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O Jogo Duplo como Sabotagem

2016

Este trabalho de projecto propõe-se a elaborar a noção de jogo duplo como uma forma de sabotagem, aplicando-a ao campo da Arte, desenvolvendo um argumento em torno destes termos que os justifique como uma articulação possível de um processo criativo. Inicialmente tratar-se-á de definir as noções de jogo e de "jogo de linguagem" de acordo com Wittgenstein, recorrendo a exemplos de onde se reflita o jogo dos códigos da Linguagem. Neste caso serão analisados o filme Kalkitos (2002), de Miguel Gomes e o meu trabalho de atelier, em particular uma exposição de 24 horas, intitulada BIG SHOW BEMPOSTINHA (2015). A investigação avança pela descodificação do jogo duplo, sugerindo a hipótese de o definir como uma forma de abordar duplamente uma questão, e também como um modo de subversão imediata do conceito de unidade – e por conseguinte da integridade. No entanto esta investigação ir-se-á restringir à capacidade subversiva, ou aos processos degenerativos, que do jogo duplo se podem surtir. De tal forma que se irá desenvolver o conceito de sabotagem para melhor caracterizar o jogo duplo e identificar os seus princípios subversivos. À luz da sabotagem e da forma como o jogo duplo a incorpora, analisam-se aspectos do processo criativo de Mike Kelley, associando-o com a noção de sabotagem através das suas práticas degenerativas da linguagem, expressas em duas das suas peças: Heidi (1992) e Day Is Done (2005). De seguida procura-se assegurar a validade deste conceito jogo duplo como forma de sabotagem, aplicando-o à obra conceptual do artista Douglas Huebler e ao livro de Isidore Ducasse Cantos de Maldoror, sublinhando as ocasiões em que se propicia este tipo de subversão. O propósito deste documento é também identificá-los como sabotadores, e como jogadores de uma dupla linguagem. Este trabalho de projecto apresenta a interpretação prática que procura sublinhar a questão do jogo duplo como uma forma de sabotagem, concretizada nas duas peças Elefante de Sala e Nuts about my Family, que integraram a exposição colectiva OITOUNOVE em julho de 2016. Ambas as peças constituem assim o corpo do trabalho prático que contém as articulações acerca do jogo duplo e da sua natureza sabotadora. Palavras-chave: jogo, jogo de linguagem, jogo duplo, sabotagem, subversão

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES O JOGO DUPLO COMO SABOTAGEM João Maria Mendes Ferreira e Viotti de Carvalho Trabalho de Projecto Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais Trabalho de Projecto orientado pelo Professor Doutor Rogério Taveira 2016 DECLARAÇÃO DE AUTORIA Eu João Maria Mendes Ferreira e Viotti de Carvalho, declaro que o presente trabalho de projecto de mestrado intitulado “O Jogo Duplo como Sabotagem”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas. O Candidato Lisboa, 20 de Outubro de 2016 AGRADECIMENTOS Mãe. Pai. Daniela Wolanschi. Meggie Prata. Tomás Moura. Sebastião Borges. Pooneh Niakian. Ana Viotti. Guilherme Pedrosa. Manuel Calado. Rogério Taveira. Francisca Sousa. David Xavier. Simon Thompson. Todos os demais – porque o são. Demais o sejam. Aos cães aos gatos e todos os outros policarbonatos Adeus, velho, e pensa em mim, se me leste. Tu, jovem, não desesperes, pois tens no vampiro um amigo, embora penses o contrário. Contando com o ácaro sarcopto que provoca a sarna, terás ao todo dois amigos. (DUCASSE, 1988. p. 44) RESUMO Este trabalho de projecto propõe-se a elaborar a noção de jogo duplo como uma forma de sabotagem, aplicando-a ao campo da Arte, desenvolvendo um argumento em torno destes termos que os justifique como uma articulação possível de um processo criativo. Inicialmente tratar-se-á de definir as noções de jogo e de "jogo de linguagem" de acordo com Wittgenstein, recorrendo a exemplos de onde se reflita o jogo dos códigos da Linguagem. Neste caso serão analisados o filme Kalkitos (2002), de Miguel Gomes e o meu trabalho de atelier, em particular uma exposição de 24 horas, intitulada BIG SHOW BEMPOSTINHA (2015). A investigação avança pela descodificação do jogo duplo, sugerindo a hipótese de o definir como uma forma de abordar duplamente uma questão, e também como um modo de subversão imediata do conceito de unidade – e por conseguinte da integridade. No entanto esta investigação ir-se-á restringir à capacidade subversiva, ou aos processos degenerativos, que do jogo duplo se podem surtir. De tal forma que se irá desenvolver o conceito de sabotagem para melhor caracterizar o jogo duplo e identificar os seus princípios subversivos. À luz da sabotagem e da forma como o jogo duplo a incorpora, analisam-se aspectos do processo criativo de Mike Kelley, associando-o com a noção de sabotagem através das suas práticas degenerativas da linguagem, expressas em duas das suas peças: Heidi (1992) e Day Is Done (2005). De seguida procura-se assegurar a validade deste conceito jogo duplo como forma de sabotagem, aplicando-o à obra conceptual do artista Douglas Huebler e ao livro de Isidore Ducasse Cantos de Maldoror, sublinhando as ocasiões em que se propicia este tipo de subversão. O propósito deste documento é também identificá-los como sabotadores, e como jogadores de uma dupla linguagem. Este trabalho de projecto apresenta a interpretação prática que procura sublinhar a questão do jogo duplo como uma forma de sabotagem, concretizada nas duas peças Elefante de Sala e Nuts about my Family, que integraram a exposição colectiva OITOUNOVE em julho de 2016. Ambas as peças constituem assim o corpo do trabalho prático que contém as articulações acerca do jogo duplo e da sua natureza sabotadora. Palavras-chave: jogo, jogo de linguagem, jogo duplo, sabotagem, subversão ABSTRACT This academic essay invites itself into identifying the notion of double game as a form of sabotage, and applying it within the realm of Art, developing an argument around these terms so as to justify their articulation as an employable creative process. At an early stage it will focus on the notions of game and of “language games” as according to Wittgenstein, resorting to examples where the play on these Language codes is apparent. In this particular case, to aid comprehension, both the film Kalkitos (2002), by portuguese director Miguel Gomes, and my studio work, namely a 24 show entitled BIG SHOW BEMPOSTINHA (2015) will be analysed. The document now delves into the decoding process of the meaning of double game, suggesting the hypothesis of its definition as a way to approach a situation in a doubled manner, and also as an immediate subversion of the concept of unity, and therefore that of integrity. Nonetheless this investigation will pertain solely to the subversive traits, or the degenerative processes, that can be extracted by playing the double game. It is so that the concept of sabotage will be properly developed, so as to better fit the subversive profile of the double game. In light of the newly-lit concept of sabotage and how the double game relates to it, aspects of Mike Kelley's creative process will be further analysed, associating them with the notion of sabotage through his degenerative practices on Language, which are conveniently expressed in two of his works: Heidi (1992) and Day Is Done (2005). Afterwards, it's then ascertained the validity of the concepts of double game as a form of sabotage, as it is applied to the work of conceptual artist Douglas Huebler and to the book by Isidore Ducasse Chants de Maldoror, underlining the occasions where these subversive actions occur. The purpose of this document is also to identify them as saboteurs, as well as players of a doubled language. Finally, the essay presents the practical interpretation of its main question around double games as a form of sabotage, which consists in the two pieces that were shown at the collective exhibition OITOUNOVE in july 2016, entitled Elefante de Sala and Nuts about my Family. Both pieces thus make up the body of work that engage directly the subject-matter, that being the enactment of a double game and its natural-born sabotage. Key words: game, language game, double game, sabotage, subversion Não preciso de me ocupar do que farei mais tarde. Tinha de fazer o que faço. Não preciso de revelar que coisas irei revelar mais tarde. Na nova ciência vem cada coisa de uma vez, tal é a sua excelência. (DUCASSE, 1988. p. 213) ÍNDICE Índice de Figuras..................................................................................................................................2 1. Introdução.........................................................................................................................................5 1.1 Objectivos...........................................................................................................................7 1.2 Estado da Arte.....................................................................................................................8 1.3 Estrutura e Metodologia...................................................................................................12 1. O Jogo e a Sujeição à Regra...........................................................................................................17 1.1 Jogos de Linguagem.........................................................................................................18 1.2 Jogando a Linguagem.......................................................................................................24 2. O Jogo Duplo e a Subversão da Regra...........................................................................................34 2.2 A Sabotagem.....................................................................................................................36 2.3 Isidore Ducasse e Douglas Heubler como Sabotadores...................................................49 4. Fotografias, Elefante de Sala e Nuts about my Family: Casos práticos........................................59 5. Conclusão.......................................................................................................................................69 Bibliografia.........................................................................................................................................74 ÍNDICE DE FIGURAS Agradecimentos: Sem título, 2016. 233x292 pixels, formato. jpg 1: Modelo de comunicação de Shannon e Weaver [em linha] http://www.infopedia.pt$modelo-de-comunicacao [consultado em: 13.04.2016] 2: MAGRITTE, René. 1934. Le Viol, 72x54cm,, Sotheby’s [em linha] https://eve1748.wordpress.com/2012/03/14/rene-magritte/1934-magritte-le-viol72x54-cm/ [consultado em: 24.04.2016] 3: MAGRITTE, René. 1935. Anúncio para cigarros Belga, The Art Institute of Chicago [em linha] http://blog.imagesmusicales.be/netta-the-most-beautiful-girl-in-the-world/ [consultado em: 24.04.2016] 4: Huawei Pink, 2016. 968x768 pixels, formato .png, erro de compressão via editor de imagens [Picasa 3] 5: GOMES, Miguel, Still do filme Kalkitos, 2002. 35mm, 19' 6: GOMES, Miguel, Still do filme Kalkitos, 2002. 35mm, 19' 7: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [pormenor: bola de cera em bolas de plástico, autoria: João Viotti] 8: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [autoria: Sebasião Borges] 9: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação 10: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [pormenor: vídeo SCOTCH COLOR FILM, autoria conjunta] 11: Stills do vídeo SCOTCH COLOR FILM, 2015. Dois canais vídeo, 170' 11'' 12: Stills do vídeo SCOTCH COLOR FILM, 2015. Dois canais vídeo, 170' 11'' 13: KELLEY/MCCHARTHY, Stills do filme Heidi, mini-DV, 62'40'', 1992 14: KELLEY/MCCHARTHY, Stills do filme Heidi, mini-DV, 62'40'', 1992 15: KELLEY/MCCHARTHY, Stills do filme Heidi, mini-DV, 62''40, 1992 16: KELLEY/MCCHARTHY, Stills do filme Heidi, mini-DV, 62''40, 1992 17: KELLEY, Mike, Fotografias da instalação Day Is Done, 2005. Gagosian Gallery 18: KELLEY, Mike, Fotografias da instalação Day Is Done, 2005. Gagosian Gallery 25: FS #4, 2016. 1126x792 pixels, formato .jpg 26: OS #11, 2016. 1042x777 pixels, formato .jpg 27: OS #22, 2016. 1042x777 pixels, formato .jpg 28: FHCC #2, 2016. 1078x797 pixels, formato .jpg 29: HH #1, 2016. 750x550 pixels, formato .jpg 19: W #12, 2016. 1323x777 pixels, formato .jpg 20: STCO #3, 2016. 983x710 pixels, formato .jpg 22: INGD #2, 2016. 1153x800 pixels, formato. jpg 23: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis 24: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis [pormenor: brinquedos, pósters e linóleo] 25: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão,gravação áudio 26: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis 27: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis 28: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão,gravação áudio 29: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis [pormenor: factura] 30: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão,gravação áudio [pormenor: fonte de áudio reproduz a frase que dá o título à peça] 1 Introdução O ser humano partilha de uma necessidade lúdica, que o impele a interagir sem um propósito produtivo, obedecendo a um conjunto específico de regras. Esta necessidade ou impulso tem tendência a diminuir com o maturar das nossas vidas, dado ao facto de que a actividade lúdica é desfavorecida, dando lugar ao mérito alcançado pela produtividade – característica de uma vida bem-sucedida aos olhos da sociedade. A ingenuidade deu lugar à seriedade, e não voltamos mais aos dias da infância. E no entanto, o impulso lúdico dos jogos persiste, conquanto a dificuldade em fazê-lo transparecer no seu estado mais puro (ou mesmo inocente) na maturidade. No cerne das minhas preocupações figuraram tanto a subversão como a sujeição às mesmas regras a que se submetem os jogos. O que me levou a elaborar o presente trabalho de projecto surge de três constatações acerca do panorama artístico que eu, como indivíduo do séc. XXI, me identifico. a) A incessante e possivelmente inalcançável procura da Humanidade, no estudo da Linguagem, por uma explicação estanque ou um significado sólido, imóvel e impenetrável como as suas fortalezas, como procura debruçar-se o Tratado Lógico-Filosófico (WITTGENSTEIN, 2001); b) O incontestável contributo para a Linguagem por parte da Poesia, por via dos seus actos transgressivos de autores como Isidore Ducasse perante os seus cânones contemporâneos, e que se tornaram numa comprovação prática das Investigações Filosóficas (WITTGENSTEIN, idem); c) finalmente, a inevitável e crescente virtualidade, com uma linguagem própria, que é simultaneamente imagem-espelho e uma cópia de acordo com as restrições da Lógica (YUILL, 2006), que assim veio proporcionar uma nova bateria de jogos de linguagem, por via de subversões de contexto, linhas de tensão e glitches . (MENKMAN, 2005) Tive em Julho de 2016 a oportunidade de expôr duas peças (OITOUNOVE – LxFactory, Lisboa), em que utilizei algumas imagens da uma série de fotografias de ecrã (ou screenshots) pós-processadas que intitulei de Fotografias, juntamente com outros elementos correspondentes a um vocabulário utilizado no meu projecto de atelier Bempostinha 25B, incluindo objectos correntes como pósters A3, brinquedos pequenos, tótens, e sacos de serapilheira bem como vinil com padrão de madeira numa instalação. Os dois trabalhos são fruto de um culminar de experiências realizadas entre 2015 e 2016, e ambas perfazem o principal exercício prático a que este trabalho de projecto se presta. Apesar de estes se tratarem do cerne da minha investigação, será também instrumental o conhecimento dos meus trabalhos anteriores para melhor se depreender o universo pessoal que faço transparecer nas duas peças da exposição OITOUNOVE. As peças Nuts about my family e Elefante de Sala existem em diálogo indirecto uma com a outra. Uma refere a anterior, quer no título quer na sua correlação com as peças dos outros artistas no colectivo (sendo que se age em função de frustrar, de sabotar o outro). Enquanto que uma simula a seriedade e a solenidade da fotografia e da forma como é exposta (Nuts about my family), a outra dissimula, ou mesmo exorcisa, qualquer envolvimento intelectual e faz-se passar por uma colecção quasi-esotérica de objectos pessoais e inacessíveis – fisicamente inacessíveis, graças a um "intransponível muro" de paletes de madeira (Elefante de Sala). Em suma, o intento de melhor situar este modo duplo de pensar a linguagem e os signos passará por procurar a sua sinonímia no conceito de sabotagem. Este trabalho de projecto procurará não só estabelecer a definição de um jogo duplo como também fornecer a sua aproximação ao conceito de sabotagem, estabelecendo paralelos entre eles. Ao jogar a linguagem contra si mesma, como frequentemente o faz a poesia, a sabotagem intensifica-se nos erros intencionais e nas deturpações do facto, que nos informam da subversão das regras que organizam um contexto. Resta saber de que modo é que esta subversão se comportará numa abordagem dupla, abrindo caminho aos objectivos deste trabalho de projecto. 