HISTÓRIA(S) E ENSINO
DE HISTÓRIA
Maria Thereza Didier
Fabiana Bruce°t
Lúcia Falcão***
Introdução
Tendo em vista a especificidade desaberes acadêmicos e de saberes escolares e a
relação existente entre eles, pensamos em
atribuir novas possibilidades de experiência
que considerem a percepção, nos domínios
escolares, de que a história não é apenas um
estudo do passado. A história como estudo
do passado é uma articulação discursiva elaborada há muito tempo nas nossas salas de
aula e está permeada por visões de história
(CUNHA: 2004), cujo modelo pode ser visto
em construção, no Brasil a partir do século
XIX, com o projeto de história nacional do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Ernesta Zamboni observa que, desde a sua
instituição como disciplina escolar até as últi-
mas décadas do século XX, a História foi campo privilegiado da preservação de heróis e
de uma memória nacional, interferindo profundamente na formação dos conceitos de
nação e cidadania (ZAMBONI: 2005, p. 44).
Segundo Thaís Fonseca:
- Professora Adjunta do PPG E da universidade Federal de
Professora da universidade Federal Rural de
Pernambuco.
Pernambuco. E-mail:
[email protected]
Professora da universidade Federal Rural de
Pernambuco.
"A afirmação das identidades nacionais e
a legitimação dos poderes políticos fizeram com que a História ocupasse posição central no conjunto de disciplinas
escolares, pois cabia-lhe apresentar às
crianças e aos jovens o passado glorioso
da nação e os feitos dos grandes vultos
da pátria. Esses eram os objetivos da historiografia comprometida com o Estado,
e sua produção alcançava os bancos das
escolas por meio dos programas oficiais
e dos livros didáticos, elaborados sob estreito controle dos detentores do poder.
Isso ocorreu na Europa e também na
América, onde os países recém-emancipados necessitavam da construção de um
passado comum e onde os grupos que
encabeçaram os processos de independência lutavam por sua legitimação"
(FONSECA: 2004, p. 24).
A autora também enfatiza que a História
como disciplina escolar é fortemente marcada pelo viés nacionalista, trazendo elementos culturais que "garantiam a consolidação
dos laços entre parcelas significativas das
populações, no processo de construção das
identidades nacionais coletivas" (FONSECA:
2004, p. 25). Nesse sentido, se fizermos um
recorte mais recente, perceberemos um matiz desse nacionalismo, em outros moldes, é
claro, a partir da década de 70, do século XX,
com a instituição, pela lei 5692, do ensino de
Estudos Sociais. Sob essa perspectiva, a
narrativa histórica no âmbito escolar, além de
ser responsável por aligeirar e fragmentar os
estudos históricos na escola, reiterou o modelo memorístico, fundado na fixação de fatos e nomes que se articulavam em sentidos
laudatórios, pronunciando um efetivo ufanismo ã pátria. Muitos de nossos adultos ainda
hoje carregam na memória a experiência dos
questionários, que exigiam a reprodução fiel
de informações propostas pelos livros didáticos, e a repetição de textos copiados pelo
professor no quadro.
Esse modelo de ensino de História ficou conhecido como tradicional/positivista e
baseava-se numa concepção causal, linear
e evolutiva de tempo. Essa perspectiva de
ensino tinha relação com uma história de
eventos, e se preocupava em descrever fatos organizados em seqüência cronológica,
dispensando interpretações que ameaçassem a objetividade e imparcialidade do conhecimento histórico. A história científica de
inspiração positivista só seria alcançada por
meio da neutralidade do historiador ante o
real analisado, obtendo, assim, um reflexo fiel
dos fatos do passado. Assim, a famosa frase
de Ranke de que era preciso contar os fatos
ziII]
se postava
como assertiva a ser seguida para uma garantia de objetividade, sinónimo, para os positivistas, de verdade histórica. Nessa linha
historiográfica, predominante até o início do
século XX, os fatos considerados importantes para serem narrados na construção da
história eram os eventos políticos, administrativos e religiosos que estavam relacionados aos centros de poder das nações. A
narrativa histórica parecia querer erigir um
sujeito absoluto, personificado pelos Estados
Nacionais e, nesse sentido, o trabalho do historiador seria o de reconstituir detalhadamente o passado por meio de uma descrição que
não problematizasse os fatos, mas os fizessem "falar' por si mesmos.
