ao mesmo tempo, do
adversário e da ameaça de seu inconsciente, Teseu não deve
enfrentar a dominação de Minos apoiado em sua própria tentação
dominadora (astúcia e mentira), mas na força heroica: a franqueza e
a pureza. Sendo o Minotauro símbolo da ação perversa de Minos e
das razões inconscientes que lhe toldam o discernimento, o combate
para vencer o touro de Minos só pode ser a ação sublime do herói,
exatamente o oposto do raciocínio repressor de Minos: a força
vitoriosa de um raciocínio válido, suscetível de fazer renascer a
sabedoria do rei. Em síntese: nessas forças positivas – na sabedoria de
Minos parcialmente persistente e na pureza das intenções de Teseu –
reside a única oportunidade de êxito”11.
Uma vez em Creta, Teseu e os treze jovens foram, de imediato,
encerrados no Labirinto, uma complicada edificação construída por
Dédalo, com tantas voltas e ziguezagues, corredores e caminhos
retorcidos, que, quem ali penetrasse, jamais encontraria a saída.
O amor, porém, torna todo impossível possível! Ariadne, talvez a
mais bela das filhas de Minos, se apaixonara pelo herói ateniense.
Para que pudesse, uma vez no intrincado covil do Minotauro,
encontrar o caminho de volta, dera-lhe um novelo de fios, que ele ia
desenrolando, à medida que penetrava no Labirinto. Conta uma
outra versão que o presente salvador da princesa minoica fora não
um novelo, mas uma coroa luminosa, que Dioniso lhe oferecera
como presente de núpcias. Uma terceira variante atesta que a coroa
luminosa, que orientou e guiou Teseu nas trevas, lhe havia sido dada
por Afrodite, quando o herói desceu ao palácio de Anfitrite para
buscar o anel de Minos. Talvez a junção fio e coroa luminosa, “fio
condutor e luz”, seja realmente o farol ideal para espancar trevas
interiores!
Ariadne condicionou seu auxílio a Teseu: livre do Labirinto, ele a
desposaria e levaria para Atenas.
Derrotado e morto o Minotauro, o herói escapou das trevas com
todos os companheiros e, após inutilizar os navios cretenses, para
dificultar qualquer perseguição, velejou de retorno à Grécia, levando
consigo Ariadne. O navio fez escala na ilha de Naxos. Na manhã
seguinte, Ariadne, quando acordou, estava só. Longe, no horizonte, o
navio de velas pretas desaparecia: Teseu a havia abandonado. Esta é
a versão mais conhecida e seguida inclusive por Ovídio, nas
Heroides, 10,3-6:
Quae legis, ex illo, Theseu, tibi litore mitto, unde tuam
me uela tulere ratem;
in quo me somnusque meus male prodidit, et tu, per
facinus somnis insidiate meis.
– O que lês, Teseu, envio-te daquela praia, donde, sem
mim, as velas levaram teu barco; onde o sono
perverso me traiu, de que perversamente tu te
aproveitaste.
Há variantes: uns afirmam que Teseu abandonou a filha de Minos
porque amava outra mulher, Egle, filha de Panopleu. Outros acham
que o herói foi forçado a deixá-la em Naxos, porque Dioniso se
apaixonara por ela ou até mesmo a teria raptado durante a noite; e,
após desposá-la, a teria levado para o Olimpo. Como presente de
núpcias o deus lhe teria dado um diadema de ouro, cinzelado por
Hefesto. Tal diadema foi, mais tarde, transformado em constelação.
Com >Dioniso, Ariadne teria tido quatro filhos: Toas, Estáfilo,
Enópion e Pepareto.
De Naxos Teseu navegou para a ilha de Delos, onde fez escala, a
fim de consagrar num templo uma estátua de Afrodite, com que
Ariadne o havia presenteado. Ali ele e seus companheiros
executaram uma dança circular de evoluções complicadas,
representando as sinuosidades do Labirinto. Tal rito subsistiu na ilha
de Apolo por muito tempo, ao menos até a época clássica.
Triste com a perda de Ariadne, ou castigado por havê-la
abandonado, ao aproximar-se das costas da Ática o herói se esqueceu
de trocar as velas negras de seu navio, sinal de luto, pelas brancas,
sinal de vitória.
Egeu, que ansiosamente aguardava na praia a chegada do barco, ao
ver as velas negras, julgou que o filho houvesse perecido em Creta e
lançou-se nas ondas do mar, que recebeu seu nome.
Relata-se ainda que o rei esperava o filho no alto da Acrópole,
exatamente no local onde se ergue o templo da Vitória Aptera. Ao
ver de longe o navio com as velas negras, precipitou-se do penhasco
e morreu.
Consoante, mais um vez, a interpretação simbólica de Diel, “a
vitória só poderia ser definitiva para o herói na medida em que
tivesse sobrepujado seu próprio perigo, quer dizer, após a destruição
do monstro existente nele próprio. Diante de tarefa tão essencial,
Teseu fracassou. Triunfou tão somente da perversidade de Minos,
atacando apenas o monstro no adversário. Um pormenor do
combate simbólico, negligenciado até o momento como de pouca
importância, mas capaz de esclarecer toda a situação psicológica e
resumir-lhe todas as consequências, é o fato de Teseu haver
liquidado o Minotauro com a clava que pertencera ao facínora
Perifetes. Este traço simbólico mostra que o herói, aceitando o auxílio
de Ariadne, usa de uma arma pérfida: seu amor pela princesa é
somente pretexto e cálculo, comportando-se ele próprio realmente
como um facínora. A arma da vitória, a clava de Perifetes, faz prever
que seu triunfo sobre o monstro não traduz um ato de coragem e
nem trará benefícios. Se o herói, graças ao poder do amor, soube
derrotar a Minos, não se aproveitará, todavia, da vitória conseguida
por esse poder, uma vez que este não lhe pertence. Longe de ser
heroico, o triunfo sobre o Minotauro não passa de uma façanha
perversa, uma traição. Explorou o amor de Ariadne para atingir seus
objetivos e logo depois a traiu.
Ora, o ‘fio de Ariadne’ deveria conduzi-lo não apenas para fora do
dédalo inconsciente de Minos, mas igualmente para fora do labirinto
de seu próprio inconsciente.
Teseu se perde e esse extravio há de decidir toda sua história
futura”12. Seu amor pela irmã de Ariadne, Fedra, de que se falará
mais abaixo, lhe trará sérias consequências.
O príncipe ateniense não deixa Creta como herói, mas como um
bandido e traidor. Abandonando a Ariadne, apesar da vitória sobre o
Touro de Minos, seu êxito se converte em derrota essencial. Em sua
traição a Ariadne se acham conjugados tanto os signos da
perversidade dominadora quanto os da perversão sexual. As velas
negras, sinal de luto, com que Teseu partiu, tornam-se o símbolo da
perversão, insígnia das forças das trevas. O herói navegará de agora
em diante sob seu império. Não penetra em Atenas como vencedor e,
fato importante, de uma significação mítica profunda, o herói se
esquece de içar as velas brancas, que lhe traduziriam a vitória. Egeu,
contemplando as velas negras, precipita-se no mar. O rei, enquanto
pai corporal, mata-se de desespero, persuadido de que o filho havia
corporalmente perecido. O rei, pai mítico, lançando-se nas
profundezas das águas, simboliza algo de muito sério: o herói será
doravante e definitivamente abandonado pelo espírito, que está
introjetado nas profundezas marinhas, símbolo do inconsciente.
Outro pai mítico, Posídon, passará a comandar o destino do herói.
5
Após a morte de Egeu, Teseu assumiu o poder na Ática. Realizou o
célebre συνοικισμóς (synoikismós), sinecismo, isto é, reuniu em
uma só pólis os habitantes até então disseminados pelo campo.
Atenas tornou-se a capital do Estado. Mandou construir o
Pritaneu13e a Bulé, o Senado. Promulgou leis; adotou o uso da moeda;
instituiu a grande festa das Panateneias, símbolo da unidade política
da Ática. Dividiu os cidadãos em três classes: eupátridas, artesãos e
camponeses. Instaurou, miticamente, em suas linhas gerais, a
democracia. Conquistou a cidade de Mégara e anexou-a ao estado
recém-criado; na fronteira entre a Ática e o Peloponeso, mandou
erigir marcos para separar o território jônico do dórico; e reorganizou
em Corinto os Jogos Ístmicos, em honra a seu “pai” Posídon.
Executadas essas tarefas políticas, o rei de Atenas retomou sua
vida “heroica”. Como Etéocles houvesse expulso de Tebas a seu irmão
Polinice, este, casando-se com Argia, filha de Adrasto, rei de Argos,
conseguiu organizar sob o comando do sogro a célebre expedição dos
Sete Chefes (Adrasto, Anfiarau, Capaneu, Hipómedon, Partenopeu,
Tideu e Polinice). A expedição foi um desastre: somente escapou
Adrasto, que se pôs sob a proteção de Teseu. Este, que já havia
acolhido como exilado a Édipo, como nos mostra Sófocles no Édipo
em Colono, marchou contra Tebas e, tomando à força os cadáveres de
Seis Chefes, deu-lhes condigna sepultura em Elêusis.
A tradição insiste numa guerra entre os habitantes da Ática e as
Amazonas, que lhes teriam invadido o país. As origens da luta
diferem de um mitógrafo para outro. Segundo uns, tendo-se
engajado, como se viu no capítulo anterior, na expedição de Héracles
contra as Amazonas, Teseu recebera, como prêmio de suas proezas, a
amazona Antíope, com a qual tivera um filho, Hipólito. Segundo
outros, Teseu viajara sozinho ao país dessas temíveis guerreiras e
tendo convidado a bela Antíope para visitar o navio, tão logo a teve a
bordo, navegou a toda a vela de volta à pátria. Para vingar o rapto de
sua irmã, as Amazonas invadiram a Ática. A batalha decisiva foi
travada nos sopés da Acrópole e, apesar da vantagem inicial, as
guerreiras não resistiram e foram vencidas por Teseu, que acabou
perdendo a esposa Antíope. Esta, por amor, lutava ao lado do marido
contra as próprias irmãs.
Para comemorar a vitória de seu herói, os atenienses celebravam,
na época clássica, as festas denominadas Boedrômias.
Existe ainda uma outra variante. A invasão de Atenas pelas
Amazonas não se deveu ao rapto de Antíope, mas ao abandono desta
por Teseu, que a repudiara, para se casar com a irmã de Ariadne,
Fedra. A própria Antíope comandara a expedição e tentara, à base da
força, penetrar na sala do festim, no dia mesmo do novo casamento
do rei de Atenas. Como fora repelida e morta, as Amazonas se
retiraram da Ática.
De qualquer forma, o casamento de Teseu com Fedra, que lhe deu
dois filhos, Ácamas e Demofoonte, foi uma fatalidade. Hipólito, filho
de Antíope e Teseu, segundo já se assinalou, consagrara-se a Ártemis,
a deusa virgem, irritando profundamente a Afrodite. Sentindo-se
desprezada, a deusa do amor fez que Fedra concebesse pelo enteado
uma paixão irresistível. Repudiada violentamente por Hipólito, e
temendo que este a denunciasse a Teseu, rasgou as próprias vestes e
quebrou a porta da câmara nupcial, simulando uma tentativa de
violação por parte do enteado. Louco de raiva, mas não querendo
matar o próprio filho, o rei apelou para “seu pai” Posídon, que
prometera atender-lhe três pedidos.
O deus, quando Hipólito passava com sua carruagem à beira-mar,
em Trezena, enviou das ondas um monstro, que lhe espantou os
cavalos, derrubando o príncipe. Este, ao cair, prendeu os pés nas
rédeas e, arrastado na carreira pelos animais, se esfacelou contra os
rochedos. Presa de remorsos, Fedra se enforcou. Existe uma variante,
segundo a qual Asclépio, a pedido de Ártemis, ressuscitara Hipólito,
que foi transportado para o santuário de “Diana”, em Arícia, na Itália.
Ali, o filho de Teseu fundiu-se com o deus local, Vírbio, conforme se
pode ver em Ovídio, Metamorfoses, 15,544.
Eurípides compôs duas peças acerca da paixão de Fedra por
Hipólito.
Na primeira Hipólito, da qual possuímos apenas cerca de
cinquenta versos, a rainha de Atenas, num verdadeiro rito do
“motivo Putifar”, entrega-se inteira à sua paixão desenfreada,
declarando-a ela própria ao enteado. Repelida por este, caluniou-o
perante Teseu, como se disse linhas atrás, e só se enforcou após a
morte trágica de seu grande amor. Na segunda versão, Hipólito
Porta-Coroa, uma das tragédias mais bem elaboradas por Eurípides,
do ponto de vista literário e psicológico, Fedra confidencia à ama sua
paixão fatal e esta, sem que a rainha o desejasse, ou lhe pedisse
“explicitamente”, narra-a a Hipólito, sob juramento. Envergonhada
com a recusa do jovem príncipe e temendo que este tudo revelasse ao
pai, enforca-se, mas deixa um bilhete ao marido, em que
mentirosamente acusa Hipólito de tentar seduzi-la. A imprudente
maldição de Teseu provoca a terrível desdita do filho, acima descrita,
mas a verdade dos fatos é revelada por Ártemis ao infortunado pai.
Com o filho agonizante nos braços, Teseu tem ao menos o consolo do
perdão de Hipólito e a promessa de que este há de receber honras
perpétuas em Trezena! As jovens, antes do casamento, lhe ofertarão
seus cabelos e “o amor de Fedra jamais cairá no esquecimento”! De
fato, esse grande amor foi muitas vezes invocado, sobretudo na
Phaedra de Lúcio Aneu Sêneca e na Phèdre de Jean Racine...
Seja como for, o que se evidencia no mito transmutado em tragédia
por Eurípides é a superlativação do “páthos da paixão”.
A respeito especificamente de Fedra e Teseu acentua Paul Diel:
“Teseu se perde [...]. Apaixona-se pela irmã de Ariadne, Fedra. Sua
fraqueza de espírito sacrifica o amor benéfico à sedução perversa e a
arrasta a seu destino. Fedra simboliza a escolha perversa e impura.
Não é, como Medeia, a mulher demoníaca, a feiticeira, que embruxa e
devora o homem. Fedra representa um outro tipo de sedução
perversa e impura: mulher nervosa, histérica, incapaz de um
sentimento justo e ponderado, cujo amor-ódio, ora exaltado, ora
inibido, usa a força do espírito em função da natureza caprichosa e
questionadora de suas exigências. O mito representa esse tipo de
mulher frequentemente sob a forma de uma amazona, que luta
contra o homem, que lhe mata o espírito”14.
Para Diel, por conseguinte, o abandono de Ariadne e o casamento
posterior de Teseu com Fedra intensificam e apressam-lhe o fim
trágico: “O restante do mito é apenas uma ilustração do castigo. Aqui,
como em toda parte, a punição não é exteriormente anexada à
derrota (à culpa), tornando-se-lhe tão somente a consequência
manifesta (a justiça inerente). Ora, a derrota é o começo da
banalização do herói; o castigo será a banalização manifesta [...]. Viuse que a derrota culposa de Teseu é caracterizada por dois aspectos
típicos da perversão banal: a intriga (dominação perversa) e a falsa
escolha (sexualidade pervertida). Estes mesmos aspectos
determinam, aliás, o destino do casal Minos-Pasífae. O herói
ateniense teve, em suma, a mesma sorte que Minos e é por isso que
sua vitória sobre o Minotauro foi apenas efêmera. A sabedoria do rei
foi arruinada pela influência de Pasífae; o impulso heroico de Teseu
será definitivamente destruído pelo que aconteceu com Fedra [...].
O mito do castigo se inicia logo após o retorno do herói. Morto
Egeu, o vencedor do Minotauro assume o poder. As consequências da
influência de Fedra, ilustradas anteriormente pela ascendência de
Pasífae sobre Minos, somente irão surgir depois de certo tempo de
incubação. A força heroica do jovem rei de Atenas ainda lhe mantém
a auréola de sábio. Ele criou instituições públicas, mas essas
realizações intelectuais não poderão substituir o combate do espírito
abandonado daqui por diante. A despeito da organização da vida
exterior, a corrupção interna do herói há de tornar-se, dentro em
pouco, o flagelo da Ática”15.
6
Alguns episódios da maturidade de Teseu estão intimamente
ligados à sua grande amizade com o herói lápita Pirítoo16. Conta-se
que essa fraterna amizade entre o lápita e o ateniense se deveu à
emulação de Pirítoo. Tendo ouvido ruidosos comentários acerca das
façanhas de Teseu, o lápita quis pô-lo à prova. No momento, porém,
de atacá-lo, ficou tão impressionado com o porte majestoso e a figura
do herói da Ática, que renunciou à justa e declarou-se seu escravo.
Teseu, generosamente, lhe concedeu sua amizade para sempre.
Com a morte de Hipodamia, Pirítoo passou a compartilhar mais de
perto das proezas de Teseu. Duas das aventuras mais sérias dessa
dupla famosa no mito foram o rapto de Helena e a catábase ao
Hades, no intuito de raptar também a Perséfone. Os dois episódios,
aparentemente grotescos, traduzem ritos muito significativos: o
rapto de mulheres, sejam elas deusas ou heroínas, fato comum na
mitologia, configura, como se comentou no capítulo VI, 4, p. 119s, do
Vol. I, não só um rito iniciático, mas também o importante ritual da
vegetação: chegados a seu termo os trabalhos agrícolas, é necessário
“transferir a matriz”, a Grande Mãe, para receber a nova porção de
“sementes”, que hão de germinar para a colheita seguinte. A catábase
ao Hades, igualmente assinalada no capítulo III, 3, deste Volume,
simboliza a anagnórisis, o autoconhecimento, a “queima” do que
resta do homem velho, para que possa eclodir o homem novo.
Voltando ao rapto e à catábase, é bom assinalar que os dois heróis,
por serem filhos de dois grandes deuses, Posídon e Zeus, resolveram
que só se casariam dali em diante com filhas do pai dos deuses e dos
homens e, para tanto, resolveram raptar Helena e Perséfone. A
primeira seria esposa de Teseu e a segunda, de Pirítoo. Tudo
começou, portanto, com o rapto de Helena. O herói estava, “à época”,
com cinquenta anos e Helena nem sequer era núbil. Assustados com
a desproporção da idade de ambos, os mitógrafos narraram
diversamente esse rapto famoso. Não teriam sido Teseu e Pirítoo os
raptores, mas Idas e Linceu, que confiaram Helena a Teseu, ou ainda
o próprio pai da jovem espartana, Tíndaro, que, temendo que Helena
fosse sequestrada por um dos filhos de Hipocoonte, entregara a filha
à proteção do herói ateniense.
A versão mais conhecida é aquela em que se narra a ida dos dois
heróis a Esparta, quando então se apoderaram à força de Helena, que
executava uma dança ritual no templo de Ártemis Órtia. Os irmãos
da menina, Castor e Pólux, saíram-lhes ao encalço, mas detiveram-se
em Tegeia. Uma vez em segurança, Teseu e Pirítoo tiraram a sorte
para ver quem ficaria com a princesa espartana, comprometendo-se
o vencedor a ajudar o outro no rapto de Perséfone. A sorte favoreceu
o herói ateniense, mas, como Helena fosse ainda impúbere, Teseu a
levou secretamente para Afidna, demo da Ática, e colocou-a sob a
proteção de sua mãe Etra. Isto feito, desceram ao Hades para
conquistar Perséfone.
Durante a prolongada ausência do rei ateniense, Castor e Pólux, à
frente de um grande exército, invadiram a Ática. Começaram a
reclamar pacificamente a irmã, mas como os atenienses lhes
assegurassem que lhe desconheciam o destino, tomaram uma atitude
hostil. Foi então que um certo Academo lhes revelou o lugar onde
Teseu a retinha prisioneira. Eis o motivo por que, quando das
inúmeras invasões da Ática, os espartanos sempre pouparam a
Academia, o jardim onde ficava o túmulo de Academo.
Imediatamente os dois heróis de Esparta invadiram Afidna,
recuperaram a irmã e levaram Etra como escrava, como já se falou
no Vol. I, p. 118. Antes de abandonar a Ática, colocaram no trono de
Atenas um bisneto de Erecteu, chamado Menesteu, que liderava os
descontentes, particularmente os nobres, irritados com as reformas
de seu soberano, sobretudo com a democracia. Muito bem recebidos
por Plutão, Teseu e Pirítoo, foram, todavia, vítimas de sua
temeridade.
Convidados pelo rei do Hades a participar de um banquete, não
mais puderam levantar-se de suas cadeiras. Héracles, quando desceu
aos Infernos, tentou libertá-los, mas os deuses somente permitiram
que o filho de Alcmena “arrancasse” Teseu de seu assento, para que
pudesse retornar à luz. Pirítoo há de permanecer para sempre
sentado na Cadeira do Esquecimento. Conta-se que, no esforço feito
para se soltar da cadeira, Teseu deixou na mesma uma parcela de seu
traseiro, o que explicaria terem os Atenienses cadeiras e nádegas tão
pouco carnudas e salientes...
O erro fatal dos dois heróis foi o terem se sentado e comido no
mundo dos mortos. Como se mostrou no Vol. I, p. 323s, e no Vol. II, p.
257-258, se o comer configura fixação, o sentar-se implica em
intimidade e permanência. As duas atitudes simbolizam, pois, uma
inadvertência desastrosa cometida pelo lápita e pelo ateniense.
Deveras grotesca é a interpretação evemerista dessa catábase,
relatada por Pausânias. Segundo tal variante, Teseu e Pirítoo, em vez
de terem descido ao Hades, haviam realizado uma simples viagem ao
Epiro, à corte do rei Hedoneu, cujo nome teria sido confundido com o
de Hades... Por “coincidência”, a esposa do rei do Epiro chamava-se
Perséfone e a filha do casal, Core. Um cão feroz guardava-lhe o
palácio: seu nome era Cérbero!
Os heróis apresentaram-se a Hedoneu e pediram-lhe a mão de
Core, acrescentando que se casaria com ela aquele que vencesse ao
cão Cérbero. Na realidade, o que desejavam, uma vez adquirida a
confiança do rei, era raptar-lhe a esposa e filha. Percebendo-lhes as
intenções, o soberano mandou metê-los na prisão. Pirítoo, por ser
considerado mais desavergonhado e cínico, foi lançado a Cérbero,
que o devorou de uma só bocada. Teseu continuou preso. Certo dia,
tendo Héracles, grande amigo de Hedoneu, passado pelo Epiro,
solicitou ao rei a liberdade de Teseu, que, de imediato, foi solto e
regressou a Atenas...
Para Paul Diel, Pirítoo é um aventureiro fanfarrão, que, “prestes a
enfrentar Teseu, se declara, por enleio, um seu escravo [...]. Tomandoo por amigo inseparável, o herói de Atenas deixa claro que sua
própria ‘queda’ está próxima e será definitiva [...]. Juntos raptam
Helena, mas tratam-na como se fora um espólio, o produto de uma
caçada, e é pela sorte que decidem a quem a mesma pertencerá. [...]
Teseu, como êmulo de Pirítoo, comporta-se como um autêntico
bandido. E não o faz como no episódio de Minos, em que deixa
patente a malícia de suas intenções secretas, quando fica bem claro o
ruidoso cinismo de seus crimes. A partir desse momento é impossível
recuar. A íngreme encosta inclina-se para o abismo. Teseu fracassará
no mais profundo dos abismos, o Hades, símbolo da legalidade do
inconsciente”17. Se Pirítoo fica emaranhado na própria cadeira em
que se sentou, Teseu é “salvo”, graças a Héracles. Todo o esforço do
filho de Alcmena, no entanto, foi em vão: reconduz apenas um
“espírito morto” ao mundo dos vivos. A liberação foi passageira. O
herói de Atenas desperta unicamente para sucumbir em definitivo.
A falsa escolha de Teseu, Fedra, torna-se o instrumento de sua
punição.
Omitindo a figura de Pirítoo, o Dr. Henderson é menos severo com
o herói ateniense. Comentando-lhe a “descida” ao Labirinto, a morte
do Minotauro e o rapto de Ariadne, escreve o psiquiatra norteamericano: “Teseu e Perseu tiveram que vencer seu medo aos
demoníacos poderes inconscientes maternos e libertar dos mesmos a
uma jovem figura feminina. Perseu cortou a cabeça da Górgona
Medusa, que com o olhar terrível transformava em pedra a quantos
contemplasse. Em seguida venceu o dragão que guardava
Andrômeda. Teseu representa o jovem espírito patriarcal ateniense
que arrostou os terrores do Labirinto com seu Minotauro, o qual
possivelmente simboliza a decadente Creta matriarcal. Em todas as
culturas o labirinto configura uma representação intrincada e
confusa do mundo da consciência matriarcal: somente pode
atravessá-lo quem está disposto a uma iniciação especial no mundo
misterioso do inconsciente coletivo. Após levar de vencida esse
perigo, Teseu resgatou Ariadne, donzela sequestrada. Tal resgate
simboliza a liberação da anima do aspecto devorador da imagem
materna. Enquanto não se consegue tal proeza, o homem não pode
alcançar sua verdadeira capacidade para relacionar-se com o sexo
oposto”18.
7
Retornando da outra vida, o herói encontrou Atenas dilacerada
por lutas internas e pelas facções políticas. Entristecido com seus
concidadãos e sem mais vigor para lutar, desistiu de tentar reassumir
as rédeas do poder.
É precisamente sob esse aspecto que se tem que concordar com
Paul Diel: onde estão a timé e a areté do filho de Posídon? Esgotaramse no triste abandono de Ariadne e no trágico acidente de Fedra ou
dissolveram-se nas trevas do Hades? A catábase teria deixado de ser
uma escalada para a luz? Assim parece, realmente. Após o abandono
criminoso de Ariadne e o funesto casamento com Fedra, Teseu, cego
pela calúnia e pelo medo de perder o trono, torna-se tão tirânico, que
faz perecer seu próprio filho. Repete-se o sacrifício monstruoso,
outrora praticado por Minos contra os atenienses. Tentando
extingui-lo, o herói acaba por renová-lo. É a derrocada irremediável.
Desistindo, pois, de lutar, o rei de Atenas, após enviar secretamente
seus filhos para Eubeia, onde reinava Elefenor, amaldiçoou Atenas e
retirou-se para a ilha de Ciros. O rei local, Licomedes, aliás parente
do herói, temendo que Teseu reivindicasse a posse da ilha, onde
possuía muitos bens, levou-o ao cume de um penhasco, à beira-mar,
sob o pretexto de mostrar-lhe o panorama da ilha, e o precipitou,
pelas costas, no abismo.
A morte trágica de Teseu, como é de praxe no mundo heroico,
talvez configure o regressus ad uterum do filho de Etra, que, a essas
alturas, como escrava de Helena, fora levada para Troia. Lançado do
píncaro de um rochedo ao mar, domínio de seu pai Posídon, o herói
teve sua catarse final.
Curiosamente, a morte traiçoeira de seu rei não provocou da parte
dos atenienses nenhuma reação...
Menesteu, como desejavam os Dioscuros, continuou a reinar em
Atenas. Os dois filhos do herói, Ácamas e Demofoonte, participaram
da Guerra de Troia como simples combatentes. Com a morte de
Menesteu, regressaram a Atenas e retomaram o trono, que de direito
lhes pertencia.
Um herói, como já se disse na Introdução, só é, as mais das vezes,
condignamente reconhecido após a morte, quando se torna daímon,
um verdadeiro héros, um intermediário entre os imortais e os
homens.
O rei de Atenas, mais cedo do que se esperava, mostrou a seus
ingratos concidadãos que continuava a ser herói. Durante a batalha
de Maratona, em 480 a.C., contra os persas invasores, como
igualmente se comentou na Introdução, os hoplitas atenienses
perceberam que um herói, de porte gigantesco, combatia à sua frente.
Era o eídolon de Teseu que, mais uma vez, defendia sua Atenas. Após
as guerras greco-pérsicas, o Oráculo de Delfos ordenou aos
atenienses que recolhessem as cinzas do herói e lhes dessem
sepultura no interior da Pólis. Tão honrosa tarefa coube ao grande
general de Atenas, Címon. Este, tendo conquistado a ilha de Ciros,
viu uma águia que, pousada sobre um montículo, rasgava a terra
com suas unhas aduncas. O general compreendeu bem a significação
do prodígio. Mandou escavar o túmulo e encontrou a ossada de um
homem de altura gigantesca e junto da mesma uma lança de bronze
e uma espada. Essas relíquias foram solenemente transportadas para
Atenas e, em meio a grandes festas, se lhes deu sepultura condigna.
Seu túmulo magnífico, na cidade de Palas Atená, tornou-se abrigo
inviolável dos escravos fugitivos e dos oprimidos. É que Teseu, em
vida, fora o campeão da democracia, o refúgio e o baluarte dos
injustiçados.
Em conclusão, muitos dos episódios descritos da saga de Teseu são
provas iniciáticas: a penetração no Labirinto e sua luta com o
Minotauro são um tema exemplar das iniciações heroicas. Sua união
com Ariadne, hipóstase de Afrodite, é, na realidade, uma hierogamia.
A catábase ao Hades é o exemplar típico de um regressus. Tomadas
em bloco, as gestas do décimo rei de Atenas são transposições de um
ritual arcaico que marcava o retorno dos efebos à cidade, após as
provas iniciáticas a que eram submetidos no campo, nas montanhas
ou nas florestas.
2. Segundo alguns intérpretes, a resposta oracular significava que Apolo proibia que o rei,
antes de retornar a Atenas, tivesse qualquer contato sexual fosse com que mulher fosse.
3. DIEL, Paul. Le symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot, 1966, p. 182.
4. Diel faz uma aproximação etimológica, aliás indevida e arbitrária, entre Perifetes (o que
muito fala ou o muito célebre) e peripécia (a passagem de um estado a outro contrário). Em
todo caso, o objetivo do autor é chamar a atenção para a transformação, a “peripécia” de
Teseu.
5. Ibid., p. 184s.
6. Veja-se Introdução, cap. 1,7.
7. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 980.
8. Ibid., p. 183. Importa lembrar que o termo “banalização”, conforme apontou Gaston
Bachelard em seu prefácio ao Symbolysme dans la mythologie grecque, é empregado por Diel
para refletir “o esquecimento das necessidades da alma em favor exclusivo das necessidades
do corpo”.
9. Ibid., p. 786.
10. A atitude de Medeia em relação a Teseu, embora não se possa justificar, pode ser
explicada: temendo, de um lado, que o amor do marido fosse repartido com o filho (Medeia
sempre viveu em desamor) e receando, de outro, perder o poder, coisa de que a mulher é
muito ciosa, quando o detém, resolveu novamente tomar uma atitude extrema. Quanto ao
destino da exesposa de Jasão e Egeu, pouco se conhece. Sabe-se, apenas, que, tendo retornado
à Cólquida, matou a seu tio Perses, que lhe havia destronado o pai Eetes, que ela, aliás,
recolocou no trono.
11. DIEL, Paul. Op. cit., p. 188ss.
12. Ibid., p. 190 e 191.
13. Pritaneu era um edifício público de Atenas, uma espécie de “Lareira Comum”, onde se
homenageavam atenienses e embaixadores estrangeiros.
14. Ibid., p. 191s.
15. Ibid., p. 194.
16. Pirítoo é um herói lápita, filho de Zeus e Dia, ou, segundo outros, de Ixíon e da mesma
Dia. Desde a Ilíada, I, 262ss, Pirítoo, juntamente com Teseu e outros heróis, é considerado
como o vencedor dos Centauros, aliás seus meios-irmãos, desde que se adote a variante de
sua genealogia como filho de Ixíon, já que este último era igualmente pai dos Centauros com
o eídolon de Hera, segundo se mostrou no cap. XIII, 2, p. 298s, do Vol. I. Presentes ao
casamento de seu meio-irmão com Hipodamia, os Centauros, excitados pelo vinho,
tentaram raptar-lhe a noiva, o que deu origem à luta sangrenta entre os lápitas, comandados
por Pirítoo, Teseu e outros grandes heróis, e os monstruosos Centauros. A vitória decisiva
dos lápitas selou ainda mais a amizade entre Teseu e Pirítoo.
17. Ibid., p. 194s.
18. JUNG, C.G. et al. Man and his Symbols. London: Aldus Books, 1969, p. 125.
CAPÍTULO V
Jasão: o Mito dos Argonautas
1
JASÃO, em grego Ἰάσων, provém etimologicamente, consoante
Carnoy, da raiz indo-europeia eis-, is-, que expressa a ideia de curar:
com efeito, Ἶασις (íasis) é cura. Como discípulo de Quirão, acentua o
filólogo belga, sejam quais forem as aventuras posteriores do herói,
Jasão1está, ao menos do ponto de vista etimológico, ligado à
medicina. O mesmo, aliás, se poderia dizer de seu pai Esão, em grego
Αἴων (Aíson), “o que cura, reanima”.
Filho de Esão2 e de Polímede ou Alcímede, muito menino ainda,
sofreu as amarguras do exílio. É que seu pai, legítimo herdeiro do
reino de Iolco, fora destronado e condenado à morte por seu meioirmão usurpador Pélias, filho de Tiro e Posídon. Narra uma outra
versão que Esão, já idoso, havia confiado o reino a Pélias, até que
Jasão atingisse a maioridade. Educado pelo centauro Quirão, foi
instruído, entre outras artes, na iátrica. Completada a iniciação, no
aprazível monte Pélion, o herdeiro do trono de Iolco, já com vinte
anos, deixou o mestre, desceu o monte e retornou à cidade natal. Sua
indumentária era estranha: coberto com uma pele de pantera, levava
uma lança em cada mão e tinha apenas o pé direito calçado com uma
sandália. O rei, que no momento se preparava para oferecer um
sacrifício, o viu e, embora não o tivesse reconhecido, ficou muito
assustado, porque se lembrou de um oráculo segundo o qual “deveria
desconfiar do homem que tivesse apenas uma sandália”, isto é, de um
μονοσάνδαλος (monosándalos), como diz Apolodoro.
Jasão permaneceu cinco dias com o pai e no sexto apresentou-se ao
tio e reclamou o trono, que, de direito, lhe pertencia. Pélias
concordou, desde que Jasão lhe trouxesse da Cólquida o Velocino de
Ouro, que estava em poder de Eetes. Consoante uma variante, foi o
próprio herói que se obrigou a tão grande empresa.
Segundo outras versões, a tarefa imposta a Jasão pelo tio
obedeceria a outras razões: quando o herói se apresentou a Pélias
para reclamar o trono, o soberano, observando que o sobrinho usava
tão somente uma sandália, compreendeu que o perigo anunciado
pelo oráculo era iminente. Mandou que Jasão se aproximas-se e
perguntou-lhe que castigo infligiria, se fosse rei, à pessoa que o
ameaçasse. O jovem respondeu que a mandaria conquistar o velocino
de ouro; ao que o soberano, de imediato, o despachou para realizar
tamanho empreendimento, pois era ele próprio que punha em risco a
vida do soberano.
Alguns mitógrafos posteriores, mas sobretudo poetas, julgam que a
ideia da conquista do precioso velocino fora sugerida ao herói pela
deusa Hera que, profundamente irritada com Pélias, porque este não
lhe prestava as honras devidas, queria encontrar um meio de trazer
Medeia, a fim de que a mágica da Cólquida o matasse.
Seja qual for o móvel da expedição, o filho de Esão ordenou que um
arauto convocasse príncipes e heróis para o magno cometimento.
2
Antes de se comentar a Expedição dos Argonautas, vamos abrir
um parênte-se para explicar a origem e o destino do velocino de
ouro.
Éolo, filho de Hélen e da ninfa Orseis e, por conseguinte, neto de
Deucalião e Pirra, tinha doze filhos, um dos quais Átamas, segundo se
pode constatar no quadro genealógico no final do capítulo V.
Átamas era rei de Orcômeno ou mesmo de Tebas. Seu mito se tornou
matéria-prima de várias tragédias, enriquecendo-se, desse modo,
com episódios complexos, não raro contraditórios. Casou-se três
vezes e é a história desses casamentos que serviu de pretexto para
desdobramentos romanescos, de um mito mais antigo. Na versão
mais conhecida e que certamente remonta à tragédia Frixo de
Eurípides, hoje perdida, o rei beócio uniu-se em primeiras núpcias a
Néfele, que lhe deu um casal de filhos, Frixo e Hele. Tendo repudiado
a primeira esposa, casou-se com Ino, filha de Cadmo, lendário
fundador de Tebas. Ino foi mãe igualmente de dois filhos, Learco e
Melicertes. Enciumada com os filhos do primeiro matrimônio de
Átamas, concebeu o projeto de eliminá-los. Para tanto convenceu as
mulheres tebanas que, às escondidas dos maridos, grelhassem todos
os grãos de trigo existentes. Semeados estes, não houve brotação. Face
a semelhante prodígio, o rei mandou consultar o Oráculo de Delfos.
Ino subornou os mensageiros, para que dissessem que a Pítia, para
fazer cessar tão grande castigo, exigia o sacrifício de Frixo e, segundo
outras fontes, deste e de Hele. Já os dois se encaminhavam para o
altar, quando Zeus, ou, conforme outras fontes, Néfele, lhes enviou
um carneiro voador de velo de ouro, filho de Posídon e presente de
Hermes, que conduziu Frixo até a Cólquida, porque Hele, por causa
de uma vertigem, caiu no mar, no estreito chamado, por isso mesmo,
Helesponto, isto é, Mar de Hele, fato imortalizado por Ovídio, Fastos,
3,857s. Tendo chegado à corte de Eetes, na Cólquida, Ásia Menor, foi
muito bem recebido pelo soberano, que lhe deu a filha Calcíope em
casamento. Antes de retornar à Hélade, Frixo sacrificou o carneiro a
Zeus e ofereceu o velo de ouro ao rei, que o consagrou ao deus Ares,
cravando-o num carvalho, no bosque sagrado do deus da guerra.
Uma outra versão, devida a Higino, conta que Eetes matou a Frixo,
seja em função da auri sacra fames, seja porque um oráculo lhe havia
predito a morte nas mãos de um descendente de Éolo.
De qualquer forma, é esse velocino de ouro que vai dar origem à
famosa expedição dos argonautas3.
3
Convocados por um arauto através da Grécia inteira,
apresentaram-se mais de cinquenta heróis para participar da
arriscada missão. Diferentes Catálogos, que, na realidade, diferem
muito uns dos outros, conservaram os nomes dos valorosos
componentes da expedição. Dois dentre eles são muito importantes,
o de Apolônio de Rodes e o de Apolodoro, não só porque fixam o
número dos heróis entre cinquenta e cinquenta e cinco, mas
sobretudo porque, além de serem independentes entre si, arrolam
um número apreciável de nomes, o que refletiria o fundo mais
estável e possivelmente mais antigo do mitologema.
Além de Jasão, que comandava a expedição, aparecem Argos, filho
de Frixo, ou de Arestor, segundo outros, como construtor do navio, e
Tífis, como piloto. Este último recebeu tão honrosa função por
ordem de Atená, que lhe ensinou a arte da navegação, até então
desconhecida. Com a morte do piloto nas terras dos Mariandinos, na
Bitínia, seu posto foi ocupado por Ergino, filho de Posídon. Vinha, em
seguida, o músico e cantor da Trácia, Orfeu, cuja função não era
apenas a de dar cadência aos remadores, mas ainda, e
principalmente, a de evitar, com sua voz divina, a sedução do canto
das sereias. Dentre tão célebres protagonistas destacam-se também
os adivinhos Ídmon, Anfiarau e, no Catálogo de Apolodoro, o lápita
Mopso. Desejosos e preparados para quaisquer agônes a nau
Argo4levava ainda a bordo muitos outros heróis destemidos como
Zetes e Cálais, Castor e Pólux, Idas e Linceu e o arauto da expedição,
Etálides, um dos filhos de Hermes. Dentre os heróis de “menor porte”
é bastante citar Admeto, Acasto, filho de Pélias, Periclímeno, Astério,
o lápita Polifemo, Ceneu, Êurito, Augias, Cefeu... Em ambos os
Catálogos figura Héracles, mas ligado apenas a um episódio da
viagem, o rapto de seu jovem companheiro Hilas pelas ninfas, na
Mísia, o que acarretou o desespero do herói, que não mais prosseguiu
na expedição.
O navio Argo foi lançado ao mar, na praia de Págasas, na Tessália,
em cerimônia solene e concorrida. Após um sacrifício a Apolo, Jasão
içou a vela e Argo singrou em direção à Cólquida. Os auspícios eram
favoráveis, pressagiava Ídmon, segundo quem apenas ele dentre os
grandes heróis pereceria no trajeto, retornando todos os demais.
A primeira escala foi na ilha de Lemnos, onde se uniram às
lemníades, dando-lhes filhos, uma vez que estas haviam assassinado
todos os maridos, conforme se comentou no Vol. I, p. 233s.
Navegaram, em seguida, em direção à ilha de Samotrácia, e aí, a
conselho de Orfeu, todos se iniciaram nos Mistérios dos Cabiros5.
Penetrando no Helesponto, chegaram à cidade de Cízico, na terra dos
Dolíones. O rei, homônimo da cidade, os recebeu hospitaleiramente,
oferecendo-lhes, além de muitos presentes, um grande banquete. Na
noite seguinte os argonautas partiram, mas uma grande tempestade
fê-los retornar a Cízico. Os Dolíones, não tendo reconhecido os seus
hóspedes da véspera e julgando tratar-se de piratas pelasgos, que
frequentemente lhes pilhavam a cidade, atacaram-nos com todos os
seus homens disponíveis. Travou-se uma grande batalha. Cízico,
tendo corrido em defesa dos seus, foi morto por Jasão, que lhe
atravessou o peito com a lança. A carnificina continuou, até que, com
o nascer do dia, ficou esclarecido o terrível equívoco.
Jasão mandou organizar funerais suntuosíssimos em memória de
Cízico e, durante três dias, os argonautas entoaram lamentações
fúnebres e fizeram jogos em sua honra. Tendo a jovem rainha Clite se
enforcado, por causa da morte do esposo, as ninfas a choraram tão
intensamente, que de suas lágrimas se formou a fonte Clite. Como
nova borrasca os impedisse de partir, os marinheiros de Argo (tal é a
etimologia de argonauta, de Ἀργώ [Argo], Argo e ναύτης [naútes],
marinheiro) ergueram sobre o monte Díndimon, a cavaleiro de
Cízico, uma estátua de Cibele, a Grande Mãe oriental, a mãe dos
deuses, a fim de que esta lhes propiciasse um bom tempo. Navegando
mais para leste, chegaram às costas da Mísia. Enquanto recebiam
presentes de hospitalidade da acolhedora população e preparavam o
almoço, Héracles, que havia quebrado o remo, tal a força com que
feria as águas, dirigiu-se a uma floresta vizinha, a fim de preparar
um outro. O lindíssimo Hilas, que o acompanhava na expedição, se
afastou igualmente com a finalidade de procurar água doce para
preparar os alimentos e não mais retornou. É que tendo se
aproximado de uma fonte, as ninfas náiades, extasiadas com a beleza
do jovem, o arrastaram para as profundezas das águas, talvez para
imortalizá-lo. Polifemo, tendo-lhe ouvido o grito, correu em seu
auxílio. Encontrando a Héracles, que retornava da floresta, ambos se
puseram a procurar Hilas. Durante a noite inteira erraram nos
bosques e nas florestas e, pela manhã, quando Argo partiu, os dois
não estavam a bordo. O destino não permitiu que os dois heróis
participassem da conquista do velocino de ouro. Polifemo fundou
nas vizinhanças a cidade de Cios e Héracles retornou sozinho às suas
grandes tarefas.
Argo, após uma longa travessia, aportou na terra dos bébricos, cujo
rei Âmico, um gigante, filho de Posídon, era miticamente o inventor
do pugilato. Atacava os adventícios que passassem pela Bitínia e os
matava a soco. Tão logo chegaram os argonautas, o brutamontes os
desafiou. Pólux aceitou a justa, cujo preço era a vida do vencido.
Apesar da estatura e da força brutal de Âmico, Pólux, usando de
extrema habilidade e astúcia, o venceu. Não lhe tirou a vida, mas fêlo prometer, sob juramento, que doravante respeitaria os
estrangeiros. Consoante outras versões, houve uma batalha geral
entre os argonautas e os bébricos, que, derrotados, fugiram em todas
as direções.
Na manhã seguinte Argo retomou seu caminho, mas impelida por
grande borrasca, antes de penetrar no Bósforo, a nau ancorou nas
costas da Trácia, isto é, na margem europeia do Helesponto, onde
reinava Fineu, o mântico cego, filho de Posídon e cujo mito foi
narrado no Vol. I, p. 249-250. Os argonautas, após a vitória de Cálais
e Zetes sobre as Harpias, foram bem instruídos por Fineu acerca do
perigo que para eles representavam as temíveis Ciâneas, os Rochedos
Azuis, também denominados Sindrômades ou Simplégades, vale
dizer, “que se entrechocam”. Tratava-se, disse-lhes Fineu, de dois
recifes móveis, que, à passagem de qualquer coisa entre ambos,
fechavam-se violentamente, esmagando fosse o que fosse.
Era necessário, aconselhou-lhes o mântico, fazer-se preceder por
uma pomba: se esta cruzasse os terríveis Rochedos Azuis, era sinal de
que a Moîra lhes permitiria igualmente transpô-los; caso contrário,
que desistissem da empresa.
Seguindo à risca a advertência de Fineu, ao se aproximarem das
Simplégades, soltaram uma pomba, que conseguiu ultrapassá-las,
mas, assim mesmo, ao se fecharem, as Ciâneas cortaram as pontas
das penas maiores da cauda da ave. Os argonautas esperaram que os
rochedos novamente se abrissem e remaram com todas as forças,
logrando atravessá-los. Apenas a popa de Argo, como a cauda da
pomba, foi ligeiramente atingida. Após essa passagem vitoriosa, as
Simplégades se imobilizaram, porquanto a Moîra havia determinado
que, no dia em que um navio lograsse passar entre elas, as
Sindrômades jamais se fechariam.
Penetrando, desse modo, no Ponto Euxino, no Mar Negro, os heróis
da nau Argo chegaram à região dos Mariandinos e foram muito bem
recebidos pelo rei Lico. Foi lá que, numa caçada, morreu o adivinho
Ídmon, ferido por um javali. Faleceu também, entre os Mariandinos,
o piloto Tífis, sendo, de imediato, substituído, como já se mencionou,
por Ergino.
Prosseguindo em sua viagem, os argonautas atingiram a foz do rio
Termodonte, junto ao qual, dizia-se, residiam as Amazonas.
Contornando o Cáucaso, navegaram diretamente para a Cólquida, na
embocadura do rio Fásis, que marcava o fim de sua viagem de ida...
Antes de se passar às gestas de Jasão na Cólquida, uma palavra
sobre a pomba, que logrou primeiro transpor o que até então nada
havia conseguido ultrapassar, e um ligeiro comentário sobre os
Rochedos Azuis.
Consoante J. Chevalier e A. Gheerbrant, a pomba é
fundamentalmente um símbolo de pureza, de simplicidade e,
quando se torna portadora do ramo de oliveira a Noé, configura
igualmente a paz, a harmonia, a esperança, o reencontro da
felicidade. Como a maioria das representações de animais alados na
mesma área cultural, pode-se afirmar que a pomba traduz a
sublimação do instinto e, especificamente, de éros.
Numa acepção pagã, que valoriza diferentemente a noção de
pureza, ela não se opõe ao amor carnal, pois que, como ave de
Afrodite, representa a plenitude amorosa de tudo quanto o amante
oferece ao objeto de seu desejo.
Todas essas significações, diferentes apenas na aparência, fazem
que a pomba acabe por traduzir o que existe de imortal no homem, o
sopro vital, a psiqué, a alma. Em alguns vasos funerários gregos a ave
de Afrodite é representada bebendo num pequeno recipiente, que
simboliza a fonte da memória. Na iconografia cristã, além da
simplicidade, da doçura e da pureza, a pomba simboliza igualmente
a alma. O inesquecível cardeal Jean Daniélou, citando S. Gregório de
Nissa, diz que “na medida em que a alma se aproxima da luz, torna-se
mais bela e toma a forma de uma pomba”6.
Logrando transpor o vão mortal das Simplégades, a pomba traduz
o aprimoramento de um outro nível, a vitória sobre a morte, se bem
que algo ainda falte, porquanto as penas maiores foram “queimadas”
pelo entrechoque ígneo dos rochedos. A popa de Argo também
danificada, embora levemente, pelas Sindrômades, atesta que os
heróis ainda não atingiram o nível iniciático desejável.
Quanto às Simplégades, recifes móveis, que se entrechocam,
configuram um perigo mortal: ultrapassá-las é fixá-las, vencê-las
para sempre, embora, nessa ultrapassagem, sempre se deixe um
“pouco do pelo”. Mas a ameaça mortal, configurada pelas Ciâneas, e
cuja transposição é incerta e irregular, traduz algo fortemente
anxiógeno. “O rochedo, o túnel, estão na categoria do terrificante,
como o relâmpago, o trovão e a tempestade. A imagem desses
rochedos móveis, frequente nos sonhos, traduz o medo de um
fracasso, de uma agressão, de uma dificuldade e expressa uma
angústia. Esta, no entanto, como prova o mito dos argonautas, pode
ser debelada por uma inteligência justa e precavida, pela descoberta
da solução e pela aceitação prévia de que se corre um risco, ao menos
de deixar “alguns pelos” pelo caminho... A consciência refletida pode,
destarte, vencer o terror inconsciente. Cumprida a operação, a causa
da angústia se dissipa.
As Simplégades simbolizam, pois, as dificuldades que podem ser
dominadas por uma decisão e uma coragem inteligente. Símbolo
paradoxal, como o túnel e tantos outros, mostra simultaneamente a
dificuldade e a solução, a travessia pelo interior de um obstáculo e
ilustra a dialética simbólica, tão frequentemente evocada por Mircea
Eliade, da coincidência dos opostos7.
4
Atingida a Cólquida, os argonautas puderam, finalmente, respirar
por alguns dias em paz. A grande tarefa, a conquista do velocino de
ouro, cabia ao herói Jasão. Este, de imediato, dirigiu-se à corte de
Eetes, irmão de Circe e Pasífae, e pai de Calcíope, Medeia e Apsirto,
dando-lhe ciência da missão que o trazia à Ásia. O rei, para livrar-se
de um importuno, prontificou-se a devolver-lhe o precioso velocino,
desde que o pretendente ao trono de Iolco executasse quatro tarefas,
que, diga-se logo, nenhum mortal poderia sequer iniciar, a não ser
que a grande faísca de eternidade, o amor, que transmuta impossíveis
em possíveis, aparecesse! As provas impossíveis para qualquer ser
humano eram as seguintes: pôr o jugo em dois touros bravios,
presentes de Hefesto a Eetes, touros de pés e cornos de bronze, que
lançavam chamas pelas narinas, e atrelá-los a uma charrua de
diamante; lavrar com eles uma vasta área e nela semear os dentes do
dragão morto por Cadmo na Beócia, presentes de Atená ao rei; matar
os gigantes que nasceriam desses dentes; eliminar o dragão que
montava guarda ao Velocino, no bosque sagrado do deus Ares.
Perplexo face às tarefas impostas, que teriam que ser realizadas
num só dia, de sol a sol, o herói estava pronto para retornar a Iolco,
quando surgiu Medeia, mágica consumada, que, apaixonada por ele,
talvez por artimanhas da deusa Hera, comprometeu-se a ajudá-lo a
vencer todas as provas. Sob juramento solene de casamento e de
levá-la para a Grécia, repetindo-se, desse modo, o episódio de
Ariadne e Teseu, Jasão recebeu de Medeia todos os recursos
necessários para uma vitória completa. Deu-lhe a filha de Eetes um
bálsamo maravilhoso com que o herói untou o corpo e as armas,
tornando-os invulneráveis ao ferro e ao fogo. Recomendou-lhe ainda
que, tão logo nascessem os gigantes dos dentes do dragão, atirasse, de
longe, uma pedra no meio deles. Os monstros começariam a se
acusar mutuamente do lançamento da pedra, o que os levaria a lutar
uns contra os outros, até se exterminarem por completo.
Tudo aconteceu conforme desejava a paixão de Medeia. Restava
apenas vencer o dragão no bosque de Ares. A mágica fê-lo adormecer
com seus sortilégios e Jasão o atravessou com sua lança, apossandose do velocino de ouro. Face à recusa de Eetes, que se negou a cumprir
a promessa feita, e ainda ameaçou incendiar a nau Argo, Jasão fugiu
com Medeia, que levara seu jovem irmão Apsirto como refém.
Quando o rei descobriu a fuga de Jasão e Medeia com o velocino,
pôs-se imediatamente ao encalço da nau Argo. Medeia, que previra
essa perseguição, esquartejou Apsirto, espalhando-lhe os membros
em direções várias. Eetes perdeu muito tempo em recolhê-los e,
quando terminou a dolorosa tarefa, era tarde demais para perseguir a
“ligeira” nau Argo. Assim, com os membros ensanguentados do filho,
Eetes velejou até o porto mais próximo, o de Tomos, na foz do rio
Íster, e ali os enterrou. Antes de regressar à Cólquida, porém, enviou
vários navios em perseguição dos argonautas, advertindo seus
tripulantes de que, se regressassem sem Medeia, pagariam com a vida
em lugar dela.
Segundo uma outra versão, Eetes enviara Apsirto com um exército
em perseguição dos fugitivos, mas tendo-se este adiantado muito,
deixando o exército para trás, Jasão o teria assassinado,
traiçoeiramente, com auxílio de Medeia, no templo de Ártemis, na
embocadura do Íster, isto é, do Danúbio inferior.
Seja como for, os argonautas navegaram em direção ao Danúbio e,
subindo o majestoso rio, chegaram ao Adriático, pois, à época da
elaboração dessa variante do mito, o Íster era considerado como uma
artéria fluvial, que ligava o Ponto Euxino ao Adriático. Zeus, irritado
com a morte de Apsirto, enviou uma grande tempestade, que desviou
a Argo de sua rota. Foi então que a nau começou a falar e revelou a
cólera do deus, acrescentando que esta perseguiria os argonautas, até
que fossem purificados por Circe. Foi assim que a nau subiu o rio
Erídano (Pó) e o Ródano, através da região dos lígures e dos celtas. De
lá, retomou o Mediterrâneo e, costeando a Sardenha, chegou à ilha de
Eeia, reino de Circe. A mágica e tia de Medeia purificou os
argonautas e manteve uma longa entrevista com a sobrinha, mas se
recusou peremptoriamente a hospedar Jasão em seu palácio. Da ilha
de Circe, Argo retomou seu curso errante, mas a partir de então,
guiada por Tétis, a pedido de Hera, atravessou sem incidentes
maiores o Mar das Sereias. É que Orfeu entoou ao som de sua lira
uma canção tão bela, que os argonautas não lhes deram a menor
atenção ao canto mavioso e mortal. Apenas Butes se deixou
“encantar” e a nado chegou aos rochedos dessas mágicas
antropófagas. Afrodite, todavia, o salvou e transportou para Lilibeu,
na costa ocidental da Sicília. Passando por Cila e Caribdes, chegaram
à ilha de Corcira, hodiernamente Corfu, reino dos Feaces, governado
por Alcínoo e sua esposa Arete. Lá, algo de sério e grave aguardava os
argonautas. Uma nau, enviada por Eetes, em perseguição aos
fugitivos, chegara antes de Argo à ilha de Alcínoo. Os súditos de
Eetes, sobretudo porque estavam com a vida em jogo, pressionaram
violentamente o rei, para que lhes entregasse Medeia. O soberano,
após consultar Arete (ao que parece, como se pode observar “mais
tarde” na Odisseia, o regime vigente em Corcira era bem matriarcal),
respondeu-lhes que entregaria a filha de Eetes, desde que ela, uma
vez examinada, ainda fosse virgem. Mas, se a mesma já fosse mulher
de Jasão, deveria permanecer com ele.
Arete, secretamente, fez saber a Medeia a decisão do casal real e
Jasão se apressou em fazer da noiva sua mulher. Desse modo, Medeia
permaneceu com o esposo. Os nautas da Cólquida, não ousando
retornar à pátria, radicaram-se em Corcira e os argonautas
retomaram os caminhos do mar. Tão logo deixaram a ilha dos
Feaces, violenta borrasca os lançou contra os Sirtes, dois perigosos
recifes na costa norte da África. Tiveram, com isso, que transportar
sobre os ombros a nau Argo até o lago Tritônis. Graças ao deus do
Lago, Tritão, os destemidos marinheiros encontraram uma saída
pelo mar e navegaram em direção a Creta. Na ilha de Minos, os
nautas de Argo foram, a princípio, impedidos de desembarcar pelo
monstruoso gigante Talos, de que se falou no Vol. I, p. 184s, só o
conseguindo graças aos sortilégios de Medeia, que, tendo descoberto
o ponto vulnerável do corpo do monstro, provocou-lhe a morte. Para
agradecer a vitória sobre Talos, ergueram um santuário a Atená
minoica e, ainda pela manhã, voltaram ao bojo macio do mar.
Repentinamente, porém, foram envolvidos por uma noite escura e
misteriosa e ninguém mais tinha noção de onde estava. Jasão
implorou Febo Apolo para que lhes mostrasse a rota em meio à total
escuridão. O deus ouviu-lhe a súplica e lançou uma fresta de luz que,
como um farol, guiou a nau Argo até uma das ilhas Espórades, onde
lançaram âncora.
A essa ilha deram o nome de Ἀνάφη (Anáphe), nome interpretado
em etimologia popular como ilha da “Revelação”. A derradeira escala
de Argo foi na ilha de Egina. Daí, contornando a ilha de Eubeia,
chegaram finalmente a Iolco, completando um périplo de quatro
meses.
De imediato, Jasão levou a nau Argo para Corinto e a consagrou a
Posídon, como ex-voto.
O mitologema de Jasão e dos argonautas, cuja redação é anterior à
da Odisseia, como se depreende das palavras de Circe a Ulisses, ao
descrever-lhe o perigo que representavam as Πλαγκταί (Planktái),
as Planctas (Odiss., XII, 59-61), os ameaçadores recifes errantes, que só
a altaneira nau Argo, que todos celebram, conseguiu atravessar, em
seu regresso do reino de Eetes (Odiss., XII, 69-70), acabou por tornarse muito popular, formando um vasto ciclo.
Como os poemas homéricos, as gestas dos bravos argonautas
serviram de matéria-prima a poemas épicos como as Argonáuticas,
em quatro cantos, do poeta da época alexandrina Apolônio de Rodes
(295-215 a.C.) e Argonautica, igualmente poema épico, em oito
cantos, do vate latino da época imperial, sécuxxlo I, d.C., Caio Valério
Flaco Setino Balbo8, a poemas de cunho lírico, como as cartas 6 e 12
das Heroides de Ovídio e as tragédias, como a portentosa Medeia de
Eurípides (séc. V a.C.).
5
Consagrada, em Corinto, a nau Argo a Posídon, Jasão retornou a
Iolco e enxxtregou o velocino de ouro a Pélias. A partir desse
momento são muitas as tradixxções e variantes. Afirmam alguns
mitógrafos que Jasão assumiu o poder em Iolxxco, em lugar do tio, e
viveu tranquilamente em seu reino, tendo com Medeia apenas um
filho, Medeio, conforme a Teogonia, 1001, o qual foi entregue aos
cuidados de Quirão. Outros atribuem-lhe uma filha, Eriópis, a de
“olhos grandes”. A tradição trágica nomeia dois, Feres e Mérmero.
