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Velhos Materiais, Novas Utilizações

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE provided by Repositório Institucional da Universidade de Aveiro Novos Materiais Autoria do Trabalho: Velhos Materiais, Novas Utilizações Ana Luísa Velosa, DECivil, Geobiotec, Universidade de Aveiro, [email protected] Humberto Varum, DECivil, Universidade de Aveiro, [email protected] 2 - UTILIZAÇÃO 1. INTRODUÇÃO Uma das apostas no campo dos materiais de construção reside na utilização de materiais sustentáveis. De facto, actualmente, vários materiais se designam como sustentáveis, existindo diversos critérios que são tidos em conta para classificar os materiais quanto à sua sustentabilidade: gasto energético na produção, poluição ambiental gerada pela produção, custo de transporte, utilização de recursos limitados ou renováveis, reutilização dos materiais, entre outros. Estes critérios inserem-se no ciclo de vida dos materiais, tendo em conta a extracção de matérias-primas, o processo produtivo e a sua reutilização. Na construção tradicional, tanto em Portugal como em outros países, e excluindo todos os edifícios com exigências especiais, o conceito de sustentabilidade estava intrinsecamente ligado à construção. Eram utilizadas matérias-primas naturais (pedra natural, terra, fibras vegetais), sem recurso ou com baixo recurso a transporte e a processos de transformação, algumas das quais provenientes de recursos renováveis. Em Portugal as alvenarias tradicionais eram construídas com pedra local (granito, calcário, xisto, basalto), ou com base em terra utilizada para execução de paredes em taipa ou adobe (Figura 1). A madeira, recurso renovável, era utilizada em portas e janelas e como elemento estrutural, principalmente em coberturas. Talvez uma das matérias-primas com maior impacto ambiental devido ao processo produtivo, fosse a cal aérea, que gera a libertação de CO2; contudo este é reabsorvido no processo de carbonatação e consequente endurecimento de argamassas de cal aérea (Figura 2), tornando este material com um ciclo fechado num dos materiais com muito baixo impacto ambiental. Os revestimentos de edifícios tradicionais eram executados em cal aérea e um agregado, por vezes com a adição de terra, fibras vegetais ou animais. A degradação de edifícios com materiais tradicionais gerava pouco impacto na natureza. É especialmente este o caso de edifícios em terra, que eram reintegrados pelo meio após longa exposição ambiental. Actualmente, a construção corrente é efectuada com materiais distintos, cujo peso ambiental do processo de transformação é, sem dúvida, mais elevado. Existe uma clara tentativa de minimizar o seu impacto ambiental através da reutilização ou reciclagem. Embora esta seja uma abordagem possível, é igualmente uma possibilidade repensar os materiais tradicionais e o seu papel na construção actual, tendo em conta mudanças no que respeita às exigências de conforto térmico e acústico assim como necessidades de distribuição espacial distintas. A construção actual também se pauta por ritmos acelerados de construção, tendo a utilização dos materiais tradicionais de ser compatibilizada com todas as exigências correntes. Figura 1 - Paredes de edifícios tradicionais em Portugal 50 / Figura 2 - Ciclo da cal DE MATERIAIS TRADICIONAIS NA CONSTRUÇÃO CORRENTE Dadas as necessidades actuais da construção corrente para efeitos de habitação, será dado um enfoque à utilização de materiais tradicionais no âmbito de alvenarias, revestimentos e isolamentos. 