1.1 Objectivos Este trabalho de projecto visa a investigação do seguinte caso, expresso na forma de um diálogo: João – O que significa abordar uma prática artística a partir de duas posições que se contradizem simultaneamente, Maria? Maria – Na possibilidade de se apresentar a definição de jogo duplo como uma expressão passível de ser utilizada para descrever essa postura dual na arte; então significa que a sua contradição simultânea poderá ser identificada como uma tentativa de sabotagem nesse mesmo "jogo duplo", João! No exercício de estilo anterior está expressa pelo João a questão central deste trabalho de projecto, sendo que Maria interpreta aqui a solução a que esta investigação se propõe. Acerca do objectivo principal deve dizer-se que também ele pode ser considerado duplo: Por um lado procura aferir o que efectivamente implica a existência destas duas frentes simultâneas num trabalho criativo, não só a nível da sua concepção, como a nível da sua recepção ou crítica. Por outro lado propõe-se investigar as possibilidades subversivas, resultantes desta dupla abordagem, e analisar este jogo duplo à luz do conceito de sabotagem. No cumprimento dos requisitos está também em conta a apresentação de uma solução prática à questão, na forma de duas instalações que reflitam esses processos criativos. O método a proceder passa por definir esta dupla abordagem a um problema, sob a forma de um conceito que possa aprofundar o significado de jogo duplo. Para tal, por via da decomposição do termo, inicia-se a aproximação ao significado de jogo, primeiramente na sua definição geral, e depois de acordo com as noções de Wittgenstein acerca do próprio conceito dos jogos de linguagem, apresentando situações no campo da Arte e da Literatura em que o emprego destes jogos wittgensteinianos é observável. Situada a definição de jogo, e devidamente restringida às valências necessárias dos jogos de linguagem, regressa-se ao fulcro da questão – o exercício de uma linguagem que se contradiz no mesmo momento – procurando definir-se aqui como o exercício de um jogo duplo. Para tal, à noção anteriormente apurada de jogo e à sua sujeição à regra, serão conjugadas as definições figurativas de jogo e duplo, no âmbito de testar a forma como se manifesta a subversão da regra aquando esta conjugação – recorrendo ao conceito de sabotagem para se chegar a uma aproximação do significado um jogo que é duplo, e da sua natureza subversiva. No entanto, ainda que estabelecido o conceito de jogo duplo o objectivo bicéfalo do trabalho de projecto reitera que se investigue o potencial da contradição interna que o jogo duplo admite. Assim aprofunda-se o raciocínio, para este se refugiar finalmente no conceito de sabotagem e nas suas qualidades subversivas, em busca de exemplos de obras que compartilhem desta abordagem dupla que joga com os processos da sabotagem. Apresenta-se finalmente a realização prática destas hipóteses, e que finda esta investigação acerca do jogo duplo como um processos criativo de sabotagem. Postos os conceitos anteriores em articulação torna-se mais acessível a análise da solução prática, também ela uma solução "dupla". A razão desta afirmação prende-se com o propósito inicial deste trabalho de projecto, que tem que ver com uma abordagem dupla, e para tal implicou que se trabalhassem obrigatoriamente não uma mas duas possibilidades. 1.2 Estado da Arte Acerca deste tema – que é a dupla abordagem a uma prática artística – é difícil mencionar um teórico que se debruçe sobre um significado, assim tão restrito, sob a definição de jogo duplo. Se bem que a questão foi tratada em termos mais abrangentes, tendo sido levantadas problemáticas no campo da Filosofia e da Literatura, mas menos aprofundada no campo da Arte. A forma como Ludwig Wittgenstein define a indefinição do conceito de jogo permitenos elaborar um raciocínio sobre a imagem difusa que implicará um jogo que é duplo. O conceito de jogo é um conceito de contornos esfumados – «Mas um conceito esfumado é de todo um conceito?» [...] Pode-se sempre substituir com vantagem uma imagem difusa por uma imagem nítida? Não é muitas vezes a difusa aquela que nós precisamos? (WITTGENSTEIN, 2001. pp. 231-2) Tendo já Wittgenstein, na sua transição filosófica do Tratado Lógico-Filosófico para o volume Investigações Filosóficas, tornado óbvia a estrutura flexível da Linguagem, autores como Hernández Les, Badiou e muitos outros debruçaram-se igualmente sobre a noção de que a Linguagem não é mais como um conjunto fixo de regras, e que na realidade ela é constantemente adulterada por inúmeros e inevitáveis "jogos de linguagem" que a fazem balançar de contexto para contexto. A forma como Wittgenstein expõe a presença dos jogos na Linguagem esclarece o seu papel instrumental, mas não precisa o que se pode entender por um jogo duplo de forma satisfatória, para tal há que recorrer a outras fontes para se explicitar a forma como um jogo de linguagem pode funcionar duplamente O conceito de jogo duplo já foi utilizado para definir o caso do diálogo que foi estabelecido entre o escritor Paul Auster e artista Sophie Calle, do qual foram frutos duas peças que se aproximam numa relação de complementaridade: Leviathan (1992, por Auster) e Double Game (de Calle). A estória do primeiro livro fala de Maria, uma artista ficcionada por Auster que é profundamente baseada no perfil de Sophie Calle e no seu trabalho artístico. O livro escrito por Calle apropria-se do seu duplo ficcional – Maria – sobrepondo assim o seu universo pessoal com o de Paul Auster. Calle, intrigued by this appearance of her ''double,'' decides to use Auster's novel as the basis of a new game and to create her own ''particular mixture of reality and fiction.'' This game is played out on the pages of ''Double Game.'' [...] ''Double Game'' – the title already works on two levels – begins with a facsimile copy of pages 60-67 of ''Leviathan,'' on which Calle's handwritten ''corrections'' in red set the record straight about where the fictional Maria differs from Sophie. Then Calle carries out two of Maria's projects that Auster invented. (MARTIN, 2000.) Como se pôde comprovar no excerto do artigo do jornal New York Times, o "jogo duplo" de Sophie Calle apresenta-se em mais do que um plano, e talvez seja um destes planos secundários o de maior interesse para este trabalho de projecto. Atente-se às "correcções manuscritas a vermelho", em que Calle toma a liberdade de rasurar e comentar directamente o texto de Paul Auster do qual é dúplice. A este nível, Double Game aproxima-se dos contornos de um jogo duplo que procura invalidar pré-concepções ou mesmo determinadas regras, e é a este nível da subversão das regras que se procurará restringir o trabalho de projecto. Wittgenstein também apresenta um exemplo conversacional de sabotagem, ainda que indirecto e relacionando com o jogo de linguagem da palavra jogo. A má-interpretação de um pedido apenas serve para ilustrar outra forma de errar intencionalmente, e de jogar a linguagem do jogo: "Uma pessoa diz-me: «Mostra um jogo às crianças!». Eu ensino-lhes a jogar os dados a dinheiro e a pessoa diz-me «Eu não quis dizer um jogo desses». Ao dar-me a ordem, teve ela neste caso que ter em mente a exclusão dos jogos de dados? (WITTGENSTEIN, 2008, pp. 231) Quando Wittgenstein refere que a frase "uma coisa é idêntica a si própria" é o melhor exemplo de uma proposição inútil, informa-nos também que a esta proposição está ligada um delicado jogo mental (WITTGENSTEIN, 2008. p. 328). Um jogo que pode ser visto como duplo, dado que obriga a que se insira mentalmente a coisa na sua forma, e que desta inserção se comprove ora perfeição deste encaixe ora a redundância deste acto erróneo. A forma como eu entendo esta frase pode ser tida como exemplo importante para o efeito da sabotagem na linguagem, ao agir com o fito de invalidar algumas das regras lógicas da produção de significado na linguagem. A performance e a instalação também partilham dos seus duplos no séc. XXI. Também elas, outrora espartilhadas ao espaço físico, são agora possíveis de ser replicadas em infindáveis espaços virtuais. Com as fronteiras entre o espectador e o jogador a ficarem cada vez mais ténues graças aos avanços da interactividade e imersão dos jogos de vídeo, a tendência é para que ocorram cada vez mais cruzamentos de um meio para o outro – neste caso o físico e o virtual. De tal forma que se abrem novos modos de experimentar esta dicotomia "físico/virtual", o que evidencia a possibilidade de se desenvolverem jogos entre estas duas formas de linguagem e por conseguinte articulá-los de modo a que sejam passíveis de se influenciar não em sincronia, mas sim em mútua antagonia – abrindo as portas um tipo de relação que irei justificar como um jogo duplo. Sendo a linguagem de programação ela mesma um duplo ou uma "reutilização" da Linguagem e da Lógica, reacenderam-se debates como a simulação ou "gameificação" mas é principalmente o debate em torno da imperfeição, onde a participação da artista e teórica Rosa Menkman, com o texto The Glitch Moment(um), em favor da revalorização do erro e do glitch (termo utilizado para definir um erro informáticos, sendo criada a distinção entre o erro involuntário e o voluntário) trouxe ao público novas formas de pensar a Linguagem, nomeadamente com uma importante ênfase wittgensteiniana assente na maleabilidade dos sentidos das palavras e na desconstrução da Lógica dentro da Linguagem. Isto traz-nos aos dias de hoje, em que me permito dissertar com plena consciência da inconsistência inerente da Linguagem. O contributo da Poesia para a Linguagem foi maioritariamente a possibilidade de fabricar jogos de linguagem mais transgressivos ou arrojados, decompondo e reformulando o significado das palavras, tornando-as cada vez mais argilosas ou abrangentes. De tal forma que foi na poesia de Isidore Ducasse que encontrei referências que melhor se adequaram à definição de jogo duplo, não só pelo facto de abordar duplamente a obra (ora em pseudónimo ora em autor), mas principalmente porque existe um claro acto de sabotagem, em que o Conde de Lautréamont escreve em defesa da malícia, da infecção e dos abismos marinhos, Isidore Ducasse apressa-se por invalidar tudo o que seu pseudónimo argumentou a favor. Ducasse por sua vez escreve em postura de ataque, e leva como baluartes o Valor, a Ciência e Deus. A suprema e sabotadora contrariedade explícita nesta obra, pretende-se justificar como sumo exemplo de um jogo duplo, articulado ainda dentro do mesmo objecto, por duas abordagens que se interpenetram. 1.3 Estrutura e Metodologia Para destrinçar a forma como o meu processo artístico se relaciona com os princípios inerentes da ambiguidade, da incerteza e da sabotagem é necessário desenvolver um raciocínio progressivo mas fraccionário que se reparte sucintamente em três campos: Tratando o primeiro campo (capítulo 2) acerca do conceito de jogo para depois se precisar na noção de jogo de linguagem ( e a sua definição de acordo com Wittgenstein), o segundo (capítulo 3) foca-se na definição de jogo duplo, e tenta utilizar os conceitos elaborados no primeiro campo de modo a justificar uma abordagem dupla, contraditória e dissimuladora como um processo criativo com base nos processos degenerativos da Linguagem. Já o terceiro e último campo (capítulo 4) trata de analisar dentro do meu trabalho prático o exemplo das duas peças expostas em 2016, resultantes desta mesma abordagem dupla, e pretende situá-las em relação à definição de jogo duplo que foi anteriormente explorada no capítulo 3. O raciocínio explícito nestas páginas vai beber a fontes que se espraiam para os limiares de campos como a Literatura, a Arte, a Filosofia e a Guerra. O documento irá conter referências aparentemente díspares, mas que se revelarão pertinentes para definir um conceito de contornos difusos. Referências como Herberto Helder ou Isidore Ducasse no ramo da Poesia; Miguel Gomes e Mike Kelley em dois ramos tangentes ao Cinema do campo da Arte; excepções como Wittgenstein e Aleister Crowley nos ramos mais flexíveis da Filosofia; e por fim excertos publicados pela Central Intelligence Agency (ou CIA), cujo tópico visa o ramo da Sabotagem. A forma como muitas destas fontes se apresentam em espanhol (como no caso de Alejandro Jodorowski) ou em inglês (como acontece com Aleister Crowley e Mike Kelley), e sem a sua devida tradução na língua portuguesa, prende-se com o facto de eu considerar que estas fontes funcionam a um nível mais próximo da subjectividade, passando por demonstrações poéticas das quais pretendo extrair fragmentos que complementem o raciocínio em torno dos jogos de linguagem pré-existentes na língua original das fontes, e assim preparar a senda que irá levar à proposição do jogo duplo como uma forma de sabotar a linguagem. O capítulo 2 deste documento inicia o processo de investigação, colocando uma série de questões preemptórias, antes de se avançar para questão central: a) O que significa o conceito de jogo no domínio da Linguagem, e como se relaciona este com o conceito de regra? b) O que é um "jogo de linguagem" segundo Wittgenstein, e como é que se articula? O que é que alavanca a possibilidade dupla de um jogo, senão a adulteração das suas regras? Assim o ponto 2 divide-se em dois sub-pontos que trazem o esclarecimento de ambas as questões prévias acima referidas. Inicia-se com secção 2.1 procurando melhor restringir o conceito de jogo levantado no começo do capítulo 2, e inferir a sua dependência de uma regra ou de um conjunto das mesmas, para de seguida se restringir a definição aos jogos no campo da linguagem, referindo os esforços de Wittgenstein por restituir em vão a solidez do conceito de regra ao estudo da Linguagem. Refere-se também como exemplo de jogo e de regra, o modelo de comunicação desenvolvido por Shannon e Weaver para melhor ilustrar a constância da regra e do erro, até nos mais complexos sistemas de informática (à imagem dos jogos de linguagem). A secção 2.2 tratará de responder às proposições que b) iniciou. A partir das acepções wittgensteinianas acerca da flexibilidade da Linguagem, procurar-se-á fornecer casos de estudo que possam servir de exemplo desta flexibilidade, através do emprego de processos transgressivos como a reconfiguração ou a recontextualização do sentido. Serão analisados à luz destes conceitos o filme Kalkitos, do realizador Miguel Gomes e a exposição Big Show Bempostinha, incluída no meu projecto de atelier Bempostinha 25B, que levado a cabo no ano de 2015. Passa-se para o capítulo 3 onde está patente a questão central, que inquire se será possível a definição de jogo duplo para um tipo de postura dual na arte, e de que formas é que este pode ser articulado Novamente serão analisadas algumas das definições de jogo mas desta vez atentando sobre o seu significado figurativo, bem como definições da palavra duplo, para procurar conjugar os significados com um determinado grau de restricção. Dividindo-se em duas secções, o capítulo 3 procura não só definir, ainda que de forma embrionária, o conceito de jogo duplo, mas acima tudo explora a sua relação íntima com a subversão das regras, e portanto com a noção de sabotagem. A secção 3.1 tentará enquadrar a sabotagem como um intrumento acessório ao jogo duplo, um processo capaz de exercer pressão sobre o jugo das regras, jogando-as contra elas mesmas se possível. A secção procura informar de que forma é que a sabotagem pode subverter uma situação, e explicita porque é que é sempre ou quase sempre de uma natureza dupla: porque a sabotagem implica um acto subversivo que é dissimulado e tomado por outro que esteja sujeito às regras. Acompanhando o texto estão algumas passagens de um manual sobre sabotagem simples distribuído nos anos 40 aos informadores e colaboradores da Central Intelligence Agency (CIA), que enunciam simples manobras de diversão, dissimulação e outras tácticas para dificultar o cumprimento de tarefas tão simples como a segurança no espaço de trabalho. Visa-se também explicitar os dicótomos do erro acidental e o erro intencional, assim identificados por Rosa Menkman, a emulação da Lógica humana por parte dos programas de software e formas de capitalizar sobre essa condicionante, segundo Simon Yuill. No entanto este trabalho de projecto restringir-se-á a uma parte deste dicótomo: o erro intencional, na tentativa de identificar com maior clareza a articulação do erro intencional como forma de sabotagem. Esta última relação entre uma intenção errónea e a prática da sabotagem irá tentar ser explorada à luz das acepções de Mike Kelley acerca da criação artística, tomando por exemplo dois dos seus trabalhos desenvolvidos no meio audiovisual. Inicia-se por identificar a subversão da linguagem fílmica em Heidi (1992), para de seguida se analisar os processos de recontextualização da cultura folk em cultura pop. O intuito desta secção é salientar a forma como actos pejorativos e de baixa categoria são encorajados, e propor uma revalorização desses mesmos actos no panorama das artes. Na secção 3.2 analisam-se as estruturas e mecanismos de subversão na obra de Douglas Heubler e no livro Cantos de Maldoror da autoria do Conde de Lautréamont (pseudónimo de Isidore Ducasse) à luz das noções de sabotagem como instrumento do jogo duplo. Douglas Heubler, cujo trabalho se desenvolve mais a nível conceptual, servirá como nexo de relação entre os ramos da Arte e da Literatura, facilitando uma definição alargada ou trans-disciplinar de sabotagem. Assim pretende-se uma passagem inócua para o ramo da Literatura e procurar-se-á expor com clareza as duas abordagens simultaneamente opostas que o autor de Maldoror toma no corpo do texto e no posfácio (que se apresenta como prefácio, e assinado com o nome factual do autor). Discutir-se-á a forma de definir o autor que desdiz na poesia aquilo que o seu próprio pseudónimo diz na prosa, como um escritor que domina o jogo duplo e que o faz sabotando, e sabotando-se. Serão estudados ambos os casos, procurando correlacionar as noções de sabotagem com as de jogo duplo, como características partilhadas pelos jogos de linguagem patentes em cada uma destas obras. Finalmente no ponto 4 descreve-se o meu trabalho prático, justificando porque serve de realização in loco deste trabalho de projecto. Começa-se com breves descrições das circunstâncias que o possibilitaram e com a introdução ao processo de falsificação pela qual passa a minha série de fotografias de ecrã (ou screenshots) Fotografias, que preludiou a abordagem dupla tomada no meu trabalho para a exposição colectiva OITOUNOVE em julho de 2016. Serão dadas a conhecer algumas das imagens que integram a série-matriz do projecto posteriormente exposto, para mais tarde se tratar a forma como estes objectos se interpelam num fac simile do diálogo. Termina-se o argumento em defesa do trabalho com a justificação da particularidade de existirem duas peças-resposta contrastantes, e não uma peça única que seja a súmula do meu raciocínio acerca da questão do jogo duplo. O LEITOR QUE NÃO SE ZANGUE COMIGO, se a minha prosa não tem a felicidade de lhe agradar. Tu sustentas que as minhas ideias são pelo menos singulares. Isso que dizes, é verdade; mas é uma verdade parcial! Ora, que fonte abundante de erros e equívocos são todas as verdades parciais! (DUCASSE, 1988. p. 137) 2. O Jogo e a Sujeição à Regra Esta primeira secção tem a sua razão de ser pela dificuldade em assentar uma definição suficientemente restrita à palavra portuguesa jogo, e para tal há que levantar alguns exemplos e considerações sobre o que significa e o que pode abarcar este termo tão abrangente na língua portuguesa. Numa primeira instância, a palavra jogo significa divertimento. Pode significar também um exercício recreativo submetido a regras, e no qual se ganha ou se perde; um deleite intelectual; um conjunto de manobras, geralmente arriscadas, que alguém empreende para atingir um objectivo; ou simplesmente uma combinação caprichosa que resulta da mistura ou disposição particular de certas coisas como um jogo de luzes ou um jogo de toalhas de casa de banho (AAVV, 2004. p. 98). O que se consegue aferir é que um jogo significará maioritariamente uma circunstância cujo perfil é circunscrito por um conjunto de condicionantes, que neste caso podem ser identificadas como regras. Regras essas que circunscrevem o acto de uma coisa jogar com a outra, de uma ou determinada maneira. A forma como nos introduzimos aos jogos na mais tenra idade está intimamente ligada à experiência lúdica, ou seja, ao entretenimento e ao prazer. A premissa de um jogo permite a quem o joga uma hipótese de se recontextualizar dentro de conjuntos de regras, e com elas engajar as pessoas que participam no jogo. Será pertinente recorrer ao saber popular, e relembrar o provérbio “Mais descobre uma hora de jogo que um ano de conversação” (AAVV, 2004. p. 98), que alude ao facto de o jogos revelarem a personalidade dos jogadores de uma forma mais imediata do que por via do diálogo, e é graças a esse mesmo exercício de submissão a regras alheias às que circunscrevem o acto da conversação, alheando temporariamente o jogador dos contextos normativos, e aliviando-o da submissão constante às regras que edificam a sociedade. O nosso entendimento faz-nos incluir, por via da maturidade, toda uma nova gama de jogos que se movem para além do fito lúdico, tomando o lugar de um exercício de códigos sociais. É portanto no exercício e na boa leitura destes códigos que assentam as entrevistas de emprego bem-sucedidas, assim como uma apresentação de um produto. Só depois deste primeiro entendimento do conceito de jogo como um instrumento de interacção com a sociedade, é que se torna possível questionar qual será a contextualização do jogo no domínio da Linguagem, estabelecer como se relaciona este último com o conceito de regra. Procurar-se-á também definir o que são “jogos de linguagem” de acordo com Ludwig Wittgenstein, e estudar alguns casos em que são utilizados. Sabendo que viver numa sociedade é também utilizar os mesmos códigos de linguagem, será importante aferir de que modo é que se pode reutilizar esses códigos, e em que condições estes “jogos de linguagem” subvertem a linguagem, levando à transgressão das suas regras. 