Entretanto, havia resistências a essa
perspectiva reducionista e cívica do ensino
de História. No final da década de 70, com
a maior flexibilidade do regime militar, as
possibilidades de repensar o que se denominava de realidade brasileira cresceram
juntamente com reivindicações de um ensino diferente do que era realizado até então
(FONSECA: 2004, p. 59). É importante ressaltar as mudanças na concepção de ensino de História a partir de debates e reflexões
implementados por profissionais da área,
reunidos em instituições como a ANPUH e
a SBPC, interferindo em reformas curriculares e sugerindo outras concepções de Educação. É a partir daí que alguns estudiosos
apontam uma crise disciplinar no campo do
ensino de História. O modelo tradicional do
ensino de História, embora até hoje não totalmente descartado, foi posto em questão,
e outros surgiriam como possibilidades de
superar a representação da História ensinada como uma disciplina tediosa e sem
sentido para a vida do aluno.
A matriz marxista, já presente em propostas curriculares nas décadas de 80 e 90, em
estados como Minas Gerais e São Paulo, indicava uma reivindicação de questionamento da história oficial ou dos vencedores
propondo o materialismo histórico como base
teórica. Por meio da interpretação de Marx,
como de fato eles aconteceram
Históda(s) e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
História(s) e ensino
de Hisrói-ia
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
buscava-se dar voz aos excluídos sociais
permitindo, assim, que outros sujeitos históricos aparecessem na História ensinada. Em
lugar do modelo cronológico mecanicista do
ensino tradicional, propunha-se o estudo da
História através da análise de modos de produção e ressaltava-se a importância de cada
pessoa se ver como sujeito da própria história. Apesar dessas contribuições, havia também um certo reducionismo economicista que
gerava uma visão teleológica da História,
expressa na sucessão dos modos de produção numa linha de tempo continua. A repercussão dessa interpretação no ensino de
História perpassou pela formação, pela prática de muitos professores e pela circulação
de livros didáticos que se apropriaram dessa
forma de pensar a História. Entretanto, a partir do final dos anos 80, essa interpretação,
que apresentava como um de seus eixos
estruturadores um princípio etapista da história no formato de modos de produção, passava também a ser criticada. Nesse mesmo
período, mudanças no campo da historiografia indicavam sendas nesse discurso narrativo e sugeriam possibilidades de pensar novos
objetos, abordagens e problemas para a história (CUNHA: 2005, p. 96-97).
A partir dos Annales, a historiografia passou por mudanças que findaram por mexer
com um conceito básico da disciplina: o tempo. Se os historiadores tradicionais pensavam o tempo histórico de forma linear,
continua e progressiva, os historiadores dos
Annales propunham uma compreehsâo de
tempo que enfatizava o repetitivo, o cíclico,
o simultâneo, pondo em relevo a permanência na vida das pessoas. Também o cotidiano e os mais diversos aspectos da vida
humana passavam a fazer parte das preocupações desses historiadores que lançavam diferentes parâmetros de abordagens
para a disciplina e ampliava a possibilidade
de suas fontes, pois qualquer registro humano era passível de ser analisado. Para
estabelecer outros tipos de perguntas sobre o passado e selecionar novos objetos
de estudo era necessário buscar novos ti-
pos de fontes e até mesmo fazer releituras
dos registros oficiais. Relatos orais, textos
literários, evidências de imagens e informações estatísticas são apenas alguns exemplos de registros que passaram a ser
considerados fontes de informação para o
historiador (BURKE: 1992).