Diodoro aumenta o número para três: Téssalo, Alcímenes e Tisandro.
A versão mais seguida, no entanto, é a que aponta Medeia como a
grande “vingadora de Iolco”. A mola mestra da ação criminosa da
mágica da Cólquida seria seu amor por Jasão. Pélias lhe ofendera
gravemente o marido: usurpara o trono, que de direito lhe pertencia;
induzira-lhe o pai Esão ao suicídio, obrigara-o a buscar o velocino de
ouro e, conforme algumas versões, recebido este, recusara-se a
devolver-lhe o trono, como havia prometido.
Para vingar os crimes e ultrajes de Pélias, a terrível mágica resolveu
eliminá-lo. Convenceu as filhas do usurpador, menos a Alceste,
ainda muito menina, de que poderiam facilmente rejuvenescer o pai,
já muito avançado em anos, se o fizessem em pedaços e o deitassem a
ferver num caldeirão de bronze em meio a uma composição mágica,
cujo segredo somente ela conhecia. Para provar sua arte, Medeia
tomou um velho cordeiro (outros afirmam que foi Esão) e, usando o
processo acima descrito, transformou-o num cordeirinho ou o velho
pai de Jasão num Esão jovem e robusto. As pelíades, sem hesitar,
despedaçaram o pai e cozinharam-lhe os pedaços, conforme a receita
de Medeia. Como Pélias não ressuscitasse, transidas de horror,
fugiram para a Arcádia.
Com a morte do rei, Jasão e Medeia, com os filhos do casal, Feres e
Mérmero, foram banidos de Iolco por Acasto.
Há uma variante, segundo a qual Medeia, disfarçada numa
sacerdotisa de Ártemis, deixou sozinha a nau Argo e dirigiu-se a
Iolco. Tendo convencido as filhas de Pélias a cozinhar-lhe os
membros, fez vir Jasão, que entregou o trono a Acasto, uma vez que
este o acompanhara, contra a vontade do pai, na perigosa expedição
dos argonautas. A seguir tal versão, o exílio em Corinto foi
voluntário.
Eetes, filho de Hélio e da oceânida Perseida, recebera do pai o reino
de Corinto, mas deixou o trono vacante para reinar na Cólquida, cuja
capital era Fásis, às margens do rio do mesmo nome. Eetes se casara
com Eurilite ou com a nereida Neera, com a oceânida Idíia ou ainda,
segundo algumas versões, com sua própria sobrinha, a terrível
Hécate. Seja como for, filha de Hécate ou sobrinha de Circe, Medeia
conhecia profundamente os segredos da bruxaria e dos sortilégios.
“À época” em que se passa o “drama de Medeia”, Corinto é
governada por Creonte, filho de Liceto, que é preciso não confundir
com o segundo Creonte, o tebano, filho de Meneceu, e irmão da
infortunada Jocasta.
Jasão e Medeia, expulsos de Iolco, viviam em paz em Corinto,
quando o rei Creonte concebeu a ideia de casar sua filha Glauce ou
Creúsa com o herói dos argonautas. Jasão, sem tergiversar, aceitou o
enlace real e repudiou Medeia, que foi banida de Corinto pelo
próprio soberano. Implorando-lhe o prazo de um só dia, sob o
pretexto de se despedir dos filhos, a feiticeira da Cólquida teve
tempo suficiente para preparar a mortal represália. Enlouquecida
pelo ódio, pela dor e pela ingratidão do esposo, resolveu vingar-se
tragicamente, enviando à noiva de Jasão, por intermédio de seus
filhos Feres e Mérmero, um sinistro presente de núpcias. Tratava-se
de um manto ou de um véu e de uma coroa de ouro, impregnados de
poções mágicas e fatais. A própria Medeia, na tragédia homônima de
Eurípides9, deixa bem claro o poder terrível de semelhantes adornos:
Se ela aceitar estes atavios e com eles se engalanar,
perecerá horrivelmente e, com ela, quem a tocar:
tal o poder dos venenos com que ungirei meus
presentes (Med., 787-789)
Vaidosa, Glauce, sem hesitar, não apenas aceitou, mas igualmente
se ataviou com o lindíssimo véu e a coroa de ouro, prenúncio da
coroa real, que, em breve, luziria sobre sua fronte jovem e bela... A
princesa, todavia, teve apenas tempo de se ornamentar. De imediato,
um fogo misterioso começou a devorar-lhe as carnes e os ossos. O rei,
que correra em socorro da filha, foi envolvido também por esse
incêndio inextinguível, que os transformou rapidamente num
monte de cinzas.
Não parou aí a vindita louca da filha de Eetes. Também os filhos
morrerão pelas mãos da própria mãe, para que Jasão sofra uma
solidão mais aterradora do que aquela que lhe desejara:
Mas aqui mudo minha maneira de falar
e gemo sobre o que terei de fazer a seguir:
matarei meus filhos queridíssimos e ninguém pode
salvá-los.
E, quando tiver aniquilado toda a família de Jasão,
sairei desta terra, expulsa pelo assassinato de meus
filhos
queridos, e pelo crime horrendo que tiver ousado
cometer. (Med., 790-796).
Mortos Creonte e Creúsa e incendiado o palácio real, Medeia
assassinou os próprios filhos no templo de Hera e, num carro alado,
presente de seu avô Hélio, o Sol, puxado por dois dragões ou duas
serpentes monstruosas, fugiu para Atenas. Este exílio na pólis de
Palas Atená, prodigalizado por Egeu, conforme se mostrou no
capítulo anterior, acabou igualmente de maneira dolorosa para o rei
de Atenas e para a própria princesa da Cólquida. É que Medeia, em
tudo que fazia, sempre colocou a paixão como fio condutor de suas
ações. Ela própria o afirma na tragédia euripidiana: θυμὸς δέ
κρείσσων τῶν ἐμῶν βουλευμάτων (thymòs dè kreísson tôn
emôn buleumáton) – a paixão é mais forte em mim do que a razão
(Med., 1079).
Existe uma versão segundo a qual a morte dos filhos pela própria
mãe teria sido uma “criação” de Eurípides. Na realidade, a tradição
mais seguida no mito é a de que Feres e Mérmero teriam sido
lapidados pelos habitantes de Corinto pelo fato de terem levado a
Glauce os presentes fatídicos de Medeia.
Uma variante, certamente tardia, atesta que Medeia, após matar, na
Cólquida, a seu tio Perses e repor Eetes no trono, segundo se viu
igualmente no capítulo anterior, não teria morrido; mas
transportada para os Campos Elísios ou para a Ilha dos BemAventurados, se teria consorciado com o divino Aquiles. É bem
verdade que, após gravitar na Odisseia entre os εἴδωλα (eídola)
abúlicos do Hades, o grande herói da Ilíada fora também promovido
à Ilha dos Bem-Aventurados. Aí o encontramos casado ora com
Ifigênia ora com Helena (e mais uma vez o pacífico Menelau ficou
solitarius) ou ainda com a filha de Hécuba, Políxena, imolada sobre
o túmulo do herói, mas sua união com Medeia é estranha. Seria um
par sumamente antitético!
Quanto a Jasão, desejoso de regressar a Iolco, se aliou a Peleu,
inimigo figadal de Acasto, por culpa da esposa deste, Astidamia, a
que se fez referência na Introdução, 5, e, com auxílio dos Dioscuros,
destruiu a cidade, assumindo o poder, que, logo depois, passou para
seu filho Téssalo.
O frágil e indeciso Jasão, todavia, não foi esquecido. Ovídio, nas
Heroides, fez que duas apaixonadas suspirassem de saudades e de
ódio pelo conquistador do velocino de ouro.
A carta 6, Hypsipyle Iasoni, de “Hipsípila a Jasão”, é o desabafo da
rainha das Lemníades, a quem o herói seduzira e deixara grávida de
gêmeos na passagem pela ilha de Lemnos em direção à Cólquida10.
Hipsípila exprobra a Medeia, “feia e estrangeira, estrangeira cruel”,
que lhe roubara o amante. Apesar de tudo, ainda acredita na força do
amor, já que “o amor crê em tudo”: credula res amor est (Her., 6,21).
Embora tenha feito promessa solene de voltar a Lemnos, a rainha
sabe que “ele é volúvel e mais indeciso que as auras primaveris” e que
não cumprirá o compromisso assumido.
Em todo caso, serve-lhe de lenitivo o saber que “Medeia lhe ganhou
o namorado com ervas feiticeiras, quando o amor deve ser
conquistado com beleza e dignidade”:
Male quaeritur herbis,
Moribus et forma conciliandus, amor (Her., 6,93-94).
Ameaça vingar-se, “prometendo ser para Medeia mais cruel do que
a própria Medeia”: Medeae Medea forem... (Her., 6,151).
Mas a promessa de vingança fica apenas na promessa. Na citada
edição das Heroides o Prof. Walter Vergna acentua que “Mais uma
vez a vingança, através de ameaças, é ofuscada pela força do amor”; e
transcreve a seguir dois versos que em algumas edições antecedem o
texto original. Trata-se de um dístico muito significativo, que põe a
descoberto o grande amor da neta de Dioniso pelo ingrato e volúvel
herói dos argonautas:
Lemnias Hypsipyle, Bacchi genus, Aesone nato
Dicit, et in uerbis pars quota mentis erat.
– Hipsípila de Lemnos, descendente de Baco, dirigese ao filho de Esão e em cada palavra põe um pedaço
de sua alma.
A carta 12, Medea Iasoni, de “Medeia a Jasão”, é uma missiva bem ao
estilo da tragédia euripidiana: a princesa da Cólquida, abandonada
pelo marido, que se enamorou de Creúsa ou do trono de Corinto,
explode primeiro em saudades e paixão... Depois contrapõe seu amor
total à ingratidão do marido e passa dos gemidos às mais terríveis
ameaças: enquanto houver ferro, fogo e ervas venenosas sua ira e
vingança não se extinguirão. Em suas palavras, os vocábulos “fogo e
chamas” mudam de acepção, quando soprados pelo amor ou pelo
ódio:
Est aliqua ingrato meritum exprobrare uoluptas;
Hac fruar: haec de te gaudia sola feram (Her., 12,2122).
– É como que um prazer censurar o ingrato pelo
prazer recebido; deixa-me gozar este prazer, o único
que ainda obterei de ti.
Apesar de tudo, apesar de todo ressentimento, o amor e as chamas
não se apagam, porque não se podem ocultar:
Perfide, sensisti, quis enim bene celat amorem?
Eminet indicio prodita flamma suo (Her., 12,37-38).
– Tu, infame, percebeste minha paixão. Quem é
capaz de ocultar o amor? É uma chama que irrompe,
traída por seus próprios indícios.
Tudo fizera por ele: traiu o pai, abandonou mãe e irmã, matou o
próprio irmão. E mais: entregou-se a ele.
O marido, que ela salvara, agora está sendo acariciado por outra
mulher. É contra Glauce primeiramente que se ergue a ira de Medeia,
mas, enquanto existirem chamas e ervas venenosas, ninguém
escapará a seu ódio e vingança:
Rideat et Tyrio iacet sublimis in ostro:
Flebit et ardores uincet adusta meos!
Dum ferrum flammaeque aderunt sucusque ueneni,
Hostis Medeae nullus inultus erit (Her., 12,179-182).
– Que ela se ria e permaneça sobranceira na púrpura
de Tiro. Um dia chorará, consumida por um fogo
mais abrasador do que este que me devora! Enquanto
houver ferro, chamas e ervas venenosas, nenhum
inimigo de Medeia escapará à sua vingança!
E jura, por fim, que irá até onde o ódio puder conduzi-la:
Quo feret ira sequar...
Viderit ista deus, qui nunc mea pectora uersat (Her.,
12,209-211).
– Irei até onde me arrastar o ódio, seja disto
testemunha o deus que agora revolve os tormentos
no meu peito!
Consoante alguns mitógrafos, Jasão pereceu tragicamente em
Corinto.
Um dia de muito calor, descansava sob a nau Argo, que havia sido
retirada do mar para conserto e uma viga da nau, caindo sobre ele, o
matou.
Duas ilhas, certamente, o choraram: Lemnos e Avalon...
6
Comentando o mito dos argonautas, Yves Bonnefoy faz duas
observações importantes: a primeira sobre o espaço geográfico
percorrido pela nau Argo e a segunda acerca de Medeia. Vamos
sintetizá-las, antes de se passar com Paul Diel a uma visão simbólica
do conjunto, sobretudo a um enfoque de Jasão e Medeia.
Para o poeta e mitólogo francês, “a história dos argonautas oscila
entre a Demanda do Graal e as Instruções Náuticas, mas ambas
acabam por confundir-se no emaranhado das narrativas de caráter
erudito, através das quais seguimos as gestas de Jasão na leitura das
epopeias de Apolônio de Rodes ou de Valério Flaco. A análise
estatigráfica discute a quantidade de recifes, desde as vias comerciais
pré-helênicas, assinaladas pelos arqueólogos, do Ponto Euxino ao
Báltico, até as crônicas da derradeira colonização que empreenderam
as cidades gregas em direção ao horizonte de Tânais, isto é, do rio
Don, o maior mercado dos bárbaros além de Panticapeion, como
afirma Estrabão, 7,4,5. As viagens de Ulisses recordam a altaneira
nau Argo, conhecida de todos e, quando a mágica Circe traça para o
herói da Odisseia e seus companheiros o longo caminho do retorno, o
terror das Planctas já havia feito congelar o sangue nas veias dos
argonautas e foi com o auxílio de Hera que Jasão conseguiu
ultrapassar a passagem tortuosa, a via intransponível, onde se
confundem água e fogo, céu e terra. A geografia, no entanto, não
possui no mito dos argonautas um plano de significação, que seria,
aliás, hipertrofiado: a busca do velocino de ouro se inscreve num
périplo, num percurso de espaço em que a viagem de retorno
estrutura o itinerário de ida e estimula o trabalho da memória, que
assinala para cada gesta o seu local exato e sua posição no espaço
organizado”11.
Quanto a Medeia, Bonnefoy tem a respeito da mesma um enfoque
muito original. “A proteção de Hera ao herói se exerce através de
Medeia, sem a qual Jasão não teria executado as tarefas impostas pelo
rei da Cólquida. Filha de Eetes, confundem-se nela o poder de Hélio,
o Sol, e as forças da noite. A princesa da Cólquida pertence a um
elenco de mulheres versadas em magia e em poderes ocultos. Como
Agamede, Hecamede ou Perimede, é imaginosa, dotada de uma
inteligência solerte e astuciosa, graças à qual todas as forças, por
maiores que sejam, são vencidas. Uma inteligência que age não por
dissimulação ou embustes, visando à eficácia imediata, mas pelos
meandros da magia, pelo emprego de ervas e de filtros, pela
mobilização dos poderes da noite. Medeia é uma mulher com a força
da métis, mas sua aliança com Jasão não é o casamento de Zeus com
Métis, sua primeira esposa, que lhe outorgou o poder. As magias de
Medeia abrem a Jasão o caminho para a conquista do velocino de
ouro, talismã cuja perda significa para Eetes a destruição do poder
real (Diodoro, 4,47), mas que não confere de imediato ao herói o
acesso ao poder, usurpado por Pélias. Sem Medeia, porém, Jasão
jamais reporia o trono de Iolco nas mãos dos filhos de Éolo. A aliada,
todavia, pode tornar-se uma inimiga tanto mais perigosa quanto
para ela o casamento é algo contra a natureza.
Em algumas tradições (Diodoro, 4,45s) Medeia tem por mãe
Hécate, filha de Perses, nascida nas montanhas do Tauro e que
sempre viveu longe da cultura e da civilização, nas extensões
desérticas, perseguindo o homem e recolhendo mil ervas venenosas,
geradas pela terra. Como sua mãe, que é igualmente a de Circe,
Medeia só pode reinar nos desertos, nas montanhas, nas florestas
selvagens. As terras incultas são o domínio que lhe fornece os
instrumentos de seu poder: venenos e remédios. Trata-se de uma
feiticeira, dotada de uma violência inquieta, de paixões que
queimam, de mudanças súbitas de humor, de uma constante
melancolia e de uma duplicidade criminosa, que se volta contra
aqueles aos quais ela mais ama.
Uma das características mais salientes desta mágica é a de dedicarse a perigosas operações culinárias. Seu instrumento de trabalho, sua
arma, no entanto, não é o espeto, mas o caldeirão, a panela, onde se
colocam para ferver os pedaços de carne que se separam da vítima
do sacrifício. A contradição, porém, é dupla: primeiramente, porque
na Grécia a preparação da carne não era ofício de mulher; segundo,
porque só os homens podiam ser cozinheiros e sacrificadores; a
panela pertence, portanto, àquele que possui o espeto e a faca.
Medeia, desse modo, arroga-se um privilégio masculino. Sua
cozinha tem uma aparência de altar de sacrifício, mas se apresenta
sob a forma inversa do local em que se abate um animal. É a vida que
deve sair de seu caldeirão, como de um ventre feminino, uma vida
renovada, como aquela que ela própria prometeu às filhas de Pélias,
mostrando-lhes um cordeirinho saído do caldeirão de bronze, onde
fora colocado em pedaços. O caldeirão, todavia, foi o meio usado para
matar a Pélias e escondê-lo no ventre da terra.
Assim como a feiticeira é uma cozinheira perigosa, da mesma
maneira ela parece incapaz de gerar. Em Corinto, a filha de Hécate se
apresenta como a Errante, a que se deixa levantar nos ares, como se o
ter vindo de um mundo selvagem lhe interditasse qualquer fixação,
qualquer afinidade com a terra cultivada e o espaço consagrado à
família. Seus filhos são feridos de maldição: a mãe os escondeu no
santuário de Hera, ou, antes, eles já nasceram mortos, ou, por outra,
cada vez que Medeia dava à luz um filho, ela se apressava em
enterrá-lo. O degolamento dos meninos na versão de Corinto renova
o sacrifício monstruoso de seu irmão Apsirto”12.
Como fez com relação a Teseu, segundo se mostrou no capítulo
anterior, Paul Diel analisa as façanhas e o comportamento de Jasão
como uma progressiva banalização (veja-se, no que respeita à
significação deste termo, a nota 8 da p. 164 supra). Em outras
palavras: buscando o velocino de ouro, símbolo do poder espiritual, o
herói acabou por destruir-se, porque, usando egoística e cinicamente
do poder mágico de Medeia, voltou-se para a intriga e para a
perversão. Apegou-se aos valores da terra em vez de buscar os
méritos do espírito. Reprimiu-se ao invés de purificar-se,
substituindo a anagnórisis pela hýbris.
Vejamos, com alguns enxertos nossos, o que mais tem Paul Diel a
dizer sobre a interpretação do mito de Jasão13.
Observa o autor citado que na busca do velocino de ouro está
congregada a maioria dos heróis ameaçados de banalização. Entre
eles se destacam Orfeu, Héracles, Teseu e Jasão. Embora nenhum
deles apresente a vaidade excessiva dos heróis sentimentais, a
ameaça que pesa sobre os mesmos é o impulso da dominação
perversa e a intemperança, isto é, a incapacidade de escolha justa e de
ligação durável. É exatamente esse perigo que, sobressaltando a cada
um em particular, os uniu numa empresa comum de liberação. A
importância do cometimento encontra-se expressa no significado do
próprio nome argonautas, “marinheiros de Argo” e, sendo Argo a
nave branca, este símbolo branco, a pureza, deveria conduzi-los à
catarse, à purificação. Reunindo, pois, o ouro do velocino e o branco
de Argo, tem-se que o objetivo da empresa é a conquista da força do
espírito, a verdade, e da pureza da alma. Some-se ao dourado e ao
branco o carneiro, que é o mesmo que o cordeiro, configuração da
ternura, da bondade, do amor e também da pureza em seu mais alto
grau. O velo de ouro está suspenso numa árvore, imagem da vida,
mas é guardado por um dragão: é preciso matar a perversão, para que
se tenha a posse do tesouro sublime. O dragão é um monstro que
possui a força brutal do leão ou do touro. Aos indícios de vaidade e
de perversão, que lhe são inerentes, acrescente-se a perversão sexual:
com frequência o monstro aparece como guardião de uma virgem ou
está prestes a devorá-la.
Para conquistar a força da alma que determina uma escolha justa,
indício de uma ligação duradoura, o herói terá que superar o seu
“dragão interno”, o perigo existente nele mesmo, a exaltação
imaginária dos desejos dispersos, ameaça configurada externamente
pelo dragão, que impede o acesso à virgem.
Constantemente no mito o dragão é também o guarda de um
tesouro. No símbolo “tesouro” se reencontra a significação sublime
do dourado, o que faz que, no mito dos argonautas, o ouro-tesouro
seja substituído pelo velo de ouro. A cor dourada é um símbolo solar,
mas o ouro-moeda é um sinal de perversão, da exaltação impura dos
desejos. Matando o dragão, o herói poderá encontrar o tesouro
sublime, mas pode igualmente arrebatá-lo sob sua significação
perversa.
Em síntese, é assim que se apresenta o tema secreto em torno do
qual se encontram centrados todos os índices simbólicos do mito.
Enfrentando o dragão fabuloso, em busca do velo de ouro, os
argonautas devem superar suas próprias ameaças, retratadas pelo
monstro ou, apesar de uma vitória aparente, correrão o risco de cair
na tentação que deveriam combater.
Substituindo o velo de ouro, imagem da pureza, pelo símbolo mais
geral do tesouro em sua significação equívoca, surge claramente a
ameaça: os argonautas exporse-ão ao fracasso quanto ao plano
essencial de sentido oculto e, ao invés de conquistarem o tesouro sob
sua configuração sublime, encontrá-lo-ão em seu significado
pervertido.
O chefe dos heróis da Argo é Jasão. Seu objetivo inicial não é a
busca do velo de ouro. Essa demanda é somente uma condição a ser
cumprida, a fim de recuperar o trono de seu pai. Mas, se o velo é de
ouro, surge, de imediato, um problema: conquistado o “tesouro”, com
que espírito o herói exercerá o poder? Se encontrar o velocino de ouro
sob seu sentido sublime, purificando-se de sua aspiração
dominadora, seu reinado será justo; se, ao revés, descobri-lo sob seu
signo pervertido, isto é, se ceder à tentação perversa, seu reino será
marcado pela injustiça. Do êxito ou do fracasso essencial do herói
dependerá a sorte de seu país e este é, sob o plano simbólico, a
configuração do mundo inteiro. Jasão, pretendente ao trono, torna-se,
desse modo, uma figura representativa, um símbolo, cuja
significação é de importância fundamental: a sorte do mundo
entregue ao governo dos homens, cujas atitudes podem ser
justificáveis ou injustificáveis, uma vez avaliadas de acordo com as
exigências essenciais da vida.
O reino injusto e injustificável se apresenta diante do espírito, do
ponto de vista simbólico, como uma usurpação e a tarefa heroica de
Jasão pode ser assim formulada: combater de modo sublime o
usurpador, buscando o velo de ouro, a fim de não tornar-se ele
próprio um tirano.
Esão, o rei legítimo, foi destronado por Pélias. Ainda menino, salvo
do tio intruso, foi entregue ao centauro Quirão, símbolo da
banalização. Adulto, o herói retornou a Iolco, com o fito de recuperar
o trono, ocupado por um rei usurpador. A situação do jovem príncipe
é análoga à de Édipo: quer governar o mundo, apesar de sua
tendência à banalização, devida em parte à sua educação.
O oráculo havia predito ao rei que desconfiasse do homem que
usasse apenas uma sandália. Com um pé descalço, Jasão apresentouse ao tio.
A sandália que falta é a tradução do espírito desprotegido, de uma
incompletude. O pé descalço do herói é uma nova imagem do
homem “coxo”, deformado pela educação. Assim caracterizado, não
poderá ele ascender ao poder legítimo, a não ser que supere essa
carência. Pélias declara-se disposto a abdicar, desde que o sobrinho
lhe traga o velo de ouro, símbolo da banalidade vencida.
Tal exigência do rei significa que o herói deverá provar que é digno
do poder a que aspira. Deverá superar a “desordem física”, o pé
descalço, e adquirir a insígnia da vitória espiritual e sublime. É
verdade que a exigência de Pélias, que é um usurpador, estabelece tal
condição por deslealdade, pois espera que o sobrinho morra na
empresa, mas a conquista do troféu possui um aspecto
simbolicamente sublime. Na realidade, a incumbência imposta
corresponde a uma dupla significação do rei: se Pélias nada exigisse
além de uma tarefa qualquer, supostamente perigosa e irrealizável,
estaria se declarando apenas um tirano usurpador, o homem
intrigante. O trabalho exigido, todavia, é o combate heroico, que em
todos os mitos é impingido pelo rei simbólico, o espírito. O rei Pélias,
que por traição estabelece tal prova, apresenta-se, no plano mítico,
substituído pela exigência sublime, suscetível de caracterizar a
situação essencial.
Não se sentindo suficientemente forte para realizar sozinho o feito
excepcional, Jasão mandou convocar outros heróis e, sobre a nau
Argo, navegaram rumo à Cólquida. Mas o caminho do mar é a rota
da vida e os perigos estão à vista. A nau Argo deverá encontrar
exatamente o centro, ao atravessar as terríveis Simplégades, ou dois
recifes móveis, que se chocam contra tudo que ouse passar entre eles.
As Sindrômades são o Cila e o Caribdes da existência. A terra
esmagadora, estampada no rochedo, sendo o símbolo da banalização,
os dois recifes espelham a dupla ameaça que paira sobre qualquer
empresa: a intemperança e a tirania. A nau Argo escapa por pouco da
emboscada, mas, presságio funesto, uma parcela da popa é
arrancada.
Eetes, soberano da Cólquida, novo representante do rei mítico,
recebe Jasão cordialmente, mas condiciona a entrega do velo de ouro
à vitória sobre o dragão. A autorização para enfrentar o monstro,
todavia, está subordinada a tarefas preliminares, que esclarecem
ainda mais a situação do herói e a natureza do empreendimento. O
rei entrega ao herói os dentes de um dragão, o primeiro a ser
eliminado por Cadmo, um herói vencedor. Jasão deverá atrelar a
uma charrua dois touros de pés de bronze, que vomitam chamas
pelas narinas e com eles arar um campo, onde serão semeados os
dentes do dragão de Cadmo.
A colheita dessa semeadura só podendo ser funesta, o herói deverá
mostrar-se capaz de dominar o perigo.
O conjunto destas tarefas preliminares representa uma imagem
bem específica da luta contra a tendência à dominação perversa, de
que o aspirante ao trono terá primeiro que purificar-se. O herói
deverá mostrar não apenas que tem méritos para se apossar do velo
de ouro e assumir o poder, mas ainda, em razão da força que o anima,
de permanecer como um digno detentor do troféu conquistado.
Desse modo, o comportamento do pretendente ao trono na realização
dessas provas simbólicas há de caracterizar-lhe não somente a
atitude atual, mas também suas intenções secretas que, sublimes ou
perversas, nortearão sua vida inteira e seu reino futuro.
“Arar a terra” significa “torná-la fecunda”, quer dizer, governar de
maneira fecunda a terra, o país. “Arar a terra com a ajuda de touros
domados” significa fazer prova de força sublime, de sabedoria, que
por si só assegura o reino fecundo, uma vez que a sabedoria “doma” o
perigo e a tentação do abuso brutal, inerentes ao poder.
Representações da força brutal, os touros traduzem a dominação
perversa. Seu sopro é a chama devastadora. O atributo “bronze
acrescentado ao símbolo pé” é uma imagem constante no mito grego,
que serve para espelhar um estado anímico. Atribuídos aos touros, os
pés de bronze retratam o traço marcante da tendência dominadora, a
ferocidade e o endurecimento do espírito.
Com auxílio de Medeia, que por ele se apaixonara, como Ariadne
por Teseu, e que lhe deu um bálsamo maravilhoso, que o tornou
invulnerável, o que configura o próprio amor da princesa, Jasão
consegue domar os touros, arar a terra e semear os dentes do dragão.
O amor converteu o impossível em possível, mas é necessário
examinar as “intenções” de Jasão para com Medeia. Prometeu-lhe
casamento, mas até onde se confundiriam no herói o amor e o
“servir-se” do amor? As tarefas ainda a serem executadas
responderão a essa inquietante interrogação. De outro lado, a filha de
Eetes e de Hécate é uma bruxa, uma feiticeira, ligada à noite e aos
poderes malignos da terra, às ervas venenosas. Com essa união, com
esse tipo de sizígia, o egoísmo e a intriga perversa conjugados aos
poderes ctônios, o reino de Jasão é o prenúncio de um grande
fracasso da justiça e do espírito e seu casamento com a princesa da
Cólquida pressagia a tragédia.
Dotado de forças heroicas, mas com o respaldo das “forças ctônias”,
Jasão domina os touros, mas a prova só está cumprida pela metade e,
a fim de traduzir com exatidão as intenções e as atitudes do herói, o
mito repete a exigência sublime expressa em sua totalidade por nova
imagem. O reino futuro do filho de Esão só será fecundo na medida
em que ele procure assegurar-lhe a paz e a justiça. A força sublime do
herói, ainda não manifestada, deverá vencer não apenas a força
brutal dos touros, mas igualmente a dos gigantes, dos “homens de
ferro” que nascerem dos dentes semeados do dragão.
Todo reino, uma vez estabelecido e governado com justiça, tornase inevitavelmente objeto de ciume, “semeia” a inveja, os dentes do
dragão. Desta semente nasce a colheita monstruosa, os “homens de
ferro”, que se erguem contra o pacificador, ansiosos por estabelecer a
dominação perversa à custa do governante. Semelhante tendência se
revelará tanto mais ameaçadora quanto mais marcado pela
sabedoria for o reino: a justa medida e a moderação dele emanadas
são interpretadas como fraqueza, suscetível de encorajar os
adversários.
Semeando os dentes do dragão, outrora heroicamente vencido, e
liquidando os “homens de ferro”, Jasão deverá provar que está
igualmente capacitado para tornar-se um rei vencedor e que tem
fibra para usar de energia e justiça contra qualquer germe de
desordem e sedição. Mas, prognóstico sinistro, o herói se mostra
combalido nesta terceira parte das provas. Seu triunfo sobre a
evidência ameaçadora não se concretiza graças à sua força sublime.
Em lugar da justiça, ele usa, aconselhado pelo poder ctônio de
Medeia, a intriga. Faz o que em todos os tempos realizaram os tiranos
com o fito de vencer os adversários: dividir e desunir para reinar.
O mito expressa bem o fato, narrando que Jasão lançou uma pedra
no meio dos gigantes, que não tardaram a se massacrar, alegando
cada um estar sendo atacado pelo outro. O símbolo traduz a mais
diáfana das realidades: a pedra, a terra petrificada, o rochedo são
igualmente símbolos da banalização, consequência da exaltação
intrigante das aspirações terrenas. Os adversários são surpreendidos
pelo obstáculo imprevisto, indício das falsas promessas que,
“lançadas” com astúcia, exasperam a inveja. Nesse fogo de massacre,
cada um se sente ameaçado pela inveja exaltada do outro, esperando
cada qual tirar proveito da querela nascente. Não é raro que
adversários temíveis, mordidos de raiva e de emulação, se lancem
uns contra os outros e se destruam. Semelhante vitória de
“intrigante”, de Jasão, que arremessa as pedras ou que, consoante a
significação oculta, se propõe a assegurar o reino futuro pela intriga,
uma tal vitória possui apenas um valor efêmero e banal. A
maquinação não pode vencer a violência em caráter definitivo.
Trata-se de um emaranhado perverso que reina sobre o mundo e que,
incessantemente, conduz às explosões de violência.
A ideia que se tem das três tarefas iniciais é a de que Jasão
percorreu muito rapidamente o caminho que, da intenção sublime,
ameaça arrastá-lo para uma futura realização banal. A advertência
que desde o início pesa sobre suas façanhas tornou-se clara
sobretudo na vitória duvidosa do herói sobre os “homens de ferro”. O
perigo que o ronda, no entanto, não se tornou insuperável, uma vez
que as três provas preliminares têm unicamente o sentido de um
presságio em relação ao comportamento futuro e não o determinam
em definitivo. A derrota essencial do filho de Esão, que encerrou as
tarefas iniciais, se apresenta sob o aspecto de um êxito exterior, o que
lhe assegura o direito de tentar apoderar-se do velocino de ouro. As
portas para a vitória decisiva e essencial continuam abertas. Tudo
depende da maneira como ele há de enfrentar o último prélio.
Vencendo em combate heroico o monstro, guardião que impede
qualquer aproximação com a sublimidade, bem como sua fraqueza
secreta, a tentação dominadora do dragão não mais poderá se
realizar. É que, sendo ele o símbolo supremo de sua própria
perversidade, se morto heroicamente, há de transformar-se no
símbolo da libertação total.
Jasão, todavia, se limitará uma vez mais a lutar contra o monstro
com o expediente da astúcia. O mito não faz referência alguma a
armas que lhe tenham sido emprestadas pelas divindades, imagens
da força da alma, para sua justa com o dragão. Nada indica também
que o herói tenha solicitado o concurso de seus companheiros.
Confiando muito pouco em suas próprias forças, recorre mais uma
vez ao auxílio da mágica Medeia. Semelhante consórcio nem é uma
escolha justa nem tampouco uma ligação da alma. A impureza se
escamoteia nesse episódio sob a forma de cálculo. Unindo-se à
feiticeira, o argonauta deixa-se subjugar pelas forças ctônias. É
exatamente esse tipo de dominação que ele deveria evitar a qualquer
preço. Sucumbindo aos sortilégios da mágica e à tentação de lutar
com sua ajuda, o herói prepara-se para assegurar o reino e a
autoridade, com o respaldo das forças “demoníacas” de seu
inconsciente e não pelo combate da purificação. A partir dessa
resolução, o resultado do empreendimento está fadado à ruína.
Enfraquecido, o pretendente ao trono não mata o monstro em luta
heroica, imagem de sua própria perversão, que ele deveria vencer.
Medeia, com seus filtros, o adormece e ingloriamente Jasão o liquida
e se apossa do velo de ouro.
O poder mágico detido e utilizado por Medeia é a imagem da
insolência face ao espírito e às suas exigências, bem como a
pretensão de realizar as intenções mais exaltadas, a perversão
dominadora, graças ao desencadeamento inescrupuloso dos desejos.
Diametralmente oposto à vitória heroica, este êxito perverso implica,
falando de maneira simbólica, um “pacto” com os demônios, aos
quais é preciso vender a alma.
O sentido da expedição converteu-se num gracejo. O troféu que
confere o direito ao trono é subtraído, em vez de ser conquistado com
denodo. Aparentemente, em sentido verbal, Jasão cumpriu as tarefas
impostas, mas, em sentido simbólico, ele se esquivou do trabalho
interior e heroico: a catarse. O fecho do mito só pode traduzir esse
estado interior culpável do herói decaído. As imagens finais
materializam o castigo.
Eetes, exigindo as tarefas-provas, configurou o rei mítico e, como
tal, nega a Jasão o direito de levar o troféu da sublimidade.
Rebelando-se contra o interdito real, foge com Medeia, conduzindo
o velo de ouro.
O rei acossa os ladrões do tesouro espiritual, mas, sendo ele um
símbolo do espírito vingador, a perseguição simbólica, consoante sua
verdade profunda, não se passa no plano exterior: realiza-se
espiritualmente no foro íntimo de Jasão, como um sentimento de
culpabilidade. Seguindo esta linha de raciocínio, a fuga diante de
Eetes significa a repressão da culpa, pois o recalque nada mais é do
que a escusa face ao espírito acusador. Tal significação se ajusta
igualmente ao rapto do velo de ouro. “Recalcar sua falta” é sinônimo
de se vangloriar com a sublimidade imerecida, extorquida. Todos os
pormenores da imagem simbólica da fuga devem contribuir para
ratificar este significado oculto: a culpa e sua repressão.
Para ajudar o falso herói a escapar, Medeia usa de uma astúcia
monstruosa: assassina seu próprio irmão Apsirto e lança-lhe os
pedaços no mar. Eetes, ocupado em recolhê-los, se atrasa na
perseguição aos fugitivos. Na medida em que o rei da Cólquida
configura o espírito acusador, Apsirto traduz simbolicamente o
“filho do espírito”, que é a verdade. Na imagem da fuga, a verdade em
pauta concerne ao estado da alma de Jasão e esse estado é a culpa e a
tentativa de reprimi-la.
O homicídio de Apsirto é uma variante do símbolo típico do “filho
sacrificado”. O sacrifício expiatório do “filho do espírito” é uma
imagem de extrema complexidade, que encontra sua expressão mais
alta no relato histórico cristão, quando o mundo inteiro, configurado
no povo eleito e culpado, sacrificou criminosamente o “filho do
espírito”, o homem inocente, espelho da verdade, cuja vida era
sentida como uma censura insuportável. É claro que o mito em
questão nada possui em comum com a verdade cristã, infinitamente
mais vasta e profunda, a não ser o fato de espelhar igualmente a
iniquidade que reina no mundo. Não se trata de estabelecer um
paralelismo, que só poderia ser artificial, mas unicamente de
ressaltar que o episódio da fuga do casal assassino contém uma
alusão ao sacrifício monstruoso. Este não é mais executado pelo
mundo culpado, que vive sob o reino do demônio, mas pela feiticeira,
inspiradora das tentações “demoníacas” do inconsciente e que se
mostra ansiosa por assegurar o reino do herói humilhado, como aliás,
diga-se de caminho, agiu com o rei de Atenas, Egeu. Medeia arrasta o
amante a sacrificar o inocente, o filho do espírito acusador, a
verdade. Culpado, o herói humilhado não se curva ao espírito da
verdade, não toma conhecimento de sua falta, não sacrifica ao
espírito sublime. Lança e projeta sua culpa sobre o inocente que deve
resgatá-la como bode expiatório. Espera, desse modo, poder escapar,
por força dessa evasiva imaginária, às consequências de seus atos.
Medeia corta o “filho” assassinado, a verdade sacrificada, em
pequenos pedaços: fragmenta a verdade sobre a culpa de Jasão e
oferece ao espírito acusador um punhado de pequenas escusas
mentirosas, imagens da repressão, acreditando, destarte, retardar a
“perseguição” e silenciar o delito do amante, através de seus
conselhos e encorajamentos. A mágica incita-o a usar, excessiva e
monstruosamente, de processos perversos de evasão, isto é, a projeção
de culpa e a repressão. Assim agindo, consegue destruir-lhe o espírito
sob a forma de remorso, o único que poderia salvá-lo, condenando-o,
em definitivo, à perdição.
Assim como o simbolismo dos trabalhos escamoteados retratam a
futura atitude perversa de Jasão, que há de caracterizar-lhe o reino,
igualmente a fuga traduz, em sua verdade profunda, os efeitos da
derrota essencial da expedição catártica, consequências que hão de
marcar toda a vida futura do herói humilhado.
Jasão entrega o velo de ouro a Pélias e assume o poder. Suas falhas e
deficiências no cumprimento das condições impostas fazem prever a
natureza perversa e dominadora de seu reino, o que não impede a
possível realização externa de uma hábil administração, ao menos
por algum tempo.
A história testemunha, através de inúmeros exemplos, aliás
sempre repetidos, o sentido secreto do mito, cujo herói mais
representativo é Jasão. Sua perversidade converte-se, no plano
essencial, em flagelo que devasta o país, o mundo: as astúcias, de que
tanto se aproveitou, voltaram-se contra ele próprio. Vítima de
intrigas, foi afinal expulso de Iolco.
Todo o seu governo, no entanto, foi caracterizado pela influência
nefasta e crescente da feiticeira, símbolo da perversão banal. Os
delitos se acumularam. É bastante relembrar aquele bem conhecido,
que tanto concorreu para acelerar o fim desastroso do herói
derrotado. Para fugir à bruxaria funesta, Jasão tentou abandonar
Medeia. A mágica, transmutada em Erínia, matou seus próprios
filhos. Já que todas as personagens do mito possuem, em última
análise, valor simbólico, pode-se ver nesse crime hediondo,
consoante o simbolismo “criança, fruto da atividade sublime ou
perversa”, a imagem da desolação e do aniquilamento, que são os
únicos a subsistir, uma vez passada a dominação pervertida.
Configurando as forças destruidoras do inconsciente, a mágica, de
que Jasão se quis servir para alcançar a vida sublime, é o instrumento
fatal de sua punição e de seu sofrimento.
Jasão morreu quando descansava sob a nau Argo, atingido por
uma viga, caída do próprio barco, que deveria tê-lo conduzido a uma
vida heroica.
A nau é o símbolo das promessas juvenis de sua vida, das gestas de
aparência heroica, que lhe conquistaram a glória. O herói vencido
desejou repousar à sombra de sua glória, por acreditar que ela seria
suficiente para justificar-lhe a vida inteira. Caindo em ruínas, a Argo,
símbolo da esperança heroica da juventude de Jasão, converte-se em
símbolo da ruína final de sua vida. A viga é uma transformação da
clava. É o esmagamento sob o peso morto, o castigo da banalização.
Ao passar em revista o pensamento de Diel sobre o mito de Jasão,
convém insistir em que o mito é um feixe de símbolos e uma
interpretação é apenas uma das interpretações. Outras que surjam só
podem concorrer para o enriquecimento do mitologema, neste caso
tão vasto e tão doloroso.
1. As principais informações e referências dos autores gregos e latinos acerca de Jasão
encontram-se em Homero, Ilíada, VII, 469; XXI, 41; Odisseia, XII, 72; Hesíodo, Teogonia,
992s; Píndaro, Píticas, 4 passim; Nemeias, 3,93; Eurípides, Medeia, passím; Apolônio de
Rodes, Argonáuticas, l,5ss; Apolodoro, Biblioteca, 1,8,2; l,9,16.18.2324s; 3,7s; 13; Pausânias,
Descrição da Grécia, 2,3,8s; 5,9,10.17; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 4,40s; Ovídio,
Heroides, 6 e 12; Higino, Fábulas, 12 e 13.
2. E são, como Amitáon e Feres, segundo se estampa no quadro genealógico 5, era filho de
Creteu e Tiro. Casado com Polímede, filha de Autólico, era, nesse caso, tio-avô de Ulisses,
mas outras versões lhe dão por esposa Alcímede, filha de Fílaco. Tinha como irmão, do lado
materno, a Pélias. Este, após apoderar-se do reino de Iolco, que, de direito pertencia a Esão,
enviou-lhe o filho em busca do Velocino de Ouro. Ouvindo dizer que os argonautas haviam
perecido, livre portanto de Jasão, tentou eliminar-lhe o pai. Esão pediu ao rei para escolher
seu próprio gênero de morte e envenenou-se com o sangue de um touro. Uma variante,
sobretudo atestada em Ovídio, narra que Esão reviu o retorno do filho e dos argonautas e foi
rejuvenescido pelos encantamentos de Medeia.
3. A respeito particularmente dosArgonautase de sua arriscada expedição em busca do
Velocino de Ouro as fontes e referências principais são as seguintes: Apolônio de Rodes,
Argonáuticas, cantos 1 e 2; Ovídio, Metam., 7,1-158; Valério Flaco, Argonautica, cantos 1 a 8;
Higino, Fábulas, 14 a 23.
4. Ἀργώ (Argó), Argo, palavra derivada de άργός (argós), “rápido, ágil, branco”, é a rápida, a
brilhante. A nau foi construída no porto de Págasas, na Tessália, pelo filho de Frixo, Argos,
auxiliado por Atená. O madeirame procedia do monte Pélion, mas, para construir a proa,
Atená trouxera uma peça tirada do carvalho sagrado de Dodona, à qual a deusa concedeu o
dom da palavra e até da mântica.
5. Κάβειροι (Kábeiroi), os Cabiros, consoante a tradição mais comum, eram quatro e
passavam por filhos de Hefesto e Cabiro ou, segundo outras versões, Hefesto, unindo-se a
Cabiro, foi pai de Cadmilo, tendo este gerado os outros três: Axiero, Axioquersa e
Axioquerso, identificados respectivamente com Hermes, Deméter, Perséfone e Hades. Seus
principais santuários se encontravam na Samotrácia e em Lemnos, Imbros e perto de Tebas.
Divindades de “mistérios” não podiam ser invocados impunemente, a não ser por iniciados.
Integravam, normalmente, o cortejo de Hera, a protetora dos amores legítimos, já que o ápice
de uma iniciação, τέλος γάμος (télos ho gámos) é exatamente o casamento. Após a época
clássica, os Cabiros se tornaram, como os Dioscuros, protetores da navegação, daí o conselho
de Orfeu, para que os Argonautas se iniciassem nos Mistérios da Samotrácia. Um estudo
luminoso sobre os Cabiros se encontra na obra já por nós citada de Károly KERÉNYI, Miti e
misteri, p. 158ss.
6. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 269.
7. Ibid., p. 913.
8. O poeta latino da época dos Flávios, Caio Valério Flaco (45-88 d.C., datas prováveis),
deixou incompleto seu poema épico Argonautica, que possivelmente abrangeria dez ou
doze cantos. Chegaram até nós oito cantos (5.593 versos hexâmetros), mas o oitavo se
interrompe bruscamente no meio, exatamente no verso 467, no momento da fuga de Jasão e
Medeia. A respeito do poeta escreveu Quintiliano (Inst. Or., 10,1): Multum in Valerio Flaco
nuper amisimus, “recentemente perdemos muito com a morte de Valério Flaco”,
testemunho que, de um lado, mostra que o poeta deve ter falecido durante o reinado de
Vespasiano e, de outro, que a obra de Valério não era considerada, como por vezes se
apregoa, uma fria imitação de Apolônio de Rodes.
9. Veja-se a análise que fizemos desta tragédia de Eurípides em Teatro grego: Tragédia e
comédia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 63ss.
10. O roteiro e quase todos os trechos traduzidos que estampamos nesta carta são extraídos
da edição das Heroides do prof. Walter Vergna, por nós prefaciada e mais de uma vez citada.
11. BONNEFOY. Yves et al. Dictionnaire des mythologies, 2 vols. Paris: Flammarion, 1981, p.
65.
12. Ibid., p. 66.
13. DIEL, Paul. Op. cit., p. 171ss.
Quadro 5
Quadro 6
CAPÍTULO VI
Belerofonte e a luta contra
Quimera
1
BELEROFONTE, em grego Βελλεροφόντης (Bellerophóntes),
significaria, etimologicamente, segundo Albert Carnoy, “aquele que é
cheio de força”. O primeiro elemento bel- seria uma raiz indoeuropeia com o sentido geral de potência vigor, como o sânscrito
bala-, que teria o mesmo significado. Tal acepção poderia ainda ser
verificada através do comparativo grego βελτίων (beltíon), “mais
forte, melhor”. A final -φόντης (phóntes) equivaleria, talvez, a
“abundante, cheio de”.
Proveniente da casa real de Corinto, o herói é filho de Posídon, seu
godfather, mas tem por “pai humano” a Glauco, filho de Sísifo,
conforme se pode verificar no quadro genealógico1da página
seguinte.
Sua mãe, quer se chame Eurímede ou Eurínome, é uma das filhas
de Niso, rei de Mégara.
Após os ritos iniciáticos de praxe, o herói iniciou suas aventuras,
mas a primeira delas foi trágica. Matou, sem o querer – é o tema do
famoso φόνος ἀκούσιος (phónos akúsios), de que se falou mais de
uma vez – a seu próprio irmão, cujo nome varia muito nas tradições:
uns chamam-no Delíades, outros Píren,
1. As fontes antigas para um melhor conhecimento do herói são basicamente as seguintes:
Ilíada, VI, 155-205; 216-226; Píndaro, Olímpicas, 13,87s; Ístmicas, 7,44s; Apolodoro, Biblioteca,
1,9,3; 3,lss; Pausânias, Descrição da Grécia, 2,2,3-5; 4,1-3; 27,2; 3,18,13; Diodoro Sículo,
Biblioteca Histórica, 6,7; Higino, Fábulas, 56; 157; 243; 273; Horácio, Odes, 4,11,25ss; 1,27,24;
3,7,13ss.
Quadro 7
epíteto que estaria etimologicamente relacionado com a fonte de
Pirene2, e ainda Alcímenes ou Bélero. Este último nome serve de base
para a etimologia popular de Belerofonte, o assassino (phóntes) de
Bélero, que, neste caso, seria um tira-no de Corinto.
Exilado, segundo o costume, dirigiu-se a Tirinto, onde foi
purificado pelo rei local, Preto. Foi durante sua permanência na corte
de Tirinto que lhe aconteceu terrível desventura. A esposa do rei,
Anteia, como lhe chama Homero, Il., VI, 160, ou Estenebeia,
consoante os trágicos, se apaixonou perdidamente pelo hóspede. No
relato homérico, Il., VI, 160-180, bastante dramático por sinal, a
rainha “deixou-se dominar por uma paixão furiosa” (ἐπεμήνατο –
epeménato) por Belerofonte. Repelida por este, Estenebeia acusou
falsamente o filho de Glauco de tentar violentá-la (outro exemplo do
motivo Putifar). Tal era o furor eroticus da rainha, que chegou
mesmo a ameaçar a Preto, caso o rei não matasse o “sedutor”. Embora
enfurecido com o hóspede, o soberano de Tirinto teve escrúpulo em
eliminar aquele a quem havia purificado.
Enviou-o, pois, a seu sogro Ióbates, rei da Lícia, com uma carta em
que solicitava desse morte ao portador. Não desejando violar a
sagrada hospitalidade e porque também já havia sentado à mesa
para comer com ele, o que estabelecia para os antigos uma profunda
identidade, submeteu-o às já conhecidas tarefas, cuja finalidade é a
purificação e a consequente individuação do efebo. Pouco importa se
as “provas iniciáticas” são apresentadas, no mito, como um meio de
se castigar, afastar ou de se eliminar o herói, como fez Euristeu com
Héracles, Pélias com Jasão e tantos outros exemplos: a finalidade dos
Trabalhos impostos é sempre a catarse, “a sujeição do invólucro
carnal”, como diria Plotino.
Para não manchar suas mãos e, ao mesmo tempo, desejando
satisfazer e cumprir a mensagem do genro, Ióbates ordenou a
Belerofonte que matasse Quimera. Em grego, Χίμαιρα (Khímaira)
significa, ao que parece, cabra, mas uma cabra que teve apenas um
“inverno”, χεῖμα (kheîma), isto é, cabritinha.
Como se mostrou no Vol. I, p. 254, Tifão e Équidna, além do cão
Ortro, de Cérbero, Hidra de Lerna, Fix e Leão de Nemeia, geraram
também a Quimera. Trata-se de um monstro híbrido, com cabeça de
leão, corpo de cabra e cauda de serpente e, segundo outros, de três
cabeças: uma de leão, a segunda de cabra e a terceira de serpente e
que lançava chamas pelas narinas. Criada por Amisódaro, rei da
Cária, vivia em Patera, devastando o país e sobretudo devorando os
rebanhos.
Certo de que o herói jamais retornaria de tão perigosa missão,
Ióbates ficou tranquilo em relação, principalmente, ao pedido de seu
genro Preto.
Os deuses, no entanto, vieram em auxílio do inocente filho de
Glauco. Segundo a versão mais seguida, Atená entregara-lhe, já
selado, o cavalo Pégaso, a cujo respeito já se falou no mesmo Vol. I, p.
253s. Outras tradições, porém, relatam que o cavalo alado fora um
presente de Posídon ao herói, ou ainda que este encontrara o animal
bebendo na fonte de Pirene.
De qualquer forma, foi cavalgando Pégaso que Belerofonte obteve
sua primeira grande vitória: o cavalo divino elevou-se no ar e, de um
só golpe, o jovem paladino matou Quimera. Ióbates enviou-o então
contra os Sólimos, como narra Homero, Il., VI, 184s. Estes Sólimos
habitavam nas vizinhanças da Lícia e, como filhos de Ares, eram
ferozes e belicosos. Facilmente o herói os venceu. O rei, dessa feita,
deu-lhe incumbência bem mais séria e arriscada: defrontar-se com
as temíveis Amazonas. Montando Pégaso, o filho de Glauco dirigiuse para o país das perigosas guerreiras e fez um grande massacre.
Face a tão retumbantes vitórias, o soberano da Lícia reuniu um
numeroso grupo dos mais bravos de seus guerreiros e ordenou-lhes
que fizessem uma emboscada e liquidassem o aguerrido cavaleiro.
Nenhum dos soldados regressou à corte: Belerofonte matou-os a
todos.
Reconhecendo, afinal, que seu hóspede era de origem divina e
admirando-lhe as gestas, mostrou ao herói a carta de Preto,
solicitando-lhe, ao mesmo tempo, que permanecesse em seu reino.
Deu-lhe a filha Filônoe em casamento e, ao morrer, legou-lhe o trono.
Um herói, quando caluniado ou injustamente punido, jamais deixa
de vingar-se, pois que a represália faz parte intrínseca de sua
natureza, de sua timé aviltada. Não podia ser diferente com
Belerofonte. Assim que terminou as quatro tarefas impostas por
Ióbates, voou com Pégaso para Tirinto. Preto procurou ganhar tempo,
a fim de que sua esposa Estenebeia pudesse fugir, furtando o cavalo
alado. A rainha cavalgou pouco tempo, porque Pégaso a lançou fora
do arnês, atirando-a no mar. Seu corpo, recolhido por pescadores, não
muito distante da ilha de Melos, foi trasladado para Tirinto. Uma
outra tradição narra que, ciente do retorno do herói, a esposa de Preto
se fez matar.
É lamentável que se tenha perdido a tragédia de Eurípides,
Estenebeia, que dramatizava precisamente esse fecho das aventuras
de Belerofonte, após suas retumbantes vitórias na Lícia.
2
Com Filônoe o herói teve três filhos, Isandro, Hipóloco e Laodamia.
Esta, unindo-se a Zeus, foi mãe do grande Sarpédon3.
O mais cruel e terrível infortúnio do herói não foram as provas, as
tarefas, os trabalhos com que foi sobrecarregado. Afinal, “as provas”
visavam a temperá-lo para a vida, mas, por uma espécie de
fatalidade, essas mesmas tarefas, uma vez concluídas
vitoriosamente, despertam-lhe o monstro latente adormecido em seu
interior, a hýbris, que o levou inexoravelmente à ultrapassagem do
métron, ao descomedimento. E a pior das h×breis é aquela em que o
herói, sob o impulso de sua timé e areté, que afinal são outorga de um
deus, seu godfather, seu ancestral, se lança na competição com o
divino ou até mesmo na loucura de desejar ultrapassá-lo! O “conhecete a ti mesmo” e o “ser o sonho de uma sombra” da poesia pindárica
não foram gravados ou escritos para os heróis, para os ándres, mas
para os simples mortais, os thnetói, que não conhecerão a Ilha dos
Bem-Aventurados, mas as “trevas e lama” do Hades, onde patinarão
como eídola, como fantasmas abúlicos!
Belerofonte sonhou alto demais. Cavalgando seu corcel alado, o
herói ferido de orgulho, após tantas vitórias memoráveis,
conquistadas com o respaldo divino, tentou nada mais nada menos
que escalar o Olimpo. Zeus, que vela pela ordem cósmica, fulminouo, lançando-o por terra, fazendo-o regredir ao telúrico, à
“banalização”. Se, ao revés, enquanto herói, Belerofonte guardasse a
moderação, estaria munido da bússola que o guiaria para a ilha de
Avalon, donde, tranquilamente, poderia escalar qualquer Olimpo...
Ainda bem que a Lícia e Corinto honraram-no como herói, como
dáimon, como intermediário entre os homens e os deuses. Apesar do
silêncio do mito, é bem possível que Belerofonte, “recuperando os
sentidos”, tenha escalado, como Héracles, um monte bem mais
acessível, um Eta e, extinta a chama da hýbris na chama da dor,
tenha sido convidado por seu godfather a ocupar alguma outra Ilha
Branca, onde a dor e os sofrimentos não se justificam mais.
Quanto a Pégaso, por ser um cavalo alado, símbolo, portanto, do
desnivelamento, da “imaginação criativa e de sua elevação sublime”,
foi arrebatado aos céus e metamorfoseado em constelação.
3
Paul Diel comenta o mito de Belerofonte em duas partes,
aparentemente distintas, mas que se integram, já que uma é, as mais
das vezes, o corolário da outra. Começa pela vitória do herói sobre
Quimera e conclui com a “conquista da virgem”, o casamento do
grande paladino com a filha de Ióbates. Vamos seguir-lhe o roteiro,
fazendo aqui e ali algumas achegas e digressões. “Poder-se-ia ter a
impressão”, afirma Diel, “de que a imaginação exaltada, causa
primeira da deformação psíquica, não encontraria exemplo mais
claro do que o estampado no mito de Ixíon”4; este, pensando ter junto
a si a deusa Hera, apertou em seus braços um fantasma de nuvens, à
imagem da esposa de Zeus, o que traduz a exaltação para uma
sublimidade sem consistência. “O símbolo da imaginação exaltada,
no entanto, é bem mais concentrado e bem mais evidente ainda no
mito de Belerofonte, que, sob muitos aspectos, se assemelha ao
mitologema de Ixíon, servindo-lhe de parte complementar.
O herói deveria lutar contra um monstro terrível: a Quimera, cujo
nome já define bem essa figura mítica. Seria impossível
compreender, com mais clareza, que o perigo maior a combater por
parte do homem, e que o mito externa sob a forma de um monstro
casualmente encontrado, é, na realidade, o inimigo quimérico, algo
muito sério que ameaça toda a nossa vida: a imaginação
perversamente exaltada, o perigo monstruoso que todo ser humano
possui latente dentro de si mesmo. É mais do que evidente que
‘Quimera’ e ‘imaginação perversa’ são sinônimos. O fato de que, neste
mito, Belerofonte deve pelejar contra o monstro quimérico, imagem
transparente da deformação psíquica, evidencia com nitidez uma
verdade: os inimigos combatidos pelos heróis míticos são os
monstros que povoam o inconsciente.
É graças, porém, a este símbolo ‘Quimera’, que se podem elucidar a
natureza da imaginação perversa e sua completa definição.
Psicologicamente falando, a imaginação perversa se compõe de
desejos exaltados, provenientes das três pulsões ampliadas. Ora, em
Quimera encontram-se conjugadas, pela primeira vez, as formas
diferentes com que se pode revestir a exaltação imaginativa. A
Quimera com o corpo de cabra ou bode e com as cabeças de leão,
bode e serpente, coloca-nos diante de símbolos típicos. O mito não
poderia exprimir com mais clareza as três formas de perversão
imaginativa: a vaidade – perversão espiritual configurada na
serpente –, a perversão sexual, representada pelo bode, e a perversão
social com tendência dominadora, cujo símbolo é o leão.
A perversão dominadora, expressa pela vez primeira no mito por
um dos símbolos mais típicos, desempenhará um papel
predominante, não apenas neste mitologema, mas ainda como
ameaça exterior dirigida contra o herói, como um perigo que lhe é
inerente: a forma específica de sua vaidade, da revolta final contra o
espírito, razão de sua queda definitiva.
A história que precede o relato mítico não apresenta Belerofonte
como alguém culpado, mas como um homem inocente, vítima da
perversão do mundo, da intriga dominadora. Ora, essa intriga não é
mais que a exaltação imaginativa e quimérica, que faz com que a luta
do herói, inicialmente inocente, seja simbolizada por sua vitória
passageira sobre Quimera. O triunfo, no entanto, não poderia
envaidecê-lo e, com isso, condená-lo à derrocada final, se, a despeito
de sua aparente inocência, o vencedor do monstro não trouxesse
inoculado em si mesmo o gérmen da perversão, pronto para eclodir,
apesar de todos os seus esforços de elevação e de seu êxito efêmero.