2.1 Jogos de Linguagem Por muito que a primeira impressão do jogo seja a de um momento lúdico, o exercício de codificação e descodificação que os jogos fomentam torna-se pois essencial para quase todas as interacções que mantemos na maturidade. A criança estabelece relações e faz amigos quando entra em jogos e consequentemente se relaciona com os participantes com base nessas mesmas condições, ao passo que um adulto dificilmente se esquece das regras comportamentais que deve cumprir para se inserir correctamente na sociedade e no contexto que ela reitera. Por outras palavras, tanto criança como adulto precisam de ingressar em jogos para se relacionarem, no entanto a mente adulta tem a capacidade de reconhecer mais códigos, e sente portanto a responsabilidade acrescida de os descodificar e de corresponder às normas normas essas que as crianças apenas conhecerão aquando participem num jogo que contenha valores que as simulem, tal como um aluno que ergue o braço para falar em vez interromper o professor. Numa revisão gramática da palavra jogo encontramo-la em dois estados ou duas valências do substantivo, por assim dizer. Ou seja, deparamo-nos com um substantivo concreto e um abstracto, sendo que o primeiro ilustra (um jogo de cartas, um videojogo, uma apanhada) e o segundo engloba (o vício do Jogo, em que "Jogo" implica toda uma gama de pequenos jogos de azar), um pouco como se distinguiria o nome que substituímos pela alcunha de amor e o nome da sua razão de ser – o Amor. O jogo concreto, em oposição ao jogo abstracto. Primeiramente, um jogo no seu sentido mais abstracto pode ser entendido como uma relação entre um sujeito (ou grupo de sujeitos) e um objecto (ou vários objectos – ou simplesmente outros sujeitos, sobre os quais intervém o primeiro), pela qual intercede um conjunto de circunstâncias ou regras, estabelecidas de antemão (ou seja um espaço – físico ou conceptual). São estas regras estabelecidas de antemão que Wittgenstein enquadra no plano lógico da linguagem, como um "mapa genérico dos significados". (WITTGENSTEIN, 2008. pp. 52-6). No entanto e em segundo lugar, o substantivo concreto de jogo representa um conceito que serve de ilustração sucinta para todos os desportos, actividades lúdicas com objectivos prédefinidos, brinquedos, ou conjuntos de ferramentas. Ou seja, um jogo concreto, como uma partida de basquetebol, é a concretização de uma relação circunstancial entre dois ou mais elementos, sendo essa relação considerada também um jogo na sua valência abstracta. É o simples cumprimento da directiva, da regra, do objectivo, sob as condições impostas a priori, ou pelo menos na tentativa do seu cumprimento que caracteriza e informa a definição abstracta de jogo. A definição concreta dissipa-se face a uma dificuldade em encontrar um objecto comum a todos os jogos, salvo a presença da regra. Esta regra, por sua vez na sua concepção abstracta, é imaterial, implica uma condicionante, um procedimento que está passível de ser ou não cumprido – e só com o entendimento desta fórmula implícita se torna possível depreender correctamente o que significa jogar um jogo. A presença e a persistência da regra nos jogos e a obediência dos elementos neles envolvidos pode ser comparada às relações vectoriais que um canal estabelece entre Transmissor e Receptor, na medida em que todos os elementos estão dependentes desse vector iterativo para funcionarem, também os jogos estão dependentes de um determinado grau de sujeição a uma lógica e processos pré-estabelecidos que actuam como directivas, por outras palavras, regras. Fig. 1: Modelo de comunicação de Shannon e Weaver Acima representado está o modelo de comunicação que Claude Elwood Shannon e Warren Weaver desenvolveram para a transmissão de informação entre dispositivos electrónicos. Este informa-nos do interessante paralelo com a forma como se articulam as regras do nosso discurso, algo que por conseguinte nos aproxima das imposições e estruturas identificáveis na anterior definição abstracta de jogo. Outra maneira de expressar a forma como se efectua o discurso está expressa aqui por Alberto Pimenta, com a qual comparo o modelo da figura 1. A fonte de ruído de Shannon e Weaver estabelece um paralelo com o que Pimenta se refere ao que vem de dentro (2000. p.2 ). A forma como ambos se inserem no sentido subrepticiamente, acaba por validar algumas incoerências, levantando alguns dos problemas com os quais Ludwig Wittgenstein se deparou nos textos Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas. Os olhos interpretam o que vêem, e os ouvidos ouvem sobretudo o que vem de dentro. Acho que é exactamente para isso que a linguagem e, com ela, o discurso humano servem: para poder afirmar sempre qualquer coisa, ou o seu contrário, e sempre com a sua razão, o seu sentido. (PIMENTA, ibidem.) É na submissão a este sentido irreversível, que jogos como o mamã dá licença? ou o telefone estragado se articulam. Evidentemente, a complexidade intensifica-se, dando lugar a jogos estritamente mentais, cujas regras são as da sociabilidade e o propósito é a satisfação de um grupo restrito, um pouco à semelhança de uma equipa procurando vantagens sobre a outra. A criança deixa um mundo de contextos e de jogos inocentes, para lentamente se inserir num contexto mundial e em inescapáveis jogos de linguagem. Inescapáveis, porque segundo Wittgenstein, o seu próprio conceito de jogo de linguagem não só abarca os jogos por meio dos quais as crianças aprendem a sua língua natal, as linguagens primitivas, como inclui o todo formado pela linguagem e pelas actividades com as quais ela está entrelaçada (WITTGENSTEIN, 1988 p. 177). Ludwig Wittgenstein investigou a fundo a origem e as circunstâncias que circunscrevem a linguagem, apenas para chegar à conclusão que é indispensável pensar a linguagem de forma isolada ou arquetípica, e que antes deve ser considerada como um jogo de linguagem; algo mutatis mutandis – que vive da fluidez do jogo que se faz entre o sentido da palavra e o contexto. Fazendo alusão ao esquema do modelo de comunicação da página anterior (Figura 1), ao procurar uma definição mais fluida e compreensiva da linguagem, depreende-se que Wittgenstein esteja preocupado com o momento em que a mensagem perde parte do seu sentido e se torna instável. Ao passar de transmissor para receptor a informação está sujeita às condicionantes de cada um, e é nesse processo de tradução que o sentido abdica de uma parte e atrai outra, fomentando a renovação e a alteração do sentido da palavra. Nas palavras de Alain Badiou, a retórica de Wittgenstein passa de uma solidez impressionante (ainda que não propriamente essencial) no Tratado Lógico-Filosófico, para uma provocação elusiva e irritante mas no entanto essencial nas Investigações Filosóficas. (BADIOU, 2011. p.175). Is it according to common conceptions, good to want nothing for one's neighbour, neither good nor evil? And yet in a certain sense it seems that not wanting is the only good. Here I am still making crude mistakes! No doubt of that! It is generally assumed that it evil to want someone else to be unfortunate. Can this be correct? Can it be worse than to want him to be fortunate? Here everything seems to turn, so to speak, on how one wants. (WITTGENSTEIN, 1979. pp. 77-8) Com a citação acima podemos dar conta das dificuldades semânticas pelas quais Wittgenstein se fez passar, e justifica melhor a afirmação de Badiou. A última frase de Wittgenstein parece apontar finalmente para o facto de que "tudo orbita em torno de como se quer" e não daquilo que efectivamente se quer, ou seja, pode-se dizer que é o contexto que reitera o que se adequa na linguagem, e que é do reconhecimento desse contexto que se produz o entendimento, reflectindo-se na linguagem. Quero trazer à consideração uma das elações que Wittgenstein faz acerca da linguagem – das suas mais tardias, precisamente. De que a linguagem por si só não existe, mas que se manisfesta na forma de jogos de linguagem. E será a partir daí que tentarei definir melhor o que significa o conceito de jogo nesta valência mais abstracta, que é a da dialéctica, da literatura, e em última análise, da arte. Quando Wittgenstein abriu a hipótese da linguagem como um jogo, nasceu também a proposição que reitera que a linguagem como não é inteiramente tangível, mas que apenas a tacteamos no breve momento em que analisamos ou acedemos a esses mesmos jogos (ou conjuntos de regras) que se prestam à linguagem. Esta por sua vez existe apenas na tangência do presente, e se manifesta-se apenas na nossa participação directa ou indirecta no contexto, e consoante a condição das nossas faculdades perceptivas. Can one negate a picture? No. And in this lies the difference between picture and proposition. The picture can serve as a proposition. But in that case something gets added to it which brings it about that now it says something. In short: I can only deny that the picture is right, but the picture I cannot deny. (WITTGENSTEIN, idem. p. 33) Procuro com a citação anterior exemplificar o modo como um jogo de linguagem se articula com uma imagem, e portanto como as nossa linguagem se submete à força proposicional das imagens. Só somos permitidos negar a validade da imagem, conquanto que não a neguemos por completo. Optei por poupar a língua portuguesa da tradução inglesa do alemão de Wittgenstein, apenas para não forçar um adicional jogo de linguagem (que é neste caso a gramática e o significado na língua portuguesa) sobre o próprio exercício pré-existente de tradução levado a cabo por Ascombe e Wright em 1979 – que em si mesmo é uma mediação entre dois jogos de linguagem, que serão aqui considerados o alemão e o inglês, com todas as suas regras e jogos, quer intrínsecos quer transversais. O que Alejandro Jodorowsky implica com a frase “Más importante que la luna / el índice que muestra la luna” (JODOROWSKI, 2007. 203) é alertar para a importância da nossa percepção das coisas em detrimento das coisas em si. Apesar da sua subjectividade, o escritor com isto acaba por se aproximar da concepção wittgensteiniana da linguagem. O jogo de linguagem existe na relação entre contexto e percepção (intenção e inteligibilidade) ou mais precisamente entre o objecto como é e o objecto como se nos apresenta – reiterando assim a impossíbilidade categórica de conhecermos a Lua, a não ser pela observação do Luar e das suas várias fases lunares. O que não difere de Wittgenstein quando informa da impossibilidade de conhecer a Linguagem a não ser através do estudo dos indícios que perfazem e alteram uma Língua. No entanto a dificuldade deste feito veio a tornar-se acrescida na simultaneidade dos dias de hoje. Segundo Juan Hernández Les, “vivemos numa época em que a certeza da linguagem foi substituída pela incerteza das linguagens” (LES, 2003. p. 28), e que portanto a contemporaneidade é marcada pela incerteza das várias linguagens que a permeam, bem como pelas diferentes sensações que essa incerteza desperta. Com as novas lacunas e campos expandidos da contemporaneidade vêm novas ferramentas para as explorar, manipular e moldar, originando-se novas formas de articular os jogos de linguagem, que se tornam também novas matérias de trabalho para os artistas. 2.2 Jogando a Linguagem A presente secção apresenta situações que funcionam de acordo com o conceito wittgensteiniano dos jogos de linguagem, e que portanto se servem da reconfiguração dos significados que os jogos de linguagem implicam. As situações que aqui se prestam a exemplo constroem sobre a ambiguidade que Wittgenstein identificou na Linguagem. O surrealismo de Magritte é um exemplo claro da utilização dos jogos de linguagem num plano da visualidade. Há duas das suas peças, para além do celebérrimo Ceci n'est pas une pipe, que se pretendem aqui referir, dado que ilustram uma forma de reconfiguração dos valores, e portanto um jogo de linguagem subversivo: são elas a peça Le Viol, que representa um rosto da sua mulher Georgette cujas feições são substituídas pelas partes íntimas da mulher, e o anúncio para os cigarros Belga, que representa o mesmo rosto que em Le Viol, com a diferença de que as feições de Georgette estão presentes e normalizadas. Apesar de não referir uma relação semântica entre elas, de não se interpelarem directamente, ambas podem actuar como comentário formal da outra. Uma infere indirectamente a outra, estabelecendo um jogo de linguagem entre ambas as peças e o seu sentido, como se comprova nas imagens abaixo. Fig. 2: MAGRITTE, 1934. Le Viol Fig. 3: MAGRITTE, 1935. Anúncio Belga Cigarrettes A letra da canção Communication Breakdown, da banda Led Zeppelin faz também alguma justiça às acepções wittgensteinianas acerca dos jogos de linguagem que problematizam as regras da linguagem. Estes jogos destituem a comunicação da sua habitual inteligibilidade. Communication breakdown / It's always the same / I'm having a nervous breakdown / Drive me insane! (PAGE, 1968) A inteligibilidade a que me refiro pode ser articulada com o modelo de Shannon e Weaver (Fig. 1). Este modelo de comunicação contém o mesmo princípio activo nos processos que fomentam a constante mutação da linguagem – existem também "transmissores" e "receptores" cada um com o seu vocabulário e ferramentas próprias, que se debatem para destrinçar as incoerências entre as mensagens trocadas. Ou seja, tanto o ruído de fundo, como as noções que ambas as partes possam ter de cada conceito sugerido vão influir na compreensão dos seus conteúdos. SUJEITO → ACÇÃO LEITURA ↓ → || → ↕ RUÍDO SENSAÇÃO → SUJEITO OBJECTO Pode-se dizer que quando a mensagem muda de mãos, ou quando a informação passa de um corpo para outro há uma porção que é perdida aquando o momento da computação do estímulo para o outro corpo, populado de antemão com conceitos mais ou menos compatíveis com a informação vindoura. Podemos e devemos ainda, tomar em consideração a fonte de ruído, que aparenta existir aquém do Sujeito bem como do Objecto, mas é no entanto uma característica patente do Lugar: é no lugar e na sua delimitação que decorrem todos os actos, e é esse dito "ruído de fundo" que, como o jogo do telefone estragado, proporciona o Erro – e por conseguinte inviabiliza a estabilidade, ou a ordem deste sistema. O modelo "information source -> encoder -> channel -> decoder -> destination" que Shannon construiu inclui também um vector adicional que insere o ruído (noise) neste canal, como um sexto factor, simultaneamente externo e disruptor. (MENKMAN, 2011. p. 13) O sexto vector a que Rosa Menkman se refere como um vector externo e disruptor, é necessariamente imprevisível, erróneo – desordeiro. E é desse momento na comunicação, argumenta ela, pelo qual se move a imprevisibilidade, dando origem a novas configurações – características essas que fazem agora parte de uma nova tipologia de produção multimédia que se centra na intervenção e modulação deste mesmo canal – a glitch art, um novo jogo de linguagem que surge da infiltração da linguagem informática e das suas falhas na linguagem da arte, em que se destacam nomes como Jeff Donaldson (com projecto noteNdo) e JODI (com os projectos Untitled Game e <$BLOGTITLE&>). Fig.4 : Huawei Pink, 2016. Erro de compressão via editor de imagens Tenho alguns exemplos de experiências minhas com erros deliberados de computação, que incluem imagem (sendo uma delas a peça Huawei Pink acima referida) ou vídeo (série MINOR TECHNICAL DIFFICULTIES, disponível no meu canal Vimeo cujo URL é https://vimeo.com/joaoviotti) mas mais particularmente é sobre a produção de som que irei elaborar. Através de um leitor de ficheiros multimédia é possível reproduzir ficheiros que não foram programados para essa funcionalidade, e ao subverter o processo convencional de leitura desdes ficheiros estou a forçar uma tradução ao destituí-los dos protocolos originais. No meu caso, os ficheiros com que trabalhei continham dados de gráficos tridimensionais, como modelos de objectos ou mesmo arquitecturas de áreas virtuais. Ao reproduzi-los por via do leitor de multimédia o programa interpretou os dados tridimensionais como se tratassem de dados áudio, resultando na tradução dos volumes e contornos dos objectos nas instâncias rítmicas e sinais sonoros de altura definida. Excertos deste projecto de som podem ser consultados no meu canal NewHive, cujo URL é http://newhive.com/jviotti/profile/feed. Será de salientar que esta intenção de manipular ruído de fundo, de procurar forçar um erro em vez de procurar formas de o minimizar, pode ser vista como uma tentativa de subverter o modelo ideal de comunicação, afastando-o da sua relação mais simples e eficaz. Por outras palavras, há um jogo de trocas, um diálogo – um conjunto de acordos pelos quais se rege a comunicação básica, em que as trocas de informação podem ser prejudicadas por um ruído de fundo, uma falha. Para sublinhar a importância desta intenção em falhar, a frase de Alejandro Jodorowski "Nada para todo / Fracaso luego existo" reinterpreta o célebre motivo cogito ergo sunt, para o adaptar à forma como é por via do "fracasso" que se comprova a existência humana. (JODOROWSKI, 2010. 