E de se observar que os paradigmas bistoriográficos da Nova História, a partir dos
anos 80, do século XX, passaram a fazer
parte de algumas propostas curriculares de
História introjetando temas, periodizações e
metodologias diferenciadas (ZAMBONI:
2005, p. 45). Se a História era somente ensinada como se fosse quadros acabados,
representando cenas que os alunos tinham
que contemplar, as correntes historiográficas que entendiam a História como construção provocaram mudanças no campo da
História como conhecimento escolar. Parecia surgir no cenário da historiografia e do
ensino de história uma outra possibilidade
não mais pautada nos fatos exclusivamente políticos empreendidos por "heróis", nem
nos aspectos econômicos e materiais da
sociedade.
A compreensão desses novos historiadores de que a realidade é culturalmente
constituída, põe em evidência a aproximação desta nova História com a Antropologia
e com os estudos na área de História da
Cultura. A atenção na centralidade da cultura desde a segunda metade do século XX
já foi tema de observação de Frederic Jameson quando afirmou que a lógica do capitalismo experimentada atualmente é
cultural (1996). Entretanto, a cultura aqui
entendida não mais como superestrutura ou
como segmento secundário do social e sim
como tecido da vida no capitalismo avançado (ANDERSON: 1999).
Por sua vez, o historiador Roger Chartier afirma que:
'As estruturas do mundo social não são
um dado objetivo, tal como o não são as
categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas
pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas
201
figuras. São estas demarcações, e os
esquemas que as modelam, que constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar completamente a relação
tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si próprio, e as representações,
supostas como refletindo-o ou dele se
desviando" (CHARTI ER: 1990, p. 27).
A partir da perspectiva da História Cultural, o real recebe múltiplos tratamentos e diferentes idéias do passado são construídas,
provocando uma ruptura como realismo predominante na historiografia desde o século
XIX. Dessa maneira, é possível pensar os
significados simbólicos dos grupos sociais e
retomar fontes outrora desprezadas para pensar a história. A aproximação do historiador
com os aspectos culturais e simbólicos das
sociedades fez alguns autores denominarem
a atual discussão como decorrência de uma
'virada cultural" nos rumos teóricos da historiografia. Essa denominação pode ter sido
escolhida devido às aproximações dessa historiografia cultural com a Literatura, a Antropologia e a Hermenêutica.
A nova abordagem cultural da História
promove também uma aproximação desta
disciplina com a crítica literária enfatizando
a importância da linguagem, dos textos e das
estruturas narrativas na criação da realidade histórica. Tudo o que na modernidade era
tido como realidade histórica, nessa nova
concepção, passa a ser vista como um texto. Nesse sentido, o acesso à existência das
coisas materiais acontece por meio da linguagem e dos significados que são construídos em um sistema cultural (COSTA:
2003). A ênfase na cultura e na linguagem
incorporada na pesquisa do historiador contribui para que o seu texto também seja compreendido como uma construção social
(WHITE: 1992). Desta forma, a narrativa histórica retorna ao palco da discussão historiográfica diferenciando-se, entretanto, da
orientação tradicional dada pela vertente
positivista. O elemento ficcional da narrativa literária não se opõe mais ao da narrativa histórica. A diferença está nas operações
202
intelectuais submetidas a um conjunto de
regras que legitimam a argumentação de
cada uma delas (CERTEAU: 1982).
O conhecimento histórico é um conhecimento textual, mas o texto pode estar inscrito nas imagens, nos sons, na Arquitetura, na
Literatura, permeado nas significações simbólicas construidas nas práticas culturais.
