Academia.eduAcademia.edu

TESE DOUTORAMENTO PLATÃO MYTHOS, IMAGEM E ANALOGIA

2018

This work aims to consider the logos of Plato in the dialogues of the Politeia, 506d6-VII 515d7, in comparison to the prelude of Timaeus, among the passages 27d5-29d6, as well as in other passages, with the purpose of developing the concepts of myth, κῦζνο, image, εἰθώλ, and analogy, ἀλαινγία, in the thought and in the language of the author in the selected corpora. The works will be treated, first, taking into consideration the sense and the uses that the philosopher does of those resources in search of the understanding of what are the mythos, the images and the analogical structures. Afterwards, aims to verify the existence of the relation between the analogy of the Sun with the Good, the Image of the Line Segmented and the Cave with the speech of Timaeus, exploring in the both the semantical similitude and approach of the subjects related. The aim of this study is to deepen the perception of the vocabulary of the corpora observing the main passages in which occurs the usage of mythos, eikones and analogiai that in turn are signs of the speech of Plato, with the purpose of extracting from them a better understanding of the sense of the terms that Plato applies to call your philosophical concepts, e. g., the lexicons εἶδνο, ἰδέα, νὐζία, ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, λνῦο, ἀξρή, δόμα, among others.

1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS EMMANUELA NOGUEIRA DINIZ Mythos, Eikones e Analogiai: um estudo comparativo do logos de Platão nos diálogos Politeia (entre o final do Livro VI e início do Livro VII) e no prelúdio do Timeu JOÃO PESSOA, PB 2018 2 EMMANUELA NOGUEIRA DINIZ Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do título de Doutora em Letras Clássicas. Área de concentração: Literatura, Teoria e Crítica Linha de Pesquisa: Estudos Clássicos Orientador: Prof. Dr. Milton Marques Junior Coorientador: Dr. Delfim Ferreira Leão João Pessoa, PB Setembro de 2018 3 4 DEDICATÓRIA Ao mestre, Henrique Graciano Murachco, pela excelência, estima e apreço com que me conduziu ao ―ver‖ de Platão, e a quem lhe devo muito. 5 AGRADECIMENTOS Aos Mestres: Henrique Graciano Murachco, Milton Marques Júnior e Juvino Alves Maia Júnior. Ao Conselho Nacional de Pesquisa, CNPq, pelo aparato financeiro. À Capes pela concessão de bolsa de Doutoramento Sanduíche no Exterior (PDSE). À Universidade de Coimbra, por meio de Dr. Delfim Leão e da Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva pelo apoio científico e tecnológico e pela contribuição no aprofundamento da pesquisa. Ao grupo de pesquisa Sacratum, por intermédio da Dra. Suelma Moraes e das caras colegas, pelos estudos e pelas obras. Aos familiares, colegas e amigos. 6 RESUMO O presente estudo pretende analisar o logos de Platão nos diálogos de Politeia, VI 506d6 – VII 515d7, em comparação com o proêmio do Timeu, entre os passos 27d5-29d6, assim como em outros trechos, com o fim de aprofundar as noções de κῦζνο, mythos, εἰθώλ, imagem, e ἀλαινγία, analogia, no pensamento e na linguagem do autor, nos corpora selecionados. As obras serão tratadas, primeiro, tendo em vista o sentido e os usos que o filósofo faz desses recursos em busca do entendimento do que sejam mythos, imagens e estruturas analógicas. A seguir, verifica-se a existência de uma relação entre a analogia do Sol com o Bem, a imagem da Linha Seccionada e a Caverna com o discurso do personagem Timeu, percebendo, num e noutro, a similitude e aproximação semântica dos temas relacionados. O que se pretende realizar é o aprofundamento do vocabulário dos corpora, observando as principais passagens nas quais ocorre o emprego de mythos, eikones e analogiai que, por sua vez, são indícios do discurso platônico, a fim de extrair deles um melhor entendimento do sentido dos termos que Platão aplica para designar seus conceitos filosóficos, a saber, os léxicos εἶδνο, ἰδέα, νὐζία, ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, λνῦο, ἀξρή, δόμα, dentre outros. Palavras-chaves: mythos, eikones, analogiai, Politeia, Timeu, Platão. 7 ABSTRACT This work aims to consider the logos of Plato in the dialogues of the Politeia, 506d6 – VII 515d7, in comparison to the prelude of Timaeus, among the passages 27d5-29d6, as well as in other passages, with the purpose of developing the concepts of myth, κῦζνο, image, εἰθώλ, and analogy, ἀλαινγία, in the thought and in the language of the author in the selected corpora. The works will be treated, first, taking into consideration the sense and the uses that the philosopher does of those resources in search of the understanding of what are the mythos, the images and the analogical structures. Afterwards, aims to verify the existence of the relation between the analogy of the Sun with the Good, the Image of the Line Segmented and the Cave with the speech of Timaeus, exploring in the both the semantical similitude and approach of the subjects related. The aim of this study is to deepen the perception of the vocabulary of the corpora observing the main passages in which occurs the usage of mythos, eikones and analogiai that in turn are signs of the speech of Plato, with the purpose of extracting from them a better understanding of the sense of the terms that Plato applies to call your philosophical concepts, e. g., the lexicons εἶδνο, ἰδέα, νὐζία, ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, λνῦο, ἀξρή, δόμα, among others. Keywords: mythos, image, analogy, Republic, Timaeus, Plato. 8 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................... 10 Divisão dos corpora selecionados para estudo e análise ........................................................ 19 I. Contextualização da Politeia e do Timeu: temas, objetivos e estruturas dos diálogos......... 21 1. O plano temático da Politeia e do Timeu ............................................................................ 22 2. Os objetivos da Politeia e do Timeu ................................................................................... 31 3. Estrutura geral dos diálogos Politeia e Timeu .................................................................... 36 II. Μῦζνο, Δἰθόλεο e Ἀλαινγίαη na Politeia e no Timeu de Platão ......................................... 51 1. Μῦζνο e o seu significado para a cultura helênica clássica: desde Homero a Platão ........ 52 1.1 Μῦζνο em Platão: paideia, mimesis e instrumentos do logos ........................................... 82 2. O significado dos εἰθόλεο nos corpora da Politeia e do Timeu .......................................... 93 3. Os conceitos de ἀλαινγία na antiguidade clássica ............................................................ 102 3.1. O contexto da ἀλαινγία nos corpora da Politeia e do Timeu ........................................ 112 3.1.1. O contexto das ἀλαινγίαη na Politeia: VI 506d6 – VII 515d7 ................................... 113 3.1.2. O contexto das ἀλαινγίαη no Timeu ............................................................................ 119 III. Vocabulário platônico dos corpora da Politeia e do Timeu ........................................... 125 1. O vocabulário do corpus da Politeia ................................................................................. 126 2. O vocabulário do corpus do Timeu ................................................................................... 141 Conclusão .............................................................................................................................. 157 Referências ............................................................................................................................ 163 Apêndice ............................................................................................................................... 170 Índice remissivo .................................................................................................................... 191 9 Catalogação na publicação Seção de Catalogação e Classificação D585m Diniz, Emmanuela Nogueira. Mythos, Eikones e Analogiai: um estudo comparativo do logos de Platão nos diálogos Politeia (entre o final do Livro VI e início do Livro VII) e no prelúdio do Timeu / Emmanuela Nogueira Diniz. - João Pessoa, 2018. 192 f. Orientação: Milton Marques Júnior. Coorientação: Delfim Ferreira Leão. Tese (Doutorado) - UFPB/CCHLA. 1. mythos,eikones,analogiai, Politeia, Timeu, Platão. I. Júnior, Milton Marques. II. Leão, Delfim Ferreira. III. Título. UFPB/ 10 INTRODUÇÃO Tendo percebido, por meio das diversas leituras e estudos nos textos originais da Politeia e do Timeu de Platão, uma relação existente entre a exposição da Linha Seccionada, no final do Livro VI, desde 509d a 511e4, e os princípios ontológicos e epistemológicos que se encontram no prelúdio do Timeu, 27d6-28b2, surgiu a ideia e a possibilidade de realizar um estudo comparativo do pensamento e do lógos platônico a fim de aprofundar as noções de mythos, κῦζνο, imagem, εἰθών, e analogia, ἀλαινγία, nos corpora selecionados. Contudo, os corpora para o estudo compreendem a Politeia, VI 506d6 – VII 515d7, e o proêmio do Timeu entre os passos 27d5-29d6. O estudo das obras de Platão põe-se inteiramente a serviço da investigação do sentido e dos usos que o filósofo faz desses recursos linguísticos, propondo o entendimento do que sejam mythos, imagens e analogias, que, por sua vez, constituem os axiomas ontológicos e epistemológicos traçados ao longo dos corpora que foram delimitados no parágrafo anterior. À medida que o estudo se desenvolve, haverá, por necessidade, o mapeamento das passagens em que ocorram esses recursos que são elementos estruturantes do texto. A evolução de conceitos, inerentes aos temas tratados, por exemplo, εἶδνο, ἰδέα, νὐζία, ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, λνῦο, incide precisamente nas estruturas lexicais e semânticas, isto é, naquilo que ele denomina como visível, ὁξαηὸλ, opinião, δόμα, pensável, λνεηὸλ, no caso da Linha Seccionada da Politeia e as características de ηὸ ὄλ ἀεί, o que sempre é, e de ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί, o que sempre se torna, no que concerne ao Timeu. É imprescindível ao estudo, desse modo, que se faça perceber nele e por meio dele a construção racional e evolutiva pertinente aos temas dialogados tanto quanto revelar a concepção de Platão acerca dessas coisas e de algumas ideias à construção racional. A partir disso, foi possível criar e reunir fundamentos para aprofundar uma análise de mythos, imagens e analogias, tomando-os como os principais recursos e instrumentos de linguagem, e a posteriori filosóficos, visto que os termos comportam conceitos, que marcam a estrutura sintática e semântica dos textos e revelam a visão platônica acerca desses temas. A estrutura de seus diálogos, por essa razão, está permeada de mythoi, eikones e analogiai. O que cabe a este estudo, portanto, é refletir e examinar a estrutura de cada corpus a partir do grego clássico, com a finalidade de, primeiro, procurar nos diálogos Politeia e Timeu 11 as principais passagens em que ocorrem mythos, imagens e analogias. Estabelecer, a partir dessas amostras, o modo pelo qual Platão elabora, ao mesmo tempo em que reinterpreta e critica, os mythoi e as imagens, muito frequentes na Politeia, assim como de que tipos de analogias, mais recorrentes no Timeu que na Politeia, ele se serve para elucidar os temas dos quais cada diálogo cuida separadamente. A seguir, é preciso contextualizar e/ou intercontextualizar, por meio de um estudo comparativo, os recortes entre as passagens selecionadas com o intuito de verificar, quando houver, as semelhanças intrínsecas aos diálogos, embora eles possuam temas distintos entre si, de modo a perceber em quais pontos da Politeia e do Timeu é possível estabelecer uma ligação que demonstre como eles iluminam o raciocínio de Platão bem como a função que cada uma exerce no logos platônico. A próxima etapa da análise consiste no aprofundamento e na explicação etimológica do vocabulário dos corpora da pesquisa, observando as principais passagens nas quais ocorre o uso das imagens, dos mythoi e das analogias, extraindo deles a essência do vocabulário tendo em vista um melhor entendimento do sentido das palavras a que Platão recorre para designar seus conceitos filosóficos, como, por exemplo, os léxicos νὐζία, ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, ἀλαιόγνλ, ἀλαινγία, γέλεζηο, εἰθώο, πεξίνδνο, dentre outros. Tendo feito isso, deve-se estabelecer o que esses termos implicam no contexto de cada diálogo, realizando a tarefa que mais exige de um pesquisador ou estudioso do pensamento e dos diálogos platônicos: desvelar o sentido daquelas construções analógicas ou que se deram por meio de imagens sem transgredir o que está em grego clássico, ou seja, respeitando a autenticidade da expressão do autor das obras. Dito de outra forma: explicar o sentido que está no texto e o vocabulário, quando muitas vezes se torna obscurecido pela dificuldade que há em perceber a visão de Platão. O caminho a ser trilhado neste estudo, no entanto, envolve a busca por um trabalho que se debruce diretamente sobre o texto original, permitindo-lhe uma manifestação própria e evitando que as traduções modernas1, em suas interpretações literárias, venham a se sobressair ao original, visto que é fundamental desvelar o sentido das construções analógicas, por 1 Considero por traduções modernas aquelas que seguiram o padrão latino, visando não uma crítica ao valor que elas possuem, mas, por meio deste estudo, refletir que a influência das traduções latinas nas traduções modernas, por vezes, torna o texto sem coerência com o original em grego. 