483) Mas o argumento que avanço é a possibilidade de que essa intenção errónea e subversiva não prejudique mas pelo contrário venha a enriqueçer a transmissão de uma mensagem. De que a sabotagem desse mesmo canal onde se origina o ruído de fundo, torne o decifrar das mensagens mais aliciante, não pela sua clareza, mas sim pela palíndrome de sentidos, fruto da indução do erro no próprio discurso. Stanislaw Lem aproxima-se anedoticamente desta intenção subversiva ao inferir a permissividade da crítica da arte e a sua forma de laudar os actos comummente transgressivos: Por momentos, pensei que fosse a minha imaginação a trabalhar, mas um altifalante colocado algures difundia uma canção muito em voga em certos meios, que começava assim: "se quer ter êxito nas artes, faça propaganda das partes! Os críticos dizem que não se sentem ofendidos com falos nem partes pudendas!" (LEM, 1988. p.25) É na poesia e no cinema que mais facilmente se manifestam jogos de linguagem, e onde o discurso se pode munir de maiores e mais evidentes contradições por via da linguagem das imagens, conferindo assim aos jogos de linguagem uma maior propensão a comportamentos incoerentes, graças ao processos associativos entre uma linguagem escrita e uma linguagem visual. E porque o cinema também é um jogo de linguagem que joga com a manipulação da imagem, incluo-o para melhor se desenhar as constelações que nos descreve o firmamento dos jogos de linguagem. A premissa que reitera e constrói o filme de Miguel Gomes intitulado Kalkitos é, apesar de atípica, identificável facilmente: Ter dez anos de idade, sem efectivamente o parecer. A grande dificuldade de um semiótico para converter o cinema em algo mais do que uma linguagem, uma linguagem de códigos, não se deve à imaturidade da linguagem cinematográfica, mas à imaturidade da linguagem dos signos por não ter ainda alcançado uma articulação semiológica definitiva. (LES, 2003, p.33) O exercício estético que articula esta premissa faz-se passar numa linguagem pobre, num falso retorno ao filme mudo, mas acima de tudo no trabalho de montagem que suplanta a precisão de encenação dos poucos actores do filme. É forçada uma abordagem que se assemelha a um exercício de estudante de secundário, o que induz uma sensação de falhanço ou no mínimo de insuficiência, sensação essa muito comum nas crianças que rondam os dez anos de idade, como um livro de colorir esforçosamente mal-colorido, em que as cores passam dos contornos estipulados. Fig. 5: GOMES, Kalkitos, 2002 (still) Fig. 6: GOMES, Kalkitos, 2002 (still) A particularidade a sublinhar é a forma como o trabalho sonoro incorpora a estrutura do filme mudo, pois o filme tem cerca de dezanove minutos de duração e no entanto a banda sonora que o acompanha não passa de uma música ligeira portuguesa, cuja duração no seu estado inalterado seria de dois a três minutos, mas que é manipulada das formas mais simples e grosseiras para surtir vários resultados com efeitos dramáticos, que multiplicam e engrandecem cada cena com a mesma lógica que a sonoplastia enriquece a experiência do cinema mudo. Acerca da tipografia das legendas, bem como do título e logótipo do filme que por vezes figuram no canto inferior esquerdo, há que salientar o modo como contribuem para a ambígua sensação de estarmos perante um trabalho insuficiente – juvenil, graças à semelhança com os livros de colorir da marca homónima Kalkitos. Esta ambiguidade entre o maturo/imaturo é igualmente sugerida na narrativa. Os jovens sobredesenvolvidos chegam a trocar de bilhetes de identidade para se aliviarem de dúvidas, e no decorrer do filme as peripécias parecem apontar para três verbos que transitam connosco para a maturidade – um pouco como se aferiu no início da secção acerca da própria maturação do conceito de jogo transita do indivíduo para a sociedade. Aqui os verbos são BRINCAR, BRIGAR, NAMORAR. E são de facto qualidades apreendidas em criança, e redimensionadas em adulto, que em tudo têm que ver com regras, e um último lugar com jogos de linguagem. Para contextualizar a minha interpretação ou o meu entendimento acerca dos jogos de linguagem, segue-se uma breve descrição do meu trabalho de atelier, com um exemplo das fases desse projecto que considero mais pertinentes, bem como algumas das imagens que serviram de convite para as inaugurações, que pela palavra escrita conjugada na imagem, julgo ilustrarem com maior clareza diferentes jogos de linguagem. Na segunda metade do ano 2015 tive a oportunidade de alugar e partilhar uma pequena loja vazia com o meu colega de curso Sebastião Borges (e mais tarde também com outro colega, Ricardo Amélio), no qual pude levar a cabo algumas experiências do foro instalacional; performativo até. Experiências estas, executadas e expostas sempre no mesmo espaço físico – também ele sob a minha coordenação. A consequência directa das diferentes exposições reflectiu-se na abordagem curatorial e publicitária sobre o que é, e nao é; o que aparenta ser, e não foi nunca – nem um atelier, nem uma galeria. Jodorowski descreve da seguinte forma o processo de iterativo de restrição, pelo qual procedemos para definir uma linha de interesses e tomar uma posição como artistas. "El espacio era infinito / me fabriqué una jaula." (JODOROWSKI, idem. 463) A primeira do cíclo, BIG SHOW BEMPOSTINHA, focava-se no contraste entre o trabalho do meu colega Sebastião Borges e o meu próprio – sendo que a nossa abordagem aos objectos e às formas é polarmente oposta, e por isso chegam mesmo a complementar-se uma à outra. Uma minúcia descabida face a um desleixo calculista. Tomámos essa complementaridade evidente como compromisso e estabelecemos entre nós um jogo de linguagem em torno da nossa evidente dualidade: falseámos um pseudónimo para cada um de nós [Corvette e Bovril], em tom de presumida competição, um pouco como o carro vermelho defronta o carro azul no cliché das corridas de automóvel, e abordámos de formas opostas a proposta de exposição. Seguem-se algumas fotografias da dita exposição, cuja noção de ready-made por Isabel Nogueira justifica os dois momentos que opusemos – o "fazer que é escamoteado", dentro do qual me posicionei, opondo-se a um fazer que neste caso é exacerbado – no qual se decidiu inserir o Sebastião Borges, pelo prazer da antonímia. O ready-made é uma nova categoria ou é um jogo? O ready-made apaga a distinção entre o fazer a arte e o julgar a arte. O artista incorpora ambos. Ou, a obra de arte já existe sem o artista, sendo elevada a obra de arte pelo observador. O fazer é escamoteado. Está feito. Entra no domínio da estética pelo observador. (NOGUEIRA, 2014. p. 63) Fig. 7: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [pormenor: olho de plástico em bola de cera em bolas de plástico, autoria: João Viotti] Fig. 8: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [autoria: Sebastião Borges] Fig. 9: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação Fig. 10: BIG SHOW BEMPOSTINHA, 2015. Instalação [pormenor: vídeo SCOTCH COLOR FILM, autoria conjunta] Outro elemento que figurou na exposição tratava-se de um vídeo intitulado de SCOTCH COLOR FILM, que coincidentalmente passava pelo canal preto e branco do televisor, e que ficou instalado à entrada do atelier. O vídeo em si regista simultaneamente dois ângulos do mesmo espaço, sincronizadas no tempo. Trata-se de um registo de uma performance levada a cabo também no atelier, em que eu e o meu colega Sebastião Borges bebemos uma garrafa de 1 litro de uísque da marca William Lawson's vestidos com fatos de cerimónia formal, ao som de um amplificador que passa um conjunto de mais de uma centena de músicas da autoria do compositor luso-americano John Philip Sousa da época de 1890 a 1910 – cuja obra abarca grande parte da cultura americana das bandas de sopro ou marchas das universidades e instituições militares dos Estados Unidos. A cenografia, por assim dizer, está também a fazer uma certa alusão a essa mesma época, e acabam também por fazer parte dela outros elementos que ao longo da performance se vão naturalmente acrescentando, circunstâncias directas da nossa decisão em fazê-la com a porta aberta do nosso atelier tipo-loja, situado no rés-do-chão e portanto ao acessível aos curiosos. Assim, no decorrer da performance vão aparecendo vizinhos e outras pessoas, umas que entram e outras que espreitam, sendo as que entram a nossa co-inquilina e colega de trabalho para pagar a renda mensal – e que fica para beber – e um vendedor de mobília e outros artigos de escritório que promove o seu produto, enquanto se pergunta sobre o porquê daquela disposição de artigos. Fig. 11: SCOTCH COLOR FILM, 2015. 170' 11'' [still] Fig. 12: SCOTCH COLOR FILM, 2015. 170' 11'', [still] Naturalmente o filme conclui com o fim da garrafa e a nossa subsequente embriaguez, resvalando progressivamente de uma contida submissão às regras de etiqueta para terminar numa desenfreada subversão dos princípios morais. A frase "Sabiendo que voy a morir / vivo como un inmortal" (JODOROWSKI, idem. 96) pode ser vista como uma analogia à nossa abordagem para com o público como uma presunção, em que o objectivo foi sempre simular um grau de profissionalismo acima do que realmente se concretizava naquela pequena loja. Como "imortais" que éramos, estávamos mais que conscientes de que se não simulássemos esse brilho estelar, nunca teríamos tido hipóteses de iludir ou cativar alguém. Aqui iniciou-se a nossa preocupação com o desenvolvimento de uma abordagem bicéfala aos jogos de linguagem, algo que viria a resultar nas noções inicias de um jogo duplo, e do seu efeito subversivo nos jogos de linguagem. Assim, encerra-se esta secção e também o seu capítulo, cujo fito foi demonstrar algumas realizações práticas dos jogos de linguagem. Trabalhando cuidadosamente os contextos e as abordagens a uma questão, torna-se possível desenvolver várias posições que testam a própria estabilidade do seu significado. Estes exercícios de reinterpretação que propus identificam-se como formas de manipular os ditos jogos de linguagem. 3 O JOGO DUPLO e a Subversão da Regra O capítulo que se segue requer que se proceda a uma reinterpretação dos significados das palavras jogo e duplo. Para tal vai-se recorrer aos usos figurativos das palavras, não só porque é no sentido figurativo que as palavras se afastam de um contexto para se aproximarem de outro, mas porque é nesse exercício de recontextualização, que a palavra figura outra coisa que não o seu significado primário. Esta palavra que figura torna-se vítima da mesma ambiguidade que perfila nos jogos de linguagem (a que se dedicou a temática o ponto 2) quando se adultera o significado que outrora foi norma. Abaixo estão levantadas citações que a Enciclopédia Universal registou como usos ao nível figurativo das palavras jogo e duplo. Na entrada do jogo são mencionadas expressões como “abrir o jogo”, que implica falar com toda a sinceridade; “conhecer o jogo (de alguém)”, que significa saber o que a pessoa em causa projecta ou que intrigas tece; “desfazer ou atrapalhar o jogo”, que é uma forma de dificultar as manobras ou intrigas de alguém; “fazer jogo (de alguém)”, que se traduz em servir-se de alguém como brinquedo, ou ludibriá-lo; “um jogo limpo”, que quer dizer um jogo ou uma combinação leal, feita de acordo com as regras e bem à vista. (AAVV, 2004. pp. 98, 99) Acerca do duplo reconhece-se a figuração de uma pessoa tão parecida com outra que pode substituí-la, passando por ela, especialmente em cenas cinematográficas arriscadas. Acessoriamente, da duplicidade levanta-se o seu sentido figurativo como falsidade ou má-fé, apresenta-se como sinónimo para simulação, fingimento e hipocrisia. (AAVV, idem. pp. 37, 45) Como se comprova, a palavra jogo contém mais entradas do que a palavra duplo, e todas elas são jogos de linguagem em si mesmas pelo simples facto de se tratarem de significados figurativos, em que a figuração da palavra implica a apropriação do significado a uma situação indirectamente associada – construindo assim um jogo de associação que se serve da linguagem e das suas regras de sentido. No entanto a palavra duplicidade traz consigo sinónimos que melhor definem os âmbitos em que o "duplo cinematográfico" (um dos significados de "duplo") actua: são estes a "simulação, o fingimento e a hipocrisia". Estes três termos apresentam nocões que se tocam em alguns aspectos mas o que será de interesse é o "fingimento", porque é o termo que permite estabelecer-se um nexo com o significado alargado de jogo. Quando a definição de "abrir o jogo" significa falar com sinceridade, quer também dizer que é preciso despojar-se de todo o fingimento. Com base nesta acepção é possível desvendar artifícios capazes de simular uma posição e dissimular outra, ou mesmo simular duas posições que por sua vez dissimulam uma terceira. Levar a cabo um jogo que é duplo implica portanto que se exerça um certo grau de fingimento, ou mesmo de hipocrisia para poder tomar dois partidos em vez de um. Esta mesma operação de duplicidade viola uma norma (não direi uma regra) que diz respeito à identidade, e à sua integridade como uma unidade, e portanto portadora de uma posição apenas. Um exemplo concreto que nos fala do acto subversivo que é o jogo duplo é no caso do póquer, mas mais específicamente uma estratégia insincera mas não menos conhecida do célebre jogo de cartas – apelidada de bluff. Um bom jogador saberá não denunciar a sua mão, e saberá bem como fazer bluff, ao ficcionar uma situação aparente (e preferencialmente credível) que o permita esconder a sua efectiva situação de jogo, mantendo assim a hipótese de surpreender a interpretação dos outros jogadores. No bluff está portanto implícita uma estratégia que actua de acordo com os códigos pré-estabelecidos do póquer, mas que simultaneamente se serve destes códigos (e portanto deste jogo de linguagem), de modo a subverter a informação que é compreendida pelos outros jogadores. Ao se tomar uma abordagem hipócrita, que a um nível superficial procura contradizer aquilo que se manifesta subliminarmente, está-se efectivamente a levar a cabo uma estratégia assente num jogo duplo. Ou seja, pode-se dizer que um jogo duplo é um processo que subverte as regras encontradas em qualquer jogo de linguagem. Quer seja este jogo uma linguagem primitiva, um jogo que visa adestrar ou ensinar uma língua (veja-se o exemplo da linguagem subversiva com que Peter Greenaway adereça o abecedário em muitas das suas peças, cujo exemplo primo é H is for House, aproveitando-se da cantilena sequencial que se adestra à criança britânica para aprender a soletrar; e desta sujeição à regra prima da lógica sequencial na linguagem, surgem do mesmo artista filmes como The Falls e Zed and Two Noughts) quer se trate da conjunção da Linguagem e de todas as actividades com que está relacionada, o propósito do jogo duplo é precisamente a inclusão de uma abordagem dupla perante qualquer uma destas valências que compôem os jogos de linguagem. O resultado de adoptar uma postura que se divide em duas posições leva a que a fragilidade da Linguagem seja posta em evidência. Quando esta postura é levada a cabo, ela manifesta-se como uma subversão da uniformidade de uma opinião, duplicando as suas possíveis interpretações. Caso contrário, num jogo de linguagem despojado de segundas intenções, esta uniformidade manter-se-ia intocada e consensual. Em suma, o jogo duplo exige um acto subversivo imediato, em que o jogador toma proveito do seu estatuto de fingidor para dificultar uma interpretação directa das suas efectivas intenções. 