Nesse sentido, a Literatura, aMúsica, o Cinema, a Fotografia são tomados como objetos de análise para a nova historiografia. A
importância dessa virada em relação às fontes pressupõe um outro entendimento do que
é a história, o ofício do historiador e o ensino
de História. Não são apenas materiais e registros que multiplicam a possibilidade de
análise do historiador. Essas mudanças estão presentes numa concepção teórica que
possibilita ao historiador repensar a relação
consciente/inconsciente, as formações simbólicas (sonhos, desejos, crenças coletivas.)
e as experiências cotidianas (BEAUGE:
1998). Aversão unidimensional do documento
escrito de cunho oficial, como garantia de uma
similitude com o real, idealizado como se fosse possível capturá-lo, foi desarticulada trazendo o real também como representação.
Chartier lembra:
"desse modo, espera-se acabar com os
falsos debates desenvolvidos em torno
da partilha, tida como irredutível, entre a
objetividade das estruturas (que seria o
terreno da história mais segura, aquela
que manuseando documentos senados,
quantificáveis, reconstrói as sociedades
tais como eram na verdade) e a subjetividade das representações (a que estaria ligada uma outra história, dirigida às
ilusões de discursos distanciados do
real)" (CHARTIER: 1990, p. 18).
Repensando as fronteras das representações e das linguagens na história,
Kramer lembra o pensamento de Dominick La Capra quando este argumenta: "os
historiadores que repensam as categorias
da compreensão histórica têm, de fato, maiores possibilidades de encontrar um grande número de vozes submersas que
contestam seu desejo histórico (e metafi-
Histãria[s) e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
Histõria(s) e ensino
de História
Marta T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
sico) de um significado unificado e sem
ambigüidade" (KRAMER: 1992,p. 139). Em
contrapartida à compreensão linear, causal e evolucionista, do positivismo e marxismo, respectivamente, Le Goff afirma que
"a história nova insiste sobre as diferenças
das experiências históricas e sobre a necessidade de uma multiplicidade de enfoques (.j" (1998: p. 52). (Re) sensibilizando
suas reflexões, a nova historiografia faz um
entrelace com muitos campos do saber e
provoca uma abertura para os domínios da
estética. Deslocando o enfoque do cenário positivista dos grandes eventos e personagens, o historiador pode, então,
delimitar seu campo de pesquisa a partir
do tempo descontínuo, analisar a história
a contrapelo e desconstruir a identificação
da História com uma única narrativa.
Essas novas formas do fazer historiográfico estabelecem possibilidades para a abordagem de diferentes linguagens no ensino
de História não como forma de motivar o aluno, mas como compreensão epistemológica
da disciplina. O uso dessas linguagens no
ensino de História constitui uma tentativa de
compreender a complexidade de nossas subjetivações. Nessa perspectiva, "não só os
'shopping centers', mas também as imagens
da televisão, as fotografias, os vídeos e filmes, os jogos eletrônicos, as revistas, os 'outdoors' etc, são textos que, junto com as
teorias científicas, as narrativas filosóficas e
os dogmas religiosos vão nos subordinando,
governando nossa vontade, fabricando nossas identidades e nos aprisionando em significados e representações" (COSTA: 2003,
p. 02). Esta é uma distinção importante já que
a proposta de trabalhar com novas linguagens no ensino de História não é propriamente uma novidade.
Na época em que o grupo dos Annales
realizava suas primeiras contribuições, no
campo da educação algumas idéias eram
lançadas em oposição às práticas pedagógicas tradicionais. A chamada Escola Nova
preocupava-se com uma metodologia de ensino que possibilitasse a criatividade e a
participação do aluno em sala de aula. Dessa maneira, o uso de recursos audiovisuais, por exemplo, era estimulado para
motivar a aprendizagem dos alunos em relação ao conteúdo exposto. Kátia Abud
(1987) observou que, em sintonia com as
preocupações da Escola Metódica, alguns
professores inspirados nas proposições escolanovistas argumentavam a favor do cinema educativo como um passo atrativo no
caminho de apreensão da verdade histórica. É importante ressaltar que, apesar da
proposta de utilização de recursos audiovisuais na prática de ensino de História, a visão de História da Escola Nova é
perpassada pela idéia de um "real" a ser
"descoberto". A questão primordial não reside, portanto, na utilização em si mesma de
fontes alternativas para o ensino da História, uma vez que as opções metodológicas
não estão isentas da visão de mundo que
as direcionam.