2.1 - ALVENARIAS Para a realização de elementos construtivos em alvenaria (paredes, arcos, abóbadas) têm sido desenvolvidas e aplicadas recentemente várias soluções recorrendo a materiais naturais, como a terra, a palha, a pedra, a madeira e o bambu. Para este facto tem contribuído a consciencialização da população para as vantagens da sua utilização, quer em obras novas quer em trabalhos de reabilitação das construções existentes. Por outro lado, a publicação de regulamentos e recomendações técnicas que contemplam a utilização destas soluções dão o suporte necessário aos técnicos para o desenvolvimento dos seus projectos e execução das obras. De entre as soluções construtivas que recorrem à terra crua, sem queima, como material, destacam-se o adobe, a taipa e o BTC, pela sua maior expressão a nível mundial. Na Figuras 3, 4 e 5 apresentam-se exemplos de construções de cada uma das técnicas referidas. Em Portugal, a construção em terra como elemento estrutural é predominante no sul e centro litoral. O norte e centro interior são dominados pela alvenaria de pedra. A técnica de construção em terra mais utilizada no sul do país é a taipa. Relativamente ao adobe e apesar da sua enorme heterogeneidade, confirmada pelas inúmeras tipologias identificadas, a maioria das construções encontram-se confinadas sobretudo ao centro litoral, nomeadamente no distrito de Aveiro (Varum et al, 2008). O bloco de adobe é produzido pelo lançamento de uma massa de terra (eventualmente misturada com palha ou outras fibras naturais) num molde, tipicamente de madeira, sem qualquer compactação. O bloco depois de desmoldado é seco ao sol. O processo simples de fabrico do adobe permite a defini- Figura 4 - Exemplo de construção em Taipa Figura 3 - Exemplos de construções em alvenaria de adobe Figura 5 - Exemplo de construções em BTC ção das dimensões do bloco em função da aplicação desejada em obra. Tal como referido em (Varum, 2008), a mistura perfeita para a produção de adobes tem sido estudada por especialistas. Os tipos de solo a usar, bem como os traços a usar na produção dos adobes pode variar. No entanto, é fundamental referir que a alteração da quantidade de cada um dos componentes conduzirá a adobe com diferentes propriedades mecânicas e resistência à água (Varum et al, 2008). A construção com recurso à taipa inicia-se com a análise e selecção do solo (seja oriundo do local ou não) para a construção a erguer (Varum et al, 2008). As paredes de taipa são geralmente auto-portantes e embora o seu processo de produção tenha sofrido algum desenvolvimento e alteração, continua a necessitar de recorrer a moldes e ferramentas de compactação. Os taipais utilizados para a construção das paredes de taipa são geralmente concebidos em madeira (ou, mais recentemente e em alternativa, metal). Tal como referido em Buson (Buson, 2009), uma das muitas possibilidades para o uso da terra para a construção é o BTC. Rigassi (Rigassi, 1985) afirma que o bloco de terra compactada é o moderno descendente do bloco de adobe. Em inícios do século passado foram construídas os primeiros equipamentos mecânicos que dispunham de tampas pesadas que pressionavam a terra no interior de moldes. Mas, em 1952 com a invenção da prensa CINVA-RAM, projectada pelo engenheiro Raul Ramirez, se verifica um aumento significativo no uso dos BTCs em construções (Buson, 2009). É fundamental que a investigação no domínio da construção em terra se concentre no desenvolvimento de metodologias simples para a avaliação da segurança estrutural, na procura de soluções de melhoria do comportamento sísmico, e na protecção das construções contra a acção da água (Varum et al, 2008). Nas construções existentes de adobe encontram-se frequentemente soluções simples e engenhosas tais como a utilização de barrotes de madeira, arcos mais ou menos elaborados realizados com os mais diversos materiais (pedra, madeira, tijolo e até em adobe), utilizadas para melhorar a limitada resistência do material, procurando vencer os vãos das aberturas, melhorando a distribuição das cargas nos elementos estruturais. De forma a proteger o adobe da humidade ascensional, no caso das paredes, o adobe era normalmente assente sobre um primeiro alicerce em pedra, evitando o contacto directo com o solo. 2.2 - REVESTIMENTOS Os revestimentos de edifícios cumprem duas funções principais: a de protecção dos elementos do edificado, como as alvenarias e a estrutura e também uma função decorativa. Desta forma, funcionam como camadas de sacrifício, já que estão directamente expostos aos agentes climatéricos e à poluição e ao