Trata-se de uma situação humana, que, certamente, pode ser
considerada como típica, encontrando-se a mesma sublinhada por
um traço simbólico: o pai mítico de Belerofonte é Posídon, o que
significa que as emanações psíquicas projetadas no herói pelo deus
são muito fortes. Este deus, conforme já se mostrou no mito de Teseu,
e se há de ver mais claramente, configura a legalidade da perversão.
Pela legalidade psíquica, um homem como Belerofonte sucumbe à
perversão: é que o filho de Glauco, vencedor, quando se lhe oferece
oportunidade, é combatente fervoroso do espírito, tem tudo para
resistir à dominação perversa do mundo, mas é muito facilmente
arrastado a ultrapassar a força legítima, a medida sensata, o que o
torna incapaz de dominar em definitivo o ‘monstro’ essencial, a
vaidade culposa. É que a sombra de Posídon pesava demasiadamente
forte sobre o condutor de Pégaso. A intriga do mundo, que ameaça o
herói ainda inocente, é relatada no próprio mito.
Hostil a Belerofonte e temendo-o por ciumes, Preto o enviou para a
Lícia, com uma mensagem em que solicitava a Ióbates que matasse o
portador. Não querendo violar as leis da hospitalidade, o rei o
mandou combater Quimera, que lhe devastava o reino, certo de que
seu hóspede pereceria na luta. Vencedor da primeira prova e de
outras três, supracitadas, desposou a filha do soberano e, mais tarde,
assumiu as rédeas do governo.
A história do monstro que devasta um país é frequente no mito:
simboliza o reino nefasto de um governante pervertido, tirânico ou
fraco. Substituindo-se Quimera pela significação psicológica, a
exaltação imaginativa sob as duas formas já mencionadas, isto é, a
intriga do mundo circundante e a pureza ameaçada de Belerofonte,
tem-se como resultado o sentido oculto que, no início da grande
gesta, mercê de sua inocência, o fez levar de vencida a intriga
arquitetada contra ele. Mas, com a perda de sua força essencial e com
o servir-se da força perversa, a violência e a intriga, a fim de manterse no poder, o herói acabou por ceder à imaginação.
Esse tipo de história, certamente sob múltiplas formas, existe nos
mitos de todos os povos: um jovem herói estrangeiro chega à corte de
um rei, liberta o país de seus inimigos internos e externos e desposa a
filha do soberano.
O acontecimento mítico possui tantas semelhanças com os hábitos
daqueles tempos recuados, que não se pode deixar de atribuir-lhe um
lastro histórico.
A história, entretanto, satisfaz ainda mais às possibilidades da
alma humana, quando a mesma relata que, uma vez no poder, o herói
perde sua simplicidade, o sentimento da σωφροσύνη (sophros×ne),
do meio-termo, da justa medida e, envaidecido com suas vitórias,
deixa-se arrastar para os loucos empreendimentos de conquista.
Quando não perece na guerra, é destituído do poder e consome o
resto de seus dias no tormento estéril do remorso pelos erros
cometidos e pela loucura.
Menos prolixo que a história, que transborda em pormenores
acidentais, o mito se concentra nos motivos recônditos dos relatos
intemporalmente típicos e põe a descoberto alguns temas sempre
significativos para a alma humana, graças à força condensadora de
sua expressão simbólica.
A dificuldade maior do combate, para o qual Belerofonte é
convocado, está enfatizada no seguinte índice simbólico: todo
homem muito imprudente, ao aproximar-se do monstro quimérico, é
por ele devorado, o que realmente não se pode negar, quando se trata
da exaltação imaginativa.
Os deuses, todavia, enviaram ao herói o cavalo alado Pégaso,
certamente o auxílio mais eficaz ou talvez o único eficiente na peleja
contra Quimera, a imaginação perversa, porquanto Pégaso configura
a imaginação sublime e objetiva que eleva o homem a regiões mais
altas.
O cavalo é a imagem da impetuosidade dos desejos, mas, se se
tratasse apenas de exprimir a impetuosidade, a simbolização poderia
ter escolhido muitos outros animais. Um símbolo é uma
condensação expressiva e precisa. O cavalo traduz os desejos
exaltados, porque é o quadrúpede sobre que se senta o homem, como
os desejos muito facilmente exaltados são o assento biológico, o
fundamento da animalidade do ser espiritual, que é o homem. Se este
doma e dirige o cavalo, deve ser capaz, igualmente, de refrear os
desejos. A façanha da liberação das paixões pode, neste contexto, ser
traduzida por uma outra imagem: abandonar a ‘besta’, descer do
cavalo, para ficar ereto sobre seus próprios pés. Pôr-se em pé seria
então sinônimo de ‘força da alma’. O equilíbrio, mercê da posição
ereta, é um dos traços mais característicos do homem. O pé convertese, desse modo, em símbolo da alma, significação que será atestada,
em seguida, em muitas passagens. O ser humano inseparavelmente
ligado ao cavalo é, antes do mais, um monstro mítico: o Centauro.
Mas, a ter que se separar temporariamente do animalesco (da
impetuosidade dos anseios que aniquilam o espírito), melhor seria
recuperar a energia primitiva desses mesmos desejos, purificando e
elevando-os ao nível sublime, o que é simbolicamente representado
pelas asas, que permitem ao cavalo erguer-se no ar.
O cavalo alado traduz o oposto da imaginação perversa, quer dizer,
o pensamento criativo e sua real ascensão. Nessa escalada, o homem,
esquecendo suas necessidades imediatas e corporais, aspira somente
a satisfazer seu desejo essencial. É a sublimação dessas necessidades
ou, ao menos, de sua impetuosidade, que impede, ‘que combate’ a
multiplicação quimérica dos apetites e, por conseguinte, também a
exaltação imaginativa a respeito dos mesmos.
Atená, imagem da combatividade sublime, enviando Pégaso a
Belerofonte para combater Quimera, mostra que o homem não está
em condições de vencer sozinho a exaltação imaginativa, a não ser
com o respaldo de energias espirituais e sublimes que o elevem
acima do perigo da perversão.
É sobre o cavalo alado que o herói luta contra Quimera. Sua
inspiração realmente sublime e sua inocência ingênua permitem-lhe
o triunfo sobre o perigo que o ameaça. A elevação sublime, porém, é
apenas um estado passageiro da alma humana. O homem deve
descer à terra. Seus desejos corporais assim o exigem. Ocupando-se
com eles, ei-lo, porém, novamente ameaçado pelo perigo quimérico
que o incita a exaltá-los. O verdadeiro herói é o que sabe resistir nesta
luta contínua, equilibrando-se nos dois planos: o nível da elevação
sublime e o plano da vida concreta. Eis aí o ideal grego da harmonia
dos desejos”5. Mas, por haver atingido a sublimidade nos momentos
de elevação, o herói, acreditando-se um ser extraordinário, convertese, por isto mesmo, em presa fácil da exaltação quimérica. O espírito
vitorioso, em função mesmo de seu triunfo, está sempre ameaçado de
transformar-se em espírito vencido. A timé e a areté, sufocadas pela
hýbris, fazem do herói vencedor uma vítima da vaidade e da
exaltação quimérica.
Foi desse modo que a mais estupenda das vitórias transformou-se
para Belerofonte na mais arrogante das loucuras. O herói revoltou-se
contra o espírito. Teve a audácia de querer conquistar o Olimpo, a
sede do espírito, pela força das armas, escudando-se em Pégaso.
Embriagado por suas vitórias e conquistas, acreditou-se mais forte
que Zeus e todos os deuses reunidos, os quais simbolizam a lei que
impõe ao ser humano o métron, a sophros×ne, a medida justa de suas
aspirações e esforços. O orgulho de Ixíon foi matizado de perversão
sexual, a vaidade de Belerofonte o foi de perversão dominadora, sob
sua forma mais arrogante e audaciosa.
4
Paul Diel não fecha sua análise na “conduta” de Belerofonte.
Amplia-a um pouco mais, para captar um outro ângulo muito
importante do mito de muitos heróis: a “conquista da virgem”. Na
realidade, o casamento de um vencedor de grandes e difíceis tarefas
com a jovem princesa, exposta ou não a um monstro, aparece, sob
variações e camuflagens diversas, em vários mitos importantes,
bastando citar os de Héracles, Jasão, Perseu, Teseu, Belerofonte...
Em todas as lendas6 e mitos, seus respectivos heróis, após gestas
atrevidas e perigosas, podem ou sucumbir em definitivo, como
Siegfried na lenda nórdica, ou vencer espetacularmente. Nas lendas,
porque estas alimentam as esperanças da vida e compensam
deficiências psíquicas, os heróis normalmente se consagram como
grandes campeões e tudo acaba em lua-de-mel, sob as bênçãos
generosas de Afrodite; nos mitos, ao revés, por serem estes expressão
simbólica da vida real, raros são os triunfadores. Mesmo que o herói,
por uma vitória passageira, liquide o monstro e despose a virgem,
pode perfeitamente perecer, decorrido, por vezes, um lapso de tempo,
como é o caso de Teseu, Jasão, Belerofonte...
Assim como o monstro configura não apenas a ameaça latente no
estado pervertido do mundo circundante, mas sobretudo o perigo
intrínseco da psiqué, a perda da pureza, de igual maneira a virgem
simboliza não só a pureza a conquistar, mas também uma união da
alma com o ser feminino, parceiro da vida. A escolha adequada deste
último é traduzida pela verdade mítica como condição decisiva de
uma existência sadia.
Desse modo, diz Paul Diel, “o tema do jovem par, herói em missão e
virgem a conquistar” se inserem na ilustração mítica não somente
como sentido da vida do homem e da mulher, mas também como
uma abrangência de todos os aspectos da existência. Aos combates
espirituais do homem-herói, cujo significado é a elevação na medida
de suas forças (pulsão evolutiva), se aglutina o auxílio fecundante
que lhe traz ou deveria trazer o impulso do amor (pulsão sexual), a
fim de lhe encorajar a resistência às seduções e ameaças
circundantes (pulsão social).
No mito em pauta, o monstro da impureza, que Belerofonte deve
matar para conquistar a filha do rei-hospedeiro, está retratado por
Quimera; mas é claro que esse tipo de monstro pode ser representado
por muitas outras figuras míticas, que traduzem a imaginação
exaltada, a perversão psíquica. Dentre elas, uma das mais frequentes
é o dragão, que se tornou também uma imagem típica das lendas, até
mesmo cristãs, como a de S. Jorge, o Perseu batizado, o cavaleiro
andante, vencedor de monstros e libertador de virgens cativas.
“O elo significativo entre o monstro que se deve eliminar e a
virgem a ser libertada aparece com frequência reforçado, graças à
imagem do dragão, guarda da virgem e do tesouro. Pode, todavia,
acontecer que o perigo psíquico, a exaltação monstruosa, permaneça
subentendida e não esteja estampada na história mítica pela imagem
explícita do monstro-dragão.
Levando-se em conta a multiplicidade dos elementos, poder-se-á
encontrar a urdidura desse tema mítico fundamental até mesmo em
Ixíon e Tântalo. No primeiro caso, a ‘virgem a ser conquistada’ é
substituída por Hera, a esposa de Zeus, rei-hospedeiro; no
mitologema de Tântalo, a mesma é representada pelo filho ‘a ser
sacrificado’. Tais substituições são simbolicamente consequentes,
porquanto a luxúria de Ixíon e o sacrifício de Tântalo7traduzem a
impureza de seus heróis, sua incapacidade de conquistar a virgem.
Igualmente no mito de Édipo, a ‘filha virgem’ aparece substituída
pela mãe, símbolo da terra, terra-mater, matéria, que é
incestuosamente desejada, imagem da exaltação dos desejos
terrestres. A dupla homem-mulher, o par herói-virgem terá que se
unir na pureza.
A sizígia da combatividade e da pureza, todavia, não se reduz
apenas à garantia do desenvolvimento do casal, pois que este há de
prolongar-se no filho. Com efeito, o par, plenamente realizado,
converte-se nos ‘pais míticos’ do filho, como verdadeiros forjadores
da alma pura e do espírito destemido da criança.
Assim, esse tema fundamental dos mitos, o ‘herói em missão’ e a
‘virgem a conquistar’, em luta com o espírito pervertido do mundo,
configurado pelo rei que governa, transmuta-se amplamente na
expressão simbólica não só da vida de um indivíduo, mas
igualmente do desenvolvimento histórico através das gerações. Cada
vez que brota uma vida nova, surge a esperança heroica e cada
adolescente, em graus diferentes de intensidade, a agasalha em si.
Ferido, todavia, pela impureza da exaltação quimérica, alimentada
por pais incapazes de exercer o papel mítico de educadores da alma,
a esperança perde sua força de resistência, estiola-se e não resiste aos
assaltos do mundo intrigante e da inércia da perversão”8.
O exemplo sublime da combatividade pura tem sua mais alta e
profunda expressão no cristianismo. O “herói” divino foi enviado
pelo rei dos Céus, o Deus único, imagem do ideal supremo. Não foi
ele mandado para libertar este ou aquele país, mas o universo inteiro.
Filho de Deus, o “filho do homem” travou e venceu o combate
definitivo contra todas as perversões, configuradas pelo “príncipe do
mundo”, Satã, símbolo supremo da exaltação quimérica. Sendo Ele a
pureza perfeita e absoluta, não teve necessidade de conquistar a
virgem-esposa, símbolo igualmente da pureza. Este novo “rei”, que
fez esquecer todos os heróis, é puro por sua própria essência e puro
por seu nascimento, o que se exprime pela verdade da virgem-mãe.
O mito grego, ao contrário, não alcançou o ideal da elevação
perfeita. Bastou-lhe descobrir, através da história simbólica do herói
vencedor, o meio de exprimir seu ideal, o ideal da justa medida, do
meio-termo, da sophros×ne e da harmonia das pulsões. Já foi muito,
mas faltou-lhe o fecho.
2. O mito explica diversamente a origem da célebre fonte de Pirene em Corinto. Pirene, filha
do deus-rio Asopo, unindo-se a Posídon, foi mãe de Leques e Quêncrias, heróis epônimos dos
dois portos da grande cidade marítima. Mas, como Ártemis, acidentalmente, matara a
Quêncrias, Pirene chorou tanto, que suas lágrimas formaram a fonte de seu nome. Existe
uma variante: a fonte de Pirene teria sido um presente do rio Asopo a Sísifo, como
recompensa de um grande benefício que este lhe prestara segundo se mostrou no capítulo
XI, 1, do Vol. I, p. 238. É que Sísifo revelara a Asopo a identidade do raptor de Egina, filha do
deus-rio, sequestrada por Zeus.
3. Existe, no mito, uma certa dificuldade “cronológica” para se identificar Sarpédon, uma vez
que há três personagens, que talvez se possam reduzir a duas, com o mesmo nome. O
primeiro é um herói do ciclo cretense, um gigante, filho de Posídon e morto por Héracles. O
segundo é o filho de Zeus e Europa e, por conseguinte, irmão de Minos e Radamanto.
Deixando Creta, certamente em companhia da mãe, emigrou para a Ásia Menor, onde
fundou Mileto e reinou. O terceiro é o Sarpédon da Ilíada, chefe de um grupo de lícios que
lutaram bravamente ao lado dos Troianos, até que seu comandante perecesse às mãos de
Pátroclo, tendo-se travado um grande combate em torno de seu cadáver. Para distinguir o
Sarpédon cretense daquele que participou da Guerra de Troia, Diodoro Sículo construiu
uma nova genealogia: Sarpédon, o cretense, filho de Europa, emigrou para a Lícia. Um filho
seu, chamado Evandro, casou-se com uma filha de Belerofonte, Deidamia ou Laodamia;
desse enlace nasceu o segundo Sarpédon, neto do primeiro e que lutou em Troia.
4. A respeito de Ixíon e de seu terrível engano com Hera, já se falou no capítulo XIII, 2, do
Vol. I, p. 298s.
5. DIEL, Paul. Op. cit., p. 88ss.
6. Veja-se, no capítulo II, l e nota, do Vol. I, p. 37ss a diferença estabelecida entre lenda e mito.
7. O mito de Tântalo, que sacrificou a seu próprio filho Pélops, foi exposto no capítulo V, 4,
do Vol. I, p. 83ss.
8. DIEL, Paul. Ibid., p. 89ss.
CAPÍTULO VII
Faetonte: uma ascensão perigosa
1
O mito de Faetonte está estreitamente vinculado ao de seu pai
Hélio, a cujo respeito já se falou, de passagem, no Vol. II, p. 87. Hélio,
que provém da raiz indo-europeia â-suel-io, “brilhante”, donde o
latim sol, que postula, certamente, uma forma *swôl1, para os antigos
configurava o Sol divinizado. Segundo alguns, era um deus, segundo
outros, um dáimon, um “demônio”. É que, como se verá, assimilado
por Apolo, tornou-se um simples intermediário entre os deuses e os
mortais.
Filho de Hiperíon, isto é, do que “olha mais de cima” e de Teia,
conforme se pode ver no quadro genealógico do Vol. II, p. 19, o deus
Sol pertence à geração dos Titãs. Trata-se, pois, de uma divindade
muito antiga, mas sem grande projeção no mito, talvez mesmo por
ser um titã. Já na Odisseia, XII, 127ss, o deus aparece tão somente
como senhor, na ilha Trinácria, de rebanhos de vacas e ovelhas, que
de tão gordas nem mais se reproduziam. Tendo os companheiros de
Ulisses devorado algumas dessas vacas, Hélio não teve forças para
castigá-los e, por isso mesmo, pediu a Zeus que o fizesse, Odisseia, XII,
377ss, ameaçando, sem muita convicção, deixar de espargir sua luz
sobre o mundo para iluminar os mortais. Tinha por irmãos a Eos
(Aurora) e Selene (Lua). Com Perseis, filha de Oceano e Tétis, foi pai
da mágica Circe, de Eetes, pai de Medeia, de Pasífae e de Perses. De
sua união com Clímene nasceram as helíades2e Faetonte3.
Representado como um jovem de grande beleza com a cabeça
cercada de raios, percorria o céu num carro de fogo ou numa taça
gigantesca, como se viu no mito de Héracles, capítulo III, 3, de
incrível velocidade, tirada por quatro cavalos: Pírois, Eoo, Éton e
Flégon, isto é, fogo, luz, chama e brilho. Cada manhã, precedido pelo
carro da Aurora, avançava impetuosamente, derramando a luz sobre
o mundo dos vivos. Chegava, à tarde, ao Oceano, ao “poente”, onde
banhava seus fatigados corcéis. Repousava num palácio de ouro e,
pela manhã, após ter-se purificado no bojo do mar, recomeçava pelo
“oriente” seu trajeto diário. Jung descreve esse itinerário e a luta de
Hélio com o dragão-monstro do mar de maneira simples e profunda.
“Todas as manhãs um herói-deus nasce do mar; conduz o carro do
sol. No ocidente, a grande mãe o aguarda e o herói-deus é por ela
devorado, ao cair da noite. No ventre de um dragão, ele atravessa as
profundezas do mar da meia-noite. Após terrível combate com a
serpente da noite, ele renasce, novamente, na aurora”4.
De certa forma Rank complementa a observação de Jung: “Se o
herói se identifica com o Sol, não é somente porque este nasce a cada
dia, mas também porque desaparece diariamente tragado pelas
entranhas da terra, o que corresponde ao desejo primordial de união
com a mãe-noite”5.
Muito cedo, entretanto, Hélio se tornou uma divindade secundária
e foi, aos poucos, sendo substituído por Febo Apolo, transformando-
se o descendente dos Titãs num mero serviçal dos deuses. Tal fato se
deve, em parte, a antigas concepções sobre a forma do mundo. A taça
de Hélio, deslocando-se da Índia, sobrevoava o Oceano que cercava a
Terra, o que se constituía numa caminhada bem mais curta. Os
progressos da astronomia estabeleceram para o percurso do Sol o
trajeto diurno, que percorre a abóbada celeste, bem mais longo e
difícil. Com isto os cavalos de Hélio foram aposentados e Febo Apolo
assumiu o comando da Luz.
2
FAETONTE, em grego Φαέθων (Phaéthon), provém, tudo faz crer,
de φάος (pháos), “luz”, como se pode deduzir através de ϕαεινός
(phaeinós), “brilhante”, que remonta à raiz bhâ, bhau, “faiscar,
brilhar”.
Filho de Hélio e Clímene, segundo se mencionou acima, Faetonte
foi educado pela mãe, em total desconhecimento de quem era seu
pai. Ao atingir os inícios da adolescência, a mãe contou-lhe que seu
genitor era Hélio, o Sol. Querendo certificar-se da revelação materna,
dar uma resposta condigna aos que dele zombavam por dizer-se
filho do Sol e sobretudo desejoso de conhecer o pai, resolveu procurálo.
Ovídio, em suas Metamorfoses, 2,1-328, nos deixou em tom
majestoso e dramático o relato dessa busca, do juramento temerário
de Hélio e sobretudo do descomedimento e morte trágica de
Faetonte. Vamos seguir, de maneira mais ou menos livre, o texto das
Metamorfoses, encaixando-lhe, aqui e ali, algumas citações da obra
criativa de Edith Hamilton6. Começaremos pela descrição do palácio
do Sol e pela acolhida de Hélio ao filho; passaremos, em seguida, à
audaciosa gesta do herói e fecharemos com sua morte violenta nas
mãos de Zeus. Logo depois estamparemos a análise de Paul Diel.
O palácio de Hélio era realmente fulgurante: brilhava o ouro,
cintilava o marfim, reluziam as portas de prata. “Por dentro e por
fora tudo dardejava luz, resplandecia e tremeluzia. Era sempre meiodia; a meia luz sombria nunca turvava a claridade; a escuridão e a
noite eram desconhecidas. Muito poucos mortais poderiam resistir
durante algum tempo àquele brilho imutável de luz, mas também
apenas poucos teriam conseguido descobrir o caminho que levava
até lá”. O mortal Faetonte, na ânsia de conhecer o pai, o conseguiu.
Escalando árduas e longas encostas, viu-se repentinamente
mergulhado na luz. Parou, porque o esplendor do palácio paterno o
cegava e queimava. Sentado num trono de esmeraldas, Hélio, que
tudo vê, divisou na luz o próprio filho e lhe falou com ternura: “Que
vens fazer aqui, que buscas, Faetonte, meu filho e minha glória?” O
jovem herói respondeu ofegante: “Luz do imenso universo, Hélio, pai,
se me permites assim falar, se minha mãe Clímene não me contou
ficções, dá prova de que és verdadeiramente meu pai, para que a
incerteza em que vivo, aqui se acabe”. Tendo retirado a coroa de luz
incandescente, para que o jovem pudesse se aproximar, abraçou-o
longamente, acrescentando: “Tu és meu filho e Clímene disse-te a
verdade, mas, para que não duvides de minha palavra, pede-me o
que quiseres. Tomo por testemunha de minha promessa aquele por
quem juram os deuses, o Estige, o rio infernal, que nunca vi”.
Faetonte, sem hesitar, pediu-lhe para reger, por um dia, o Carro do
Sol. Arrependeu-se o pai do juramento feito: “Falei temerariamente;
confesso que esta é a única coisa que gostaria de te recusar. Perigoso é
teu desejo. Pedes algo imenso, muito superior às tuas forças, uma
carga pesada em demasia para teus tenros anos. Tu és mortal e
imortal é aquilo a que aspiras. Desejas o que ainda não foi concedido
aos deuses! O próprio senhor do Olimpo, que lança os raios com sua
destra, jamais rolou pelos céus a taça do Sol! De saída, filho, a estrada
aérea é tão árdua e íngreme, que os próprios cavalos, frescos, da noite,
com grande dificuldade a escalam. A meio do percurso, a altitude é
tanta, que o mar e as terras, quando de lá os contemplo, me assustam
e o coração se me aperta no peito. E a descida é tão precipitada, e é
preciso tão grande firmeza, que lá embaixo, nas ondas, a tremer, Tétis
me espera. E pensas que lá em cima encontrarás bosques, cidades de
imortais e ricos templos? Viaja-se através de perigos e de monstros.
Terás que passar pelo cornígero Touro, pelo arco tessálio do
Sagitário, pelas garras do fero Leão, pelas tesouras do Escorpião e
pelos curvos braços de Câncer. Nem penses ser fácil governar meus
indômitos corcéis, que lançam chamas pela boca e pelas ventas!”
Todas as sensatas e realistas ponderações de Hélio de nada
valeram. Faetonte ardia em aspirações e perspectivas arrojadas e
gloriosas: guiaria em triunfo ginetes fogosos que nem o próprio Zeus
seria capaz de controlar...
Pela manhãzinha, quando a Aurora de dedos cor-de-rosa abriu as
portas purpurinas do rútilo Oriente, quando o tropel das estrelas já ia
fugindo da Estrela da manhã e a lua desmaiada deixou o céu
inteiramente livre, as Horas prepararam os insofridos corcéis.
Refeitos pela ambrosia, os quadrúpedes mastigavam o freio de ouro,
inquietos e prontos para a partida. Hélio arrancou do coração alguns
conselhos: não uses chicote, meu filho. Controla os animais na rédea,
com toda a firmeza de que fores capaz: por si mesmos são ágeis e
frenéticos. Ungiu o rosto do filho com um unguento sagrado, para
que as chamas não o crestassem, e colocou-lhe na fronte a coroa
radiosa. Era o momento da última advertência: não corras rasteiro à
terra, nem levantes voo até o céu. Caso contrário, incendiarás o
planeta ou abrasarás o céu. Voa no meio e correrás seguro!
Faetonte subiu à taça imensa, que mal sentiu o peso juvenil. De pé,
ufano, o herói empunhou as rédeas. Os velozes frisões de Hélio,
rinchando sôfregos, feriam o chão com os cascos. Tétis,
desconhecendo o destino do neto, abriu-lhes toda a amplidão do céu.
Os cavalos partiram, rasgando as névoas e ferindo o ar. O peso,
todavia, era muito leve e diferente daquele a que estavam habituados
a arrastar pelo campo azul do firmamento. Percebendo que não a
guiava a mão segura de um deus, a quadriga deixou a rota
costumeira e precipitou-se desordenada para baixo e para cima, para
a esquerda e para a direita. “O próprio Vento do Oriente foi
ultrapassado e deixado para trás, as patas dos cavalos voavam por
entre as nuvens baixas, sobre o Oceano, como se atravessassem uma
névoa marítima, e, depois sempre para cima, sempre mais para cima,
nos ares límpidos, subindo às alturas máximas do céu. De repente,
porém, operou-se uma alteração – o carro começou a guinar
fortemente para um lado e para o outro; a velocidade era cada vez
maior; Faetonte perdera o controle!...” O mísero e incauto jovem
empalideceu e um súbito pavor lhe entorpeceu os membros. Seus
olhos banhados em luz contemplavam a noite. Que poderia fazer
agora? Deixava atrás desi vastos céus e céus mais vastos se
desdobravam diante dele. Com as mãos esmorecidas nem segurava
nem soltava as rédeas. Estremeceu, ao divisar as feras imensas
espetadas no céu! Vendo o horrendo Escorpião alastrar seus braços
curvos pelo espaço, gotejando sua peçonha mortal, e contemplando-
lhe o serpear hostil da aguçada cauda, deixou, por fim, tombar as
rédeas das mãos. Os corcéis dispararam. Abalroaram as estrelas e
atropelaram os montes! Alastrou-se um vasto incêndio. Inflamaramse as nuvens e fenderam-se as terras. Arderam cidades, rios, montes e
florestas. A Faetonte agora só era dado ver fogo e fumo. Como se se
encontrasse no bojo de uma fornalha voraz, o herói foi envolvido
dentro da taça por um calor insuportável. Cobriu-o um manto
imenso de fumo e de cinzas.
A Terra, no entanto, a grande deusa, a mãe de tudo, pávida e
convulsa, pediu a Zeus o fim de tão grande catástrofe. O pai dos
deuses e dos homens, que vela dia e noite pela estabilidade da ordem
cósmica, ouviu-lhe o pranto e a prece. Com a anuência de todos os
imortais, subiu ao píncaro do Olimpo e de lá desferiu seu raio
certeiro contra o insolente auriga, lançando-o morto no espaço em
cataclismo. Extinguiu-se o fogo no próprio fogo! Espantaram-se os
indômitos ginetes e, sacudindo o jugo, fizeram em pedaços o Carro de
Hélio. Rédeas, bridões e rodas em chamas espalharam-se no vasto
espaço incandescente. Como um rasto de estrela cadente, Faetonte
desceu de roldão pelo ar. Longe da terra natal, o herói tombou em
chamas no caudaloso Erídano7que lhe extinguiu as labaredas e
arrefeceu-lhe o corpo mutilado.
As náiades da Hespéria
condignamente o sepultaram.
recolheram-lhe
o
cadáver
No túmulo colocaram a seguinte inscrição:
Hic situs est Phaethon, currus auriga paterni Quem
si non tenuit, magnis tamen excidit ausis.
– Aqui repousa Faetonte, o condutor audaz do carro
paterno, ao qual se não pôde guiar, ao menos pereceu
e
em gesta gloriosa.
Por um dia, mergulhado na dor, Hélio teria deixado a terra
mergulhada nas trevas, não fora o clarão das labaredas que ainda
crepitavam.
Suas irmãs, as helíades, choraram-no tanto, que nesse mesmo local,
às margens do Erídano, foram metamorfoseadas em choupos,
Onde, embora árvores, continuam a chorar
e cada lágrima, ao cair, enrijecida pelo sol,
transforma-se em âmbar.
Às lágrimas e soluços das helíades ajuntaram-se as do jovem rei da
Ligúria, Cisne, que, saudoso de seu íntimo amigo Faetonte, encheu de
lamentações e gemidos as margens verdejantes, as correntes e as
florestas que circundavam o Erídano. Aos poucos, no entanto, se lhe
adelgaçou a voz, seus cabelos converteram-se em alvas penas e o
corpo todo se emplumou. Ei-lo agora uma ave. Chamou-se a si
mesmo cisne. Temeroso dos raios de Zeus, seu voo não alcança as
alturas do céu. Prefere a branda fresquidão dos vastos lagos, a água
que afoga e extingue os coriscos divinos.
3
O mito de Faetonte talvez possa servir de padrão significativo para
as terríveis consequências da hýbris descontrolada, da suprema
démesure, da perigosa ultrapassagem do métron.
Não é outro o “tom” da análise elaborada por Paul Diel a respeito
desse auriga embriagado de descomedimento.
“Faetonte é filho de Hélio, deus do sol. Para bem se compreender o
sentido dessa filiação, que desvenda o significado oculto do mito, é
necessário levar em conta o que representa especificamente o deus
Hélio.
Todas as qualidades positivas são retratadas por deuses solares.
Existem, todavia, na Grécia, duas divindades que simbolizam mais
explicitamente o sol: Hélio e Apolo. Ambos o representam, mas sob
dois aspectos diferentes. Hélio simboliza o sol real, que preside ao
ciclo das estações, à vegetação, à fecundação e à produtividade do
solo. O sol, entretanto, não é adorado somente como astro real, que
ajuda a provocar a eclosão dos frutos da terra. A simbolização mítica
é caracterizada por uma tendência geral em transpor a
produtividade exterior e vegetativa para um plano psíquico e moral.
Desse modo, os frutos da terra convertem-se no símbolo dos ‘frutos’
da alma, dos desejos e de sua espiritualização-sublimação. Sob esse
enfoque, o sol transmuta-se em índice da produtividade da alma, da
harmonia das aspirações. Ora, o mito grego retrata a força suprema
do espírito e da alma, a verdade e o amor através de duas divindades
supremas: Zeus e Hera. Como consequência, miticamente falando, os
filhos dessas qualidades excelsas são a sabedoria e a harmonia,
estampadas em Atená e Apolo.
O fato de ser filho de Hélio deixa entrever que Faetonte não
buscará a riqueza espiritual, a harmonia e o saber, mas uma
produtividade extrovertida. O mito do filho de Hélio enfocará um
tipo de homem bem diferente de Tântalo. Este aspira à fecundidade
interior, ao desenvolvimento das potencialidades. Seu erro foi a
busca excessiva, sem levar em conta suas forças limitadas. No
mitologema de Tântalo, embora o herói tivesse em mira a tarefa
essencial, a formação do caráter, a ausência da ajuda simbólica de
Apolo e Atená se explica pela carência no herói, no plano
psicológico, do saber e da harmonia.
Faetonte, ao contrário, por não ser descendente de Apolo, mas de
Hélio, não ambiciona a harmonia espiritual, mas a fecundidade
exterior, em proveito do mundo. Essa obra exteriorizada, no entanto,
será de origem espiritual, uma vez que toda divindade solar,
enquanto pai mítico de um homem, configura uma qualidade do
espírito. É exatamente isto que se elucidará mais abaixo.
Relata o mito que Faetonte, ao saber de sua origem divina, saiu em
busca de seu pai Hélio. Quer dizer: no momento em que se lhe
despertou o espírito, naquela idade do entusiasmo, quando o
adolescente se conscientiza de seus atributos, quando aquele que
possui a qualidade positiva configurada pela divindade reconhece
pela vez primeira ser seu ‘filho’, é que Faetonte foi à procura do pai.
Em outros termos: o herói se apresta em usar de suas qualidades
produtivas.
Há, todavia, no mito um aspecto significativo: para Faetonte a
busca do ‘Pai’ não obedece a motivação alguma interna, mas à
indignação contra aqueles que o censuravam de vangloriar-se
inoportunamente, dizendo-se ‘filho do Sol’, homem-espírito. O herói
visa à ‘produtividade’, tentando comprovar sua identidade. Não é,
pois, uma decisão interna, o amor por seu pai-espírito, que lhe
fundamenta a decisão, mas esta, desde o início, é movida pela
necessidade de brilhar e de impor-se. Faetonte se apressa em tornarse espiritualmente produtivo, a fim de provocar a admiração por sua
origem e seus feitos. A vaidade o espreita, desde a partida.
A alegria, ao ver o filho, faz que Hélio jure atender-lhe a qualquer
pedido. O filho do Sol não julga exagerado solicitar ao pai que lhe
permita guiar-lhe o carro, mesmo durante um só dia. Todo o intuito
secreto de Faetonte está condensado no simbolismo deste pedido e a
tradução da imagem é a chave para se compreender o caráter do
herói e, por conseguinte, a explicação psicológica do mito. A
solicitação do jovem filho de Clímene não possui a obscuridade
analógica habitual dos símbolos, mas parece, à primeira vista, conter
a nitidez de uma simples metáfora poética.
O sol prodigaliza à terra a fertilidade e a luz, donde, para o herói –
filho de uma divindade solar –, fecundar e iluminar o mundo são um
desejo natural, mas que não pode ser exaltado. Segundo a dimensão
natural de suas qualidades, o filho de Hélio se julga fadado a ser
portador da iluminação espiritual. Mas, pelo fato mesmo de ser
mortal, ele próprio terá necessidade de receber primeiro a luz,
símbolo da verdade. Seu espírito seria, por assim dizer, apenas um
espelho da verdade, apto a captar-lhe, quando muito, os raios
esparsos, a fim de concentrá-los e refleti-los, isto é, tornar-se fecundo
dentro das limitações de seus próprios atributos. Faetonte não aceita,
porém, o esforço paciente de elucidação progressiva, que é tarefa
própria do espírito humano. Seu pedido expressa o mais insensato
dos projetos: alicerçado em suas próprias forças, pretende garantir ao
mundo a fonte mesma de toda a luz. Não duvida que possa mostrarse à altura da ‘qualidade’ ideal, cujo símbolo é seu pai, guia do carro
solar. A presunção do herói é substituir a seu genitor mítico, figura
imortal, porque símbolo do processo ininterrupto de iluminação e de
fecundação. Não satisfeito com os limites de ‘filho’ mortal, pretendeu
fazer-se de deus, igualando-se à divindade. Aí está, sob novo aspecto,
a falta de Tântalo. O pedido de Faetonte configura o excesso de
vaidade, cuja vítima, bem mais cedo do que se esperava, foi ele
próprio.
Esse tipo de vaidade que ambiciona iluminar espiritualmente a
vida, quer dizer, combater o erro a ponto de pretender salvar o
mundo, é um dos aspectos mais frequentes da exaltação,
relativamente ao espírito. À medida que se remexe a psiqué doente
até os recônditos da motivação secreta, essa tarefa exaltada pode ser
detectada em diversos níveis de intensidade e de disfarce em um
bom número de estados de deformação psíquica e encontra sua
explosão manifesta em certas formas megalômanas de vaidade
delirante.
Desse modo, como ficou bem claro no mito de Tântalo, o perigo
fundamental será sempre a exaltação insensata no que diz respeito à
mais essencial das ‘produções’ no decorrer da formação do caráter,
que é a formação da individualidade. De outro lado, é precisamente
na medida em que esta circunstância primordial de toda
produtividade fecunda se acha negligenciada, que a busca da obra
exterior se transforma facilmente em manifestação de vaidade. O
desejode Faetonte exprime bem o fato, desde que, em lugar de
enfocá-lo sob a luz diáfana da metáfora poética, seja o mesmo
analisado em toda a sua profundidade simbólica. O cavalo, já se viu,
traduz a impetuosidade dos desejos, tornando-se, destarte, a imagem
dos anelos indômitos, um reflexo da imaginação perversa. O cavalo
alado, ao revés, retrata a sublimação dos mesmos. Antes de subir no
carro do Sol e empunhar as rédeas dos fogosos ginetes, o herói
deveria ter aprendido primeiro a dominá-los, a sublimar ele próprio
os seus anelos. Somente esta sublimação poderia tê-lo preservado das
consequências de seu pedido insensato e perigoso.
Apesar das súplicas de Hélio, o filho se recusou peremptoriamente
a ouvir as ponderações do deus solar, do espírito. Repugna-lhe
submeter-se aos conselhos paternos. Seu escopo é aparecer e realizar
obra deslumbrante e desmesuradamente grande. Segundo o mito,
Hélio se comprometeu sob juramento; consoante o sentido oculto, a
qualidade espiritual, quando obliterada pela exaltação, torna-se
impotente face a aspirações absurdas. Faetonte se apossa do Carro,
atrela os ginetes e faz sair o sol, a luz, do palácio de ouro de seu pai.
Muito rapidamente, porém, tornou-se manifesta sua incapacidade de
controlar a quadriga. A taça gigantesca desvia-se da rota. O sol-luz, a
verdade que o herói governa, deixa seu caminho pré-fixado.
Desgovernada, erra ao acaso. O roteiro traçado por Faetonte é o do
erro. A taça, conduzida à deriva, deixa a região sublime e se
aproxima em demasia da terra: vale dizer, a verdade de que se faz
guia o filho de Hélio está contaminada de desejos terrestres, de
impurezas. A luz brilhante transmuta-se em chama devoradora. Em
vez de fecundar, abrasa a terra.
Zeus, símbolo supremo do espírito, restabelece a ordem. Lançando
seu raio contra Faetonte, põe-lhe fecho à obra destruidora. Trata-se
de nova simbolização do tema central. O relâmpago iluminador, o
esclarecimento espiritual, inflama o homem de maneira sublime,
suscita-lhe entusiasmo e alegria produtiva; a afronta ao espírito,
porém, a exaltação insensata do atributo espiritual transforma o
dom em punição, a claridade em raio.
Lançado fora do carro, longe do caminho do espírito-sol, Faetonte
é arremessado sobre a terra, envolto nas chamas destruidoras por ele
próprio ateadas.
No mito do filho de Hélio, cujo tema, consoante seu sentido oculto,
é a elaboração vaidosa, que transforma a verdade em erro, o culpado
não é o único a ser punido. A chama devoradora se espalha e atinge
todos os mortais. Este simbolismo realça um aspecto capital da
perversão do espírito. O fogo destruidor traduz o castigo que é
inevitavelmente inerente à corrupção vaidosa da verdade, ao delito
culposo. O que, na realidade, se difunde é a culpa; e por suas
consequências funestas (a chama destruidora) são atingidos quantos
participaram do delito do herói (autor do crime), deixando-se
influenciar pela falta provocada pelo mesmo. O delito essencial, o
erro sobre o sentido da vida (a única de que falam os mitos),
disseminado pelo espírito falso, se enraíza na psiqué de seus
semelhantes e os ofusca com falsos julgamentos, vale dizer, com
razões pseudoespirituais. Esses engodos explodem sob formas
insensatas e até mesmo absurdas. O erro separa, exalta
subjetivamente, isola as pessoas, ou as reúne, parcialmente, no calor
do entusiasmo falso e destrutivo, como é o fanatismo. As razões
perversas, vaidosamente justificadas, inconscientemente ocultas e
convertidas em culpabilidade recalcada e obsedante, manifestam-se
sob a forma de acusações mútuas. Disto resulta o desprezo recíproco,
o ódio, a agressão. É, desse modo, que a falta essencial, criada pela
exaltação sentimental do falso herói do espírito e por sua
incapacidade qualitativa, transforma-se pela terra inteira. Forma-se,
destarte, um círculo vicioso, que não é apenas intrapsíquico, mas que
abrange igualmente o mundo e suas gerações”8.
Acrescente-se, para fecho deste capítulo, que o Carro do Sol
simboliza, desde tempos pré-históricos, segundo acentuam
Chevalier e Gheerbrant9, o deslocamento do astro ao longo de uma
curva que liga, através da abóbada celeste, as duas linhas opostas do
horizonte, nascente e poente. Este carro, puxado por cavalos
velocíssimos, tornar-se-á o de Hélio, Mitra, Átis, quando estas e
outras divindades se identificarem com o deus solar. Para a religião
monoteísta judaica, tudo quanto evocasse antigos cultos e ritos
solares deveria ser destruído. Quando o piedoso rei Josias “renovou a
aliança com o Senhor”, tornou ainda mais radical sua reforma
iniciada anteriormente e empreendeu uma verdadeira caçada aos
ídolos, altares e santuários consagrados aos deuses dos gentios. O
carro e os cavalos do Sol merecem uma referência precisa em 2Rs
23,11: Josias “tirou também os cavalos que os reis de Judá tinham
consagrado ao sol, à entrada do templo do Senhor, perto da pousada
do eunuco Natanmelec, que estava em Farurim, e queimou as
carroças do sol”.
Sobrou da catástrofe o carro de Apolo, que, ultimamente, voltou a
circular pilotado por novos heróis...
1. ERNOUT, A. & MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. 4. ed. Paris:
Klinc-ksieck, 1959, verbete sol.
2. As helíades, quer dizer, filhas de Hélio, eram cinco: Mérope, Hélie, Febe, Etéria, Dioxipe ou
Lapécia.
3. Acerca de Hélio e seu filho Faetonte, as informações mais antigas estão na Odisseia, III, 1;
X, 138; XII, 127ss; 260ss; 374ss; Hesíodo, Teogonia, 371ss; 957; 986ss; Píndaro, Olímpicas, 7,58;
Eurípides, Troianas, 439; Apolodoro, Biblioteca, 1,2,2; 4,3; 6; 9,1; 25; 3,1,2; 14,4; Pausânias,
Descrição da Grécia, 1,4,1; 2,3,2; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 5,23,56; Higino, Fábulas,
152, 154, 156, 183, 250; Ovídio, Metamorfoses, 2,1-381; 4,167ss.
4. JUNG, C.G. citado por Patrick MULLAHY. Édipo: Mito e complexo. Rio de Janeiro: Zahar,
1975, p. 175s [Tradução de Álvaro Cabral].
5. RANK, Otto. The Trauma of the Birth. London: Routledge and Kegan Paul, 1947, p. 150.
6. HAMILTON, Edith. A Mitologia. 3. edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, p. 187ss
[Tradução de Maria Luísa Pinheiro].
7. Rio mais ou menos fabuloso, localizado no extremo oeste ou norte da Europa, por vezes
identificado com o rio Pó.
8. DIEL, Paul. Op. cit., p. 72ss.
9. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 209. 242
CAPÍTULO VIII
Os Labdácidas: o Mito de Édipo
1
LABDÁCIDAS1é um termo genérico para designar os descendentes
de Lábdaco, antigo rei de Tebas, em grego Λάβδακος (Lábdakos),
que se procura explicar etimologicamente pela raiz lep, do verbo
λέπειν (lépein), “esfolar”. Segundo uma tradição, o rei de Tebas fora
despedaçado pelas Mênades ou Bacantes. O étimo é discutível, e
Marie Delcourt sugere outra explicação, conforme se mostrará mais
adiante.
Para se chegar a Lábdaco e a seu desditoso neto Édipo é preciso
recuar um pouco. Como no Vol. II, p. 247ss, já se falou do rapto de
Europa por Zeus e da procura desta por seus irmãos, o que levaria à
fundação de Tebas, vamos resu1. As fontes mais antigas que se conhecem acerca de cada um dos labdácidas, exceto as que
se referem a Édipo, são as que se seguem. AGENOR: Heródoto, Histórias, 2,44; 4,147; 6,46ss;
Apolodoro, Biblioteca, 2,1,4; 3,1; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, 5,59,lss; Pausânias,
Descrição da Grécia, 5,25,12; Ovídio, Metamorfoses, 2,838; 3,51.97.257; Higino, Fábulas, 6; 178;
179. CADMO: Homero, Odisseia, V, 333ss; Hesíodo, Teogonia, 935ss; Píndaro, Píticas, 3,152ss;
Olímpicas, 2,38ss; Heródoto, Id., 4,147; Eurípides, Fenícias, 822ss; 930ss; Bacantes, 1330ss;
Apolônio de Rodes, Argonáuticas, 4,516ss; Apolodoro Id., 3,1,1; 4,1; 5,2; 5,4ss; Diodoro Sículo,
Id., 4,2,lss; 5,47ss; 48; 49; 5,59,2ss; Estrabão, Geografia, 1,46; 7,326; Nono, Dionisíacas, l,140ss;
350ss; Pausânias, Id., 3,1,8; 15,8; 24,3; 4,7,8; 7,2,5; 9,5,lss; 10,1; 12,lss; 16,3ss; 26,3-4; 10,17,4; 35,5;
Ovídio, Id., 3,6ss; 4,563ss; Higino, Id., 6; 178; 179. POLIDORO: Hesíodo, Id., 978; Heródoto, Id.,
5,59; Eurípides, Fenícias, 8; Bacantes, 43; 213; Apolodoro, Id., 3,4,2; 3,55; Diodoro Sículo, Id.,
4,2; 19,53; Nono, Id., 5,210ss; 46,259; Pausânias, Id., 2,6,2; 9,5,3ss; Higino, Id., 179. LÁBDACO:
Sófocles, Édipo em Colono, 221; Antígona, 594; Heródoto, Id., 5,59; Eurípides, Fenícias, 8;
Apolodoro, Id., 3,5,5; Pausânias, Id., 2,6,2; 9,5,4ss; Higino, Id., 76. LAIO: Sófocles, Édipo Rei,
passim; Heródoto, Id., 5,59ss; Eurípides, Fenícias, passim; Apolodoro, Id., 3,5,5; 7ss; Plutarco,
Vidas Paralelas, 33; Pausânias, Id., 4,8,8; 9,2,4; 5,6-12; 15; 26,3-4; 9,5,2.3.5.6; 10,5,3-4; Estácio,
Tebaida, 7,354ss; Higino, Id., 9; 66; 76.
Quadro 8
mir e realçar aqui apenas os dados principais, a fim de que se tenha
uma visão global do mitologema.
Com o rapto de Europa por Zeus-Touro, Agenor, rei da Fenícia,
ignorando a identidade de quem lhe arrebatara a filha, ordenou a
seus três filhos mais velhos, Fênix, Cílix e Cadmo que a procurassem
por todo o mundo conhecido e que não regressassem sem ela. Os três
príncipes iniciaram imediatamente a busca, mas, decorrido algum
tempo, percebendo que sua tarefa era inútil e como não pudessem
regressar à corte paterna, em Tiro ou Sídon, começaram a fundar
colônias, onde se estabeleceram.
Cadmo fixou-se na Trácia com sua mãe Telefassa. Morta esta, o
herói consultou o oráculo e este lhe ordenou que abandonasse em
definitivo a procura da irmã e fundasse uma cidade. Para tanto
deveria seguir uma vaca até onde ela caísse de cansaço. Pondo-se a
caminho, Cadmo, após atravessar a região da Fócida, encontrou uma
vaca, marcada nos flancos com um disco branco, configuração da
Lua. Seguiu-a por toda a Beócia e, quando o animal se deitou de
fadiga, compreendeu que se cumpria o oráculo. Mandou os
companheiros a uma fonte vizinha, consagrada a Ares, em busca de
água para as abluções, mas um dragão os matou. O filho de Agenor
conseguiu liquidar o monstro e, a conselho de Atená, semeou-lhes os
dentes, do que nasceram gigantes ameaçadores, aos quais deu o nome
de Spartói, os “Semeados”.
Cadmo atirou pedras no meio deles e os gigantes, ignorando quem
os provocava, acusaram-se mutuamente e se mataram.
Sobreviveram apenas cinco: Equíon (que mais tarde se casou com
Agave, filha de Cadmo), Udeu, Ctônio, Hiperenor e Peloro, os quais,
juntamente com Cadmo, formarão o núcleo ancestral da aristocracia
tebana.
A morte do Dragão, símbolo do próprio deus Ares, tinha que ser
expiada: Cadmo, futuro rei de Tebas, durante oito anos serviu ao
deus como escravo. Terminado o rito iniciático, Zeus lhe deu como
esposa Harmonia, filha do mesmo Ares. Desse enlace nasceram Ino
(Leucoteia), Agave, Sêmele e Polidoro. Já idosos, Cadmo e Harmonia
abandonaram Tebas em condições misteriosas. O trono teria sido
ocupado por Polidoro, mas, consoante a tradição mais seguida,
Cadmo deixara o reino a seu neto Penteu, filho de Agave e do Spartós
Equíon. De qualquer forma, é do casamento de Polidoro e Nicteis (ou
Antíope) que nasce Lábdaco, pai de Laio e avô de Édipo.
Lábdaco é, através de sua mãe Nicteis ou Antíope, filha de Nicteu,
neto de Ctônio, um dos Spartói. Como o futuro rei de Tebas tivesse
apenas um ano quando lhe faleceu o pai Polidoro, o trono foi
ocupado interinamente por Nicteu. Este, tendo-se matado, seu irmão
Lico assumiu o poder, até a maioridade do filho de Nicteis.
O reinado de Lábdaco foi marcado por uma guerra sangrenta
contra o rei de Atenas, o célebre Pandíon I, pai de Procne e Filomela,
em cujo governo Dioniso e Deméter tiveram permissão para
ingressar “miticamente” na Ática. Na luta contra Lábdaco, por uma
questão de fronteiras, Pandíon, com o precioso auxílio do rei da
Trácia, Tereu, desbaratou as tropas tebanas. Como recompensa,
Tereu obteve por esposa a filha do rei de Tebas, Procne, cujas
desventuras já se narraram no Vol. II, p. 42. Consoante uma tradição
conservada por Apolodoro, Lábdaco foi, como Penteu, despedaçado
pelas Bacantes, por se ter também oposto à introdução do culto de
Dioniso em Tebas.
Com a morte prematura de Lábdaco, seu filho Laio, por ser ainda
muito jovem, não pôde assumir as rédeas do governo e, mais uma
vez, Lico tornou-se regente; mas, dessa feita, por pouco tempo,
porque foi assassinado por seus sobrinhos Anfião e Zeto2.
Laio, com a morte violenta do tio, fugiu precipitadamente de Tebas
e buscou asilo na corte de Pélops, o amaldiçoado filho de Tântalo,
consoante se mostrou no Vol. I, p. 89.
Laio, todavia, herdeiro não apenas do trono de Tebas, mas
sobretudo de algumas mazelas de “caráter religioso” de seus
antepassados, particularmente de Cadmo, que matou o Dragão de
Ares, e de Lábdaco, que se opôs ao deus do êxtase e do entusiasmo,
cometeu grave hamartía na corte de Pélops. Desrespeitando a
sagrada hospitalidade, cujo protetor era Zeus, e ofendendo
gravemente Hera, guardiã severa dos amores legítimos, raptou o
jovem Crisipo, filho de seu hospedeiro. Agindo contrariamente ao
κατά τὸ ὀρθόν (katà to orthón), ao que é “justo e legítimo”, para
empregar a expressão de Heródoto (1,96), o futuro rei dos Tebanos
acabou ferindo os deuses e praticando um amor contra naturam.
Miticamente, a pederastia se iniciava na Hélade. Segundo uma
variante, Édipo matara conscientemente a seu pai Laio, porque
ambos disputavam a preferência do belo filho de Pélops. Este
execrou solenemente a Laio, o que, juntamente com a cólera
incontida de Hera, teria gerado a maldição dos Labdácidas. Crisipo,
envergonhado, matou-se.
O reinado de Anfião e Zeto foi um desastre, em função
especificamente da hýbris de ambos. Tendo desposado Níobe, filha
de Tântalo, Anfião terminou seus dias nas mãos de Apolo, que o
liquidou juntamente com os filhos. Conforme uma variante, com a
morte dos filhos por Apolo e Ártemis, Anfião enlouquecera e tentara
incendiar um templo de Apolo. O deus o atravessou com uma flecha.
Quanto a Zeto, por seu vigor físico e violência, causas comuns da
ultrapassagem do métron e da hýbris, teve certamente um fim tão ou
mais trágico que seu irmão gêmeo, pois que, segundo o mito, morreu
de “desgosto pungente” ao saber que seu filho único perecera
igualmente às mãos de Apolo.
2
Com o desaparecimento dos usurpadores Anfião e Zeto, Laio
finalmente subiu ao trono de Tebas. Segundo a tradição, o novo
soberano se teria casado com Epicasta, nome que já aparece na
Odisseia, XI, 271ss, como mãe e desditosa esposa de Édipo3.
O nome Jocasta, filha de Meneceu, aparece a partir de Sófocles,
Édipo Rei, 950ss. Segundo as variantes, os pulmões do mito, Jocasta
não foi a primeira esposa de Laio. O rei de Tebas se teria casado em
primeiras núpcias com Euricleia, filha de Ecfas, e dela tivera Édipo.
Epicasta foi a segunda esposa. Donde, a seguir tal versão, “viva e
atuante” no mito, Édipo, após a morte de Laio, desposou a madrasta
Epicasta e não sua própria mãe, que aliás já havia falecido... Pelo
texto de Homero não consta igualmente que Édipo rasgara os olhos,
tivera filhos com Jocasta e fora levado por Antígona para o bosque
sagrado das Eumênides, em Atenas. O texto traduzido de Homero
mostra ao revés que, morta Epicasta, Édipo continuou a reinar sobre
os Cadmeus. Mas todos esses fatos, enfoques e variantes serão
comentados mais abaixo, inclusive a união do filho de Laio com a
própria mãe. Desejamos, tão somente, mais uma vez, e à guisa de
“memento”, observar, como se frisou no Vol. I, cap. I, p. 26, que
sempre houve um liame muito forte, na Grécia, entre mito e
literatura, já que esta, por motivos que não interessa repisar aqui,
tinha por matéria-prima, não raro obrigatória, o mitologema. E como
já acentuamos no capítulo supracitado, ao plasmar o material mítico,
o poeta ou artista não se pautava unicamente por critérios religiosos,
mas obedecia também, e isso é fácil de compreender, a ditames
estéticos. As obras de arte, e entre elas as obras literárias, impõem
exigências específicas. Muitas vezes, entre narrar um mito, que é uma
práxis sagrada, e compor uma obra de arte, ainda que alicerçada no
mito, vai uma enorme distância. Mas a redução do mito a uma 'obra
literária tem outra consequência no que respeita à documentação
mitológica: o mito vive em variantes, e nelas se contém; e a obra de
arte de conteúdo mitológico forçosamente reflete apenas uma dessas
variantes. Dado o imenso prestígio alcançado pela poesia na Hélade,
a versão do poeta, ao narrar o mito, impunha-se à consciência
pública: instituía-se dessarte o mito canônico, com abandono das
demais variantes, talvez de menor eficácia do ponto de vista
artístico, mas nem por isso de menor importância do ponto de vista
religioso.
E foi isto exatamente o que aconteceu com o mito de Édipo. Dada a
beleza da tragédia Édipo Rei e a autoridade olímpica de Sófocles, o
mito por ele poetizado passou a ser a cartilha por onde se reza e se
psicanalisa! Temos consciência plena de que o mito de Édipo não
deixou de existir, por ter sido revestido de arco-íris pelo gênio
poético de Sófocles. Não se está acusando ou condenando a obra de
arte. Ao contrário: ao passar pela ourivesaria das musas sofocleanas,
o mito do filho de Laio tornou-se mais uma pedra preciosa que se
engastou no anel urobórico do mitologema de Édipo. Sabemos que
mythus idem est, que o mito continua o mesmo, mas, e isto é
importante, continua como uma das variantes que o grande vate
ateniense privilegiou. Assim, e é o que se irá fazer, não nos
basearemos apenas na tragédia Édipo Rei para expor-lhe o mito. Se
assim fizéssemos (e é o que mais comumente se vê) seria reduzir o
mitologema a uma única variante, por sinal vestida a rigor pela arte
incomparável de Sófocles. Dela nos serviremos também, mas
encaixaremos igualmente na exposição do mito as demais versões,
por certo muito pouco poéticas, mas, por isso mesmo, tão ou mais
importantes do que a utilizada e genialmente recriada pelo trágico
ateniense. Como acertadamente observou Lévi-Strauss, o mito deve
ser definido “pelo conjunto de todas as suas versões”, uma vez que o
mesmo se compõe do conjunto de suas variantes4.
Laio é, pois, o rei de Tebas e, após a morte da primeira esposa, uniuse a Epicasta. Na versão sofocleana, todavia, encontramo-lo casado
com Jocasta. A partir desse momento, o mito de Laio e Jocasta
confunde-se com o de Édipo, que está condenado antes mesmo de
nascer, ao menos nas tradições anteriores a Sófocles, a matar o pai e
desposar a própria mãe.
3
LAIO, em grego Λάιος (Láios), talvez possa se aproximar
etimologicamente de λαιός (laiós), “esquerdo”, desajeitado, cambaio.
Teria o rei alguma deformação física? O fato é que não apenas a
etimologia de Laio, mas também a de Lábdaco, nos interessam muito,
porque contribuem para explicar a de Édipo, que nos leva
diretamente ao problema da criança exposta.
Consoante Marie Delcourt5, a exposição de recém-nascidos tem
sua origem num rito que visa à exclusão de seres maléficos, bem
como a provas iniciáticas. Esses seres natos ou nascituros são
considerados maléficos, porque constituem uma ameaça ao rei, à
pólis e à comunidade inteira. Em todo caso, a exposição no mar ou
numa montanha, segundo se verá depois, obedece a um ordálio, a um
juízo divino: o herói se livra da morte e, de bode expiatório nas
origens – exposto que foi para sanar hamartía ancestral –, convertese em salvador de seu povo. É necessário, porém, conforme acentua
Delcourt, não reduzir tanto a temática dos mitos de crianças
expostas. Na maioria destas o caráter maléfico não aparece ou é
introduzido mais tarde com o fito de justificar psicologicamente
cada um dos aspectos de que se compõe o mitologema. De um lado,
pois, está a criança deformada, que, considerada como maldição, é
exposta para conjurar desgraças futuras ou afastar a esterilidade; de
outro, o recém-nascido, que, embora perfeito fisicamente, é exposto
no mar ou num monte, porque, segundo um oráculo, sua existência
ameaçaria o rei ou a cidade. Acrescente-se, por fim, que o tema do
mergulho no mar ou da educação na montanha deve remontar a
antigas provas iniciáticas, cuja significação mais comum é a
introdução do jovem na classe dos adultos. Simbolicamente, a
inclusão num cofre ou a exposição na montanha é um rito iniciático
que implica um regressus ad uterum, um novo nascimento com
nome novo e um acréscimo de poder. O herói salvo, uma vez
crescido, assume uma atitude hostil e vitoriosa contra a família que o
expôs.