12 exemplo, levando-se em consideração essencialmente aquilo que o texto diz. Para a análise da Politeia, conta-se com a contribuição do artigo do Prof. Henrique Murachco na revista Letras Clássicas editada pela Universidade de São Paulo, em 1998, apresentando para este estudo propostas de traduções que se mantenham lineares e que sirvam de guia para futuras pesquisas, uma vez que são ou foram fruto da experiência em sala de aula. Pode-se, contudo, somar a todas essas fontes e experiências tanto a minha contribuição na tradução do corpus da Politeia e do Timeu, como um resultado das muitas leituras e reflexões concernentes aos textos, quanto em outras partes dos diálogos em que haja a necessidade de demonstração etimológica ou conceitual dos termos. Leva-se em consideração que há uma dificuldade em fornecer o sentido da visão platônica sobre a origem e formação do cosmo, θόζκνο, ou do todo, πᾶλ, do mesmo modo que há em elucidar a estrutura racional e matemática da Linha Seccionada, dentre outros. Para estudo e tradução do Timeu, faz-se uso do trabalho de dissertação de France Yvone Murachco, intitulado Cícero e o Timeu, que aborda o vocabulário de Platão e a interpretação de Cícero sobre o diálogo com clareza e domínio. Além disso, os cursos a respeito do Timeu e da versão latina de Cícero Timaeus na pós-graduação com o Dr. Juvino Alves Maia Junior em que foram incessantes as reflexões, leituras e discussões acerca da tradução e do entendimento daquilo que está escrito no original contando com a visão de comentadores e tradutores especializados nesse diálogo. No que concerne, contudo, às traduções dos textos em grego, todas elas serão de minha própria autoria, à exceção daquelas que serão devidamente referenciadas ao longo desta tese. O texto grego estabelecido para tradução e análise do vocabulário foi retirado do Tomo IV de Platonis Opera de John Burnet (1903), mas este estudo também conta com o texto bilíngue de Giovanni Reale (2013), Timeo, além de outras obras mais recentes que constam nas referências deste estudo. Para isso, requer-se da pesquisa o conhecimento de como se comporta a estrutura do texto, o vocabulário empregado pelo autor na língua original e as relações criadas entre os diálogos como elementos que sirvam para ajustar o raciocínio de Platão à nossa compreensão. É importante perceber que a língua portuguesa, oriunda do latim e, da mesma forma que ela, não abarca, em alguns casos, a dimensão e riqueza das construções sintáticas e semânticas 13 contidas nos mythoi, nas imagens e nas analogias encontrados nesses diálogos. As razões que levam a concretização desse estudo proposto são as de que elas permitem, em primeira ordem, analisar de forma clara qual a função e o uso tanto do mythos quanto das imagens e analogias no logos de Platão, apreendendo o modo como ele idealizou essas linhas de raciocínio, umas sobre as outras, e como o vocabulário que representa esses raciocínios é construído ao longo dos corpora. Além de que, é possível reconhecer no autor dos diálogos um escultor (poietes) que por meio do raciocínio, linguagem e discurso, foi capaz de exprimir o conceito daquilo de que tratara, tornando a ideia, que não é visível, em algo concreto, ou seja, em forma de conceito, axioma ou fórmula. Platão, no passo 29b3-5 do Timeu, exige do logos a condição de que ele seja congênere com a coisa da qual interpreta: κέγηζηνλ δὴ παληὸο ἄξμαζζαη θαηὰ θύζηλ ἀξρήλ. ὧδε νὖλ πεξί ηε εἰθόλνο θαὶ πεξὶ ηνῦ παξαδείγκαηνο αὐη῅ο δηνξηζηένλ, ὡο ἄξα ηνὺο ιόγνπο, ὧλπέξ εἰζηλ ἐμεγεηαί, ηνύησλ αὐη῵λ θαὶ ζπγγελεῖο ὄληαο· O mais importante de tudo é o princípio ser iniciado segundo a natureza. Afinal, assim, deve-se delimitar acerca da imagem e do modelo dela, de modo que, então, quanto aos discursos, que são condutoras das mesmas coisas das quais são congêneres: A seguir, ele aponta, em 29b6-29c2, que convém aos discursos, ιόγνο, que eles sejam tanto irrefutáveis, ἀλειέγθηνο, quanto invencíveis, ἀληθήηνο, o quanto for possível, pois, esses mesmos discursos congêneres que foram feitos imagens, sendo imagem ou cópia, devem criar uma verossimilhança, εἰθόηαο, em relação ao modelo, παξάδεηγκα. Os ιόγνη, por sua vez, sendo discursos que geram imagens verossímeis, são análogos, isto é, estão em conformidade com uma razão, ἀλὰ ιόγνλ, tornando-se imagens daquelas de que está obscurecida, confundida pelo movimento do que é e do que se torna, deixando de ser. Logo, eles deverão, por necessidade, conduzir àquilo que Platão chama de paradigma, o bem e o belo, e não conduziria à opinião que não é capaz de fazer entender, visto que, opera pelos sentidos. Tendo em vista essas premissas, aplica-se-lhes a necessidade de apontar que as traduções, em especial as modernas, são o principal ponto de referência para efetuar o restabelecimento do ―ver‖ de Platão. Se, todavia, o logos é congênere àquilo que interpreta então não se faz necessária a essa análise aprofundada dos diálogos platônicos terem por base 14 uma tradução, sobretudo, quando ela não revela o que subjaz no pensamento e nos textos dele. A tradução, por sua vez, tornou-se problemática por não ser capaz, em alguns momentos, de fazer com que o leitor ou o estudioso tanto perceba com clareza a importância dos instrumentos – mythos, eikones e analogiai – utilizados por Platão em seus textos, quanto se dê conta do obstáculo que ela se torna quando se pretende desvelar o verdadeiro sentido do logos platônico. A tradução, com efeito, não é o principal objetivo e razão desta tese, mas, na verdade, o de provar precisamente o fato de que ela, em múltiplos casos, é um dos principais impedimentos para alcançar a compreensão das ideias em Platão como um todo. Com base nessa hipótese e através da contribuição de professores e especialistas renomados nos estudos platônicos, percebe-se que há três diferentes pontos de vista para abordar o problema da tradução: a visão de Henrique Murachco que está voltada para a questão da língua grega; a do matemático Robert Baccou que reflete a insuficiência do método na história das ciências; e, por fim, a de Luc Brisson, filósofo canadense e especialista em Platão, que aponta para o fato de que uma tradução sempre envelhece e poderá, às vezes, fazer parecer mal seu autor quando o vocabulário não for renovado. É preferível, segundo Murachco, após comparar muitas traduções entre si e as produzidas em sala de aula, escolher aquelas que são consideradas lineares, operacionais, isto é, coladas ao texto original. Elas, por sua vez, revelam a sutileza, a inteligência e a arte de Platão, do mesmo modo que permitem um verdadeiro diálogo com o autor. Ademais, não se deve trazer nada de fora para dentro do texto; não se deve abordar o texto a partir de interpretações desse ou daquele tradutor, dessa ou daquela época, procurando ―deixar o texto falar‖ sem intermediários e sem pré-conceitos2. No que concerne à pesquisa do vocabulário, ao consultar o dicionário, deve-se privilegiar sempre o significado primeiro, etimológico, denotativo, concreto das palavras; fazendo a primeira tradução linear, severa, colada ao texto original. O que se percebe nas traduções ditas ―consagradas‖, como observa Murachco (1998), é que elas não passaram pelo processo de uma tradução linear, mas, em oposição a isso, o efeito que elas causam é a de uma tradução livre, literária e muitas vezes interpretativa, procurando atrair o leitor moderno facilitando-lhe a leitura, tornando-a amena. 2 MURACHCO, 1998, p. 171-72. 15 De acordo com a opinião de Robert Baccou, na introdução a sua obra Histoire de la Science Grècque – de Thalès a Socrate – (1966), o método histórico e científico, ou seja, a história da ciência justifica que o ponto de vista da linguagem pareça duvidoso e sempre contestará as fontes mais antigas. Mas, então, é preciso interpretar, tanto quanto possível, a fim de colocar-se no lugar do autor, para obter um melhor entendimento. Será necessária, momentaneamente a abstração dos nossos hábitos intelectuais, isto é, esquecer o nosso conhecimento atual, e até mesmo o nosso vocabulário científico que atende muitas vezes a noções desconhecidas pelos antigos. Devemos, portanto, encontrar no que está escrito não apenas a aparência, mas também a mentalidade de seu autor. E é nesse ponto que as dificuldades do método se tornam aparentes, se não forem absolutamente intransponíveis. Isto ocorre precisamente nessa delicada tarefa de interpretar: surgem traduções inadequadas, que não devem, em nenhuma circunstância, ser consideradas como equivalente aos textos, mas transposições simples e que, por vezes, parafraseiam o original (interpretação livre). Em outras palavras, o historiador não deve se contentar em interpretar o que já foi uma vez interpretado. Levando-se em conta o trabalho daqueles que o precederam nesta difícil tarefa, ele deve se colocar sem preconceitos de qualquer espécie, na presença do original. Agora, é verdade, os historiadores do pensamento científico esqueceram-se desta precaução elementar. Pois, a história das ciências não deve, conforme Baccou3, visar estabelecer um simples balanço do espírito humano, mas explicá-lo, restituindo-lhe uma razão, ou seja, dando-lhe uma ordem e um método, não apenas uma compilação de fatos. A história das ciências se fundará, portanto, sobre o estudo dos textos, e, por conseguinte, ela recorrerá cada vez que se fizer necessário, a seu objeto, à filologia. Mas dizemos desde já que essa última deve guiar-se pela regra mais prudente e se abster de justificar o que, do ponto de vista da língua, lhe parece duvidoso; à história das ciências não é rigorosamente tênue à mesma ressalva. Entenda-se bem que, para a época que se ocupa, os textos devem ser autenticados e datados se possível, e que eles precisarão permanentemente buscar remontar aos princípios mais antigos4. Por fim, a opinião de um dentre muitos respeitáveis comentadores de Platão na 3 PLATON, 1996, p. 9-10. BACCOU, 1951, p.9. 4 16 atualidade, Luc Brisson, filósofo canadense especializado em filosofia antiga, particularmente em Platão, nos indica o fato de que os diálogos platônicos são e serão lidos novamente, com base principalmente na tradução. Se o grego antigo deixou de ser voga nas universidades, então a nossa leitura sempre será guiada por uma tradução. Uma tradução, desse modo, sempre envelhece e, por vezes, poderá diferenciar seu autor quando o vocabulário não for renovado e já não corresponderá mais ao texto original além de obscurecê-lo, ou até mesmo, distorcer uma ideia. Na filosofia em geral, na filosofia antiga em especial, de acordo com Brisson, é importante examinar periodicamente as traduções, a lista de novos itens, a fim de fornecer obras completas que estimulem a pesquisa e também para atrair novas gerações de pesquisadores. Para o primeiro capítulo, no entanto, pretende-se trabalhar a contextualização da Politeia e do Timeu, analisando os temas, objetivos e a estrutura de cada uma das obras: o que se propõe, na verdade, para esse capítulo é apresentar um panorama dos diálogos e quais suas principais intenções, segundo Platão, enquanto escritor e filósofo. Sabe-se que, na Politeia, ele nos ensinou a observar a realidade a partir de um novo paradigma e por um novo método, a dialética, a qual, através do diálogo, é o meio de conhecer ―o que é‖ cada coisa. Enquanto conhecimento verdadeiro, que se distingue da ignorância, ἄγλνηα, e também da opinião, δόμα, ela é sinônima de filosofia: o filósofo é um dialético. A dialética pode ser considerada a única ciência verdadeira: ela é o conhecimento da realidade, ou melhor, ―daquilo que é‖. O diálogo Timeu, por sua vez, tendo sido ao que parece escrito depois da Politeia, possui um vocabulário e estilo de escrita em Platão puramente lógico e de uma rara perfeição racional, permitindo afirmar que, a partir dele, é possível demonstrar alguns axiomas ou, ainda, conceitos ontológicos e epistemológicos. Além de estar em sua melhor forma, essa base metafísica do pensamento racional de Platão, encontrada no Timeu5, estende-se na proporção de todas as outras obras qualquer que seja o tema do diálogo. Contudo, em ambos os diálogos se encontra o uso de analogias, mas no caso desses há um esforço em demonstrar por meio delas uma relação matemática – um raciocínio que exprime amarrações que ora PLATO, 1903, 28a1-4: ηὸ κὲλ δὴ λνήζεη κεηὰ ιόγνπ πεξηιεπηόλ, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, ηὸ δ᾽ αὖ δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ δνμαζηόλ, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, ὄλησο δὲ νὐδέπνηε ὄλ. ―Um, é apreensível pela inteligência com razão, sendo sempre conforme um só e o mesmo; o outro, por sua vez, (é) opinável pela opinião com a sensação irracional, tornando-se e perecendo, na verdade, nunca sendo‖. 