Hoje podemos perceber que a imagem,
assim como outros textos, não reproduz a
realidade, mas "a constrói a partir de uma
linguagem própria", entremeada numa rede
de significações (SALIBA: 1991, p. 189).
Nesse sentido, importa também os modos
de apropriação e de (re)significações desses textos. Entretanto, é preciso perceber
que essas maneiras de pensar a história e
o ensino de História não se sucederam evolutivamente, nem tampouco foram aceitas
na totalidade e de forma passiva. Tensões,
discursos e divergências permeiam essas
maneiras de pensar a história provocando
o que alguns autores chamam de guerra de
narrativas (CUNHA: 2006, p. 99).
Histórias e Verdades
As considerações feitas anteriormente
levam-nos a pensar a história como fabricação. E, sob esse ponto de vista, o estatuto de
verdade aplicado à leitura e/ou interpretação
dos fatos históricos estaria sob questionamento. Variações em torno de tal afirmativa
refletem o momento pelo qual passa a História desde que, como o dissemos, são abertas as possibilidades de aproximação com
203
outras disciplinas das ciências sociais e humanas; a partir do momento em que outros
documentos, outros textos, passam a ser do
interesse do historiador. Variações porque
sabemos que, mesmo quando predomina o
olhar da história tradicional, e sua pretensão
de definir e delimitar a pertinência ou não da
narrativa - lembremos do marco divisório
entre história e pré-história -, há a possibilidade do erro ou da 'inverdade'.
Pensamos que a questão da verdade (alôtheia) e a sua relação com a palavra escrita,
palavra que faz história, tem também uma
história. Ela nos remete à adequação entre
as palavras e as coisas e à compreensão do
homem histórico, que vê e cria narrativas,
proposições e esquecimentos (lethe) sobre
esta relação (GARCIA-ROZA: 1990, p. 86).
E no sentido de uma dessacrahzação e desvinculação da palavra com a verdade que
Garcia-Roza nos relata a passagem da palavra poética (aedo grego), que encerra uma
soberania ancestral, para a palavra persuasão (peithô), que mora no diálogo do guerreiro como estratégia de luta, visão esta a se
perpetuar e predominar na história. A recorrência à visão como um dado de sensibilidade que nos faz submergir no universo
historiado - para fazê-lo emergir - remetenos à própria origem da palavra história: de
Id, ver e ístor, testemunha ocular. Somos, para
começar,testemunhas dos acontecimentos,
visto que seguramos em nossas mãos os
registros do acontecido, quando não o presenciamos. Mas, segundo Roza, para tornálos história é preciso um ato de inteligência,
ou de violência, como faz um guerreiro ou
um tecelão.
Escolhemos as linhas e o traçado a seguir; desenhamos aquela história com as
cores que queremos, impondo uma textura,
um ritmo (harmonias e dissonâncias), uma
combinação de cores, volumes e freqüências, uma geometria. Pensamos que essa visão da história assim constituída vai "recusar
a ficção de uma metalinguagem que unifica
o todo" (CERTEAU: 1975, p. 10), uma extemporaneidade da história que estaria para
204
além do demasiado humano o que equivale
a "deixar aparecer a relação entre os procedimentos científicos limitados e aquilo que
lhes falta do 'real' ao qual se referem" (CERTEAU: 1975, p. 11). A objetividade pretendida por alguns historiadores poderia então
ser pensada, sob esse ponto de vista, como
sinônimo de pressa, porque, se entendemos
a construção da história sendo feita nessa
adequação entre as palavras e as coisas,
talvez seja mais pertinente encontrar a verdade na subjetividade, onde os sinais da
escrita são apresentados em sua ambigüidade de sentidos (GARCIA-ROZA: 1990).