Esta ligeira introdução ao longo tema da criança exposta (assunto,
aliás, já desenvolvido em parte no Vol. I, p. 89) objetiva ligar
etimologicamente Édipo à sua exposição, que, por sinal, é uma
espécie de herança. Com efeito, Lábdaco, segundo Delcourt,
significaria coxo, pois que seu nome estaria ligado a Labda, mera
variante de lambda (l, nome da décima primeira letra do alfabeto
grego). Labda, consoante Heródoto, Hist. 5,92, era filha de Anfíon, rei
de Tebas, e mãe de Cípselo, tirano de Corinto. Ora, Cípselo é assim
chamado por etimologia popular, porque fora exposto numa
κυψέλη (kypséle), “cofre, vaso cilíndrico”, denominado mais tarde “o
cofre de Cípselo”.
Com respeito à etimologia de Labda (Lábdaco) temos uma pista
preciosa no Etymologicum Magnum, verbete βλαισός (blaisós), “com
os pés voltados para fora”: “labda: cambaio, paralisado: aquele que
tem os pés voltados para fora, semelhante à letra L. É por isso que a
mulher de Eécion, mãe de Cípselo, rei de Corinto, era chamada
Lambda”6. Na realidade, Labda e Lábdaco eram certamente alcunhas,
que, pela própria forma, atestam não apenas sua origem popular,
mas também designam uma anomalia7. Labda e Lábdaco são, pois,
respectivamente, a mãe e o avô de dois recém-nascidos, considerados
maléficos mesmo antes do nascimento, e por isso mesmo
condenados à morte.
Desse modo Labda, Lábdaco, Cípselo e Édipo não seriam nomes,
mas cognomes, que designariam, para os dois primeiros, uma
deformidade, e, para os dois últimos, um episódio relativo à sua
libertação. E era assim, frisa Delcourt, que “os gregos compreendiam
e interpretavam K×pselos e Oidípus”. O mito de Cípselo e Édipo, pensa
a autora, se origina do hábito de se exporem os recém-nascidos
deformados. Mas, acrescenta ela, como ambos são vitoriosos e os
antigos não podiam admitir que seus heróis fossem fisicamente
deficientes, atribuiu-se o defeito físico maléfico a um antepassado
próximo: no caso do rei de Corinto, a Labda, e no do rei de Tebas, a
Lábdaco e Laio, cuja etimologia popular traduziria “o esquerdo, o
cambaio”. Fica, pois, justificada, ao menos do ponto de vista “religioso
e etimológico”, a exposição de Édipo.
Voltemos ao casamento de Laio e Jocasta. As tradições arcaicas
relativas ao oráculo que anunciava a morte de Laio por Édipo são
desconhecidas. A mais antiga delas se encontra em Ésquilo, na
tragédia Os Sete contra Tebas, encenada em 476 a.C., bem antes,
portanto, de Édipo Rei. Em Os Sete contra Tebas, 745-748, diz-se
apenas que “por três vezes, em Pito, seu santuário profético, centro do
mundo, Apolo revelara a Laio que ele deveria morrer sem filhos, se
quisesse salvar a cidade (Tebas)”. A predição de Delfos nada diz a
respeito do casamento de Édipo com Jocasta. Igualmente, em
Eurípides, na tragédia Fenícias (408 a.C.?), cujo assunto é o mesmo
que em Os Sete contra Tebas, o oráculo pítico prevê a morte de Laio e
a luta dos filhos de Édipo pelo reino de Tebas; mas não há referência
oracular alguma ao casamento deste com a mãe. Na realidade, em
Édipo Rei há dois oráculos: um nos versos 711ss, em que Jocasta narra
ao filho e esposo como um “falso oráculo” predissera a Laio que ele
seria assassinado pelo próprio filho; e outro nos versos 791ss, em que
Édipo diz a Jocasta que o mesmo Febo Apolo lhe vaticinara que ele
desposaria a mãe e mataria o pai. Como se observa, a distância entre
as duas predições da Pítia é de cerca de vinte e um anos, porquanto a
primeira foi feita a Laio, após o nascimento do filho, e a segunda
diretamente a Édipo, pouco antes de matar o pai e casar-se com a
mãe, tornando-se rei de Tebas.
Cronologicamente, o primeiro a reunir os dois vaticínios,
superpondo-os anacronicamente e atribuindo-os a uma revelação de
Apolo a Laio, mas antes do nascimento de Édipo, foi Nicolau de
Damasco (séc. IV d.C.), em cujo Frag. 15 se lê: “O deus diz a Laio que
ele teria um filho que o mataria e se casaria com a própria mãe”.
Embora ameaçado por três vezes pelo Oráculo de Delfos, conforme
se mostrou linhas atrás, Laio assim mesmo resolveu ter um filho com
Jocasta. Nascido o menino, o rei, lembrando-se do veto de Apolo,
apressou-se em livrar-se do mesmo. Há duas versões bem diferentes
na exposição de Édipo. Na primeira, o futuro rei de Tebas é colocado
num cofre e lançado ao mar, mas salva-se porque o λάρναξ
(lárnaks) chegou a Corinto ou Sicione. Parece ser esta uma das
tradições mais antigas, de resto bem atestada na cerâmica, num
escólio aos versos 26 e 28 das Fenícias de Eurípides e na Fábula 66 de
Higino8. Acrescente-se, além do mais, como faz notar agudamente
Delcourt, que a exposição na água deve ser a mais antiga das duas,
primeiro porque não é mencionada pelos poetas trágicos; segundo,
ela não se presta para explicar o nome do exposto. A exposição sobre
um monte, no caso específico de Édipo, tornou-se a preferida, já que,
através da mesma, se passou a ter um sinal específico (os pés
inchados ou os calcanhares perfurados) para um reconhecimento
futuro e um aítion, um motivo, que lhe explicasse o nome. Na
segunda, ele é simplesmente abandonado no monte Citerão.
Na versão de Sófocles, Édipo Rei, 718s, Laio ligou os pés do menino
e mandou expô-lo num monte deserto, que sabemos pela própria
tragédia ter sido o Citerão.
Curioso é que Sófocles não menciona o motivo da exposição, mas
Ésquilo e Eurípides o explicitam. O autor de Os Sete contra Tebas,
742s, fala da falta antiga e Eurípides diz ainda com mais clareza que
se trata do amor criminoso de Laio por Crisipo. Em Sófocles, Édipo
Rei, 718, Laio amarrou o menino pelos tornozelos antes de mandar
expô-lo. Em outras versões a criança tem os calcanhares perfurados
por um gancho e os pés atados por uma correia. De qualquer forma,
seguindo ainda o raciocínio de Marie Delcourt, “os pés inchados se
constituem num absurdo, qualquer que seja o ângulo de análise. Um
recém-nascido abandonado no mar ou num monte está sujeito à
morte, com os pés amarrados ou livres. Vários gramáticos antigos
pressentiram o problema e tentaram solucioná-lo: um escólio ao v.
26 das Fenícias explica que os pais de Édipo o mutilaram, a fim de
que o menino não fosse recolhido e educado. Com efeito, na época
histórica, pessoas às quais não se podia atribuir qualquer intenção
filantrópica recolhiam entre os meninos abandonados os que lhe
pareciam perfeitos e robustos, e entre as meninas as que prometiam
ser belas”9.
Os “pés inchados” ou “furados” até Sófocles jamais serviram de
sinal de identificação. Na Odisseia, como se viu, os deuses revelam a
Epicasta a identidade do marido, mas não se fala em sinais que
levassem a semelhante reconhecimento.
A verdade é que somente a partir de Sófocles (Édipo Rei, 10301036) é que surgem as cicatrizes como sinal de reconhecimento e
justificativa etimológica. Em versões tardias da tragédia atribui-se o
nome de Forbas ao Mensageiro, o pastor de Corinto, que recolhe o
filho de Jocasta e mais tarde lhe vai revelar o significado das
cicatrizes que trazia nos calcanhares. Vale a pena lembrar uma
ponta do diálogo entre o Mensageiro e Édipo:
Mensageiro (“Forbas”) – Naquele dia, meu filho, eu fui teu salvador.
Édipo – De que desgraça era vítima, quando me recolheste?
Mensageiro – As junturas de teus pés poderiam testemunhá-lo.
Édipo – Ai de mim! Para que relembrar tão antiga ignomínia?
Mensageiro – Fui eu quem soltou os ferros que atravessavam teus
pés.
Édipo – Certamente carrego desde a infância tão vergonhosa
afronta.
Mensageiro – A semelhante circunstância deves o nome que tens.
(Édipo Rei, 1030-1036)
Após Sófocles, Oidípus, “Pé-Inchado” (ou “Pés-Inchados”?), “exibe
ainda suas cicatrizes como sinal de reconhecimento em dois
resumos, sem indicação de fonte”10. O primeiro é a Fábula 230 do
chamado Segundo Mitógrafo do Vaticano, cujo teor é o seguinte: “um
dia, quando Édipo se calçava, sua mãe viu-lhe as cicatrizes e,
reconhecendo o filho, gemeu desesperadamente”. O segundo é a
Fábula 67 de Higino: “O velho Menetes11, que havia exposto Édipo,
reconheceu-o como filho de Laio pelas cicatrizes nos tornozelos”.
No denominado “Resumo de Pisandro”, de época tardia, Jocasta
reconhece primeiro o assassino pelas armas de Laio, e em seguida seu
filho Édipo, pelas fraldas e colchetes encontrados com o palafreneiro
de Sicione, que salvou o menino, que lá chegara num cofre.
Seja como for, a não ser no plano simbólico, o sinal dos pés
inchados ou perfurados de Édipo constituem um absurdo em
matéria de reconhecimento. Não é possível que Jocasta, após tantos
anos de casamento, não tivesse visto os pés deformados do filho e
marido! Somente a literatura tardia os viu e valorizou...
Mas, como acentua Delcourt, quando um grande artista ou
dramaturgo como Sófocles repete um episódio simultaneamente
absurdo e supérfluo como este, é que o fato lhe deve ter sido imposto
por uma mitopeia anterior12.
4
Criado pelo pastor de Corinto, segundo uma variante, o qual o
recebera do pastor de Laio no monte Citerão, ou encontrado por
Peribeia junto às praias do mar em Corinto e levado para a corte de
seu marido e rei local Pólibo, ou ainda conduzido para a mesma corte
pelo pegureiro Forbas, o fato é que Édipo, na maioria das versões, foi
criado e educado na corte de Corinto como filho de Pólibo e Mérope
(nome de Peribeia na versão de Sófocles, Édipo Rei, 775, 990), que não
tinham descendentes. Observe-se, de caminho, que Pólibo em outras
versões aparece como rei ora de Corinto, ora de Sicione ou Atédon e
ainda de Plateias.
Uma infância e adolescência tranquilas prenderam o “futuro”
sucessor de Pólibo à corte de Corinto; mas, tão logo atingiu a
maioridade, o jovem príncipe, por motivos que variam muito,
abandonou seus pais adotivos.
A tradição mais antiga é a de que Édipo saíra de Corinto em busca
de uns cavalos que haviam sido furtados do reino de seu pai. Mais
tarde os trágicos introduziram motivos psicologicamente mais
complicados. A mais conhecida é a de Édipo Rei, 779ss: num
banquete, um dos convivas, após ingerir muito vinho, chamou-lhe
πλαστός (plastós), vale dizer, um filho postiço. Apesar da
indignação dos “pais” pelo insulto, Édipo não se conformou e, às
escondidas, partiu para Delfos. Em vez de receber da Pítia uma
resposta à pergunta que lhe fizera, a sacerdotisa de Apolo o expulsou
do templo sagrado, vaticinando-lhe algo terrível: ele estava
condenado a matar o pai e unir-se à própria mãe. Não mais
regressando a Corinto, por terror de que o oráculo se cumprisse,
dirigiu-se, guiado pelos astros, para algum lugar da terra onde jamais
se cumprissem as tremendas profecias de Apolo... Foi exatamente
nesse percurso para algum lugar, ao atingir um trívio (Édipo Rei,
1398s) na encruzilhada de Pótnias, marco de separação entre Delfos e
Dáulis, que Édipo se encontrou com uma carruagem que lhe vinha
em sentido contrário.
Tratava-se de Laio com sua comitiva. Ao todo, de acordo com o
texto de Édipo Rei, 152, cinco pessoas: o rei, o arauto, um cocheiro e
dois escravos. O cocheiro e o próprio rei, no relato de Édipo, quiseram
afastá-lo do caminho, com o emprego de violência (πρός βίαν [pròs
bían], diz o texto, Édipo Rei, 805]. Como se estivesse fora de si, tomado
pela cólera ( διὀργῆς [di’orguês], Édipo Rei, 807), Édipo, usando seu
terceiro pé, o bastão, o que permitia a um deformado ficar “em pé”,
feriu mortalmente o cocheiro; o rei, que estava à espreita, golpeou-o
duas vezes na cabeça com o aguilhão. A reação foi instantânea: com
um só golpe de bastão o herói prostrou a Laio. Em seguida liquidou
os demais componentes da comitiva real... Isto ele pensava! Um dos
escravos, exatamente aquele que outrora o conduzira ao Citerão,
salvou-se com a fuga. Jocasta recebeu por ele a notícia da morte do
esposo, mas recebeu-a totalmente incorreta e mentirosa: o rei e três
de seus acompanhantes haviam sido mortos por salteadores. O
escravo que fugiu, permitindo que um forasteiro matasse a todos os
outros da comitiva, mentiu por vergonha, adulterando o acidente; e,
para ocultar sua covardia, afirmou que a carruagem fora atacada por
bandoleiros.
Seus recalques pesaram-lhe tanto, que suplicou à rainha que o
mandasse para o campo, a cuidar do rebanho. Existe uma variante
veiculada por Nicolau de Damasco, talvez no Frag. 15, segundo a qual
Laio partira para Delfos em companhia de Epicasta e encontrou
casualmente em Orcômeno a Édipo, que vinha de Corinto, de onde
partira ἐπὶ ζήτησιν ἵππων (epì dzétesin híppon), a fim de
recuperar os cavalos furtados a Pólibo. Os dois viajantes disputaram
a passagem. O “filho de Pólibo” matou o arauto e a Laio, que veio em
socorro de seu servidor, mas poupou a Epicasta. Em seguida, o
príncipe se escondeu nas montanhas. A rainha enterrou ali mesmo
os mortos e retornou a Tebas. Édipo, após algum tempo, seguiu de
Orcômeno para Corinto, entregando a “seu pai” a carruagem e os
animais pertencentes a Laio. O restante do mito segue a versão
tradicional.
Uma parte do Oráculo de Delfos estava cumprida. Faltava a
segunda para formar o σύμβολο (s×mbolon), o “encaixe”.
Antes, porém, de se prosseguir com Édipo em sua busca, voltemos
a Tebas. Lá deixamos o casal Laio-Jocasta. O rei já recebeu seu
quinhão, mas vamos ver por que se dirigia ao Oráculo de Delfos e
pela quarta vez.
Tudo parecia tranquilo em Tebas, após a “morte” de Édipo, quando
repentinamente a cidade é assolada por um monstro, a Esfinge, que
se postara às portas de Tebas e devorava a quantos não lhe
decifrassem o enigma, ou, segundo outros, dois enigmas. Como a flor
da juventude tebana estivesse sendo destruída diariamente pelo
flagelo, Laio resolveu ir a Delfos para saber como livrar a cidade de
tamanha desgraça. Foi essa viagem que ensejou o encontro mortal
com o filho outrora exposto.
Antes de retornar em definitivo a Édipo, teremos que resolver, ou
melhor, completar o comentário a dois problemas sérios: a justa
mortal entre Laio e seu filho e a vitória deste sobre a Esfinge.
Acerca da luta entre o rei de Tebas e Édipo, isto é, entre o filho e o
velho rei pela posse do trono, já se falou bastante amplamente no
Vol. I, p. 86-88. Vamos, por agora, apenas reiterar as ideias centrais e
ampliar um pouco as que nos parecem mais significativas. O mesmo
faremos ao abordar a vitória do herói sobre a Esfinge, o casamento
com Jocasta e o desfecho do mito no Édipo em Colono. O mito de
Édipo como um todo simbólico será focalizado no fim do presente
capítulo. Nossos guias aqui e lá serão particularmente Sófocles, M.A.
Potter, Marie Delcourt e as variantes mais significativas do
mitologema.
Consoante a pesquisadora belga, uma vez mandado expor pelo pai,
Édipo certamente haveria de desforrar-se do mesmo. Os poetas, no
entanto, e, acrescentemos, sobretudo os trágicos, disfarçaram o
caráter vingativo do acontecimento: primeiro, lançaram pai e filho
numa luta, numa justa, sem se conhecerem; segundo, minimizaram a
responsabilidade do herói no momento do golpe fatal, uma vez que
Laio o agredira primeiro. Além do mais, insiste a autora, os poetas
“poderiam ter ido ainda longe nesse mascaramento, fazendo com que
Édipo, por exemplo, matasse a Laio, como Perseu a Acrísio, isto é, de
maneira desastrada e inteiramente involuntária. Tal fato não
diminuiria a responsabilidade do herói em face dos deuses, porque
para estes o que conta não é a intenção criminosa, mas o ato em si. De
outro lado, se isto acontecesse, o encadeamento psicológico dos
acontecimentos seria mais facilmente admitido. Ora, se os poetas não
agiram assim, é porque o tema do parricídio lhes foi imposto por
uma tradição mais antiga, que estampava entre pai e filho uma
hostilidade bem mais forte do que aquela que subsiste nas obras do
século V a.C. Semelhante conflito não se encaixa na moldura dos
mitos de exposição. Provém, isto sim, de um contexto mítico
diferente, a luta entre Pai e Filho”13.
Esse antagonismo está presente em inúmeros mitologemas de
todas as culturas. Potter, aliás citado por Delcourt, numa obra de
longo fôlego14, tentou encontrar um denominador comum para essa
rivalidade secular. Segundo o pesquisador britânico, esta se origina
de costumes primitivos: exogamia, matriarcado, poliandria,
poligamia, liberdade sexual pré-matrimonial e divórcio, que, uma
vez deixados para trás, reaparecem como extraordinários e se
inscrevem num contexto histórico. Desse modo, pai e filho podem
defrontar-se incognitamente. Só após a morte de um deles é que o
sobrevivente, por meio de algum sinal, toma conhecimento da
identidade do adversário. Assim, as circunstâncias acessórias são
amplamente analisadas pelos mitógrafos, com a finalidade de tornar
verossímil a criação do filho longe do pai. Consoante Potter, é
normalmente este que se afasta da mulher grávida, tornando-se mais
raro que se separe a criança quando ainda muito pequena. A seguir
tal esquema, a história tem seu ponto de partida no próprio âmbito
familiar. Desse modo, a luta que termina com a morte do pai ou do
filho resulta simplesmente de um estado social anterior àquele que
foi posteriormente elaborado no seio da família.
Embora concorde em parte com a argumentação de Potter,
Delcourt acha que o núcleo do problema foi omitido: o conflito de
gerações, a cujo respeito falamos no supracitado Capítulo V do Vol. I,
p. 86-88.
Em síntese, o problema para Delcourt se equaciona da seguinte
maneira: o velho antagonismo, quer seja entre pai e filho, avô e neto
ou entre pai e pretendente à mão da princesa é sempre uma luta pelo
poder, cujo desfecho é invariavelmente a vitória do mais jovem. Essa
disputa entre pai e filho, ao que tudo indica, fazia parte de um rito, o
combate de morte que, nas sociedades primitivas, permitia ao jovem
rei suceder ao velho rei. Mas, desde que a sucessão patrilinear se
tornou a norma vigente, surgiu o contexto familiar com todos os
problemas morais que lhe são inerentes. Destarte, na justa de morte
que se travava pela sucessão, todas as atenuantes possíveis foram
introduzidas, a fim de mitigar o impacto dos combates primitivos.
Jamais um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. Se
Édipo mata a Laio e Telégono a Ulisses, a ação é simplesmente o
resultado do cumprimento de um oráculo. No caso específico de
Édipo, os trágicos, julgando que a atenuante oráculo era insuficiente,
transformaram a morte de Laio num acidente de caminho. Desse
modo, o parricídio ou é substituído por um simples destronamento,
ou é realizado, mas como resultante de um erro, embora se tenha o
respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, porém, os poetas evitam
colocar em cena o mais horrendo dos crimes aos olhos da patriarcal
sociedade grega. A despeito, no entanto, de seu horror pelo parricídio,
os trágicos tiveram muitas vezes que tratar em público de uma
hostilidade de fato entre homens de gerações diferentes, o que
patenteia a importância que possuíam a sucessão por morte na pré-
história grega e o peso das velhas tradições. Os testemunhos mais
curiosos desse rito arcaico se encontram nas teogonias, de onde a
morte está ausente porque os deuses eram imortais, mas nas quais há
sangue, mutilação e violência, conforme tentamos mostrar nas p.
200-203 e 354-356 do Vol. I.
A luta de morte entre o velho e o novo rei reflete o simbolismo da
fecundação. Em verdade, um rei envelhecido já é, de certo modo, um
soberano deposto, pois a função do rei, por ser ele de origem divina, é
fecundar e manter viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor
físico, ou não mais funcionando a força mágica, o rei terá que ceder
seu posto a um jovem capaz de manter acesa a chama da fecundação
e da fertilidade dos campos, uma vez que, num plano mágico, o
poder fecundador do monarca está ligado à fertilidade da terra.
Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no
princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A
razão, repita-se, é de ordem mágica: quem perdeu a força física não
pode transmiti-la à natureza por via de irradiação, como deveria e
teria que fazer um rei.
Eis, em síntese, a visão, a leitura deste mitema por parte de M.-A.
Potter e Marie Delcourt.
Com semelhante enfoque, que aliás é lógico do ponto de vista da
autora, ela aproveita para discordar de Sigmund Freud e dizer que o
método de abordagem do mito de Édipo por parte do pai da
psicanálise é inteiramente diverso daquele de Potter. Enquanto este
estuda os episódios periféricos do mitologema, o psiquiatra austríaco
se coloca de cheio e de imediato no coração do problema, que é o
conflito.
Para uma ideia mais clara da extensão e profundidade das
consequências de semelhante conflito, passemos em revista o que
Freud tem a dizer a este respeito.
“Se para os modernos o Édipo Rei tem o mesmo fascínio que para
os contemporâneos de Sófocles, o fato decorre não do contraste entre
o destino e a vontade humana, mas da natureza toda particular do
material temático revelador dessa oposição. Talvez em nosso íntimo
se faça ouvir uma voz que nos manda aceitar o poder arrebatador do
destino em Édipo, poder que não nos comove em tragédias outras
como Die Ahnfrau15. Haveria de fato, na trama de Édipo, um motivo
capaz de explicar a força daquele comando: somos levados a
imaginar que a sina de Édipo poderia ter sido a nossa, e que a
maldição do oráculo recaísse sobre nós. É possível que o primeiro
impulso sexual da criança se dirija para a mãe, como para o pai se
volta o primeiro sentimento de ódio, conforme atestam os sonhos.
Édipo, que mata o pai e desposa a mãe, realiza um dos sonhos de
nossa infância. Mas nós outros, mais felizes do que ele, na medida em
que não nos tornamos neuróticos, logramos desviar do alvo materno
os impulsos sexuais e nos libertamos do ciúme em relação ao pai. A
nós adultos nos repele o confronto com uma personagem que
realizou um desejo interdito, mas que foi nosso na infância; e tal
repulsa se faz com o mesmo ímpeto com que foram recalcados os
anseios infantis. O poeta, desvendando a falta cometida por Édipo,
nos faz voltar os olhos para o nosso íntimo e reconhecer os impulsos,
que sobreexistem, ainda que recalcados. E o contraste na fala do coro
nos atinge, fere o nosso orgulho e abala as certezas que acalentamos
desde a infância:
‘Eis Édipo, que decifrou os famosos enigmas, poderoso e
invejado de todos. Em que terrível abismo de
infortúnio sucumbiu!’
Como o próprio Édipo, vivemos inscientes dos desejos que ferem
nossas convicções éticas, aos quais nos sujeita a natureza.
Conhecendo-os, preferimos apagar da memória as cenas de nossa
infância”16.
Comentando essa passagem de Freud, acrescenta Erich Fromm:
“A concepção do Complexo de Édipo, tão magnificamente
apresentada por Freud, tornou-se uma das pedras angulares de seu
sistema psicológico. Aí está, segundo ele, a chave de uma autêntica
compreensão da história e da evolução da religião e da ética.
Assegurava que o Complexo de Édipo constitui o mecanismo
fundamental do desenvolvimento da criança, e que nele estão a
causa do desenvolvimento patológico e o ‘cerne das neuroses’.
A referência aqui é ao mito de Édipo, tal como o apresenta a
tragédia de Sófocles Édipo Rei”17.
Carl Gustav Jung, sem negar a teoria do Complexo de Édipo, deulhe outra dimensão. “Embora reconhecendo o muito que devia a
Freud”, Jung recusou-se a aceitar in totum a importância exclusiva
que o pai da psicanálise atribuía ao trauma infantil, à
preponderância da sexualidade ou à universalização de suas
implicações psicológicas.
Na realidade, a diferença entre as concepções junguiana e
freudiana do Complexo de Édipo decorre, entre outros fatores, da
revisão da teoria da libido.
Vejamos o que nos diz Mullahy ao tratar dessa revisão:
“Em The Psychology of the Unconscious, surgida em 1912, Jung
advoga uma completa revisão do conceito de libido. Uma visão
‘descritiva’ ou freudiana é posta em confronto com uma
interpretação ‘genética’ ou junguiana. Pelo prisma descritivo, o
instinto sexual é apenas um entre muitos, porém dotado de caráter
especial. Neste sentido, a libido pode ser ‘deslocada’; e, quando
represada, é capaz de refluir para outros canais. Os instintos não
sexuais podem receber ‘afluxos’ da libido.
Pela interpretação ‘genética’ considera-se que os múltiplos
instintos, inclusive o sexual, são oriundos de uma como unidade, a
‘libido primordial’. A teoria da evolução sustenta que um semnúmero de funções complexas, hoje destituídas de qualquer caráter
sexual, eram originalmente derivações do impulso geral de
propagação da espécie. Na ascensão ao longo da escala zoológica
ocorreu um importante desvio de energia do instinto de procriação.
Assim, por exemplo, uma parte da energia despendida na produção
de óvulos e de esperma foi ‘transposta’ para a criação de mecanismos
de atração e proteção da prole. Tais mecanismos mantêm-se graças a
uma libido diferenciada especial. Classificar de sexual esta energia
deslocada e ‘dessexualizada’ seria tão impróprio quanto pretender
que a catedral de Colônia, por exemplo, seja uma ‘formação
mineralógica’ só porque se utilizaram pedras em sua construção”18.
E mais adiante acrescenta que, “tendo chegado a tal conceito de
libido, Jung rejeita categoricamente a ideia de que atividades tais
como a sucção do seio materno tenham qualquer caráter sexual. Em
vez disso, sustenta que durante a lactância só ocorre a função
nutritiva, que a um tempo proporciona alimento e prazer. E posto
que o sugar o seio materno proporciona satisfação e prazer, é petição
de princípio afirmar-se que a sucção tenha caráter sexual. A
experiência do prazer, qualquer que seja ele, não é sinônima de
sexualidade ou de prazer sexual. Se supusermos que o sexo e a fome
coexistem lado a lado, estaremos projetando a psicologia dos adultos
na vida mental e na experiência da criança. E se existe algum
instinto sexual nessa quadra da vida, deve tratar-se sem dúvida de
um instinto embrionário. Afirmar que o impulso do prazer tem
caráter sexual equivale a dizer que a fome é também um desejo
sexual só porque ‘busca’ o prazer através da satisfação”19.
Insistindo em que a sexualidade do inconsciente é tão somente um
símbolo, e que sua referência é prospectiva e não retrospectiva, Jung
não atribui uma significação muito grande ao incesto como tal.
Refere ele que, “em princípio, a coabitação ‘com uma velha’
dificilmente seria preferida às relações sexuais com uma mulher
jovem. A mãe só psicologicamente parece ter adquirido significação
incestuosa”20. A base mesma do desejo incestuoso tem sua origem no
anelo de regredir à infância, ou seja, de retornar ao aconchego da
proteção paterna e confundir-se com o organismo materno para
voltar a nascer. Assim, se a um objetivo real “retirarmos” a libido sem
nenhuma compensação “real”, isto é, sem nada oferecer que ocupe o
lugar da libido – processo esse que Jung chama de introversão –, as
consequências serão graves e inevitáveis para o indivíduo. A libido,
uma vez recalcada, irá reativar formas prematuras de adaptação à
vida. E o adulto, dessa forma, não irá necessariamente encontrar
muitas dificuldades na vida antes que sejam despertadas as suas
mais antigas, inigualadas e imperecíveis recordações infantis: a
primeira e fundamental relação por ele experimentada com respeito
aos pais. Afirma-se ainda que a religião organizada oferece uma
reanimação regressiva e sistematizada da imagem dos pais, ao
mesmo tempo proporcionando uma paz e proteção cuja origem está
na experiência pregressa com os pais. A par disso, os sentimentos
místicos religiosos envolvem vivências e recordações inconscientes
aureoladas de ternura que remontam à primeira infância.
O fato de a Escola de Zurique não atribuir ao incesto um
significado especial, como o fez a Escola de Viena, ou de
reinterpretá-lo, não quer dizer que Jung não o aceite. Muito pelo
contrário, ele insiste em que não abandonamos o desejo incestuoso.
“Na religião”, diz ele, “e através dos símbolos religiosos, cometemos
inconscientemente o incesto. A religião já não representa mais um
ideal ético; seus símbolos, ritos e cerimônias consubstanciam uma
transformação inconsciente do desejo de incesto. Céu e terra
convertem-se em pai e mãe. O povo existente na terra aparece como
filhos, irmãos e irmãs. E assim permanecemos crianças e
satisfazemos, sem o saber, os nossos anseios incestuosos.
A humanidade não se conforma, sem renitência, em ser despojada
da certeza esperançosa da infância, quando as pessoas vivem como
apêndices dos pais, inconsciente e instintivamente, sem noção
consciente do eu. O homem também reagiu com profunda
animosidade à interrupção brutal da harmonia que caracteriza a
existência animal, na qual não vigoram interdições morais de
qualquer espécie. E tal interrupção foi marcada, entre outras coisas,
pela proibição do incesto e pelas leis do casamento”21.
Eis, em síntese, o que pensa Jung sobre o incesto. Não se trata,
portanto, na psicologia analítica junguiana, de se negar o Complexo
de Édipo, mas de atribuir-lhe uma nova dimensão.
Já Erich Fromm é por demais severo no julgamento da teoria
freudiana. Indaga ele se Freud “teria razão ao sustentar que o mito (o
de Édipo Rei na versão de Sófocles) confirma a tese de que todo
menino acalente desejos incestuosos inconscientes, com o corolário
do ódio ao pai, de modo a confirmar-se a teoria e justificar-se a
denominação de Complexo de Édipo. Um exame mais detido da
questão, no entanto, levanta algumas dúvidas sobre o postulado
freudiano. A questão mais pertinente é a seguinte: sendo justa a
interpretação freudiana, seria de esperar que o mito nos dissesse que
Édipo encontrou Jocasta sem a saber sua mãe, que se tomou de
amores por ela e em seguida matou a quem desconhecia ser o próprio
pai. Mas o mito nada revela nesse sentido, nem nos fornece qualquer
indicação de que Édipo tenha sido atraído por Jocasta ou que por ela
se haja apaixonado. A única razão apontada para o casamento de
Édipo e Jocasta é que a rainha, por assim dizer, estava ligada ao trono.
Será lícito, portanto, admitir que um mito cujo tema central é a
relação incestuosa entre mãe e filho omita totalmente o elemento de
atração que deveria aproximar os dois protagonistas? De todos os
pontos é esse o mais importante, sobretudo se nos lembrarmos que,
nas versões mais antigas do oráculo, a predição do casamento de
Édipo só aparece mencionada uma única vez: na versão de Nicolau
de Damasco, que no parecer de Karl Robert tem por base uma fonte
relativamente recente.
Ademais, Édipo é descrito como o herói intrépido e sábio que se
converte em benfeitor de Tebas. Como entender que esse mesmo
Édipo pudesse cometer o que aos olhos de seus contemporâneos era o
mais odioso dos crimes? Tem-se respondido que a essência mesma da
concepção grega de tragédia está em que os fortes e os poderosos são
de súbito abatidos pelo infortúnio. Resta examinar se a presente
interpretação é satisfatória ou se outra melhor se nos oferece.
A questão que acabamos de examinar é suscitada por uma
meditação sobre o Édipo Rei. Se limitarmos o nosso exame a apenas
essa tragédia, sem levar em conta as duas outras peças da trilogia de
Sófocles – Édipo em Colonoe Antígona–, não chegaremos a qualquer
resposta decisiva. Mas pelo menos nos será possível formular
legitimamente uma hipótese: a de que o mito pode ser entendido não
como o símbolo do amor incestuoso entre mãe e filho, mas como
símbolo da revolta do filho contra a autoridade paterna na família
patriarcal; e que o enlace de Édipo e Jocasta vale apenas como
elemento secundário, como indicação da vitória do filho que, ao
assumir o lugar do pai, assume também todas as prerrogativas
paternas (grifos na presente transcrição).
A validade desta hipótese pode ser comprovada por um estudo do
mito de Édipo em suas múltiplas versões, e particularmente na
versão apresentada por Sófocles nas duas outras peças que perfazem
a trilogia: Édipo em Colono e Antígona”22.
Prosseguindo em sua análise do mito de Édipo em sua crítica à
teoria freudiana do Complexo de Édipo, mas agora com base na
“trilogia”, Erich Fromm argumenta que o tema fundamental nas três
tragédias é o conflito entre pai e filho, devendo-se, por isso mesmo,
descartar a interpretação freudiana de que o antagonismo entre
ambos em Édipo Rei seja a rivalidade inconsciente provocada pelos
“anelos incestuosos de Édipo”. Com efeito, se em Édipo Rei este mata
a Laio, que tentara tirar-lhe a vida; se em Édipo em Colono o mesmo
Édipo dá livre curso a seu ódio e rancor contra os filhos Etéocles e
Polinice; se em Antígona está presente o conflito entre Hêmon e seu
pai Creonte; se não existe nenhum vislumbre de incesto entre os
filhos de Édipo e Jocasta e entre Hêmon e sua mãe Eurídice, deve-se
concluir que também em Édipo Rei o verdadeiro problema é a
controvérsia entre pai e filho, e não o incesto. Aplicando à sua
análise a tese brilhante de Johann Jakob Bachofen, Das Mutterrecht,
“O Matriarcado”, em que se estuda o matriarcado como força
político-social da ginecocracia, isto é, do poder senhorial feminino,
Fromm infere que a hostilidade pai-filho, que é realmente uma
constante na “trilogia” sofocleana, deve ser compreendida como uma
investida da derrotada ordem matriarcal, representada por Édipo,
Hêmon, Antígona..., contra a vitoriosa sociedade patriarcal,
alicerçada em Laio, Jocasta, Creonte... Personagens claramente
ligadas às deusas-mães ctônias, aos lugares a estas consagrados,
como o santuário de Deméter na cidade beócia de Eteono, onde havia
igualmente um santuário dedicado a Édipo; ao bosque sagrado das
Erínias, agora convertidas em Eumênides, em Colono, onde por sinal
Édipo desaparecerá tragado pela Terra-Mãe; e ainda à caverna,
símbolo do útero materno, aonde Antígona foi lançada viva.
Não há dúvida de que a segunda parte do comentário de Fromm
está correta quando conclui com Bachofen que o antagonismo e a
hostilidade entre pai e filho (que podem ser igualmente entre avô e
neto, como entre Acrísio e Perseu) devem ser entendidos como um
conflito de gerações, como a luta entre o velho e o novo rei, e
sobretudo como uma contestação do matriarcado agonizante pelo
patriarcado vitorioso. Também aplicamos esta análise à trilogia
esquiliana Orestia e à “trilogia” de Sófocles acima citada, aliás com
base em Bachofen e no próprio Erich Fromm23. Este é, igualmente, o
ponto de vista da erudita Marie Delcourt, conforme vimos expondo.
Esta é mais uma leitura entre as muitas que se podem fazer do Édipo
Rei, vale dizer, apenas uma das possíveis interpretações do mito na
tragédia, e não uma análise psicológica.
Conrad Stein, que faz preceder a obra de Delcourt, Oedipe ou la
Légende du conquérant, de um estudo sobre o Édipo Rei segundo
Freud, fala com muita argúcia da “subordinação da coisa literária à
coisa analítica”24, já que se está fazendo uma análise psicológica, no
caso elaborada por Freud. Parece que Fromm confundiu as duas
coisas.
No tocante à primeira parte da apreciação do mesmo autor a
respeito do Complexo de Édipo, há uma pergunta que é considerada
por ele como muito significativa. Trata-se, o que é verdade, da
ausência total, no mito, de uma atração de Édipo por Jocasta: se a
interpretação de Freud fosse correta, como explicar que o herói se
apaixonou pela rainha de Tebas sem saber que a mesma era sua mãe?
Para se responder a esta pergunta basta que se faça do mito uma
leitura sincrônica. Desaparecendo a ideia de tempo linear, o mito
surgirá como uma totalidade e, admitindo-se que “os primeiros
impulsos sexuais sejam dirigidos à mãe”, teremos um “Édipo
permanente”. Além do mais, Jocasta figura na análise psicológica
como um τόπος συμβολικός (topos symbolikós), como um “lugar
simbólico”, o que, de resto, neutraliza outra observação sem muito
sentido: a de que o herói, vencedor da Esfinge, teria preferido uma
jovem a uma mulher já meio idosa...
Feito este corte, aliás um pouco longo, mas necessário para se
posicionarem divergências e convergências no tocante ao conflito
pai-filho e suas consequências, voltemos à argumentação de
Delcourt.
Opondo-se radicalmente à teoria freudiana, a pesquisadora belga
vai bastante além: insurge-se contra a tese que postula para o mito
uma elaboração inconsciente. Talvez se possa ver em semelhante
atitude uma reação contra a tendência invasora e a popularidade
crescente da interpretação psicanalítica em matéria de mitologia.
Suas afirmações, nesse sentido, são contundentes: “Seja-me permitido
dizer, por agora, que, se as tendências psíquicas fizeram que se
fixassem certos temas míticos, por lhes ter dado vivacidade e uma
popularidade excepcionais, eu não acho que essas tendências
psíquicas os tenham criado. Em segundo lugar, em vez de insistir
acerca do ciume sexual do menino, julgo que se deveria dar ênfase à
impaciência com que o filho adulto suporta a tutela de um pai
envelhecido. A hostilidade entre ambos me parece muitas vezes
provocada menos por uma libido recalcada do que pela vontade de
governar. Se isto é correto, temos o direito de associar ao mito de
Édipo outros contos, como o de Pélops, em que um pai luta contra o
pretendente de sua filha. E o tema central, no caso em pauta, não é
mais a justa entre pai e filho, mas um conflito de gerações”25.
Quando, mais tarde, a temática penetrou no âmbito da família
organizada, criaram-se todas as atenuantes possíveis para
transportar o antagonismo entre pai e filho num duelo de
desconhecidos: a criança fora exposta e a morte do pai passou, por
isso mesmo, a ter o respaldo de um oráculo...
Já é tempo, entretanto, de retomarmos com Édipo a sua (ou nossa?)
caminhada fatídica.
5
Temendo que a previsão da Pítia se cumprisse, horrorizado com a
ideia de “matar o pai” e se unir à própria mãe, por via das dúvidas, “o
filho de Pólibo e Peribeia” (Mérope, segundo Sófocles) resolveu não
mais regressar a Corinto e tomou resolutamente o caminho de Tebas.
Esta, no momento, estava assolada por um grande flagelo. Um
monstro, a Esfinge, postada no monte Fíquion, às portas da cidade,
devorava a quantos não lhe decifrassem o enigma, que mais tarde se
transformou em dois enigmas, corno se verá, embora só um tenha
sido proposto a Édipo. Muitos jovens tebanos, inclusive Hêmon, filho
de Creonte, irmão de Jocasta e regente do trono desde a morte de
Laio, já haviam servido de pasto à “cruel cantora”, assim chamada
não propriamente porque formulasse os enigmas em versos
hexâmetros, mas por ser uma alma-pássaro, segundo se mostrou no
Vol. I, p. 260, ela cantava para encantar.
A respeito da Esfinge já se disse o suficiente no Vol. I, p. 258-266.
Ampliaremos um ou outro aspecto e enfatizaremos unicamente
alguns dados, para que se possa dar unidade ao mitema.
Como se viu no supracitado Vol. I, p. 258, houve uma aproximação
devida à etimologia popular entre a Fix hesiódica e “tebana” e a
Esfinge. É que, a par de Φίξ (Phíks), Fix, parece ter existido uma
forma Σφίξ (Sphíks), Sfix, que, muito cedo, por etimologia popular, à
base da simples sonoridade, passou a fazer parte da família de
σφιγγειν (sphínguein), “envolver, apertar, comprimir, sufocar”,
donde o substantivo Σφίγξ (Sphínks), Esfinge26. Esta aproximação
“etimológica” contribuiu muito para fazer da Esfinge um monstro
opressor, um pesadelo, um íncubo, função que complementa sua
atribuição primitiva que era de alma penada. Consoante Marie
Delcourt, o ser mítico (monstro feminino com rosto e, por vezes, seios
de mulher, peito, patas e cauda de leão e dotado de asas) que os
gregos denominaram Esfinge, foi por eles criado com base em duas
determinações superpostas: a realidade fisiológica, isto é, o pesadelo
opressor, e o espírito religioso, quer dizer, a crença nas almas dos
mortos representadas com asas. Estas duas concepções acabaram por
fundir-se, uma vez que possuíam e ainda possuem certos aspectos
comuns, principalmente o caráter erótico e a ideia de que, quando se
dominam os pesadelos, os íncubos e fantasmas, o vencedor recebe,
como dádivas dos mesmos, tesouros, talismãs, reinos e uma consorte
real.
A Esfinge é, pois, a junção de dois aspectos: o pesadelo opressor e o
terror infundido pelas almas dos mortos.
Na realidade, a Esfinge pertence simultaneamente a duas
categorias de seres, que correspondem a dois enfoques diferentes:
irmã de Efialtes, o monstro é um pesadelo, um demônio opressor;
irmã das Sereias, a “cruel cantora” é uma alma penada. Com efeito,
Sereias, Queres, Erínias, Harpias, as Aves do Lago de Estinfalo... são,
em princípio, almas dos mortos. Assim como existem várias Sereias,
teria havido várias Esfinges. O mito de Édipo, no entanto, privilegiou
de tal forma uma delas, que as demais caíram no esquecimento. E, por
isso mesmo, graças à literatura, todas as imagens mais ou menos
diferentes, relativas à Esfinge, cristalizaram-se em torno da mulherleão alada... Pois bem, todos esses seres possuem um traço comum:
são ávidos de sangue e de prazer erótico.
Nos monumentos mais recentes, todavia, a Esfinge aparece sempre
associada a Édipo, uma vez que, nos mais antigos, segundo se
mostrou na mesma p. 259s do Vol. I, ela surge sempre como demônio
devorador, erótico e opressor. Foi graças à literatura que a “cruel
cantora” perdeu seu caráter de íncubo. Uma nota da Suda, no
entanto, uma passagem de Os Sete contra Tebas de Ésquilo e uma
referência de Pausânias ainda nos mostram alguns vestígios do
antigo monstro erótico opressor: na Suda, verbete Μεγαρικαὶ
σφίγγειν (Megarikaì sphíngues), “Esfinges megáricas”, lê-se:
“Esfinges megáricas: é assim que são chamados os prostituídos. Daí
talvez o nome de esfinctes com que são designados os efeminados”.
Na tragédia de Ésquilo Os Sete contra Tebas, 541-543, assim é descrito
o escudo de Partenopeu (um dos sete chefes) que estampava uma
Esfinge:
A Esfinge devoradora de carne crua, cuja imagem,
cinzelada em relevo e fixada por pregos, brilha
intensamente: a Fix tem sob ela um dos Cadmeus.
Devoradora e sob ela definem perfeitamente o caráter antigo do
monstro: devorador e íncubo.
Pausânias, na Descrição da Grécia, 5,11,2, comentando uma
composição que decorava os pés do trono de Zeus em Olímpia, assim
se expressa: “sob cada um dos pés dianteiros (do trono de Zeus) jazem
crianças tebanas arrebatadas pelas Esfinges”.
Como se vê, foi a literatura que transformou a Fix num monstro
inquiridor, sem tirar-lhe, todavia, o apetite...
A presença hostil da Esfinge às portas de Tebas é diversamente
explicada. Consoante Eurípides, nas Fenícias, 810, foi o deus Hades
ou Plutão quem a colocou ali, fato que lhe marcaria apenas o funesto
aspecto da morte; talvez o responsável tenha sido o violento Ares,
ainda irritado com a morte do Dragão por Cadmo; outros dizem,
segundo dois escólios das Fenícias, 934 e 1031, que foi Dioniso, que
jamais perdoou a oposição de Penteu e dos Cadmeus, “seus irmãos”, à
penetração do culto do “êxtase e do entusiasmo” em Tebas... A
explicação mais aceita, entretanto, e é a adotada por Apolodoro,
Biblioteca, 3,5,8, e pelo “Resumo de Pisandro”, é de que o flagelo fora
enviado pela deusa Hera, a fim de punir o amor contra naturam de
Laio por Crisipo. Desse modo a protetora dos amores legítimos teria
imposto aos Tebanos um παράνομος ἔρως (paránomos éros), a
saber, um outro “amor criminoso”, um íncubo-papão, que só comia
jovens, desde que fossem belos, como foi o caso de Hêmon, filho de
Creonte.
De qualquer forma, a Esfinge devorava a quantos não lhe
respondessem ao enigma proposto.
Com respeito a enigma, em grego αἴνιγμα (aínigma), do v.
αἰνίσσεσθαι
(ainíssesthai),
“falar
por
meios-termos,
dizer
veladamente, dar a entender”, significa, etimologicamente, “o que é
obscuro ou equívoco”. Consoante Delcourt, o que é uma realidade, os
gregos tinham verdadeira fascinação por enigmas, cuja decifração se
transformava nas reuniões sociais numa demonstração de
habilidade e talento. Ateneu (séc. II-III d.C.) consagrou todo o livro X
do Dipnosofistas (Banquete de sábios) à interpretação de adivinhas.
No tocante à origem, admite-se que o enigma seja um tema muito
antigo, que certamente estava relacionado com um casamento, já que
existem numerosos contos em que o herói conquista a princesa com
resposta precisa a uma questão difícil; mas, assim mesmo, o enigma
seria a terceira etapa, já depurada, de algo muito mais violento. A
primeira seria um corpo-a-corpo com o monstro; a segunda, a posse
sexual, presumindo-se, não obstante, uma luta prévia; e a terceira
seria o enigma. Qualquer das três “provas”, todavia, vencido o
monstro, dava ao herói a posse de tesouros, de um reino e a mão da
Princesa. Marie Delcourt acha que talvez a ordem da luta do “íncubo
contra o ‘conquistador’ deveria ser outra: o sexo, os golpes e a
inquirição e acrescenta que é inútil investigar qual a realidade mais
arcaica que se esconde sob o questionamento imposto a Édipo”. Tal
interrogatório “faz parte da mitopeia primitiva, que era bem mais
rica do que aquela a que os poetas deram colorido e beleza.
Igualmente, o tema do corpo-a-corpo não é, como eu havia pensado,
mais recente que o amplexo aplicado ao jovem pelo íncubo e mais
antigo que o enigma. As velhas tradições ofereciam certamente as
três variantes. Os poetas escolhiam aquela que melhor satisfizesse a
seus desígnios”27. E, mais adiante, pondera que o adversário
monstruoso é uma soma de significados superpostos e, no caso
específico da Esfinge, essas significações são claras. Quer se trate de
um íncubo ou de uma inquiridora, a Esfinge é simultaneamente uma
alma penada. As asas, o talento musical, a ciência e a insaciabilidade
estabelecem sua ligação com o mundo das sombras. Quanto ao
combate entre o jovem e o monstro, Delcourt acredita tratar-se de
uma reminiscência de provas iniciáticas por que passava todo
adolescente, reservando-se as mais terríveis e difíceis para os futuros
chefes28. De qualquer forma, e esta é a communis opinio, o tema da
Esfinge questionadora só aparece a partir do mito tebano de Édipo e
sua vulgarização se deveu à literatura, particularmente à grande
tragédia de Sófocles, Édipo Rei.
Em geral os monstros, segundo Delcourt, questionam mais a
memória do que a inteligência de seu interlocutor. Perguntam, as
mais das vezes, determinados nomes ou segredos e, não raro, o herói
ou inimigo, para não morrer, deve conhecer “o nome esotérico de
certos seres ou coisas”. Frequentemente o questionado deve saber o
nome de seu questionador. Aquele, porém, dificilmente pode ser
retido na memória e é necessário que se tenha muita sorte ou a
intervenção de seres sobrenaturais, para que as sílabas mágicas
possam ser lembradas. Mas, se seu nome for corretamente
pronunciado, o monstro desaparece ou é reduzido à impotência.
No mito de Édipo acontece algo de significativo: a Esfinge não
pergunta ao filho de Laio pelo nome dela, mas pelo dele.
Recordemos o enigma29: “Existe um bípede sobre a terra e
quadrúpede, com uma só voz, e um trípode, e de quantos viventes
que vagueiam sobre a terra, no ar e no mar, é o único que contraria a
natureza; quando, todavia, se apoia em maior número de pés, a
rapidez se enfraquece em seus membros”. A segunda versão, bem
mais simples, é a seguinte: “Qual o animal que, possuindo voz, anda,
pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com
três?” Respondendo corretamente que era o homem, Édipo está muito
sutilmente fornecendo não seu nome individual, mas o de sua
espécie. Que significaria essa resposta? Marie Delcourt chama a
atenção para o fato de que na palavra Oidípus em grego
compreenderia dípus, “dois pés” e, desse modo, o nome próprio do
iniciando expressaria o nome comum da espécie. Existe igualmente
uma tradição segundo a qual Édipo decifrara o enigma sem
pronunciar a resposta: à pergunta da Esfinge ele tocou a fronte e o
monstro compreendeu que o jovem se designava a si próprio para
responder à questão proposta. Nos versos 533-535 dos Trabalhos e
Dias, Hesíodo compara o homem idoso e portanto arqueado a uma
trípode, τρίπουδ (trípus), de três pés, que é o homem no seu
entardecer:
Então os mortais, semelhantes a um tripé, com o dorso
arqueado e os olhos fincados na terra, vagueiam
curvados para escapar à branca neve.
É bem possível que a adivinha acerca de que são dois, três, quatro
tenha circulado por longo tempo antes de penetrar no mito de Édipo,
em função da assonância Oι̉δίπoυς (Oidípus), δίπους (dípus),
τρίπους (trípus), τετράπους (tetrápus), isto é, Édipo, de dois, três,
quatro pés30. É bom relembrar que Oι̉δίπoυς (Oidípus), “o de pés
inchados”, o deformado, já é um homem τρίπους (trípus), “de três
pés”, por apoiar-se num bordão. Jogando com seu próprio nome,
Édipo conseguiu vencer a Esfinge.
De um ponto de vista simbólico, o enigma pode ser interpretado
como uma prova iniciática, uma vez que, sendo o íncubo uma alma
penada, tudo o que tange à outra vida, apesar do pouco que se
conhece dos Mistérios, comporta uma série de perguntas e respostas.
O iniciado deverá conhecer o segredo dos nomes e das coisas, a fim
de que possa, em seu longo caminhar através das emboscadas das
trevas, sair para a luz. Outros veem no aínigma a transposição da
agonia que acompanha certos pesadelos e determinados sonhos:
como se luta, às vezes, para sacudir o monstro constritor ou para
encontrar, nos sonhos, a palavra certa, decifrar textos ilegíveis e
responder a determinadas perguntas! O alívio do despertar seria a
resposta correta...
Não parece fora de propósito acrescentar que existem, em todas as
culturas denominadas impropriamente primitivas, enigmas
relativos apenas à conquista de uma bela esposa, como se a mulher já
não fosse de per si um aínigma, aliás καγὸν αἴνιγμα! Estão neste
caso as questões propostas ao rei Salomão pela rainha de Sabá “que
foi experimentá-lo com enigmas” e “não houve nenhum que o rei
ignorasse e sobre o qual lhe não respondesse” (1Rs 10,1-3). Ignora-se,
infelizmente, o conteúdo desses enigmas. Sem sair da Sagrada
Escritura, pode-se afirmar que, em geral, os enigmas do Antigo
Testamento são propostos sob a forma de parábola, quer dizer, uma
equação entre uma imagem e uma ideia abstrata, muito semelhantes
a sonhos que se devem interpretar, como os que se encontram em Ez
17, Dn 8, Gn 40–41. “Nos tempos modernos”, o mais significativo
conjunto de enigmas, com vistas à mão da princesa, é o que a bela
Turandot propunha a seus pretendentes. A quarta narrativa das Sete
Imagens de Mohammed-Yusuf, chamado Nizami de Gangia, autor do
século XII, relata a história da lindíssima Turandot, encerrada num
castelo encantado. Seus pretendentes deveriam reunir quatro
condições para tê-la como esposa: ser honestos, vencer os guardas
misteriosos do castelo, apoderar-se de um talismã e conseguir o
consentimento do pai da futura mulher. Muitos já haviam tentado e
seus crânios enfeitavam as ameias do castelo... Um corajoso príncipe,
no entanto, orientado pelos conselhos do pássaro Simurg, conseguiu
vencer as três primeiras dificuldades. O pai consentiu no casamento,
desde que o pretendente resolvesse três enigmas que a princesa lhe
proporia. Turandot enviou ao pretendente duas pérolas. De imediato,
este compreendeu a simbologia: “A vida se assemelha a duas gotas de
água” e mandou de volta as pérolas com três diamantes, o que
significava que “a alegria podia prolongar-se”. Turandot devolveu as
duas pérolas com os três diamantes, mas acrescentou-lhes açúcar. A
interpretação do herói foi a seguinte: “a vida é uma mistura de
desejos e prazeres”. Adicionou leite na caixa em que estavam as joias
e a reenviou à futura esposa com o enigma inteiramente solucionado:
“como o leite absorve o açúcar, assim o verdadeiro amor absorve o
desejo”. E Turandot deu-se por vencida.
Acerca desse tema Carlo Gozzi (1720-1806) escreveu uma peça
tragicômica em cinco atos, que há de servir de inspiração à
composição musical de Karl M. Weber (1786-1826) e às óperas
Turandot de Ferruccio Busoni (1866-1924) e de Giacomo Puccini
(1858-1924), esta última, aliás, terminada por Franco Alfano e
Vicenzo Tommasini.
Édipo derrotou, pois, a Esfinge com a resposta: é o homem. A vitória
do herói tebano não teve o auxílio dos deuses: ele a eliminou sozinho.
Perseu, na luta contra as Górgonas, além do cavalo Pégaso e de armas
e talismãs que lhe emprestaram os deuses, teve o respaldo das ninfas;
Héracles, na busca dos pomos de ouro do Jardim das Hespérides, foi
assistido por Nereu e Prometeu. Belerofonte o foi por Atená ou
Posídon. Édipo, ao revés, sem a assistência de qualquer deus ex
machina, venceu a Esfinge de Tebas, não porque recebera qualquer
auxílio divino, não porque adivinhava, não porque podia, mas
porque sabia. E “sabia demais”. Esse tipo de saber, aliás, provocar-lheá a derrocada.
Para se justificar, todavia, o saber de Édipo não é necessário
construir etimologia por assonância como fazem o seguro Michel
Foucault31et al., postulando como primeira parte do composto
Oἰδίπoυς (Oidípus) a forma οἶδα (oîda), denominado “perfeito
segundo” de εἴδω (eído), “eu vejo, eu sei”, com cujo infinitivo
(Ϝ)ιδεῖν ((F)ideîn), “ver, saber” se relaciona o latim uidere, “ver”. O
primeiro elemento do substantivo Οἰδί-πους (Oidípus), Édipo, tem
por base o v.oi*dei~n (oideîn), “inchar” e nada tem a ver com oîda, “eu
sei”.
O próprio título da grandiosa tragédia de Sófocles, Oι̉δίπoυς
τύραννoς (Oidípus T×rannos), Édipo Rei, conforme acentua
Foucault32, já é um índice de que Édipo, através do saber, chegou a
τύραννoς (t×rannos)33, isto é, ao poder. O saber de Édipo é um saber
de iniciação e o iniciado triunfa pelo que sabe e não pelo que pode.
Derrotada, a “cruel cantora” precipitou-se no abismo. Outras
versões dão-lhe um fim diferente: no lécito (vaso pequeno) chamado
de Boston, Édipo liquida o monstro a golpes de clava ou talvez com
seu bordão; num aríbalo (vaso pequeno semelhante a uma bolsa),
encontrado na ilha de Chipre, a Esfinge, caída aos pés do herói,
recebe o golpe de misericórdia; em Apolodoro, 3,5,7,8 e Diodoro, 4,6
ela se mata de desespero.
Com a morte trágica de Laio, já que o trono não poderia ser
ocupado por mulher, no caso Jocasta, Creonte, irmão da rainha,
assumiu o poder. Mas, como a luta e a vitória sobre um monstro são
coroadas com a conquista de um reino e o casamento com a princesa
ou rainha, “o povo tebano” exigiu que o destruidor da Esfinge, como
salvador de Tebas, ocupasse o trono dos Labdácidas. Creonte
facilmente abriu mão do sólio tebano, ou porque se sentisse mais à
vontade e exercesse de igual maneira o poder juntamente com Édipo
e Jocasta, sem as preocupações e apreensões impostas pelo cetro,
como ele próprio confessa em Édipo Rei, 581 e 584ss, ou por gratidão
ao vencedor da “cruel cantora”, que lhe devorara o filho Hêmon. Ao
trono se seguiu o casamento com a rainha... Nas Fenícias de
Eurípides, 47ss, Jocasta narra como seu irmão Creonte lhe prometera
a mão àquele que decifrasse o enigma da virgem engenhosa e como, por
acaso, fora Édipo quem compreendera os cantos da Esfinge.
Durante anos Édipo e Jocasta viveram felizes. Se no relato
homérico o casal não possuía filhos, em Édipo Rei tem quatro:
Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene. Uma família tranquila, se as
Erínias o tivessem permitido... Foi então que novo e terrível flagelo se
abateu sobre a pólis dos Labdácidas.