mesmo tempo espera-se que mantenham a imagem exterior dos edifícios. São os primeiros elementos a mostrar sinais de degradação, através de fissuração, alteração da coloração, destacamento e outros tipos de deterioração associados à sua exposição ambiental. Desta forma, os revestimentos têm evoluído na procura de durabilidade, não obstante a necessidade contínua de manutenção, para qualquer opção de revestimento, e mais pronunciada sempre que houver exposição directa a sais solúveis (água capilar, nevoeiro salino) ou poluição ambiental (indústria, tráfego). / 51 Novos Materiais Figura 6 - Cal aérea sob a forma de: a) Cal viva b) Cal hidratada (em pó) Durante muitos séculos a cal aérea foi utilizada como ligante em betão e argamassas, tendo as técnicas de produção e aplicação sido aperfeiçoadas através da experiência permitindo produzir revestimentos com elevada qualidade e durabilidade. A cal aérea pode apresentar-se sob a forma de cal viva (Figura 6a), cal hidratada (Figura 6b) em pó ou cal em pasta. O produto da calcinação da pedra calcária é a cal viva, em pedra, extremamente reactiva e que reage com a água, formando cal aérea hidratada, numa reacção expansiva e exotérmica. A cal aérea hidratada pode apresentar-se sob a forma de pó (quando é adicionada apenas a quantidade necessária de água) ou de pasta, neste último caso, com água sobrenadante. Devido à actual tradição construtiva e ao mercado de materiais de construção em Portugal, a cal aérea hidratada em pó pode facilmente ser utilizada no fabrico de argamassas de revestimento. Contudo, há que ressaltar o bom funcionamento da cal em pasta, especialmente após alguns anos de envelhecimento (Margalha, 2010). Tradicionalmente, e de forma a garantir uma adequada carbonatação e consequente endurecimento da argamassa, o reboco era executado em finas camadas intervaladas de alguns dias. De forma a permitir uma colocação em obra mais célere do revestimento, é possível proceder à adição de materiais pozolânicos, permitindo a execução de uma camada única. Os materiais pozolânicos são materiais que reagem com o hidróxido de cálcio na presença da água, permitindo assim o endurecimento da argamassa sem acesso directo ao dióxido de carbono. Estes materiais podem ser encontrados na natureza como resultado de erupções vulcânicas (pozolanas naturais) conforme a Figura 7, mas também podem ser utilizados subprodutos industriais (cinzas volantes, sílica de fumo), resíduos (resíduo de vidro) ou materiais naturais calcinados (metacaulino, cinzas de casca de arroz, cinzas de cana de açúcar), entre outros. Dada a vasta oferta será necessário utilizar produtos pré-doseados ou consultar publicações que indiquem quais as proporções adequadas de cada produto a misturar na argamassa (Fortes-Revilla et al, 2006; Velosa et al, 2009), sendo que a utilização de maior quantidade de pozolana não implica necessariamente a melhoria das propriedades da argamassa. 52 / A aplicação de argamassas de cal aérea e pozolana garante uma maior resistência mecânica inicial, sendo possível aplicar argamassas numa única camada de cerca de 2cm. Como no caso de qualquer revestimento, a colocação em obra deve revestir-se de alguns cuidados, não sendo aconselhável a sua aplicação em condições climatéricas extremas. Como a reacção dos materiais pozolânicos se dá em meio húmido, e de forma a manter a humidade relativa elevada, pode ser colocada uma protecção plástica afastada alguns centímetros da parede após a execução do reboco. Não é adequada a utilização de argamassas de cal aérea sobre betão ou junto a argamassas de cimento, devido à possibilidade de cristalização de sais solúveis, pondo em causa a sua durabilidade. 