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Artigo - O jogo duplo.

2011, Revista CEJ - Conselho da Justiça Federal - Brasília - Brasil.

The author brings up the hypothesis that the Judiciary's political activity is performed on two fronts, which exert influence on each other, merging into a single reality. This idea is demonstrated by means of an image of two chess boards in which simultaneous games are played, both of them having the Judiciary as a player. RESUMO Apresenta a hipótese de que a atuação política do Judiciário se desenvolve em duas frentes, que se influenciam mutuamente e se fundem em uma só realidade. Assere que isso se dá por meio de uma ilustração baseada em dois tabuleiros de xadrez em que se desenvolvem partidas si-multâneas, sendo o Judiciário participante em ambas.

TE O RI A D O D I RE I TO Hélcio Corrêa 28 O JOGO DUPLO: o papel político do judiciário e suas dimensões DOUBLE GAME – the Judiciary’s political role and its dimensions Hugo Tavares Vilela RESUMO ABSTRACT Apresenta a hipótese de que a atuação política do Judiciário se desenvolve em duas frentes, que se influenciam mutuamente e se fundem em uma só realidade. Assere que isso se dá por meio de uma ilustração baseada em dois tabuleiros de xadrez em que se desenvolvem partidas simultâneas, sendo o Judiciário participante em ambas. The author brings up the hypothesis that the Judiciary’s political activity is performed on two fronts, which exert influence on each other, merging into a single reality. This idea is demonstrated by means of an image of two chess boards in which simultaneous games are played, both of them having the Judiciary as a player. PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS Teoria do Direito; política; teoria dos jogos; Judiciário; processo; xadrez. Law Theory; politics; games theory; Judiciary; procedure; chess. Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011 1 REFAZENDO UMA ILUSTRAÇÃO A balança é o símbolo mais conhecido da Justiça, servindo de efígie a muitos tribunais ao redor do mundo e sendo capaz de evocar, mesmo no mais distraído passante, a ideia de que ali, sob aquele símbolo, encontra-se um órgão jurisdicional. O poderio comunicativo da balança faz com que continuemos a usá-la para ilustrar nossas formulações teóricas sobre a atuação do Poder Judiciário. Este autor, em recente escrito (VILELA, 2011), ao abordar os dois papéis simultâneos desempenhados pelo Judiciário – um perante as partes no processo e outro perante os demais poderes estatais – valeuse da balança para compor uma imagem do que dizia, tendo airmado que o juiz divide seu olhar entre a balança (processo) que tem nas mãos e o tabuleiro de xadrez (jogo político com o Executivo e o Legislativo) que tem diante de si. Essa ilustração é de fácil visualização e transmite ideias essenciais à compreensão da atuação do Judiciário, principalmente a noção de que sua atividade se desenvolve numa dinâmica de jogo1, ou melhor, de dois jogos paralelos. Entretanto, a imagem da balança padece de limitações para expressar com maior precisão a atuação do magistrado no processo. Ela transmite a ideia de um juiz eminentemente contemplativo, cujo papel se restringe a aferir o mérito das partes e impedir que alguma delas se valha de expediente desonesto para vencer. Nessa visão um tanto estática, a principal atuação positiva do juiz ocorre somente no momento em que manifesta o veredicto, e naquele em que implementa sua decisão. Tal concepção é incompleta. No processo, o magistrado é um jogador, e não um expectador contemplativo. Ele tem seus próprios interesses, que só parcialmente coincidem com os das partes: presidir o processo de tal maneira que todas as normas procedimentais, principalmente as do contraditório e ampla defesa, sejam rigorosamente respeitadas; emitir pronunciamentos tecnicamente corretos e justos; otimizar os recursos materiais e humanos para obter o melhor resultado com o menor dispêndio; cumprimento de metas numéricas de processos julgados; produzir sentenças que cumpram seus objetivos dentro do processo e que, criando situações excepcionais ou endossando hipóteses gerais consagradas na lei, sejam ediicantes na construção da ordem2; produzir precedente que não lhe privem