5 17 envolvem três elementos, ora quatro – que o demiurgo estabelece para constituição do corpo e da alma do cosmo. O estudo acerca das analogias no discurso do personagem Timeu e no de Sócrates no corpus da Politeia, entretanto, deverá ser abordado no segundo capítulo. No que concerne ao primeiro capítulo, além da questão do plano temático, da estrutura e objetivo de cada diálogo, torna-se interessante a esta tese um exame sobre a evolução intrínseca a esses três pontos de modo a identificar as conexões que ligam o próprio dialogar, e também o discurso, com o pensamento do autor. É um dos modos de ver e analisar o que sejam a Politeia e o Timeu, ainda que, contudo, não se estabeleça nenhuma relação entre linguagem e instrumentos do raciocínio encontrados nos corpora. O segundo capítulo, por sua vez, trará à reflexão o exame dos instrumentos que Platão emprega para construir seus diálogos, pensamento e discurso, a fim de observar se o encadeamento dos enunciados nos argumentos é redutível a um sentido de imagem ou todo lógos é imagem de algo. Por conseguinte, demonstrar a estrutura própria de seu raciocínio em seus instrumentos linguísticos: κῦζνο, εἰθώλ e ἀλαινγία, elementos do logos. Pretende-se, a partir dessa análise, propor um estudo comparativo dos trechos em que Platão faz uso de mythos, imagem e analogia dentro dos corpora selecionados, com a intenção de explanar a estrutura desses instrumentos, assim como desvelar qual a função deles nos diálogos propostos, delimitando-os e fornecendo as passagens em que eles ocorrem. A princípio o capítulo trabalhará com a questão do mythos, ou seja, trará a luz o que ele significou para a Grécia, cultura e pensamento, mostrando a importância dos poetas e da poesia para aquela sociedade, além de examinar que contribuições Homero e Hesíodo, em especial, exerceram por meio de suas obras na mentalidade grega. A tarefa seguinte será a de analisar a posição de Platão em relação à poesia, à figura do poeta e de seu discurso mítico. Isto implicará em mostrar não somente suas objeções ao aspecto mimético que esse discurso porta, aos padrões que se estabeleceu para a paideia, no conteúdo Politeia; mas, também, a aceitação do mythos sob dois gêneros, a saber, verossímil, εἰθώο, ou seja, aquele que é símile, mas não idêntico a ‗o que é‘; e inverossímil, κὴ εἰθώο, que se assemelham às fábulas que se contam as crianças6. 6 Soph., 242c8-9: ―... κῦζόλ ηηλα ἕθαζηνο θαίλεηαί κνη δηεγεῖζζαη παηζὶλ ὡο νὖζηλ ἡκῖλ...‖. ―Parece que cada um deles nos narrou um mito, como se fôssemos crianças‖. PLATÃO, Sofista. Trad. Henrique Murachco, Juvino 18 O logos platônico nesses mesmos argumentos recorre, muitas vezes, ao uso de imagens, especialmente na Politeia, que serão aqui tomadas como o conjunto de imagens, mythos e analogias. O Timeu, a seu turno, se concentra somente nas analogias e no mito verossímil, εἰθώο κῦζνο. A busca pelo significado do mythos, analogia e imagens na literatura de Platão permitirá elucidar que eles são usados para suprir o problema da incomensurabilidade ao discurso de algumas ideias tratadas nesses diálogos, a exemplo da ideia do Bem em analogia com o Sol, no final do Livro VI da Politeia. A principal proposta desse capítulo e de suas partes é a verificação da existência de uma relação entre os dizeres do personagem Sócrates, na Politeia, e o discurso de Timeu, percebendo, num e noutro, a similitude e aproximação semântica, por exemplo, dos temas da Linha Segmentada, ὁξαηὸλ e λνεηὸλ, visível e inteligível, com a terminologia usada por Platão no Timeu para qualificar os princípios ηὸ ὄv e ηὸ γηγλόκελνλ, o que é e o que se torna, temas centrais do diálogo os quais são caracterizados pelos adjetivos verbais ηὸ πεξηιεπηὸλ e ηὸ δνμαζηὸλ (λνήζεη), o apreensível (pela inteligência) e o opinável. Por fim, o terceiro capítulo realizará um estudo do vocabulário platônico dos principais termos referentes aos corpora da Politeia e do Timeu. Busca-se trabalhar neles o sentido primeiro, explicando-os etimologicamente para, em seguida, demonstrar aquilo que a palavra ou a expressão inseridas no contexto de cada obra significam para Platão. Encontrar uma explicação para os conceitos platônicos evocados pelas palavras estudadas pressupõe uma tarefa que se esforça em definir o significado que cada uma delas encerra. Portanto, dentre os aspectos da pesquisa, é valoroso perceber na linguagem dos diálogos platônicos uma mudança estrutural causada pela influência da matemática, µαζεµαηηθή, em sua vida e em seu pensamento, assim como o reflexo dessa influência em seu logos. A imagem, εἰθὼλ, e o mythos, µῦζνο, como um todo formam um conjunto por meio do qual a matemática fará parte posteriormente, à medida que o autor assimila a seu raciocínio a analogia, ἀλαινγία, assim como, amadurece. Maia Jr. E José Trindade Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 211. 19 Divisão dos corpora selecionados para análise 1º) Politeia: final do Livro VI, 506d6-511e [506d6-507b4] Os ―juros‖ da dívida de Sócrates: a narração do Filho do Bem. [507b5-8] A função do logos: colocar todas as coisas múltiplas segundo uma só ideia de cada. [507b9-507c] As coisas que são vistas, ὁξᾶζζαί, e as ideias, ηὰο ἰδέαο, que são pensadas, λνεῖζζαη. [507c1-10] A visão, a audição e os outros sentidos. [507d-508a6] O terceiro gênero: a luz. [508a7-b11] O Sol, causador da visão. [508b12-508d10] O Filho do Bem, gerado por analogia com o próprio Bem. [508e-509a11] A ideia do Bem: causa da ciência e da verdade. [509d1-5] As visões, εἴδε, sensível e inteligível: ὁξαηόλ e λνεηόλ. [590d6-510b4] Ilustração da Linha Segmentada. O corte do gênero que é visto: ηό ηνῦ ὁξσκέλνπ γέλνπο ηκ῅κα. [510b5-511e] O segmento do inteligível: ηὸ ηνῦ λννπκέλνπ (γέλνπο ηκ῅κα). Início do Livro VII: 514a-515d9 [514a1-2] Tema da Caverna: a natureza humana (ηὴλ ἡκεηέξαλ θύζηλ) do ponto de vista da educação ou da falta de educação. [514a2-515c2] Descrição da habitação em forma de caverna (ἐλ θαηαγείῳ νἰθήζεη ζπειαηώδεη) e de seus habitantes (ἀλζξώπνπο). [515c3-515d9] Libertação e cura dos prisioneiros das amarras e ignorância. 2º) Timeu: prelúdio, 27d5-29d6. [27d5-28a2] Princípios ontológicos e epistemológicos: ηὸ ὂλ ἀεί e ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί. [28a5-6] A causa do todo ou cosmo. [28a6-b2] Causa da origem do todo: o Bem e a bondade do demiurgo. 20 [28b2-29a2] Cosmo corpóreo gerado pelo demiurgo como imagem sensível de um modelo inteligível. [29a2-29e3] Considerações gnosiológicas sobre o discurso da origem do cosmo. [29e4-29d3] Mito verossímil acerca dos deuses e da gênese do todo. [29d4-6] Encerramento do prelúdio com a fala de Sócrates. 21 I. Contextualização da Politeia e do Timeu: temas, objetivos e estrutura dos diálogos Este capítulo intenta realizar uma introdução à Politeia e ao Timeu que se iniciará por uma contextualização desses diálogos levando em consideração a essência daquilo que cada um deles carrega em si, isto quer dizer, trazer à tona seus principais temas, objetivos e estruturas. Ainda que haja uma distinção entre os temas dos diálogos, é importante para o estudo que eles sejam demonstrados como uma forma de propedêutica a Platão e de como se comporta, quanto ao que o lógos estabelece, em cada discurso separadamente. Torna-se primordial para o esclarecimento do contexto temático dos diálogos evidenciar que não há por parte do autor uma separação entre o que seja mythos, imagem e analogia, ao contrário, o que ocorre nos textos platônicos é um discurso dialógico, que envolve todos esses três elementos, cabendo à pesquisa a função de apontar suas ocorrências e realizar as devidas exposições retiradas de ambos os diálogos e de seus respectivos trechos. Cada diálogo, com efeito, possui um objetivo. Na Politeia, busca-se a definição de justiça, δίθε, e do cidadão justo, δίθαηνο, que conduz a um longo discurso sobre os governantes filósofos, em especial nos Livros VI e VII, cuja finalidade para Sócrates é a de procurar saber como pode a cidade justa vir a ser. O problema mais importante para uma vida ordenada da cidade é certamente o da justiça e, por conseguinte, o problema político torna-se um dos mais relevantes; pois, com efeito, a justiça é o que regula as relações dos homens no interior de uma comunidade. O outro problema e tema de grande relevância para a Politeia é o da paideia, da educação do corpo e da alma do cidadão. Portanto, chegar a uma definição de justiça e de como aplicá-la na cidade e na vida do cidadão é um dos principais escopos propostos nesse diálogo. No Timeu, por sua vez, Platão aponta, conforme Reale7, para o seguinte indício: iniciarse a partir da origem do cosmo para alcançar a descrição da gênese e da natureza humana, ao mesmo tempo em que trata da gênese dos animais e plantas. Mas, o panorama geral em que é colocada a temática é ainda mais amplo, ou seja, desde o nascimento do cosmo e do homem se deveria passar ao nascimento da comunidade política até a estrutura ideal que essa deveria ter, assim como a reflexão acerca dela na dimensão histórica. Em outros termos, se deveria atingir a descrição da cidade ideal efetivamente em ação (ou em pensamento). 7 PLATONE, 2013, p.7. 22 O diálogo Timeu parace ser o escrito mais sistemático de Platão e as suas linhas fundamentais são traçadas de maneira quase perfeita. Com efeito, pode-se observar que ele não se apresenta exatamente como os outros: a forma de diálogo é exibida especialmente na introdução. O longo discurso do personagem Timeu que constitui a pars potior, é um verdadeiro e próprio tratado metafísico, cosmológico, matemático, científico natural, medicinal e anatômico, e se impõe como uma das obras-primas literárias e filosóficas de todos os tempos. Contudo, dada a complexidade e densidade do conteúdo, a leitura dele requer muito empenho. A respeito da estrutura geral da Politeia e do Timeu para este estudo, dá-se por uma razão puramente didática do recorte em relação ao todo dos diálogos que leva em consideração as dimensões de ambos os diálogos. Por conseguinte, considera-se que o esquema dos temas desenvolvidos neles está encadeado por um elo de ideias que se estendem por cada obra e que devem ser ilustrados, uma vez que é extremamente importante acompanhar a ordem em que os temas e as ideias estão dispostos a fim de apreender o que cada uma trata. A proposta, portanto, evoca uma divisão em cada diálogo trabalhado de modo a demonstrar, primeiro, que temas e problemas cada um dos dez livros da Politeia trata, assim como, distribuir em três grandes partes, servindo-se do esquema desenvolvido por Reale (2013), os assuntos dialogados no discurso de Timeu com a intenção de obter uma visualização geral e completa do conteúdo temático que cada um deles comporta. 1. O plano temático da Politeia e do Timeu A complexidade dos temas tratados na Politeia, os nexos que os vinculam, mas também as diferenças que os afastam e que resultam de uma mesma estrutura orgânica da obra, torna legítimo o questionamento sobre o que a obra seja de fato, qual o seu sentido e intenção dominante. A Politeia, como observa Vegetti8, é essencialmente um texto político, no qual Platão expõe sua concepção da comunidade ideal e eticamente justa. Trata-se de um projeto político destinado a estar mais ou menos realizado, talvez, até mesmo, colocá-lo em relação à 8 PLATONE, 2006, p. 18. 