3.1 A Sabotagem como Acto Subversivo Neste momento será oportuno avançar para a forma como o conceito de jogo duplo se pode aplicar ao exercício da sabotagem, e investigar o modo como ambos os conceitos se complementam como instrumentos de subversão das regras. Na seguinte citação, o escritor Isidore Ducasse introduz em tom de conselho a necessidade de se agarrar uma oportunidade. Não se tratará apenas de ser oportunista, aproveitando os lapsos e as lacunas acidentais dos outros. Creio que Ducasse procura laudar a função sabotadora deste género de oportunismo, em que essas "alavancas mais enérgicas, e enredos mais sábios" (1988. p.55) significam também a criatividade de fabricar intencionalmente as oportunidades. Os meios virtuosos e bonacheirões não levam a nada. É preciso utilizar alavancas mais enérgicas e mais sábios enredos. Antes de te tornares célebre pela virtude e de atingires o teu objectivo, haverá cem que terão tempo de fazer piruetas por cima das tuas costas e de chegar ao fim da corrida antes de ti, de tal modo que deixará de haver lugar para as tuas ideias estreitas. É preciso saber abarcar com mais amplitude o horizonte do tempo presente. (DUCASSE, ibidem.) Faça-se uma analogia com o exemplo anterior, inserindo este conselho numa conversa entre dois pescadores de costa, em que o primeiro está a tentar convencer o segundo a pescar com engodo. O segundo pescador sabe que pescar com engodo lhe retira muito do mérito em pescar o peixe. Ele considerará mais nobre e recta a paciência que lhe é exigida a si e ao seu isco solitário, ao que o primeiro contrapõe que é mais rápido e mais eficiente o modo fingidor como o engodo actua. O engodo cria a oportunidade em vez de se esperar por uma. Os peixes, assim que envoltos e seduzidos nessa nuvem de odores, não têm problemas alguns em pôr fim à solidão do isco. Descrevendo de uma forma embrionária o conceito de sabotagem, é uma prática que visa uma abordagem aparentemente auto-destrutiva ou que no mínimo é tida como algo pejorativo ou danoso para o próprio ou os outros. Esta pode ainda ter uma função dissimuladora, ocultando pormenores ou mesmo intenções. No entanto existe um contributo positivo desta ferramenta, que se prende com o enriquecimento da linguagem e em última análise, da cultura. Como que da destituição de uma coisa se dá valor a outra, da sabotagem da regra se abre caminho à instituição da sua antítese. Temos exemplos contemporâneos do contributo da sabotagem na publicidade e no marketing, ao observarmos o impacto da contra-publicidade e da forma como o leaking [libertar de segredos de empresa, como produtos em estado experimental ou versões iniciais de conteúdo multimédia] fomentou inversamente a receita das companhias injuriadas. Ou seja, o acto subversivo de sabotar é impulsionador de desequilíbrio e por consequência gerador de novas situações ou estados de sítio. A própria corrente da arte abjecta, em que os críticos inseriram Paul McCarthy e Mike Kelley como pilares, contém em si mesma alguns dos princípios da sabotagem, bem como muitos dos projectos que surgem no advento da glitch art, nomeadamente o sítio pseudo-esotérico do webdesigner Larry Carlson intitulado MEDIJATE e as adaptações grotescas de Andy Wilson (canal de Youtube: andywilson92), como a animação Sonic.exe ou o o vídeo 3DS MAX Turorial Episode 3: Remedial Environment Modelling, que partilham algumas semelhanças com a postura caricatural do filme Painter de Paul McCarthy) No decorrer da 2ª Guerra Mundial os serviços de inteligência americanos como a Central Intelligence Agency (CIA) começaram a desenvolver tácticas mais subtis, alternativas mais acessíveis de favorecer a vitória dos Aliados. Uma delas, a par com a espionagem, é a sabotagem simples. Neste último caso, qualquer comum dos mortais estaria mais que habilitado a fazê-lo (mais ainda do que um bufo ou snitch). SIMPLE SABOTAGE 1. INTRODUCTION a.) The purpose of this paper is to characterize simple sabotage, to outline its possible effects, and to present suggestions for inciting and executing it. b.) Sabotage varies from highly technical coup de main acts that require detailed planning and the use of specially-trained operatives, to innumerable simple acts which the ordinary individual citizen-saboteur can perform. This paper is primarily concerned with the latter type. Simple sabotage does not require specially prepared tools or equipment; it is executed by an ordinary citizen who may or may not act individually and without the necessity for active connection with an organized group; and it is carried out in such a way as to involve a minimum danger of injury, detection, and reprisal. c.) Where destruction is involved, the weapons of the citizen-saboteur are salt, nails, candles, pebbles, thread, or any other materials he might normally be expected to possess as a householder or as a worker in his particular occupation. His arsenal is the kitchen shelf, the trash pile, his own usual kit of tools and supplies. The targets of his sabotage are usually objects to which he has normal and inconspicuous access in everyday life. d.) A second type of simple sabotage requires no destructive tools whatsoever and produces physical damage, if any, by highly indirect means. It is based on universal opportunities to make faulty decisions, to adopt a non-cooperative attitude, and to induce others to follow suit. Making a faulty decision may be simply a matter of placing tools in one spot instead of another. A non-cooperative attitude may involve nothing more than creating an unpleasant situation among one's fellow workers, engaging in bickerings, or displaying surliness and stupidity. e.) This type of activity, sometimes referred to as the "human element," is frequently responsible for accidents, delays, and general obstruction even under normal conditions. The potential saboteur should discover what types of faulty decisions and noncooperation are normally found in this kind of work and should then devise his sabotage so as to enlarge that "margin for error." [...] (2) Encouraging Destructiveness It should be pointed out to the saboteur where the circumstances are suitable, that he is acting in self-defense against the enemy, or retaliating against the enemy for other acts of destruction. A reasonable amount of humor in the presentation of suggestions for simple sabotage will relax tensions of fear. (a) The saboteur may have to reverse his thinking, and he should be told this in so many words. Where he formerly thought of keeping his tools sharp, he should now let them grow dull; surfaces that formerly were lubricated now should be sanded; normally diligent, he should now be lazy and careless; and so on. Once he is encouraged to think backwards about himself and the objects of his everyday life, the saboteur will see many opportunities in his immediate environment which cannot possibly be seen from a distance. A state of mind should be encouraged that anything can be sabotaged. […] (b) The saboteur should be ingenious in using his every-day equipment. All sorts of weapons will present themselves if he looks at his surroundings in a different light. […] (12) General Devices for Lowering Morale and Creating Confusion (a) Give lengthy and incomprehensible explanations when questioned. (b) Report imaginary spies or danger to the Gestapo or police. (c) Act stupid. (d) Be as irritable and quarrelsome as possible without getting yourself into trouble. (e) Misunderstand all sorts of regulations concerning such matters as rationing, transportation, traffic regulations. (f) Complain against ersatz materials. (g) In public treat axis nationals or quislings coldly. (h) Stop all conversation when axis nationals or quislings enter a cafe. (i) Cry and sob hysterically at every occasion, especially when confronted by government clerks. (j) Boycott all movies, entertainments, concerts, newspapers which are in any way connected with the quisling authorities. (k) Do not cooperate in salvage schemes. (DIRECTOR OF STRATEGIC SERVICES, 1944.) Os primeiros parágrafos deste documento da CIA intitulado de SIMPLE SABOTAGE FIELD MANUAL enunciam os diferentes modos de se praticar a sabotagem, referindo que é no seu formato mais simples que será abordada. A sabotagem simples, como o documento o descreve, inclui não só a danificação de material de trabalho, mas também visa a manipulação de algo que se refere como o elemento humano. Esta é uma sabotagem que pode ser praticada ao nível das oportunidades criadas pelo erro humano, e o objectivo é precisamente ampliar a margem de erro que propicia o desentendimento na sociedade, e prejudica o desempenho no trabalho de equipa requerido. Sendo assim, fica a pendente a questão de como se articulará a sabotagem a um nível mais complexo, e obriga-nos a conjecturar como se desenvolverá possivelmente um MANUAL DE SABOTAGEM AVANÇADA. Certamente a duplicidade será um característica transversal, e estará patente nos artifícios possíveis que a sabotagem tem para oferecer. O documento contém indicações relativamente simples para "baixar a moral e estabelecer a confusão", em que o simples conselho de "actuar como um estúpido" ou de "mal-interpretar todas as regras" parece realçar a presença de um jogo duplo pela forma como se convida à sabotagem pela replicação de uma postura de inferioridade intelectual, ou mesmo a de um anti-intelecto. Este procedimento está explícito na secção "Encorajando a Destrutividade", ao inferir-se que o sabotador deve pensar "ao contrário", a subverter-se nas suas qualidades e nas suas funções. Assim, este modo de pensar visa fomentar o aparecimento das oportunidades de capitalizar, ao mesmo tempo que faz o sabotador tornar-se deliberadamente num duplo "aparentemente incompetente" de si mesmo. Ao analisar a forma como a incompetência é aqui simulada, evidencia-se também a dependência desta estratégia sabotadora num jogo duplo entre um pensamento progressivo e um regressivo, jogando com a veracidade do erro humano (SIMPLE SABOTAGE FIELD MANUAL, idem.) Vejamos a forma como se articula o conceito de sabotagem na seguinte analogia: A dicotomia entre uma espingarda modelo G3 e um canhangulo artesanal, ainda que duvidosa, pode ser bem explicitada, na medida em que um é o duplo do outro; mas este último constituído como uma quimera de elementos apropriados (como canalizações, sistemas de mola e alternativas à pólvora), cuja particularidade é redobrar a sua letalidade, ao permitir a inclusão de substâncias irritantes, ferrugentas ou venenosas nas munições. Esta particularidade do canhangulo parece ser fulcral para identificá-lo como uma sabotagem do próprio conceito da espingarda ocidental, porque não se destina apenas a incapacitar "diplomaticamente" um alvo com o mínimo de danos colaterais – este destina-se a causar o máximo de danos possível, e seja por via do projéctil seja pela infecção a posteriori. Ambas partilham a sua função de armas de tiro e instrumento de poder, apesar do facto do canhangulo ser sem dúvida uma falsificação que reinterpreta o código original, uma apropriação independente do sistema de tiro da espingarda ocidental. O código é igual – matar; a forma e o conteúdo diferem: uma simboliza o instrumento de imposição e gerador de estabilidade, e o outro a subversão do anterior, um instrumento de retaliação e convite à instabilidade. Relembrando o modelo de Shannon e Weaver (Figura 1) discutido na secção 2.1, é possível aplicá-lo de novo a esta questão da duplicidade. A fisicalidade (ou input) é transmitida analogicamente, processada em dados, e estes efectivamente "duplicados", traduzem-se digitalmente no receptor como virtualidade (ou output) (MENKMAN, 2011. pp. 34-42). Na contemporaneidade, os artistas e as suas "outputs" digitais favorecem assim a estrita relação entre produto material e produto digital, como encontramos no dicótomo de HARDWARE – SOFTWARE. No entanto existe uma outra forma de atacar esta imperfeita duplicidade, que é replicando os próprios processos lógicos do software nos processos criativos, e assim subvertendo ironicamente a própria lógica vectorial que dita que o processamento do computador replica o pensamento do Homem. Para melhor ilustrar essa abordagem segue-se um excerto referente ao trabalho de Mike Kelley e à adaptação, ou à sua forma de replicar, os sistemas de lógica que orientam qualquer software. Qualquer programa ou software, quer se trate de um browser, um processador de texto, ou um videojogo, consiste nas encapsulações de um sistema de lógica: [Kelley]'s use of performance was a means of acting out that logic system, just as a computer program acts out its logic system when it runs. Kelley has described how he uses "theatre as the traditional way of presenting a false belief system live". Kelley: "At the end of the project, I would do a performance where I would perform the system of logic to the best of my abilities, to convince people that it was true. Then it was over, I could get rid of that system of beliefs and work on another one." (YUILL, 2001. pp. 3-4) Ao considerarmos a era digital, depreende-se claramente que a busca por um canal totalmente à prova de ruído ou de erros continua incessante, não obstante a abundância de glitches ou persistência do ruído e do erro no fluxo da informação. Por cada nova forma de transmitir informação surgem no mínimo duas manifestações erráticas - desde um erro de compressão, aquando o envio da imagem ou texto ou áudio, a problemas na leitura ou recepção dos mesmos cada um com uma tipologia própria, e portanto passível também de ser emulado propositadamente. Rosa Menkmann no seu livro The Glitch Moment(um) (2011. p.36) refere a possibilidade de abordar o erro tecnológico de uma forma bilateral: Ora o glitch ocorre acidentalmente e é captado assim que sucedeu (o que tomou o termo de glitch safari ); ora se simula um artefacto visual ou sonoro que partilhe das mesmas características identificáveis no erro acidental, o que implica que esse erro simulado se apropriou da linguagem do glitch puro para fazer algo de semelhante, ou glitch-alike. A possibilidade de forçar o erro e de o simular nos meios digitais veio enriquecer em larga medida a forma como compreendemos e utilizamos a linguagem hoje em dia. Do mesmo modo que o glitch tem o seu lugar no mundo virtual, a gafe ocupa um papel semelhante no mundo da comédia. Podemos tão facilmente enganar-nos a pronunciar ou entender uma palavra como simular esse erro, ou mesmo alegar que não entendemos correctamente (dissimular). É seguro dizer que um é o duplo do outro, mas que o primeiro não existe sem o segundo. Ou seja, uma coisa é a gafe outra coisa é o simulacro da gafe, uma coisa é o glitch outra coisa é simulacro do glitch (glitch-alike). Esta é a relação binária que Menkmann identifica entre os termos que situam o erro acidental e o erro intencional nos meios digitais. Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. [...] Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do "verdadeiro" e do "falso", do "real" e do "imaginário". (BAUDRILLARD, 1991. p. 13) Quando tomamos em consideração um simulacro tendemos a identificá-lo como um duplo de uma porção da realidade, conquanto que varie largamente a verosimilhança dessa simulação. E se essa mesma simulação contivesse um erro interno, assumiríamos imediatamente que este seria acidental, uma falha na programação – claro sintoma de um sistema disfuncional. Ou chegaríamos mesmo a por em hipótese uma manipulação dos dados de um sistema perfeitamente funcional, de modo a nos levar a crer que efectivamente algo de errado se passa com esse mesmo sistema, quando na realidade ele está a reagir de acordo com a sua programação. Em suma, nesta analogia a nossa crença no erro como um acidente ou numa recriação do erro basear-se-ia na incerteza dimanente desse mesmo sistema, na dúvida que surtimos de uma tecnologia que nos é externa à compreensão, e cujos processos lógicos nos são escudados pela suas interfaces. A concepção seguinte elabora um pouco sobre a relevância desta forma de trabalhar o erro como algo intencional na contemporaneidade. O falhanço (ou failure) tornouse numa estética central nas várias vertentes da arte no final do século XX, relembrando-nos que o nosso controlo da tecnologia não passa de uma ilusão, e revelando que as ferramentas digitais são tão perfeitas, precisas e eficientes quanto os humanos que as constroem. (MENKMAN, idem. p.34) Rosa Menkman, na analogia em torno da perfeição da máquina e da perfeição do homem abre as portas para que se desenvolva sobre essa imperfeição. E identifico o modo de instrumentar essa imperfeição com a noção que Mike Kelley apresenta de de-skilling, que significa a remoção ou a interrupção dos talentos adquiridos na abordagem a uma prática artística (KELLEY, 2004) pode ser identificada como uma prática também ela sabotadora. Porque esta tem em conta uma intenção de se afastar dos termos da boa-execução, seja por via do erro intencional, seja pela adulteração das técnicas. Serve portanto de bom exemplo falar de alguns dos seus trabalhos onde se localizem as particularidades que fazem de Kelley um exímio adúltero da cultura, e portanto complementam o argumento em torno do que pode significar a sabotagem nas artes. Sabendo de antemão que os trabalhos aqui apresentados em causa trabalham sobre as noções de sabotagem, o grau de subversão às convenções agiganta-se, sendo esse elevado grau um dos mais fortes traços patentes nestes filmes. Actualmente, o cinema está a viver uma convivência anárquica entre filmes que superaram a narrativa dos géneros e os filmes que tentam regressar a eles. À excepção do thriller, um género moderno, e da comédia, um género muito sólido, nos restantes, ou nos apercebemos de uma evolução profunda ou de uma vulgarização incómoda. (LES, 2003. p. 28) Miguel Gomes, Ernesto Mello e Castro, Peter Greenaway, Paul Thek, Mike Kelley e Paul McCarthy são alguns dos artistas ou realizadores neste caso, que julgo capazes de satisfazerem ambos os requisitos (enunciados acima por Juan Hernández Les) quer da "evolução profunda" quer da "vulgarização incómoda" dos géneros [ou lugares-comuns], e as suas produções parecem triunfar no equilíbrio de forças entre intenções opostas. A manipulação dessa ambiguidade permite-lhes o disfarce das intenções, transforma a leitura dos possíveis símbolos latentes num bailado semiótico, entre o suspense do thriller e o passo "tosco" da comédia. Nas palavras duplas de Jodorowski descrevem uma semelhança a relação de oposição que este parágrafo introduz: "Cuidado todos los juguetes / llevan una gota de veneno." (JODOROWSKI, 2010. 92) Um filme de Kelley, que também vive dentro do imaginário do duplo e da subversão é Heidi (uma adaptação adulterada do romance de Joanna Spyri), cuja autoria é partilhada com Paul McCarthy, um artista plástico com quem Mike Kelley manteve uma íntima amizade e frequente colaboração desde o final dos anos 80. E é em Heidi que encontro uma experiência pueril e simultaneamente adulta, de tal forma que o degredo pelo qual passa o casal de “marionetas” se torna enternecedora, depois dos primeiros momentos de estranheza. Ou seja, por muito que os dispositivos se baseiem no mecanismo de desfamiliarização [ou uncanny], a narrativa de dicotomias patente no filme está inundada de lugares-comuns e de pequenos clichés [NATURE/CULTURE] que combatem activamente a estranheza dos actores. O resultado é uma satisfação culpada, do mesmo foro que a experiência pornográfica, e que se sacia no acto de sabotagem em que os actores manejam e vocalizam as suas efígies de um modo boçal. Existe um fio condutor ao longo de Heidi que se poderá entender como a dicotomia ulterior, bem como a peripécia principal do filme, e que nos é administrada por duas luvas de forno zoomórficas (uma semelhante a um sapo e outra a uma abelha) que conversam à mesa. Esta dicotomia sobre a qual as luvas eloquentemente dissertam trata-se pois da natureza e da cultura. A conversa entre o sapo e a abelha orbita entre o ornamento e a religião, entre as vestes e a nudez, culminando na seguinte oposição de valores. SAPO: According to the Mountain Family, below the Table is pure perversity, pure libido; Nature. ABELHA: Nature... Yes, Nature. SAPO: Above the table they say is the Law. ABELHA: Above the Table we say it's cheap theatrics, façade and lies. SAPO: Yes. LIES. [a câmara desce até debaixo da mesa, revelando as entrepernas e os genitais do homem que ventriculou o sapo e a abelha, que mais tarde se juntam à parte inferior da Mesa] (MCCARTHY/KELLEY, 1992. 