demasiadamente (política ou juridicamente) da liberdade para resolver casos futuros. drado. O problema é que, em torno de cada um deles, deverão tomar assento três jogadores. Assim, no tabuleiro do processo, por exemplo, teremos as duas partes e o juiz. Porém, a cada jogador deve corresponder um lado do tabuleiro, e não é possível que o terceiro jogador simplesmente se posicione em um dos dois lados do quadrado não ocupados pelos adversários porque, optando ele por qualquer dos dois lados livres, restará o problema de não haver como colo- [...] a imagem dos dois tabuleiros apresentará ao estudioso que deseje usá-la algumas dificuldades que já se manifestavam na ilustração da balança e do tabuleiro, mas que não comprometiam a finalidade a que ela se prestava. Os interesses3 que o magistrado tem em jogo fazem dele um jogador e não um mero expectador ou árbitro. Embora possa ser imparcial e neutro em relação a interesses das partes, sua eventual passividade quando de um conlito entre um interesse seu e o de uma ou de ambas as partes não deve ser entendida como neutralidade, mas sim como tolerância, uma atitude que só pode ser adotada por quem é efetivo participante do jogo4. Levando isso em conta, e sem desprezar os méritos ilustrativos da balança, a maior exatidão recomenda deixá-la de lado quando o intuito do estudioso for o de reproduzir com idelidade o quadro dúplice em que o juiz permanentemente se encontra. Para esse desiderato, o estudioso deverá se utilizar não da imagem de uma balança e um tabuleiro de xadrez, mas sim de dois tabuleiros. 2 DIFICULDADES DO NOVO CENÁRIO – O FORMATO DO TABULEIRO Entretanto, a imagem dos dois tabuleiros apresentará ao estudioso que deseje usá-la algumas diiculdades que já se manifestavam na ilustração da balança e do tabuleiro, mas que não comprometiam a inalidade a que ela se prestava. Essa diiculdade diz respeito ao formato do tabuleiro, que não poderá ser qua- car suas peças na posição inicial de jogo, tendo em vista que a maioria das casas diante de si já terá sido corretamente ocupada por peças dos adversários, colocadas justamente em posição de início. A questão é instigante e de solução aparentemente impossível, vez que nos é exigido posicionar um dos três jogadores no que, poeticamente, poderíamos denominar de “a terceira margem do rio”5. Por esse motivo, o melhor é permitir à intuição que resolva livremente o problema dimensional e geométrico que ora se apresenta. Uma das soluções que a intuição parece indicar para o caso é um estranho tabuleiro em forma de Y, em que cada jogador icaria posicionado em uma das três extremidades. Desse modo, teríamos no tabuleiro do processo o juiz e cada uma das partes postados respectivamente em cada uma das três pontas do Y. Por sua vez, teríamos no tabuleiro do jogo dos poderes o Legislativo, o Executivo e o Judiciário posicionados cada qual em uma extremidade do Y. Dessa forma, teremos dois tabuleiros estranhamente distorcidos e dispostos lado a lado, sendo o Judiciário o único jogador a tomar assento em ambos os jogos, dividindo sua atenção entre os dois. Feita essa ponderação sobre os palcos em que as disputas irão se desen- Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011 29 rolar, cabe agora tratar da dinâmica em si dos jogos, pois de nada adiantará ter compreendido o cenário sem que também se compreenda a maneira como se desenvolverá, ou seja, as regras que irão regê-lo. 3 PRIMEIRA REGRA EXTRAVAGANTE Ao tratar das regras extravagantes, é necessário estabelecer como pressuposto inicial que as distorções dimensionais e geométricas acima tratadas não impedirão a qualquer pessoa identiicar imediatamente o que se vê como jogos de xadrez. Mais além, é essencial frisar que as duas regras extravagantes a seguir devem ser vistas não como resultados da modiicação ou redimensionamento dos tabuleiros, como se viu na seção anterior, mas sim de uma mudança que poderia perfeitamente ser convencionada sem que aquelas alterações tivessem sido realizadas. Todas as regras correntemente válidas para o xadrez permanecem, portanto, válidas em nossa ilustração, acrescidas das duas que se seguem. Ao tratar das regras extravagantes, é necessário estabelecer como pressuposto inicial que as distorções dimensionais e geométricas acima tratadas não impedirão a qualquer pessoa identificar imediatamente o que se vê como jogos de xadrez. 