TE O RI A D O D I RE I TO
Hélcio Corrêa
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O JOGO DUPLO: o papel político do
judiciário e suas dimensões
DOUBLE GAME – the Judiciary’s political role and its dimensions
Hugo Tavares Vilela
RESUMO
ABSTRACT
Apresenta a hipótese de que a atuação política do Judiciário se
desenvolve em duas frentes, que se influenciam mutuamente e
se fundem em uma só realidade.
Assere que isso se dá por meio de uma ilustração baseada em
dois tabuleiros de xadrez em que se desenvolvem partidas simultâneas, sendo o Judiciário participante em ambas.
The author brings up the hypothesis that the Judiciary’s
political activity is performed on two fronts, which exert
influence on each other, merging into a single reality.
This idea is demonstrated by means of an image of two chess
boards in which simultaneous games are played, both of
them having the Judiciary as a player.
PALAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Teoria do Direito; política; teoria dos jogos; Judiciário; processo;
xadrez.
Law Theory; politics; games theory; Judiciary; procedure;
chess.
Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011
1 REFAZENDO UMA ILUSTRAÇÃO
A balança é o símbolo mais conhecido
da Justiça, servindo de efígie a muitos tribunais ao redor do mundo e sendo capaz de
evocar, mesmo no mais distraído passante, a ideia de que ali, sob aquele símbolo,
encontra-se um órgão jurisdicional.
O poderio comunicativo da balança
faz com que continuemos a usá-la para
ilustrar nossas formulações teóricas sobre a atuação do Poder Judiciário. Este
autor, em recente escrito (VILELA, 2011),
ao abordar os dois papéis simultâneos
desempenhados pelo Judiciário – um perante as partes no processo e outro perante os demais poderes estatais – valeuse da balança para compor uma imagem
do que dizia, tendo airmado que o juiz
divide seu olhar entre a balança (processo) que tem nas mãos e o tabuleiro de
xadrez (jogo político com o Executivo e o
Legislativo) que tem diante de si.
Essa ilustração é de fácil visualização e
transmite ideias essenciais à compreensão
da atuação do Judiciário, principalmente a
noção de que sua atividade se desenvolve
numa dinâmica de jogo1, ou melhor, de
dois jogos paralelos. Entretanto, a imagem
da balança padece de limitações para expressar com maior precisão a atuação do
magistrado no processo. Ela transmite a
ideia de um juiz eminentemente contemplativo, cujo papel se restringe a aferir o
mérito das partes e impedir que alguma
delas se valha de expediente desonesto
para vencer. Nessa visão um tanto estática,
a principal atuação positiva do juiz ocorre
somente no momento em que manifesta
o veredicto, e naquele em que implementa sua decisão.
Tal concepção é incompleta. No processo, o magistrado é um jogador, e não
um expectador contemplativo. Ele tem
seus próprios interesses, que só parcialmente coincidem com os das partes: presidir o processo de tal maneira que todas
as normas procedimentais, principalmente as do contraditório e ampla defesa,
sejam rigorosamente respeitadas; emitir
pronunciamentos tecnicamente corretos
e justos; otimizar os recursos materiais e
humanos para obter o melhor resultado
com o menor dispêndio; cumprimento
de metas numéricas de processos julgados; produzir sentenças que cumpram
seus objetivos dentro do processo e que,
criando situações excepcionais ou endossando hipóteses gerais consagradas
na lei, sejam ediicantes na construção
da ordem2; produzir precedente que não
lhe privem demasiadamente (política ou
juridicamente) da liberdade para resolver
casos futuros.
drado. O problema é que, em torno de
cada um deles, deverão tomar assento
três jogadores. Assim, no tabuleiro do
processo, por exemplo, teremos as duas
partes e o juiz. Porém, a cada jogador
deve corresponder um lado do tabuleiro,
e não é possível que o terceiro jogador
simplesmente se posicione em um dos
dois lados do quadrado não ocupados
pelos adversários porque, optando ele
por qualquer dos dois lados livres, restará o problema de não haver como colo-
[...] a imagem dos dois tabuleiros apresentará ao estudioso
que deseje usá-la algumas dificuldades que já se
manifestavam na ilustração da balança e do tabuleiro, mas
que não comprometiam a finalidade a que ela se prestava.