8'40'' – 9'20') Fig. 13: KELLEY/MCCARTHY, Heidi, 1992. [still] Fig. 14: KELLEY/MCCARTHY, Heidi, 1992. [still] Pode-se dizer que o filme acompanha uma família de três orfãos, por assim dizer, na medida em que esta família é composta por Peter, a criança pequena e retardada, Grandpa, o avô senil e menos capaz, e Heidi, a jovem flor que desabrocha neste infértil cenário. Digo-os orfãos pois, a experiência paternal ou maternal é-nos constantemente afastada, sem nunca romper com o conceito da família – pura e simplesmente não existe nem pai nem mãe, restando apenas os netos e o avô (cujas idades mentais entre os três já não se distanciam tanto). A particularidade a salientar não está tanto na adaptação da estória e das suas personagens, mas está no jogo de linguagem que Kelley e McCarthy estabelecem a partir da natureza fracturada da linguagem fílmica, em que essa fractura é incorporada na forma ambígua de tratar os actores como duplos (ou stand-ins) e vice-versa. Fig. 15: KELLEY/MCCARTHY, Heidi, 1992. [still] Fig. 16: KELLEY/MCCARTHY, Heidi, 1992. [still] In films, horror films particularly, it is often necessary to have sculptural stand-ins for actors. Depending on their function, these doubles may be parts of, complete replicas of, smaller or larger than, the actor, or, in the case of cell or computer animation, may not exist three-dimensionally at all. They are all simply tools in the production of an illusion, and are not meant to be seen outside of the film context. In Heidi we toyed with this illusionary nature by treating the doubles and stand-ins for the actors as obvious sculpture, more in the manner of a puppet show than traditional film. (KELLEY, 2001. em linha) Kelley descreve sucintamente a relação entre os actores, os modelos e os duplos cinematográficos na citação anterior, e que justificam a sua forma de subverter a linguagem fílmica através dos jogos entre o actor e o duplo. Heidi é um exemplo de como a instrumentação da sabotagem foi incorporada na linguagem do séc. XX e XXI, permitindo assim aos artistas que pudessem jogá-la de acordo com a sua própria necessidade semântica. The only social function of art is to fuck things up! It has no other social function – absolutely none. [...] Politics have a purpose, have power relationships; art doesn't have anything about power relationships, it's about fucking things up for the pure pleasure of fucking them up. So.. It's about analysis and formal scrambling; and it both escapes the practicality of politics and entertainment, which is drugging the masses. (KELLEY, 2004. em linha) Gostaria de trazer à consideração um excerto de um poema de Herberto Helder que acredito mostrar um pouco da perspectiva de Mike Kelley sobre o processo criativo. Poema não saindo do poder da loucura. Poema como base inconcreta de criação. Ah, pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade. Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção. Com alguma ironia furibunda. (HELDER, 2001. p. 38) Não obstante se tratarem de autores de universos muito díspares, ambos os excertos apresentam um grau de revolta, apontando mesmo para uma certa atitude crítica ao mesmo tempo que se exalta a pureza desse pueril gesto; destrutivo, profano e inconsequente. A meu ver, há que encarar o modo que Kelley tem de produzir como uma "delinquência juvenil", que, tomando por minhas as palavras de Helder, se mune de uma imaginação predatória bem como de uma furibunda ironia, sempre parida sob o impulso destrutivo de fazer o que não está nas normas; de transgredir até nada mais restar de inviolável. Em Helder, "Pensar com delicadeza / imaginar com ferocidade" assemelha-se ao que Kelley se refere respectivamente como "analysis and formal srambling". Ou seja, são estes os termos que estreitam e alicerçam aquilo que entendo tratar-se da criação artística. O próprio Mike Kelley chegou a empregar este processo de "análise e remistura formal" na forma como escolheu problematizar com falsas informações, as interpretações da parte dos críticos que procuravam analisar a dimensão psicológica do seu trabalho criativo. From the late ‘80s on there was a general tendency for critics to psychologize my work, and that was something that surprised me... As a response... I felt I had to bring myself into [the work] or make myself part of the subject of the work, in order to problematize that psychological reading. I had to make it difficult... by giving a lot of false information. (KELLEY, 2003, p. 16) Day is Done, em toda a sua natureza fragmentária, não abandona nunca a linguagem exagerada e infantilizante, o que resulta numa sensação homogénea de pequenos desconfortos e de inebriante ironia que nunca se chegam a dissipar em comédia directa, tomando antes os contornos tipicamente tragicómicos, típicos de um humor adolescente. Cada segmento foi estruturado a partir de uma colectânea tipificada de fotografias, em que as categorias variam entre os disfarces de Halloween, fotografias de praxes, diferentes cliques de adolescentes nas suas actividades como góticos, cowboys, juventudes cristãs ou jocks (atletas) e outras fotografias-tipo pertencentes ao vocabulário da cultura pop nos Estados Unidos. A cada segmento (ou Actividade Extra-Curricular) são atribuídas as personagens e as actividades retiradas desta colectânea fotográfica, em que as situações e personagens são contrapostas de modo a forjarem uma nova relação de forças, como é o caso numa das Actividades Extra-Curriculares, em que uma menina loira, roliça e beata que preside a uma cerimónia de alumiar velas que é interrompida por dois homens vestidos com motivos nazis e uma canção rap sobre o excesso de peso da rapariga em questão. Fig. 17: KELLEY, Versão instalada de Day Is Done, 2005. Fig. 18: KELLEY, Versão instalada de Day Is Done, 2005. O filme funciona também como uma instalação de múltiplos canais de vídeo, em que cada capítulo ou “actividade extra-curricular” ocupa um canal distinto, sendo o título de “actividade extra-curricular” em si mesmo uma estratégia de ridicularização das instituições académicas. Este formato desconcertante sublinha ainda mais as tautologias e a ingenuidade dissimulada patentes na obra de Mike Kelley - o que permite uma constante releitura da peça sem insinuar ou sequer influenciar qualquer conclusão em particular. O efeito é comparável à leitura de uma revista cor-de-rosa, cujo conteúdo pode ser lido em qualquer sentido ou orientação, graças à sua explosiva gratuitidade e redundância informacional. Torna-se numa leitura apetecível para uma qualquer altura em que se desejar abster de esforçosas reflexões. São instrumentos gratificantes como os que me refiro que preenchem o universo estético e linguístico de Day is Done. O filme apropria-se de contextos, de estereótipos, sempre alcançáveis e reconhecíveis à distância como pertencentes a uma cultura baixa, popular, ou mesmo folk. A sexualidade e a linguagem, bem como as cliques e a instituição são simultaneamente lugares de experimentação e acima de tudo, alvos a perseguir, e ultrajar da mesma forma juvenil, repleta de perversidades hormonais e tautologias comuns. Este é um dos projectos que Mike Kelley desenvolveu já como docente na faculdade de artes norte-americana CalArts, que foi também o local onde foram filmadas todas as cenas do filme, inclusivamente com a participação de alguns alunos seus – ou seja, há uma sensação de que o humor de que falo se trata de um dispositivo cujo fito é desviar-nos a atenção para as críticas subjacentes. Kelley opta frequentemente por revestir o seu trabalho de elementos e adereços da cultura pop americana com o objectivo de a ridicularizar através dos seus respectivos jogos de linguagem, e em Day Is Done essa estratégia é de tal modo exacerbada que é palpável a sabotagem que é exercida sob a guisa da pop, tornando-se hiperbólica. 3.2 Isidore Ducasse e Douglas Huebler como Sabotadores Feita a aproximação do conceito de sabotagem como um instrumento no jogo duplo, é agora possível avançar para a enunciação de obras que correspondam a esta definição por mim restringida. Servindo este propósito tratar-se-ão nesta secção de duas obras que considerei relevantes pela subversão que ambas inferem, abrangendo os ramos da Arte e da Literatura (ainda que prefira restringi-la à poesia, a obra escolhida posiciona-se entre a poesia e a prosa). Começa-se pelo ramo da Arte com a análise da obra de Douglas Huebler de forma a encontrar nela exemplos de sabotagem, transpondo de seguida para o ramo da Literatura, com o fito observar o jogo duplo na obra de Isidore Ducasse e identificar também outras instrumentações da sabotagem. O artista plástico Douglas Huebler é um dos que preconizou a manipulação conceptual da dúvida; desenvolveu toda uma obra que constantemente se contradizia ou se destituía num segundo momento, da qual destaco a sua série fotográfica intitulada Duration Piece # 2 (1970) – sendo o primeiro momento o conjunto das fotografias, o segundo tratar-se-ia de um texto referente às mesmas, informando o intervalo de tempo entre cada fotografia, como a legenda convencional, mas com a particularidade de desestabilizar o contexto em vez de procurar facultar um consenso. Seis fotografias de uma estátua ladeada por dois camiõesbetoneira, ao qual correspondem as diferentes horas de cada fotografia. A particularidade da obra está na incerteza destas mesmas legendas, quando o texto nos informa que a sequência foi deliberadamente desorganizada por Huebler. Por sua vez Mike Kelley, das quais algumas obras pertinentes foram dadas a conhecer nos parágrafos anteriores, comenta agora acerca do trabalho de Huebler: Some artists instantly provoke from me a stream of commentary, almost involuntarily— like drool — but not Doug. His work seems to ask me to ponder it, to think it over. But my responses are generally in opposition to this apparent directive. I have an unconscious physical response — I laugh. I am confused, which is surprising, in that, on the surface, his work often looks so dumbly straightforward. There is an image, typically quite mundane and recognizable, accompanied by text which one might expect to elaborate on, or explain, the image. But it doesn’t do that. Instead, in Huebler’s terms, the text “collides” or “dances” with the image. You expect the expected first. This expectation is induced through familiar visual terms. Then, by using a device which in our culture is the most common mode of explication—the written explanation—the expectation is destabilized. What looks so familiar becomes ungraspable. The result is not so much “uncanny”— that is, the familiar become unfamiliar—as it is annoying. We crave familiarity and instead we are made dizzy. Like schoolchildren we seek to please the erudite master, the one who orders the visual chaos of the world, who renders it in clear language. We seek to please him through our understanding of his message, through shared communion with him. But this is a cruel teacher whose lessons elude understanding. You are left only with yourself, and the nervous laughter of doubt. (KELLEY, 2003. pp. 179-80) Variable Piece #70 (In Process) Global (1971) e o projecto Crocodile Tears, para além da acima referida Duration Piece #2, são três dos trabalhos de Huebler que assentam em engenhos de subversão da linguagem. Variable Piece #70 trata-se de uma série de retratos sem particular ordem, salvo a única e contraditória imposição que delimitaria o fim da série – fotografar todas as pessoas vivas. Nitidamente, a pura escala cósmica desse empreendimento implica que a peça está completa quando todas as pessoas do mundo nela se contém, e também que todas as pessoas na série fotográfica têm de estar vivas à data da compleção do primeiro passo. Logo se depreende a impossibilidade da peça bem como a sua continuidade dita fatal – o sustentáculo que proporciona o interesse da peça é precisamente a forma como ela se invalida a si mesma no processo. A peça Crocodile Tears é também ela fraccionária e multi-disciplinar, sendo uma das suas partes em formato comic strip ou banda desenhada estendendo-se ao longo de uma série de vinhetas incluídas numa publicação semanal de uma revista de Los Angeles. O projecto discorre em vários formatos sobre um conjunto de situações alusivas ao mundo da arte e inclui personagens inspirados em trabalhos anteriores do artista, incluindo algumas vivências sem saírem dos contornos ficcionais. É de referir, na banda desenhada, o caso de um pintor expressionista de primeira geração chamado Howard, e a sua subsequente caída em desgraça nos anos 80, bem como uma outra figura que toma por se apelidar de The Great Corrector e que se bate activamente por uma apropriação e consequente correcção e melhoramento de grandes obras de outros pintores, como Picasso, Matisse, Bosch e outros grandes nomes, resultando em pinturas revistas e corrigidas por Douglas Huebler, nesse papel de corrector. Quando o herói expressionista caracterizado por Huebler defende a correcção destas obras de renome, ele insinua um acto transgressivo do mesmo calibre que Ducasse defende, sendo as questões de plagiato, autoria e crítica postas radicalmente em causa, quer por Huebler ao corrigir as grandes obras numa atitude crítica, quer por Isidore Ducasse ao reforçar que o plagiato é um processo de transformação, mais do que de correcção ou de cópia, como se comprova na seguinte citação: O plagiato é necessário. É o progresso que o implica. Ele estreita apertadamente a frase de um autor, serve-se das suas expressões, apaga uma ideia falsa, substitui-a pela certa. Uma máxima, para ser bem feita, não tem de ser corrigida. Tem de ser desenvolvida. (DUCASSE, 1988. p. 208) Para analisar a obra de Isidore Ducasse será importante relembrar o modelo de Shannon e Weaver aprofundado no ponto 1.1. Depreende-se que o modo uni-direccional de comunicação é o mais característico num livro ou num texto. A mensagem, quando inteligível, é enviada pelo autor, transmitida pelo livro e interpretada pelo leitor. Em comparação directa com o diálogo cara-a-cara, neste existe um sistema bi-direccional de transmissão de mensagens em que uma é a causa directa da anterior; ao passo que na relação entre um texto e o leitor esse mesmo sistema de causa e efeito – ou mesmo essa dialéctica – está já contida no próprio corpo do texto. O resultado desse diálogo interno de um texto pode ser definido como uma peça de teatro da qual somos espectadores. Daí que exista nos diálogos uma propensão para os jogos de linguagem Wittgensteinianos mesmo quando concretizados textualmente e não por conversação de facto. Ou seja, numa obra literária o sistema mantém-se uni-direccional, ainda que nos possa informar que o seu discurso interno é bi-direccional. O caso que se segue, Cantos de Maldoror, apesar da quasi-ausência de diálogos internos na obra, é no seu todo um sistema bi-direccional implícito. Não só o autor comenta o seu próprio texto intercalando-o com a narrativa (no início e fim de cada canto), como se contradiz, como que em busca de algum tipo de perdão, defendendo valores opostos aos com que inicia o texto (numa secção chamada de Poesias: Prefácio a um Livro Futuro). Apesar de se tratar de um discurso interno ao texto, este não se revela nunca no exemplo clássico de um diálogo, à moda do Fedro ou da República de Platão. Está portanto latente e dissimulado sob a guisa do modo uni-direccional da narrativa pura. Será com base em artifícios como estes que se irá identificar a sabotagem patente nesta obra. Ainda a propósito desta faculdade de falsificador ou de simultaneidade, George Steiner apresenta-nos outro exemplo da duplicidade na linguagem, em que mistério e desocultação se interpenetram: Mallarmé torna as palavras fundamentais, não de comunicação, mas de iniciação num mistério privado. Mallarmé usa as palavras correntes dando-lhes sentidos ocultos e enigmáticos: reconhecemos as palavras, mas elas viram-nos as costas." (STEINER, 2014. p.57) Cantos de Maldoror é um dos textos cujas palavras também nos "viram costas". Irei proceder a uma suma análise de alguns excertos que a meu ver acentuam a dicotomia entre os dois tipos de linguagem patentes no livro Cantos de Maldoror, de modo a fazer transparecer mais claramente esta obra surrealista como um sólido exemplo de jogo duplo. Através da comparação entre excertos do primeiro e do segundo momento do livro é possível identificar, por via das semelhanças e diferenças, posições opostas e destituintes das anteriores elaboradas quer por Isidore Ducasse, quer proferidas sobre o seu pseudónimo de Conde de Lautréamont. Esta secção irá retirar várias citações que servem para ilustrar o jogo duplo implícito no livro como um todo. Para tal, as citações têm adenda a nota da parte do livro em que se retiraram, ora tratando-se dos Cantos de Maldoror, ora das Poesias: Prefácio a um Livro Futuro. [in Cantos de Maldoror:] Falando de um modo geral, é coisa singular esta tendência que nos leva a procurar (para seguidamente as exprimir) as semelhanças e as diferenças que se encobrem, em suas naturais propriedades, nos objectos mais opostos entre si, e às vezes nos aparentemente menos aptos a prestarem-se a esse género de combinações simpaticamente curiosas e que, palavra de honra, dão graciosamente ao estilo do escritor, que a si mesmo concede essa pessoal satisfação, o impossível e inesquecível aspecto de um mocho grave até à eternidade. (DUCASSE, idem. p. 134) Dirige-se assim Isidore Ducasse (ou o Conde de Lautréamont, neste caso) à grave e abjecta comparação do voo de um milhafre real com uma cara de um cadáver de uma criança de dez anos de idade. De uma beleza que o autor considera equivalente, deixa-se também transparecer na sua necessidade em exprimir judiciosamente as semelhanças entre estas duas situações tão díspares na longa exortação acima citada. Como narrador de um enredo tão sombrio e transgressivo será de notar que a linguagem utilizada é cuidada e ornamentada. Epistolar. Já os curtos parágrafos que figuram no posfácio apresentam por sua vez uma linguagem mais impositiva, e seca. Profética, talvez porque se intitula (hipocritamente) de um Prefácio. Neste texto final produzem-se frases severas: quer se tratem de opiniões quer de insultos, e no entanto elevam-se ao mesmo nível que a violência, infecção e infortúnio que os Cantos "delicadamente" se esforçam por descrever. Frases como as seguintes tentam comparar o contraste diamétrico nos dois discursos: [in Cantos de Maldoror:] Tanto é o horror que o homem inspira ao seu próprio semelhante! Talvez eu esteja enganado ao afirmar isto; mas também talvez fale verdade. Eu conheço ou concebo uma doença mais terrível do que os olhos inchados pelas longas meditações sobre o estranho carácter do homem: mas procuro-a ainda... não consegui encontrá-la! Não me julgo menos inteligente do que qualquer um e, no entanto, quem ousaria afirmar que triunfei nas minhas inverstigações? Que mentira sairia da sua boca! (DUCASSE, idem. p. 111) Depois de todo um universo