E as Erínias de Laio, as terríveis punidoras do sangue parental
derramado, por que demoraram tanto a manifestar-se? Como
agudamente observa Marie Delcourt, se nas versões mais antigas do
mito deve ter havido uma luta encarniçada entre Laio e Édipo, como
se explica que este último não tenha sido perseguido pelas Erínias de
seu pai, como o foi Fênix (Il., IX, 454ss), pelo simples fato de haver, a
pedido de sua mãe enciumada, possuído a amante do pai? Em
Homero, segundo se mostrou, só funcionam as Erínias maternas,
mas Píndaro, nas Olímpicas, 2,3,45ss (o que parece ser uma crítica ao
bardo da Ilíada e da Odisseia) faz que as Vingadoras liquidem para
sempre os descendentes masculinos dos Labdácidas:
A terrível Erínia viu o parricídio
e fez perecer uma raça destemida:
os filhos de Édipo reciprocamente se deram a morte.
“É que entre Homero e Píndaro a concepção das Erínias evoluiu: no
primeiro elas parecem perseguir apenas aqueles contra os quais são
invocadas; no segundo, converteram-se em potências morais”34, que
punem o sangue parental derramado. Desse modo, “o tema da cólera
do morto, a qual não aparece em Homero, mas que é formalmente
sugerida por Píndaro, ocupa todo o início de Édipo Rei. Por que Tebas
novamente é assolada por uma peste? Simplesmente porque o
assassino de Laio não foi punido. Mas quem é o criminoso? A
temática da peça é precisamente a busca do parricida. O incesto é
descoberto por acréscimo. Religiosamente falando, o mesmo não
desempenha papel algum importante na tragédia”35.
No auge de sua realeza e poder, Édipo é convocado pelo povo para
novamente salvar a cidade. O soberano, cônscio de suas
responsabilidades, já enviara seu cunhado Creonte a consultar o
Oráculo de Delfos. A resposta de Apolo foi direta e incisiva: a nódoa
que mancha Tebas é o assassino de Laio, cuja busca e captura são
energicamente ordenadas pelo rei com imprecações aterradoras.
Afinal, o assassino do antigo rei de Tebas é igualmente séria ameaça
à pessoa do rei atual e portanto ao poder. Aliás, no áspero diálogo que
Édipo mantém com o adivinho cego Tirésias, o que sabe, e com seu
cunhado Creonte, a ideia fixa do vencedor da Esfinge é de que
Tirésias serve de instrumento a Creonte: ambos desejam tomar-lhe o
poder! É que, não tendo como descobrir quem matou a Laio, Édipo, a
conselho de seu cunhado, mandou vir o mántis, o adivinho de Tebas,
que, mergulhado na escuridão de sua cegueira, tudo sabia por dádiva
de Zeus, embora Sófocles a atribua a Apolo. Tirésias procura
esquivar-se do cerrado interrogatório do marido de Jocasta e só à
custa dos insultos recebidos, acusado que foi de mentor da morte de
Laio e de aspirar ao poder juntamente com Creonte, é que acabou
revelando a dolorosa verdade: Édipo matara o próprio pai e vive em
sórdida comunhão com os seres que lhe são mais caros. Em outros
termos, está casado com a própria mãe e é pai de seus irmãos... O
diálogo com Creonte ainda é mais violento. A tônica é sempre a
mesma: a ambição, o mando, a sede do poder cegaram o irmão de
Jocasta! Como judiciosamente enfatiza Foucault “somente em Édipo
em Colono se verá um Édipo cego e miserável gemer ao longo da
peça, dizendo: ‘Eu nada sabia, os deuses me pegaram em uma
armadilha que eu desconhecia’. Em Édipo Rei ele não se defende de
maneira alguma ao nível de sua inocência. Seu problema é apenas o
poder. Poderá guardar o poder? É este poder que está em jogo do
começo ao fim da peça”36. Guindado ao trono, sem direito
“consanguíneo” ao mesmo, mas com respaldo do povo, por causa de
alguma façanha memorável, o t×rannos, detentor do saber, não
admite ser despojado do poder, que acaba por cegá-lo, extirpando-lhe
o saber.
Foi necessária a intervenção enérgica da rainha para que o marido
e o irmão interrompessem o violento duelo verbal em que se
empenhavam “acerca do poder”, o ponto nevrálgico da insegurança
de Édipo. Procurando tranquilizar o marido, Jocasta põe em dúvida o
saber de Tirésias: afinal o Oráculo não predissera que Laio seria
assassinado pelo próprio filho? Se este, tão logo nasceu, foi exposto, e
se o rei foi morto num trívio por bandoleiros, onde está a veracidade
dos adivinhos, porta-vozes do Oráculo? E acrescenta enfática: “Dessa
feita Apolo não realizou a predição: nem o menino matou o pai, nem
Laio foi assassinado pelo filho, algo terrível que tanto temia” (Édipo
Rei, 720-722). A fala da rainha, no entanto, em vez de aquietar,
incendiou a alma do esposo: o rei fora assassinado num trívio... E
mais adiante outros pormenores fornecidos por Jocasta levam Édipo
a um quase desespero: a chacina tivera por cenário a Fócida, na
encruzilhada de Delfos e Dáulis; Laio estava, na ocasião do crime,
com uma idade equivalente à de Édipo no momento, era alto, muito
parecido com o rei atual; viajava numa carruagem com uma escolta
de cinco homens e tudo se passara pouco antes de o herói ter sido
proclamado rei: as coincidências eram muito claras: o pavor
transtornou a fisionomia do vencedor da Esfinge! Só lhe restava uma
saída, uma derradeira esperança, como ele próprio confessa (Édipo
Rei, 771): o fato fora narrado à rainha e aos Tebanos por um servo
que fugira ao massacre e ele afirmara que o rei e o restante de sua
comitiva haviam sido mortos por salteadores estrangeiros. Se o
escravo confirmasse a versão, o rei de Tebas estaria fora de quaisquer
suspeitas. O rei, porém, não se tranquiliza: quer ver de imediato e
interrogar pessoalmente o escravo de Laio, que estava longe, no
campo, pastoreando os rebanhos.
A partir da concisa, mas clara narrativa de Jocasta, Édipo não mais
buscou o assassino de Laio, mas passou a buscar-se a si
próprio.Mordido pela inquietação e o remorso, desfilou para a rainha
um longo flashback, desde sua infância feliz na corte de Pólibo, em
Corinto, até o dia em que, chamado de filho postiço por um bêbado,
decidiu buscar a verdade no Oráculo de Delfos, que lhe vaticinou o
assassinato do pai e o casamento com a própria mãe... Afastando-se o
mais possível de Corinto, matou no trívio a pessoa descrita pela
esposa, bem como a seus acompanhantes... Se o escravo não
confirmasse que o rei de Tebas fora morto por vários assaltantes,
estaria condenado a matar seu pai Pólibo e a se casar com sua mãe
Mérope!
Por instantes o negro céu de Tebas tornou-se azul. Um mensageiro
de Corinto (o mesmo que o recolhera no Citerão) vem anunciar a
morte de Pólibo e dizer que o Istmo inteiro fizera do rei de Tebas o
seu rei. E os Oráculos, para que serviam? Pólibo está morto e não foi
pelas mãos do rei dos Tebanos! O júbilo de Édipo é incontido, mas
persiste uma certa preocupação: Mérope, sua mãe, ainda vive, Jocasta
o reanima:
Quanto a ti, não deves temer o conúbio com tua mãe:
quantos mortais já não compartilharam em sonhos o
leito materno.
(Édipo Rei, 980-982)
Édipo, todavia, não precisava temer uma possível união com
Mérope, pois que esta, segundo o mensageiro de Corinto, não era a
mãe do herói... Jocasta se retirou. Tudo estava demasiado claro para
ela: enforcou-se no palácio. Édipo foi até o fim. Só depois deacharsenos pungentes diálogos com os dois pastores, o de Tebas, que o
expusera, e o de Corinto, que o recolhera, é que se deu por vencido:
Ai de mim! Tudo se desvendou.
Ó luz, oxalá possa contemplar-te pela última vez!
Ficou bem claro que eu não deveria ter nascido de
quem nasci, Não deveria viver com quem vivo e matei
a quem não deveria matar!
(Édipo Rei, 1182-1185)
Como um louco, penetrando no palácio, onde pendia o corpo de
sua mãe e esposa e, arrancando-lhe das vestes os alfinetes de ouro
com que a rainha se adornava, com eles rasgou os próprios olhos.
Sua súplica derradeira a Creonte foi que este o exilasse
imediatamente.
Eis em síntese a lindíssima versão poética de Sófocles.
É oportuno acrescentar que em outras variantes do mito Jocasta
não reconhece o filho-esposo através da narrativa do escravo de
Corinto, mas, segundo o “Resumo de Pisandro”, pelo boldrié e pela
espada de Laio, que estavam em poder do mesmo. É sabido que o
vencedor se apossava das armas do vencido, não pelo valor que estas
possuem, mas pelo mana que das mesmas irradia. O infortunado
filho de Jocasta, no relato homérico, segundo se viu, “despojou” a
Laio. Outras variantes insistem em que o reconhecimento se fizera
através das cicatrizes dos pés inchados e deformados de Édipo. No
que tange à morte trágica da rainha, Marie Delcourt defende uma
hipótese sumamente interessante: o suicídio da filha de Meneceu
teria sido um ato de vingança contra Édipo. Para a autora, com efeito,
“Epicasta parece ter-se matado para vingar-se do filho e não por
desespero, como a Jocasta trágica. Como se explicaria tal fato? Um
ódio tão grande implica uma mitopeia diferente da que é relatada
pelos trágicos. A Jocasta de Sófocles é antes mulher de Édipo que
viúva de Laio; Epicasta, ao revés, fica ao lado de Laio contra o filho.
Quando se examina mais atentamente o texto homérico, observa-se
que Epicasta desposou o filho sem conhecê-lo, mas nada se diz a
respeito da ignorância de Édipo”37. Este, na Odisseia, é caracterizado
como “vencedor maldito”, que reina sobre Tebas “pela vontade
funesta dos deuses”, mas cujo destino é “sofrer muitos males”.
O suicídio de heróis e particularmente de heroínas por ódio e
vingança é fato comum no mito: Ájax, que se matara por vergonha e
ódio, se recusa, por rancor a Ulisses, a dirigir-lhe a palavra, quando
da invocação dos mortos (Odisseia, XI, 563ss); igualmente Dido, em
Vergílio, Eneida, 6, 469ss, faz ouvidos moucos às ternas palavras e
desculpas de Eneias, cena que parece ser uma imitação da narrativa
homérica citada; também Fedra, por ódio, vergonha e vingança
contra Hipólito, se mata, arrastando o jovem e inocente filho de
Teseu a um fim trágico (Eurípides, Hipólito, 1286ss).
Embora, no relato homérico, Édipo não se cegue e continue a reinar
sobre os Tebanos, em Sófocles, além do exílio solicitado a Creonte e
imposto pelas próprias imprecações do herói no início da tragédia, o
filho de Jocasta (Édipo Rei, 1270ss) vazou os próprios olhos, a fim de
que os mesmos não mais lhe testemunhassem as misérias e crimes.
Do ponto de vista simbólico, todavia, a cegueira que Édipo se
infligiu possui um sentido mais profundo. As trevas externas geram
a luz interna. A ἀναγνώρισις (anagnórisis), “a ação de reconhecer” e
de reconhecer-se começa efetivamente a existir quando se deixa de
olhar de fora para dentro e se adquire a visão de dentro para fora.
Mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou. Se Édipo,
porque sabia, conquistou o poder, a hipertrofia desse mesmo poder
sufocou-lhe o saber. Sua cegueira estabeleceu em definitivo a
ruptura entre o saber e o poder: cego, o herói agora sabe, mas não
pode. Não mais, como deixa claro Foucault, estamos na época dos
t×rannoi, dos tiranos, mas na era de Péricles, no século da democracia,
que não sabe, mas pode. Tanto que em Édipo Rei os únicos a saber,
além dos deuses e os adivinhos, são os humildes, os pastores, que não
podem, mas sabem38. Por isso mesmo, em sua tragédia Antígona, que é
um confronto entre a consciência individual e o despotismo
sofístico, Sófocles mostrou com muita clareza que a característica
básica de sua personagem central, Antígona, é o direito de opor uma
verdade sem poder a um poder sem verdade.
Voltemos, porém, a Édipo. Cego e condenado ao exílio, mercê de
suas próprias imprecações lançadas contra o “assassino de Laio”, o
príncipe permaneceu ainda em Tebas por algum tempo. O poder
passou a ser exercido por Etéocles e Polinice, que, por duas vezes, o
tendo desacatado e injuriado, acabaram por ser amaldiçoados pelo
pai. Este, além do mais, vaticinou que ambos morreriam
violentamente, lutando um contra o outro, assunto já tratado na
Tebaida e que Ésquilo retomará em sua tragédia Os Sete contra Tebas.
Expulso da cidade pelos filhos, Édipo, guiado por Antígona, errou
por longo tempo através da Grécia, até que um dia, na lindíssima
tragédia imaginada por Sófocles, Édipo em Colono, chegou ao demo
de Colono, onde nascera o grande dramaturgo ateniense. Como nesse
“bairro” de Atenas houvesse um bosque consagrado às Eumênides, o
peregrino reconheceu que era este o local apontado pelo Oráculo
como o término de seus sofrimentos e humilhações.
Inteligentemente, Sófocles fez coincidir a chegada de Édipo ao demo
ático de Colono com o início da famosa expedição dos Sete contra
Tebas39. Como a presença do herói decidiria, consoante o Oráculo, o
êxito da luta, Creonte, em nome dos Tebanos, e Polinice, vêm pedir o
auxílio de Édipo. Ao primeiro o filho de Jocasta repele, tendo a Teseu
por protetor, e ao segundo rechaça e amaldiçoa mais uma vez.
Após prometer a Teseu, que lhe concedera asilo, a proteção de
Atenas contra toda e qualquer invasão tebana (Édipo em Colono, 605623 e 1533-1536), uma vez que possuir o sepulcro do herói significava
ter uma muralha inexpugnável contra os inimigos externos, Édipo se
prepara para o grande mergulho.
“Troveja Zeus ctônio”. Após trocar a indumentária, fazer as
abluções rituais e recomendar as filhas a Teseu, encaminhou-se,
acompanhado apenas pelo rei de Atenas, para seu leito de morte: a
terra se abriu suavemente e Édipo retornou ao seio materno. A uma
pergunta do corifeu, o Mensageiro dá a seguinte resposta (Édipo em
Colono, 1583-1584):
Corifeu – Morreu o infortunado?
Mensageiro – Saiba que Édipo conquistou uma vida que não tem
fim.
Sofrer para compreender, diria Ésquilo. O Citerão foi redimido por
Colono.
É difícil “coordenar” o mito de Édipo, por ser ele um daqueles que
chegaram até nós em “transposições literárias”. Claude Lévi-Strauss
viu bem e assim expressou o problema: “O mito de Édipo chegou-nos
em redações fragmentárias e tardias, que são todas transposições
literárias, mais inspiradas por um cuidado estético ou moral do que
pela tradição religiosa ou o uso ritual, se é que tais preocupações
tenham alguma vez existido a seu respeito”40. De qualquer forma, o
mito continua!
Édipo é o herói que se encontrou na fuga. Perfazendo uma longa
caminhada, o filho de Laio e Jocasta fechou o mandala: de Tebas ao
Citerão, deste a Corinto, da corte de Pólibo a Delfos, do Oráculo de
Apolo ao trívio, da morte de Laio ao monte Fíquion, da vitória sobre
a Esfinge ao casamento com Jocasta e do reencontro com o saber ao
mergulho final no seio da Grande Mãe, Édipo completou o círculo
urobórico.
Everardo Rocha escreveu com propriedade a esse respeito: “Se
quisermos visualizar o percurso traçado pelo caminho de Édipo,
fugindo do destino e reencontrando-o para dolorosamente cumprilo, podemos perceber que Édipo acaba por dar uma volta completa
num círculo. Sua vida pode ser expressa num esquema circular que
demonstra o paradoxo de sua existência: quanto maior a tentativa de
fuga, mais próximo está o encontro”41. O autor estampou, em
seguida, o que denominou “O Caminho de Édipo” e que nós
chamaríamos o Uróboro Iniciático de Édipo:
Quadro 9
6
O Mito de Édipo42tem merecidamente recebido múltiplas
interpretações. Desde Sófocles, em que a tragédia “política” Édipo Rei
visaria “também à condenação do t×rannos sofista, passando pela
versão de Bachofen, em que se chocam o matriarcado agonizante e o
vitorioso patriarcado até as “versões mais modernas” do ódio e do
amor em Sigmund Freud, da libido primordial em Jung, do mito da
origem em Lévi-Strauss, da busca da verdade em Michel Foucault, o
fato é que o mito de Édipo tem sempre alguma coisa que ainda não
foi dita. Basta ler estudos bem recentes, como os que se estampam em
O Enigma em Édipo Rei43e nos Cadernos de Psicanálise44, para se
concluir que Édipo se transforma como Proteu e se remitifica sempre
que abordado. Cresce, avoluma-se e cada tradução se transmuta em
novo mito. Se Édipo decifrou o enigma da Esfinge, “o homem” ainda
não conseguiu desvendar o enigma de Édipo.
Algo se disse acerca dos enfoques sobretudo de Freud, Jung, Erich
Fromm e Michel Focault, mas deixamos, de propósito, para encerrar
este capítulo, a visão panorâmica do mito de Édipo elaborada por
Paul Diel. Apresentaremos, pois, uma síntese da interpretação de
Diel45, introduzindo-lhe, todavia, para efeito de maior clareza,
algumas alterações e acréscimos.
“O Oráculo de Delfos predisse a Édipo que ele mataria o pai e
desposaria a própria mãe. A primeira parte de tão funesto presságio
já está presente (substituindo-se pai por avô) no mito de Perseu; e
tudo quanto se disse àquele respeito é válido igualmente para o mito
do infortunado filho de Laio. Por ser o Oráculo equívoco, isto é,
‘lóxias’, Édipo matará seu pai carnal e toda a fabulação dramática se
baseia neste fato. O herói, todavia, assassinará também seu pai
mítico e é sobre tal simbolismo que se fundamenta o sentido oculto
do mitologema.
Existe, no entanto, uma diferença fundamental entre Édipo e
Perseu. A mãe do primeiro, Jocasta, não foi fecundada por Zeus.
Édipo não é descendente do pai dos deuses e dos homens, o ‘enviado’
do espírito. A Pítia não diz que ele será um vingador mítico: a
predição permanece equívoca sob esse aspecto, tornando-se
impossível deduzir de imediato se o herói matará o pai mítico sob
sua significação positiva ou negativa.
Mas Laio, advertido por Apolo e temendo que o filho, uma vez
adulto, o depusesse do trono e o assassinasse, mandou expô-lo num
monte, com o fito de eliminá-lo. A exposição, que afasta a criança de
seus verdadeiros pais, é o primeiro índice da importância que os pais
míticos, o pai-espírito e a mãe-terra possuirão para elucidar o sentido
velado do mitologema. Uma outra diferença considerável entre
Édipo e Perseu é que Laio, antes de abandonar o filho no monte
Citerão, mandou cortar-lhe os tendões ou perfurar-lhe os
calcanhares”.
Já se viu no Vol. I, p. 355, que também Tifão cortou os tendões dos
pés de Zeus, inutilizando-o por completo. Símbolo típico, o pé
configura a alma: seu estado e sua sorte. O mito compara, destarte, o
caminhar do homem pela vida com sua atitude psíquica. Com efeito,
os atributos “ferido, calçado com uma única sandália” como Jasão,
acrescentam ao símbolo uma qualidade particular que lhe orienta,
de modo preciso, a interpretação. É o caso de Aquiles, cujo pé
vulnerável configurava a vulnerabilidade de sua alma: a propensão
do herói à cólera causou-lhe, por fim, a ruína. Toda a força e
violência do gigante Talos, conforme se viu no Vol. I, p. 184s,
terminaram por completo, quando Medeia, descobrindo-lhe o ponto
vulnerável, cortou-lhe uma pequena veia na parte inferior da perna.
Os tendões cortados do herói tebano traduzem, pois, um
enfraquecimento dos recursos da psiqué, uma deformação psíquica
que há de caracterizar a vida inteira da personagem. Diferentemente
de Zeus, Édipo permanecerá um mutilado. Sua alma somente poderá
ser curada pela força de Zeus, pai mítico de todos os homens. O filho
de Laio só se reerguerá através do impulso da espiritualização.
Diga-se aliás, de passagem, que esse reencontro consigo mesmo,
essa espiritualização tão almejada, o herói os conquistou, ao menos
dramaticamente, na tragédia de Sófocles Édipo em Colono.
Certamente o “sofrer para compreender” esquiliano produziu através
do autor de Édipo Rei seu esperado efeito catártico. Veremos isto no
fecho desta exposição.
A importância da mutilação na história do filho de Jocasta
encontra-se estampada no próprio nome do herói. Como se mostrou,
Oι̉δίπoυς (Oidípus) significaria o de pés inchados, supostamente por
lhe terem mutilado os tendões. “Ora, esse pé inchado retrataria a
psiqué inflada pela vaidade, daí a impossibilidade que tem Édipo de
perfazer com tranquilidade a caminhada através da existência: sua
alma permanecerá ferida. Ora, o homem psiquicamente mutilado é o
neurótico. Édipo, conforme se verá, é o símbolo heroico do homem
em geral, mais ou menos psiquicamente deformado, oscilando entre
neurose e banalização; e o preço da vitória sobre esta é a queda nas
garras da neurose”.
Caracterizado como um odd number, um aleijado, a situação do
herói está perfeitamente definida. O homem psiquicamente
mutilado, cuja psiqué ferida se inclina para a neurose, é esmagado
entre as engrenagens das duas possibilidades que o Oráculo de
Delfos deixou bem claras. Édipo, na realidade, desejava combater e
levar de vencida o espírito negativo, mas seu temor excessivo em
face da inclinação perversa fê-lo fracassar e cair no erro que
procurava evitar. Não ousando reconhecer e confessar a própria
fraqueza, atacá-la de frente e sublimá-la, o herói a recalcou e
somatizou. “Sacrificou o espírito positivo, o espírito da verdade, a
verdade em função de si mesmo. O neurótico cometeu, assim, um
erro trágico: tentando fugir do destino, o cumpriu. Símbolo do
neurótico, Édipo converte-se igualmente em vítima do erro trágico:
seu pai real, Laio, possui, do ponto de vista do plano simbólico, o
significado da banalização. O herói o mata por excesso de neurose e
converte-se em culpado para com o espírito positivo.
Perdendo-se cada vez mais na aventura da existência, ‘desposando
a Terra-Mãe’, desencadeando, com isso, seus desejos neuroticamente
exaltados, ele não encontra outra saída para escapar ao somatório de
culpas, a não ser ‘matar’ seu pai mítico sob sua forma verídica: o
espírito”.
O que esperava ser o meio de escapar à culpabilidade, vale dizer,
não matar seu pai real e mítico, transforma-se no motivo que o
conduz ao parricídio. Esperando fugir à Moîra, não mais regressando
para junto do pastor de Corinto, para não matar o próprio pai,
acabará por cumprir inelutavelmente as predições da Pítia.
O símbolo dos tendões cortados permite, desse modo, precisar a
postura espiritual e mítica do herói, anunciada pelo oráculo. Mas tal
configuração traduz igualmente a atitude de Édipo em relação a seu
pai real. “Uma das causas típicas da neurose é o comportamento dos
pais que, incapazes de detectar as carências psíquicas dos filhos,
preparam-lhes as enfermidades da alma. O mito enfatiza
suficientemente a insensibilidade de Laio. Ora, a indiferença dos pais
e, em consequência, o sentimento de abandono por parte da criança,
são precisamente os índices típicos da educação deficiente que altera
os dotes da alma, quer dizer, que ‘corta os tendões’. Em cada neurótico
as causas da deficiência se estampam codeterminadas pela história
de sua primeira infância. Édipo, já se mostrou através de uma
variante do mito, foi educado fora do lar paterno por um pastor que
o encontrou e adotou como filho. Seu verdadeiro pai, pela tentativa
mesma de fazê-lo perecer, tornou-se responsável e está na raiz da
enfermidade psíquica do filho. Havendo o mito indicado com
clareza a marca indelével deixada por Laio no filho, e tendo sido
suficientemente elucidada pelos símbolos a situação da criança
neurótica, pode-se concluir que o pastor não é mais que o substituto
do rei de Tebas. Seu papel de educador não passa de um fato real sem
importância para a simbolização, deixando a fabulação de insistir
sobre o assunto.
Édipo já adolescente, instruído pelo oráculo da sina que o
aguardava e, convencido de que o pastor era seu pai, o abandonou,
temendo ser coagido pela fatalidade a cumprir a predição. Dirigiu-se
para Tebas, onde reinava Laio”.
A região se encontrava devastada pela Esfinge, que devorava a
quantos não lhe decifrassem o enigma. Como todo monstro ou
flagelo que assola uma cidade, a Esfinge traduz os resultados
funestos para os domínios de um rei perverso. Laio, ignorando que a
solução do enigma haveria de apontá-lo como culpado, promete
considerável recompensa a quem libertasse a cidade do monstro que
a destruía. Caminhando em direção a Tebas, o herói resolveu
enfrentar a “cruel cantora”. As circunstâncias portanto de sua
decisão não o caracterizam como herói libertador. Miticamente
falando, ele não é um “enviado da divindade”, pois que, além de
ambicionar a recompensa prometida por Laio, não está revestido da
armadura suprema simbolicamente outorgada pelo divino: a força
da espiritualização-sublimação. Sua arma de confiança é a sutileza
do intelecto.
Antes de chegar a Tebas, porém, fugindo ao destino, Édipo está
prestes a cumpri-lo. Passando por um trívio, encontra-se com uma
carruagem que lhe barra a passagem. Profundamente irritado com a
ordem de desviar-se, num acesso de raiva, o herói mata com seu
bastão de peregrino o condutor do carro. A façanha está longe de ser
heroica. Édipo ignora que a vítima é o rei de Tebas. Continuando seu
caminho, vai ao encontro da Esfinge; e, consequência muito clara do
reino nefasto, o monstro sobrevive ao rei.
“O encontro de Édipo com Laio merece um comentário mais
preciso. Mesmo que se levasse em conta apenas o relato mítico, sem
aprofundá-lo simbolicamente, a vaidade de Édipo está bem
retratada. A ordem de afastar-se para que a carruagem do rei pudesse
passar o põe de tal maneira colérico, que o futuro rei de Tebas perde
completamente o controle. É de se supor que o rei viajasse sem as
insígnias do poder; caso contrário, Laio estaria acompanhado de sua
guarda e a ação criminosa teria sido repelida ou vingada. Nesse
encontro fatídico, por conseguinte, o rei aparece como ‘um qualquer’,
o que naturalmente intensifica ainda mais a cólera do jovem
príncipe. Em função de seus pés mutilados, o vencedor da Esfinge
não pôde afastar-se com a rapidez ordenada. A enfermidade
contraída em seus primeiros dias de vida desperta com toda a
amargura acumulada e com toda a vaidade gerada pelo recalque da
consciência de sua mutilação e de sua supercompensação
imaginativa. Além do mais, ter que ceder sempre ‘o caminho’ a nãoimporta-quem, a todos, enfim, deve ter sido o tormento e a
humilhação mais profunda da criança adotada, mais ou menos
tolerada. Se se substitui o estado de pé mutilado, que impede o filho
de Jocasta de ceder rapidamente o caminho pelo simbolismo da
significação psicológica, aparece com nitidez a situação de um
neurótico, não importa qual. Seu ódio latente é alimentado por sua
psiqué mutilada desde a juventude. A incapacidade de movimentarse livremente pela estrada da vida, ‘a enfermidade’, torna-se
suportável tão somente pelo consolo falso e imaginativo da vaidade.
Sua alma machucada, no entanto, apresenta-se vulnerável a toda e
qualquer afronta e nada fere mais profundamente a psiqué doentia
de um neurótico que ser tratada, não importa por quem, sem a devida
consideração. Eis por que Édipo não permitirá ser tratado com
desprezo e responderá a semelhante ofensa com incrível violência,
em razão de um motivo suplementar, que, por mais decisivo que seja,
reflete apenas o outro lado de sua hipersensibilidade nervosa. Tendo
decidido confrontar-se com a Esfinge, Édipo se deleita em sua
imaginação por desempenhar o papel de herói, persuadido de que
fadado a escalar o mais alto grau de realização espiritual: acredita-se
um libertador da cidade, símbolo do mundo. Este é um traço
marcante, talvez o mais característico do neurótico adolescente:
reprimido e sofredor em função de sua própria deficiência, projeta
sua enfermidade psíquica no meio circundante, exagerando assim,
através da denúncia, a insatisfação sempre atual da vida humana.
Transformando a própria incapacidade em autossuficiência, arvorase em um predestinado reformador do mundo. Explica-se, destarte,
por que o herói não cedeu espaço à carruagem de Laio nem permitiu
que o menosprezassem. Afinal, alimenta secretamente o projeto de
realizar o que ninguém tentara antes: defrontar-se com a Esfinge,
libertar a cidade e o mundo do flagelo que os oprimia.
Na medida em que o monstro configura a culpa do soberano de
Tebas, torna-se patente que ‘rei e Esfinge’ são, do ponto de vista
simbólico, duas figuras que desenvolvem um mesmo tema. O mito,
que o estampa, frisa-lhe a importância por uma repetição que
permite enfatizar a atitude claudicante do herói. Assim, sua vitória,
primeiro sobre o rei, e depois sobre a Esfinge, é um triunfo aparente.
O crime cometido no trívio e a investida furiosa contra o pai
configuram, num plano simbólico, uma primeira alusão ao
propósito vaidoso de Édipo de decifrar o enigma da Esfinge: a culpa
de Laio, o erro banal do mundo [...]”. Como toda e qualquer cavidade
(antro do dragão, inferno) o trívio é o símbolo do inconsciente e a
luta que ali se trava é projeção de um combate que se desencadeia no
inconsciente de Édipo. Ora, todo conflito psíquico se reduz à
discórdia inicial entre o espírito e a matéria, sublimação e perversão.
Semelhante conflito se resolve no plano da consciência e da função
harmonizante, traduzida pelas divindades olímpicas, pelo auxílio
que as mesmas prodigalizam ou recusam, consoante o mérito do ser
humano, isto é, segundo sua escalada em busca da espiritualizaçãosublimação. “O crime perpetrado no trívio, porém, mostra que Édipo
está longe de resolver conscientemente seu conflito intrapsíquico:
este, de natureza inconsciente, permanece, por enquanto, insolúvel.
A discórdia inicial, reduzida a um conflito inconsciente, degrada-se,
por efeito da força da exaltação imaginativa, colocando-se entre dois
polos antagônicos: a materialização e a espiritualidade exaltadas, a
primeira pela banalização e a segunda pela neurose. Todo neurótico
carrega secretamente consigo esse conflito, que se pode traduzir pela
elevação exaltada (recalque dos desejos) e queda banal
(desencadeamento dos mesmos). O encontro com Laio configuraria
esse conflito ‘assassino’, a ambivalência perversa que dilacera a alma
do ‘coxo’, do neurótico? É preciso não perder de vista que a arma
empregada nos combates míticos, no caso em pauta, a arma do
crime, possui uma significação simbólica: a arma caracteriza tanto o
herói quanto o inimigo com que se luta. Uma vez que o adversário
mítico reflete o perigo interior do herói, a arma torna-se
representativa da situação conflituosa como as asas para Ícaro, o
escudo para Perseu. A arma do crime assinala claramente a
problemática de Édipo: coxo, o herói precisa de um bastão para
permanecer de pé ou caminhar. Ver-se-á mais adiante, no ‘combate’
com a Esfinge, que é uma repetição significativa da luta com Laio, a
grande importância desse ‘permanecer de pé’. O bastão serve de
apoio ao herói. A muleta corrige de maneira inábil a enfermidade do
pé mutilado: a vaidade, muleta psíquica, é o corretivo desajeitado da
alma mutilada. Édipo, por conseguinte, o neurótico, só permanece
psiquicamente de pé, apoiando-se na muleta de sua vaidade e é esta
que o torna agressivo: usa do bastão-muleta, a vaidade, tanto para
atacar quanto para suprimir em si mesmo, para recalcar, para ‘matar’
seu próprio adversário interior, sua própria tentação banal”.
Com efeito, a arma assassina torna-se igualmente característica
para o adversário assassinado. Usado para matar, o bastão se
equivale à clava, que traduz simbolicamente a ruína da banalidade.
O rei assassinado com o bastão-clava é o tirano banal. As desgraças
que devastam a região de Tebas, configuradas pela Esfinge, são a
submissão aflitiva e a sedição, bem como os índices da desordem
pública, isto é, a devassidão e a vaidade banal com suas
consequências: o embrutecimento, a preguiça e a intriga.
“Simbolicamente, a violência contra o rei Laio é apenas a caricatura
de uma luta heroica, retratando tão-somente um combate mítico,
partícipe de uma significação típica que faz do perigo interior o
monstro ou inimigo exteriormente combatido. A tradução do
mitologema deve eliminar essa exteriorização simbólica, já que, em
virtude desta, qualquer personagem da fabulação perde sua
individualidade.
As ações individuais, quer sejam do herói ou de seus adversários,
são apenas um meio com que se expressa a perspectiva geral do
funcionamento psíquico. O rei-pai converte-se em pai mítico sob sua
forma negativa. Mutilador da alma, ele é o símbolo da alma mutilada
do herói. Representante da banalidade convencional, torna-se a
configuração generalizada da tendência à banalização. Adversário
de Édipo, Laio espelha a adversidade interior do mesmo. O rei-pai,
assassinado no trívio, não em virtude de um combate heroico, mas de
um crime, representa a tendência inconsciente de Édipo, do
neurótico, que se inclina para uma desinibição banal. O crime traduz
a atitude do neurótico relativamente à tentação que o atormenta (que
o tiraniza) e que o mesmo deseja suprimir (matar) por força de sua
exaltação vaidosa para com o espírito. O verdadeiro crime de Édipo
tem um valor simbólico. Ele mata o pai não apenas sob seu aspecto
real, mas sob a forma do pai mítico negativo e o assassina como um
coxo de alma, usando seu bastão-vaidade. O herói torna-se, destarte,
culpado para com o espírito e prepara-se para cumprir o oráculo, não
só conforme a aparência da fabulação (a morte do pai real), mas
ainda segundo seu simbolismo profundo.
Disposto a resolver perversamente o conflito de sua alma,
desejando ‘matar’ sua contratentação culposa (que sobreviverá como
sobreviveu o enigma da culpa do rei, a Esfinge), o herói avança em
direção à aventura decisiva de sua vida.
A fim de escapar ao tormento de sua culpabilidade crescente, não
lhe resta afinal outra saída, se não cumprir integralmente o oráculo
de eliminar em si mesmo o espírito acusador, a saber, o pai mítico
sob sua forma positiva”.
Após a morte de Laio, um novo elemento de predição oracular, cujo
cumprimento é uma consequência do desaparecimento do rei,
domina o mitologema: Édipo desposará sua própria mãe.
Espalha-se a notícia da morte do soberano. Sem sucessor, o trono e
a mão de Jocasta são prometidos a quem libertar a cidade do
monstro, liberando-a simultaneamente da desordem e do flagelo.
“Matando em Laio o reino da perversidade, o herói já venceu a
Esfinge, mero símbolo duplicado da perversidade do rei, configurado
em toda a sua monstruosidade.
A Esfinge, metade mulher metade leão, traduz, desse modo, a
devassidão e a dominação perversa. Em certas representações, a
cauda do monstro termina em forma de cabeça de serpente,
espelhando assim, como Quimera, a deformação das três pulsões.
Diferencia-as o fato de que esta última reproduz a exaltação
imaginária dos desejos que destroem a psiqué, enquanto a Esfinge
exprime esta mesma exaltação sob sua forma ativa, ou melhor,
banalmente agitada, convertendo-se no perigo que assola o mundo.
Todos os atributos da ‘cruel cantora’ são índices de banalização: só
pode ser vencida pelo intelecto, pela sagacidade, contraponto do
embrutecimento banal. Sentada num rochedo, símbolo da terra,
prende-se ao mesmo, como se estivesse fixada nele, traduzindo não
somente a ausência de elevação, mas igualmente a indolência e
languidez banal [...]. Apesar das asas, ao contrário das de Pégaso, que
traduzem a perversão sublimada, as da Esfinge de nada lhe servem.
Uma vez derrotada pelo intelecto, decifrado o enigma, a
brutalidade não mais dispõe de assento e a Esfinge é obrigada a
lançar-se do alto do rochedo e esmagar-se contra a terra e, como o
mito o relata, o monstro é tragado pelo abismo, outros tantos
símbolos da banalização vencida [...]”.
O enigma, conhecido de todos, é muito simples: “Qual o ser que
anda de manhã com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde,
com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem
mais pernas?”
O enigma da perversidade só poderia ter uma solução: o homem,
porquanto é a única criatura suscetível de perversão. É significativo
que no enigma da Esfinge o homem é considerado como animal. A
banalização reduz o homem a seus instintos mais abjetos,
visualizando-o como simples irracional. A brutalização banal
reconduz o homem à besta. Característica de grande importância é
que o enigma, cuja solução é proposta a Édipo, diga respeito ao pé,
símbolo da alma, tema central do mito. O próprio enigma da
banalização, do espírito que morre, deixa claro que o homem deveria
estar de pé, acima da animalidade. Ora, Édipo, em função da
enfermidade psíquica, configuração de sua deficiência física, deve
ter-se arrastado por longo tempo, na infância, sobre os quatro
membros; e mesmo na idade adulta não conseguia manter-se de pé.
“Mais que homem-herói, um jovem envelhecido, estado típico de
todo neurótico, o filho de Jocasta defronta-se com a Esfinge e seu
enigma da vida, apoiando-se num bastão, seu terceiro pé. A
inquirição do monstro é formulada a cada ser humano, mas é
adaptada particularmente a Édipo: o enigma da banalização alude à
enfermidade do príncipe, índice de sua neurose. As duas
deformações psíquicas são interdependentes e cada uma delas só se
torna compreensível em função de seu complemento. Explicaria tal
fato a solução dada por Édipo, ao menos sob sua forma verbal, ao
enigma da vida proposto pela Esfinge, obrigando-a a precipitar-se do
rochedo?
A verdade é que todo neurótico pressente o perigo da banalização,
mas só o entrevê afetivamente por excesso de aversão canalizada
sobretudo contra a banalização convencional. O conhecimento
afetivo encontra-se em todo neurótico mais ou menos
intelectualizado e delineia com frequência os fundamentos de sua
concepção de vida. Nada exaspera tanto o neurótico quanto o
comportamento do homem convencionalmente banal e coisa
alguma realça e infla tanto o potencial de sua vaidade quanto o
cotejo permanente de si mesmo com sua ‘contraimagem’ perversa,
desagradável e igualmente desvalorizada. O neurótico, ao mesmo
tempo em que condena o banalizado, ataca e ‘mata-o’
incessantemente pelo excesso de sua desvalorização. Esse
conhecimento íntimo do enigma da banalização, atribuído à
clarividência parcial da aversão excessiva, tem seu fecho na
percepção puramente verbal e intelectual, desprovida de qualquer
força de liberação [...]”.
Édipo, o neurótico, não percebe que o enigma da Esfinge alude à
sua própria deformação, não se dando conta de que ele mesmo é o
homem que deve ficar de pé, para que se chegue à verdadeira solução
da pergunta da Esfinge. Para compreender perfeitamente não apenas
o enigma da banalização, bem como a mais enigmática verdade da
vida oculta no mesmo, era necessário que o herói tivesse uma visão
mais penetrante do que a de sua afetividade intelectualizada, vale
dizer, o espelho do espírito, arma outorgada simbolicamente pela
divindade, a força da espiritualização-sublimação. “Só a
clarividência do espírito poderia revelar a Édipo que o enigma da
Esfinge é o reflexo de sua própria fraqueza, de sua falta vital. Dela o
herói permanecerá vítima, apesar de sua vitória aparente sobre a
banalização convencional e seus reflexos: o rei culpado e a imagem
monstruosa do mesmo, a Esfinge”.
Com a morte de Laio, o trono de Tebas está vago. Por força da
vitória aparente sobre o monstro, o herói adquire o direito de ocupálo, como libertador de Tebas. Assumindo o poder, Édipo se casa com
Jocasta.
Realizou-se, no mito, a segunda parte da predição oracular.
“Consoante o sentido latente, no entanto, o cumprimento do
oráculo não se teria devido a um simples acidente, mas ao
desenvolvimento da atividade sublime ou perversa do herói. O
incidente ‘casar-se com a mãe’ é unicamente o índice simbólico dessa
atividade, o índice revelador de sua sublimidade ou perversidade. No
plano simbólico, a rainha-mãe deve possuir uma significação
miticamente profunda. Se Laio configura o pai mítico sob forma
negativa, o espírito pervertido, Jocasta espelha a mãe mítica, a terra,
mas igualmente sob forma simbolicamente negativa. ‘Desposar a
mãe’ torna-se sinônimo de apego excessivo à terra. Édipo liga-se à
Terra-Mãe, símbolo, no caso, dos desejos exaltados. Elevado ao poder,
o herói defronta-se com a alternativa secreta de sua vida: o enigma
subjacente de toda a sua existência, o conflito intrapsíquico entre a
neurose e a banalização não pode tardar a encontrar sua solução
perversa ou sublime. O simbolismo da mãe desposada denuncia a
natureza perversa da solução. Uma vez no trono, o filho de Laio julga
que poderia realizar o sonho de sua adolescência: acredita-se o
libertador sublime da cidade, símbolo do mundo. Seduzido, todavia,
pelo poder, concretiza apenas o sonho perverso, conseguindo liberar
unicamente seus próprios desejos. Fracassa, desse modo,
precisamente numa perversidade que, por estar carregada de traços
dionisíacos e titanescos, é apenas uma forma dessa mesma
banalização que o ímpeto da juventude desejou combater.
Desposando a Terra-Mãe, ele continuará a matar o pai mítico, o
espírito: esta é a significação legal do oráculo e o caminho para sua
realização integral. Édipo, entretanto, não resiste à tentação do poder.
Abraçando-o em sua mãe, tradução dos prazeres, não o fará como
Laio, homem banal, mas como alguém inibido por sua própria
culpabilidade recalcada. A desordem e o flagelo continuarão a
prosperar na cidade. Discórdia e ciume a devastarão, não mais
semeados pela intriga banal, mas pelo capricho, a instabilidade, a
carência de continuidade e unidade de direção, características do
neurótico. O monstro vencido é substituído por novo flagelo. A peste
assola a cidade, símbolo das consequências funestas da perversão,
que arruma o país”.
Tirésias proclama que a peste, que dizima a cidade, aponta para um
grande criminoso oculto. A opinião do vidente é mais de ordem
mágica que mítica e não abrange em toda a sua profundidade a
significação latente e psicológica. A culpa de um só homem, por
mais grave que seja, não provoca a desgraça de um país, a não ser que
o culpado seja o soberano e a mazela uma consequência de seu
governo. Cego por sua vaidade, o rei não pode e não quer
compreender uma verdade tão clara e terrível. Para salvar a cidade,
ordena a busca do criminoso.
Através desse ato, a história de Laio se repete e se reflete na história
do filho. O comportamento de Édipo é apenas uma variante do de
Laio, em idêntica situação. Foi este último quem propôs uma
recompensa àquele que decifrasse o enigma. “Este é comparável ao
‘espelho da verdade’, em que todo homem deveria se reconhecer. A
Esfinge, aparentada com a Quimera, lembra igualmente Medusa. A
solução de seu enigma chama-se ‘homem’, todos os homens,
inclusive Laio e Édipo. O enigma de cada uma das formas da
perversão, retratada pelos monstros míticos, visa em primeiro lugar
a um homem preciso, aquele que desejaria vencer o monstro e que,
seduzido e cego pela vaidade, será devorado. Para ser
psicologicamente concreta e vitalmente eficaz, a solução adequada
não é o homem em geral, nem tampouco todos os homens. O enigma
aponta pessoalmente para cada ser humano. A solução é ‘eu mesmo’.
Cada homem em diferentes níveis é presa do espírito perverso, a
vaidade cega. ‘Resolver o enigma’ converte-se destarte em sinônimo
de ‘conhece-te a ti mesmo’. É a significação do sorriso da Esfinge,
simultaneamente misterioso e irônico.
Como outrora diante do enigma da Esfinge, Édipo, agora, face ao
novo flagelo, a peste, desconhece a alusão pessoal que o designa em
primeiro lugar. A exemplo de Laio, o novo rei deixa a outrem a tarefa
de esclarecer o novo enigma. Ao contrário, porém, do banalizado
convencional, o neurótico, mesmo quando se banaliza, prossegue, do
mais recôndito de sua psiqué, a sofrer com sua culpa. Recalcada, esta
conserva uma certa tendência a escalar novamente o consciente e
exigir sua própria dissolução. A história mítica do neurótico seria
incompleta se ela negligenciasse o mais significativo dos conflitos, a
luta entre a tendência ao recalque e a tendência à sublimação. A
psiqué neurótica mantém-se, em realidade, ininterruptamente
atormentada por causa da indecisão desse conflito. Segundo sua
própria natureza, o mito, imagem condensada da realidade,
concentra essa luta no episódio final do desfecho.
As pesquisas realizadas não tardam em se orientar e a apontar o
verdadeiro culpado. Começa então o processo de Édipo, processo
psicológico de transformação da culpa secreta em verdade
exteriorizada, que coloca o herói diante de sua plena
responsabilidade”.
Surgem indícios de todas as partes, acusando a Édipo. O tormento
da culpabilidade começa a manifestar-se gradualmente, revelandose ao herói sob sua forma monstruosa. A visão de seu próprio erro se
lhe impõe tão subitamente, que o rei de Tebas se torna incapaz de
suportar a terrível verdade. Se, na realidade, ele era um filho adotivo,
segundo afirma o pastor que o socorreu, se o homem assassinado no
trívio era seu pai, a rainha desposada seria sua mãe e o oráculo se
teria realizado por acaso e ele seria, ao menos, uma vítima inocente.
Mas o que o rei não pode admitir, mercê do estado enfermo e
aterrorizado de sua alma e da vaidade cega, é a culpabilidade
essencial, cujo símbolo é sua sorte exterior. Conforme este sentido
profundo, o destino do filho de Jocasta não é um mero acaso, mas
consequência de uma falta. A verdadeira causa do horror e do
desespero que dele se apossaram se deve ao fato de que tudo aquilo
que lhe foi revelado, abstração feita da cortina simbólica, resultou de
sua própria vontade: Édipo matou o espírito, a fim de usufruir os
prazeres terrenos. Traiu o que julgava ser a mola-mestra da vida: as
aspirações de sua juventude.
O adivinho Tirésias, representante da verdade, porque enviado do
espírito, acusa publicamente o rei e obriga-o a reconhecer os
próprios delitos, para que a cidade se purifique e se livre da peste.
Édipo o expulsa. A mãe-esposa Jocasta, em face da tremenda
revelação, se enforca. Do ponto de vista simbólico, a morte da TerraMãe, configuração dos desejos exaltados, significa que os prazeres
terrenos abandonam a Édipo, que, inibido pelo horror, não mais
consegue usufruí-los. O rei, no entanto, continua a questionar e
recusa não mais a realidade de sua falta, mas o reconhecimento da
mesma. Teima em fechar os olhos do espírito.
“O espelho da verdade é colocado diante dele, mas, em vez de
reconhecer o erro, o herói rasga os próprios olhos. Este gesto,
expressão do desespero levado ao paroxismo, é ao mesmo tempo a
recusa definitiva de ver. Estanca-se a visão interior. A falta é
recalcada em lugar de ser sublimada. O remorso e o pânico não mais
puderam transformar-se em arrependimento salutar. A cegueira
vaidosa é completa, a luz interior se extingue, morre o espírito. Édipo
mata o pai mítico, não apenas sob forma negativa e de maneira
simbólica, como fez com Laio; mas, liquidando em si mesmo a visão
da verdade, o herói aniquila o espírito positivo e o assassina
realmente. O filho de Jocasta mata o ‘pai de todo homem’ assim
chamado pelo mito, porque é o espírito que dá sentido e direção à
vida humana.
É somente neste momento que, consoante seu significado
profundo, o oráculo se realizou plenamente”.
A profunda verdade psicológica do oráculo, porém, não se esgotou
no cumprimento de uma das duas soluções possíveis da situação
conflitante do neurótico. A história mítica deste último
permaneceria incompleta se ele espelhasse unicamente o quadro dos
estados sucessivos da perversão, negligenciando a possibilidade de
saná-la.
Édipo realizou exteriormente o destino predito, mas trata-se de um
neurótico que continua a viver e a sofrer. É precisamente a
amplitude de seu desespero em face dos erros cometidos que se
mostra propícia a estimular o retorno para um impulso sublime, o
único capaz de fornecer o remédio. A condição da cura é a
transformação do remorso estéril em arrependimento salutar, da
cegueira recalcada em lucidez interior. Como já se viu muitas vezes,
o mito costuma concentrar duas significações em uma só imagem. A
interpretação deve, por isso mesmo, para evitar arbitrariedade, seguir
métodos extremamente precisos. Não só a introdução de duplo
sentido deve partir da imagem mítica, mas, além disso, as duas
significações devem ser diametralmente opostas, completando-se
pela analogia de contraste. Mais que tudo, a introdução do
significado complementar há de seguir a exigência indiscutível de
um índice fornecido pelo mito.
Todas essas condições se acham perfeitamente realizadas no
simbolismo dos olhos vazados, havendo assim necessidade de
inversão da situação primeira. Configurando o remorso estéril e a
cegueira recalcada, o símbolo do vazamento dos olhos exprime com
precisão igualmente o significado oposto de um despertar do
arrependimento salutar e da lucidez introvertida. Nessa acepção,
Édipo fura os olhos por arrependimento sublime de se ter
abandonado, de haver assassinado o espírito e de haver desposado a
terra, cujos olhos contemplam tão somente a sedução. Cega-se para
afastar-se do mundo e de suas seduções, para mergulhar em si
mesmo, a fim de se reconciliar com o espírito traído.
Esta segunda interpretação é indiscutivelmente exigida pela
variante do mito que relata ter sido Édipo, cego, conduzido por
Antígona para Colono, onde se encontrava o santuário das
Eumênides.
A configuração do refúgio no bosque dessas divindades é, em
sentido profundo, a repetição do motivo simbólico dos olhos
vazados. Tal reiteração enfatiza a importância da dupla significação.
Essas deusas “benevolentes” traduzem, na realidade, um aspecto
simbólico de dupla interpretação, cujo significado oculto torna-se
idêntico àquele dos olhos furados. O aspecto complementar da
imagem “Eumênides” é representado pelas Erínias. Aquelas são
Erínias, sob o aspecto benfazejo. As Erínias espelham a culpa
recalcada e destrutiva, o tormento do remorso; as Eumênides
traduzem esta mesma culpa, mas conscientizada e assumida,
convertida em sublimidade produtiva e arrependimento liberador.
O simbolismo que substitui aquele dos olhos furados assinala pois
que o doente da alma, o neurótico, cego pelo recalque, atormentado
pela culpa, perseguido pelas Erínias, não pode curar-se a não ser que
se torne cego para as seduções ese conscientize da culpa. Em termos
simbólicos, o culpado liberta-se da culpa, das Erínias, refugiando-se
junto às Eumênides, cujo santuário em Atenas possuía omesmo
poder salutar que o templo de Apolo com sua divisa: Conhece-te a ti
mesmo. A imagem mítica, colocando Édipo em Colono, mostra que o
herói, embora simbolicamente cego para o mundo, tornou-se
realmente lúcido em função de si próprio.
Vencedor perverso da perversidade, acabou por triunfar de
maneira sublime do próprio perigo, a perversão. Refugiado em
Colono, mata o pai mítico em si mesmo, o espírito perverso, e
desposa a mãe mítica sob sua forma inocente. Sobrepuja a
determinação oriunda das circunstâncias de sua infância e supera o
destino anunciado pelo oráculo, realizando simultaneamente a
predição, compreendida como símbolo mítico, em toda a amplitude
de sua significação oculta.
Símbolo do neurótico e de seus conflitos, bem como do homem
capaz de desvario e de regeneração, Édipo, arrastado por sua
fraqueza na queda, mas arrancando deste mesmo desmoronamento a
força da elevação, acabou por tornar-se uma imagem de herói
vencedor. Mergulhando no seio da Grande Mãe, Édipo afinal se
encontrou. De flagelo de Tebas transformou-se em Ἔρως (Héros),
em “protetor”, em defensor de Atenas.
“Os deuses gregos não eram bons nem justos, eram belos”, diz com
muita profundidade o Dr. Paulo Blank. Quem sabe, porém, se esses
mesmos deuses, quando o mortal se encontra, deixam de ser apenas
belos, para se tornarem também bons e justos?
2. Lico, segundo se viu linhas acima, era irmão de Nicteu e, portanto, tio da lindíssima
Antíope, a quem Zeus, sob forma de sátiro, fez mãe dos gêmeos Anfião e Zeto. Grávida e
porque temia a cólera de Nicteu, fugiu de casa e refugiou-se em Sicione, na corte do rei
Epopeu. Desesperado com a fuga da filha, Nicteu, após encarregar a seu irmão de vingá-lo,
matou-se. Lico marchou contra Sicione, matou Epopeu e levou Antíope de volta a Tebas. Foi
na viagem de Sicione a Tebas, em Elêuteras, que as crianças nasceram. O regente de Tebas
mandou expô-las numa elevada montanha, mas os pastores locais as recolheram e criaram.
Em Tebas, Antíope foi acorrentada e era tratada como escrava. Certa noite, no entanto, as
correntes caíram-lhe misteriosamente das mãos e a princesa foi em busca dos filhos e os
encontrou numa humilde choupana. Não a tendo reconhecido, entregaram-na a Dirce,
esposa de Lico, a qual lhe fora ao encalço. Um dos pastores, que os havia recolhido, reveloulhes a identidade de Antíope; e os gêmeos, após libertarem a mãe, assassinaram a Lico e
Dirce, apossando-se do trono de Tebas. Por causa da morte de Dirce, Dioniso enlouqueceu
Antíope, que, ferida da manía báquica, percorreu a Grécia inteira, até que foi curada e
desposada por Foco, herói epônimo da Fócida.
3. Na evocação dos mortos, Odisseia, XI, 271-280, Ulisses, entre muitos outros eídola, viu
também o da mãe de Édipo. Vale a pena traduzir os dez hexâmetros de Homero:
Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta.
Ela, sem o saber, cometeu um grande crime,
casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os deuses rapidamente fizeram que a notícia circulasse entre os homens.
Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas.
Ela, porém, desceu à mansão de Hades, de sólidas portas,
depois de atar, dominada pela dor, um laço a uma alta viga,
deixando ao filho, como herança, inúmeros sofrimentos
com que as Erínias punem os delitos cometidos contra uma mãe.
4. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural Um. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1976, p. 250.
5. DELCOURT, M. Oedipe ou la Légende du conquérant. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 19ss.
6. λάβδα. βλαισός, παραλυτικός ὁ τοὺς πόδας ἐπὶ τὰ ἔξω διεστραμμένος καὶ τῷ Λ στοιχείω ἐοικώς διὰ
τοῦτο καὶ Λάμβδα ἐκαλεῖτο ἡ γυνὴ μὲν Ήετίωνος. μήτηρ δἐ Κυψέλου τοῦ Κορίνθου τυράννου.
7. DELCOURT, M. Op. cit., p. 20, citando M. Fohalle e confirmando-lhe a opinião com a
autoridade de Antoine Meillet (Introduction à l’étymologie comparée des langues indoeuropéennes, p. 99), lembra que a vogal a, relativamente rara em indo-europeu, figura
principalmente em nomes de caráter popular, e, em particular, em nomes de enfermidades.
8. O escólio (comentário para esclarecer um texto clássico) aos versos 26 e 28 das Fenícias
diz: “Relata-se que lançaram Édipo no mar, após ter sido colocado num cofre; ele chegou a
Sicione e lá foi criado” (v. 26). “Contam alguns (mitógrafos) que, lançado no mar dentro de
um cofre, o menino foi dar nas praias de Corinto” (v. 28). A Fábula 66 de Higino reza assim:
“Periboca, esposa do rei Pólibo, quando estava lavando roupa junto ao mar, recolheu, com o
consentimento do marido, a Édipo que havia sido exposto”.
9. Ibid., p. 24.
10. Ibid., p. 24.
11. Esse Menetes ou Menécio talvez fosse uma personagem do Édipo de Eurípides e figurasse
em alguma mitopeia influenciada por Édipo Rei, porque raramente os trágicos dão nomes a
personagens episódicas, cuja presença serve apenas à economia da peça, exceto, como frisa
Delcourt, se esses nomes equivalem a um adjetivo, como Copreu ou Lico.
12. Ibid., p. 26.
13. Ibid., p. 66s.
14. POTTER, M.A. Sohrab and Rustem. The epic theme of a combat between father and son, a
study of its genesis and use in literature and popular tradition.London: Oxford University
Press, 1902, passim.
15. Die Ahnfrau, “A Avó”, peça em cinco atos do dramaturgo austríaco Franz Grillparzer
(1791-1872). Trata-se do que se convencionou chamar drama fatalista (Schicksalstragödie).
Nessas tragédias fatalistas, o deus ex machina, uma espécie de fatalidade cega, como a Moîra
grega, pesa sobre as personagens como verdadeira maldição. Na peça em apreço estão
presentes todos os ingredientes do gênero: “a falta, o parricídio, o incesto possível, o bandido
cavalheiresco e, mais que tudo, o espectro de uma avó que aparece cada vez que uma
desgraça atinge a família”. Trata-se, com efeito, de terrível flagelo que atingiu a família dos
Condes de Borotin. Uma antiquíssima avó do último Conde de Borotin foi surpreendida pelo
marido e apunhalada nos braços do amante e, por isso mesmo, todos os seus descendentes,
até o último, pagarão pelo adultério cometido. O fantasma da avó não descansará, enquanto
toda a família não for exterminada.
16. O texto de Sigmund Freud está em La Science des rêves. Paris: Presses Universitaires de
France, p. 198-199, citado por Erich Fromm. In: Le langage oublié – Introduction à la
compréhension des rêves, des contes et des mythes. Paris: Payot, 1953, p. 159-160 [Tradução de
Simone Fabre].
17. FROMM, Erich. Op. cit., p. 162 (v. nota 16).
18. MULLAHY, Patrick. Oedipus – Myth and Complex. New York: Hermitage, 1952, p. 131132.
19. Ibid., p. 133.
20. JUNG, C.G.ThePsychologyoftheUnconscious.New York: Dodd, Mead & Company, 1927, p.
145.
21. Ibid., p. 260-267.
22. Só se pode falar de trilogia aqui no caso, latissimo sensu, ao menos cronologicamente,
uma vez que Antígona talvez tenha sido encenada entre 442-441 a.C.; Édipo Rei talvez após
430 a.C. e Édipo em Colono o foi em 401 a.C., após a morte do poeta. Ordenando as três
tragédias “tematicamente” em Édipo Rei, Antígona, Édipo em Colono, poder-se-ia, assim
mesmo, lato sensu, chamá-las uma trilogia. Veja-se a análise que fizemos desta “trilogia” em
Teatro grego, Tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 45ss.
23. FROMM, Erich. Op. cit., p. 162-163 (v. nota 188).
24. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: Tragédia e comédia. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1986, p. 45ss.
25. DELCOURT, Marie. Op. cit., XIX.
26. Ibid., p. 68.
27. Existem ainda outras formas em grego, atestadas por Hesíquio (séc. VI d.C.) em seu
Ονοματολόγος (Onomatológos), Catálogo, verbete Βίκας (Bíkas), conforme a Suda, verbete, e
por uma passagem de Platão, Crátilo, 414a, que diz o seguinte: “Como também a Esfinge: em
lugar de Fix, chamam-na Esfinge”.