30 Feita essa ressalva, cumpre expor a primeira regra extravagante: cada lance do Judiciário aplica-se aos dois tabuleiros. Trata-se de caracterização em forma de regra de uma constante muito familiar ao juiz, no sentido de que sua atuação política relevante só pode ocorrer de fato por meio dos processos que lhe cabe julgar. De certo modo, embora isso seja menos intuitivo, podemos airmar que a recíproca é verdadeira. Assim, o juiz não só deve estar atento aos dois jogos em que toma parte simultaneamente, mas também deve elaborar e fazer uma só jogada para os dois. Pode-se apresentar a objeção de que tal regra nem sempre retrata a atuação judicial, pois o controle abstrato de constitucionalidade realizado por boa parte das cortes constitucionais dos países de tradição romano-germânica não é abarcado. Essa ressalva é sem razão. O Judiciário de um país em que se realiza controle abstrato de constitucionalidade das leis, ainda que por órgãos distintos de sua corte constitucional, terá de julgar casos concretos envolvendo a mesma matéria tratada no controle abstrato depois de havê-lo realizado. Não raras vezes, o Poder Judiciário ica extremamente desconcertado, em sérios apuros para conciliar a forma como julgou no controle abstrato com as exigências de um caso concreto ulterior. Por essa razão, ao exercer o controle abstrato de constitucionalidade, o que faz no tabuleiro dos três poderes, o bom poder judicante não se esquece de que a solução dada no controle abstrato poderá voltar-se contra si num caso concreto vindouro, e de que essa situação desconcertante não deixará de ser percebida e aproveitada por seus adversários nos dois tabuleiros6. Um bom exemplo desta última hipótese ocorreu no Supremo Tribunal Federal, maior corte do Brasil, quando do exame Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011 da competência para conhecer de ações de improbidade administrativa que tenham no polo passivo pessoas com prerrogativa de foro para ações penais. Inicialmente, em controle abstrato de constitucionalidade (ADIs n. 2.797 e 2.860, julgadas a 15/9/05), a posição do STF foi no sentido de que a ação de improbidade, de cunho cível, deveria ser ajuizada perante o juízo de primeiro grau, mesmo que de seu polo passivo constasse pessoa com prerrogativa de foro para ações penais. Entretanto, posteriormente, o STF se deparou com um caso concreto no qual a pessoa que ocupava o polo passivo da ação de improbidade era um ministro do próprio STF. Neste caso (Questão de Ordem em Petição n. 3.211-0, julgada a 13/3/08), o tribunal acabou decidindo em sentido contrário ao que havia estabelecido em sede de controle abstrato. Isso deixou o Poder Judiciário como um todo, e não só o STF, numa situação delicadíssima, culminando em que a segunda corte do país – o Superior Tribunal de Justiça –, ao examinar ação de improbidade em face de um chefe de Executivo estadual, decidisse que a competência para dela conhecer seria determinada pela norma de prerrogativa de foro (Rcl. 2.790-SC, julgada a 2/12/2009), adotando assim a posição que o STF utilizara para julgar o caso concreto que envolvia um ministro seu e desprezando a posição que o STF estabelecera em controle abstrato. Inclusive, em suas razões, o STJ airmou não haver sentido em que agentes públicos (falava-se então de um Ministro do STF e um Governador de Estado) cuja fonte direta de poder é a mesma – a Constituição Federal – tivessem soluções diferentes para a atribuição de competência para ações de improbidade que se lhes fossem ajuizadas. 4 SEGUNDA REGRA EXTRAVAGANTE A segunda regra extravagante diz respeito à possibilidade que é dada ao Judiciário de trocar os tabuleiros. Em determinadas condições, a regra lhe permite simplesmente pegá-los, com as peças sobre eles nas exatas posições em que estavam, e trocá-los de mesa, de tal maneira que o Executivo e o Legislativo se verão repentinamente na circunstância de terem de continuar o jogo partindo da posição em que este se encontrava para as duas partes no processo, e vice-versa. Embora estranha à primeira vista, essa possibilidade é usualmente empregada pelo Judiciário. Frequentemente, a melhor ou única alternativa que resta ao juiz é defrontar os demais poderes com as circunstâncias do caso concreto e defrontar as partes no processo com as circunstâncias políticas do Judiciário em relação aos demais poderes. São discutíveis as exatas circunstâncias que autorizam a utilização dessa possibilidade. Entretanto, uma coisa é certa: a troca é, em si, um lance. Não pode o Judiciário fazer uma jogada e realizar a troca em seguida ou realizá-la e, em seguida, fazer uma jogada. A troca conta como lance. 