literário tangencial ao fantástico, ao da luxúria e ao grotesco pelo qual se desenrolam as acções de Maldoror e as elações do Conde de Lautréamont, nas Poesias as observações revelam-se cutilantes; de uma sobriedade e de um estoicismo diametralmente opostos aos Cantos, chegando mesmo a insinuar-se num jogo duplo com uma intenção sabotadora. [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro:] Há escritores aviltados, perigosos bobos, intrujões às dúzias, sombrios mistificadores, verdadeiros alienados, que mereciam ir para Rilhafoles. As suas cabeças cretinizantes, onde já falta um parafuso, criam fantasmas, que descem em vez de subir. Exercício escabroso; ginástica especiosa. Passem, grotescos aldrabões. Façam favor de se retirarem da minha presença, fabricantes à dúzia de enigmas proibidos, onde eu dantes não percebia, como percebo hoje à primeira, a charneira da solução frívola. Casos patológicos de um egoísmo formidável. Autómatos fantásticos: apontai a dedo um ou outro, meus filhos, o epíteto que os põe no seu lugar. (DUCASSE, idem. p. 197) Os exercícios auto-críticos que Isidore Ducasse levou a cabo sob a guisa do pseudónimo do Conde são contra-balançadas através da sua postura crítica no Prefácio a um Livro Futuro. Tome-se o exemplo que Ducasse faz de Dumas: [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro:] Alexandre Dumas filho não fará nunca, nunca por nunca ser, um discurso de distribuição dos prémios para um liceu. Ele não sabe o que é a moral. Não transige. Se transigisse, tinha antes que riscar com um traço tudo o que escreveu até aqui, a começar pelos seus Prefácios absurdos. Reúnam um júri de homens competentes: mantenho que um bom aluno do quinto ano é mais forte do que ele seja no que for, mesmo na porca questão das cortesãs. (DUCASSE, idem. p.195) Os romances de Dumas são alvo de um insulto comparável na linguagem ao Manifesto AntiDantas de Almada Negreiros, ainda que se trate pois, de um insulto de meados do século XIX. A propósito da passagem do romance como um estilo regrado que progressivamente se foi corrompendo e renovando, escreveu Juan Hernández Les o seguinte: O romance social é igual para Victor Hugo e para Tolstoi ou para um romancista espanhol e um francês. A ideia de relato é muito comum em literaturas distintas dos autores de séc. XIX. Essa homogeneidade de estilo perdeu-se depois da Primeira Guerra Mundial. No séc. XX, as literaturas começaram a libertar-se da sua origem e do seu contexto, levando a cabo transgressões inimagináveis. (LES, 2003. p.34) E não será de perder de vista a data da primeira publicação d' Os Cantos de Maldoror, antecedente aliás, com o período descrito por Juan Hernández Les – 1870, aos 24 anos de Isidore Ducasse, e também a idade da sua morte. Sem dúvida esta é uma "transgressão inimaginável" para o seu tempo e para a idade do autor. Sendo talvez um pouco precoce para a sua época, Os Cantos apresentam uma estrutura identificável com a do romance, à excepção do conteúdo que parece focar-se em intenções depredatórias e auto-destrutivas, como é o caso do seguinte excerto que escrupulosamente receita tamanha malícia para os homens do mundo, ilustrada aqui pelas acções descritas pelo narrador. Faça-se também notar a exagerada extensão de cada frase e a dimensão extenuante de cada um dos parágrafos nos Cantos: [in Cantos de Maldoror:] Arranquei um piolho fêmea dos cabelos da humanidade. Viram-me ir para a cama com ele durante três noites consecutivas, e deitei-o para a fossa. A fecundação humana, que em casos semelhantes teria sido nula, foi desta vez aceite, por fatalidade; e, ao fim de alguns dias, milhares de monstros, formigando num nó compacto de matéria, vieram à luz. Este nó horrendo tornou-se, com o tempo, cada vez mais imenso, adquirindo entretanto a propriedade líquida do mercúrio, e dividiu-se em diferentes ramos, que actualmente se alimentam devorando-se a si mesmos (a natalidade é maior que a mortalidade) sempre que não lhes atiro, para se saciarem, um filho ilegítimo recém-nascido e cuja morte seja desejada pela mãe, ou um braço que vou cortar a uma jovem qualquer, durante a noite, graças ao clorofórmio. De quinze em quinze anos, as gerações de piolhos, que se alimentam do homem, diminuem de maneira notável, e são elas que predizem, infalivelmente, a época próxima da sua completa destruição. Porque o homem, mais inteligente que o seu inimigo, consegue vencê-lo. Então, com uma pá infernal que me aumenta as forças, extraio desta mina inesgotável blocos de piolhos, tão grandes como montanhas, parto-os à machadada e levo-os, nas noites mais profundas, para as artérias das cidades. Ali, em contacto com a temperatura humana, dissolvem-se como nos primeiros dias da sua formação nas tortuosas galerias da mina subterrânea, cavam um leito no saibro e espalham-se em rios pelas habitações, como espíritos nefastos. (DUCASSE, idem. p. 65) O trabalho de Isidore Ducasse é um particular exemplo de um autor que atenta contra si mesmo. Depois da desenvoltura do perfil deslumbrado e malicioso de Maldoror, o autor lança-se a uma dura crítica contra muitos dos pensamentos anteriormente louvados, neste caso pelo seu pseudónimo o Conde de Lautréamont. Apesar de não engajar directamente o discurso que utilizou para os Cantos de Maldoror, Ducasse adopta um estilo de escrita completamente diferente, vazado de longas comparações ou evocações e desprovido de quaisquer parêntesis. A citação acima não era mais que um excerto de um dos parágrafos, enquanto que a que se segue é em si mesma um parágrafo completo: "O fenómeno passa. Procuro as leis" (DUCASSE, idem. p. 210 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]) Nas Poesias: Prefácio a um Livro Futuro existe a sensação palpável de que o autor combate contra o estilo em que fez discorrer os Cantos, atacando tanto Victor Hugo como Dickens – conhecidos romancistas de aventura e do fantástico – pela parca qualidade ou mesmo pelo possível prejuízo das suas obras, alegando que "uma verdade banal contém mais génio e capaz de reconstruir a alma humana", algo impossível de fazer com esses textos. (DUCASSE, idem. p.208 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]). E continua em defesa da moral e da banalidade, sugerindo comicamente que se ponha "uma pena de pato na mão de um moralista que seja escritor de primeira ordem. Ele será superior aos poetas." (DUCASSE, idem. p. 210 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]) As Poesias incluem ainda o registo de uma estóica resolução do autor, que parece também ela procurar seguir em direcção oposta aos trágicos e fervorentos textos d' Os Cantos. Ducasse escreve aqui num tom profético e frio, e portanto estabelece uma clara diferença entre uma prosa moralista e emocional e a poesia das máximas racionais quando escreve que "O ideal da poesia mudará. As tragédias, os poemas, as elegias deixarão de ter o primado. O primado será da frieza da máxima! (DUCASSE, idem. p. 211 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]) Uma leitura cuidada dos seis cantos traduz-se numa experiência melodramática, uma leitura prazenteira pela desgraça sem fim e particularmente pela promessa com que o autor nos seduz, a possibilidade deliciosa de que não haja um fim feliz e resoluto. O grande malfeitor dificilmente se retira do pedestal de herói protagonista, de actos e elações tão belas e ao mesmo tempo tão vis ou profanas. Depois de um mundo de horrores, de luxúrias entre bruxas e de quimeras impossíveis, abre-se caminho para outro texto Isidore Ducasse polarizou-se num planeta racional, de verdades Cartesianas (DUCASSE, idem. p.206 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]) e de empiricismo. Isto resulta numa construção antitética, no mínimo, chegando mesmo a tornar-se numa narrativa que se sabota a si própria, ou que pelo menos mantém esse fito. Identifica-se um jogo duplo nesta obra como um espectáculo de fantoches, em que uma mão (Cantos de Maldoror) finge ser a antagonista da outra mão (Poesias: Prefácio a um Livro Futuro). Ambas são amas do mesmo mestre mas orientadas para que se contraponham. Há no livro uma atitude auto-destrutiva que se auto-critica, mas esta é uma crítica que se dissimula. Momentos como o abaixo citado reforçam um aspecto resultante dessa atitude, ao apelar a que se termine o canto II ao invés de o encerrar com a usual solenidade apaziguadora de que se revestem as conclusões. [in Cantos de Maldoror:] É tempo de apertar os freios à minha inspiração e de deter na estrada por um instante, como quando se contempla a vagina de uma mulher; é bom examinar o caminho percorrido e lançar seguidamente num salto impetuoso os membros repousados. [...] O crocodilo não mudará uma palavra ao vómito que lhe saiu debaixo do crânio. (DUCASSE, idem. p. 87) Será importante salvaguardar uma das opiniões concisas que Isidore Ducasse apresenta acerca da forma como a poesia opera. Sem informar da lógica que orienta a poesia, Ducasse reitera que esta não se assemelha à Lógica, disciplina da Filosofia. A lógica da poesia é capaz de escapar às regras que a Lógica da filosofia estabelece. Por outras palavras, a poesia será portanto passível de sabotar a disciplina da Lógica: "Existe uma lógica para a poesia. Não a mesma da filosofia. Os filósofos não são tanto como os poetas. Os poetas têm o direito de se considerar acima dos filósofos." (DUCASSE, idem. p.213 [in Poesias: Prefácio a um Livro Futuro]) Ducasse pode ser revisto no que escreve Mario Perniola a propósito da autonomia da linguagem da poesia. Informando por outras palavras da diferença entre essa linguagem abstracta e iconoclasta (sendo que a poesia existe na ruptura, ou na deturpação do sentido da palavra, abrindo caminho a uma nova ou indirecta associação duma palavra a uma imagem), e a comunicação, que por sua vez é concreta e iconófila (porque o discurso corrente obedece às associaçõs e símbolos pré-estabelecidos por processos simples de lógica contextual). Como exemplo temos a distinção entre a nossa imagem mental de um forno de cozinha (ícone) e a expressão "isto aqui dentro está um forno", que neste caso a imagem dimanente é apenas o calor que um forno pode fabricar, e não o facto de o lugar se assemelhar fisicamente a um forno. É verdade que também a poesia é linguagem autónoma; mas há uma diferença entre a poesia e a comunicação: a primeira cria uma nova ordem simbólica, ao passo que a segunda se impediu, desde o começo, de chegar a qualquer ordem simbólica. (PERNIOLA, 2005. p. 32) Na afirmação anterior encontra-se o argumento que justifica muita da poesia citada neste trabalho de projecto e, com ela, muitos dos actos ou versos sabotadores de Mike Kelley ou Alberto Pimenta, principalmente o texto subversivo de Isidore Ducasse. Para tal serve de exemplo mais um comentário que abre o canto II do livro, que nos informa de um "enérgico defensor" que protege o canto da infiltração da moral com as suas obscuras investidas. Ducasse (ou o Conde de Lautréamont, neste caso) infere com alguma clareza um intento sabotador de um conhecido sistema de regras: a moral. [in Cantos de Maldoror:] Para onde foi este canto? Não se sabe ao certo. Não foram as árvores nem os ventos que o guardaram. E a moral, que passava por estes sítios, não prevendo que tinha nestas páginas incandescentes um enérgico defensor, viu-o dirigir-se, a passos firmes e direitos, para os recantos obscuros e para as fibras secretas das consciências. (DUCASSE, idem. p. 45) A forma como Isidore Ducasse coloca o seu pseudónimo a atacar os valores morais para mais tarde retaliar as suas próprias injúrias, revelou-se no meu entendimento o exemplo mais interessante de se analisar à luz do jogo duplo. A tensão explícita entre o corpo do texto malicioso e o falso prefácio profético é uma das razões que me leva crer que existe não só um jogo de linguagem, mas que pelos artifícios utilizados, se demonstra uma natureza dupla neste jogo. Pela forma como essa natureza dupla tende a invalidar-se nessa dualidade, identifica-se também uma manobra de mútua sabotagem do texto. Em conclusão, os Cantos de Maldoror e o Prefácio para um Livro Futuro fazem, no seu conjunto, um exemplar primo de um jogo duplo que se serve da sabotagem dos jogos de linguagem internos, como o principal instrumento de articulação entre ambos os textos. 4. Fotografias, Elefante de Sala e Nuts about my Family: Caso Prático Aqui discutem-se as minhas abordagens práticas ao tema, à luz das noções que foram levantadas de antemão sobre jogo duplo e sabotagem. A secção procura estabelecer nexos entre o meu trabalho prático e o trabalho de investigação realizado, e inicia-se pela descrição da minha série de fotografias de ecrã (ou screenshots) Fotografias, para depois se passar à justificação das peças Elefante de Sala e Nuts about my family no intuito de contextualizar melhor a forma como concretizei as noções que desenvolvi acerca do jogo duplo como uma forma de sabotagem, que se manifesta por via de jogos de linguagem subversivos. Segue-se a dita descrição da série de screenshots que tenho vindo a desenvolver sob o pseudónimo de "Fotografias". Aqui volto-me um pouco para os mesmos modelos de contradição que Douglas Heubler utilizou em algumas das suas obras, com o mesmo intuito de forçar uma leitura errónea ou no mínimo desconcertante do conteúdo das imagens. As "fotografias" representam espaços cuja arquitectura e decoração são da minha autoria, não obstante os espaços serem inteiramente digitais, bem como os objectos que os povoam. A partir do editor interno do jogo de vídeo Fallout 4, torna-se possível abordá-lo como uma prática instalacional, através da deposição de modelos tridimensionais e focos de iluminação pré-existentes ou externos ao programa. Seguidamente as screenshots são editadas, com o intuito de se aproximarem com a estética dos primeiros tempos da fotografia, um pouco como as cianotipias do tempo de Henry Fox Talbot. Os ambientes apesar de navegáveis no espaço virtual, estes perpetuam-se na fotografia da instalação e permite-se-lhes uma transição mais suave de um espaço dito virtual ou fictício para um espaço mais próximo do físico ou do factual. As estrofes de Jodorowski "¿Definirme?¿Cómo? / Sólo me conozco / por lo que no soy." (JODOROWSKI, 2010. 167) aplicam-se à forma inversa com a qual se identificam as imagens desta séria. Estas definem-se também pelo que não são – fotografia analógica, ou mais precisamente, "não-cianotipias". Fig. 19: W #12, 2016. Tamanho: 1323x777 pixels A utilização da moldura é mais uma vez totalmente digital, e serve apenas para intensificar o grau de falsificação, tornando as screenshots menos digitais subliminarmente mais nobres. Garantindo-lhes o estatuto enaltecedor de um objecto emoldurado. Esta operação de travestir uma screenshot por uma imagem emoldurada é crucial para exercer o jogo duplo entre a verdade fotográfica e a ficção da pintura. Ambas as Fotografias desta página viriam figurar no meu trabalho final: foram estampadas para fazer a peça Nuts about my Family. Fig. 20: STCO #3, 2016. Tamanho: 983x710 pixels Fig. 21: FS #4, 2016. Tamanho: 1126x792 pixels The slaves of reason call this book Abuse-of-Language: they are right. Language was made for men to eat and drink, make love, do barter, die. The wealth of a language consists in its Abstracts; the poorest tongues have wealth of Concretes. Therefore have Adepts praised silence; at least it does not mislead as speech does. (CROWLEY, 1952, p.56) A relação acima establecida pelo ocultista Aleister Crowley, entre a riqueza de uma linguagem e a profusão dos seus valores mais abstractos ou ambíguos, em detrimento dos conceitos concretos e fechados que na sua opinião empobrecem a linguagem, adequa-se ao firmamento que este trabalho de projecto procura sublinhar, na medida em que esta "riqueza dos Abstractos" e "pobreza dos Concretos" que Crowley refere se tornam nos campos antípodas que o artista tem à sua disposição para se envolver num qualquer jogo de linguagem. Através dessa mesma pobreza das palavras concretas, por processos degenerativos da semiótica (como a mentira, a sabotagem ou outra transgressão), acaba por se acrescentarem valores que tornam as palavras abstractas, ou aos olhos de Crowley – mais "ricas". Ainda que Crowley informe que o discurso pode induzir o erro, e que o silêncio é preferível ao "adepto" (ou ao pensador, neste caso), há também uma atenção acerca da forma como os homens mais racionais apelidam o seu livro The Book of Lies de "abuso-da-linguagem", sem deixar de devolver o devido perjúrio, apelidando-os de volta de "escravos da razão". Acerca desta relação entre concreto e abstracto que enunciei acima, propus-me então a pôr em evidência, por vias do contraste, a minha participação na exposição colectiva, que teve lugar num espaço no 1º andar do complexo LxFactory em Lisboa, do mês de Junho a Julho de 2016. Tomei uma abordagem dita "dupla" ao projecto, do qual os meus colegas concederam à minha sugestão de título – OITOUNOVE, também ela alusiva à incerteza, neste caso específico da participação ou não do meu colega David Xavier, o nono elemento. As imagens que se seguem representam a hipótese prática que tenta responder à dupla questão deste trabalho de projecto: Como jogar um jogo que é duplo, em que uma jogada procura sabotar a outra? Fig. 22: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis Fig. 23: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis [pormenor: brinquedos, pósters e linóleo] A minha participação foi sumariamente descrita na introdução para familiarizar o leitor com o meu trabalho prático mas será agora analisada com maior pormenor. Depois de se ter posto em perspectiva o processo que levou ao culminar desta dupla abordagem, desde a influência dos meus trabalhos de atelier e simultaneamente espaço expositivo cujas exposições não excediam as 24 horas (terminando frequentemente esse período com a destruição, voluntária ou involuntária, individual ou comunal, parcial ou total das exposições), aos meus ensaios sobre da falsificação da linguagem da fotografia, torna-se mais acessível a compreensão das minhas escolhas e mais precisamente, da minha estratégia de jogo duplo. Fig. 24: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão, gravação áudio Fig. 25: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão, gravação áudio Fig. 26: Elefante de Sala, 2016. Técnica mista, dimensões variáveis Apesar de ambas as abordagens integrarem uma exposição colectiva de finalistas de mestrado, cuja regra mais comum é conter peças características de cada artista e que o contextualizem e encerrem num nicho