23 atividade política direta pelo próprio Platão e pelos outros acadêmicos. De acordo com uma linha que remonta, todavia, ao comentário neoplatônico de Proclo, defendido no século XX, o aspecto político do diálogo é considerado prescindível e irrelevante, visto que em seu cerne permanece, ao contrário, o problema da ética individual, da virtude e da felicidade, junto à teoria da alma e da educação. Sem dúvida o Livro I é ―político‖, no sentido de que o desafio de Trasímaco depende principalmente de sua visão de como os governantes são formados e de como os estados são governados, parecendo ignorar o caráter educacional e ético. A partir de um estudo do alcance temático da Politeia pode-se atestar que, com efeito, ao denominá-la tão somente como um projeto político isto implicaria em encerrá-la num único aspecto que, necessariamente, não é preponderante, tendo em vista que o tema basilar do diálogo é a definição de justiça. Afinal, o próprio Platão especificou que tema ou temas a Politeia, por meio de seus personagens, se propusera tratar. Para clarificar esse questionamento, Taylor9 considera que na introdução do Timeu a mais notável característica de recapitulação da República é que abarca apenas os livros I-V. Nada é dito a respeito do filósofo-governante e sua educação com base na matemática e na dialética, da ideia do Bem, ou dos conteúdos dos livros VI-X. Essa cidade ideal, que Platão descreve na República, ele tentará fundamentá-la na natureza, no Timeu e no Crítias. Nesses dois diálogos, ele começa por indicar que a cidade descrita por Sócrates na República correspondeu, historicamente, a uma cidade real, a Atenas antiga, que se opôs às astúcias imperialistas da Atlântida. Depois ele se empenha em descrever a origem do mundo sensível: do homem e o da cidade, o sensível não sendo mais do que a cópia do inteligível. De fato, o demiurgo fabrica um mundo onde o conhecimento e a prática da virtude serão possíveis10. O ponto de partida do tema, também exordial do diálogo, contudo, é o problema da justiça e do cidadão justo, ademais são abordados muitos outros temas importantes para a proposta de constituição da polis justa, a saber: virtude, ἀξεηή; problema da imitação, κίκεζηο, no discurso poético; teoria da tripartição da alma, ςπρή; a natureza humana com relação à educação ou à falta de educação, παηδείαο ηε πέξη θαὶ ἀπαηδεπζίαο; a ciência 9 TAYLOR, 1960, p. 438. BRISSON, 2003, p. 10 24 dialética, δηαιεθηηθή ou δηαιέγεζζαη ἐπηζζήκε; as quatro formas de governo, isto é, oligarquia, ὀιηγαξρία, monarquia, κνλαξρία, democracia, δεκνθξαηία, e tirania, ηπξαλλία; assim como, uma exposição cosmológica da visão de Er que evoca, por meio do myhtos, a consciência e responsabilidade ética e civil que cada cidadão deveria demonstrar em suas ações. Por outro lado, a respeito da data de composição da Politeia, Aristófanes de Bizâncio a classifica justamente com o Timeu e o Crítias, na primeira trilogia platônica; Trasilo, com Clítofon, Timeu e Crítias na oitava tetralogia11. Essas classificações, segundo Baccou12, inspiradas em evidente preocupação de proporção, são bastante arbitrárias e nada informam sobre a verdadeira cronologia das obras de Platão. É muito custoso fixar, à falta de qualquer dado histórico preciso, mesmo aproximadamente, a data de composição dos diálogos. Apenas é possível recorrer, na verdade, a dois tipos de indicações: aquelas que o próprio texto oferece por alusão mais ou menos direta aos acontecimentos da época, e as que se deduzem a partir de um estudo comparativo dos diálogos platônicos. A segunda fonte de informação, como observa Baccou (1965, 1973), é mais fecunda, ainda que as conclusões delas inferidas careçam, em certa medida, de firmeza e precisão. As primeiras são bastante escassas e pouco ensinam, pois podem versar tanto sobre fatos antigos quanto recentes. Basta simplesmente assinalar os resultados que o processo utilizado no método comparativo dos diálogos, ou seja, quer o estudo do estilo do autor – termos raros, neologismos, frequência do uso de certas partículas, etc.–, quer ao estudo do desenvolvimento das grandes teses platônicas, permitiu alcançar. Os resultados apontam as duas vertentes: para uns, a Politeia tal como se apresenta, é apenas uma composição muito pouco coerente de diversos fragmentos, compostos antes de todos os grandes diálogos13; para outros, forma um conjunto ordenado, e seria obra da maturidade de Platão. A primeira tese, que se apoia em argumentos mais perspicazes do que firmes, é na verdade um puro paradoxo há muito refutado14. A segunda concorda bem mais 11 Cf. Diógenes Laércio, III, 58. PLATÃO, 1965 e 1973, volume I, p. 5. 13 A. Krohn: Der platonische Staat, Halle, 1876. Esta tese foi retomada por E. Pfleiderer, Socrates und Plato, Tübingen, 1896. 14 As principais interpretações são as de K. F. Hermann (Geschichte und System der platonischen Philosophie, 12 25 com as raras informações que a tradição provém, mas ela se presta a interpretações diversas. O grande diálogo Político de Platão, por sua vez, intercalar-se-ia entre os grupos Górgias-Crátilo-Banquete-Fédon, de um lado, e Teeteto-Filebo-Parmênides-Timeu-Crítias, de outro. Com efeito, as teses dos diálogos do primeiro grupo parecem convergir para a Politeia e as dos diálogos do segundo grupo, dela derivar. A conclusão a que chega Baccou é que o campo das hipóteses permanece, portanto, aberto, cabendo pensar que um estudo mais aprofundado do estilo dos diálogos permitirá, um dia, fixar-lhe a cronologia com maior precisão. Os críticos, em suma, admitem a unidade do diálogo formado com continuidade por Platão, entre 40 ou 50 anos de idade, aproximadamente. Quando muito, divergem no que diz respeito aos limites exatos em que se deve circunscrever o período de composição. De acordo com Baccou (1965/1973), Zeller, na História da Filosofia Grega, fixa a data 374-73 como termo final; Taylor15 propõe a data, muito menos provável, de 388-89; conforme P. Shorey16, Platão teria escrito a Politeia entre 380 e 370; Wilamowitz17 que adotou a hipótese de Zeller. A. Diès18, no entanto, afasta-se um pouco dela, propondo a data 375, mas a conjuntura melhor alicerçada é a de W. Lutoslawsky19, segundo a qual a Politeia teria sido redigida nos anos subseqüentes à fundação da Academia, entre 384 e 377. Por outro lado, buscando uma resposta plausível ao que é possível sustentar acerca da data de composição da Politeia, Vegetti20 explica que, devido à amplitude e complexidade de seu conteúdo, tornou-se extremamente difícil determinar a data, ou melhor, o período, tendo em vista que há muito tempo pensou-se que a data de publicação desse diálogo pudesse ser fixada em torno de 375. Trata-se, não obstante, de uma hipótese insustentável porque nenhuma obra antiga é dada como publicada em um determinado ano, como se tratasse de um livro impresso, e Heidelberg, 1839); F. Dümmler (Zur Komposition des plat. Staates, Basileia, 1895), M. Pohlenz (Aus Platos Werdezeit, Berlim, 1913) e Post que retomou os argumentos de Pohlenz num artigo substancial do Classical Weekly (XXI, 6, 1927). 15 TAYLOR, 1960. 16 P. Shorey: Plato’s Republic I, 1930 (Loeb Classical Library). 17 V. Von Wilamowitz: Platon, 2 vols., Berlim, 1919 e segs. 18 A. Diès: Introduction a La République, Paris, Les Belles-Lettres, ed. Chambry, 1932, p. CXXIV a CXXXVIII. 19 W. Lutoslawsky: The Origin and Growth of Plato’s Logic, with an Account of Plato’s Style and the Chronology of his Writtings, Londres, 1897 (reimp. 1905). 20 Platone, 2006, p. 7-9. 26 porque um texto muito amplo como a Politeia é certamente composto, e talvez continuadamente em partes, durante um longo período de tempo. É, pois, verossímil que na época da primeira viagem de Platão a Sicília, em 388-7, já esteja presente ao menos a ideia central da filosofia política abordada na Politeia, e que sua elaboração tenha sido iniciada em 390 ou mais provavelmente depois do retorno à Sicília. Ainda em relação à data da fundação da Academia, em torno de 385, de cuja obra constitui de certo modo um manifesto programático. Em certo sentido, contudo, o problema é mal colocado, visto que, sabe-se através de Diógenes Laércio, como foi supramencionado por Baccou, que Platão não iria trabalhar no início do diálogo no último dia de sua vida. Mas, a Politeia poderia ter sido conhecida ainda mais cedo que o Timeu, se isso, como parece provável, fosse relatado pela expressão ―mitificar em torno da justiça‖ que aparece no Fedro. A respeito da cronologia dos diálogos, em sua generalidade, para Schleiermacher21, continua sendo um tema controverso e sobre o qual não é possível exprimir certezas absolutas, mas tão somente para dar uma ideia aproximada da ordem cronológica mais aceita para o leitor: entre 399 e 390 a. C., Platão teria redigido o Hípias Menor, Íon, o Laques,o Cârmides, o Protágoras e o Eutífron; de 390 a 385, o Górgias, o Ménon, a Apologia de Sócrates, o Críton, o Eutidemo, o Lísias, o Menéxeno e o Crátilo; entre os anos de 385 a 370, o Fédon, o Banquete a República e o Fedro; de 370 a 347/346, o Teeteto, o Parmênides, o Sofista, o Político, o Timeu, o Crítias e o Filebo, e por fim, nos anos 347/346, as Leis. Além de perceber uma inexatidão nas cronologias dos diálogos platônicos, ele os dividiu em três grupos: aos primeiros diálogos, Schleiermacher chamava de elementares, pois ensinariam princípios de dialética e nos introduziriam nas Ideias, isto é, tratariam da possibilidade e das condições necessárias para se obter o saber (verdadeiro de algo); o segundo grupo, na opinião dele, trataria da aplicação do saber no campo da ética e da física, sendo denominados de indiretos devido a seu modo próprio de exposição; em último lugar, os diálogos finais, que, conforme Schleiermacher, seriam os diálogos construtivos e diretos, em que Platão enfim unificaria as concepções presentes nas etapas anteriores, reunindo assim o teórico e o prático de modo singular. 21 SCHLEIERMACHER, 2002, p. 23. 27 Taylor22, a seu turno, acerca dos escritos platônicos, sustenta que ainda não devemos criar um começo para o estudo de Platão até termos encontrado algo confiável que indique a ordem em que suas obras, pelo menos as mais significativas delas, foram escritas. Para ele, até mesmo quando estabelecermos uma ordem, se puder ser estabelecida, precisaremos, para obter um entendimento integral, ser também capazes de dizer em que exato período de vida os mais importantes diálogos foram escritos, por exemplo, se no início da maturidade, no meio da vida, na velhice e, mais uma vez, se eles são uma série ininterrupta de composições ou se há evidências de lacuna ou lacunas na atividade literária de Platão. O cotejamento de alguns diálogos platônicos entre si rende um ou dois outros resultados. Desse modo, a República deve ser anterior ao Timeu, na qual se refere e recapitula brevemente os argumentos dos cinco primeiros livros. O Político não deve ser anterior ao Sofista, visto que a sequência está declarada nele; e o Sofista, pela mesma razão, depois do Teeteto. Tudo isso, como observa Taylor (1960, p. 17), são algumas indicações fornecidas pelo conteúdo dos próprios diálogos. Pode haver no Fedro uma alusão a uma questão explicada mais plenamente no Mênon, e a República foi conjecturada para explicar a ambos. Ambos os diálogos Teeteto e Sofista aludem ao encontro de Sócrates, então extremamente jovem, com o grande Parmênides. Deve haver, no entanto, alguma ligação entre essas alusões e o fato de que o Parmênides declara ostensivamente a descrição desse encontro. Mas, não podemos afirmar que as alusões nos permitem determinar com alguma certeza se Parmênides é anterior a ambos os diálogos, posterior a eles, ou intermediário entre os dois. Retomando a questão dos temas abordados na Politeia, o estudo de Baccou (1965, 1973), seguiu um esquema diferente dos críticos antigos, medievais e moderno, ou seja, ele agrupou os dez livros em cinco partes distribuindo-os, assim, de acordo com os temas discutidos ao longo da obra. Na primeira, tem-se o livro I como uma espécie de prólogo em cujo percurso o problema da justiça é colocado em seus termos mais simples, assim como aparece nos negócios da vida corrente. A este problema, diversas soluções são propostas, a saber, a de gente de bem, a dos sofistas, etc.; mas é fácil demonstrar suas insuficiências. Convém, 22 TAYLOR, 1960, p. 16. 