Os interesses3 que o magistrado tem
em jogo fazem dele um jogador e não
um mero expectador ou árbitro. Embora
possa ser imparcial e neutro em relação
a interesses das partes, sua eventual passividade quando de um conlito entre um
interesse seu e o de uma ou de ambas
as partes não deve ser entendida como
neutralidade, mas sim como tolerância,
uma atitude que só pode ser adotada
por quem é efetivo participante do jogo4.
Levando isso em conta, e sem desprezar os méritos ilustrativos da balança,
a maior exatidão recomenda deixá-la de
lado quando o intuito do estudioso for o
de reproduzir com idelidade o quadro
dúplice em que o juiz permanentemente
se encontra. Para esse desiderato, o estudioso deverá se utilizar não da imagem
de uma balança e um tabuleiro de xadrez, mas sim de dois tabuleiros.
2 DIFICULDADES DO NOVO CENÁRIO – O
FORMATO DO TABULEIRO
Entretanto, a imagem dos dois tabuleiros apresentará ao estudioso que
deseje usá-la algumas diiculdades que já
se manifestavam na ilustração da balança
e do tabuleiro, mas que não comprometiam a inalidade a que ela se prestava.
Essa diiculdade diz respeito ao formato
do tabuleiro, que não poderá ser qua-
car suas peças na posição inicial de jogo,
tendo em vista que a maioria das casas
diante de si já terá sido corretamente
ocupada por peças dos adversários, colocadas justamente em posição de início.
A questão é instigante e de solução
aparentemente impossível, vez que nos é
exigido posicionar um dos três jogadores
no que, poeticamente, poderíamos denominar de “a terceira margem do rio”5.
Por esse motivo, o melhor é permitir à
intuição que resolva livremente o problema dimensional e geométrico que ora
se apresenta. Uma das soluções que a
intuição parece indicar para o caso é um
estranho tabuleiro em forma de Y, em
que cada jogador icaria posicionado em
uma das três extremidades. Desse modo,
teríamos no tabuleiro do processo o juiz
e cada uma das partes postados respectivamente em cada uma das três pontas
do Y. Por sua vez, teríamos no tabuleiro
do jogo dos poderes o Legislativo, o Executivo e o Judiciário posicionados cada
qual em uma extremidade do Y. Dessa
forma, teremos dois tabuleiros estranhamente distorcidos e dispostos lado a
lado, sendo o Judiciário o único jogador
a tomar assento em ambos os jogos, dividindo sua atenção entre os dois.
Feita essa ponderação sobre os palcos em que as disputas irão se desen-
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rolar, cabe agora tratar da dinâmica em si dos jogos, pois de
nada adiantará ter compreendido o cenário sem que também
se compreenda a maneira como se desenvolverá, ou seja, as
regras que irão regê-lo.
3 PRIMEIRA REGRA EXTRAVAGANTE
Ao tratar das regras extravagantes, é necessário estabelecer como pressuposto inicial que as distorções dimensionais e
geométricas acima tratadas não impedirão a qualquer pessoa
identiicar imediatamente o que se vê como jogos de xadrez.
Mais além, é essencial frisar que as duas regras extravagantes
a seguir devem ser vistas não como resultados da modiicação
ou redimensionamento dos tabuleiros, como se viu na seção
anterior, mas sim de uma mudança que poderia perfeitamente
ser convencionada sem que aquelas alterações tivessem sido
realizadas. Todas as regras correntemente válidas para o xadrez
permanecem, portanto, válidas em nossa ilustração, acrescidas
das duas que se seguem.
Ao tratar das regras extravagantes, é
necessário estabelecer como pressuposto inicial
que as distorções dimensionais e geométricas
acima tratadas não impedirão a qualquer
pessoa identificar imediatamente o que se vê
como jogos de xadrez.
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Feita essa ressalva, cumpre expor a primeira regra extravagante: cada lance do Judiciário aplica-se aos dois tabuleiros.