artístico, as duas peças tornam impossível uma identificação imediata com um nicho apenas. Ao estar a ensaiar duas posições opostas, ou duas escolas de pensamento contrárias, estou também a insinuar que não defendo afincadamente nenhuma posição em detrimento da outra, deixando assim uma margem de interpretação maior que a média, e portanto proporcionando um momento prolongado de confusão ou de dúvida. O conjunto de imagens na peça Nuts about my family, aquando o devido momento de contemplação que se permite à fotografia no geral, revela-se codificado e também ele inacessível, dada a disposição e a coloração anacrónicas dos objectos que nelas se contêm. Apesar de se tratarem de imagens digitais (screenshots) e de estarem peremptoriamente emolduradas, é a impressão no tecido que as posiciona em relação directa com a fotografia analógica, conferindo-lhes um suporte físico que actua como o plinto na escultura ou a moldura na pintura. São com estas ditas regras que se delimitam os campos de uma prática, e por conseguinte os elemento constituintes de um qualquer jogo de linguagem que se pretende enveredar – sendo que neste caso é a linguagem do fingimento e da duplicidade que está implicada em Nuts about my family. Fig. 27: Nuts about my family, 2016. Impressão a cores sobre algodão, gravação áudio As fotografias padecem de uma ambígua certeza, ao passo que na instalação Elefante de Sala é toda ela um isco assumido. Esta mostra-se, com toda a verdade da matéria, concreta e simultaneamente rica em símbolos vazados, laicos, juvenis até. Animados por nada mais senão pelo valor sentimental e pela memória. Os objectos depostos no espaço que o próprio espaço delimita nada têm de erudito, salvo a própria presunção pela qual me submeto, ao convidar o espectador a conjecturar e a valorizar o meu universo pessoal de uma forma tão gratuita; e aqui comparo a forma como incito esse acesso do espectador à íntima experiência de dar a conhecer o meu frigorífico e os seus conteúdos, bem como os ímanes que preenchem a porta. Não obstante de este exemplo evidenciar uma atitude gratuita e portanto mais acessível ou concreta, é também de notar: não me considero na total honestidade ao assumir que esta atitude me satisfaz inteiramente. De tal forma que agi de acordo com o princípio da contradição, e que procurei abordar de forma polarmente diferente o modo de cativar o espectador em Nuts about my family. Ao tomarmos por verdadeira a cacofonia que esses objectos insinuam em Elefante de Sala, o silêncio das imagens em Nuts about my family desestabiliza a proposição mais óbvia. Existe em ambas um desejo que a outra não exista, que comparo aqui à sabotagem que Isidore Ducasse aplica sobre o Conde de Lautréamont, que se explicita neste excerto: "Substituo a melancolia pela coragem, a dúvida pela certeza, o desespero pela esperança, a maldade pelo bem, as queixas pelo dever, o cepticismo pela fé, os sofismas pela frieza da calma e o orgulho pela modéstia." (DUCASSE, 1988, p.193) Fig. 28: Elefante de Sala, 2016. [pormenor: factura] Fig. 29: Elefante de Sala, 2016. [pormenor: palco das performances] Um jogo que se afirme como duplo, perdeu o seu bluff, por assim dizer. Daí que o excesso da instalação e das cores, bem como a minha frequente presença como performer dentro da área por ela delimitada, são elementos que permitem que me contraponha à modéstia da fotografia e da pintura, afastando-me como autor ou mesmo ilibando-me totalmente. As cores vivas que se impõem e embebedam, o leve humor ao tom do kitsch lusitano, bem como os improvisos musicais levados a cabo nesse registo; entendo-o assim como uma sabotagem indirecta sobre a seriedade e a aridez quer das imagens sóbrias quer das cores mortas quer das palavras patentes em Nuts about my family (ou screenshots impressas). Faça-se uma menção subtil do contraste entre os lugares-comuns em ambos os títulos: No Elefante de Sala é estoicismo da língua inglesa que infecta o título em português, e em Nuts About My Family sequestrou-se a sensibilidade poética da língua portuguesa para residir no título em Inglês. Ambos os trabalhos serão insuficientes se considerados em separado, pois que os meus interesses se situam justamente no intervalo criado entre a linguagem de uma peça e a de outra, o que perfaz um interesse pela contradição resultante, e a forma como esta fomenta enquanto sabota os jogos de linguagem. Várias coisas sérias são contraditas. Várias coisas falsas são incontraditas. A contradição é o sinal da falsidade. A incontradição é o sinal da certeza. DUCASSE, 1988. p. 211 Solo en lo incierto / me siento seguro. JODOROWSKI, 2010. 252. Será interessante fechar com estas duas considerações, e reflectindo sobre a contradição que efectivamente resulta do confronto com um jogo duplo de carácter sabotador. Curiosamente, o "incerto" em Jodorowski é o único termo que Isidore Ducasse não refere na sua analogia entre as "coisas sérias e as coisas falsas". No entanto, numa hipotética releitura de Ducasse à luz de Jodorowski torna-se evidente o enquadramento que Isidore Ducasse desenha para o dito "incerto". Se a incontradição pode ser inversamente vista como sinal de certeza, então pela crueza das regras da Lógica, a contradição é o sinal de incerteza – e portanto o "incerto" será o sentimento resultante dessa contradição. Mas Ducasse prepara uma contradição interna: as "coisas sérias" são frequentemente contraditas e as "falsas" frequentemente se mantêm incontraditas. Mas quando a contradição em si é tida como o sinal da falsidade, isto implicaria que as "coisas sérias" são tão ou mais falseadas que as próprias coisas "falsas", beneficiando assim da seriedade que a incontradição lhes concede. Ou seja, com esta analogia Isidore Ducasse pretende subverter a certeza patente nas "coisas sérias", aplicando-a às "coisas falsas". Daí que quando Alejandro Jodorowski acrescenta que "é apenas no incerto que se sente seguro", permite-se uma nova relação com a frase de Ducasse. Ao inferir que é "o incerto que traz a segurança", também se pode associar que este "incerto" não é mais produto da falsidade mas sim de uma veracidade que não se quer estabelecer. Ou seja, Jodorowski procura a segurança que é a vastidão incomensurável da realidade, ao abrigo da incerteza que resulta das suas constantes e eternas contradições. Empregue-se o seguinte exemplo, invertendo o que se passou com Jodorowski: O processo que faz de um Deus (ou Deuses) algo incomensurável, improvável, ou pura e simplesmente "falso" é a sua natureza, fora da Natureza. Quando uma coisa é tão "falsa" ao ponto da imaterialidade, torna-se logicamente impossível a sua contradição, e portanto esta coisa falsa ganha o sinal da certeza unicamente por se tratar uma falsidade intocável. Este jogo de linguagem wittgensteiniano que se elaborou em torno de Alejandro Jodorowski e Isidore Ducasse tinha por objectivo esclarecer o jogo duplo em torno do qual desenvolvi o meu corpo de trabalho, em que o exercício da contradição viu sabotar as suas interpretações possíveis, multiplicando-as. Da absorção deste acto subversivo resultam várias hipóteses de completar os interestícios entre um pólo e outro. Acima de tudo, a sensação presente deste exercício de interpretação bicéfala deve ser o da incerteza. Com a incerteza como um objectivo ulterior, justifica-se o recurso a processos criativos com um fito dissuasor, contraditório e contraproducente – como foi o caso do jogo duplo e da sabotagem. Fig. 30: Nuts about my family, 2016. [pormenor:fonte de áudio reproduz a frase que dá o título à peça] 5. Conclusão Entre as várias acepções que a investigação levantou, começou-se inicialmente por falar no capítulo 2 acerca do conceito de jogo e desvendar a sua definição alargada, debruçando-se em particular na sua sujeição a um conjunto de regras. Esta sujeição característica do significado de jogar um jogo é salvaguardada para se tentar depois analisar melhor o conceito de "jogo de linguagem" sugerido por Ludwig Wittgenstein. É por contraste que se conclui na secção 2.1 que Wittgenstein não liberta só o uso da linguagem de uma sujeição àquilo que é entendido como regra. É mais precisamente na relação que estabelece entre a sua difusa definição de jogo e a forma como o conceito de "jogo de linguagem" abre caminho a uma expansão adúltera e quasi-infinita dos significados. O tal efeito de sujeição acaba por ser corrompido em Wittgenstein, quando este nos informa da impossibilidade de um consenso total que regule todas as instâncias da linguagem. Assim, pôde-se concluir que o próprio acto de jogar a linguagem contém em si mesmo a excitante possibilidade de manipular, distorcer e enfim subverter o significado. A secção 2.2 tratou de procurar casos em que a linguagem tivesse sido trabalhada neste sentido subversivo, introduzindo também outros conceitos acessórios que surgiram com a modernização das tecnologias. A secção propôs um casamento entre o jogo de linguagem de Ludwig Wittgenstein e o glitchspeak de Rosa Menkman, que se define como uma linguagem que procura emular a distorção e corrupção da informação nos formatos digitais (MENKMAN, 2000. pp.43-8). A razão desta união prende-se com o facto de ambos os conceitos possibilitarem, senão encorajarem, a subversão de regras. O jogo de linguagem porque permite várias leituras possíveis de uma proposição, e o glitchspeak porque admite proposições que partem de um erro e que em si mesmas contestam os limites da linguagem. A linguagem deixa assim de ser factual e começa a ser passível de ser logro. Incluíram-se as análises de duas obras que trabalham com esta tensão liminal, como o filme Kalkitos de Miguel Gomes e o meu tabalho de atelier em colectivo no ano de 2015, concluiuse que é possivel elaborar um novo jogo de linguagem, que se fixa no erro intencional. E que este desbloqueia a solidez do significado da palavra e da imagem, por via da deturpação ou má-interpretação das regras. Introduziu-se o conceito de jogo duplo no capítulo 3, primeiro analisando os sentidos figurativos das palavras jogo, duplo e duplicidade, com o fito de melhor conjugar um significado, ainda que embrionário, de jogo duplo. Face às conclusões do capítulo anterior acerca do erro intencional e dos jogos de linguagem, tornou-se pertinente então elaborar sobre o conceito que poderia abarcar este tipo de processos degenerativos sob uma definição mais restrita. Deste modo, procurou-se explorar o jogo duplo como uma possível solução, analisando o modo como os jogos de linguagem e o erro intencional se articulam perante uma situação que ocorre em duas instâncias simultâneas. Esta solução do jogo duplo levantou uma questão adicional, ao qual a secção 3.1 procura responder com a definição alargada de sabotagem: Será o facto de um jogo actuar duplamente suficiente para subverter alguma regra que seja? A resposta a que me propus, é que não – para tal acontecer tem que estar implicado um qualquer grau de sabotagem. Um jogo que é duplo pode assumir-se mutuamente como um duplo, como acontece em Leviathan (de Paul Auster) e em Double Game (de Sophie Calle), ou pode contradizer-se nas duas posições que toma. Este último exemplo de jogo duplo é o que me mais me interessa, e identifico-o nesta secção como uma prática sabotadora. Num primeiro momento deste tipo de jogo existe uma proposição que procura invalidar ou desmentir a proposição seguinte. Pense-se no célebre exemplo de um cartão que na frente diz "a frase no verso é falsa" e no verso lê "a frase na frente é verdadeira", e compare-se como uma frase sabota o significado da outra, e como esta operação efectivamente subverte as regras num processo auto-fágico. Ao ter sublinhado o papel do jogo duplo que se serve dos processos da sabotagem, analisou-se essa valência degenerativa no trabalho de Mike Kelley e no seu processo criativo, fazendo menção dos artifícios utilizados nas duas peças audio-visuais Heidi (1992) e Day Is Done (2005). Artifícios como a inclusão da arte folk na linguagem da cultura pop, como a corrupção do duplo na linguagem fílmica e a caricaturação dos sistemas de lógica que permeam a linguagem dos novos media, como a moda do algoritmo são no meu entendimento sinónimos de uma prática que se revela tão sabotadora quanto criativa. A secção 3.2 avançou no mesmo vector de inclusão que a sua precedente, agora debruçandose exclusivamente em dois casos e na forma como os seus processos reflectem o conceito de sabotagem que este trabalho de projecto se prestou a explorar. Sendo para mim pertinente assegurar as manifestações do jogo duplo e da sabotagem na Poesia como instrumentos essenciais à sua evolução ou mutação, não excluí a necessidade de estabelecer um transporte cuidadoso dos paralelos entre a Arte e a Literatura. Daí que se iniciou com a descrição do trabalho do artista conceptual Douglas Huebler. Tendo nascido no ano de 1924, Huebler co-existiu com muitos dos movimentos iniciados neste período, sendo considerado por alguns como um dos fundadores da arte conceptual (KELLEY, 2003. p.180). Com uma nítida familiarização com os jogos de linguagem wittgensteinianos, Douglas Huebler desenvolveu um corpo de trabalho que visa precisamente um estado de desconexão entre texto e imagem, que contradiz uma legenda com uma imagem, uma condição com uma proposição, em suma uma abordagem com outra. Este bluff foi o que identifiquei em Huebler como a sua característica sabotadora, e fonta da sua abordagem duplamente dissuasora. Assim se aplicou o quadro da sabotagem a Huebler, e do mesmo jeito grosseiro se aplicou agora a Isidore Ducasse e ao seu pseudónimo, o Conde de Lautréamont. 1847 é a impressionante data da primeira publicação do livro em que este trabalho de projecto se foca – Cantos de Maldoror e o seu posfácio Poesias: Prefácio a um Livro Futuro. Realçaram-se os diferentes planos em que a obra se joga duplamente. Em semelhança ao que acontece em Huebler, existe um tipo muito especial de contradição que intensifica esta duplicidade: A linguagem que Ducasse utiliza para as Poesias é tão severa e insensível nas suas afirmações, que as assemelho a mandamentos ou epitáfios. É a linguagem própria e identificável ao perfil que construiu para Maldoror, o anti-herói dos seis Cantos precedentes. No entanto, estes Cantos de Maldoror têm por narrador o Conde de Lautréamont, um narrador que sofre de um perfil oposto, cuja sensibilidade e eloquência excessivas se afastam em muito das acções de Maldoror. A linguagem ornamentada e virtuosa de que este se serve, por sua vez identifico-a como a linguagem convencional com que se tratariam dos temas igualmente nobres e argumentativos patentes nas Poesias. Tornou-se possível desvendar assim a dupla relação de sabotagem que uma parte do texto inflige na outra. Não se trata apenas de uma relação que se contradiz directamente. Esta contradiz-se a um nível implícito, que está ligado à forma como os dois tipos de discursos se influenciam inversamente e se interpenetram indirectamente, num exercício de sabotagem que anula ou minimiza a própria presença desse jogo duplo. Ou seja, concluiu-se que Isidore Ducasse procurou subverter a sua própria relação de duplicidade com o seu pseudónimo. Sabotou o próprio, jogando duplamente consigo. Admirável, para o ano de 1847. O capítulo 4 estabeleceu e justificou o meu entendimento acerca do conceito de jogo duplo como uma forma de sabotagem, ao desenvolver sobre a minha aplicação prática destes conceitos. Apesar de ter iniciado com umas noções acerca da minha série Fotografias, que se relaciona directamente com a falsificação de uma linguagem fotográfica. Esta demonstrou enfim a sua pertinência ao reaproveitar elementos da série para desenvolver o jogo duplo levado a cabo no projecto seguinte. Restringi-me assim às peças que se incluíram aquando da minha participação numa exposição colectiva, dado que quis testar a forma como esta abordagem dupla se compreenderia num contexto colectivo em que a norma é que o artista, apesar de partilhar a circunstância colectiva tem UMA linha que o identifica e o distingue dos outros integrantes. O objectivo era testar DUAS peças, e portanto DUAS linhas que dificultassem a categorização imediata do meu trabalho em determinada linha de pensamento ou determinada metodologia. A necessidade de se escapar à categorização, da mesma forma que Wittgenstein viu o jogo (WITTGENSTEIN, 2008. p.231) escapar à sua delimitação, foi justificada através de duas peças que em muito pouco se relacionam, estreitando a possibilidade de se identificarem sob a mesma autoria. Sendo esta a solução tomada, a sabotagem como instrumento pôde ser identificada nesse momento de dissuasão da autoria. Ainda que não tivesse utilizado pseudónimos, a disparidade entre um peça e outra tornou-as contentoras dessas mesmas qualidades de pseudónimos. Ambas as peças, como frutos da mesma flor, se sabotaram da sua relação de familiaridade. Como falsas orfãs. Encerrarei o raciocínio em torno do jogo duplo e da sabotagem como processos artísticos sob a seguinte interjeição de Nietzsche, reinterpretando-a ou subvertendo o seu valor de insulto para um elogio, aplicando-o à possibilidade que esta possa ser a imagem patente de um artista que é também um sabotador: To breed out of mankind a self-contradiction, an art of self-defilement, a will to lie at any cost, a revulsion, a scorn for all good and upright instincts! (NIETZSCHE, 2004. p. 62) É a propósito do Cristianismo, e da forma como condena os crentes através do próprio exercício da religião, que Nietzcshe critica com esta frase o humanismo administrado pela Igreja Cristã. No entanto e a meu ver, esta perspectiva jocosamente apelidada de "humanista" satisfaz a minha opinião face à criação artística, pelo que me identifico com o impulso de mentir e com o despeito por valores que se impõem como nobres. Acredito que é no jogo duplo – e na sabotagem que este inflige na linguagem – que está a remota possibilidade surgirem novos jogos de linguagem, que vivem já na sua relação dupla, sabotando eles mesmos os alicerces da Língua em que assentam, e enriquecendo assim a estória das mutações da Linguagem. BIBLIOGRAFIA AAVV, 2004. Grande Enciclopédia Universal, Durclub S.A. (Edição em exclusivo para Correio da Manhã): Lisboa BADIOU, Alain, 2011. Wittgenstein's Antipilosophy, trad. Bruno Bosteels, Verso: Londres BAUDRILLARD, Jean, 1991. Simulacros e Simulação, trad. Maria João da Costa Pereira, Relógio D' Água: Lisboa BOHM-DUCHEN, Monica, 2001. The private life of a masterpiece, University of California Press: Los Angeles CROWLEY, Aleister, 1952. 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