28 portanto, examinar por um método mais preciso. Os livros II, III e IV, compondo a segunda parte, têm por objeto definir a justiça, estudando-a na cidade justa e na alma do cidadão. Mas, como não se encontra semelhante cidade nem na história, nem na realidade presente, cumpre fundá-la completamente na imaginação. Depois disso, entre os livros V, VI e VII, hão de se analisar a particularidade de sua organização, de seu governo, as qualidades requeridas a seus magistrados, e estabelecer-se-á, para formação desses últimos, um plano de educação. Na quarta parte, livros VIII e IX, observa-se que, ao contrário, as vantagens da justiça não assumirão todo o valor se não forem opostas aos malefícios provenientes da injustiça. Após a descrição da cidade justa, é preciso, pois, examinar acerca das cidades injustas, a fim de perceber quais males, por meio de uma série de quedas, as conduzem à ruína. Na alma humana, esses males têm as mesmas causas e provocam as mesmas degradações. Na parte final, que se encerra com o livro X, a justiça sendo inseparável da ciência, convém condenar nas cidades a poesia e as artes que mostram, das coisas, apenas uma imagem vã e enganam os cidadãos acerca do verdadeiro ser destas coisas. Após desfrutar da felicidade que essa posse da sabedoria proporciona neste mundo, a alma justa receberá, nos campos Elísios, recompensas dignas de sua natureza, e prosseguirá na via ascendente o seu imortal destino. O Timeu, por vários séculos, é o diálogo mais lido e estudado e em muitos aspectos o mais influente na história do pensamento filosófico e teológico do ocidente. Já na escola platônica, a Academia, a obra tinha se tornado uma fonte de discussão e alvo de reinterpretação teorética por causa das críticas de Aristóteles que, em geral, cita os diálogos de seu mestre com frequência. Os médio-platônicos, por sua vez, extraíram dele as estruturas fundamentais para poderem sintetizar o pensamento de Platão; e também os neoplatônicos lhe deram grande evidência, tanto que Proclo o considerava o texto basilar do pensamento grego, junto aos Oráculos Caldaicos, Fílon de Alexandria já o utilizava para uma releitura filosófica do Gênesis e, depois dele, com os padres da igreja, o diálogo se tornou um ponto de referência basilar. Por fim, destacam-se os medievais que colheram justamente do Timeu - por muitos 29 séculos o único texto conhecido da filosofia clássica23 - a sua imagem do pensamento platônico e alguns eixos teoréticos basilares pelo menos até o século XII, época em que foram traduzidos e recebidos os textos de Aristóteles; a época do Renascimento em que Rafael exprimiu por meio de sua arte, Escola de Atenas, o comportamento dos filósofos e de seus contemporâneos, pintando Platão justamente com o Timeu sob o braço; e, finalmente a era moderna que produziu notáveis traduções e comentários, mais do que para os outros diálogos platônicos, e foram publicados também numerosos estudos críticos específicos. No prólogo que introduz o Timeu, Sócrates, imaginando ser esse diálogo a sucessão da Politeia, recorda-se do que eles conversaram no dia anterior precisamente acerca da cidade justa, e resume, em particular, a base da tese política que havia demonstrado24. Para discorrer sobre a cidade justa, o personagem Sócrates indica Crítias, um dos Trinta Tiranos, e Hermócrates, famoso general de Siracusa, como os convivas mais apropriados a expô-la de modo adequado. A preferência, todavia, é dada justamente ao pitagórico Timeu, que, por sua competência em ciência cosmológica, deverá, em primeiro lugar, explanar a origem do cosmo, e, por conseguinte, a natureza humana25. Desse modo, ele é projetado, segundo Reale (2007), como o primeiro diálogo de uma trilogia que deveria ser seguido por Crítias e Hermócrates. Ao invés disso, mais propriamente, se poderia falar de uma tetralogia incluindo ainda a Politeia sendo o primeiro dentre os quatro diálogos, visto que Sócrates retoma o assunto da conversa que incide no encontro que gerou a Politeia. Na realidade, Platão compôs, depois do Timeu, unicamente um fragmentado Crítias, e não escreveu um diálogo Hermócrates. O Timeu, por seu conteúdo temático, discorre acerca da natureza, πεξὶ θύζεσο, isto é, de tudo que tem um começo, de tudo que não é eterno. A intenção implícita ou explícita da obra deveria ser a de identificar o princípio, ἀξρή, ou o conjunto de princípios da natureza e daquilo que existe na totalidade do cosmo: como ele se formou gradualmente a partir de sua gênese até sua condição atual. A seguinte afirmação, entretanto, induz, consoante Fronterotta26, a examinar com prudência a elevação de semelhante conjetura. Em primeiro lugar, com efeito, é necessário 23 REALE, 2004, p. 437-8. PLATO, 1903, 19b3-c8. 25 Idem, 27a2-6. 26 PLATONE, 2003, p. 9. 24 30 esclarecer que o termo grego θύζηο aparenta, em geral, ser caracterizado por uma ampla escala de sentidos; disso, resulta, pois, em segundo lugar, que a aplicação de θύζηο ao diálogo gera um rótulo ‗naturalista‘ que requer ser ilustrado e bem justificado. O discurso do personagem Timeu argumentará sobre a natureza do homem, e se abrirá com uma clara distinção entre ‗o que sempre é‘, ηὸ ὄλ ἀεὶ, e ‗o que sempre se torna‘, ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ. Essa é a base ontológica - e, sucessivamente epistemológica - que Platão estabelece para realizar e explicar racionalmente a construção do cosmo27. O estatuto do discurso, por sua vez, depende de uma precisa distinção epistemológica entre as diversas formas de conhecimento possível e entre seus objetivos, aprofundando seus fundamentos sob uma perspectiva ontológica, característica do modo de refletir platônico. Platão, no prelúdio, anuncia com bastante clareza e rigor algumas proposições axiomáticas que constituem as premissas sobre as quais se funda por inteiro o discurso a ser desenvolvido. Esses axiomas vêm apresentar com perfeita racionalidade e precisão no lógos – não no plano da racionalidade, mas no do verossímil -, os discursos cosmológicos e físicos que são próprios da verdade indubitável dessas proposições. Os axiomas metafísicos, cujo objeto será desdobrado no próximo ponto, formulados no prelúdio são quatro e compendiam as doutrinas espalhadas nos diálogos anteriores: os dois primeiros, ditos antes, ηὸ ὄλ ἀεὶ e ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ, referem-se à causa, αἰηία, a qual todas as coisas se tornam por necessidade28, e ao paradigma ou modelo, παξάδεηγκα, com o qual o demiurgo, pai e criador do cosmo, constituiu o todo, πᾶλ. Quando, então, o demiurgo, olhando em direção ao que sempre se mantém um só e o mesmo, θαηὰ ηαὐηὰ, servindo-se de algo dessa qualidade como paradigma, o todo foi gerado por necessidade belo, θαιὸλ. Mas, por outro lado, quando ele olha para o que está gerado, servindo-se como modelo algo gerável, o resultado é a realização de algo não belo29. Desde que este mundo é belo, a bondade do demiurgo o construiu sob o efeito de um 27 Essa base ontológica e epistemológica exposta por Timeu encontra-se entre os passos 27d6-28a4. Uma vez que, para o todo é impossível ter origem afastado de uma causa. 29 PLATO, 1903, 28a6-b2: ―ὅηνπ κὲλ νὖλ ἂλ ὁ δεκηνπξγὸο πξὸο ηὸ θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνλ βιέπσλ ἀεί, ηνηνύηῳ ηηλὶ πξνζρξώκελνο παξαδείγκαηη, ηὴλ ἰδέαλ θαὶ δύλακηλ αὐηνῦ ἀπεξγάδεηαη, θαιὸλ ἐμ ἀλάγθεο νὕησο ἀπνηειεῖζζαη πᾶλ: νὗ δ᾽ ἂλ εἰο γεγνλόο, γελλεηῶ παξαδείγκαηη πξνζρξώκελνο, νὐ θαιόλ‖. ―Quando daquele primeiro, então, o demiurgo realiza pela ideia e pela capacidade dele, olhando em direção ao que se mantém sempre um só e o mesmo, servindo-se de algo dessa qualidade como paradigma, assim o todo se realiza(r), por necessidade, belo. Mas, quando do outro, por sua vez, olhando para o que está gerado, servindo-se como modelo algo gerável, o todo se realiza não belo‖. 28 31 modelo eterno. Desta forma, precisa Platão, em 29a2-6, a partir do momento em que o cosmo é a mais bela das coisas geradas, o demiurgo é a melhor das causas: εἰ κὲλ δὴ θαιόο ἐζηηλ ὅδε ὁ θόζκνο ὅ ηε δεκηνπξγὸο ἀγαζόο, δ῅ινλ ὡο πξὸο ηὸ ἀίδηνλ ἔβιεπελ: εἰ δὲ ὃ κεδ᾽ εἰπεῖλ ηηλη ζέκηο, πξὸο γεγνλόο. παληὶ δὴ ζαθὲο ὅηη πξὸο ηὸ ἀίδηνλ: ὁ κὲλ γὰξ θάιιηζηνο η῵λ γεγνλόησλ, ὁ δ᾽ ἄξηζηνο η῵λ αἰηίσλ. Se, de um lado, este mundo é belo e o demiurgo bom, é evidente que ele olhava em direção ao eterno. Se, por outro lado, não é lícito dizer a alguém que ele olhava em direção ao que está gerado. É claro que ao todo olhava para o eterno. Pois, um deles, é a melhor das coisas geradas; o outro, a melhor das causas. Esta, portanto é a conclusão do prólogo, segundo Reale (2013): existe um ser puro cognoscível apenas pela inteligência, λνῦο, e é precisamente para ele que o demiurgo olha como modelo, a fim de realizar o que é sensível e gerável. Consequentemente, o que é sensível provém de uma imagem metassensível, realizada pelo demiurgo. O concreto do mundo físico como imagem do inteligível é a concepção que se compreende apropriadamente, se se quer obter o entendimento do diálogo Timeu ab integro. 2. Os objetivos da Politeia e do Timeu O problema mais importante para uma vida ordenada da cidade é certamente o da justiça e, por conseguinte, o problema político torna-se o mais relevante para a Politeia; pois, com efeito, a justiça é o que regula as ações e as relações dos homens no interior de uma comunidade. Portanto, chegar a uma definição de justiça e de como aplicá-la na cidade e na vida do cidadão é um dos principais objetivos propostos nesse diálogo. Platão situa-se, em grande parte, em uma posição de clara ruptura com a tradição grega, na medida em que seu pensamento sobre a pólis e sobre sua melhor organização não tomara como paradigma estruturador a soberania da lei escrita frente ao ideal de justiça que reside na prática da justiça. O regime ideal proposto na Politeia, ao invés, como estabelecimento de uma ordem pública fundada no saber e na eficácia formadora da educação, παηδεία, problematiza a natureza da lei, da justiça, da educação, bem como procura saber se elas desempenham bem o seu papel em cada cidadão e na cidade. E aí está, certamente, o elemento que marca o 32 afastamento de Platão de grande parte das doutrinas éticas e políticas da tradição grega. A Politeia exige, por sua vez, a discussão do problema da formação do ethos e da alma humana por um código de valores concretos, cuja fundamentação atua no terreno epistemológico de um saber do bem. Em uma cidade justa na qual esses princípios se tenham estabelecidos, atingindo a educação os seus objetivos fundamentais, os preceitos jurídicos impostos aos cidadãos são obrigatoriamente muito reduzidos como Sócrates faz notar a seu interlocutor Adimanto. Contudo, para que se atinja o objetivo de construir uma cidade justa formada por cidadãos justos e instruídos, de acordo com o estudo de Casertano30 sobre a Politeia, Platão desenhou, entre os livros II e IV, um novo programa educativo que deveria ser realizado na nova cidade. Mas o programa da paidéia não se encerra com esses livros, pois ela também atravessará os livros V e VII. Tal como a cidade ―educada‖ é aquela na qual há um equilíbrio entre as várias partes que a constituem, assim também o ―homem educado‖ será o cidadão que, na sua individualidade, tiver conseguido instaurar um equilíbrio harmônico em si. Logo, a reforma educacional, que deve ser realizada na pólis grega, segundo o modelo de Platão, concerne tanto ao corpo quanto à alma, ou seja, ao homem por inteiro, em sua totalidade. No entanto, como aqui há a intenção de mencionar o objetivo da obra e do autor conjuntamente, é fundamental apontar, desde então, que na paidéia de Platão existe uma relação entre justiça, felicidade e educação. A solução platônica prevê – como única e verdadeira condição de felicidade – uma necessária mudança que é profundamente radical em relação ao que se encontra na sociedade e na cultura grega. Platão, desse modo, por meio da imagem da Caverna e no decorrer do Livro VII, foi capaz de lançar seus principais temas – educação, ciência, opinião verdade, essência, conhecimento – e, com o desenvolvimento da ciência dialética, instaurou um novo paradigma educativo que envolve ontologia, epistemologia, a própria ação de dialogar, ética, e também política. Certamente, um dos objetivos de Platão com a Caverna no contexto da Politeia, como observou Reale31, se atinge pelo discurso do personagem Sócrates que, antes de tudo, é o de 30 31 CASERTANO, 2011, p. 46. REALE, 2011, p. 46. 33 simbolizar a relação entre as dynamai e aquilo que elas visam, isto é, os planos do ser sensível e suprassensível, inteligível; além de representar os planos do conhecimento nos seus diferentes níveis e nos vários graus desses níveis. Mas, é tão somente pela dialética que o homem é capaz de ver o princípio de tudo (ηνῦ παληὸο ἀξρή). O dialético, conforme Platão, se identifica com o filósofo, que se define como aquele que é capaz de olhar a realidade sinoticamente, ou seja, é capaz de ver o todo, recolhendo a pluralidade na unidade, o múltiplo no uno. Distintamente do objetivo da Politeia é o do diálogo Timeu que, por sua vez, investiga e descreve acerca da natureza do cosmo, figurando no plano daquilo que sempre se torna, do devir, isto é, daquilo que Platão denomina como ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ, o que sempre se torna. Instauram-se antes de tudo os princípios ontológicos e gnosiológicos que fundamentam todo o tratamento posterior e neles se observam que a base ηὸ ὄλ ἀεὶ, o que sempre é, está em oposição a ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ, o que sempre se torna. Por outro lado, guarda grandes semelhanças com a Politéia em particular, pois em ambos os diálogos o mundo plural das Formas se apresenta unificado constituindo um sistema32. O Timeu, como observou Trabattoni33, contém aquilo que se poderia chamar a ―física‖ de Platão, na acepção antiga desse termo, isto é, como descrição da realidade sensível e viva, do cosmo ao homem, de sua estrutura e de seus princípios. O Timeu é a apresentação como continuação e complemento do programa proposto n‘A República. Antes de tudo, Sócrates retoma, na verdade, não de maneira muito clara, o conteúdo do diálogo maior, e em seguida, anuncia a tarefa que ainda faltava desenvolver: fazer ver em sua concretude, dando-lhe vida, aquela cidade ideal que n‘A República fora descrita somente de maneira teórica (19b-c), isto é, descrever a realidade da origem do cosmo até a natureza humana. Além disso, Cleary34 sustenta que a suposta passagem ‗autobiográfica‘ no Fédon pode ser tratada como o próprio caminho de Platão para a teoria cosmológica que é desenvolvida inteiramente no Timeu. Desde que esta cosmologia é narrada por um pitagórico da Sicília num tipo de ‗longo discurso‘ que Sócrates evidenciou, é bastante claro que Platão abandonou a pretensão de simplesmente expandir as ideias de seu mentor. Já Sócrates aparece com um 32 COLLAZOS, 1991, p. 145. TRABATTONI, 2010, p 254-5. 