5 UM SÓ JOGO DUPLO Como se pode inferir de algumas passagens acima, o fato de que os cinco jogadores estão cientes do paralelismo dos dois jogos, somado ao fato de que o lance feito pelo Judiciário vale para os dois tabuleiros, faz com que, de certa forma, trate-se de um só jogo. Todavia, ambos os “ramos” preservam certa autonomia um do outro. A constatação pelos participantes de que os dois jogos são um só não gera tanto efeito sobre eles, nem sobre os jogos em si, quanto se poderia imaginar. A constatação da unicidade do jogo vem acompanhada de uma sensação de que o todo composto pelos dois tabuleiros pode ser apenas um retalho arrancado arbitrariamente de uma trama muito maior e mais complexa, de um grande tecido de incontáveis estruturas fortemente entremeadas. Assim, o efeito da constatação acima referida sobre os jogadores é mitigado, por ela vir acompanhada de uma percepção da grande disparidade entre a grandeza do que se concebe e a pequenez do que efetivamente se vê. Essa percepção, embora fugidia, é a tal ponto contundente que os jogadores quase são capazes de voltar ao estado anterior à constatação da unicidade do jogo7. A constatação do todo vem acompanhada de seu antídoto. 6 A ESSENCIALIDADE DOS PARADOXOS8 O Direito vive o problema de ser, ao mesmo tempo, um campo propício ao surgimento de paradoxos e um meio no qual a ocorrência de paradoxos é tida como especialmente angustiante, e fortemente repelida. Essa repulsa faz-se particularmente intensa quando o nó é constatado na divisa conlituosa entre o direito e a política9. Contudo, essa rejeição deve ser evitada. Os paradoxos não são sinal de que nosso pensamento se enveredou por caminho errado. Ao contrário, são eles um claro indicativo de que chegamos a alguma coisa essencial. São também vistosos trampolins que nos podem catapultar para províncias do pensamento que não imaginávamos conhecer um dia10. Porém, não há negar que se trata de um salto que se dá no escuro. A impressão que o leitor pode ter ao chegar ao inal deste escrito é de que o autor lhe tirou a inquietante mas bela e clara imagem da balança e o tabuleiro e, em troca, deu-lhe uma bizarra e medonha igura de dois tabuleiros de xadrez distorcidos em Y. Entretanto, o autor lhe pede que tome em suas mãos essa estranha igura com a generosidade que já mereceram outros monstros ou prodígios no passado da civilização11. Para tanto, ressalta ele que sua intenção com essa imagem não é a de grafar um ponto grave e circunspecto em qualquer discussão, mas antes de sugerir, com ges- tos largos e grosseiros, o que parece ser a sombra de uma vírgula. As boas ilustrações – e esta se pretende boa, embora canhestra – são um tiro rumo ao desconhecido, o que pode ser também ilustrado com uma outra imagem, desta vez futebolística. O ideal é que o jogador traga a bola sempre próxima dos pés, a ponto de parecer que a tem colada ou atada a um deles. Porém, por falta de habilidade ou por circunstâncias próprias da partida, como se vê, frequentemente, quando lhe é necessário ganhar de um adversário na corrida, o jogador tem, por vezes, de golpear a bola com mais força e lançá-la com ímpeto no vazio para bem longe de si, na esperança de depois poder alcançá-la. Da mesma forma, o autor lança no espaço incerto esta bisonha igura de dois tabuleiros distorcidos, coniando menos em sua capacidade de alcançar a bola do que na curiosidade e ousadia do leitor atento, que saberá resgatá-la e tirar-lhe proveito. NOTAS 1 A importância da teoria dos jogos para a compreensão da zona de contato entre o direito e a política tem sido bastante destacada. Ver, por exemplo: Whittington; Kelemen; Caldeira (2010, p. 7). 