28. Ibid., p. 128.
29. Ibid., p. 140.
30. Vamos apresentar duas versões do célebre enigma: a primeira, dos inícios do séc. IV a.C.,
é a mais antiga de que se tem notícia até o momento; a segunda, tardia, é uma redução
didática da anterior. No século IV a.C., Teodectes, poeta que se tornou famoso na época,
substituiu em sua tragédia Édipo o enigma das fases da vida pelo do Dia e da Noite, segundo
o testemunho de Ateneu, Dipnosofistas, 10,451f: “São duas irmãs: a primeira gera a segunda e
esta, que a gerou, é gerada pela primeira”. A resposta é o Dia e a Noite, devendo-se, porém,
recordar que Ήμέρα (Heméra), Dia, e Νυξ (Nyks), Noite, são femininos em grego e que, na
Teogonia de Hesíodo, segundo se mostrou no cap. IX, p. 191, do Vol. I, o Diaé gerado pela
Noite e esta, em seguida, é parida pelo Dia.
31. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos da PUC, n. 16. Rio de
Janeiro: Divisão de Intercâmbio e Edições, 1974, p. 32.
32. Ibid., p. 32ss.
33. τύραννoς (T×rannos), fonte de nosso vocábulo tirano, não possuía em grego a conotação
que adquiriu posteriormente em outras línguas. O tirano era, as mais das vezes, um líder de
índole democrática que, proveniente da aristocracia, se unia à classe média e ao povo para
protegê-los contra os nobres. A julgar por Atenas (Pisístrato), Corinto (Cípselo), Siracusa
(Hierão) e Samos (Polícrates), a tirania incentivou a agricultura; despendeu grandes somas
em construções públicas, dando oportunidade de trabalho a centenas de operários; apoiou
as competições, incentivou a formação musical e atlética do povo grego, acolheu em suas
luxuosas cortes poetas e artistas. Psicologicamente, no entanto, como se verá, no caso de
Édipo, a insegurança do poder acabará por destruir o saber do tirano.
34. Ibid., p. 73.
35. Ibid., p. 73.
36. Ibid., p. 33.
37. Ibid., p. 74.
38. Ibid., p. 40s.
39. Etéocles e Polinice haviam combinado que cada um ocuparia alternadamente por um
ano o trono de Tebas. Findo o primeiro ano, Etéocles se recusou a entregar o poder a seu
irmão Polinice, originando-se daí a chamada expedição dos Sete contra Tebas. Sob o
comando de Adrasto, sogro de Polinice, sete heróis empreenderam uma expedição contra
Tebas, na qual, como profetizara Édipo, morreram lutando um contra o outro Etéocles e
Polinice.
40. Ibid., p. 245.
41. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 59s.
42. Acerca especificamente de ÉDIPO, as referências e fontes mais antigas são basicamente
as citadas no corpo do capítulo. Vamos reuni-las para efeito apenas de consulta. Homero, Il.,
XXIII, 676ss; Od., XI, 271ss; Píndaro, Olímpicas, 2,42ss; Ésquilo, Os Sete contra Tebas, 745ss;
Heródoto, Histórias, 5,59; Sófocles, Édipo Rei, passim; Édipo em Colono, passim; Eurípides,
Fenícias, 7ss; 940ss; Apolodoro, Biblioteca, 3,5,7ss; Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica,
4,64ss; Estrabão, Geografia, 8,380; Pausânias, Descrição da Grécia, 1,28,7; 30,4; 2,20,5; 36,8;
4,3,4; 8,8; 5,19,6; 9,2,4; 5,10ss; 9,5; 18,3ss; 25,2; 26,2; 4; 10,5,3s; 17,4; Higino, Fábulas, 66; 67;
Estácio, Tebaida, 1,61; Ateneu, Dipnosofistas, 10,456b.
43. BRANDÃO, Jacyntho Lins et al. Op. cit., passim.
44. Édipo Revisitado. In: Cadernos de Psicanálise. Ano VII, n. 5. Rio de Janeiro: Semente, 1985,
passim.
45. DIEL, Paul. Op. cit., p. 154ss.
CAPÍTULO IX
Ulisses: o Mito do Retorno
1
A Guerra de Troia não se fechou com os funerais de Heitor,
domador de cavalos (Il., XXIV, 804). Após a morte do grande herói de
Ílion por Aquiles, a luta ainda se arrastou miticamente por mais um
ano.
Ainda havia muito sangue para correr e muitas lágrimas para se
derramarem.
Para se conquistar em definitivo a rica fortaleza da Ásia Menor,
três dentre outras providências eram urgentes: obter os ossos de
Pélops, talismã indispensável à vitória; arrancar das entranhas da
cidadela o Paládio e convencer Filoctetes a reintegrar-se aos aqueus,
porque, sem as flechas de Héracles, que estavam em poder daquele,
Troia jamais poderia ser tomada, consoante as predições de Heleno1.
Segundo se falou no capítulo I, 8, como os despojos dos heróis,
contrariamente ao costume geral, são sepultados no interior da pólis,
para santificá-la e defendê-la, apossar-se de seus ossos é debilitar e
desguarnecer a cidade. Quanto ao Paládion, como se acentuou no
Vol. II, p. 25, era uma estatueta de Atená, que, durante dez anos,
apesar da inimizade da deusa pela cidade de Troia, a defendeu das
investidas dos gregos. Foi, pois, necessário que Ulisses e Diomedes a
subtraíssem, com a cumplicidade do silêncio de Helena, que os vira
penetrar na fortaleza. Filoctetes, o grande herói da Tessália e
herdeiro das flechas de Héracles, fora abandonado na ilha de
Lemnos, a conselho de Ulisses, por ter sido vítima de uma ferida
aparentemente incurável, provocada pela mordidela de uma
serpente na ilha de Tênedos, conforme se mostrou no Vol. I, p. 87. O
herói estava profundamente magoado com os helenos e foi tarefa
muito difícil levá-lo de volta aos combates contra a cidade de Heitor.
A missão, no relato da tragédia Filoctetes de Sófocles, foi confiada a
Ulisses e Neoptólemo, filho de Aquiles, que, com o auxílio do deus ex
machina Héracles, conseguiram convencê-lo a prestar seus serviços
novamente ao exército aqueu. Em outras versões, Ulisses e Diomedes
apoderaram-se de suas armas pela astúcia e, desse modo, inerme, o
herói foi obrigado a acompanhá-los. Conta-se ainda que se apelou
para seu patriotismo e dever, prometendo-se-lhe, ao mesmo tempo
que, uma vez em Troia, seria curado da repugnante ferida pelos
filhos de Asclépio, Macáon e Podalírio, o que, de resto, aconteceu.
Nessas alturas, Aquiles já fora morto por uma flecha de Páris, aliás
guiada por Apolo, e o raptor de Helena, logo depois, ferido
mortalmente, desceu à mansão de Hades para explicar lá embaixo
por que fora tão pouco herói na Guerra de Troia...
Satisfeitas todas as condições, os aqueus se prepararam para
conquistar e destruir a grande Ílion. Com o fito de evitar
derramamento de sangue heleno, Ulisses, inspirado por Atená,
imaginou o genial estratagema do cavalo de madeira, introduzido na
cidade, “pejado de guerreiros, que saquearam Troia”.
Trata-se do gigantesco Cavalo de Troia, cuja descrição sumária nos
dá Homero (Od., VIII, 493-520), mais tarde comoventemente
ampliada por Públio Vergílio Marão em sua Eneida, 2,13-2672.
Era o décimo ano da sangrenta Guerra de Troia. Destruída e
incendiada a opulenta cidadela de Ílion, os heróis gregos se
aprestaram para o longo e difícil regresso a seus respectivos reinos.
Entre eles estava o solerte Ulisses.
1. Heleno, filho de Príamo e Hécuba, era irmão gêmeo de Cassandra e possuía o dom
divinatório, que lhe fora outorgado por Apolo. Quando da morte de Páris, Deífobo, seu
irmão mais jovem, se casou com Helena. Heleno, que a amava, retirou-se para o monte Ida. O
adivinho do exército grego, Calcas, tendo predito que só Heleno poderia anunciar de que
modo Troia poderia ser tomada, Ulisses conseguiu, com sua solércia costumeira, apoderarse do mántis de Ílion e obrigá-lo a indicar as condições para a derrota da cidade. Uma delas,
prognosticara Heleno, era a presença de Filoctetes com as flechas de Héracles.
2. A respeito do Cavalo de Troia veja-se o Vol. I, p. 110s.
Quadro 10
2
Claro está que o vocábulo grego Όδυσσεύς (Odysseús) não
poderia ser a fonte primeira de nosso Ulisses. É que, a par de
Odysseús, existe em grego a forma dialetal Οὐλίξης (Ulíkses), que,
através do latim Ulixes, nos deu Ulisses3.Como todo herói, o rei de
Ítaca teve um nascimento meio complicado. Desde a Odisseia a
genealogia de Odisseu é mais ou menos constante: é filho de Laerte e
de Anticleia, mas as variantes alteraram-lhe sobremodo os
antepassados mais distantes. É assim que, do lado paterno, seu avô,
desde a Odisseia, chamava-se Arcísio, que era filho de Zeus e de
Euriodia. Do lado materno o herói tinha por avô a Autólico, donde
seu bisavô era nada mais nada menos que Hermes, segundo se pode
observar no quadro genealógico no início deste capítulo, embora o
mesmo se apresente com algumas variantes, o que é comum no mito.
Se bem que desconhecida dos poemas homéricos, existe uma
tradição segundo a qual Anticleia já estava grávida de Sísifo4,
quando se casou com Laerte. Ulisses nasceu na ilha de Ítaca, sobre o
monte Nérito, um dia em que sua mãe fora ali surpreendida por um
grande temporal. Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho
sobre o nome Όδυσσεύς (Odysseús), cuja interpretação estaria
contida na frase grega κατά τὴν ὁδὸν ὕσεν ὁ Ζεύς (Katà tèn
hodòn h×sen ho Dzeús), ou seja, “Zeus chovia sobre o caminho”, o que
impediu Anticleia de descer o monte Nérito. A Odisseia, XIX, 406409, no entanto, cria outra etimologia para o pai de Telêmaco: o
próprio Autólico, que fora a Ítaca visitar a filha e o genro e lá
encontrara o neto recém-nascido, “por ter-se irritado
(ὀδυσσάμενος) com muitos homens e mulheres que encontrara
pela terra fecunda”, aconselhou aos pais que dessem ao menino o
nome de Όδυσσεύς (Odysseús), uma vez que o epíteto lembra de
fato o verbo ὀδύσσομαι (od×ssomai), “eu me irrito, eu me zango”. Na
realidade, ainda não se conhece com precisão a etimologia de
Odysseús, apesar dos esforços de Albert Carnoy5, que, isolando a
finaleus, frequente nos nomes de heróis, postula o radical λυκϳο(lykjo-), derivado de λυκ-, que significa luminoso, o que justificaria
semanticamente o sacrifício das vacas do deus Hélio (Sol), bem como
o cegamento do ciclope Polifemo com um tronco de oliveira
incandescido, como fez o Lug céltico com Balor. Desse modo, conclui
o filólogo belga, seria possível identificar λυκϳο- (lykjo-) com o deus
germânico Loki, cuja vinculação com o fogo é evidente: a base
etimológica seria então o indo-europeu lug-io a par de luk-io6.
Filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de
Autólico, o maior e mais sabido dos ladrões e ainda bisneto de
Hermes, o deus também dos ardis e trapaças, o trickster por
excelência, Ulisses só poderia ser mesmo, ao lado da inteligência
exuberante, da coragem e da determinação, um herói πολύμητις
(pol×metis), cheio de malícia e de habilidade e um πολύτροπος
(pol×tropos), um solerte e manhoso em grau superlativo.
Educado, como tantos outros nobres, pelo centauro Quirão, ainda
muito jovem o herói de Ítaca deu início às suas aventuras. Durante
uma curta permanência na corte de seu avô Autólico participou de
uma caçada no monte Parnaso e foi ferido no joelho por um javali. A
cicatriz, pouco acima do joelho, produzida pela mordidela da fera, se
tornou indelével e servirá como sinal de reconhecimento, quando o
egrégio neto de Autólico regressar a Ítaca (Od., XIX, 392ss). Pausânias
relata com precisão que a luta entre o herói e o javali, com o
consequente ferimento daquele, se passara exatamente no local em
que se construiu o Ginásio de Delfos, igualmente no monte Parnaso.
A mando de Laerte, Ulisses dirigiu-se a Messena, para reclamar
uma parte do rebanho de seu pai, que lhe havia sido furtada. Na corte
do rei Orsíloco, tendo-se encontrado com Ífito, filho de Êurito e
herdeiro do famoso arco paterno, os dois heróis resolveram, como
penhor de amizade, segundo já se relatou no capítulo III, 5, trocar de
armas. O futuro rei de Ítaca presenteou Ífito com sua espada e lança e
este deu a Ulisses o arco divino com que o esposo de Penélope matará
mais tarde os soberbos Pretendentes.
Completada a δοκιμασία (dokimasía), as primeiras provas
iniciáticas, traduzidas na morte do javali, símbolo da aquisição do
poder espiritual e da obtenção do arco, imagem do poder real e da
iniciação dos cavaleiros, Ulisses recebeu de seu pai Laerte – que se
recolheu, certamente por inaptidão ao poder – o reino de Ítaca, com
todas as suas riquezas, consistentes sobretudo em rebanhos.
O rei, obrigatoriamente, no entanto, se completa no casamento.
Cortejou, por isso mesmo, em primeiro lugar, a Helena, filha de
Tíndaro; mas, percebendo que o número de pretendentes era
excessivo, voltou-se para a prima da futura esposa de Menelau,
Penélope, filha de Icário. Esta união lhe traria tantas vantagens
(Ulisses sempre foi um homem prático) quantas lhe proporcionaria a
união com Helena. A mão de Penélope foi conseguida ou por
gratidão de Tíndaro, como se verá em seguida, ou, como é mais
provável, por uma vitória obtida pelo herói numa corrida de carros
instituída por seu futuro sogro entre os pretendentes da filha. De
qualquer forma, o pai de Helena sempre foi muito grato a Ulisses por
um conselho que este lhe dera. Como o número de pretendentes à
mão de Helena fosse muito grande, o rei de Ítaca sugeriu a Tíndaro
que os ligasse por dois juramentos, como se viu no Vol. I, p. 90s:
respeitar a decisão de Helena, quanto à escolha do noivo, ajudando-o
a conservá-la; e se o eleito fosse, de alguma forma, atacado ou
gravemente ofendido, os demais deveriam socorrê-lo.
Pressionada pelo pai a permanecer em Esparta com o marido,
Penélope, dando provas de seu amor conjugal, preferiu, como era
desejo de Ulisses, seguir com ele para Ítaca. Diga-se, aliás, de
passagem, que, apesar de Esparta ter sido considerada sobretudo à
época clássica como a cidade das mulheres virtuosas e corretas e de
Penélope, através da Odisseia, ser apontada como símbolo da
fidelidade conjugal, existem outras versões, como veremos, que a
acusam formalmente de haver traído o marido tanto antes quanto
após o retorno do mesmo.
Seja como for, do casamento com o rei de Ítaca, Penélope foi mãe de
Telêmaco. Este ainda estava muito novinho, quando chegou ao
mundo grego a triste notícia de que Páris raptara Helena e de que
Menelau, valendo-se do juramento dos antigos pretendentes à mão
de sua esposa, exigia de todos o cumprimento da solene promessa,
para que pudesse vingar-se do príncipe troiano. Embora autor
intelectual do famoso juramento, o rei de Ítaca, não por falta de
coragem, mas por amor à esposa e ao filho, procurou de todas as
maneiras fugir ao compromisso assumido. Quando lhe faltaram
argumentos, fingiu-se louco. Em companhia de seu primo, o astuto e
inventivo Palamedes, Menelau dirigiu-se a Ítaca. Lá encontra-ram
Ulisses, que havia atrelado um burro e um boi a uma charrua e abria
sulcos nos quais semeava sal. Outros dizem que tentava arar as areias
do mar.
Palamedes, todavia, não se deixou enganar com o embuste e
colocou o pequenino Telêmaco diante das rodas do arado. Ulisses
deteve os animais a tempo de salvar o menino. Desmascarado, o
herói dedicou-se inteiro à causa dos atridas, mas nunca perdoou a
Palamedes e no decurso da Guerra de Troia vingou-se cruel e
covardemente do mais inteligente dos heróis da Hélade7.
Acompanhado de Miisco, que Laerte lhe dera como conselheiro, e
com a missão de velar sobre o filho em Troia, Ulisses se engajou na
armada aqueia. De saída, acompanhou Menelau a Delfos para
consultar o oráculo e, logo depois, em companhia do mesmo
Menelau e de Palamedes, participou da primeira embaixada a Troia
com o fito de resolver pacificamente o incidente do rapto de Helena.
Em seguida foi em busca de Aquiles, que sua mãe Tétis havia
escondido, mas cuja presença e participação, segundo o adivinho
Calcas, eram indispensáveis para a tomada de Ílion. Conforme se
mostrou no Vol. I, p. 114s, e no capítulo I, 4, do presente Volume,
Tétis, sabedora do triste destino que aguardava seu filho, levou-o
secretamente para a corte de Licomedes, na ilha de Ciros, onde o
herói passou a viver como linda donzela “ruiva” no meio das filhas
do rei, com o nome falso de Pirra, já que o herói tinha os cabelos
louro-avermelhados. Disfarçado em mercador, o astuto Ulisses
conseguiu penetrar no gineceu do palácio de Licomedes. As moças
logo se interessaram pelos tecidos e adornos, mas Pirra, a “ruiva”,
tendo voltado sua atenção exclusivamente para as armas, Ulisses
pôde com facilidade identificá-lo e conduzi-lo para a armada aqueia.
Conta uma outra versão que o filho de Tétis se deu a conhecer
porque se emocionou, ouvindo os sons bélicos de uma trombeta.
Ainda como embaixador, o rei de Ítaca foi enviado juntamente
com Taltíbio, arauto de Agamêmnon, à corte de Chipre, onde reinava
Cíniras, que, após o incesto involuntário com sua filha Mirra,
conforme se viu no Vol. I, p. 229s, fora exilado de Biblos e se tornara
o primeiro rei da grande ilha grega do mar Egeu, onde introduziu,
aliás, o culto de Afrodite. Cíniras prometeu enviar cinquenta naus
equipadas contra os Troianos, mas, usando de um estratagema,
mandou apenas uma.
Reunidos finalmente os reis helenos, a armada velejou rumo a
Tróada, mas, não conhecendo bem a rota, a grande frota, sob o
comando de Agamêmnon, abordou em Mísia, na Ásia Menor e,
dispersados por uma grande tempestade, os chefes aqueus
regressaram a seus respectivos reinos. Somente oito anos mais tarde
congregaram-se novamente em Áulis, porto da Beócia. O mar, no
entanto, permanecia inacessível aos audazes navegantes, por causa
de prolongada calmaria. Consultado, o adivinho Calcas explicou que
o fenômeno se devia, conforme se falou no Vol. I, p. 229, à cólera de
Ártemis, porque Agamêmnon, matando uma corça, afirmara que
nem a deusa o faria melhor do que ele. A ultrapassagem do métron
por parte do rei de Micenas era grave e, para suspender a calmaria,
Ártemis exigia, na palavra do adivinho, o sacrifício da filha
primogênita do rei, Ifigênia.
Foi nesse triste episódio, maravilhosamente repensado por
Eurípides em sua tragédia Ifigênia em Áulis, que Ulisses continuou a
mostrar sua inigualável astúcia e capacidade de liderança.
Agamêmnon, a conselho de seu irmão Menelau e de Ulisses,
enviara à esposa Clitemnestra, em Micenas, uma mensagem
mentirosa, solicitando-lhe que conduzisse Ifigênia a Áulis, a fim de
casá-la com o herói Aquiles. Mas, logo depois, horrorizado com a
ideia de sacrificar a própria filha, tentou mandar uma segunda
missiva, cancelando a primeira. Menelau, todavia, interceptou-a e
Clitemnestra, acompanhada por Ifigênia e o pequenino Orestes,
chega ao acampamento aqueu.
O solerte rei de Ítaca, percebendo as vacilações de Agamêmnon e
os escrúpulos de Menelau no tocante ao cumprimento do oráculo,
excitou os chefes e a soldadesca aqueia contra os atridas, que se
viram compelidos a sacrificar a jovem inocente. Não fora a pronta
intervenção de Ártemis, que substituiu Ifigênia por uma corça, fato
comum no mito do sacrifício do primogênito, Agamêmnon, Menelau e
Ulisses teriam agravado ainda mais sua hýbris, já bastante
intumescida. Ainda bem que, no mundo antigo, se levavam em conta
os atos e não as intenções!
Uma derradeira intervenção da argúcia e bom senso do herói,
antes da carnificina de Troia, pode ser detectada na correta
interpretação do oráculo relativo à cura de Télefo8por Aquiles. O
esposo de Penélope demonstrou com precisão absoluta que o
restabelecimento da saúde do rei de Mísia teria que ser operado “pela
lança e não pelo filho de Tétis”. Este colocou um pouco da ferrugem
de sua arma predileta sobre o ferimento de Télefo, que
imediatamente o teve cicatrizado.
3
Consoante o Catálogo das Naus (Il., II, 637) Ulisses levou a Troia
doze navios lotados com heróis, soldados e marujos provenientes das
ilhas de Cefalênia, os magnânimos cefalênios; de Ítaca, de Nérito, de
Egílipe, de Zacinto e de Same...9
Considerado por todos como um dos grandes heróis, sempre
participou do conselho dos chefes que sitiariam Ílion. Na rota para
Troia aceitou o desafio do rei de Lesbos, Filomelides, e o matou na
luta. Esse episódio, recordado pela Odisseia, IV, 343s, foi
reinterpretado posteriormente como um verdadeiro assassinato
cometido por Ulisses e seu parceiro inseparável em tais casos, o
violento Diomedes. Em Lemnos, durante um banquete dos chefes
aqueus, ainda segundo a Odisseia, Ulisses e Aquiles discutiram
asperamente: o primeiro elogiava a prudência e o segundo exaltava a
bravura. Agamêmnon, a quem Apolo havia predito que os aqueus se
apossariam de Troia, quando reinasse a discórdia entre os chefes
helenos, viu no episódio o presságio de uma rápida vitória. Os
mitógrafos posteriores deturparam o fato e atribuíram a querela a
Agamêmnon e Aquiles, primeiro sintoma da grave contenda entre
estes dois heróis, o que se constituirá no assunto da Ilíada. Foi ainda
em Lemnos ou numa ilhota vizinha, chamada Crises, que, a conselho
de Ulisses, os chefes aqueus resolveram abandonar Filoctetes,
segundo já se comentou no início deste capítulo. Um outro
acontecimento desconhecido pelos poemas homéricos é a
denominada segunda missão de paz a Troia: tendo a frota grega
chegado à ilha de Tênedos, bem em frente à fortaleza de Príamo,
Menelau e Ulisses dirigiram-se novamente a Ílion na tentativa de
resolver o grave problema do rapto de Helena de maneira pacífica e
honrosa. Dessa feita, porém, foram muito mal recebidos, porque Páris
e seus partidários não só recusaram quaisquer propostas de paz, mas
ainda, por intermédio de seu amigo Antímaco, o raptor de Helena
tentou amotinar o povo para que matasse a Menelau e certamente
também a Ulisses. Salvou-os o prudente Antenor, conselheiro de
Príamo e amigo de alguns chefes aqueus.
Com isso a guerra se tornou inevitável. Foi ainda por sugestão do
pacifista Antenor que se tentou obter a decisão acerca da
permanência em Troia de Helena e dos tesouros roubados à corte de
Menelau ou de seu retorno a Esparta por meio de um combate
singular entre Páris e Menelau. Mas, como nos mostra a Ilíada, III,
347ss, no momento em que o atrida estava para liquidar o inimigo,
Afrodite o envolveu numa nuvem e o levou de volta para o tálamo
perfumado de Helena! Pândaro, aliado dos Troianos, rompe
sacrilegamente as tréguas e lança uma seta contra Menelau.
Recomeçou a sangrenta seara de Ares, que haveria de se prolongar
por dez anos.
Pois bem, por todo esse tempo o heroísmo e a astúcia de Ulisses
brilharam intensamente. Durante todo o cerco de Ílion o rei de Ítaca
mostrou extraordinário bom senso, destemor, audácia, inteligência
prática e criatividade.
Convocavam-no para toda e qualquer missão que demandasse,
além de coragem, sagacidade, prudência e habilidade oratória.
Πολυμήχανος (Polymékhanos), “industrioso, fértil em recursos”, é
o epíteto honroso, que lhe outorga Atená logo no canto segundo: Il., II,
173.
É assim que sua solércia e atividade diplomática se desdobram
desde os primeiros cantos do poema. Foi o comandante da nau que
conduzia uma hecatombe a Apolo e levava a bela Criseida de volta a
seu pai Crises; organizou o combate singular entre Páris e Menelau;
na assembleia dos soldados reduziu Tersites10 ao silêncio e, com um
discurso inflamado, revelando um grande presságio, persuadiu os
aqueus a permanecerem em Tróada, quando o desânimo já se
apossara de quase todos eles (Il., II, 284-332).
Participou igualmente, acompanhado de Fênix e Ájax, da
embaixada junto a Aquiles, para que este, uma vez desagravado por
Agamêmnon, voltasse ao combate (Il., IX, 163-170), o que, ainda dessa
feita, não aconteceu, apesar do belo e convincente discurso do rei de
Ítaca (Il., 225-306).
Em parte através da Odisseia e sobretudo de poetas posteriores,
ficamos sa-bendo de outras missões importantes do mais astuto dos
Helenos. Como a guerra se prolongasse além do esperado, Ulisses, em
companhia de Menelau, dirigiu-se à corte de Ânio, rei e sacerdote de
Delos, como atesta Vergílio na Eneida, 3,80. Esse Ânio, filho de Apolo
e de Reá, a “Romã”, era pai de três filhas: Elaís, Espermo e Eno, cujos
nomes lembram, respectivamente, óleo, trigo e vinho. Como
houvessem recebido de seu ancestral Dioniso o poder de fazer surgir
do solo esses três produtos indispensáveis, os chefes aqueus, dado o
prolongamento da guerra, mandaram buscá-las. De bom grado as
filhas do rei de Delos acompanharam os embaixadores gregos, mas,
já cansadas de uma tarefa incessante, fugiram. Perseguidas pelos
Helenos, pediram proteção a Dioniso, que as metamorfoseou em
pombas. Por isso mesmo, na ilha de Delos, era proibido matar
pombas.
Além da já citada incumbência de trazer Filoctetes de volta às
fileiras aqueias, Ulisses, juntamente com Fênix ou Diomedes, foi
encarregado de trazer da ilha de Ciros a Neoptólemo, filho de
Aquiles e de Deidamia, segundo se comentou no Vol. I, capítulo VI, p.
109s, e cuja presença, após a morte de Aquiles, era também
imprescindível para a queda de Ílion, segundo vaticinara Heleno.
Os feitos do rei de Ítaca durante a Guerra de Troia não se reduzem,
todavia, a embaixadas. Audacioso, destemido e sobretudo caviloso, o
herói arriscou muitas vezes a vida em defesa da honra ofendida da
família grega.
Numa sortida noturna e perigosa, ele e Diomedes, no chamado
episódio da Dolonia (Il., X, 454-459), obtêm dupla vitória. Dólon,
espião troiano, é aprisionado pelos dois heróis aqueus. Após revelar
tudo quanto os dois desejavam saber, Diomedes, impiedosamente,
apesar das súplicas de Dólon, cortou-lhe a cabeça. Guiados pelas
informações do troiano, penetraram no acampamento inimigo e
surpreenderam dormindo o herói trácio Reso, que viera em auxílio
dos Troianos no décimo ano da guerra. Mataram-no e levaram-lhe os
brancos corcéis, rápidos como o vento (Il., X, 494-514). Conta-se que
a audaciosa expedição dos dois bravos aqueus contra Reso fora
inspirada pelas deusas Hera e Palas Atená, pois um oráculo
predissera que, se Reso e seus cavalos bebessem da água do rio
Escamandro, o herói trácio seria invencível.
O tema da morte desse herói foi retomado no séc. IV a.C. na
tragédia Reso, que durante longo tempo foi erradamente incluída
entre as peças de Eurípides.
Desejando penetrar como espião em Ílion, para não ser
reconhecido, fez-se chicotear até o sangue por Toas, filho de
Andrêmon e chefe de um contingente etólio, consoante o Catálogo
das Naus. Ensanguentado e coberto de andrajos, apresentou-se em
Troia como trânsfuga. Conseguiu furtivamente chegar até Helena,
que, após a morte de Páris, estava casada com Deífobo e a teria
convencido a trair os Troianos. Relata-se igualmente (o que
certamente faz parte do romanesco) que Helena teria denunciado a
Hécuba, rainha de Troia, a presença de Ulisses, mas este, com suas
lágrimas, suas manhas e palavras artificiosas, teria convencido a
esposa de Príamo a prometer que guardaria segredo a seu respeito.
Desse modo foi-lhe possível retirar-se ileso, matando antes as
sentinelas que vigiavam a entrada da fortaleza.
Quando da morte de Aquiles e da outorga de suas armas ao mais
valente dos aqueus, Ájax Télamon, o Grande Ájax, o mais forte e
destemido dos gregos, depois do filho de Tétis, disputou-as com
Ulisses nos jogos fúnebres em memória do pelida. Face ao embaraço
de Agamêmnon, que não sabia a qual dos dois premiar, Nestor,
certamente por instigação de Ulisses, aconselhou que fossem
interrogados os prisioneiros troianos; e estes, por unanimidade,
afirmaram que o rei de Ítaca fora o que mais danos causara a Troia.
Inconformado com a derrota, aliás injusta, e ferido em sua timé, Ájax,
num acesso de loucura, massacrou um pacífico rebanho de
carneiros, pois acreditava estar matando os gregos, que lhe negaram
as armas do pelida. Voltando a si, compreendeu ter praticado atos de
demência e, envergonhado, mergulhou a própria espada na garganta.
Outra versão, talvez mais antiga, atesta que, após a queda de Ílion,
Ájax pediu a morte de Helena como pena de seu adultério. Tal
proposta provocou a ira dos atridas. Ulisses, com sua solércia, salvou
a princesa e conseguiu que a mesma fosse devolvida a Menelau. Logo
após este acontecimento, o destemido Ájax solicitou, como parte dos
despojes, que lhe fosse entregue o Paládio, a pequena estátua de
Atená, dotada de propriedades mágicas. Por instigação, mais uma
vez, de Ulisses, os atridas não lhe atenderam o pedido.
O filho de Télamon fez-lhes, então, graves ameaças. Assustados,
Agamêmnon e Menelau cercaram-se de guardas, mas, no dia
seguinte, pela manhã, Ájax foi encontrado morto, varado com a
própria espada.
Sófocles, em sua tragédia Ájax, sem inocentar Ulisses, procura
desviar o infortúnio da personagem para sua hýbris, seu
descomedimento intolerável, sobretudo em relação a Atená, que
pune o filho de Télamon com a loucura. Dessa maneira, a grande
deusa estaria prestando homenagem a seu protegido Ulisses.
Este, porém, porta-se com mais dignidade que a deusa da
inteligência. Quando esta, para mostrar a extensão da desgraça de
Ájax e o poder dos deuses, pergunta a Ulisses se, porventura, conhece
um herói mais judicioso e valente, a resposta do filho de Laerte não
se faz esperar:
Não, não conheço nenhum e, embora seja meu
inimigo, lamento seu infortúnio. Esmaga-o terrível
fatalidade. Em seu destino entrevejo meu próprio
destino. Todos quantos vivemos, nada mais somos que
farrapos de ilusão e sombras vãs.
(Ájax, 121-126)
Que se julgue neste passo de Sófocles a Ulisses, o mortal, e a
imortalidade de Palas Atená!
O maior cometimento de Ulisses na Guerra de Troia foi, sem
dúvida, o já referido e genial estratagema do Cavalo de Troia, objeto
das descrições de Homero (Od., VIII, 493-520) e Públio Vergílio
Marão (Eneida, 2,13-267).
Não se esgotam aqui, todavia, as gestas e a crueldade do sagaz
Ulisses. Foi o primeiro a sair da machina fatalis, a fim de
acompanhar Menelau, que apressadamente se dirigiu à casa de
Deífobo, para se apossar de Helena; e, segundo uma versão, o rei de
Ítaca impediu o atrida de assassinar ali mesmo sua linda esposa.
Conforme outra variante, Ulisses salvou-a da morte certa: escondeua e esperou que a cólera dos helenos se mitigasse, evitando que a
rainha de Esparta fosse lapidada, como desejavam alguns chefes e a
soldadesca. Foi um dos responsáveis diretos pela morte do filho de
Heitor e Andrômaca, o pequenino Astíanax, que, no saque de Troia,
foi lançado de uma torre. Por instigação de Ulisses, a filha caçula de
Príamo e Hécuba, Políxena, foi sacrificada sobre o túmulo de Aquiles
por seu filho Neoptólemo ou pelos comandantes gregos. Tal
sacrifício, complementar do de Ifigênia, teria por finalidade
proporcionar ventos favoráveis para o retorno das naus aqueias a
seus respectivos reinos. Consoante outra versão, Aquiles, que amara
Políxena em vida, apareceu em sonhos ao filho e exigiu o sacrifício
da filha de Príamo. Na tragédia de Eurípides, Hécuba11, Políxena
arrancada dos braços da rainha por Ulisses, aliás com anuência da
própria vítima, que preferia a morte à escravidão (Hécuba, 346-378),
é degolada por Neoptólemo sobre o túmulo paterno.
4
Ainda fumegavam as cinzas de Troia, quando os reis aqueus, que
haviam sobrevivido aos fios da Moîra, aprestaram-se para o νόστος
(nóstos), o longo “retorno” ao lar. Uns eram aguardados com
sofreguidão, com lágrimas de júbilo e com muita saudade; outros,
pela instigação vingativa de Náuplio ou pelos próprios
acontecimentos que precederam ou se seguiram à guerra, eram
esperados com ódio e com as lâminas afiadas de machadinhas
homicidas. Penélope e sua prima Clitemnestra são o termômetro da
polaridade desse imenso πόθος (póthos), desse insofrido “desejo da
presença de uma ausência”.
Dada a controvérsia entre os dois atridas a respeito do momento
propício para o regresso, Menelau, apressado e desejoso de afastar
Ílion de sua memória, partiu primeiro com sua Helena e com o velho
e sábio Nestor (Od., III, 141-145). As naus de Ulisses singraram na
esteira branca e salgada dos navios dos dois heróis aqueus. Na ilha de
Tênedos, porém, como se malquistasse com ambos, retornou a
Tróada e se reuniu a Agamêmnon, que lá permanecera por mais uns
dias, a fim de conciliar com presentes as boas graças da sensível
deusa Atená. Quando Agamêmnon desfraldou suas velas, o prudente
Ulisses o seguiu, mas uma grande borrasca os separou e o filho de
Laerte abordou na Trácia12, na região dos Cícones13. Penetrando em
uma de suas cidades, Ísmaro, o herói e seus marujos, numa incursão
digna de piratas, a pilharam e passaram-lhe os habitantes a fio de
espada. Somente pouparam a um sacerdote de Apolo, Marão, que,
além de muitos presentes, deu ao rei de Ítaca doze ânforas de um
vinho delicioso, doce e forte. Com este precioso licor de Baco será
embriagado o monstruoso ciclope Polifemo. Num contra-ataque
rápido os Cícones investiram-se contra os gregos, que perderam
vários companheiros.
Novamente no bojo macio de Posídon, os aqueus singraram para o
sul e dois dias depois avistaram o cabo Maleia, mas um vento
extremamente violento, vindo do norte, lançou-os ao largo da ilha de
Citera e durante nove dias erraram no mar piscoso, até que, no
décimo, chegaram ao país dosLotófagos, que se alimentavam de flores
(Od., IX, 82-84). Três marujos aqueus provaram do loto14, “o fruto
saboroso, mágico e amnéstico”, porque lhes tirou qualquer desejo de
regressar à pátria.
É aquele que saboreava o doce fruto do loto, não mais
queria trazer notícias nem voltar, mas preferia
permanecer ali entre os Lotófagos, comendo loto,
esquecido do regresso.
(Od., IX, 94-97)
A custo o herói conseguiu trazê-los de volta e prendê-los no navio.
Dali partiram de coração triste, e chegaram à terra dos ciclopes,
tradicionalmente identificada com a Sicília:
Dali continuamos viagem, de coração triste, e
chegamos à terra dos soberbos ciclopes, infensos às leis,
que, confiados nos deuses imortais, não plantam, nem
lavram, mas tudo lhes nasce sem semear nem lavrar.
(Od., IX, 105-109)
Deixando a maioria de seus companheiros numa ilhota, o
experimentado rei de Ítaca, com apenas alguns deles, embicou sua
nau para uma terra vizinha. Escolheu doze entre os melhores e
resolveu explorar a região desconhecida, levando um odre cheio do
vinho de Marão. Penetrou numa “elevada gruta, à sombra de
loureiros”, redil de gordos rebanhos, e lá aguardou, para receber de
quem quer que habitasse a caverna os dons da hospitalidade.
Só à tardinha chegou o ciclope Polifemo:
Era um monstro horrendo, em nada semelhante a um
homem que come pão, mas antes a um pico
alcandorado de altos montes, que aparece isolado dos
outros.
(Od., IX, 190-192)
Polifemo15 já havia devorado seis de seus marujos, quando Ulisses,
usando de sua costumeira solércia, embebedou-o com o vinho forte
de Marão e vazou-lhe o olho único que possuía no meio da fronte.
Sem poder contar com o auxílio de seus irmãos, que o consideraram
louco, por gritar que Ninguém o havia cegado (foi este realmente o
nome com que o astuto esposo de Penélope se apresentara ao
gigante), o monstro, louco de dor e de ódio, postou-se à saída da
gruta, para que nenhum dos aqueus pudesse fugir. O sagaz Ulisses,
todavia, engendrou novo estratagema e, sob o ventre dos lanosos
carneiros, conseguiu escapar com seus companheiros restantes do
antropófago filho de Posídon16.
Salvos do bronco Polifemo, os helenos navegaram em direção ao
reino do senhor dos Ventos, a ilha Eólia, possivelmente Lípari, na
costa oeste da Itália meridional:
Chegamos então à ilha Eólia. Ali habitava Éolo, filho
de Hípotes, caro aos deuses imortais, numa ilha
flutuante, cingida em toda a volta por infrangível
muralha de bronze...
(Od., X, 1-4)
Éolo17 acolheu-os com toda a fidalguia e durante um mês os
hospedou. Na partida, deu ao rei aqueu um odre que continha o curso
dos ululantes ventos. Em liberdade ficara apenas o Zéfiro que, com
seu hálito suave, fazia deslizar as naus no seio verde de Posídon.
Durante nove dias as naus aqueias avançaram alimentadas pelas
saudades de Ítaca. No décimo já se divisavam ao longe os lumes que
faiscavam na terra natal. O herói, exausto, dormia. Julgando tratar-se
de ouro, os nautas abriram o odre, o cárcere dos perigosos ventos...
Imediatamente terrível lufada empurrou os frágeis batéis na direção
contrária. Ulisses, que despertara sobressaltado, ainda teve ânimo
para uma reflexão profunda:
Mas eu que despertara, refletia em meu
irrepreensível espírito se devia morrer, lançando-me
nas ondas ou se permaneceria em silêncio e
continuaria entre os vivos. Resolvi sofrer e ir
vivendo...
(Od., X, 49-53)
E voltou à ilha de Éolo. De lá expulso como amaldiçoado dos
deuses, Ulisses retornou às ondas do mar e chegou no sétimo dia a
Lamos, cidade da Lestrigônia, terra dos gigantes e antropófagos
Lestrigões, povos que habitavam (o assunto é muito discutido) a
região de Fórmias, ao sul do Lácio, ou o porto siciliano de Leontinos...
Tribos de canibais, sob a ordem de seu rei, o gigante e antropófago
Antífates, precipitaram-se sobre os enviados do herói de Ítaca,
devorando logo um deles. Arremessando, em seguida, blocos de
pedra sobre a frota ancorada em seu porto, destruíram todas as naus,
menos a de Ulisses, que ficara mais distante:
Depois, de cima dos rochedos, lançaram sobre nós
pedras imensas. Levantou-se logo das naus o grito
medonho dos que morriam e o estrépito das naus que
se partiam. E os Lestrigões, cortando os homens como
se fossem peixes, levavam-nos para um triste
banquete.
(Od., X, 121-124)
Agora, com um único navio e sua equipagem, o herói fugiu
precipitadamente para o alto-mar e navegou em direção à ilha de
Eeia, cuja localização é totalmente impossível: identificá-la com
Malta ou com uma ilha situada na entrada do Mar Adriático é
contribuir para enriquecer a fantástica geografia mítica de Homero.
Relata-nos o poeta (Od., X, 135ss) que, tendo chegado a esta ilha
fabulosa, residência da feiticeira Circe, filha de Hélio e Perseida e
irmã do valente Eetes, Ulisses enviou vinte e três de seus nautas para
explorarem o lugar. Tendo eles chegado ao palácio deslumbrante da
maga, esta os recebeu cordialmente; fê-los sentar-se e preparou-lhes
uma poção. Depois, tocando-os com uma varinha mágica,
transformou-os em animais “semelhantes a porcos”18. Escapou do
encantamento apenas Euríloco que, prudentemente, não penetrara
no palácio da bruxa. Sabedor do triste acontecimento, o herói pôs-se
imediatamente a caminho em busca de seus nautas. Quando já se
aproximava do palácio, apareceu-lhe Hermes, sob a forma de belo
adolescente, e ensinou-lhe o segredo para escapar de Circe: deu-lhe a
planta mágica móli (de cuja etimologia, simbologia e “cristianização”
se falou no Vol. II, p. 194-195) que deveria ser colocada na beberagem
venenosa que lhe seria apresentada. Penetrando no palácio, a bruxa
ofereceu-lhe logo a bebida e tocou-o com a varinha. Assim, quando a
feiticeira lhe disse toda confiante:
Vai agora deitar com os outros companheiros na
pocilga
(Od., X, 320)
grande foi sua surpresa, ao ver que a magia não surtira efeito. De
espada em punho, como lhe aconselhara Hermes, o herói exigiu a
devolução dos companheiros e acabou ainda usufruindo por um ano
da hospitalidade e do amor da mágica. Diga-se logo que desses
amores, conforme a tradição, nasceram Telégono e Nausítoo.
Antes de se enfunarem novamente as velas da nau de Ulisses, dois
breves comentários se fazem necessários. O primeiro se refere à
transformação de seres humanos em animais, fato comum em todas
as culturas. Verifiquemos o que nos diz Marie-Louise von Franz a
esse respeito: “Em primeiro lugar, cumpre-nos examinar o que
significa para um ser humano ser convertido em animal. Diferentes
animais têm diferentes comportamentos instintivos; se um tigre se
comportasse como um esquilo, chamar-lhe-íamos neurótico. Para
um ser humano, ser transformado em animal significa estar fora de
sua própria esfera instintiva, alienado dela, e devemos, portanto,
atentar para o animal específico em questão. Vejamos o caso do asno:
este é um dos animais do deus Dioniso. Na Antiguidade, ele era
considerado um animal muito sensual, conhecido também por sua
perseverança e pretensa estupidez. É um animal de Saturno e tem as
qualidades saturninas. No final da Antiguidade, Saturno era
considerado o deus dos judeus e, nas disputas entre cristãos e não
cristãos, tanto os cristãos como os judeus eram acusados de adorar o
asno. Por conseguinte, ser transformado em asno implicava ser
dominado por tais qualidades, isto é, ter caído sob o impulso de um
complexo específico que impõe tal comportamento. Na história de
Apuleio19, é obviamente o impulso sexual que está em primeiro
plano [...]. Assim, ser convertido num animal não é viver de acordo
com os próprios instintos, mas ser parcialmente dominado por um
impulso instintivo unilateral que perturba o equilíbrio humano”20.
Assim, de acordo com a interpretação da Dra. von Franz, os
companheiros de Ulisses, transformados em animais semelhantes a
porcos, ficaram fora de sua órbita instintiva humana, assumindo os
instintos dos animais diversos em que foram metamorfoseados,
“cada um segundo as tendências profundas de seu caráter e de sua
natureza”. Mas, como se tornaram semelhantes a porcos, ὥστε σύες
(hóste s×es), como diz Homero (Od., X, 283), significa que os nautas
aqueus estavam dominados pela gula, pela voracidade e pela luxúria
exacerbada.
Com efeito, o porco simboliza “as tendências obscuras sob todas as
suas formas de ignorância, da gula, da luxúria, do egoísmo” e da
imundície.
A segunda observação refere-se à ingestão de determinadas
plantas apotropaicas, como a célebre móli, o φαρμακον ἐοθλόν
(phármakon esthlón), o “antídoto eficaz”, que evita seja o ser humano
transformado em animal; ou de efeito terapêutico, como lírios e
rosas, que atuam de modo inverso: o metamorfoseado em animal
recupera sua forma humana.
Consoante ainda à Dra. von Franz, “o tema do ser humano que se
converte em animal e só pode ser redimido comendo flores aparece
em todo o mundo. As flores podem ser lírios, não necessariamente
rosas, dependendo do país onde a história é contada”21. No fecho das
Metamorfoses de Apuleio, Lúcio, que havia se convertido em asno,
recupera a forma humana comendo um ramo de rosas vermelhas
que estava sendo levado por um sacerdote durante uma procissão de
iniciados nos mistérios de Ísis e Osíris.
Conforme enfatizam os autores do Dictionnaire des symboles, “S.
João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e o buquê
que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual”22. A flor é idêntica
ao Elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao
estado primordial. A rosa, particularmente, traduz a alma, o coração,
o amor. É possível contemplá-la como um mandala e considerá-la
como o centro místico. A rosa vermelha, por sua relação com o
sangue derramado, converte-se na imagem de um renascimento
místico. Comendo rosas vermelhas, Lúcio não apenas retomou sua
forma humana, mas também se fez iniciar nos mistérios de Ísis e
Osíris. Pode-se, desse modo, concluir que determinadas flores, por
sua beleza e perfume, atuam como poderosa terapia catártica,
fazendo com que “asnos e porcos”, ingerindo-as, retornem a seu
estado primeiro, agora remoçados e mais altos, como diz Homero a
respeito dos companheiros de Ulisses.
Afinal, após um ano de ociosidade, Ulisses partiu. Não em direção a
Ítaca, mas à outra vida, ao mundo ctônio. Todo grande herói, já o
sabemos desde o capítulo I deste volume, não pode completar o
Uróboro, sem uma κατὰβασις (katábasis), sem uma descida “real”
ou simbólica ao mundo das sombras. Foi a conselho de Circe que
Ulisses, para ter o restante de seu itinerário e o fecho de sua própria
vida traçados pelo adivinho cego Tirésias, navegou para os confins
do Oceano:
Ali está a terra e a cidade dos Cimérios, cobertas pela
bruma e pelas nuvens: jamais recebem um único raio
do sol brilhante.
(Od., XI, 14-16)
A catábase do rei de Ítaca foi “simbólica”. Segundo se enfatizou no
Vol. I, p. 136s, ele não desceu à outra vida, ao Hades. Deixando a nau
junto aos bosques consagrados a Perséfone e, portanto, à beira-mar,
andou um pouco para abrir um fosso e fazer sobre ele as libações e os
sacrifícios rituais ordenados pela maga. Tão logo o sangue das
vítimas negras penetrou no fosso, “os corpos astrais, os eídola
abúlicos” (exceto o eídolon de Tirésias, que talvez guardasse lá
embaixo seu nóos, seu “espírito perfeito”), recompostos
temporariamente, vieram à tona:
...o sangue negro corria e logo as almas dos mortos,
subindo do Hades, se ajuntaram.
(Od., XI, 36-37)
O herói pôde, assim, ver e dialogar com muitas “sombras”,
particularmente com Tirésias, que lhe vaticinou um longo e penoso
caminho de volta e uma morte tranquila, longe do mar e em idade
avançada...
Antes de regressarmos ao mundo dos vivos, uma pergunta: onde
ficaria, na geografia homérica, o país dos Cimérios, mergulhado
numa bruma eterna?
Consoante Ley e De Camp, “aquela bruma eterna, que, como
consta, cobre a região, pode-nos levar a situá-la em certo trecho das
costas marroquinas, conhecido por suas brumas espessas no verão e
no outono, o mare tenebrosum de Plínio, ou, então, trata-se
simplesmente do tempo que reina habitualmente no Atlântico [...].
Para um navegador acostumado aos verões mediterrâneos sem
nuvens, o Atlântico com seu céu frequentemente coberto, seus
furacões em todas as estações, pode parecer um domínio
assustador...”23
Outros autores preferem brincar de esconder com a geografia
fantástica do poeta grego e situam os Cimérios num extremo
ocidente ou nas planícies que se estendem ao norte do Mar Negro...
Assim é que, ora os Cimérios são tidos como ancestrais dos celtas ora
dos citas da Rússia meridional. Outros julgam que se trata de um
povo de mineiros, que vivia em galerias subterrâneas e que somente
à noite saía para sua cidade, localizada quer na Europa central quer
na Grã-Bretanha, quem sabe nas brumas de Avalon... Talvez tenha
concorrido para esta última hipótese o fato, segundo consta, de os
gregos receberem estanho da Inglaterra, naturalmente por meio de
numerosos intermediários. Daí se teria gerado a confusão geográfica.
De volta, ainda uma pequena permanência na ilha de Eeia e, após
ouvir atento e aterrorizado as informações precisas de Circe acerca
das sereias, dos monstros Cila e Caribdes e da proibição de se
comerem as vacas e ovelhas de Hélio na ilha Trinácria, o esposo de
Penélope partiu para novas aventuras, que vão arrastá-lo na direção
do oeste. Seu primeiro encontro seria com os perigosos rochedos das
sereias, cuja localização é extremamente difícil. Existem realmente
três rochedos ao longo das costas italianas, na baía de Salerno.
Segundo se diz, encontraram-se ossadas humanas em grutas
existentes no interior desses penhascos, mas é preciso não esquecer
que exatamente o maior deles, Briganti, foi durante os séculos XIII e
XIV uma sólida base de piratas... É preferível, por isso mesmo,
localizá-los, miticamente, no Mediterrâneo Ocidental, não muito
distante de Sorrento!
Circe preveniu bem o herói de que as sereias antropófagas, de que
já se tratou no Vol. I, p. 258ss, tentariam encantá-lo com sua voz
maviosa e irresistível: atirá-lo-iam nos recifes, despedaçando-lhe a
nau e devorariam todos os seus ocupantes. Para evitar a tentação e a
morte, ele e seus companheiros deveriam tapar os ouvidos com cera.
Se, todavia, o herói desejasse ouvir-lhes o canto perigoso, teria que
ordenar a seus nautas que o amarrassem ao mastro do navio e, em
hipótese alguma, o libertassem das cordas.
Quando a nau ligeira se aproximou do sítio fatídico, diz Homero, a
ponto de se ouvir um grito, as sereias iniciaram seu cântico funesto e
seu convite falaz:
Aproxima-te daqui, preclaro Ulisses, glória ilustre
dos aqueus! Detém a nau para escutares nossa voz.
Jamais alguém passou por aqui, em escura nave, sem
que primeiro ouvisse a voz melíflua que sai de nossas
bocas.
Somente partiu após se haver deleitado com ela e de
ficar sabendo muitas coisas. Em verdade sabemos
tudo...
(Od., XII, 184-189)
No Vol. I, p. 260ss, ao falar da Esfinge, deu-se uma ideia da
“natureza” das sereias, mas nada se disse acerca de seu mito e de sua
simbologia. Vamos, agora, resumidamente, preencher estas duas
lacunas. Filhas do rio Aqueloo e de Melpômene ou de Estérope ou
ainda, numa variante mais recente, nascidas do sangue de Aqueloo
ferido por Héracles, na célebre disputa por Dejanira (Vol. I, p. 274s),
as sereias eram, a princípio, duas: Partênope24e Lígia; depois, três:
Pisínoe, Agláope e Telxiépia, também denominadas Partênope,
Leucósia e Lígia; por último, quatro: Teles, Redne, Molpe e Telxíope.
Jovens muito belas, participavam do cortejo de Core ou Perséfone.
Quando Plutão a arrebatou, suplicaram insistentemente aos deuses
que lhes concedessem asas, para que pudessem procurá-la na terra,
no mar e no céu. Deméter, irritada, por não terem impedido o rapto
de Perséfone, transformou-as em monstros. Segundo uma variante,
Afrodite lhes tirou a esfuziante beleza e as metamorfoseou pelo fato
de as mesmas desprezarem os prazeres do amor. Meio mulheres e
meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e peixe da cintura
para baixo, as Sereias tornaram-se demônios marinhos. Frias da
cintura para baixo, por serem peixes, desejando o prazer, mas não
podendo usufruí-lo, atraíam e prendiam os homens para devorá-los,
o que, aliás, está de acordo com sua etimologia. Com efeito Σειρήν
(Seirén), sereia, provém certamente de σειρά (seirá), “liame, nó, laço,
cadeia”. Hábeis músicas e cantoras (Partênope dedilha a lira;
Leucósia canta e Lígia toca flauta), cantavam para encantar,
tornando-se, como a Esfinge, um pesadelo opressor, um cauchemar.
Certamente sob a influência da religião egípcia, que representava a
alma dos mortos sob a forma de um pássaro com cabeça humana, a
sereia era considerada como a alma do morto que não “completou
seu destino”, transmutando-se, por isso mesmo, numa Seelenvogel,
numa alma-pássaro, num vampiro opressor. Embora as especulações
escatológicas pós-clássicas tenham feito delas divindades da outra
vida, que encantavam com sua música e voz os eleitos da Ilha dos
Bem-Aventurados, e é sob este aspecto que elas figuram sobre alguns
sarcófagos, a tradição foi mais forte: as sereias simbolizam a sedução
mortal. Cotejando-se a vida com uma viagem, as sereias traduzem as
emboscadas, provenientes dos desejos e das paixões. Como se
originam de elementos indeterminados do ar (pássaros) ou do mar
(peixes), configuram criações do inconsciente, dos sonhos
alucinantes e aterradores em que se projetam as pulsões obscuras e
primitivas do ser humano. Foi necessário, por isso mesmo, que
Ulisses se agarrasse à dura realidade do mastro, que é o centro do
navio e o eixo vital do espírito, para escapar das ilusões da paixão.
Falando mais especificamente da transformação de seres humanos
em animais e da lenda de determinadas sereias na Irlanda, assim se
expressa a Dra. von Franz: “Penso que, numa civilização cujas linhas
dominantes são as religiões budista e judaico-cristã, é provável que
certos instintos sejam reprimidos para o nível animal, já que existe
uma tendência para destruir certos aspectos; por exemplo, a anima
aparece como um animal porque não é aceita”25.
Vencida a sedução das sereias, os aqueus remaram a toda
velocidade para escaparem de dois escolhos mortais, Cila26e
Caribdes27. A localização dos temíveis penhascos em que se
escondiam os dois monstros é tradicionalmente defendida como o
estreito de Messina, situado entre a Itália e a Sicília. Outros, porém,
como Estrabão, acham que a difícil passagem é o estreito de
Gibraltar, por contar “com uma quantidade de turbilhões
verdadeiramente perigosos”. Seja como for, os formidáveis recifes,
que ladeavam um dos dois estreitos, camuflavam as devoradoras
Cila e Caribdes: quem escapasse de uma, fatalmente seria tragado
pela outra. A conselho de Circe, para não perecer com todos os seus
companheiros, o herói preferiu passar mais próximo de Cila. Mesmo
assim, perdeu seis de seus melhores nautas.
De coração triste, o herói navegou em direção à ilha de Hélio
Hiperíon, identificada miticamente com Trinácria, isto é, com a
Sicília, onde por força dos ventos permaneceu um mês inteiro.
Acabada a provisão, os insensatos marinheiros, apesar do juramento
feito, sacrificaram as melhores vacas do deus. Quando novamente a
nau aqueia voltou às ondas do mar, Zeus, a pedido de Hélio, levantou
uma imensa procela e terríveis vagalhões, que, de mistura com os
raios celestes, sepultaram a nave e toda a tripulação no seio de
Posídon. Apenas Ulisses, que não participara dos sacrílegos
banquetes, escapou à ira do pai dos deuses e dos homens.
Agarrando-se à quilha, que apressadamente amarrara ao mastro da
nave, o rei de Ítaca deixou-se levar pelos ventos...
Partindo dali errei por nove dias; na décima noite os
deuses conduziram-me para a ilha de Ogígia, onde
mora Calipso, de linda cabeleira...
(Od., XII, 447-449)
A ilha de Ogígia, como quase todas as paragens oníricas da
Odisseia, tem sido imaginada quer na região de Ceuta, na costa
marroquina, em frente a Gibraltar, quer na ilha da Madeira.
Apaixonada pelo herói, a deusa o reteve por dez anos; por oito,
segundo alguns autores; por cinco, consoante outros ou apenas por
um... De seus amores teriam nascido dois filhos: Nausítoo (que
também figura como filho do herói e Circe) e Nausínoo.
Por fim, penalizado com as saudades de Ulisses, Zeus atendeu às
súplicas de Atená, a protetora inconteste e bússola do peregrino de
Ítaca, e enviou Hermes à ninfa imortal, para que permitisse a partida
do esposo de Penélope. Embora lamentasse sua imortalidade, pois
desejava morrer de saudades de seu amado, Calipso pôs-lhe à
disposição o material necessário para o fabrico de pequena
embarcação. No quinto dia, quando a Aurora de dedos cor-de-rosa
começou a brincar de esconder no horizonte, Ulisses desfraldou as
velas. Estamos novamente em pleno mar, guiados pela luz dos olhos
garços de Atená. Posídon, no entanto, guardava no peito e na
lembrança as injúrias feitas a seu filho, o ciclope Polifemo, e
descarregou sua raiva e rancor sobre a frágil jangada do herói:
Assim dizendo, Posídon reuniu as nuvens, empunhou
o tridente e sacudiu o mar. Transformou todos os
ventos em procelas e, envolvendo em nuvens a terra e
o mar, fez descer a noite do céu.
(Od., V, 291-294)
Sobre uma prancha da jangada, mas segurando contra o peito um
talismã precioso, o véu, que, em meio à borrasca, lhe emprestara Ino
Leucoteia28, o náufrago vagou três dias sobre a crista das ondas.
Lutou com todas as forças até que, nadando até a foz de um rio,
conseguiu pisar terra firme. Derreado de fadiga, recolheu-se a um
bosque e Palas Atená derramou-lhe sobre os olhos o doce sono...
Havia chegado à ilha dos Feaces, uma como que ilha de sonhos, uma
espécie de Atlântida de Platão. Chamavam-na Esquéria, mais tarde
identificada com Corfu.
Por inspiração de Atená, a princesa Nausícaa, filha dos reis de
Esquéria, Alcínoo e Arete, dirige-se ao rio para lavar seu enxoval de
casamento. Após o serviço, começou a jogar com suas companheiras.