Trata-se de caracterização em forma de regra de uma constante muito familiar ao juiz, no sentido de que sua atuação política relevante só pode ocorrer de fato por meio dos processos
que lhe cabe julgar. De certo modo, embora isso seja menos
intuitivo, podemos airmar que a recíproca é verdadeira. Assim,
o juiz não só deve estar atento aos dois jogos em que toma parte simultaneamente, mas também deve elaborar e fazer uma só
jogada para os dois.
Pode-se apresentar a objeção de que tal regra nem sempre
retrata a atuação judicial, pois o controle abstrato de constitucionalidade realizado por boa parte das cortes constitucionais
dos países de tradição romano-germânica não é abarcado. Essa
ressalva é sem razão. O Judiciário de um país em que se realiza
controle abstrato de constitucionalidade das leis, ainda que por
órgãos distintos de sua corte constitucional, terá de julgar casos concretos envolvendo a mesma matéria tratada no controle
abstrato depois de havê-lo realizado. Não raras vezes, o Poder
Judiciário ica extremamente desconcertado, em sérios apuros
para conciliar a forma como julgou no controle abstrato com
as exigências de um caso concreto ulterior. Por essa razão, ao
exercer o controle abstrato de constitucionalidade, o que faz
no tabuleiro dos três poderes, o bom poder judicante não se
esquece de que a solução dada no controle abstrato poderá
voltar-se contra si num caso concreto vindouro, e de que essa
situação desconcertante não deixará de ser percebida e aproveitada por seus adversários nos dois tabuleiros6.
Um bom exemplo desta última hipótese ocorreu no Supremo Tribunal Federal, maior corte do Brasil, quando do exame
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da competência para conhecer de ações de improbidade administrativa que tenham no polo passivo pessoas com prerrogativa
de foro para ações penais. Inicialmente, em controle abstrato de
constitucionalidade (ADIs n. 2.797 e 2.860, julgadas a 15/9/05),
a posição do STF foi no sentido de que a ação de improbidade,
de cunho cível, deveria ser ajuizada perante o juízo de primeiro
grau, mesmo que de seu polo passivo constasse pessoa com
prerrogativa de foro para ações penais. Entretanto, posteriormente, o STF se deparou com um caso concreto no qual a pessoa que ocupava o polo passivo da ação de improbidade era
um ministro do próprio STF. Neste caso (Questão de Ordem em
Petição n. 3.211-0, julgada a 13/3/08), o tribunal acabou decidindo em sentido contrário ao que havia estabelecido em sede de
controle abstrato. Isso deixou o Poder Judiciário como um todo,
e não só o STF, numa situação delicadíssima, culminando em
que a segunda corte do país – o Superior Tribunal de Justiça
–, ao examinar ação de improbidade em face de um chefe de
Executivo estadual, decidisse que a competência para dela conhecer seria determinada pela norma de prerrogativa de foro
(Rcl. 2.790-SC, julgada a 2/12/2009), adotando assim a posição
que o STF utilizara para julgar o caso concreto que envolvia um
ministro seu e desprezando a posição que o STF estabelecera
em controle abstrato. Inclusive, em suas razões, o STJ airmou
não haver sentido em que agentes públicos (falava-se então de
um Ministro do STF e um Governador de Estado) cuja fonte
direta de poder é a mesma – a Constituição Federal – tivessem soluções diferentes para a atribuição de competência para
ações de improbidade que se lhes fossem ajuizadas.
4 SEGUNDA REGRA EXTRAVAGANTE
A segunda regra extravagante diz respeito à possibilidade
que é dada ao Judiciário de trocar os tabuleiros. Em determinadas condições, a regra lhe permite simplesmente pegá-los,
com as peças sobre eles nas exatas posições em que estavam, e
trocá-los de mesa, de tal maneira que o Executivo e o Legislativo
se verão repentinamente na circunstância de terem de continuar o jogo partindo da posição em que este se encontrava para
as duas partes no processo, e vice-versa.