2 O sentido da palavra “ordem” neste texto é amplo o suiciente para abarcar duas visões diferentes da mesma. A primeira pode ser exempliicada por uma passagem de A balança e o tabuleiro (op. cit.): A atuação do Judiciário deve ser avaliada mais por seu aspecto geral, pois sua missão-mor transcende os casos. Sua tarefa é produzir uma ordem estável e não pode se desculpar alegando a mutabilidade e precariedade das leis. Independente da matéria-prima, o Judiciário deve produzir uma ordem que permita à sociedade, com suas diferenças, viver e se desenvolver de modo seguro. Por este prisma, decisões obscuras se vistas isoladamente justiicam-se sistemicamente, pois foram proferidas pela importância que teriam na construção da ordem. A segunda visão, um tanto diferente e mais focada no papel do Judiciário perante os demais poderes, diz o seguinte: Uma versão mais soisticada dessa visão tradicional vê o Judiciário como um dos principais órgãos de uma sociedade democrática, sem o qual o governo só poderia ser desempenhado com grande diiculdade. A essência de sua função é a manutenção da lei a da ordem e os juízes são vistos como uma inluência mediadora. A democracia requer que alguns grupos de pessoas ajam como árbitros não só entre indivíduos, mas também entre o poder governamental e o indivíduo. [...]. (GRIFFITH, 1997, p. 291, tradução nossa). De todo modo, vale destacar ainda que a palavra “ordem” não está aqui empregada no sentido que lhe deu Kel- 3 4 5 6 7 8 sen no seu Reine Rechtslehre. (KELSEN, 2006, p. 33). Aqui, considera-se interesse do juiz tudo aquilo que o move para um im legítimo. Para um exame panorâmico de outros fatores endógenos e exógenos que podem inluenciar no julgamento (MOREIRA, 2005, p. 79-89). A diiculdade de um ente político, como o Judiciário, portar-se com verdadeira neutralidade no jogo político, e não apenas com tolerância, é sentida mesmo em textos que defendem ser possível essa neutralidade. Nesse sentido: LUND, 1997, p. 449-478; MARNEFFE, 2206, p. 17-34. Referência ao famoso conto homônimo de João Guimarães Rosa. A prudência no exercício do controle abstrato de constitucionalidade das leis, aqui preconizada, tem diversos pontos de contato com o minimalismo judicial preconizado por Cass. R. Sunstein (2001). É impressionante o quanto podemos tomar contato com ideias que nos mudam a forma de conceituar a realidade sem que isso acarrete um redimensionamento em nós da mesma realidade. Uma pessoa que se torna ciente de um conceito científico que influenciará estruturalmente sua elaboração conceitual das coisas pode não ser influenciada por tal conceito em seu cotidiano. Esse seccionamento interessante entre a capacidade para conceitos e a capacidade de concepções em uma das dimensões cognitivas da mente é, até certo ponto, decorrência das circunstâncias em que estamos inseridos e que nos limitam (ainda que só em alguns planos da percepção) sem que nos apercebamos disso. Por outro lado, parece haver algo de voluntário nesse seccionamento. De qualquer maneira, um exemplo interessante dele na modalidade de decorrência das circunstâncias em que vivemos é dado por Mário Novello (2010, p. 57-58): Para entender a extensão da proposta de Gödel, devemos começar por entender o alcance da revolução provocada pela teoria da relatividade restrita, na qual se substituía o tempo global único que permeava a física clássica (newtoniana) por diferentes tempos, cada qual dependente daquele que descreve um dado fenômeno físico. Essa miríade de tempo, um para cada observador, foi construída a partir da constatação de que existe na natureza uma velocidade máxima de propagação de qualquer tipo de informação: a velocidade da luz. Entendemos também de um só golpe por que não vivenciamos em nosso cotidiano esses diferentes tempos e usamos no dia a dia um tempo só, comum a todos nós, como se a verdade científica da diferenciação dos tempos e sua dependência do estado de movimento de cada relógio não devesse ser aplicada a nossa realidade. [...]