Despertado pela algazarra, o herói pede a Nausícaa que o ajude. Esta
envia-lhe comida e roupa, pois o rei de Ítaca estava nu, e convida-o a
visitar o palácio real. Os Feaces, que eram como os Ciclopes,
aparentados com os deuses, levavam uma vida luxuosa e tranquila e,
por isso mesmo, Alcínoo ofereceu ao herói uma hospitalidade digna
de um rei.
Durante um lauto banquete em honra do hóspede, o aedo cego
Demódoco, por solicitação do próprio rei de Ítaca, cantou, ao som da
lira, o mais audacioso estratagema da Guerra de Troia, o ardil do
cavalo de madeira, o que emocionou profundamente o mais astuto
dos aqueus. Vendo-lhe as lágrimas, Alcínoo pediu-lhe que narrasse
suas aventuras e desditas. Com o famoso e convicto Εἴμ Όδυσσεύς
(Eím’ Odysseús), eu sou Ulisses, o herói desfilou para o rei e seus
comensais o longo rosário de suas gestas gloriosas, andanças e
sofrimentos na terra e no mar, desde Ílion até a ilha de Esquéria.
No dia seguinte, o magnânimo soberano de Esquéria fez com que
seu ilustre hóspede, que recusou polidamente tornar-se seu genro,
subisse, carregado de presentes, para uma das naus mágicas dos
Feaces:
Ela corria com tanta segurança e firmeza, que nem
mesmo o falcão, a mais ligeira das aves, poderia seguila.
(Od., XIII, 86-87)
Com tal velocidade, os marujos de Alcínoo em uma noite
alcançaram Ítaca, aonde o saudoso Ulisses chegou dormindo.
Colocaram-no na praia com todos os presentes, que habilmente
esconderam junto ao tronco de uma oliveira.
Posídon, todavia, estava vigilante, e, tão logo a nau ligeira dos
Feaces, em seu retorno, se aproximava de Esquéria, transformou-a
num rochedo, para cumprir velha predição.
5
Aproveitemos o sono do herói e vejamos, nestes seus vinte anos de
ausência, o que aconteceu e ainda acontecia na amada Ítaca, bem
visível ao longe, onde se ergue o arborizado e esplêndido monte Nérito
(Od., IX, 21-22). Quando Ulisses partiu para Troia, seu pai Laerte,
presumivelmente ainda forte e válido, já não mais reinava. Com o
falecimento da esposa Anticleia, consumida pelas saudades do filho,
agora já alquebrado e amargurado com os desmandos dos
pretendentes à mão de Penélope, passou a viver no campo, entre os
servos e, numa estranha espécie de autopunição, a cobrir-se com
andrajos, a dormir na cinza junto ao fogo, no inverno, e sobre as
folhas no verão. Telêmaco, em grego Τηλέμαχος (Telémakhos), “o
que combate, o que atinge à distância”, foi, na versão homérica, o
único filho de Ulisses com Penélope. Ainda muito criança, quando o
pai partiu para a guerra, ficou aos cuidados de Mentor, grande amigo
do herói. Todos os episódios relativos à sua meninice e começos da
adolescência se encontram nos quatro primeiros cantos da Odisseia e
suas maquinações e luta ao lado do pai contra os soberbos
candidatos à mão de Penélope se estendem do canto XV ao XXIV.
Aos dezessete anos, percebendo que os pretendentes assediavam
cada vez mais sua mãe e sobretudo dilapidavam impiedosamente os
bens do rei ausente, tentou afastá-los. Atená, no entanto, agiu
rapidamente, porquanto os pretendentes, por julgarem que o jovem
príncipe era o grande obstáculo à decisão da rainha na escolha de
um deles, tramavam eliminá-lo. Foi assim que, por conselho da
deusa de olhos garços, Telêmaco partiu para a corte de Nestor, em
Pilos, e depois para junto de Menelau e Helena, em busca de notícias
do pai.
Deixemo-lo, por enquanto, na corte do fulvo Menelau e retornemos
a Ítaca. Após tantos anos de ausência, todos julgavam que o filho de
Laerte não mais existia. Cento e oito pretendentes, nobres não apenas
de Ítaca, mas oriundos igualmente de ilhas vizinhas, Same, Dulíquio,
Zacinto, todas possessões de Ulisses. A princípio, de simples
cortejadores da esposa do herói passaram a senhores de seu palácio e
de sua fazenda. Arrogantes, autoritários, violentos e pródigos com os
bens alheios, banqueteavam-se diariamente na corte do rei de Ítaca,
exigindo o que de melhor houvesse em seu rebanho e em sua adega.
Os subordinados do palácio, fiéis a Ulisses, eram humilhados e quase
todas as servas foram reduzidas a concubinas.
Penélope29 aparece, na realidade, bastante retocada na Odisseia.
Tradições locais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um
retrato muito diferente do que nos é apresentado no poema
homérico. Neste ela desponta como o símbolo perfeito da fidelidade
conjugal. Fidelidade absoluta ao herói, ausente durante vinte anos.
Dentre quantas tiveram seus maridos empenhados na Guerra de
Troia foi das únicas que não sucumbiu “aos demônios da ausência”,
como diz expressivamente Pierre Grimal. Forçada pelos
pretendentes a escolher entre eles um novo marido, resistiu o quanto
pôde, adiando sucessivamente a indesejada eleição. Quando não lhe
foi mais possível tergiversar, arquitetou um estratagema, que ficou
famoso: prometeu que escolheria um deles para marido, tão logo
acabasse de tecer a mortalha de seu sogro Laerte, mas todas as noites
desfazia o que fizera durante o dia. O logro durou três anos, mas,
denunciada por algumas de suas servas, começou a defender-se com
outros ardis...
Ulisses despertou de seu longo sono e Atená postou-se a seu lado.
Disfarçado por ela em andrajoso e feio mendigo, o herói
encaminhou-se para a choupana do mais fiel de seus servos, o
porcariço Eumeu. Era preciso, por prudência, sem se dar a conhecer,
ficar a par de quanto se passava em seu palácio. Telêmaco, guiado
pela bússola da deusa de olhos garços, também está de volta. Pai e
filho se encontram e se reconhecem na tapera do porcariço. Iniciamse os planos para o extermínio dos pretendentes. Se a fidelidade de
Eumeu agradou tanto ao herói, não menos havia de emocioná-lo
uma outra, de feição bem diversa e inesperada. Trata-se do cão Argos:
E um cão, que estava deitado, erguendo a cabeça,
eriçou as orelhas: era Argos que o paciente Ulisses
havia criado antes de ir para a sagrada Ílion [...].
Abandonado na ausência de seu senhor, rolava
diante do portal sobre os estrumes das mulas e dos
bois. Ali estava deitado Argos, comido das carraças.
Vendo aproximar-se Ulisses, agitou a cauda e baixou
a cabeça. Faltaram-lhe forças para chegar até onde
estava seu senhor. Este, voltando a cabeça, chorou...
(Od., XVII, 291-304)
Argos estava morto. Havia-o matado a saudade. A recepção dos
humildes, Eumeu e Argos, contrastou profundamente com a
grosseria com que o orgulhoso Antínoo, o mais violento dos
pretendentes, recebeu no palácio de Ulisses ao mendigo Ulisses.
Insultado e obrigado a lutar com o mendigo Iro para divertimento
de todos, o herói teria sofrido novos vexames, não fora a intervenção
segura de Telêmaco e a hospitalidade de Penélope, que o acolheu e
com ele manteve um longo diálogo, temperado de fidelidade e de
saudades de Ulisses:
Saudades de Ulisses me consomem docemente o
coração.
Os pretendentes apressam minhas núpcias: eu me
defendo com ardis.
(Od., XIX, 136-137)
O zelo da hospitalidade da rainha, todavia, quase pôs a perder o
plano minuciosamente traçado por Ulisses e Telêmaco. A velha e
fidelíssima ama do herói, Euricleia, ao lavar-lhe os pés, por ordem de
Penélope, reconheceu-o por uma cicatriz na perna:
Esta cicatriz, pois, reconheceu-a a anciã, tão logo o
tocou e apalpou com a palma da mão e, largando-lhe o
pé, a perna bateu na bacia: o bronze cantou e,
inclinando-se a bacia, a água entornou-se...
(Od., XIX, 467-470)
Imposto silêncio à velha ama, Ulisses, depois de banhado e ungido,
retomou o diálogo com a sensata Penélope.
Aproximava-se, porém, a hora da vingança. Atená, a de olhos
garços, inspirou à rainha de Ítaca a ideia de apresentar aos
pretendentes o arco de seu esposo para celebração do certame que
daria início ao morticínio.
Ouçamos a proposta de casamento de Penélope:
Escutai-me, ilustres pretendentes [...] não podeis
apresentar outro pretexto, a não ser o desejo de me
tomar por esposa. Ânimo, pois, pretendentes: o prêmio
do combate está à vista!
Apresentarei o grande arco do divino Ulisses e aquele
que, tomando-o nas mãos, conseguir armá=lo mais
facilmente, e fizer passar uma flecha pelo orifício dos
doze machados, a este eu seguirei...
(Od., XXI, 68-77)
A conquista da esposa por parte de um herói jamais é gratuita.
Como se mostrou no capítulo I, 5, deste volume, o “pretendente” deve
superar grandes obstáculos e arriscar a própria vida, até mesmo para
reaver sua metade perdida.Admeto, Pélops, Jasão, Menelau, Héracles
e tantos outros são exemplos vivos de “pretendentes” que
empenharam a própria alma na conquista de um grande amor.
Chegou, pois, o momento culminante da prova do arco, que testaria
o mérito dos candidatos à mão de Penélope.
O orgulhoso Antínoo comanda o certame:
Levantai-vos em ordem, companheiros, da esquerda
para a direita.
(Od., XXI, 141)
Todos tentaram em vão... A insolência e a altivez dos soberbos
pretendentes foram quebradas pelo arco de Ulisses: nenhum deles
conseguiu, ao menos, retesá-lo. O arco obedeceria e se curvaria (e
veremos por quê) apenas à vontade de seu senhor.
Pela insistência de Penélope e a firmeza das palavras de Telêmaco,
embora exasperados, os pretendentes se viram compelidos a
permitir que o mendigo Ulisses experimentasse o inflexível arco:
[...] o astuto Ulisses, contudo, apenas tomou e
inspecionou em todos os sentidos o grande arco,
armou-o sem dificuldade alguma.
[...] Dos pretendentes, porém, se apossou uma grande
mágoa e mudaram de cor... (Od., 404-412)
O filho de Laerte disparou o dardo, que não errou nenhum dos
machados, desde o orifício do primeiro. Despojando-se dos andrajos,
despiu-se também o herói do homem do mar. Tem-se agora
novamente o homem na guerra: começou o extermínio dos
pretendentes. Antínoo foi o primeiro:
A flecha atravessou-lhe a garganta delicada e saiu
pela nuca. Ferido de morte, ele tombou de costas e a
taça caiu-lhe das mãos.
(Od., XXII, 15-18)
E a negra morte desceu sobre os olhos de um a um dos príncipes de
Ítaca e das demais possessões de Ulisses. Dos servos foram poupados
tão somente quatro. Doze escravas impudentes que, na longa
ausência do senhor, envergonharam-lhe o palácio, foram enforcadas:
Elas só com os pés estrebucharam durante instantes,
que, na verdade, não foram longos.
(Od., XXII, 473)
Não foi realmente para efeitos retóricos que Marco Túlio Cícero
chamou de pintura a poesia de Homero!30
Ao paciente Ulisses faltava ainda uma prova. Penélope ainda
resistia. O velho marinheiro, agora remoçado graças a um toque
mágico de Atená, conhecia, somente ele e a esposa, alguns sinais
desconhecidos dos outros mortais. Era a prova do reconhecimento do
leito conjugal:
[...] se realmente este é Ulisses que retorna ao lar, nós
nos reconheceremos com mais facilidade que
ninguém.
(Od., XXIII, 107-109)
De fato era Ulisses. O rei de Ítaca descreveu minuciosamente o
leito conjugai, que ele próprio fizera e adornara. O grande sinal era o
pé da cama, construído com um tronco de oliveira, na Grécia,
“símbolo da força, da fecundidade, da recompensa, da paz”. Na
tradição judaico-cristã a imagem da paz está configurada pela
pomba que traz a Noé, no fim do dilúvio, um ramo de oliveira. Na
linguagem medieval converteu-se também em tradução do ouro e do
amor. Escreve Angelus Silesius: “Se me for dado contemplar em tua
porta um tronco dourado de oliveira, chamar-te-ei imediatamente
casa de Deus”. Axis mundi, eixo do mundo, árvore ancestral na
tradição islâmica, a oliveira reflete o homem universal, o Profeta.
Associado à luz, o azeite doce alimenta os candeeiros. Assim é que, no
esoterismo ismaelita, a oliveira no cimo do Sinai espelha o Imã,
convertendo-se simultaneamente no axis mundi, no Homem
universal e na fonte da luz31.
E realmente era Ulisses...
[...] e a Penélope, no mesmo instante, desfaleceram os
joelhos e o coração amante, reconhecendo os sinais
que Ulisses dera sem hesitar. Correu direta para ele
com as lágrimas nos olhos e lançou os braços em torno
de seu pescoço...
(Od., XXIII, 205-208)
Talvez fosse prudente acrescentar que não mais estamos em pleno
mar, mas em plena madrugada, no palácio de Ulisses, em Ítaca... E
como uma só madrugada é muito pouco para matar saudades de
vinte anos de ausência, Atená, a deusa de olhos garços, ante a ameaça
da aproximação pouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa,
deteve-a em pleno oceano e simplesmente prolongou a noite...
Tangidas para o Hades pelo caduceu de Hermes as almas dos
pretendentes, então Ulisses e Penélope... ainda não! Grande maioria
dos habitantes de Ítaca levantou-se em armas para vingar seus filhos
e parentes.
O herói, seu filho Telêmaco, Laerte e mais uns poucos,
capitaneados por Atená, enfrentaram os vingadores. A carnificina
teria sido grande, não fora a intervenção da própria deusa:
Filho de Laerte, da estirpe de Zeus
Ulisses fecundo em recursos, suspende o combate [...].
Assim falou Atená e ele obedeceu de coração alegre.
Depois, entre as duas partes, foi celebrado um pacto
solene para os tempos futuros, obra de Palas Atená,
filha de Zeus, portador da égide.
(Od., XXIV, 542-547)
Ulisses e Penélope... Bem, Ulisses e Penélope, como tudo neste vale
de lágrimas, não foram felizes para sempre!
É verdade que o adivinho Tirésias prognosticara um fim tranquilo
e bem distante do mar para o rei de Ítaca; é igualmente exato que
também na Odisseia tudo acaba na doce paz imposta por Palas
Atená, mas estes dois enfoques não são os únicos.
A épica, sobretudo, por sua própria estrutura, conduz o herói para
um desfecho feliz. Homero, na Odisseia, fechou genialmente a longa
nostalgia, peregrinações e lutas de seu protagonista com um hino ao
amor, à fidelidade de Penélope e com um eloquente tratado de paz,
mas o mito continua em outras variantes e tradições para além da
epopeia. Retrata outro estado de coisas e prossegue pelos misteriosos
labirintos da vida.
Antes, porém, de retomar a caminhada com o grande herói, um
ligeiro comentário a respeito de três sinais muito significativos que
lhe marcam a identidade.
Se, de um lado, o astuto e destemido personagem da Odisseia pode
ser considerado como hábil marinheiro, ancestral dos nautas
errantes dos mares do Ocidente, e suas gestas como um autêntico
périplo iniciático, de outro, Ulisses é, em grau superlativo, o herói do
mito do retorno do esposo, após prolongada e acidentada ausência.
Um homem partiu para uma longa viagem... A esposa lhe
permanecerá fiel e, após alguns incidentes, o reconhecerá. Eis que o
marido retorna envelhecido, disfarçado, pouco importa. Embora
com variações de uma versão à outra, três sinais lhe garantem e
atestam a identidade. Vejamos a versão homérica: apenas o marido é
capaz de armar o arco que possuía; somente ele sabe, em comum com
a esposa, como foi construído o leito conjugal; enfim, o marido tem
uma cicatriz de que unicamente a mulher tem conhecimento.
Pois bem, o poeta grego utilizou os três sinais em três cenas de
grande poder dramático, invertendo-lhes, todavia, a ordem,
alterando o conteúdo, variando as circunstâncias. Apenas o sinal
relativo ao leito nupcial foi empregado para reconhecimento do
esposo. Os outros dois o foram, conforme já se viu, para outras
finalidades.
O primeiro destes é a cicatriz resultante da mordidela de um
javali. A cicatriz é como se fora uma “minimutilação”, o que, em
termos xamânicos, colocava seu portador bem próximo do sagrado e
dos próprios deuses. Talvez nenhum herói homérico tenha sido tão
bafejado pela amizade divina quanto Ulisses. Bastaria citar o
respaldo e a proteção que lhe deram Hermes e Atená para se concluir
que o rei de Ítaca era um valido dos imortais. Além do mais, a cicatriz
se originou da mordidela de um javali, cujo simbolismo é
antiquíssimo, segundo se mostrou no Vol. II, p. 67-68. O mito desse
animal faz parte da tradição hiperbórea, onde o mesmo configura o
poder espiritual, o que, de resto, estabelece uma união mais sólida
entre o esposo de Penélope e os deuses.
O sinal que aparece em segundo lugar na Odisseia é “o poder de
armar o arco”, que, há vinte anos, dormia empoeirado e silencioso na
câmara mais recôndita do palácio real de Ítaca. Após as tentativas
frustradas de cento e oito pretendentes, o único que conseguiu
retesá-lo foi Ulisses. A explicação é simples. Certas armas possuem
um mana, uma energia poderosa que lhes advêm de sua origem.
Além do mais, as coisas têm nome. E como se comentou no capítulo
I, 4, passo em que citamos Luís da Câmara Cascudo, “o nome é a
essência da coisa, do objeto denominado. Sua exclusão extingue a
coisa. Nada pode existir sem nome, porque o nome é a forma e a
substância vital. No plano utilitário as coisas só existem pelo nome”.
Conhecer o nome de alguém ou da coisa é dispor da pessoaou da
coisa. Aí está a segunda parte da explicação. Somente o herói
conhecia o nome de seu arco e, por isso mesmo, pôde conversar com
ele e facilmente armá-lo!
Diz o texto homérico que Ulisses, ao receber o arco, “o inspecionou
em todos os sentidos”, passando-o de mão em mão, isto é, dialogando
com ele.
Quanto ao mana e à energia que possuem as armas é oportuno
lembrar com Marie Delcourt32que o objeto arrebatado ao inimigo ou
a simples posse do mesmo confere uma dignidade a seu detentor,
como as armas de Aquiles ou as flechas de Héracles, tornando-se a
posse dos mesmos um símbolo de investidora. É que normalmente
essas armas têm uma origem divina, como as de Héracles e as de
Aquiles, forjadas por Hefesto. Desse modo, o caráter mágico das
armas conquistadas ou possuídas tem uma larga implicação nos
mitos em que a vitória é prometida não a este ou àquele herói, mas a
seu arco ou à sua espada, seja quem for que tenha “forças” para
dominá-los.
Ora, o arco de Ulisses vinha de Êurito, que o recebera de Apolo. De
origem divina, depositário, portanto, de uma energia poderosa, não
apenas outorgava dignidade a quem o detivesse, mas sobretudo era
fator de vitória para quem pudesse manejá-lo.
Telêmaco deixa esse fato bem claro: se conseguisse armar o arco,
sua mãe jamais sairia do palácio em companhia de um dos
pretendentes33.
A respeito do arco e da flecha a Dra. von Franz escreveu uma
página brilhante que merece ser resumida: “Existe uma antiga lenda
acerca da invenção do arco e da flecha, uma lenda ancestral. Contase que havia um antepassado do arco, cuja esposa era a corda, a qual
com seus braços o rodeava sempre pelo pescoço, num abraço eterno.
Eles assim se mostravam aos seres humanos e foi por isso que o
homem aprendeu a fazer o arco e a flecha para atirar. Os dois
desapareceram, então, na terra. Assim, para a invenção do
instrumento completo, houve primeiro um material da fantasia
arquetípica profundamente inconsciente e foi isso que, segundo
conta a própria história, suscitou a invenção. Estou convencida de
que a maioria das grandes invenções do homem foram deflagradas
por semelhante material oriundo de fantasias arquetípicas. São
sempre atribuídas a poderes e a magia divinos, não só a motivos
utilitários, pois sabia-se que tinham sua origem nos impulsos do
inconsciente. A maior parte das grandes criações do presente surgiu
inicialmente através dos sonhos e de impulsos instintivos”34.
Assim concebidos, o arco e a flecha refletem a sizígia do amor. É
esta, com efeito, a conclusão da psiquiatra junguiana: “Laurens van
der Post possui um pequeno arco-e-flecha feito pelos bosquímanos
do deserto de Kalahari. Ali, se um jovem está interessado numa
jovem, ele faz esse arco-e-flecha. Os bosquímanos podem armazenar
gordura em suas nádegas, a qual forma uma saliência, e em épocas
difíceis eles podem viver dessa reserva de gordura. O jovem dispara a
flecha para atingir essa parte do corpo da moça. Ela retira-a e olha
para ver quem a atirou; se aceita as atenções do rapaz, vai até ele e
devolve-lhe a flecha, mas, caso contrário, quebra-a e calca-a aos pés.
Eles ainda usam o arco de Cupido! Vemos por que razão Cupido, o
deus do amor da Antiguidade, tinha um arco-e-flecha”.35
E semelhantemente compreendemos por que apenas Ulisses era
capaz de armar seu arco e disparar as flechas, não só para liquidar os
pretendentes, mas sobretudo para reconquistar seu grande amor.
A análise da Dra. von Franz é realmente penetrante: “Podemos
interpretar a flecha psicologicamente como uma projeção, o projétil.
Se projeto o meu animus num homem é como se uma parte de minha
energia psíquica fluísse para esse homem e, ao mesmo tempo, me
sentisse atraída por ele. Isso atua como uma flecha, uma quantidade
de energia psíquica que é muito penetrante. De súbito, ela estabelece
uma conexão. A flecha dos bosquímanos do deserto de Kalahari diz à
moça: ‘A libido da minha anima tocou em você’, e ela aceita ou não.
Mas a jovem não guarda a flecha, ela devolve-a; isto é, ele tem de
receber de volta a projeção, mas, através dela, uma relação humana
foi estabelecida. Todo o simbolismo do casamento está aí contido”36.
O terceiro sinal recai sobre o segredo da construção do leito
conjugal. O grande mistério consistia, já se mencionou, num tronco
de oliveira, árvore sagrada, configuração da fecundidade, que servia
de suporte ao leito conjugal, cuja simbologia é uma real complexio
oppositorum, uma reunião dos opostos.
Para Chevalier e Gheerbrant o leito traduz “a restauração no sono e
no amor, mas funciona igualmente como o local da morte. Leito do
nascimento, leito conjugal e leito de morte são objeto de um cuidado
todo especial e de uma espécie de veneração por serem o centro
sagrado da vida em seu estágio fundamental”37. Consagrado aos
Gênios38ancestrais, recebia, por isso mesmo, em Roma, o nome de
lectus genialis, “leito nupcial”. Partícipe da dupla significação da
vida, o leito comunica e absorve a vida. Em várias culturas
primitivas colocavam-se sob o leito os grãos da sementeira e sobre o
mesmo a mortalha. Configurando o elo entre a união sexual e o
trabalho agrícola, o homem funciona em relação ao mesmo como o
gênio da água, o dispensador da chuva, e a mulher como o
receptáculo do sêmen caído do céu. No Antigo Testamento a
conjugação entre leito nupcial, símbolo da vida, e leito de morte, é
bem atestada: Rubem, meu primogênito, tu, a minha fortaleza, e o
princípio da minha dor; o primeiro nos dons, o maior no império, tu te
derramaste como a água, não crescerás, porque subiste ao leito de teu
pai e profanaste o seu tálamo (Gn 49,3-4). Também Jacó, em seu leito
de agonia, a fim de falar aos filhos, sentou-se e colocou os pés para
fora do leito e tendo-se novamente deitado, expirou (Gn 49,32).
Reconhecendo seu leito conjugal, o rei de Ítaca se reencontra com o
gênio de seus ancestrais e continua a desempenhar a função sagrada
da fecundação.
6
Na realidade, Ulisses e Penélope não foram felizes para sempre.
Desvinculando os reis de Ítaca da idealização épica, vamos retomarlhes a trajetória mítica. Consoante uma velha tradição, para expiar o
massacre dos pretendentes, Ulisses, após um sacrifício a Plutão,
Perséfone e Tirésias, partiu a pé e chegou ao país dos Tesprotos, no
Epiro. Ali, como lhe recomendara Tirésias, sacrificou a Posídon, a
fim de apaziguar-lhe a cólera pelo cegamento de Polifemo. Acontece
que a rainha da Tesprótida, Calídice, apaixonada pelo herói,
ofereceu-lhe metade de seu reino. Da união “temporária” do esposo
de Penélope com a rainha do Epiro nasceu Polipetes. Algum tempo
depois, com a morte de Calídice, deixou o reino a Polipetes e retornou
a Ítaca, para os braços de Penélope, que dele tivera um segundo filho,
Poliportes. Existe uma variante, segundo a qual o herói, acusado
veementemente pelos pais dos pretendentes, submeteu o caso à
decisão de Neoptólemo, que, cobiçando-lhe as possessões, condenouo ao exílio. Refugiando-se na Etólia, na corte do rei Toas, desposoulhe a filha e faleceu em idade avançada, o que confirmaria a predição
de Tirésias (Od., XI, 134-136). Esses banimentos que se seguem a um
derramamento de sangue são fatos comuns e bem atestados no mito
dos heróis, conforme se mostrou no capítulo I, 8, do presente volume.
Visam, em última análise, a purificá-los de suas mazelas e de suas
permanentes ultrapassagens do métron. A parte romanesca que, via
de regra, se agrega ao mitologema, pertence ao mundo da fantasia, à
criatividade dos mitógrafos antigos e, não raro, a tradições locais.
Afinal, ter tido um herói do porte de Ulisses como rei, ancestral ou
simplesmente como hóspede ou exilado, falava alto demais, para que
se deixasse de formar um autêntico novelo de variantes e tradições
locais. Uma delas, muito curiosa por sinal, nos conduz até a Itália em
companhia do senhor de Ítaca.
Este, no curso de suas longas viagens, ter-se-ia encontrado com o
troiano Eneias que, sob a proteção de Afrodite, sua mãe, buscava
erguer a Nova Troia, a futura pátria dos Césares. Reconciliaram-se os
dois e Ulisses penetrou também na Itália, estabelecendo-se na
Tirrênia, nos domínios etruscos, onde fundou trinta cidades. Com o
epíteto de Nanos, que significaria Errante em língua etrusca, lutou
denodadamente contra os nativos para consolidar seu reino. Teria
falecido em idade provecta na cidade etrusca de Gortina,
identificada na Itália com Cortona. A morte do herói, em sua terra
natal, ter-se-ia devido a um engano fatal. É que, tendo sabido por
Circe quem era seu pai, Telégono partiu à procura de Ulisses.
Desembarcou em Ítaca e começou a devastar os rebanhos que
encontrava. O velho e alquebrado herói saiu em socorro dos pastores,
mas foi morto pelo filho.
Quando este tomou conhecimento da identidade de sua vítima,
chorou amargamente e, acompanhado de Penélope e Telêmaco,
transportou-lhe o corpo para a ilha de sua mãe Circe. Lá, certamente,
com suas magias, a senhora da ilha de Eeia fez que Telégono
desposasse Penélope e, ela própria, Circe, se casou com Telêmaco...
Afora esses desdobramentos, aliás bem pouco românticos, o que se
deseja acentuar é não apenas a substituição do velho rei, impotente e
destituído de seus poderes mágicos, pelo jovem soberano, cheio de
vida e de energia, mas ainda a morte violenta do herói. No tocante à
permuta do velho rei pelo jovem, uma vez que, da fecundação da
rainha depende a fertilidade de todas as mulheres, da terra e do
rebanho, já se tratou no Vol. I, p. 209. A respeito da morte violenta da
maioria dos heróis, é conveniente enfatizar mais uma vez que, se o
herói, por sua própria essência, tem um nascimento difícil e
complicado; se sua existência neste mundo é um desfile de viagens
perigosas, de lutas, de sofrimentos, de desajustes, de incontinência e
de descomedimentos, o derradeiro ato de seu drama, a morte
violenta, se constitui no ápice de sua prova final. Mas é exatamente
esse desfecho trágico que lhe outorga o título de herói,
transformando-o no verdadeiro “protetor” de sua cidade e de seus
concidadãos, conforme se viu no capítulo I, 4 e 9 deste volume.
É verdade que só se conhece oficialmente um santuário de Ulisses
em Esparta, mas, se a mágica Circe, segundo uma tradição, colocou
Penélope e Telégono na Ilha dos Bem-Aventurados, é bem possível
que lá igualmente esteja Ulisses, certamente em companhia da maga
de Eeia...
Para encerrar este capítulo, uma palavra sobre Penélope. De acordo
com as melhores referências, a rainha de Ítaca era filha de Icário e da
náiade Peribeia. Seu casamento com o protagonista da Odisseia
oscila entre duas tradições. A primeira delas se reporta à influência
de Tíndaro, tio de Penélope, o qual, desejando recompensar Ulisses
por seus hábeis conselhos por ocasião da disputa da mão de Helena,
como se viu no Vol. I, p. 90s, fê-lo desposar a filha de Icário, seu
irmão. Outra versão é a de que Penélope fora o prêmio outorgado ao
herói por ter sido ele o vencedor numa corrida de carros. O amor da
rainha de Ítaca pelo esposo, como já se viu, manifestou-se muito
cedo: quando coagida a escolher entre residir junto ao pai em Esparta,
uma vez que o casamento matrilocal era de praxe, e seguir o marido,
preferiu partir para a longínqua ilha de Ítaca. Tão grande e
decantada foi a fidelidade da princesa espartana ao esposo ausente
por vinte anos, que, se ela mereceu a mais rica adjetivação feminina
de Homero; e se de seus lábios saíram as mais duras palavras que os
pretendentes poderiam ouvir de uma mulher (Od., XXI, 331ss), ele,
em função dessa mesma lealdade, tornou-sedigno de um santuário
em Esparta, famosa pela honradez de suas mulheres.
A partir de Homero, a fidelidade de Penélope se converteu num
símbolo universal, perpetuado pelo mito e sobretudo pela literatura.
Públio Ovídio Nasão dedicou a primeira carta de amor de suas
célebres Heroides à fidelidade da rainha de Ítaca. Após manifestar a
solidão, as saudades que a consumiam e uma pontinha de ciúmes,
escreveu o que muito deve ter inflado a vaidade masculina de
Ulisses: seria dele para sempre!
[...] tua sum, tua dicar oportet;
Penelope coniux semper Ulixis ero.
(Her., 1,83-84)
Sou tua e faço questão de ser chamada tua. Penélope será
sempre a esposa de Ulisses.
Essa imagem de Penélope, contudo, está longe de corresponder a
muitas tradições pós-homéricas. Na longa ausência do esposo, a
rainha teria praticado adultério com todos os pretendentes e um
deles seria pai do deus Pã. Outros mitógrafos julgam que Pã seria
filho dos amores da esposa de Ulisses com o deus Hermes. Uma
versão mais tardia insiste em que Ulisses, tendo sido posto a par da
infidelidade da mulher, a teria banido. Exilada primeiramente em
Esparta, seguiu depois para Mantineia, onde morreu e onde se lhe
ergueu um belo túmulo. Uma variante atesta que o herói a matara
para puni-la do adultério com o pretendente Anfínomo, pelo qual,
mesmo na Odisseia, Penélope mostra acentuada preferência.
Curioso no mito é que não se discute a fidelidade de Ulisses! O
número dos filhos adulterinos do herói era tão grande, que os
genealogistas, à época de M. Pórcio Catão, confeccionaram com eles
títulos de nobreza para todas as cidades latinas da Itália...
Possivelmente, àquela época, illo tempore, adultério era do gênero
feminino!
O retorno urobórico de Ulisses
3. São tantas as referências a Ulisses, que talvez fosse mais didático sintetizá-las e dividi-las
em quatro fases, como o fez, entre outros, Pierre GRIMAL, Dictionnaire de la mythologie
grecque et romaine, Paris: PUF, 1979, p. 468s.
Nascimento de Ulisses:Il., X, 266ss;Od., XI, 85; XV, 363ss; XVI, 119ss; XIX, 395; 416; 482s;
XXIV, 270; 517; Sófocles, Ájax, 190; Filoctetes, 417; 448; 623s; Eurípides, Ciclope, 104;
Apolodoro, Biblioteca, 1,19,16; Ovídio, Metamorfoses, 13,144ss; Higino, Fábulas, 200; 201;
Ateneu, Dipnosofistas, 4,158d. Adolescência e Juventude: Od., II, 46ss; 172ss; IV, 689ss; XIX,
428ss; XXI, 2ss; Sófocles, Ájax, 1111ss; Xenofonte, Cineg., 1,2; Apolodoro, Biblioteca, 3,10,8ss;
Ovídio, Metamorfoses, 13,36; Higino, Fábulas, 81; 95; 96.
Guerra de Troia: Il., I, 308ss; 439ss; II, 637; III, 205ss; 206; IV, 329ss; 494ss; V, 669ss; VI, 30ss;
IX, 169ss; X, 137ss; 272ss; 526-579; XI, 139ss; 310ss; 396ss; 767ss; Od., IV, 244ss; 271ss; 342ss;
VIII, 75ss; 219ss; IX, 159; XI, 508ss; XVII, 133ss; Sófocles, Filoctetes, 5; Eurípides, Hécuba,
238ss; Aristóteles, Poética, 23; Ovídio, Met., 13,193ss; Higino, Fábulas, 101; 102.
Retorno a Ítaca: Od., passim; Hesíodo, Teogonia, 111ss; Ésquilo, Agamêmnon, 814ss; Eurípides,
Ciclope, 141; 412; 616; Dionísio de Halicarnasso, 1,72: 12,16; Ovídio, Met., 14,223ss; Íbis, 567ss;
Higino, Fábulas, 125; 126; 127; Partênio de Niceia, Erótica, 2; 3; 12; Plínio, História Natural,
5,28.
4. Consoante o mito, Autólico, considerado o maior e o mais bem-sucedido larápio da
Antiguidade, havia furtado uma parte do rebanho do mais inescrupuloso e astuto dos
mortais, Sísifo. Foi durante a permanência deste na corte de Autólico, aonde fora reclamar
seu rebanho, que Anticleia se entregara ao “hóspede” de seu pai.
5. CARNOY, Albert. Dictionnaire étymologique de la mythologie gréco-romaine. Louvain:
Éditions Universitas, 1976.
6. Veja-se a opinião discordante de Walde-Hofmann. Lateinisches etymologisches
Wörterbuch. Heidelberg: Carl Winter/Universitätsbuchhandlung, 1938, II, 811.
7. Palamedes, em grego Παλαμήδης (Palamédes) que Carnoy faz provir de παλαμο-μήδης
(palamomédes) e este último elemento de μήδεσθαι (médesthai), “inventar, imaginar,
ocupar-se de”, como o latim mederi, “cuidar de”, donde Palamedesé a inteligência
inventivapor excelência. Filho de Náuplio e Clímene, foi educado pelo centauro Quirão.
Dedicou-se aos atridas de maneira extremada antes e durante a Guerra de Troia. Além de
haver participado de duas embaixadas a Ílion, a primeira com Menelau e Ulisses e a
segunda com Menelau, Ulisses, Diomedes e Ácamas, no sentido de recuperar Helena e evitar
a guerra, prestou inúmeros serviços à armada grega, sobretudo encorajando os soldados
aterrorizados por presságios desfavoráveis, entre os quais um eclipse. Ulisses, todavia, não se
esquecera do aviltamento que lhe impusera Palamedes. Tendo aprisionado um troiano,
obrigou-o, sob ameaça, a escrever uma carta e apresentá-la como se tivesse vindo de Príamo.
Dizia-se na missiva que Palamedes se oferecera ao rei de Ílion para trair os gregos. Subornou,
além do mais, um escravo do herói para que colocasse grande quantidade de ouro sob o leito
do acusado e, em seguida, fez que a carta chegasse às mãos de Agamêmnon. Este entregou o
filho de Náuplio aos gregos, que o lapidaram ou, segundo outra versão, Ulisses e Diomedes
convenceram-no a descer num poço e cobriram-no rapidamente com pedras e terra,
esmagando o companheiro.
A Antiguidade atribuía a Palamedes a invenção dos caracteres do alfabeto ou ao menos de
alguns deles e a disposição dos mesmos na ordem em que ainda estão. Para criar o Y
inspirou-se, conta-se, no voo dos grous. Diz-se igualmente que inventou os números,
difundiu o uso da moeda, calculou a duração dos meses consoante a trajetória dos astros e
criou o jogo de damas e o de dados. Seu pai Náuplio tudo fez para vingar-lhe a inocência:
maquinou para que as mulheres dos principais chefes gregos se ligassem a amantes e, por
meio de falsos sinais, conseguiu que o principal comboio aqueu, que regressava de Troia, se
despedaçasse contra os rochedos nas vizinhanças do cabo Cafareu, ao sul da ilha de Eubeia.
8. Télefo, em grego Τήλεφος (Télephos), talvez de φαίνειν (pháinein), “aparecer, brilhar” ou
um composto, cujo primeiro elemento seria o indo-europeu bha, “brilhar”. Trata-se, ao que
parece, de uma antiga divindade luminosa. Filho de Héracles e de Auge, “a brilhante”, foi
concebido num templo da deusa Atená.
É que Áleo, rei de Tégea, pai de Auge, fora advertido por um oráculo de que, se a filha tivesse
um filho, este mataria os tios, os aléadas, e reinaria em seu lugar. De imediato, o rei
consagrou a filha à deusa virgem Atená e proibiu-lhe casar, sob pena de morte. Mas
Héracles, passando por Tégea, a caminho do reino de Augias, embebedou-se num banquete
que lhe fora oferecido por Áleo, e violentou-a no próprio templo da deusa. Quando o rei
soube da gravidez da princesa, temendo a realização do oráculo, mandou que Náuplio, o
grande navegante e pai de Palamedes, a expusesse no mar. Na viagem para Náuplia nasceu
Télefo. Compadecido de Auge e do recém-nascido, Náuplio vendeu-os a um mercador de
escravos, que os levou para Mísia. O rei local, Teutras, que não tinha filhos, desposou Auge e
adotou Télefo. Segundo uma variante, somente Auge fora vendida e Télefo, exposto num
monte da Arcádia, fora alimentado por uma corça, tendo, mais tarde, encontrado sua mãe
em Mísia.
Com a morte de Teutras, que lhe dera a filha Argíope em casamento, o filho de Héracles
herdou-lhe o trono. Quando da primeira tentativa aqueia de velejar para Troia e de seu
desembarque em Mísia, Télefo lutou bravamente contra os invasores, matando a muitos
deles, mas acabou sendo ferido na coxa pelo grande Aquiles. Oito anos se haviam passado e
agora os gregos estavam reunidos em Áulis; Télefo continuava, no entanto, padecendo dores
terríveis, porque a ferida produzida pela lança de Aquiles não cicatrizara. Consultado o
oráculo, Apolo declarou que “quem o tinha ferido o curaria”. Como os aqueus não soubessem
como chegar a Tróada, Télefo, coberto de andrajos, foi-lhes ao encontro e prontificou-se a
guiá-los, desde que Aquiles o curasse. Como o filho de Tétis não soubesse como agir, Ulisses
interpretou sabiamente o oráculo: Télefo seria curado pelo instrumento que o ferira e não
por quem o manejara. Curado pela ferrugem da lança de Aquiles, o rei de Mísia cumpriu a
promessa: guiou a armada grega até Tróada, limitando-se a isto seu papel na Guerra de
Troia.
Na versão da tragédia Télefo (que tanto Aristófanes condena, As Rãs, 1080ss), de Eurípides,
Télefo, tendo chegado a Áulis, foi preso como espião. A conselho de Clitemnestra, todavia,
agarrou o pequenino Orestes e ameaçou matá-lo, se o maltratassem. Conseguiu assim ser
ouvido e curado, segundo se mostrou no Vol. I, cap. V, p. 90.
9. A respeito das numerosas ilhas citadas por Homero, no Catálogo das Naus, e de sua difícil
identificação, veja-se o magnífico trabalho de Thomas W. ALLEN, The Homeric Catalog of
Ships. Oxford: Oxford University Press, 1921, p. 82ss.
10. Homero nos dá na Ilíada, II, 212-244, um retrato de corpo inteiro de Tersites, o mais feio,
covarde e atrevido dos Helenos que lutaram em Troia. Tersites, em grego Θερσίτης
(Thersítes), talvez provenha de Θερσος (thérsos), forma eólia de θρασύς (thras×s), e significaria
“o impertinente, o descarado”. Era coxo, de pernas tortas, corcunda e calvo. Inimigo figadal
dos reis aqueus, não lhes poupava críticas, justas e injustas. Quando Agamêmnon, para
testar seus comandados, sugeriu levantar o cerco de Troia, Tersites não só acolheu
prontamente a proposta, mas também, numa arenga violenta e cáustica contra o atrida, por
pouco não disseminou a sedição e a desordem no acampamento grego. Ulisses, que
procurava reanimar os chefes e os soldados, tendo-o ouvido, após responder-lhe ao discurso,
surrou-o violentamente com seu cetro de ouro, batendo-lhe nos ombros e na corcunda, até
esguichar o sangue. Tersites, apavorado, sentou-se e começou a chorar. A soldadesca
explodiu em gargalhadas, o que muito serviu para desarmar os ânimos e aliviar a tensão.
Em outra ocasião, quando a linda rainha das Amazonas, Pentesileia, caiu sob os golpes de
Aquiles, ficou tão bela na morte, que o herói de Ftia se comoveu até as lágrimas. Tersites
ridicularizou-lhe a ternura e ameaçou furar a ponta de lança os olhos da rainha morta.
Aquiles, num acesso de raiva (coisa comum aos heróis), matou-o a murros, tendo depois que
purificar-se na ilha de Lesbos.
11. Hécuba, em grego Έκάβη (Hekábe), para cuja etimologia se propõe um elemento ἑκα
(héka) “à vontade, à farta”, e βοῦς (bûs), “vaca”, que, na linguagem familiar, se emprega, às
vezes, por “mulher e mãe”, dada a fecundidade da rainha de Troia. Na Ilíada, XVI, 718-719,
Hécuba, a segunda esposa de Príamo, é filha de Dimas, rei da Frígia, mas em Eurípides, que
gostava muito de inovar também em matéria de genealogia, tornou-se filha de Cisseu, rei da
Trácia, transformando-se esta última na preferida dos trágicos.
Em Homero a figura de Hécuba é apagada e secundária: intervém, certa feita, para moderar
o ímpeto bélico de Heitor, chorar sobre seu cadáver e suplicar à deusa Atená que afaste a
desgraça iminente que ameaçava Troia. A partir das Epopeias Cíclicas, porém, e
particularmente dos trágicos, Hécuba se agigantou, aparecendo como o símbolo da
majestade e da dor.
Célebre por sua fecundidade, conta-se que teve dezenove filhos, número que Eurípides
ampliou para cinquenta, mas o prudente Apolodoro o reduziu a dezesseis. Entre eles os mais
célebres e conhecidos foram: Heitor, o mais velho; Páris ou Alexandre, Deífobo, Heleno,
Polidoro, Pâmon, Polites, Ântifo, Hipônoo, Troilo, Creúsa, Laódice, Políxena e Cassandra.
Quando da queda da cidadela, Hécuba já havia perdido quase todos os filhos, mas um deles,
Polidoro, com muito ouro de Troia, havia sido confiado por Príamo a Polimnestor, rei de
Quersoneso da Trácia. Com a destruição de Ílion e a morte de seu rei, o rei de Quersoneso,
para se apoderar da riqueza, matou Polidoro e lançou-lhe o cadáver nas ondas do mar. O
corpo do jovem troiano, no entanto, foi arremessado pelas vagas nas praias da Tróada no
momento em que Hécuba, que coubera por sorte a Ulisses na partilha dos escravos troianos,
embarcava em direção a Ítaca. Tendo reconhecido o corpo do filho, a alquebrada rainha de
Ílion decidiu vingar-se. Mandou um dos servidores chamar urgentemente Polimnestor sob o
pretexto falso de que sabia onde se escondia um tesouro nas ruínas de Troia, o qual escapara
à pilhagem dos conquistadores. Movido pela ganância, o rei acorreu inerme, acompanhado
de dois filhos. Hécuba, auxiliada pelas cativas troianas, arrancou-lhe os dois olhos,
enquanto as servas lhe matavam os filhos. Para punir a rainha, os aqueus resolveram
lapidá-la e conta-se que, apesar de certa vez, como já se falou, ter sido salvo por ela, Ulisses
atirou-lhe a primeira pedra.
Mais tarde, sob o monte de pedras, em lugar de seu cadáver, encontraram uma cadela com
olhos de fogo. Reza uma outra tradição que Hécuba foi transformada em cadela, quando
fugia dos companheiros de Polimnestor, que procuravam vingá-lo ou ainda que a
metamorfose se operou na nau de Ulisses, quando da viagem para Ítaca, tendo a cadela
Hécuba se precipitado nas ondas do mar. O mito de Polidoro foi igualmente tratado por
Vergílio, Eneida, 3,41ss.
12. O longo retorno de Ulisses que se pretende traçar é baseado na Odisseia, mas é
conveniente não esquecer que o mito sofreu muitas alterações e foi enriquecido, ao longo do
tempo, com muitas variantes e adições. Vamos tentar reuni-las e, na medida do possível,
distribuí-las no corpo da exposição.
13. Os Cícones, Κίκονες (Kíkones), tribo belicosa da Trácia, tinham por herói epônimo a
Cícon, filho de Apolo e de Ródope. Participaram da Guerra de Troia como aliados de Príamo,
o que justifica a destruição de uma de suas cidades por Ulisses. Consoante o mito, foi entre
eles que Orfeu se iniciou nos mistérios de Apolo e foi igualmente, mais tarde, despedaçado
por suas mulheres.
14. Loto, em grego λωτός (lotós), é, segundo A. Carnoy, Dictionnaire étymologique des noms
grecs de plantes, Louvain, Publications Universitaires, 1979, verbete lotos, um empréstimo ao
semítico (hebraico lot, “mirra, suco odorífero”). Os gregos, não se sabe muito bem o motivo,
usaram o termo lotós, “loto”, para designar uma série de vegetais muito diferentes.
Parece que o “lódão” ou “lodo” (Celtis australis) representa o ponto de partida dessas várias
designações. De um lado, o lódão segrega um óleo, como a jujubeira, o cinamomo, o cravoda-índia, denominados lotós; de outro, ele é uma excelente forragem, como o meliloto, o
trevo (Lotus carniculatus) e o Trifolium fragiferum... Muitas dessas plantas possuem um
suco odorífero e são usadas em medicina como emolientes, o que as aproxima da mirra.
Quanto ao lótus do Egito (nenúfar), é bom acrescentar que o mesmo possuía tubérculos com
um sabor doce como o fruto da jujubeira, mas nada tem a ver com o “loto homérico”: o
primeiro é uma planta aquática que floresce nos pântanos, o segundo é um fruto saboroso.
Seja como for, o país dos Lotófagos possivelmente se localizaria “em algum lugar” da costa da
África do Norte.
No tocante aos efeitos amnésticos do loto, só mesmo uma explicação evemerista da
passagem poderia dar conta dos mesmos: após “nove dias” baloiçando nas vagas, os três
companheiros de Ulisses, muito bem tratados pelos Lotófagos, tinham mesmo que esquecer,
ao menos por algum tempo, a hora do regresso “às cascas de nozes” e à fúria de Posídon...
15. Como no Vol. I, cap. X, p. 214ss, já falamos dos ciclopes, do mito de Polifemo e de sua
simbologia, aqui apenas complementamos o mitologema para dar unidade às gestas de
Ulisses.
16. Acerca das aventuras de Ulisses na gruta de Polifemo, Eurípides nos deixou um bem
elaborado drama satírico, O Ciclope (o único que chegou completo até nós), cuja tradução,
com introdução e notas, publicamos recentemente com o título de Teatro grego. EurípidesAristófanes: O Ciclope, As Rãs, As Vespas. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
17. A respeito dos Ventos e de sua belíssima simbologia já se falou no Vol. I, cap. XII, p. 283ss.
18. Na realidade, em momento algum Homero diz explicitamente que os nautas aqueus
foram transformados em porcos. Na Od., X, 239-240, fala-se que os companheiros do herói
“ficaram com a cabeça, voz, pelo e feitio de porco” e nos versos 282-283 se repete que os
mesmos, “no palácio de Circe foram encerrados, como se fossem porcos, em seguras
pocilgas”. Melhor talvez seria dizer que os afoitos marinheiros foram metamorfoseados em
animais diversos, cada um de acordo com seus instintos.
19. A respeito da obra de Lúcio Apuleio, Metamorfoses, em que o jovem Lúcio é
transformado em asno e em cujo bojo se encontra intercalada a novela de Eros e Psiqué, vejase o Vol. II, cap. VIII, Eros e Psiqué.
20. VON FRANZ, Marie-Louise. O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos
de fadas. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 48s [Tradução de Álvaro Cabral].
21. Ibid., p. 47.
22. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 447.
23. LEY, W. & De CAMP, Sprague. Da Atlântida ao Eldorado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961, p.
63 [Tradução de Iria Longo Renault].
24. Partênope, em grego Παρθενόπη (Parthenópe), provém de παρθένος (parthénos), “virgem”.
lançou-se ao mar juntamente com suas irmãs, mas seu corpo foi dar nas costas de Nápoles,
onde se lhe ergueu um túmulo, tomando a cidade o nome de Partênope. Uma outra tradição
conta que Partênope era uma jovem belíssima, originária da Frígia e que se apaixonara
perdidamente por Metíoco. Não desejando romper o voto de castidade, para se punir cortou
os cabelos e se exilou na Campânia, consagrando-se a Dioniso. Ofendida, a deusa Afrodite
transformou-a em sereia.
25. Ibid., p. 73.
26. Na Odisseia, Cila passa por filha da deusa Crateis e do deus marinho Fórcis. Outras
tradições dão-lhe por pais Forbas e Hécate ou ainda Tifão e Équidna. Pela lindíssima Cila
apaixonou-se o imortal e feio Glauco. Como não fosse correspondido, solicitou a Circe que,
por sua vez, o amava, um filtro de amor. A maga aproveitou a oportunidade para se vingar
da rival: atirou ervas mágicas na fonte em que se banhava a jovem e esta imediatamente foi
transformada num monstro de seis cabeças, com três fileiras de dentes cada uma, doze pés e
com seis cães medonhos em torno da cintura. Habitava uma caverna tenebrosa sob um
altíssimo rochedo e devorava a quantos lhe passassem ao alcance.
27. Frente a Cila estava Caribdes, filha de Geia e de Posídon, que era de uma voracidade
insaciável. Quando Héracles passou pelo estreito que separa a Itália da Sicília com o
rebanho de Gerião, Caribdes lhe roubou várias reses e as devorou. Zeus, como punição, após
fulminá-la, lançou-a no mar, transformando-a num monstro, que habitava sob uma
figueira brava junto a um penhasco. Três vezes por dia Caribdes absorvia grande
quantidade de água, devorando tudo que nela estivesse ou flutuasse e outras tantas vezes
vomitava apenas a água.
28. I no, segundo comentário feito no Vol. II, cap. IV, 3, era casada com o rei Átamas. Após o
dramático nascimento de Dioniso, Hermes o recolheu e levou, às escondidas, para a corte
desse rei. Irritada com a acolhida ao filho adulterino de Zeus, Hera enlouqueceu o casal. Ino
lançou seu filho caçula, Melicertes, num caldeirão de água fervendo, enquanto o rei, com
um venábulo, matava o mais velho, Learco, confundindo-o com um veado.
Ino, em seguida, atirou-se ao mar com o cadáver de Melicertes. As divindades marinhas,
todavia, apiedaram-se da infeliz e transformaram-na numa Nereida, com o nome de
Leucoteia, “a Deusa Branca”, talvez a luz da manhã, Melicertes tornou-se igualmente deus,
com o epíteto de Palêmon, convertendo-se mãe e filho em protetores dos navegantes,
sobretudo quando em grandes procelas.
29. Albert CARNOY, op. cit., verbete Pénélope, acha que dificilmente se poderia separar
Πηνελόπη (Penelópe), “Penélope”, de Πηνέλοψ (penélops), “um tipo de ave aquática de cores
brilhantes”. Para o mestre de Louvain esse palmípede possui um nome visivelmente
derivado de pano-: “pântano, brejo”, donde se poderia concluir pela existência de um laço
íntimo entre Odysseús (deus do fogo) e Penélope, igualmente uma forma do deus do fogo
indo-europeu (Hefesto), que era “filho das águas” (apâm napât). Penélope seria, pois, o fogo
que nasceu da água.
30. Traditum est etiam Homerum caecum fuisse at eius picturam, non poesin uidemus (Tusc.,
5,39,14). – Conta-se igualmente que Homero foi cego, mas seus poemas são antes pintura que
poesia.
31. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 699.
32. DELCOURT, Marie. Op. cit., p. 71.
33. Od., XXI, 114ss.
34. VON FRANZ, Marie-Louise. Op. cit., p. 90.
35. Ibid., p. 92.
36. Ibid., p. 92.
37. Ibid., p. 578.
38. Genius, “Gênio” é uma noção, uma “entidade” muito difícil de se precisar. Em si, os gênios
na mitologia romana são seres imanentes não apenas a cada indivíduo, mas a cada lugar, a
cada instituição, como a cidade, a tribo, a sociedade.
Surgem ao mesmo tempo que o homem, o lugar ou a coisa a que estão ligados e têm por
função essencial conservar-lhes a existência. Protetores do nascimento, presidem ao
casamento e, por isso mesmo, havia um gênio do leito nupcial com o fito de provocar a
fecundidade do casal. Personificação do ser, o gênio pessoal acompanha cada homem como
se fora seu duplo, seu demônio, seu anjo da guarda, seu conselheiro e sua intuição, a voz de
uma consciência suprarracional.
Mais que princípio da fecundidade (uma vez que genius, que é da mesma família
etimológica que o grego gevnor, “guénos”, raça, nascimento, era interpretado como qui
gignit, o que gera), o gênio, consoante Georges Dumézil, configurava a personalidade
divinizada do homem, bem como um duplo do eu e até mesmo como um ser distinto que
protege o ser.
Foi preciso, no entanto, uma longa evolução da consciência para se chegar à conclusão de
que o gênio ou os gênios eram aspectos da personalidade de cada ser humano com seus
conflitos internos, tendências, pulsões e ideais.
Curioso, entre os romanos, é que normalmente para a mulher o gênio era substituído por
Juno: se para cada homem existia um gênio, para cada mulher havia uma Juno.
CAPÍTULO X
Uma heroína forte: Clitemnestra
1
No capítulo III do Vol. I de Mitologia grega, quando se falou da
Grécia e de seu mito, mostramos que illo tempore, a saber, a partir do
Neolítico II, entre 3000-2600 a.C., a divindade que lá imperava era a
Grande Mãe, cujas estatuetas representavam deusas de formas
volumosas e esteatopígicas. Iniciamos, portanto, e teríamos
historicamente que fazê-lo, pelo feminino e gostaríamos de fechar
nossos estudos sobre mito grego com o feminino, com uma heroína
de personalidade forte, Clitemnestra, vítima como todas as mulheres
helênicas de uma organização político-social e religiosa que remonta
à família indo-europeia, em cujo seio imperava o despotismo
machista.
Sabemos melhor que ninguém quantas vezes já se mencionou essa
heroína nos três volumes de Mitologia grega, mas o que agora
pretendemos é juntar-lhe os membros esparsos, a fim de apresentá-la
inteira, sofrida, mas grandiosa e destemida1.
Κλυταιμνήστρα
(Klytaimnéstra),
Clitemnestra,
etimologicamente representaria um composto: Κλυτή (klyté),
“ilustre, famosa” e o elemento-mnêstra, compreendido como
feminino de μνηστήρ (mnêstér) “a que corteja”, significando, pois,
Clitemnestra a “famosa galanteadora”. Tal etimologia, defendida por
Carnoy2, parece não estar muito de acordo com as atitudes da rainha
de Micenas. Como existe a forma paralela Κλυταιμήστρα
(Klytaiméstra), talvez se pudesse interpretar este último nome como
a “célebre por sua habilidade”, como o faz Hofmann em seu
Dicionário etimológico da língua grega (Etymologisches Wörterbuch
des Griechischen, 193).
Entre um nascimento complicado e uma morte tragicamente
violenta, como é de praxe para a maioria dos heróis, decorre a vida
agitada e sofrida da esposa de Agamêmnon.
Como se mostrou no Vol. I, p. 117s, foi dos amores de Zeus-Cisne e
de Nêmesis-Gansa ou de Leda que nasceu a rainha de Micenas.
Nêmesis, a deusa da justiça distributiva, que traduz, por isso
mesmo, a indignação pela injustiça praticada, símbolo, por
conseguinte, da punição divina, despertou os desejos de Zeus. Para
fugir ao pai dos deuses e dos homens, a deusa se metamorfoseou em
gansa. O deus se transformou em cisne e a ela se uniu. Em
consequência dessa conjunção, Nêmesis pôs um ovo que foi
escondido num bosque inviolável. Encontrado por um pastor, foi
entregue a Leda, esposa de Tíndaro, rei de Esparta. Desse ovo sagrado
nasceu Helena. A tradição, no entanto, que faz da esposa de Tíndaro
mãe de Helena, narra o mito de maneira análoga. Para escapar às
investidas de Zeus, Leda se teria igualmente transformado em gansa,
mas o senhor do Olimpo, sob a forma de cisne, a ela se uniu. Como já
estivesse grávida de Tíndaro, Leda pôs dois ovos: do formado pela
semente de Zeus nasceram Helena e Pólux, imortais, e do outro,
Castor e Clitemnestra, mortais. Nesse caso, como é de praxe no mito,
os chamados Διόσκουροι (Dióskuroi), os Dioscuros, “filhos de
Zeus”, Castor e Pólux, bem como Helena e Clitemnestra teriam por
pai a Tíndaro e por godfather a Zeus...
Antes mesmo das núpcias solenes de Helena e Menelau, o rei e
senhor de Micenas passou a cortejar Clitemnestra, que, à época, já
estava casada com Tântalo II, filho de Tieste, inimigos mortais dos
dois atridas Menelau e Agamêmnon. Este traiçoeiramente assassinou
Tântalo e ao filho recém-nascido de Clitemnestra, obrigando-a, em
seguida, a aceitá-lo como marido. Perseguido pelos Dioscuros, o
despótico rei de Argos conseguiu refugiar-se na corte de seu sogro, o
conciliador Tíndaro, que a custo conteve a sede de vingança dos
filhos. A contragosto e profundamente magoada, Clitemnestra
seguiu para Micenas. Desse enlace, que começou sob maus auspícios,
vieram ao mundo Ifianassa e Laódice, mais tarde chamadas
respectivamente Ifigênia e Electra; Crisótemis e Orestes3.