34 CLEARY, 2013, p. 143. 33 34 personagem menor no início do Timeu onde é o projeto que está explicitamente conectado com o da República, embora esteja claro que, com a posição exceção do livro I, a República não é um típico diálogo socrático nem expõe as ideias políticas de Sócrates. De acordo com a visão de Cornford35, o prelúdio do Timeu estabeleceu os princípios de todo o discurso e define qualquer abordagem física. Este é composto por três premissas gerais concernentes a tudo aquilo que não é eterno, mas que se torna, vem a ser: (1) O eterno é o inteligível; o que vem a ser é sensível. Uma vez que o mundo é sensível, deve ser algo que se torna. (2) Tudo que se torna deve ter uma causa. Por conseguinte, o mundo tem uma causa – o criador e pai, mas é difícil encontrá-lo. (3) A obra de qualquer criador será boa somente se ele o moldou em vista de um modelo eterno. O mundo é bom; então o modelo deve ter sido eterno. Por fim, a conclusão a que se chega: qualquer explicação que pode ser dada do mundo físico pode não ser melhor que uma ‗provável história/mito verossímil‘, porque o próprio mundo é apenas uma imagem de uma realidade imutável. O que sempre é, com efeito, não tem origem, γέλεζηλ δὲ νὐθ ἔρνλ, e o que sempre se torna, na verdade, nunca é, ὂλ δὲ νὐδέπνηε, o que sempre é, por um lado, é apreensível, πεξηιεπηόλ, pela inteligência com a razão, λνήζεη κεηὰ ιόγνπ; o que sempre vem a ser, por outro lado, é opinável, δνμαζηόλ, pela opinião com a sensação desprovida de razão, irracional, δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ36. O Timeu, por meio de princípios ontológicos e epistemológicos, parece se ajustar a doutrina da República, segundo a qual a opinião (o opinável) se refere ao devir e a inteligência (apreensível pelo intelecto) à essência, pois estabelece uma divisão categórica entre o que verdadeiramente é (apreensível pela inteligência) e o devir (perceptível pelos sentidos)37. Uma vez que o objeto da discussão sobre a qual verte o diálogo é a natureza do céu e o 35 CORNFORD, 1997, p. 21. PLATO, 1903, 27d6-28a4: ―ηί ηὸ ὂλ ἀεί, γέλεζηλ δὲ νὐθ ἔρνλ, θαὶ ηί ηὸ γηγλόκελνλ κὲλ ἀεί, ὂλ δὲ νὐδέπνηε; ηὸ κὲλ δὴ λνήζεη κεηὰ ιόγνπ πεξηιεπηόλ, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, ηὸ δ᾽ αὖ δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ δνμαζηόλ, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, ὄλησο δὲ νὐδέπνηε ὄλ‖. ―Que é aquilo que sempre é, mas que não tem origem; e que é aquilo que sempre se torna, mas que nunca é? Um, apreensível [28] pelo pensamento com a razão, sendo sempre um só e o mesmo, outro, opinável pela opinião com a sensação irracional, tornando-se e perecendo, mas jamais sendo‖. 37 COLLAZOS, 1991, p. 116. 36 35 todo, ou seja, o aspecto físico do cosmo, é evidente que se trata de uma realidade por natureza gerada e que se torna, portanto, mutável. É uma realidade perceptível com a sensação e opinável, privada de razão. Por conseguinte, como se estabeleceu no terceiro axioma, em 28a4-5, enquanto este mundo é gerado e se tornou, há toda necessidade de ser gerado por alguma causa - πᾶλ δὲ αὖ ηὸ γηγλόκελνλ ὑπ᾽ αἰηίνπ ηηλὸο ἐμ ἀλάγθεο γίγλεζζαη·. Timeu, e subjacente a ele Platão, está bem consciente de semelhante dificuldade: não por acaso, seu discurso constrói uma distinção essencial entre ―o que sempre é‖ e ―o que sempre se torna‖. O primeiro gênero, sendo eterno, imutável e isento de geração e corrupção, é possível apreendê-lo por meio do pensamento e do raciocínio; o segundo, por sua vez, que está em constante devir, é mutável, se transforma e está sujeito à geração, sendo alcançado apenas com a opinião sensível, sempre mutável e incerta. A distinção, todavia, ontológica e epistemológica ainda que introdutória impõe uma série de consequências ainda no plano do ιόγνο que o discurso de Timeu está começando a desenvolver. Pois, com efeito, os discursos, ιόγνη, têm uma relação direta com a coisa de que fala e transmitem exatamente em palavras, raciocínios e conhecimentos que o conhecedor (sujeito) possui em torno da coisa conhecida (objeto), conforme o passo 29b4-5: ... ὡο ἄξα ηνὺο ιόγνπο, ὧλπέξ εἰζηλ ἐμεγεηαί, ηνύησλ αὐη῵λ θαὶ ζπγγελεῖο ὄληαο· ... assim como, com efeito, quanto aos discursos que são condutores das mesmas coisas de que são congêneres: O ιόγνο, a partir de uma imagem da coisa de que fala, assim como o conhecimento poderá ser eterno, perfeito e totalmente verdadeiro se, e somente se, se dirigir a um objeto que apresente símiles aspectos, isto é, que os discursos sejam firmes e com a razão clara com relação aqueles que são instáveis e imutáveis - ηνῦ κὲλ νὖλ κνλίκνπ θαὶ βεβαίνπ θαὶ κεηὰ λνῦ θαηαθαλνῦο κνλίκνπο θαὶ ἀκεηαπηώηνπο, 29b5-7. Segue-se disso que o que a essência é em relação à gênese, isso mesmo é a verdade em relação à crença - ὅηηπεξ πξὸο γέλεζηλ νὐζία, ηνῦην πξὸο πίζηηλ ἀιήζεηα. Pressupõe-se que o discurso de Timeu, considerando a origem do cosmo como uma realidade ou conjunto de realidades sensíveis, mutáveis, limitadas a geração e corrupção – não seguindo o modelo eterno, imóvel e sempre idêntico a si mesmo – não poderá construir um discurso plenamente 36 verdadeiro sob todos os aspectos38 – πάληῃ πάλησο αὐηνὺο ἑαπηνῖο ὁκνινγνπκέλνπο ιόγνπο θαὶ ἀπεθξηβσκέλνπο ἀπνδνῦλαη, 29c5-7. 3. Estrutura geral dos diálogos Politeia e Timeu O intento de se apresentar a estrutura geral dos diálogos abordados nesta tese deve-se ao fato de buscar conhecê-los melhor, isto significa aprofundar de forma sistemática o que cada um deles traz em seu conteúdo. Torna-se necessário, para tal empresa, abordar cada um deles por um prisma que lance aquilo que está no princípio, meio e fim do desenrolar da conversa, entre Sócrates e Timeu, no Timeu, e entre Céfalo, Adimanto, Glauco, Trasímaco, Crítias e Hermócrates, na Politeia. A estrutura de uma obra tão extensa como a Politeia deveria ser, primordialmente dividida em muitas partes, mas como apontam os críticos não se conhece essa primeira divisão. Na Antiguidade adotou-se a repartição em seis livros provavelmente organizada por Aristófanes de Bizâncio, e na Idade Média, em dez livros, ao filósofo e gramático Trásilo cujos editores modernos seguem. Entretanto, esclarece Baccou (1965/1973), que ambas são superficiais e atestam apenas um modo a distribuir o texto do diálogo em porções quase iguais. A estrutura do Timeu se constitui de um prólogo formado pela síntese do modelo de cidade justa e pela narração do mito de Atlântida, pela boca de Crítias, que remonta, como se percebe, à pólis idealizada na Politeia. Após o prólogo, Timeu inicia seu discurso com um prelúdio teorético no qual vem apresentar os axiomas metafísicos e gnosiológicos de base que servirão para os conceitos e temas abordados desde o prelúdio até o final do diálogo. De acordo com o esquema desenvolvido e estabelecido por Reale (2013), que serve de apoio científico para este estudo, bem como outros, a estrutura integral do Timeu se forma desde um grande prólogo que se subdivide em duas partes; uma terceira em que se encontra o prelúdio do discurso de Timeu a serem detalhadas mais adiante. Na primeira parte da fala do personagem prevalecem os temas acerca da obra da inteligência, em particular as razões que explicam a beleza do cosmo e sua unidade, os quatro elementos físicos e suas proporções no processo de criação, a formação e estrutura do corpo e 38 PLATONE, 2003, p. 26. 37 da alma do cosmo, os vários movimentos harmônicos que o vivente possui, a criação do tempo como uma imagem móvel da eternidade, dos corpos celestes, das plantas, dos animais e do homem. Platão se concentra, na segunda parte, de modo especial, sobre o princípio material do qual surge o cosmo; além disso, desdobra a origem dos quatros elementos, a saber, fogo, ar, água e terra, tanto nas várias formas que eles assumem quanto por suas características peculiares. Ele trata, portanto, das múltiplas coisas apreensíveis pela sensação e das causas que as geraram, obras da necessidade. A terceira parte do discurso, afinal, expõe os problemas de caráter anatômico, fisiológico e médicos considerados como de natureza humana. Conclui-se pondo em destaque o animal racional em cada homem, de deus como ―demônio tutelar‖39, ainda com a recuperação de alguns pontos de caráter escatológico. Seguindo, portanto, o esquema delineado por Baccou (1965/1973), para a Politeia, e por Reale (2013), para o Timeu, é possível estruturar os diálogos, sem aprofundar-se nos temas, da seguinte maneira: Politeia, I-X: Livro I [327a-354c2]: O livro I, que constitui o prólogo do diálogo, realiza um primeiro exame sobre a noção de justiça, mostrando que esta virtude consiste em dizer a verdade e em dar a cada um aquilo que lhe é devido. Mas até que ponto essa assertiva é satisfatória e suficiente? Para Goldschmidt40, entretanto, a estrutura do primeiro livro parece indicar precisamente que estamos diante de um ―prelúdio‖, de um diálogo, portanto, que não vive por sua própria vida. Mas a sua própria função de prelúdio assegura ao primeiro livro alguma independência no conjunto da República, que permite examiná-lo à parte. A conversa com Polemarco tem por objeto a definição de justiça segundo Simônides e termina com um fracasso. Esta definição, em relação à imagem proposta por Céfalo (não deve 39 40 PLATONE, Timeo, 2013, p. 11. GOLDSCHMIDT, 2013, p. 112. 38 ser nem sacrifício nem dinheiro, em I, 331b2-3) é uma primeira hipótese: dar a cada um o que lhe é devido (I, 331e4-5). Fórmula enigmática que precisa ser esclarecida. A justiça, δίθε/δηθαηνζύλε, consiste, a priori, em dar a cada um aquilo que lhe convém, pois, é isso precisamente o que lhe é devido. Desta forma, frente à primeira definição de justiça anunciada por Polemarco, em I, 332d7-8, tendo mencionado o poeta Simônides, devese fazer bem aos amigos e mal aos inimigos: ηὸ ηνὺο θίινπο ἄξα εὖ πνηεῖλ θαὶ ηνὺο ἐρζξνὺο θαθ῵ο δηθαηνζύλελ ιέγεη; Portanto, Simônides diz ser justiça fazer o bem aos amigos e fazer o mal aos inimigos? A tese inicial sobre a noção de justiça, no entanto, ainda permanece provisoriamente sem conclusão, consoante a observação feita por Sócrates: todo animal torna-se melhor em sua virtude própria através de bons tratos, o mesmo acontece com o homem cuja virtude própria é a justiça (I, 335b6-d12). Ilustro com a passagem 335c6-7 do Livro I o raciocínio de Sócrates que tanto refuta a tese de Simônides quanto introduz as primeiras hipóteses acerca da definição de justiça ou, pelo menos, apontam a necessidade de apreender a natureza dela: θαὶ ηνὺο βιαπηνκέλνπο ἄξα, ὦ θίιε, η῵λ ἀλζξώπσλ ἀλάγθε ἀδηθσηέξνπο γίγλεζζαη. Então, ó amigo, também os que são prejudicados tornam-se, por necessidade, os mais injustos dos homens. Em 335d10-11, numa primeira conclusão a que Sócrates chega não como algo evidente, mas por meio de raciocínio indutivo é a de que aquele que ama a justiça deve ser bom e não causar dano à pessoa alguma, tanto amigo quanto inimigo. A hipótese segundo a qual é justo fazer o mal a seus inimigos deve ser rejeitada. Assim, o homem justo jamais cometerá o mal, mas deverá fazer o bem sem qualquer restrição: νὐθ ἄξα ηνῦ δηθαίνπ βιάπηεηλ ἔξγνλ, ὦ Πνιέκαξρε, νὔηε θίινλ νὔη᾽ ἄιινλ νὐδέλα, ἀιιὰ ηνῦ ἐλαληίνπ, ηνῦ ἀδίθνπ. Portanto, ó Polemarco, o trabalho do justo é não prejudicar nem amigo nem nenhum outro, mas do seu contrário, o do injusto. 39 Trasímaco, por sua vez, define a justiça como a conveniência do mais forte, isto significa que, em cada cidade, o governo, que é o elemento dominante, procura a sua própria vantagem, asseverando-a por meio de leis. Assim, estabelece-se no diálogo a segunda tese sobre a justiça e o justo. A fórmula que Trasímaco pronunciará, como observa Goldschmidt (2013, p. 123), não é simplesmente outra hipótese, que se seguiria à de Polemarco (e à de Sócrates). Ela contestará o único resultado, a única certeza que a refutação precedente deixará de pé: a exigência essencial que a definição socrática deveria, doravante, ensinar: sendo o justo bom, a justiça consiste em fazer o bem, sem qualquer restrição. Após o prelúdio em que se estabeleceram as principais teses sobre a justiça, embora não assentadas, importa, neste momento, retomar e desenvolver a argumentação de Trasímaco. Glauco e Adimanto, discípulos de Sócrates e autênticos amigos do saber, encarregam-se sucessivamente dessa tarefa. Livros II, III, IV [357a-445e3]: As opiniões que se ouvem sobre justiça e injustiça, e também do homem justo e injusto, são emitidas pela autoridade da tradição, isto é, pela comprovação dos poetas Homero e Hesíodo, quando afirmam que o virtuoso é recompensado até na sua posteridade, enquanto o perverso está destinado a inúmeros males. Para combater esses julgamentos, deve-se desvelar a justiça de todas as vantagens, examiná-la na essência e mostrar que ela é em si mesma o melhor dos bens, enquanto a injustiça o maior dos males. Daí decorre que a primeira educação dos cidadãos da pólis, na cidade justa, seja isenta de todo elemento duvidoso. Platão, ao reconhecer no mito, mythos, um temível instrumento de persuasão, sente a necessidade de contestar seu domínio. Ele faz duas críticas de caráter epistemológico, nos Livros II e III, denunciando a imagem inaceitável que os mythos dão dos deuses, daímones, herois, mortos e, até mesmo, dos homens do passado. Quando o mito é fabricado pelo vate, que o reorganiza numa narrativa tradicional dando-lhe uma forma particular, se torna uma narrativa mítica, abandona o plano da oralidade e ocorre um processo de imitação, κίκεζηο: o poeta imita seus personagens, quer fabrique ou narre um mythos, e aqueles que ouvem se identificam com prazer com esses personagens. 