. Por que podemos proceder assim? Por que podemos ignorar, em nosso cotidiano, a dependência dos relógios em relação às diferentes velocidades de observadores distintos? Pela razão que já comentamos: as velocidades que experimentamos em nosso cotidiano são extremamente pequenas comparadas à velocidade da luz. Por conseguinte, é extremamente pequena a diferença entre esse tempos medidos por observadores – nós – que se movimentam com velocidades convencionais e possíveis sobre nosso planeta. Utilizo o termo “paradoxo” no sentido um tanto aberto que lhe atribuiu W.V.Quine: Podemos Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011 31 32 dizer, então, que um paradoxo é simplesmente qualquer conclusão que, a princípio, soa absurdo mas que possui um argumento que a sustenta? No inal, acho que essa hipótese é bem verdadeira. (QUINE APUD SMILANSKY, 2007, p. 3-4). (Tradução nossa). 9 Os conlitos nessa zona de fronteira podem ganhar contornos interessantes. Por exemplo, há juristas que não negam a existência ou questionam a legitimidade da atuação política do Judiciário, mas que, ao descreverem o que creem ser um comportamento errôneo do Judiciário nessa seara, não são inteiramente claros se o que condenam é que o Judiciário aja de maneira puramente política ou explicitamente política. Nesse sentido, o exemplo mais interessante é o de Herbert Wechler (apud WHITTINGTON, 2010, p. 283) que condenou a atuação do Judiciário como “órgão político explícito” (naked power organ). 10 Vêm a propósito as observações de Saul Smilansky a respeito da importância dos paradoxos morais; ponderações estas que se aplicam aos paradoxos ocorrentes em qualquer campo do pensamento: Paradoxos morais são divertidos, mas apesar da diversão que nos podem proporcionar, são também ameaças agressivas a intuições morais fundamentais, a nossas teorias ética, e no geral à nossa paz de espírito. Na vida cotidiana, quando vemos um pequeno ferimento tentamos remediá-lo de pronto, fazer-lhe curativo. A boa filosofia faz o contrário. Ela busca encontrar e até gerar ferimentos onde tudo parece óbvio e bem, e esfrega furiosamente um pequeno ferimento quando aparece. Dessa forma, como em outras, os paradoxos são a epítome da filosofia. Eles aparecem na extrema fronteira da compreensão, e permitem-nos ir fundo. São os haikus da filosofia: desconcertantes e cômicos, curtos e infinitos, lógicos e existenciais. (SMILANKSY, 2007, p. 3, tradução nossa). 11 Mas, de fato, o mundo cristão já havia realizado uma verdadeira ‘redenção’ do monstro. Como já vimos a propósito da visão pancalística, Agostinho dizia que os monstros eram belos enquanto criaturas de Deus. (ECO, 2007, p. 114) (Grifo no original). REFERÊNCIAS ECO, Umberto (Org.). História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. GRIFFITH, J. A. G. The politics of the judiciary. 5. ed. London: Fontana Press, 1997. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LUND, Willian R. Egalitarian liberalism and social pathology: a defense of public neutrality. Social Theory and Practice, Florida State University, v. 23, n. 3, 1997. MARNEFFE, Peter de. The slipperiness of neutrality. Social Theory and Practice, Florida State University, v. 32, n. 1, 2006. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado. Caderno de doutrina e jurisprudência da EMATRA XV, v.1, n. 3, p. 79-89, maio/jun. 2005. NOVELLO, Mário. Do big bang ao universo eterno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. SUSTEIN, Cass R. One case at a time. Cambridge: Harvard University Press, 2001. SMILANSKY, Saul. 10 moral paradoxes. Malden: Blackwell, 2007. VILELA, Hugo Otávio. A balança e o tabuleiro. Publicado no site do Instituto de Direito Administrativo de Goiás em 28/05/2011. Disponível em: <http:// www.idag.com.br/idag/artigos.php?catId=&id=99>. Acesso em : maio 2011. WHITTINGTON, Keith E.; KELEMEN, Daniel R.; CALDEIRA, Gregory A. The study of law and politics. In: WHITTINGTON, Keith E.; KELEMEN, Daniel R.; CALDEIRA, Gregory A. The Oxford handbook of law and politics. New York: Oxford University Press, 2010. WHITTINGTON, Keith E. Constitutionalism. In: WHITTINGTON, Keith E.; KELEMEN, Daniel R.; CALDEIRA, Gregory A. The Oxford handbook of law and politics. New York: Oxford University Press, 2010. Artigo recebido em 25/6/2011. Artigo aprovado em 8/7/2011. Hugo Tavares Vilela é juiz federal substituto da 1ª Região e membro da Turma Recursal Suplementar dos Juizados Especiais Federais, em Goiânia-GO. Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 54, p. 28-32, jul./set. 2011