2.3 - ISOLAMENTO TÉRMICO E ACÚSTICO Actualmente existe um forte enfoque em relação à utilização de materiais de isolamento térmico e acústico, de forma a cumprir os requisitos regulamentares vigentes. Existindo actualmente um amplo leque de materiais aplicável com o intuito de aumentar a resistência térmica dos elementos do edificado e/ou diminuir a transmissão acústica entre compartimentos, a cortiça, amplamente produzida em Portugal, pode ter um papel de relevo neste âmbito. Embora não se trate de um material utilizado tradicionalmente na construção, é um material produzido no país, associado portanto a um baixo impacto ambiental ao nível do transporte, sendo também um recurso renovável. A produção de cortiça baseia-se na remoção, de cerca de 10 em 10 anos da casca do sobreiro, que se voltará a formar e a permitir nova extracção. Como a cortiça utilizada no ramo da construção civil é formada por laminado de cortiça, granulado de cortiça ou aglomerado de cortiça (Figura 8), é necessário um processo de transformação, envolvendo operações de moagem, expansão, secagem e aglomeração. Embora qualquer processo industrial envolva custos ambientais, são proporcionalmente baixos quando comparados com os processos produtivos da maioria dos materiais de construção. Figura 7 - Pozolana natural na ilha de S. Miguel, Açores As propriedades térmicas da cortiça são traduzidas pela sua condutividade térmica, de cerca 0,047W/mºK para o aglomerado de cortiça (Castro et al, 2010). A sua condutividade térmica é próxima à de outros materiais amplamente utilizados, com base polimérica, como o poliestireno expandido ou exturdido, e a lã de rocha ou lã de vidro. Desta forma a espessura da placa de cortiça a colocar numa parede para proporcionar um adequado desempenho térmico será similar à espessura dos materiais de utilização corrente. Como se trata de um material poroso, com baixa densidade, a cortiça tem também a característica de funcionar como absorvente acústico, actuando ao nível da diminuição do tempo de reverberação em espaços fechados. Para além da sua eficácia em termos de absorção de som aéreo, a utilização de aglomerado de cortiça sob o pavimento, evitando o contacto directo deste com a laje e com a parede, é uma barreira eficaz para a redução da passagem do som de percussão para compartimentos contíguos. Recentemente a produção de materiais que funcionem como isolantes térmicos e/ou acústicos, com base na reutilização de materiais, inserindo-se num processo de reciclagem, é prática corrente e em expansão. Neste campo têm sido produzidos isolantes com base em fibras têxteis, celulose, resíduos de pneus (Nicolajsen, 2005; Van de Lindt et al, 2008) e vários outros materiais alvo de processos de reciclagem, criando alternativas para o uso de resíduos e contribuindo para um melhor desempenho ambiental de certos materiais. Também com o intuito de produzir isolantes que gerem baixo impacto ambiental, podem ser utilizadas fibras de origem vegetal (Kymäläinen e Sjöberg, 2008) ou animal (lã). 3 - CONCLUSÃO Uma das tendências actuais na área da construção é a utilização de materiais sustentáveis devido a requisitos cada vez mais elevados neste campo. Ao analisar o passado e a história dos materiais de construção, verifica-se que muitos dos materiais utilizados revelavam um bom comportamento ambiental, tendo em conta os processos construtivos e o ciclo de vida dos materiais. Actualmente, as exigências no âmbito da indústria da construção são distintas, mas verifica-se a possibilidade de utilização de materiais tradicionais, como a terra, a cal, a cortiça, entre outros, neste novo contexto. Figura 8 - Isolante térmico de aglomerado de cortiça REFERÊNCIAS Buson, M. (2009) - Kraftterra: Desenvolvimento e análise preliminar do desempenho técnico de componentes de terra com a incorporação de fibras de papel kraft provenientes da reciclagem de sacos de cimento para vedação vertical - Tese de Doutoramento, Universidade de Brasília, Brasil. Castro, O., Silva, J.M., Devezas, T., Silva, A., Gil, L. (2010) - Cork agglomerates as na ideal core material in lightweight structures, Materials & Design, 31 (1), pp 425-432. Fortes-Revilla, C., Martínez-Ramírez, S., Blanco-Varela, T (2006). Modelling of slaked lime–metakaolin mortar engineering characteristics in terms of process variables. Cement and Concrete Composites, 28, (5) pp. 458-467. Kymäläinen, H., Sjöberg, A. 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