Embora estranha à primeira vista, essa possibilidade é usualmente empregada pelo Judiciário. Frequentemente, a melhor
ou única alternativa que resta ao juiz é defrontar os demais poderes com as circunstâncias do caso concreto e defrontar as
partes no processo com as circunstâncias políticas do Judiciário
em relação aos demais poderes.
São discutíveis as exatas circunstâncias que autorizam a
utilização dessa possibilidade. Entretanto, uma coisa é certa: a
troca é, em si, um lance. Não pode o Judiciário fazer uma jogada
e realizar a troca em seguida ou realizá-la e, em seguida, fazer
uma jogada. A troca conta como lance.
5 UM SÓ JOGO DUPLO
Como se pode inferir de algumas passagens acima, o fato
de que os cinco jogadores estão cientes do paralelismo dos dois
jogos, somado ao fato de que o lance feito pelo Judiciário vale
para os dois tabuleiros, faz com que, de certa forma, trate-se
de um só jogo. Todavia, ambos os “ramos” preservam certa
autonomia um do outro.
A constatação pelos participantes de que os dois jogos são
um só não gera tanto efeito sobre eles,
nem sobre os jogos em si, quanto se poderia imaginar. A constatação da unicidade do jogo vem acompanhada de uma
sensação de que o todo composto pelos
dois tabuleiros pode ser apenas um retalho arrancado arbitrariamente de uma
trama muito maior e mais complexa, de
um grande tecido de incontáveis estruturas fortemente entremeadas.
Assim, o efeito da constatação acima
referida sobre os jogadores é mitigado,
por ela vir acompanhada de uma percepção da grande disparidade entre a grandeza do que se concebe e a pequenez do
que efetivamente se vê. Essa percepção,
embora fugidia, é a tal ponto contundente que os jogadores quase são capazes
de voltar ao estado anterior à constatação da unicidade do jogo7.
A constatação do todo vem acompanhada de seu antídoto.
6 A ESSENCIALIDADE DOS PARADOXOS8
O Direito vive o problema de ser,
ao mesmo tempo, um campo propício
ao surgimento de paradoxos e um meio
no qual a ocorrência de paradoxos é
tida como especialmente angustiante, e
fortemente repelida. Essa repulsa faz-se
particularmente intensa quando o nó é
constatado na divisa conlituosa entre o
direito e a política9. Contudo, essa rejeição deve ser evitada. Os paradoxos não
são sinal de que nosso pensamento se
enveredou por caminho errado. Ao contrário, são eles um claro indicativo de que
chegamos a alguma coisa essencial. São
também vistosos trampolins que nos podem catapultar para províncias do pensamento que não imaginávamos conhecer
um dia10.
Porém, não há negar que se trata de
um salto que se dá no escuro. A impressão que o leitor pode ter ao chegar ao inal
deste escrito é de que o autor lhe tirou a
inquietante mas bela e clara imagem da
balança e o tabuleiro e, em troca, deu-lhe
uma bizarra e medonha igura de dois tabuleiros de xadrez distorcidos em Y. Entretanto, o autor lhe pede que tome em suas
mãos essa estranha igura com a generosidade que já mereceram outros monstros
ou prodígios no passado da civilização11.
Para tanto, ressalta ele que sua intenção
com essa imagem não é a de grafar um
ponto grave e circunspecto em qualquer
discussão, mas antes de sugerir, com ges-
tos largos e grosseiros, o que parece ser a
sombra de uma vírgula.
As boas ilustrações – e esta se pretende boa, embora canhestra – são um
tiro rumo ao desconhecido, o que pode
ser também ilustrado com uma outra
imagem, desta vez futebolística. O ideal
é que o jogador traga a bola sempre próxima dos pés, a ponto de parecer que a
tem colada ou atada a um deles. Porém,
por falta de habilidade ou por circunstâncias próprias da partida, como se vê, frequentemente, quando lhe é necessário
ganhar de um adversário na corrida, o
jogador tem, por vezes, de golpear a bola
com mais força e lançá-la com ímpeto no
vazio para bem longe de si, na esperança
de depois poder alcançá-la.