Dessa forma, a verdade, ou a construção
da verdade na história, seria possível quando conjugada no gerúndio - algo que está
sendo feito, está sendo narrado -, fazendo
uma vinculação entre as coisas enquanto
existentes, efêmeras. Assim, é possível que
ao historiador fique assegurada a liberdade
de compreender também seus ocultamentos,
seus enigmas, seus silêncios. A verdade na
história, dessa forma - o que implicaria uma
riqueza expressiva—, não estaria somente na
linguagem (no discurso) ou no real (no documento, no fato ocorrido), mas na interioridade do sujeito que a relata, considerando os
mergulhos que fazemos quando abstraímos,
dialogamos, criticamos (GARCIA-ROZA:
1990). E, além disso, temos ainda um outro
condicionante que vem junto para forjar uma
história: o tempo. E não é apenas um tempo
de fora sobre o qual o historiador não teria o
menor poder de intervenção. Estaríamos, sim,
sujeitos a estados de espírito (temporalidades) diversos quando, através de palavras e
outras representações, nos lançamos nessa
aventura maravilhosa da história, aventura
que aproxima presentes e que nos acolhe
para novos tempos.
Nesse sentido, a concepção da história
como fabricação pode ser compreendida
quando tratamos de imagens visuais, mesmo porque estaríamos, neste caso, numa
fronteira ainda não "desvendada" onde o
estigma da objetividade já não predomina,
aumentando, por isso, as possibilidades de
História(s) e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
exercitar nossa criatividade e subjetividade.
Por exemplo, numa fotografia célebre de
1936, Robert Capa (1913 - 1954) provoca
uma polêmica entre os leitores da revista
Lite. A fotografia mostra um soldado espanhol no exato momento em que é atingido
no campo de batalha. A dor do outro é esquecida para, em troca, serem levantadas
questões quanto à veracidade do acontecimento fotografado (MENESES: 2003; SONTAG: 2003). O fotógrafo, que tinha como
proposta de ação estar suficientemente próximo do acontecido, é colocado sob suspeição, o que provoca entre observadores da
imagem vários estudos críticos: balísticos e
literários. Questionamentos sobre a incidência de luz, ângulo e a posição do corpo vêm,
todavia, confirmar a impossibilidade de preparação da cena. A soma de elementos analisados vai possibilitar a construção de uma
história apresentando variados mecanismos
de fabricação de verdades e possibilidades
ilimitadas de aproximações (temas, Iinks)
com a história da Guerra Civil Espanhola pensemos no universo de uma história cultural da guerra na contemporaneidade, por
exemplo, que o fotógrafo testemunhou.
História(s) e ensino
I p I- is6rl.i
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Linda FaIco
O que queremos dizer, portanto, é que
muito já se cogita hoje em dia se, diante de
um documento, dever-se-ia perguntar sobre
sua veracidade. O que vemos é que a atenção recai muito mais na própria existência do
registro, nos textos, nos atributos narráveis,
nas possibilidades de reminiscências, nas
relações estendidas a partir dali, compreendendo que esses elementos de análise se
encontram em contínuo diálogo com outros
documentos e dados de época. Se tomarmos
ainda a fotografia como, mais uma vez, exemplo da infinidade de possibilidades que acabam por aproximar também as ciências das
artes - pensadas num projeto de sensibilização e aprendizado, num projeto de aprender
a ver e ensinar a olhar—, estaremos construindo um outro questionamento cujos frutos
ainda não podemos prever, mas que, sem
dúvida, possibilitarão novos roteiros históricos. O exemplo leva-nos a pensar que se libertando a história da exigência de provas
(unicidade) em favor de refletividade e intersubjetividade, estaríamos diante de uma outra visão do homem nos tempos do mundo,
visão essa a ser exercitada em nosso presente, sendo possível considerarmos as vánas vozes que se colocam ao redor de um
mesmo acontecimento.