40 Platão, no livro III, realiza uma análise do discurso mítico com o fim de verificar o que, afinal, esses discursos incutem nos cidadãos desde crianças, ἐθ παίδσλ, III, 386a, quando eles reproduzem imagens dos deuses. A intenção do personagem Sócrates é de que se faça perceber que quanto mais poética for a visão do Hades, a morada dos mortos, dos genitores e dos próprios deuses, menos se ajustará aos ouvidos das crianças e dos homens que devem tornar-se livres e temer a escravidão mais do que a morte (III, 387b). É preciso banir tão somente as poesias e narrativas míticas que causem medo da morte ou que representem herois e deuses a chorar ou sofrer, ou ainda, que os representem como seres intemperantes e ávidos. Segundo o estudo de Casertano, Platão revela que tudo isto é mentira, e apenas os governantes, ou os médicos, têm o direito de mentir no interesse dos governados ou dos enfermos. O modo correto, contudo, de se referir aos deuses, herois, daímones e aos habitantes do Hades, conforme Platão, implica necessariamente em separar deles os nomes terríveis e apavorantes, assim como, descartar as lamentações, ὀδπξκόο, o pranto, queixas e lamúrias, pois essas mentiras, com efeito, são inúteis aos deuses e úteis somente aos homens (III, 389b). Não se deve, portanto, convencer e instruir os jovens de que os deuses criam coisas más, nem que figura do herói se mostre em nada melhor do que os homens porque, para Platão, é impossível que o mal provenha dos deuses: ... κεδὲ ἡκῖλ ἐπηρεηξεῖλ πείζεηλ ηνὺο λένπο ὡο νἱζενὶ θαθὰ γελλ῵ζηλ, θαὶ ἥξσεο ἀλζξώπσλ νὐδὲλ βειηίνπο: ὅπεξ γὰξ ἐλ ηνῖο πξόζζελ ἐιέγνκελ, νὔζ᾽ ὅζηα ηαῦηα νὔηε ἀιεζ῅: ἐπεδείμακελ γάξ πνπ ὅηη ἐθ ζε῵λ θαθὰγίγλεζζαη ἀδύλαηνλ.41 ... nem tentar convencer os nossos jovens de que os deuses criam coisas más e que os herois não são em nada melhores do que os homens. Como dizíamos a pouco, estas palavras são ímpias e falsas, pois demonstramos ser impossível que o mal provenha dos deuses.42 Os guardiães da pólis justa, tendo sido educados nessas condições, acamparão e viverão em comum, na parte da cidade que melhor convier à guarda. Nenhum deles possuindo, como próprio, nem dinheiro, nem terra, nem habitação. Apenas com estas condições é que permanecerão unidos e fiéis ao papel de servidores da comunidade. Uma cidade, conclui Sócrates, cujas classes estejam unidas, mesmo que disponha unicamente de mil combatentes, 41 42 PLATO, 1903, III, 391d6-e2. PLATÃO, 1965 e 1973, vol. I, p. 156. 41 superem em real poder cidades que parecem bem maiores, mas cujas classes se apresentam divididas. A cidade fundada sob uma base ideal ou perfeita, cujos princípios compõem o livro IV, coligará as quatro virtudes cardinais, a saber, sabedoria, ζνθία, coragem, ἀλδξεία, temperança, ζσθξνζύλε, e a prática da justiça, δηθαηνζύλε. Deve-se, por sua vez, aplicá-las na alma do indivíduo, em menor porção, o mesmo que acaba de ser assentado, em grandes caracteres acerca da pólis. As razões para essa aliança são as de aproximar os resultados obtidos de modo que a verdade brote tanto na esfera da cidade justa quanta na do cidadão justo. No que concerne à alma do cidadão, é possível distinguir três partes que correspondem cada qual a uma das três classes da cidade. A classe dos dirigentes está relacionada à parte da alma denominada racional, ινγηζηηθὸλ, que delibera a comanda as inclinações e desejos; a classe dos guardiães tem o seu par no ânimo, ζπκόο, ζπκνεηδέο, adjunta da razão, assim como os guardiães dos seus chefes. Por fim, a classe dos artesãos e dos homens de negócio, gente devotada a misteres grosseiros que se correlacionam com o apetite sensual, o desejar ardentemente, a ambição, ἐπηζπκία, que dispõe às necessidades elementares da nutrição, conservação e reprodução. Estando, portanto, a alma humana composta das mesmas partes que a cidade, há de se encontrar nesta as mesmas virtudes distribuídas de modo semelhante, a fim de que cada classe preencha unicamente a função conveniente à sua natureza. Consistirá, por consequência, no indivíduo que cada elemento da alma se limite restritamente a seu papel, isto é, que nem o elemento apetitivo nem o corajoso supram o racional no governo da alma e na conduta da vida. Portanto, para que a diké, que globalmente resulta da harmonia entre os diferentes grupos funcionais, IV 343c-d, reine na pólis, é preciso que cada indivíduo de cada grupo realize sua tarefa sem jamais se desviar (433a-b). Para chegar a esse resultado, o último grupo funcional, o dos produtores, deve dar prova de moderação (sophrosúne); o segundo, o dos guardas, de moderação e de coragem (andreia), e o primeiro, o dos filósofos-governantes, deve acrescentar ao saber (sophia) a prática da coragem e da moderação43. 43 BRISSON, 2003, p. 162-3. 42 Livros V, VI, VII [449a-541b5]: O próximo tema a ser elucidado para a constituição da pólis desenvolvida por Platão, reunidos nos livros V, VI e VII, diz respeito à elevação do filósofo como rei, pois ciência e poder político devem estar unidos num mesmo homem com o fim de prestarem mútuo auxílio. O verdadeiro filósofo, entretanto, ao qual Sócrates se refere é o homem que ama a ciência sob sua forma universal, e não esta ou aquela ciência particular. São aqueles que se comprazem na contemplação da verdade. A ciência, portanto, tem por objeto o ser real, ou seja, o conjunto das essências ou ideias. Além disso, o discurso elucidará, de um lado, os que amam os espetáculos, as artes e são homens práticos; de outro, os filósofos dos quais o discurso já vem tratando. O importante é perceber a descrição feita por Platão a respeito desses dois tipos de homem: os práticos e os que amam o espetáculo da verdade, cuja curiosidade tem como morada os olhos, os ouvidos. Sua inteligência não é capaz de ver e amar a natureza do belo em si, pois julgam pela opinião, δόμα, tornando-se amantes dos espetáculos. Os filósofos, amantes da verdade, ao contrário disso, são mais raros visto que para eles a ciência, ἐπηζηήκε, e o conhecimento, γλ῵ζηο/γλώκε, versando por natureza sobre o que é, têm por finalidade conhecer o que é, e, ainda, atingir o próprio belo vendo-o em sua essência. Por conseguinte, a opinião é um intermediário, um meio, κεηάμηο, entre saber e ignorância. Collazos44 sustenta que, em relação ao estatuto epistemológico do conhecimento e da opinião, a distinção entre conhecimento, γλ῵ζηο, e opinião, δόμα, se faz implicitamente na identificação de ser e de inteligibilidade. A ideia é, conforme é estabelecida, supremamente inteligível por ser real de modo eminente. Pois bem, somente a atividade intelectual capaz de apreender a realidade mais plena merece o nome de conhecimento. Reciprocamente, como o não ser não é de nenhum modo inteligível e carece por completo de realidade, a ignorância é aquela situação da inteligência que esta dirige sua atuação. A índole filosófica, amadurecida pela educação e pelo tempo, conforme o estudo de Baccou (1965, 1973), é a única que convém aos chefes supremos da pólis. Depois da exposição descrita nos Livros III e IV, que se destinava a todos os guardiães, θύιαθεο, com o fim de torná-los chefes ou auxiliares, o personagem Sócrates tratará de descrever a educação 44 COLLAZOS, 1991, p 114. 43 especial, complemento da educação pouco caracterizada, que há de preparar o filósofo para o governo da pólis. Ao filósofo-governante da pólis justa, mediante o discurso de Sócrates, caberá o comando, ἀξρή, da cidade, visto que podem atingir (a ideia de) o Bem e não andar na errância da multiplicidade causada, forçosamente, pelas opiniões. Quanto às qualidades do filósofo, no que lhe concerne, pode-se apontar em primeiro lugar que seja amante da verdade e da sabedoria e, não, da mentira e da falsidade. Sendo assim, Platão revela, ao mesmo tempo em que investiga, a natureza do filósofo, η῵λ θηινζόθσλ θύζεσλ, e um modelo no qual esse seja capaz de moldar a bela cidade concordando com a ideia do Bem, que se evidencia pela analogia ou imagem do Sol, no final do Livro VI. O guardião da cidade deve, contudo, ser um filósofo e seguir o caminho mais longo do conhecimento que conduz, por meio da dialética, à ideia do Bem, do inteligível e das coisas inteligíveis, ou seja, do εἶδνο e da ἰδέα, realidades imutáveis e eternas dependentes da inteligência humana que as percebe. Se o sol é, portanto, a causa da origem do alimento e fonte de luz e calor essenciais à vida neste mundo, o Bem é, por analogia, a causa do que é, do conhecimento e da essência porque é a ideia do Bem que fornece verdade às coisas que vão sendo reconhecidas e que dá capacidade ao sujeito de reconhecê-las. Os degraus que o filósofo, assim como o próprio pensamento humano, tem de seguir a fim de alcançar o conhecimento de todas as coisas serão ilustrados na imagem da Linha Segmentada em dois cortes desiguais, isto é, o do gênero do visível e o do inteligível, conforme uma razão, ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ, após a imagem do Sol. A imagem comparativa ou assimilação que está na descrição da Caverna, dos seres que lá habitam acorrentados desde a infância, e de suas condições de vida manifestam que as sombras são a sua realidade e que, tendo sido desligados dela, continuarão a acreditar que as sombras que antes viam são mais verdadeiras do que a realidade e que agora são mostradas fora da morada subterrânea, ou seja, as coisas que estão sob a luz do dia. A educação refletida nesse momento da Politeia é aquela que permite tirar o cidadão das sombras e trazê-lo à luz, visto que antes Platão tinha a ginástica e a música como paradigmas. Há, todavia, outra educação acerca do número e do cálculo, ἀξηζκόλ ηε θαὶ ινγηζκόλ, que consiste em mostrar que os sentidos confundem certas qualidades dos objetos que precisam ser distinguidas pela inteligência, em lugar da sensação. 44 O método dialético platônico descrito no livro VII, ao invés de partir de hipóteses, como fizeram os matemáticos, considera as hipóteses com tais e não as utilizam como ponto de apoio, nem como princípio de conhecimento. De degrau a degrau, eleva-se seguindo até alcançar o princípio do todo, ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρήλ, isto é, a ideia do Bem. Quando ele se segura nesse princípio não-hipotético, desce até a conclusão. A dialética é, por fim, a única ciência verdadeira propriamente dita, pois através das formas em que ela se estende, ela sobe novamente ao princípio do ser, o que é, ηὸ ὄλ. Livros VIII e IX [543a-592b5]: A partir dos Livros VII e IX, o diálogo sofrerá uma inversão do ponto de vista temático, ou seja, abandonará a discussão sobre os principais elementos da cidade ideal – o filósofo, a ciência dialética, Bem, justiça e cidadão justo – e se concentrará no exame das cidades pervertidas. As constituições degeneradas, provenientes da aristocracia, são em número de quatro: em primeiro vem a timocracia ou timarquia, ηηκνθξαηίαλ ἢ ηηκαξρίαλ, de cujos governantes de Creta e Lacedemônia oferecem modelos baseados na força do amor pela vitória e pela honra. A seguir, a oligarquia, ὀιηγαξρία, regime em que surge a acumulação de riquezas pelos cidadãos e de seus gastos cada vez maiores; em terceiro, a democracia, δεκνθξαηία, cujo princípio está na liberdade, aparentando ser uma das mais belas formas de governo quando, na verdade, o excesso de liberdade se transforma em certo nível em libertinagem. Por fim, a tirania, ἡ γελλαία ηπξαλλίο, em que a liberdade atinge o grau máximo e os resultados geram em demasia cruel escravidão quer a cidade quer ao cidadão. Após a explicação de cada uma das quatro principais formas de organização política, Sócrates trará para discussão, ao longo do livro IX, o estudo da natureza tirânica. O perfil do tirano é traçado a partir dos desejos e apetites que ele manifesta na infância ou os que são inatos ao tornar-se rei ou chefe, por exemplo, os amores, a embriaguez e a loucura são diferentes tipos de tirania. Ele acredita que à medida que esses desejos, ἐπηζπκία, acumulamse na alma do cidadão, os homens tirânicos subtraem seus recursos: não são amigos de ninguém, mas sempre déspotas de alguns e escravos de outros. A natureza do tirano jamais conhecerá o gosto pela verdadeira liberdade ou amizade. 