Da mesma forma, o autor lança no
espaço incerto esta bisonha igura de
dois tabuleiros distorcidos, coniando
menos em sua capacidade de alcançar
a bola do que na curiosidade e ousadia
do leitor atento, que saberá resgatá-la e
tirar-lhe proveito.
NOTAS
1 A importância da teoria dos jogos para a compreensão da zona de contato entre o direito
e a política tem sido bastante destacada. Ver,
por exemplo: Whittington; Kelemen; Caldeira
(2010, p. 7).
2 O sentido da palavra “ordem” neste texto é
amplo o suiciente para abarcar duas visões
diferentes da mesma. A primeira pode ser
exempliicada por uma passagem de A balança e o tabuleiro (op. cit.): A atuação do Judiciário deve ser avaliada mais por seu aspecto
geral, pois sua missão-mor transcende os casos. Sua tarefa é produzir uma ordem estável
e não pode se desculpar alegando a mutabilidade e precariedade das leis. Independente
da matéria-prima, o Judiciário deve produzir
uma ordem que permita à sociedade, com
suas diferenças, viver e se desenvolver de
modo seguro. Por este prisma, decisões obscuras se vistas isoladamente justiicam-se
sistemicamente, pois foram proferidas pela
importância que teriam na construção da
ordem. A segunda visão, um tanto diferente e
mais focada no papel do Judiciário perante os
demais poderes, diz o seguinte: Uma versão
mais soisticada dessa visão tradicional vê o
Judiciário como um dos principais órgãos de
uma sociedade democrática, sem o qual o
governo só poderia ser desempenhado com
grande diiculdade. A essência de sua função
é a manutenção da lei a da ordem e os juízes
são vistos como uma inluência mediadora.
A democracia requer que alguns grupos de
pessoas ajam como árbitros não só entre
indivíduos, mas também entre o poder governamental e o indivíduo. [...]. (GRIFFITH, 1997,
p. 291, tradução nossa). De todo modo, vale
destacar ainda que a palavra “ordem” não está
aqui empregada no sentido que lhe deu Kel-
3
4
5
6
7
8
sen no seu Reine Rechtslehre. (KELSEN, 2006,
p. 33).
Aqui, considera-se interesse do juiz tudo aquilo que o move para um im legítimo. Para um
exame panorâmico de outros fatores endógenos e exógenos que podem inluenciar no
julgamento (MOREIRA, 2005, p. 79-89).
A diiculdade de um ente político, como o
Judiciário, portar-se com verdadeira neutralidade no jogo político, e não apenas com tolerância, é sentida mesmo em textos que defendem ser possível essa neutralidade. Nesse
sentido: LUND, 1997, p. 449-478; MARNEFFE,
2206, p. 17-34.
Referência ao famoso conto homônimo de
João Guimarães Rosa.
A prudência no exercício do controle abstrato
de constitucionalidade das leis, aqui preconizada, tem diversos pontos de contato com o
minimalismo judicial preconizado por Cass. R.
Sunstein (2001).
É impressionante o quanto podemos tomar
contato com ideias que nos mudam a forma
de conceituar a realidade sem que isso acarrete um redimensionamento em nós da mesma
realidade. Uma pessoa que se torna ciente
de um conceito científico que influenciará
estruturalmente sua elaboração conceitual das
coisas pode não ser influenciada por tal conceito em seu cotidiano. Esse seccionamento
interessante entre a capacidade para conceitos
e a capacidade de concepções em uma das
dimensões cognitivas da mente é, até certo
ponto, decorrência das circunstâncias em que
estamos inseridos e que nos limitam (ainda
que só em alguns planos da percepção) sem
que nos apercebamos disso. Por outro lado,
parece haver algo de voluntário nesse seccionamento. De qualquer maneira, um exemplo
interessante dele na modalidade de decorrência das circunstâncias em que vivemos é
dado por Mário Novello (2010, p. 57-58): Para
entender a extensão da proposta de Gödel,
devemos começar por entender o alcance da
revolução provocada pela teoria da relatividade restrita, na qual se substituía o tempo
global único que permeava a física clássica
(newtoniana) por diferentes tempos, cada
qual dependente daquele que descreve um
dado fenômeno físico. Essa miríade de tempo, um para cada observador, foi construída
a partir da constatação de que existe na natureza uma velocidade máxima de propagação
de qualquer tipo de informação: a velocidade
da luz. Entendemos também de um só golpe
por que não vivenciamos em nosso cotidiano
esses diferentes tempos e usamos no dia a
dia um tempo só, comum a todos nós, como
se a verdade científica da diferenciação dos
tempos e sua dependência do estado de movimento de cada relógio não devesse ser aplicada a nossa realidade. [...]. Por que podemos
proceder assim? Por que podemos ignorar,
em nosso cotidiano, a dependência dos relógios em relação às diferentes velocidades
de observadores distintos? Pela razão que já
comentamos: as velocidades que experimentamos em nosso cotidiano são extremamente
pequenas comparadas à velocidade da luz.