Considerações Provisórias
A virada lingüística e cultural tenta romper com a escrita da história linear onde o
passado era narrado para que o presente fosse compreendido e o futuro fosse reordenado. Nessa perspectiva, a história da educação
pode ser compreendida não mais como uma
evolução de escolas progressivas possibilitando entender o sujeito pedagógico entremeado nos discursos e práticas culturais
construídos na história. A experiência de si
se constitui, sobretudo, por narrativas e o
sentido do que somos são construções narrativas nossas em articulação com as histórias que lemos e escutamos, produzidas no
interior de práticas sociais. (LAROSSA: 1994).
Para Larossa, "o sentido de quem somos é
análogo á construção e à interpretação de
um texto narrativo que, como tal, obtém seu
significado tanto das relações de intertextualidade que mantém com outros textos como
de seu funcionamento pragmático em um
contexto" (1994: p. 48). Segundo Popkewitz,
tomar como referência central a estrutura lingüística da história implica um descentramentodo sujeito (POPKEWITZ: 1994). O sujeito
pós-moderno possui identidades diferentes e
não necessariamente coerentes entre si. É
dessa maneira que Mansa Vorraber Costa
(COSTA: 2003) nos instiga a repensar os pro205
cessos de subjetivação atuais como maneira
de redefinir quem são os sujeitos-objeto das
experiências pedagógicas.
Essas discussões atualizam e problematizam a própria concepção de história e de
conhecimento fornecendo suporte para a
construção de outros olhares sobre o ensino de História, entendendo que as práticas
escolares são práticas culturais, e colocando questões sobre as possibilidades de
apropriação de novas linguagens no ensino
dessa disciplina. É dessa maneira que propomos estudar as possibilidades do ensino
de História, contemplando a diversidade dos
campos do saber, da estética e da ética.
Portanto, no campo das possibilidades, a
intenção é pensar o ensino de História como
exercício de compreensão das construções
culturais e das relações entre um nós ' e
um "outro" por meio das narrativas construídas, considerando a complexidade dos processos de subjetivação e fabricação de
identidades no mundo contemporâneo'
Assim, aparecem trabalhos que se põem
afirmativamente na vertente da compreensão do ensino de História como possibilida-
de para 'uma percepção o mais abrangente
possível da condição humana, nas mais diferentes culturas e diante dos mais variados problemas" (RUIZ: 2004, p. 77). Não é
possível estabelecer genera[zações, mas o
ensino de História atualmente não se restringe á reprodução dos heróis e de urna
memória nacional, entretanto ainda trilha
com dificuldade na abordagem da história
por meio de eixos temáticos, do cotidiano
de pessoas comuns e da reflexão presente
na idéia de pós-modernidade. O estudo de
novas linguagens a partir do entendimento
da Nova História Cultural pode proporcionar uma concepção de ensino de História
que deflagre a compreensão dessa disciplina não apenas como estudo do passado em
suas narrativas cronologicamente seqüenciadas e unificadas, mas como tentativa de
compreender a complexidade do presente
e a possibilidade de diferentes narrativas
históricas admitindo que o aluno/sujeito para
o qual pensamos o ensino de História é plurifacetado e transita por diversos "mundos"
informacionais que não se restringem ao
espaço escolar.
História[s] e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
206
Notas
'Miliciano Legalista Frederico Borreli Carda, em Cerro
Murianc', 1936, fotografia de Roberi Capa. Disponivel em:
www.ricciardLeng.brfArtigos/Robert_Capa.htm>. Acesso
em: 20 jan. 2006.