Reinava a paz na Argólida. De repente, um fato grave abalou o
reino de Esparta: o príncipe troiano Páris ou Alexandre raptara
Helena, esposa de Menelau. Tendo outorgado o pomo da discórdia a
Afrodite, que por ele competia com Hera e Atená, recebera como
recompensa da deusa do amor a “paixão” incontrolável da filha de
Zeus, segundo se expôs no Vol. I, p. 113. Apesar das tentativas do rei
de Esparta de resolver de maneira pacífica a injúria perpetrada pelo
filho de Príamo, exigindo tão somente o retorno de Helena e os
tesouros levados para Ílion, nada se conseguiu e a guerra se tornou
inevitável. Como todos os reis da Hélade estivessem ligados por
juramento a Menelau, organizou-se uma formidável expedição, cujo
comandante-em-chefe era o rei de Micenas, Agamêmnon. Numa
primeira tentativa, a frota helênica não conseguiu chegar a Tróada,
porque, dispersados por tremenda borrasca, os chefes aqueus
tiveram que regressar a seus respectivos reinos. Foi no decorrer dessa
malograda expedição dos heróis helênicos que Télefo, rei da Mísia,
por onde passara a frota grega, foi ferido por Aquiles. Esse fato será
mais tarde aproveitado por Clitemnestra num primeiro esboço de
vingança contra Agamêmnon, segundo se verá mais abaixo. Oito
anos depois reuniram-se novamente em Áulis, cidade e porto da
Beócia, de onde partiriam para vingar a afronta a Menelau.
O mar, todavia, repentinamente se tornou inacessível aos
navegantes, mercê de uma estranha calmaria. Consultado o adivinho
Calcas, este explicou que o fenômeno se devia à cólera da irascível
Ártemis, porque Agamêmnon, numa caçada, tendo matado uma
corça, afirmara que nem a deusa o faria melhor que ele ou, segundo
uma variante, a corça morta era propriedade da irmã de Apolo. A
única maneira de apaziguar a deusa e ter ventos favoráveis,
prognosticara Calcas, era sacrificar-lhe Ifigênia, filha mais velha dos
reis de Micenas.
Tratava-se de uma exigência terrível. Menelau, no entanto,com a
ideia fixa de recuperar a linda Helena, pressionava o irmão. A
princípio,o rei parecia resistir:
Não, não sacrificarei minha filha!
Contra toda a justiça não obterás satisfação,
castigando uma péssima esposa, enquanto
eu me consumirei em lágrimas, dias e noites,
culpando-me de um crime e de uma injustiça
contra os filhos que gerei.
(Eur., If. Ául., 396-399)
Após muita relutância, o hesitante Agamêmnon, instigado por
Ulisses e pelo frouxo e também indeciso Menelau, acabou por
consentir no sacrifício da inocente Ifigênia. O bem comum o exigia!
Estavam em jogo o prestígio, a reputação, e, mais que tudo, a
vaidade do comandante-em-chefe, do ποιμὴν λαῶν (poimèn laón),
na expressão homérica, “o pastor de povos” da imensa armada grega!
Em Áulis recomeçam as dores de Clitemnestra.
Uma mensagem mentirosa foi mandada à esposa: que se enviasse
Ifigênia a Áulis para desposar Aquiles, o mais renomado dos heróis
aqueus. Aguardavam-na, todavia, as núpcias da morte...
As súplicas da filha dilaceraram o coração paterno:
Aperto teu joelho, como se fora um ramo de suplicante,
abraço-o com o corpo que minha mãe para ti deu à
luz. Não me faças morrer antes da hora. É doce
contemplar a luz. Não me obrigues a ver o que existe
nas trevas.
(If. Ául., 1216-1219)
O rei de Micenas, porém, já estava por demais comprometido.
Tomara a intempestiva decisão de imolar a filha, e agora, sob a
pressão violenta da soldadesca, enlouquecida pela oratória do solerte
Ulisses, já não mais poderia recuar.
Banhada com as lágrimas da dor incomensurável de Clitemnestra,
a jovem princesa foi sacrificada a Ártemis. Não importa que a deusa
tenha substituído a vítima humana por uma corça: Ifigênia não mais
retornaria ao lar, em vida de seus pais.
O olhar de ódio e de repugnância com que a rainha fixa
Agamêmnon, ele só o veria muitos anos depois, em Micenas...
Ao pedido de Ifigênia para que não quisesse mal ao rei, pai e
esposo, Clitemnestra respondeu secamente:
É necessário que, por tua causa, ele corra perigos
terríveis...
(If. Ául., 1456)
O sacrifício de Ifigênia em Áulis reacendeu o rancor e o desprezo
da filha de Tíndaro por seu real consorte. As velas das naus aqueias
se inflaram com o sangue de Ifigênia e as lágrimas de Clitemnestra!
Os vingadores de Helena rasgaram o seio azul de Posídon em direção
a Tróada, mas o destino de Agamêmnon, o poderoso atrida, “pastor
de povos”, estava selado...
Egisto, filho de Tieste com sua própria filha Pelopia, buscava há
muito uma oportunidade para vingar-se dos filhos de Atreu,
Agamêmnon e Menelau, seus primos e inimigos figadais. Esse rancor
antigo remonta ao massacre dos filhos de Tieste por seu irmão Atreu.
Massacre e banquete, porquanto Atreu serviu ao irmão as carnes dos
filhos que Tieste tivera com uma náiade, segundo se mostrou no Vol.
I, p. 89s. Também Náuplio, pai de Palamedes, inconsolável e
profundamente ferido com a morte covarde do filho por ordem de
Agamêmnon ou segundo outra versão nas mãos de Ulisses e
Diomedes, tudo maquinava para vingar-lhe a inocência. Seu ódio se
estendera a todos os chefes gregos e por isso mesmo engendrou
primeiro um estratagema para perdê-los, quando regressavam de
Troia: por intermédio de falsos sinais conseguiu que muitas naus
aqueias se despedaçassem contra os rochedos nas vizinhanças do
cabo Cafareu, ao sul da ilha de Eubeia. Não satisfeito, tudo fez para
que todas as esposas dos heróis ausentes se ligassem amorosamente a
outros príncipes, e eram muitos e antigos os pretendentes... Parece
que só escapou Penélope!
Ajudado por Náuplio, direta ou indiretamente, Egisto acabou
conquistando a esposa de Agamêmnon.
É bem verdade que Clitemnestra já algum tempo, ainda em Áulis,
dera mostras de haver iniciado um plano meticuloso de desforra
contra o marido.
Quando da primeira expedição grega, a armada dispersada por
uma tempestade chegou a Mísia, o rei Télefo lutou com bravura
contra os aqueus em defesa de seus domínios, mas acabou sendo
gravemente atingido por Aquiles. Como o oráculo declarasse que o
soberano só poderia ser curado pela espada do filho de Tétis, o rei
aguardou com paciência que os helenos se reunissem de novo em
Áulis e para lá se dirigiu. Preso como espião, conseguiu, orientado por
Clitemnestra, tomar como refém o pequenino Orestes, e ameaçou
matá-lo, caso Agamêmnon não o mandasse libertar imediatamente e
não convocasse o conselho para ouvi-lo. Engolindo em seco a
humilhação, o poderoso rei de Micenas foi obrigado a satisfazer a
todas as pretensões de Télefo, que afinal foi curado pela ferrugem da
espada de Aquiles e regressou em paz a seu reino.
Conta-se ainda que a decisão de unir-se a Egisto se deveu ao fato de
Clitemnestra ter sido informada de que o esposo estava de tal modo
apaixonado por Criseida, que provocara a ira de Apolo e o
afastamento de Aquiles da luta contra Ílion. Uma outra variante dá
conta da paixão do rei de Micenas por Cassandra.
Ambas as versões podem ter cooperado para a deliberação da filha
de Tíndaro e servido de respaldo, mas a decisão final eclodiu de um
ódio amadurecido e desprezo profundo de Clitemnestra por
Agamêmnon. Ela jamais perdoou ao marido o assassinato de Tântalo
II, o massacre covarde de seu filho recém-nascido, um casamento
despótico e violento e mais que tudo o sacrifício da jovem e inocente
Ifigênia.
Buscou, por isso mesmo, o apoio do atormentado e violento filho
de Tieste, Egisto, que odiava ao rei Agamêmnon tanto quanto ela.
2
Como vimos, além de Ifigênia, Agamêmnon e Clitemnestra eram
pais de Electra, Crisótemis e Orestes. Crisótemis já aparece na Ilíada,
IX, 145 e 287, simplesmente como filha do rei de Argos: foi oferecida
a Aquiles em casamento por Agamêmnon, a fim de que o filho de
Tétis voltasse ao combate, proposta aliás que foi recusada, mas não
está ligada à tempestade que desabará sobre o palácio de Argos. Na
tragédia Electra de Sófocles, Crisótemis surge como participante do
“drama”, mas comporta-se de maneira muito semelhante a Ismene de
Antígona. Ambas, Crisótemis e Ismene, têm a mesma filosofia de
vida: para se viver livremente é necessário curvar-se diante dos
poderosos... Electra, como Antígona, é de outra têmpera. Dobrar-se,
nunca! Seu ódio pela mãe e por Egisto fundamentava-se a princípio
na repulsa pelo adultério de Clitemnestra e na repugnância que
sentia por Egisto, que, além de inimigo antigo e irreconciliável,
ocupava o trono de Agamêmnon, que, longe do lar, combatia em
Troia. Esse rancor aumentou por força das reclamações da rainha,
que acusava diariamente a filha de haver salvo a vida de Orestes,
única ameaça futura à estabilidade dos amantes! Realmente Electra
preservara o irmão de morte certa nas mãos de Egisto. É que o caçula
dos Atridas, carregando o fardo das hamartíai, das faltas de dois
géne, conforme se expôs no Vol. I, p. 95ss, estava destinado a vingar
todos os descomedimentos dos novos reis de Micenas. Ora, essa
ultrapassagem do métron, que já era ancestral, intensificara-se no
presente com o adultério público e notório de Clitemnestra com
Egisto. Temendo-o pelo passado, pelo presente e em função de
planos futuros (o assassinato de Agamêmnon), Egisto, que dominara
a alquebrada rainha, teria sem dúvida eliminado o menino, não fora
a pronta intervenção de Electra, que o enviou clandestinamente para
a Fócida, onde foi criado como filho na corte de Estrófio, cunhado de
Agamêmnon.
O antagonismo entre os reis de Micenas e a corajosa Electra
chegara a tal ponto, que a jovem princesa passou a ser tratada no
palácio como escrava, o que mais ainda lhe acendeu a cólera e o
desejo de vingança.
Após os dez longos anos da sangrenta Guerra de Troia, “o pastor de
povos” foi um dos únicos chefes helênicos que atravessou incólume
o cabo Cafareu e as tempestades que tragaram ou dispersaram pelo
reino azul de Posídon tantas naus aqueias.
Sua chegada a Micenas foi um triunfo. A seu lado, na carruagem,
sentava-se num mutismo ameaçador uma das presas que lhe
coubera na divisão do rico espólio de Troia, a profetisa Cassandra.
Clitemnestra fingida e astutamente recebeu o rei com todas as
honras devidas a um herói triunfador. Na belíssima recriação poética
de Ésquilo, na primeira tragédia de que se compõe a trilogia Oréstia,
a rainha acolhe o esposo com palavras perpassadas de cinismo,
fazendo-o caminhar sobre um tapete de púrpura – símbolo do
sangue que seria derramado – até o interior do palácio, onde, com a
ajuda de Egisto, o sacrifica. Homero apresenta na Odisseia duas
versões para a morte violenta do rei de Micenas. Na primeira,
desejando inocentar os deuses das mazelas dos homens, atribui-a
tão-somente a Egisto. Este, se bem que avisado por Hermes de que a
morte de Agamêmnon provocaria a vingança de Orestes, teimou em
executá-la:
Ah! Grandes deuses! Como os homens incriminam os
imortais. Afirmam que de nós procedem os males,
quando eles, por sua própria loucura e contra a
vontade do destino, sofrem calamidades, foi o que
aconteceu a Egisto, que, contrariando o fado, uniu-se à
legítima esposa do Atreu, a quem assassinou no
regresso, apesar de saber que o aguardava morte
violenta.
(Od., I, 32-37)
Na segunda versão, quem fala é o eídolon de Agamêmnon. Quando
Ulisses, na evocação aos mortos, quis saber do rei de Micenas quem o
levara tão vigoroso ainda para as trevas do Hades, o “pastor de povos”
explicou-lhe que não perecera por vontade de Posídon nem
tampouco em combates, mas por astúcia e perfídia de Egisto e
Clitemnestra:
Quem perpetrou minha morte e meu destino foi
Egisto, que, com ajuda de minha perniciosa mulher,
após me convidar a sua casa para um banquete,
matou-me, como se abatesse um boi na manjedoura.
(Od., XI, 409-411)
Em seguida, continua Agamêmnon, Clitemnestra assassinou
covarde e brutalmente a Cassandra,cujos gritos de dor jamais
deixaram de ecoar-me nos ouvidos...
Ésquilo, em sua tragédia Agamêmnon, já por nós citada, seguindo
por certo uma outra variante, responsabiliza diretamente
Clitemnestra pela morte de Agamêmnon: envolveu-o numa rede e
vibrou-lhe dois golpes. O terceiro, com a vítima já abatida, ofereceu-o
a Zeus salvador:
Descarreguei-lhe dois golpes. Com dois gemidos ele
caiu por terra. Apliquei-lhe então um terceiro,
oferenda votiva a Zeus salvador dos mortos, o Zeus
ctônio.
(Ag., 1384-1387)
Os anciãos, que formam o Coro da tragédia, ameaçam vingar golpe
por golpe a morte do rei. A filha de Tíndaro responde altaneiramente
em nome de Ate, a cegueira da razão, e das Erínias, as vingadoras do
sangue parental derramado: a morte de seu esposo é uma resposta ao
sacrifício de Ifigênia. Enquanto Egisto estiver a seu lado, não há o que
temer!
Com esta afirmação final a rainha de Argos reconhecia Egisto não
apenas como seu legítimo esposo, mas ainda como o novo senhor do
fatídico palácio de Micenas:
Não, pela justiça que hoje vingou minha filha, por Ate
e pelas Erínias, às quais sacrifiquei este homem,
jamais o terror inquietante penetrará neste palácio,
enquanto aqui estiver Egisto para acender o fogo de
meu lar e manifestar-me como dantes a sua
benevolência.
(Ag., 1432-1436)
A uma nova interpelação do Coro, ela ratifica sua atitude:
Não creio indigna a sua morte. Não foi ele quem deu
guarida em sua casa à morte pérfida? Minha filha, a
filha que dele tive, minha Ifigênia tão chorada – o
destino que lhe atribuiu, ele o mereceu. Que não se
vanglorie, pois, no Hades. Pagou com a morte de
espada o crime que cometeu primeiro.
(Ag., 1521-1529)
Segundo se mostrou em Teatro grego4, a Oréstia, no fundo, se
constitui num vasto debate entre o Matriarcado, configurado
principalmente por Clitemnestra e as Erínias, e o Patriarcado,
traduzido sobretudo em Agamêmnon, Electra, Orestes, Apolo e
Atená. Uma luta de morte entre as deusas-mães ctônias, as Erínias, e
os deuses “novos” olímpicos, Zeus e Apolo. Um torneio dialético entre
o Hades trevoso e o Olimpo, entre as Erínias e Apolo, coadjuvado por
Atená, a que nasceu sem mãe, das meninges de Zeus...
Para as Erínias a morte de Agamêmnon é de somenos importância:
a rainha Clitemnestra não se ligava a ele pelo ius sanguinis, pelo
direito consanguíneo e estava de outro lado vingando o sangue
derramado de sua filha Ifigênia. A morte do rei, no entanto, do ponto
de vista do patriarcado, foi um crime abominável, mercê da posição
política, social e religiosa do homem. Tal fato justifica também, de
um outro ângulo, o ódio e a sede de desforra de Electra.
Ferido, o patriarcalíssimo Apolo ordena a Orestes, ainda, junto ao
rei Estrófio, na Fócida, que mate a própria mãe e o amante dela,
Egisto, adúltero e agora criminoso vulgar, porque se apossara,
através de delitos graves, de um reino que de direito e de fato não lhe
pertencia.
Nas Coéforas, segunda tragédia da trilogia Oréstia, o Coro traduz a
importância jurídica e religiosa do homem, quer dizer, do
patriarcado:
Quando se trata de um pai, a quem se deve a vida, a
lamentação dos seus o persegue ampla, irresistível e
esmagadoramente.
(Coéf., 329-331)
Orientado por Apolo, Orestes, acompanhado de seu primo Pílades,
filho de Estrófio, encaminha-se resolutamente para Argos.
Clitemnestra, assaltada por visões noturnas, provocadas pelo eídolon
do esposo assassinado, ordena que Electra se dirija ao túmulo de
Agamêmnon, onde deverá fazer libações para apaziguar a psiqué
irritada do marido. Foi junto ao túmulo paterno que os irmãos se
reencontraram e combinaram a sangrenta represália contra
Clitemnestra e seu amante Egisto:
É uma lei que as gotas de sangue espargidas no solo
reclamam um novo sangue. O assassínio apela para as
Erínias, a fim de que, em nome das primeiras vítimas,
elas tragam nova vingança sobre a vingança.
(Coéf., 400-404)
Para conseguir seu intento, Orestes, com a ajuda e respaldo de
Pílades e empurrado pelo ódio da irmã, emprega o conhecido
estratagema mítico, em que o “morto” anuncia a própria morte.
Iniciando seu plano de cumprimento da justiça patriarcal,
apresentou-se à sua mãe como um “estrangeiro” vindo da Fócida e
encarregado por Estrófio de anunciar a morte de Orestes. A rainha,
livre do medo de ver seus crimes punidos pela inexorável lei do
génos, rejubila-se numa irônica tristeza com a morte do filho:
Agora é Orestes, cujos bons fados o arrancaram do
lodaçal ensanguentado – Orestes a derradeira
esperança de uma grande alegria, capaz somente ele
de salvar o Palácio... aparece e se eclipsa...
(Coéf., 696-699)
Mandado informar de imediato pela esposa, Egisto, que estava no
campo, acorre pressuroso ao palácio para se inteirar de tão
auspiciosos acontecimentos. Foi o primeiro a tombar sob os golpes
de Orestes:
Ai! Ai de mim! Meu senhor foi morto. Ai!
Três vezes Ai! Egisto não mais existe. Abri logo,
tirai os ferrolhos das portas do gineceu.
É de um homem forte que precisamos, mas não
para socorrer a quem não mais existe.
(Coéf., 875-880)
A morte da rainha foi realmente dramática. Vale a pena
transcrever uma ponta do diálogo final entre mãe e filho:
Orestes – Buscava exatamente a ti. Este já prestou contas.
Clitemnestra – Morreste, meu queridíssimo e corajoso Egisto?
Orestes – Amavas este homem? Descansarás então no mesmo
túmulo. Assim, nem mesmo na morte o trairás.
Clitemnestra – Não faças isto, meu filho! Respeita, filho, o seio em
que tantas vezes dormiste, sugando o leite com que te alimentavas!
Orestes – Pílades, que devo fazer? Poderia matar minha mãe?
(Coéf., 892-899)
Tratava-se de uma ordem de Apolo. Empurravam-lhe o punhal,
além do mais, o olhar imperativo e frio de Electra, bem como as
palavras encorajadoras de Pílades.
Orestes decidiu-se: cumpriria o mandato de Lóxias, recordando
para quantos pudessem ouvi-lo a longa história da falência das
Erínias, a vitória pela força do macho sobre a fêmea:
Orestes – Segue-me. Quero degolar-te junto dele.
Enquanto vivia, tu o preferiste a meu pai.
Dorme, pois, com ele na morte:
amaste este homem, odiando a quem devias amar.
(Coéf., 904-907)
Prestes a ser degolada, as palavras da rainha são uma terrível
ameaça ao filho:
Clitemnestra – Vê bem. Cuidado com as cadelas furiosas de uma
mãe!
(Coéf., 924)
Essas “cadelas furiosas”, isto é, as Erínias, miticamente as
vingadoras do sangue parental derramado, sintetizam o próprio
eídolon da mãe assassinada que atua sobre o matricida de forma
compulsivamente arrasadora. Públio Vergílio Marão (70-19 a.C.),
inspirado talvez em Ésquilo e Eurípides, mostra em sua Eneida que
as Erínias traduziam a psiqué enfurecida de Clitemnestra:
aut Agamemnonius scaenis agitatus Orestes,
armatam facibus matrem et serpentibus atris cum
fugit ultricesque sedent in limine Dirae.
(En., 4,471-474)
– ou como Orestes, filho de Agamêmnon, que se
representa em cena fugindo de sua mãe armada de
archotes e de negras serpentes, enquanto as Fúrias
vingadoras o cercam nos limiares.
Assassinando a própria mãe, Orestes é imediatamente “envolvido”
pelas Erínias que só ele vê. Picado pelo aguilhão das “cadelas”, dirigese como um louco para o omphalós, o umbigo do Oráculo de Delfos,
para ser purificado pelo patriarcalíssimo deus Apolo.
Enquanto o matricida dialogava com Apolo no interior do templo,
as Erínias caíram em sono profundo... Mas lá estava o infatigável
eídolon de Clitemnestra para aferroá-las e despertá-las:
Clitemnestra – Ouvi-me: nestes lamentos vai o grito
de minha alma. Despertai, deusas ctônias. Do fundo
de vossos sonhos sou eu Clitemnestra que vos chamo.
(Eum., 114-116)
Orestes não conseguira libertar-se das “cadelas”! Apolo tomou, por
isso mesmo, a única providência cabível: instituiu um julgamento
ultrapatriarcal para o matricida, cujo crime seria apreciado pelo
Areópago, o augusto tribunal ateniense. Seus advogados seriam o
próprio deus de Delfos e Atená, a que nasceu sem mãe, das meninges
de Zeus...
As Erínias (o eídolon de Clitemnestra) argumentaram
ameaçadoramente e os votos dos doze íntegros magistrados
atenienses terminaram empatados. Atená, a patriarcal, não se
perturbou. Ela teria a palavra final. Seu discurso é tipicamente
“falocrático”:
Atená – A mim pertence a última palavra.
Juntarei meu voto aos que são a favor de Orestes.
Não tive mãe que me desse à luz.
Sou a favor do homem, pelo menos até o casamento.
Com todas as minhas forças sou pelo pai. Desse modo,
não levarei em consideração o assassinato de uma
mulher, que matou o esposo, guardião de seu lar. Para
que Orestes seja absolvido, basta que haja empate nos
sufrágios.
(Eum., 734-741)
E, com efeito, era bastante que os votos dos juízes humanos se
igualassem, porque a deusa colocou na urna o calculus Mineruae, o
“voto de Minerva”, capaz de dirimir quaisquer dúvidas em
julgamentos...
Livre “exteriormente” das Erínias, quitado da pena, mas não da
culpa, o matricida atormentado por suas erínias internas pede
orientação a Apolo acerca do que lhe caberia fazer a seguir. A Pítia
respondeu-lhe que, para libertar-se da manía, da loucura, da
“opressão interna” do eídolon de Clitemnestra, deveria dirigir-se a
Táurida, na Ásia Menor. Lá teria que descobrir e apossar-se da
estátua de Ártemis, cuja guardiã era Ifigênia, sua irmã, que fora
arrebatada no momento de ser imolada por Agamêmnon.
Não parece difícil, seguindo os meandros do mitologema, esboçar
um juízo de valor acerca de Clitemnestra e Electra. Ambas são
vítimas do despotismo patriarcal. A rainha de Micenas é coagida a
desposar aquele que lhe trucidou o marido e o filho recém-nascido.
Como se isso não bastasse, o novo senhor deixou-se arrastar pela
hýbris e ofendeu a vingativa deusa Ártemis. No intento de
apaziguar-lhe a cólera e ter ventos favoráveis para uma empresa
gigantesca, onde brilharia a vaidade pessoal do comandante-em-
chefe, atraiu mentirosamente a esposa até Áulis. Em vez de núpcias
solenes com Aquiles, a rainha assistiu ao sacrifício de sua filha
Ifigênia. A união Clitemnestra-Egisto não é apenas um ato de vindita
de ambos contra Agamêmnon, mas, em relação à filha de Tíndaro,
tem-se a impressão de tratar-se de uma busca desesperada de apoio e
segurança para sua carência afetiva. Diga-se, de passagem, que a
decisão de Clitemnestra de unir-se a Egisto custou muito caro à sua
honorabilidade. Como sua irmã Helena, raptada por Páris, a esposa
de Agamêmnon transformou-se na literatura em prostituta vulgar.
Ainda no século I d.C., ao menos em Roma, o nome da rainha de
Micenas era sinônimo de mulher fácil, que vendia por bagatela o
próprio corpo. Marco Fábio Quintiliano (séc. I d.C.) , em sua obra De
Institutione Oratoria (Formação do Orador), explicando o conceito
de “alegoria”, afirma que o orador Célio, comparando Clódia5a
Clitemnestra, dizia ser aquela uma quadrantariam Clytaemnestram
(Inst. Orat., 8,53) isto é, uma Clitemnestra que se possui por um preço
ínfimo.
ELECTRA, em grego Ήλέκτρα (Eléktra), da raiz indo-europeia
ulek, sânscrito ulkâ, “meteoro, incêndio”, é a brilhante, a que se
incendeia e incendeia de ódio... Com seu temperamento forte
rebelou-se contra a mãe por ter-se unido ao maior inimigo da
família, e, fato grave, ainda em vida de Agamêmnon. Egisto, que
dominara a angustiada Clitemnestra, transformou-lhe a filha numa
verdadeira escrava do palácio. Na tragédia Electra, de Eurípides, a
princesa de Argos é obrigada a casar-se com um humilde camponês.
Além da repressão, a humilhação. Já que se está falando da intrépida
irmã de Orestes, talvez não fosse de todo fora de propósito
transcrever a interpretação de J. Chevalier e A. Gheerbrant a respeito
do que Jung denominou Complexo de Electra:
“O complexo de Electra, tal como o conceitua a psicanálise,
corresponde ao complexo de Édipo, porém com matizes femininos.
Não é Electra quem mata a própria mãe: ela induz o irmão Orestes ao
matricídio, guiando-lhe a mão armada com o punhal. Depois de uma
fase em que se fixa afetivamente sobre a mãe, na primeira infância, a
menina apaixona-se pelo pai e tem ciumes da própria mãe. Em
seguida, se o pai não lhe corresponde aos anseios, ou ela tende a
virilizar-se para seduzir a mãe, ou então, repelindo o casamento,
inclina-se para o homossexualismo. Como quer que seja, Electra
simboliza uma paixão dirigida aos pais, até igualá-los pela morte.
Neste como que equilíbrio fúnebre, implorando aos deuses ‘justiça
contra a injustiça’, Electra recompõe o símbolo do mito e restaura a
Harmonia requerida pelo Destino”6.
De qualquer forma, com Clitemnestra se fecha simbolicamente o
destino da mulher grega. Seu grande mérito, a partir de então, como
gostosamente diz o meticuloso Iscômaco a Sócrates (Xenofonte,
Econômico, 7,28,35) seria nada ver, nada ouvir a seu redor, nada
comentar e muito menos perguntar... Alienada e submissa, sua função
precípua era dar ao marido, o mais depressa possível, um herdeiro,
óbvia e gramaticalmente do sexo masculino...
3
Como se está fechando este terceiro volume com uma heroína, a
mulher Clitemnestra, creio não ser de todo improcedente fazer uma
referência ao trabalho sério e profundo de Jean Shinoda Bolen7. Para
esta arguta psiquiatra norte-americana cada uma das deusas é
projeção dos arquétipos do sexo feminino, estampando, por isso
mesmo, cada mulher uma ou mais características que aparecem em
uma deusa ou em mais de uma. Para individualizar bem esses
arquétipos, Shinoda divide as seis deusas olímpicas8em três grupos
básicos, havendo, no entanto, indiscutíveis inter-relações entre eles.
O primeiro conjunto é formado pelas três grandes deusas virgens,
isto é, por Atená, Ártemis e Héstia. São as denominadas “deusas
invulneráveis”, porque jamais se deixaram dominar e reprimir por
seus pares masculinos olímpicos ou por quaisquer mortais. O
segundo núcleo é constituído por Hera e Deméter-Core ou DeméterPerséfone9: são as “deusas vulneráveis”, por terem sido humilhadas,
violentadas e raptadas por seus ilustres esposos e amantes. Afrodite
fecha os “arquétipos”. Trata-se, na feliz caracterização da psiquiatra
supracitada, de uma deusa “alquímica”, por estar sujeita a múltiplas
transmutações.
Vamos repassar brevemente cada uma das seis imortais e tentar
com o auxílio indispensável da obra da Dra. Shinoda Bolen levantarlhes os arquétipos e trazê-los de volta às suas legítimas detentoras, as
mulheres. Em seguida procuraremos “encaixar” nos mesmos as duas
heroínas, as duas mulheres, de que vimos tratando neste capítulo:
Clitemnestra e a indomável Electra.
Comecemos pelas “vulneráveis”. Hera, a sétima esposa de Zeus, a
“esposa canônica”, após trezentos anos de lua-de-mel, foi
patriarcalmente vítima dos amores extraconjugais do marido. Uma
pletora de amantes mortais e imortais preencheu a ociosidade dos
dias intermináveis do senhor do Olimpo. De Deméter a Leto (entre
outras) às ninfas e destas a simples “mortais” (ao menos no mito
popular), como Dânae, Europa, Alcmena, Leda, Sêmele... nenhuma
deusa, ninfa ou mortal, que Zeus desejou, pôde escapar-lhe ao furor
eroticus. Tantas infidelidades fizeram de Hera, a guardiã dos amores
legítimos, uma divindade de fisionomia séria, dura e de
temperamento irritadiço e explosivo. Quanto mais humilhada e
reprimida por seu real consorte, tanto mais ciumenta e vingativa se
tornava, movendo tenaz perseguição contra as amantes e filhos
adulterinos do pai dos deuses e dos homens. Companheira fiel e leal,
não poderia admitir que seu marido lhe desonrasse o epíteto de
protetora inconteste do casamento e, portanto, dos amores legítimos.
A mulher que possui o arquétipo de Hera sente-se “incompleta”,
desamparada e carente sem um companheiro. Casando-se, faz do
marido, a quem é fiel em grau superlativo, o centro de todas as suas
atenções. O trabalho dentro ou fora do lar não lhe diz muito: o tempo
há que ser dedicado a seu rei, que se constitui para ela em prioridade
absoluta. Excelente esposa, é excelente mãe, uma vez que os filhos
lhe completam o universo doméstico.
Como faz do casamento o dia mais feliz de sua vida e do marido o
centro de sua existência, não pode admitir que qualquer
contratempo lhe venha perturbar a doce paz do lar. A uma traição do
cônjuge ela responde, as mais das vezes, não com outra, mas com
uma profunda amargura. Torna-se, de imediato, mal-humorada,
irritadiça e nervosa. A sequência de infidelidades ou a separação
arrastam-na para a mais profunda depressão, que pode até mesmo
provocar a tragicamente denominada Síndrome de Medeia, cuja
vingança sangrenta contra os filhos por causa da perfídia de seu
esposo Jasão se mostrou no capítulo V deste volume.
A vulnerável Hera-mulher traduz, pois, a fidelidade consumada,
mas que não desculpa arranhões em seu hieròs gámos, quer dizer, na
sacralidade de seu matrimônio.
Deméter e Core ou Perséfone complementam e completam o rol
das vulneráveis. Após várias experiências matrimoniais, Zeus forçou
Deméter a unir-se a ele. Dessa paixão unilateral nasceu Core ou
Perséfone. Como se isto não bastasse, a deusa da terra cultivada, a
deusa-mãe por excelência, foi cortejada por Posídon. Para fugir aos
fogosos desejos do deus-cavalo, ela disfarçou-se em égua, mas o
futuro deus do mar, tomando a forma de garanhão, fê-la mãe do
cavalo Aríon e de uma filha (possivelmente um ser monstruoso),
cujo nome só era conhecido pelos Iniciados nos Mistérios de Elêusis.
O povo dava-lhe o simples epíteto de Δέσποτινα (Déspoina), a
Senhora, conforme se narrou no Vol. I, p. 300. A grande dor e paixão
de Deméter, todavia, foi o rapto de sua filha Core por Hades ou
Plutão, rei do mundo das trevas, nas entranhas da terra, segundo se
expôs no mesmo Vol. I, p. 305ss. Esse rapto provocará uma longa
busca de Core por Deméter e, em seguida, uma total reclusão desta
última até que a filha lhe fosse devolvida ao menos por oito meses a
cada ano. Além da violência do rapto, Core sofreu uma outra no
reino dos mortos: Plutão, para mantê-la no mundo das sombras,
obrigou-a a comer uma semente de romã.
Como já se falou exaustivamente no supracitado Vol. I, p. 284ss do
mito das “duas deusas”, do rapto de Core e de seu simbolismo e
consequências, vamos relembrar aqui apenas que Deméter é a terra
rasgada pela charrua patriarcal. Em seu seio ferido será plantada a
semente, mas Κόρη (Kóre), Core, o novo fruto, será raptada e levada
para as trevas estéreis do Hades. Foi necessária uma atitude passiva,
mas corajosa, a reclusão de Deméter, negando-se a gerar novos frutos,
para que a “semente Perséfone”, escondida por certo tempo no seio da
mãe-terra, dela emergisse para gerar novos e sadios rebentos.
Como acentua com precisão Jean Shinoda Bolen, “estas três deusas
(Hera, Deméter e Perséfone) em seus respectivos mitos foram
raptadas, dominadas à força ou humilhadas por seus pares divinos.
Cada uma sofreu as consequências dolorosas do rompimento ou da
desonra de uma ligação amorosa. E cada uma reagiu a seu modo:
Hera, com a violência, o ódio e o ciume; Deméter e Perséfone, com a
depressão. Cada qual, porém, estampou sintomas que se podem
caracterizar psicologicamente como doença. Mulheres em que se
manifestam esses arquétipos são também vulneráveis”10.
Deméter é indiscutivelmente o arquétipo materno. Traduz o
instinto maternal realizado por inteiro na gravidez ou no esforço
total para alimentar física, psicológica ou espiritualmente os seus
semelhantes. Esse poderoso arquétipo pode delinear o caminho de
uma mulher através da vida; pode se constituir num impacto
significativo para os outros, mas pode de igual maneira predispô-la à
depressão, quando sua necessidade de “nutrir” for impedida ou
rejeitada. A mulher-Deméter se realiza de maneira concreta na
maternidade, mas essa maternidade pode não ser biológica. Assim,
esse tipo de mulher, quando não se casa ou não tem filhos, embala
seus sonhos maternos profissionalmente como professora, assistente
social, conselheira, terapeuta, pediatra, mas a ideia central é sempre a
de estar “aleitando”.
Quando Plutão raptou Core, Deméter se retraiu e a terra deixou
logo de produzir seus frutos. De modo idêntico o aspecto destrutivo
da terra-mãe consiste numa passiva retração, ao contrário de Hera e
Ártemis, que ativamente comandam a vingança através do ódio e da
perseguição implacável a seus opositores e inimigos. Deprimida, a
mulher-Deméter “enclausura-se” e deixa sem “aleitamento” aqueles
que a cercam ou que dela dependem.
Core foi raptada, violentada e humilhada por Plutão. No Hades
tornou-se Perséfone, quer dizer, uma deusa madura, como esposa de
Hades e rainha dos mortos, mas sempre pronta para atender a
quantos dela necessitassem.
Diferente de Hera e Deméter, que traduzem padrões arquetípicos
solidamente acoplados a uma ternura instintiva, Core-Perséfone,
como uma personalidade-padrão, mostra-se muito submissa.
Quando é Core-Perséfone que estrutura a personalidade, ela
predispõe a mulher não para agir, mas para ser conduzida por
outrem, vale dizer, para ser complacente na ação e passiva nas
atitudes. Perséfone, enquanto Core, faz que a mulher tenha com
frequência o comportamento de uma puella, de uma jovem, de uma
menina. Na realidade, a filha de Deméter se polariza como Core, a
jovem, e como Perséfone, a deusa madura, rainha do Hades. Esta
dualidade está igualmente estampada em dois padrões arquetípicos:
a Core-mulher, uma espécie de puella aeterna, e a Perséfone-mulher,
mais adulta, mais amadurecida, sem deixar, porém, como filha de
Deméter, de ser uma incansável prodigalizadora. Não raro, os dois
aspectos se aglutinam numa só mulher.
As três “invulneráveis”, como já se adiantou, são Atená, Héstia e
Ártemis.
ATENÁ, nascida das meninges de Zeus, “a filha do pai”, identifica-se
como deusa da inteligência, da paz, das artes e dos artistas, sobretudo
dos tecelões e artesãos. Era a única das olímpicas a aparecer armada:
usava capacete, escudo e lança. Para manter a paz, configurada pela
oliveira, árvore que lhe era consagrada, estava sempre pronta para
ostensivamente defender a tranquilidade de sua querida cidade de
Atenas e de todos os helenos. Estrategista, conservadora e apegada às
soluções práticas, simboliza a mulher que se rege mais pela razão do
que pelos arrebatamentos afetivos. Mais refletida que impulsiva, a
mulher-Atená age mais como animus. Diferentemente de Ártemis e
de Héstia, prefere a companhia dos homens, aos quais não raro serve
de segura e discretíssima confidente. Atená protegia de preferência
os grandes heróis, segundo nos é dado observar na Ilíada em relação
a Aquiles; na Odisseia, onde se converte na bússola de Ulisses em seu
longo e tumultuado retorno aos braços de Penélope e na Oréstia de
Ésquilo, em que se postou ao lado de Orestes, para defendê-lo do
assédio das Erínias. A mulher-Atená configura-se mais como amiga
e íntima dos homens do que das mulheres. Tem uma forte atração
pelo poder e pelo mando, o qual para ela é “o melhor afrodisíaco”, na
expressão um pouco exagerada do ex-Secretário de Estado NorteAmericano Henry Kissinger, citado por Shinoda. Por isso mesmo,
para esse tipo de mulher, o sexo, por vezes, é mais uma das funções
físicas, quando não, um “ato calculado”. Desse modo, a mulherAtená, apesar de sua estreita ligação com os “heróis”, pode tornar-se
com mais facilidade uma homossexual, característica que procura a
todo custo mascarar com o sigilo.
HÉSTIA é propriamente uma deusa anônima, por isso que ἑστία
(hestía) designa aquilo que ela representa, a lareira. Como se
mostrou no Vol. I, p. 291ss, Héstia é a lareira em sentido estritamente
religioso ou, por outra, é a personificação da lareira colocada como
um verdadeiro mandala (antigamente a lareira era redonda) no
centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira no meio da
habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira
como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo.
Embora Afrodite, o amor que não se aquieta, tenha desencadeado
os apetites de Apolo e Posídon, Héstia soube resistir-lhes e obteve de
Zeus a prerrogativa de guardar a virgindade para sempre. Jamais foi
estatuada ou pintada, por já estar retratada de corpo inteiro no lume
vivo no centro da casa, do templo e da cidade. Héstia é uma espécie
de presença tátil na chama que ilumina e aquece.
Enquanto os outros deuses viviam num vaivém constante, Héstia
manteve-se solitária, silenciosa e extaticamente sedentária no vasto
Olimpo. Nada, porém, é possível fazer sem ela. Era uma onipresença,
do berço ao túmulo. Ao nascer, a criança era purificada sobre sua
lareira; ao casar, as “tochas de Héstia” iluminavam o caminho dos
nubentes, que, ao penetrar em seu novo lar, acendiam a lareira; ao
morrer, o corpo era consumido catarticamente pelas chamas da mais
pura das deusas. Em Roma, com o epíteto de Vesta, seu fogo sagrado,
ciosamente guardado pelas Vestais, unia todos os cidadãos numa só e
mesma família.
A presença da deusa Héstia no lar e no templo era fundamental
para a vida do dia a dia.
Como presença arquetípica na personalidade da mulher, a deusa
do fogo sagrado proporciona-lhe inteireza e totalidade, alicerçadas
numa profunda experiência subjetiva.
Solitária e tranquila, Héstia é o fogo que alimenta os “interiores”.
Sua presença no arquétipo da mulher faz que esta execute suas
tarefas domésticas mais como uma atividade significativa e
prazerosa do que como uma incumbência árdua e desagradável. A
boa ordem e arrumação de sua casa traduzem-lhe a profunda
harmonia e equilíbrio interior. A mulher-Héstia foge às
aglomerações, à política, aos aplausos, às disputas e querelas.
Introvertida e amante da solidão, é autossuficiente, diferenciando-se
singularmente, sob esse aspecto, de Core-Perséfone. Arredia e
“monástica”, prefere sorrir “para dentro”. Como sabe cultivar o
silêncio, tem grande facilidade para concentrar-se. Em geral é muito
piedosa e pode consagrar a vida a ordens ou congregações religiosas,
cuja norma básica sejam o silêncio, a reflexão e a meditação.
O sexo para ela não é algo essencial. Quando existe, é necessário
primeiro “iniciá-la”. Excelente dona-de-casa, ótima “companheira”,
não considera as possíveis infidelidades do marido como um
problema de crucial importância. ÁRTEMIS, filha de Zeus e Leto, é a
irmã gêmea de Apolo. Do mito dos irmãos da ilha de Delos já se falou
o suficiente no Vol. II, capítulo 2. Tendo nascido antes de Apolo e
ajudado a mãe nos trabalhos de parto, ficou tão horrorizada com o
que sofreu Leto, que pediu ao pai o privilégio de permanecer para
sempre virgem. Deusa da caça e da lua, é representada com vestes
curtas, pregueadas, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens
espartanas. Como Apolo, a quem muitas vezes está associada no mito
e no culto, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e certeiras.
Como deusa da lua, empunha tochas e, por vezes, tem a cabeça
encimada pelo astro da noite e coroada de estrelas. Acompanhada
pelas ninfas e pelas virgens hiperbóreas, percorre selvas e
montanhas. De seu séquito fazem parte igualmente vários animais
selvagens, que lhe simbolizam as qualidades: veados, corças, lebres,
leoas, javalis... O urso traduz bem seu papel de protetora das moças.
As jovens púberes consagradas à “deusa selvagem” eram chamadas
ἄρκτοι (árktoi), ou seja, ursas, durante a adolescência.
Ártemis, como deusa da caça e da lua, era a personificação da total
independência do espírito feminino. O arquétipo por ela
representado capacita a mulher a buscar seus objetivos em terreno
de sua livre escolha, conferindo-lhe uma habilidade inata para,
através da competição, afastar de seu caminho a quantos lhe desejam
embargar os passos.
A deusa caçadora é o protótipo da divindade que desconhece
obstáculos. Embrenha-se nas florestas e vai em busca de sua presa.
Vigorosa e destemida, a irmã de Apolo traduz qualidades idealizadas
por mulheres ativas que não levam em conta as opiniões masculinas.
A mulher-Ártemis, com frequência, se deixa atrair por homem que
possua atributos estéticos, criativos e saudáveis ou pendores
musicais, como seu irmão Apolo. Não se deixa, todavia, seduzir pelo
patriarcal Me Tarzan, you Jane, como agudamente faz notar
Shinoda. Prefere viver com um homem a casar-se com ele. Para ela o
casamento espelha com precisão seu conteúdo semântico em latim,
iugum, jugo, dependência, prisão... Para ela o sexo muitas vezes é mais
um esporte recreativo e uma experiência física do que uma
intimidade emotiva. Normalmente se frustra no casamento e separase, mas prossegue buscando seu Apolo, até que encontre alguém que
lhe respeite o espírito independente, inquixeto, competitivo e
compartilhe de seu temperamento contestador. O lar não lhe causa
muita preocupação. Vive mais lá fora, lutando em quaisquer selvas
por suas ideias e ideais. Excelente mãe, mas não exageradamente
carinhosa, educa os filhos dentro de um enfoque de liberdade e
independência, ensinando-lhes desde cedo como defender-se das
múltiplas feras que encontrarão pelos camixnhos e descaminhos da
vida.
Sua independência, ditada por seu espírito feminista, predispõe-na
a ser agixtada e participante de movimentos que visem a qualquer
libertação.
O homem, que não conseguiu desenvolver em si mesmo essas
característixcas da mulher-Ártemis, fica fascinado com tanta
energia, inteireza e força de vontade. “Coloca-a, por isso mesmo, num
pedestal, em função de qualidades que ele não tem e julga incomuns
no sexo feminino”11.
A deusa do amor total encerra estes arquétipos.
Para Homero AFRODITE é filha de Zeus e da ninfa Dione.
Consoante Hexsíodo, porém, como se enfocou no Vol. I, p. 226ss, a
deusa nasceu de uma espumarada, resultante do esperma de Úrano,
mutilado por Crono. Essa origem duxpla da mãe de Eros não é
estranha à diferenciação que se estabeleceu entre Afroxdite Urânia e
Pandêmia, significando esta última etimologicamente a “venerada
por todo o povo” e, em seguida, com discriminação filosófica e moral,
“a popuxlar, a vulgar”. Platão, no Banquete, 180s, estabelece uma
rígida dicotomia entre a Pandêmia, a vulgar, a inspiradora de amores
comuns, carnais, e a Urânia, a celesxte, a inspiradora de um amor
etéreo, superior. Esse “amor urânico”, desliganxdo-se da beleza do
corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é
partícipe do eterno.
Para uma visão da grande divindade do amor como arquétipo, no
entanto, essas distinções não têm, aqui no momento, maior
importância.
Afrodite é a deusa da beleza e do amor. Embora tenha
características em coxmum, como não poderia deixar de ser, tanto
com as deusas vulneráveis (Hera, Deméter-Core ou Deméter-
Perséfone) quanto com as virgens, as invulneráveis (Atená, Héstia,
Ártemis), a deusa do amor não pode ser classificada em nenhum dos
dois grupos. A mãe de Eros assemelha-se às vulneráveis, porque
também ela foi mãe, rasgada, por conseguinte, pela charrua
patriarcal, e confraterniza com as invulneráveis, porque jamais se
deixou dominar nem tampouco humilhar por seu marido ou
amantes divinos e humanos. Afrodite, como observa Shinoda, é uma
deusa alquímica, sujeita, por isso mesmo, a múltiplas transmutações.
Com efeito, para chegar ao ouro, símbolo também do amor, é
necessário que a matéria inferior se despoje das gangas impuras até
atingir uma pureza total. Na realidaxde, o ouro é o “aperfeiçoamento
de metais inferiores”.
Pois bem, χρυσή (khrysé), áurea, de ouro, é um epíteto comum da
deusa do amor, segundo se pode ver na Ilíada, III, 64 e em várias
outras passagens dos poxemas homéricos.
O arquétipo de Afrodite rege o fascínio da mulher pelo amor, a
beleza, a senxsualidade, a sexualidade. Assim, sob o império de Eros,
a mulher pode tornar-se criativa e fecunda.
A mulher-Afrodite é ágil, alegre, expedita. Desse modo, tudo
quanto não a envolve emocionalmente não lhe interessa. Ama o
movimento e a versatilidade. Sua vocação está voltada para a arte:
música, dança, literatura, teatro...
Casa-se, via de regra, movida pela paixão e sexualidade, mas
raramente suas uniões são estáveis. Vive buscando o homem ideal, o
ouro afinal... Quando o enxcontra, segura-o e guarda-o só para si! Se
ele “falha”, arma-se com o arquétipo de Hera e parte com destemor,
segundo se mostrou no Vol. I, p. 229, para a vinxgança e a destruição
de suas rivais.
Apesar de ser considerada pelos filhos como “mãe carismática”,
sente difixculdade em lhes dar a atenção merecida, pois a vida de
uma mulher-Afrodite é uma espécie de moto-contínuo. Para ela Eros
é práxis...
Em síntese: se em Hera a ênfase deve recair na esposa; em Deméter,
na mãe; em Core-Perséfone, numa extrema submissão e dependência;
em Atená, no homem da casa; em Héstia, na pacífica e silenciosa
guardiã do lar; em Ártemis, na rebeldia e participação, Afrodite pode
ser etiquetada como o amor-em-ação.
O que se procurou mostrar, de maneira sucinta, com base em
Goddesses in Everywoman, é que as características fundamentais de
cada mulher estão em coxnexão estreita com a deusa ou as deusas a
que ela se assemelha.
A Dra. Jean Shinoda Bolen, após estudar e analisar exaustivamente
as seis grandes deusas olímpicas, encaixou-as em vários arquétipos,
pois que a mulher não reflete apenas uma deusa e nem tampouco
uma deusa reproduz apenas um arquétipo... A maior das feministas
da Antiguidade clássica, Safo de Lesbos (séc. VII a.C.), já confessava:
εὔκαμπτον γὰρ ἄει τὸ θῆλυ
(eúkampton gàr áei to thêly)
– Como é versátil a alma da mulher! (1,27,13).
Públio Vergílio Marão (séc. I a.C.), sensível e bom conhecedor da
psicologia feminina, como demonstrou sobretudo no canto quarto de
sua Eneida (em que Dido se mata por amor a Eneias) é mais explícito:
...
Varium et mutabile semper femina.
(En., 4,569-570)
– A mulher é sempre vária e instável...
Assim sendo, vamos estampar com um ou outro retoque e
dividindo-o em dois o “quadro arquetípico” elaborado pela Dra.
Shinoda e, em seguida, tentarexmos “enquadrar” no mesmo
Clitemnestra e Electra.
Que cada uma depois busque por conta própria o seu espaço na
tabela orgaxnizada pela psiquiatra norte-americana. Se alguém, no
entanto, após se encaixar em um, dois ou mais arquétipos, quiser
mudar e passar para arquétipos até mesxmo contrários, poderá fazêlo sem o menor risco e constrangimento... As deusas são muito
compreensivas e, além do mais, elas próprias, como mulheres, já
muxdaram tantas vezes de posição!
Nesse verdadeiro emaranhado de padrões e características, que
individualixzam deusas e mulheres, onde colocar Clitemnestra e
Electra?
Clitemnestra amava seu primeiro esposo Tântalo II, assassinado de
maneira covarde por Agamêmnon. Coagida pela força, casou-se com
o rei de Micenas e deu-lhe quatro filhos: Ifigênia, Crisótemis, Electra
e Orestes. Foi-lhe fiel, até que atraída mentirosamente por
Agamêmnon a Áulis, em vez de assistir às núpcias de Ifigênia,
chorou-lhe amargamente a morte, pois “a noiva” foi sacrificada a
Ártemis. Uniu-se então, e de certo por vingança, a Egisto, que acabou
sendo por ela amado, segundo confissão da própria rainha de
Micenas, ao chamar o amanxte, morto por Orestes, de meu
queridíssimo e corajoso Egisto, conforme se mosxtrou neste mesmo
capítulo. Face a todas estas humilhações, violências e represxsões, a
esposa de Agamêmnon é uma vulnerável e partícipe inconteste dos
arquéxtipos de Hera, com sinais bastante claros da Síndrome de
Medeia. Alguns lampexjos dos arquétipos de Afrodite podem ser
ainda observados na personalidade de Clitemnestra.
Electra é a “virgem indomável”, que se rebelou contra a mãe por se
ter unido a Egisto. Inconformada, passou a “caçá-los” dentro do
próprio palácio com as flechas envenenadas de sua crítica ferina. Seu
ódio e repugnância pelos novos reis chegaram ao clímax, quando,
ajudada por Egisto, Clitemnestra assassinou traiçoeiramente
Agamêmnon. O retorno de seu irmão Orestes incendiou-lhe ainda
mais o desejo de vingança. Foi ela quem guiou com argumentos
decisivos a espada com que o caçula dos atridas decapitou a rainha e
o intruso Egisto. Electra traduz em larga escala os arquétipos de
Ártemis: feroz, destemida e conxtestadora, luta sem desfalecimentos
até a vitória final, mesmo que deixe pedaços de si mesma nos
espinheiros e sarçais...
Após uma longa odisseia que se iniciou no neolítico e terminou no
Complexo de Electra, chegamos realmente à conclusão de que o mito
é inesgotável.
Fechando este terceiro e último volume de Mitologia grega,
evocamos como testemunho dessa perenidade da Hélade e de seu
mito a profunda reflexão de Murilo Mendes, poeta e prosador culto e
versátil: “Mas, talvez acima de tudo, a Grécia possui uma força
inesgotável: sua mitologia, que constitui ao mesmo tempo sistema
cosmogônico, transposição figurada de fatos reais, reservatório
sempre renovado de arquétipos e símbolos. Haverá nesta terra
muitas coisas maiores que a mitologia grega, na sua capacidade de
contaminar poetas e pensaxdores? Dai-me uma fábula grega, um
‘mitologema’, e eu recriarei o mundo”.12
1. As principais referências a Clitemnestra na literatura greco-latina encontram-se na Il., I,
113; IX, 142ss; Od., I, 32ss; III, 193ss; 303-305; IV, 529-537; XI, 404-434; Ésquilo, Oréstia:
Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, passim; Sófocles, Electra, passim; Eurípides, Electra,
Helena, Orestes, Ifigênia em Áulis, passim; Apolodoro, Biblioteca, 3,10,6ss; Pausânias,
Descrição da Grécia, 2,16,7; 18,2; 22,3s; 31,4; 3,19,6; 8,34,1ss; Higino, Fábula, 77; Quintiliano,
De Institutione Oratoria (Formação do Orador), 8,53.
2. Carnoy, A. Op. cit., verbete Klytaimnéstra.
3. Para se ter uma ideia completa do génos maldito dos atridas, veja-se o quadro genealógico
esxtampado no Vol. I, p. 83.
4. BRANDÃO, J. de Souza.Teatro grego: Tragédia e comédia.3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p.
22ss.
5. Clódia, possivelmente irmã do caudilho P. Clódio, inimigo de Cícero, celebrizou-se em
Roma não apenas por seu fausto e devassidão, mas ainda pelo grande número de amantes e
maridos, a muitos dos quais matou, segundo consta, para herdar-lhes a fortuna. Foi a grande
paixão do poeta Caio Valério Catulo (séc. I a.C.), que a imortalizou sob o pseudônimo (sem
nenhuma conotação pejorativa) de Lésbia. Ao que parece, à época dos atormentados amores
de Catulo por Clódia, esta ainda estava casada com M. Célio Rufo, a quem aliás tentou
envenenar, conforme o discurso de Marco Túlio Cícero em defesa de Célio (Pro Caelio, 13, 15,
16, 20, 22, 23, 26, 29 e 32).
6. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Op. cit. p. 394.
7. Goddesses in Everywoman. New York: Harper & Row, 1984.
8. É conveniente recordar que os grandes deuses olímpicos eram a princípio doze: seis
deuses (Zeus, Hades, Posídon, Apolo, Ares, Hefesto) e seis deusas (Atená, Ártemis, Héstia,
Hera, Deméxter-Core ou Deméter-Perséfone e Afrodite), o que patenteia um certo equilíbrio
entre “patriarcaxdo e matriarcado”, expressão aliás que usamos apenas lato sensu. Mais
tarde, todavia, o Olimpo foi “masculinamente” inflacionado: Hermes, Dioniso e até Héracles
sentaram-se entre os imortais, desequilibrando a balança...
9. A junção Deméter-Core, ou Deméter-Perséfone, é uma consequência da conjunção mãefilha. Κόρη (Kóre), a jovem, é a semente (Perséfone), que, plantada no seio da terra (Deméter),
dá vida a novos frutos num ciclo contínuo.
10. Op. cit., p. 132.
11. Ibid., p. 63.
12. MENDES, Murilo. Transístor – Antologia de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.
231.
Complementação bibliográfica dos volumes I
e II
Além da bibliografia estampada nos Volumes I e II, estamos
acrescentando algumas obras por nós consultadas na redação de
Mitologia grega e que, por um motivo ou outro, deixaram de figurar
nos dois primeiros volumes.
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l’énigme de l’Atlantide. Paris: Payot, 1952.
BOLEN, Jean Shinoda.GoddessesinEverywoman.New York: Harper
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Máscara mortuária de ouro do rei Agamêmnon.
Museu Nacional de Atenas
Hefesto forja novas armas para Aquiles. Arte grega.
Perseu, assistido por Atená, corta a cabeça de Medusa.
Vaso grego.
Perseu liberta Andrômeda.
Mural de Pompeia. Museu
Nacional de Nápoles.
Héracles. Réplica grega de
uma estátua de bronze de
Lisipo do século IV a.C.
Mármore do século II a.C.
Museu Nacional de Nápoles.
Héracles vence e mata o Leão de Nemeia. Bandeja de
prata. Biblioteca Nacional de Paris.
Héracles apodera-se da
Corça de pés de bronze.
Vaso grego. Museu do Louvre
Nacional de Paris.
Héracles domina o Touro de
Creta. Vaso grego. Museu do
Louvre.
Héracles luta com o Cão
Cérbero. Ânfora de
Andócides. Museu do Louvre.
Héracles traz Cérbero do
Hades e apresenta-o a
Euristeu, que se esconde num
vaso de bronze. Vaso de Cere
(Cidade da Etrúria). Museu do
Louvre.
Héracles segura o Globo
Terrestre, enquanto Atlas lhe
traz os Pomos de ouro. Atená
posta-se atrás do herói.
Mármore de 470-460 a.C.
Museu de Olímpia.
Héracles luta com o Rio
Aqueloo pela mão de
Dejanira. Vaso grego.
Héracles transportando os
Cercopes para a corte de
Ônfale.
Héracles e o Centauro
Nesso. Pintura mural de
Pompeia.
O Centro da Terra, marcado
pelo Omphalós (Umbigo).
Delfos.
Umbigo 1
Umbigo 2
Umbigo 3
Umbigo 4
Umbigo 5
Umbigo 6
Umbigo 7
Umbigo 8
Umbigo 9
Umbigo 10
Umbigo 11
Umbigo 12
Umbigo 13
Teseu mata o Minotauro.
Teseu é reconhecido por seu
pai Egeu. Baixo-relevo de Vila
Albani, Roma
Ariadne abandonada por Teseu na ilha de Naxos.
Pintura mural de Herculano. Museu Britânico.
A construção da Nau Argo. Baixo-relevo antigo de
Vila Albani, Roma.
Medeia, rejuvenescendo um
carneiro, mostra a Pélias
como ele próprio poderia
readquirir a juventude. Século
VI a.C. Museu Britânico.
Belerofonte, cavalgando Pégaso, mata a monstruosa
Quimera. Meados do século V a.C. Museu Britânico.
A Esfinge. Estátua arcaica, encontrada em Esparta.
Museu Nacional de Atenas.
Édipo e a Esfinge. Brasão
etrusco.
Cabeça de Ulisses. Mármore
da época helenística, fins do
século II ou inícios do século I
a.C. Museu Arqueológico
Nacional de Sperlonga.
Ulisses obriga a mágica Circe a restituir a forma
humana a seus companheiros. Urna funerária do
século IV a.C. Museu de Orvieto.
Ulisses vasa o olho do Ciclope Polifemo. Museu de
Elêusis.
Ulisses vasa o olho do
Ciclope Polifemo. Museu de
Elêusis.
Euricleia lava os pés de
Ulisses. Arte etrusca.
Cassandra é assassinada por Clitemnestra. Arte
grega.
Junito de Souza Brandão , falecido em 15/05/96, aos 71 anos, foi
professor titular de Língua e Literatura Grega e de Língua e
Literatura Latina na PUC-RJ, na Universidade Santa
Úrsula e na Universidade Gama Filho.
Era Licenciado em Letras Clássicas, tinha
Doutorado e livre-docência em Literatura
Grega. Ministrava, além de suas aulas normais
nas
universidades
supracitadas,
cursos
regulares de Mitologia no Rio de Janeiro e
principalmente em São Paulo, na PUC-SP e na
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica da
mesma cidade.