Por conseguinte, é extremamente pequena a
diferença entre esse tempos medidos por observadores – nós – que se movimentam com
velocidades convencionais e possíveis sobre
nosso planeta.
Utilizo o termo “paradoxo” no sentido um tanto
aberto que lhe atribuiu W.V.Quine: Podemos
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dizer, então, que um paradoxo é simplesmente
qualquer conclusão que, a princípio, soa absurdo mas que possui um argumento que a
sustenta? No inal, acho que essa hipótese é
bem verdadeira. (QUINE APUD SMILANSKY,
2007, p. 3-4). (Tradução nossa).
9 Os conlitos nessa zona de fronteira podem
ganhar contornos interessantes. Por exemplo,
há juristas que não negam a existência ou
questionam a legitimidade da atuação política
do Judiciário, mas que, ao descreverem o que
creem ser um comportamento errôneo do Judiciário nessa seara, não são inteiramente claros se o que condenam é que o Judiciário aja
de maneira puramente política ou explicitamente política. Nesse sentido, o exemplo mais
interessante é o de Herbert Wechler (apud
WHITTINGTON, 2010, p. 283) que condenou
a atuação do Judiciário como “órgão político
explícito” (naked power organ).
10 Vêm a propósito as observações de Saul Smilansky a respeito da importância dos paradoxos morais; ponderações estas que se aplicam
aos paradoxos ocorrentes em qualquer campo do pensamento: Paradoxos morais são
divertidos, mas apesar da diversão que nos
podem proporcionar, são também ameaças
agressivas a intuições morais fundamentais,
a nossas teorias ética, e no geral à nossa paz
de espírito. Na vida cotidiana, quando vemos
um pequeno ferimento tentamos remediá-lo
de pronto, fazer-lhe curativo. A boa filosofia
faz o contrário. Ela busca encontrar e até gerar ferimentos onde tudo parece óbvio e bem,
e esfrega furiosamente um pequeno ferimento quando aparece. Dessa forma, como em
outras, os paradoxos são a epítome da filosofia. Eles aparecem na extrema fronteira da
compreensão, e permitem-nos ir fundo. São
os haikus da filosofia: desconcertantes e cômicos, curtos e infinitos, lógicos e existenciais.
(SMILANKSY, 2007, p. 3, tradução nossa).
11 Mas, de fato, o mundo cristão já havia realizado uma verdadeira ‘redenção’ do monstro.
Como já vimos a propósito da visão pancalística, Agostinho dizia que os monstros eram
belos enquanto criaturas de Deus. (ECO,
2007, p. 114) (Grifo no original).
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GRIFFITH, J. A. G. The politics of the judiciary. 5. ed.
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MARNEFFE, Peter de. The slipperiness of neutrality.
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WHITTINGTON, Keith E.; KELEMEN, Daniel R.; CALDEIRA, Gregory A. The study of law and politics.
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WHITTINGTON, Keith E.; KELEMEN, Daniel R.;
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Artigo recebido em 25/6/2011.
Artigo aprovado em 8/7/2011.
Hugo Tavares Vilela é juiz federal substituto da 1ª Região e membro da Turma
Recursal Suplementar dos Juizados Especiais Federais, em Goiânia-GO.
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