2
Nesse sentido, as autoras deste artigo encontram-se desenvolvendo um projeto, realizado nas Universidades Federal e Federal Rural de Pernambuco, respectivamente no
Departamento de Métodos e Técnicas de Pesquisa e Ensino (Centro de Educação) e no Departamento de Letras e
Ciências Humanas (Curso de Graduação em História), no
História(s) e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bnjce
Lúcia Falcão
qual o objeto de pesquisa é o estudo de linguagens sono•
ras, literárias e visuais no ensino de história como possibilidade de compreender a fabricação de identidades no
mundo contemporâneo. O projeto está sendo realizado em
duas etapas: a primeira consiste no estudo e sistematização do debate teórico em torno da nova historiografia cultural e do ensino de história; a segunda etapa propõe a
elaboração de um arquivo com textos sonoros, imagéticos
e literários para serem usados em experiências pedagógicas relacionadas ao ensino de história.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Perry. As origens dapós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999,
ABUD, Kátia Maria. A construção de uma didática da História: algumas idéias sobre a utilização
de filmes na História. História. São Paulo: 22(1):
2003, p.183-193.
BANN, Stephen. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994.
BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico
na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997.
BURKE, Peter. A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992.
. A Escola dos Annales (1929-1989): A
Revolução francesa da historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CHARTIER, Roger. AHistó ria Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
COSTA, Mansa Vorraber. A pedagogia da cultura e as crianças e jovens das nossas escolas.
Jornal A Página da Educação. N2 12. Outubro
2003, p. 34.
CUNHA, André Victor Cavalcanti Seal da. A (ré)
invenção do saber histórico escolar: apropriações
das narrativas históricas escolares pela prática
pedagógica dos professores de História. Recite:
Dissertação de Mestrado em Educação - Universidade Federal de Pernambuco - CEJUFPE,
2005.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos
Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio;
Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992.
DUBY et alii. História e Nova História. Lisboa:
Teorema, 1986.
FONSECA, Thaís Nivia de Lima. História e ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada, Campinas, São Paulo: Papins, 1995.
208
GARCIA-ROZA, L. A. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1990.
GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de
aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2004.
HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo - a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
KRAMER, Lloyd S. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White
e Dominck La Capra. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, Tomás Tadeu da (Org.). Osujeito
da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A fotografia
como documento - Robert Capa e o miliciano
abatido na Espanha: sugestões para um estudo
histórico. Rio de Janeiro: Revista Tempo, v. 7, n.
14, jan., 2003.
POPKEWITZ, Thomas S. História do currículo,
regulação sociale poder. In: SILVA, Tomás Tadeu
da (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
REIS, José Carlos. A História entre a filosofia e
a ciência. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas,
São Paulo: Papirus, 1994.
RUIZ, Rafael. Literatura: novas formas de abordaro ensino de História. In: KARNAL, Leandro.
(Org.) História na sala de aula: conceitos) práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2004.
SALIBA, E. t Experiências e
representações
sociais: reflexões sobre o uso e consumo de
imagens. In: BITTENCOURT, C. (Org.). Osaber
histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto,
1997, p. 117-127.
História(s) e en!no
de História
Maria T. Didier
Fabiana aruce
Lúcia Falcão
SILVA, Tomás Tadeu (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 1994.
WHITE, Hayden. Meta-História: A imaginação
histórica do século XIX. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992.
Alien(genas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. 1995,
ZAMBONI, Ernesta. Encontros Nacionais de
Pesquisadores de História - Perspectivas. In:
ARAS, José Miguel Neto (Org.). DezAnos de
Pesquisas em Ensino de História. Londrina: AtritoArt, 2005, p. 37-55.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WILLIAMS, Rayrnond. Marxismo y Literatura.
Barcelona: Ediciones Península, 1980.
História(s) e ensino
de História
Maria T. Didicr
Fabiana Bruce
Lúcia Falcão
209
História Is) e ensino
de História
Maria T. Didier
Fabiana Bnace
Lúcia Falcão
210