45 A tirania, portanto, é o pior de todos os regimes, e nisso Platão está de acordo com a grande maioria dos concidadãos: nela a violência desenvolve-se livremente; a injustiça atinge o auge. O tirano com a ajuda dos seus homens não só bane, pilha e mata, como ainda força as pessoas a conspirarem e desencadeia guerras45. Livro X [595a-621d2]: A parte final da Politeia abre com a investigação não da política, mas da poesia. Tendo colocado o poeta ao lado do pintor, Sócrates argumenta que o artista produz uma versão da experiência que está duas vezes afastada da realidade. Sua obra, na melhor das hipóteses, é frívola e, na pior, perigosa tanto para a ciência quanto para a ética: os poetas épicos, assim como a poesia épica, desde Homero até Eurípides, devem ser banidas do sistema educacional da Grécia46. A condenação da poesia, proferida no livro III, encontrará no livro X as devidas justificações. Sócrates retomará o problema da mímese, κίκεζηο, expostas nos livros II e III, como imitação do real e da figura do poeta cujo canto era suficiente para representar todas as coisas, as virtudes, os deuses e as leis divinas. No entanto, o objetivo do diálogo neste momento é responder a seguinte questão: o que é imitação? Se o imitador ignora as qualidades dos objetos que imita, ignora-lhes também o uso. A arte da fabricação é guiada pela utilização; mas a arte da imitação, que só leva em consideração simples aparências, surge da opinião comum, inconstante e quase sempre errônea. O imitador, κηκεηήο, por sua vez, nada sabe sobre a realidade, mas tão somente daquilo que imita, isto é, ele imita os objetos da realidade e conhece, segundo Platão, apenas sua aparência, visto que, muitas vezes, formula opiniões contrárias em torno do objeto sem, contudo, elucidá-las. Evoca-se, além disso, outra importante questão: a da imortalidade da alma. A partir da narração de Sócrates sobre o armênio e panfílio de nascimento Er, morto em combate, e que ressuscita após o décimo segundo dia narrando aos concidadãos o que vira ao mundo dos mortos, de como as almas escolhem seu destino, do mesmo modo que, as filhas da 45 46 CHÂTELET, p.67. HAVELOCK, 1996, p. 20. 46 Necessidade tecem-nos, mostrando, assim, que cada um designa, com seus critérios, a vida que deseja levar, e que o destino não é, de nenhum modo, imposto pelos deuses. Desse modo, é útil ao homem educar-se na filosofia e na virtude para bem escolher sua próxima vida. A justiça é, portanto, um bem e deve ser praticada diariamente pelo bem que ela causa à alma. A tese de Platão sobre justiça é a de que justiça é a prática da justiça. Ele, por outro lado, acredita que o homem pratica o mal por ignorância. Timeu: 17a-92c9 Prólogo: 17a-27b9 [17a-17b9] Encontro dos personagens Sócrates, Timeu, Crítias e Hermócrates. [17c-19b2] Sócrates retoma seu discurso do dia anterior sobre a cidade justa. [19b3-20c3] Sócrates solicita que se apresente a cidade ideal efetivamente em ação. [20c4-20d6] Hermócrates propõe que Crítias narre sobre um antigo conto. [20d7-21d8] O antigo conto é acrescentado por Crítias através de seu avô e remonta a Sólon. [21e-22b3] A narração acerca do que Sólon tinha aprendido no Egito. [22b3-8] A eterna infância dos gregos. [22b8-23d3] As grandes catástrofes e os grandes dilúvios. [23d4-24d6] A excelência de Atenas antes do último dilúvio. [24d6-25d6] A guerra de Atenas contra Atlântida e o destino daquele país. [25d7-26e] Conclusão do discurso de Crítias. [26e2-27b9] O plano dos discursos que restam fazer. Prelúdio do discurso de Timeu: 27c-29d6 [27c-27d4] Invocação aos deuses. [27d5-28b2] Princípios ontológicos, ηὸ ὄλ ἀεὶ e ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ, e epistemológicos, πεξηιεπηὸλ e δνμαζηὸλ. [28b3-29b2] O cosmo físico foi gerado por um demiurgo como imagem sensível de um modelo inteligível. 47 [29b3-29d6] Algumas considerações de caráter gnosiológico sobre o discurso que será exposto. Primeira parte do discurso de Timeu: 29d7-47e2 [29d7-31a] A causa da origem do cosmo: o Bem e a bondade do demiurgo. [31a2-33b] O cosmo é um só e inclui em sua totalidade os quatro elementos físicos. [33b-34b9] Forma esférica e movimento circular do cosmo. [34b10-36d7] A alma do cosmo e sua estrutura. [36d8-37a2] O cosmo foi composto e colocado dentro de uma alma. [37a2-37c5] As funções cognoscitivas da alma do cosmo. [37c6-38c3] Origem do tempo como imagem móvel da eternidade. [38c3-39e7] Geração dos planetas como instrumentos do tempo. [39e7-40d5] Geração dos astros que são deuses visíveis. [40d6-41a3] Geração dos deuses da qual fala a mitologia. [41a3-41d3] O demiurgo confiou aos deuses gerados a tarefa de gerar os viventes mortais. [41d4-42e6] Geração e destino da alma individual. [42e6-44d2] Geração dos corpos mortais. [44d3-45b2] Estrutura do corpo humano. [45b2-46a] Dos olhos e suas funções. [46a2-46c6] Como se formam as imagens nos espelhos e nas superfícies brilhantes. [46c7-47a] Causa verdadeira e causa auxiliar. [47a-47c4] Finalidade da visão. [47c4-47e2] Finalidade da voz e da audição. Segunda parte do discurso de Timeu: 47e3-69a5 [47e3-48e] Para explicar o cosmo além da inteligência é necessário o princípio da necessidade e da causa. [48e2-50a4] O princípio material do cosmo concebido como um receptáculo. [50a4-50c6] Exemplos que esclarecem analogicamente o conceito de receptáculo. 48 [50c7-51b6] O princípio material é, por natureza, amorfo. [51b6-52a7] Existência da realidade inteligível além da sensível. [52a8-52d] O princípio material como princípio da espacialidade. [52d2-53b4] O princípio material, plexo originário das formas e movimento caótico. [53b4-53e8] O demiurgo criou os quatro elementos. [54a-55c6] O demiurgo criou os elementos físicos de triângulos elementares. [55c7-55d6] Reafirmação da unidade do cosmo. [55d6-56c7] Os elementos físicos são produto do demiurgo por meio dos sólidos geométricos regulares e de relações numéricas precisas. [56c8-57b7] Transformação de elementos uno em outro. [57c-57d6] Mudança de lugar e infinitas variedades de elementos. [57d7-58c4] Relações do movimento com os elementos. [58c5-59a8] Variedades de forma do fogo, do ar e da água. [59a8-59c5] Formação do diamante, ouro, cobre e acetato de cobre (azinhavre). [59c5-59d3] Os conhecimentos físicos são prováveis e não necessários. [59d4-60b5] As várias formas da água. [60b6-61c4] As várias formas de terra misturadas de vários modos de água. [61c4-62c3] Origem e características das afecções sensíveis: quente, frio, duro e mole. [62c3-63e7] Pesado e leve, alto e baixo. [63e7-64a] Liso e rugoso. [64a2-65b6] Prazeres e dores. [65b6-66d2] Os sabores. [66d2-67a6] Os odores. [67a7-67c3] Os sons. [67c4-68d2] As cores. [68d2-69a5] Conclusões acerca da segunda parte e observação em torno dos conceitos metafísicos fundamentais. Terceira parte do discurso de Timeu [69a6-92b2] [69a6-69c5] Retomada da atividade geradora do demiurgo que conduz as coisas da desordem 49 para a ordem. [69c5-70a7] A geração da alma irrascível por parte dos deuses gerados e a sua colocação no tórax (ânimo). [70a7-70d6] O coração, os pulmões e suas funções. [70d7-71a3] A alma apetitiva e suas funções. [71a3-71d4] O fígado (coragem). [71d5-72c] A adivinhação e sua coligação com o fígado. [72c-72d3] O baço. [72d4-72e3] Retomada sobre o caráter da verossimilhança dos discursos físicos. [72e3-73a8] Os intestinos. [73b-e] A medula e o cérebro. [73e-74a7] Constituição dos ossos. [74a7-75b2] Os nervos e a carne. [75b2-75d5] A cabeça. [75d5-75e5] A boca e os dentes. [75e5-76b] A pele da cabeça. [76b-76d3] Os cabelos. [76d3-77a3] As unhas. [77a3-77c5] Geração das plantas e dos vegetais. [77c6-77e6] As veias e o aparelho circulatório. [77e7-79a4] A circulação e suas ligações com a respiração. [79a5-79c7] Mecanismo da respiração. [79c7-79e9] Causas gerais da respiração. [79e10-80a2] Efeitos da ventosa, degustação e movimento do corpo. [80a2-80b8] Explicação dos sons. [80b8-80c8] O benefício da água, a queda dos raios, a força de atração do âmbar e do ímã. [80d1-7] A nutrição. [80d7-81a2] Como se forma o sangue. [81a2-81d4] Juventude, crescimento e velhice. [81d4-81e5] A morte do corpo. [81e6-81b7] O primeiro grupo dos males do corpo. 50 [81b8-84c7] O segundo grupo dos males do corpo. [84c8-86a8] O terceiro grupo dos males do corpo. [86b-87b9] Os males da alma e a insensatez. [87c-88c6] A justa medida como critério para curar corpo e alma. [88c7-89d4] A cura do corpo em suas várias partes. [89d4-90d7] A cura das três partes da alma. [90e-91d5] A gênese da mulher e a metempsicose. [91d5-92c3] A gênese dos animais e a metempsicose. [92c4-9] A conclusão do discurso de Timeu. A ideia de dedicar uma parte deste estudo do lógos platônico à demonstração da estrutura da Politeia e do Timeu deu-se em razão da concatenação de temas que permeia o interior de seus diálogos, em especial, no discurso daquele que conduz a conversa, geralmente o personagem Sócrates, todavia não é dessa maneira que o Timeu se desenrola. Os principais conteúdos filosóficos, do mesmo modo que seus esclarecimentos, estão dispostos ao longo da conversa, em cada pergunta ou resposta instauradas por Sócrates, que nos faz avançar no fluxo do jogo dialético no qual os diálogos se movem. A delimitação por tópicos dos principais elementos desses conteúdos satisfaz a necessidade do leitor de reconhecer a estruturação temática em que os diálogos se encontram, assim como, identificar as principais teses, imagens e mitos que Platão compusera. 51 II. Μῦθορ, Εἰκόνερ e Ἀναλογίαι na Politeia e no Timeu de Platão Procura-se explorar, após a separação dos temas, objetivos e estrutura dos diálogos, a análise do que seja κῦζνο, εἰθόλεο, ἀλαινγία com o fim de desenvolvê-los de forma sistemática, respeitando a ordem em que ocorrem nos textos, em especial nos corpora que foram delimitados. Um dentre os principais trechos encontra-se na relação entre os passos da Linha Seccionada, em VI 509d6-511e5, com o prelúdio do Timeu, 27d5-29d6, no qual Platão descreve os princípios ontológicos e epistemológicos; a analogia do Bem com o Sol presente na Politeia e as analogias que se configuram no corpus do Timeu, buscando demonstrar e compreender os tipos de analogias que cada trecho apresenta. Antes de aprofundar-se no estudo em torno da imagem e da analogia nos diálogos supramencionados, a primeira parte deste capítulo abordará o mythos no contexto da cultura grega arcaica e clássica. A delineação se centrará nos aspectos culturais e históricos em que o poeta e a poesia retratam para a tradição helênica, visto que a história da poesia grega é similar à história da primitiva paideia grega e de seu espírito. Segue-se o estudo, na subdivisão da primeira parte, mostrando o uso instrumental de κῦζνο nos diálogos platônicos assim como as críticas e acusações dirigidas à tradição e à estrutura educacional existentes na Grécia, em especial aos poetas Homero e Hesíodo. Cabe expor as razões pela qual Platão, especialmente na Politeia, questiona as bases da tradição grega e coloca a κίκεζηο do discurso poético no cerne do problema, tornando-a alvo de suas contestações. No caso de Timeu, o termo εἰθώο assume, com bastante frequência, a posição adjetiva de ιόγνο ou de κῦζνο, mas não a de ἀιεζήο o qual se encontra em oposição. Desse modo, εἰθώο fornece ao discurso um rigor lógico do qual é possível justificá-lo racionalmente, mas, Platão nos faz perceber que esse dicurso não representa a verdade oriunda dos deuses, ou demiurgo, que detém a verdadeira gênese do todo. Para o presente capítulo, busco refletir as εἰθόλεο platônicas não por uma perspectiva filosófica, isto é, aquela que investiga as imagens em oposição ao objeto que elas representam ou a relação da imagem com a verdade ou com a falsidade; mas, observá-las como recurso linguístico, um instrumento que o logos elaborou para expor e demonstrar as εἴδε, ideias, que Platão desenvolveu em seus diálogos, como é evidente na imagem da ideia do Bem. 52 Detalhar, por fim, ἀλαινγία e a expressão adverbial ἀλὰ ιόγνλ, em cada autor e obras, apresentando as principais definições do termo no contexto da antiguidade, por exemplo, em Arquitas de Tarento, Aristóteles, Euclides e em Cícero. A análise prossegue com o estudo das analogias na esfera dos corpora retirado nos diálogos Politeia e Timeu, contextualizando suas ocorrências, tipos e estrutura. 1. Μῦθορ e seu significado para a cultura helênica clássica: de Homero a Platão Elucidar a acepção de mythos no alcance da cultura helênica, desde Homero até Platão, implica em falar, em primeira instância, sobre poesia e sobre a figura do poeta, mas, sobretudo, a respeito de seus papéis para aquelas sociedades. A poesia, πνίεζηο, se desenvolvera num período anterior à adoção da escrita, numa dinâmica que está perdida na noite do tempo47 e assim muito dela ficou esquecido. Por outro lado, foi exatamente para evitar o esquecimento que os gregos recorreram a ela. O metro e o ritmo são inerentes à poesia e funcionam muito bem como facilitadores de memória. Os poetas gregos eram chamados de aedos, ἀνηδόο, ou seja, aqueles que compunham os poemas diferente dos rapsodos, ῥαςῳδόο, que serviam de disseminadores das obras dos aedos. Os rapsodos eram cantores ou declamadores profissionais que percorriam diversas cidades discutindo e difundindo os cantos com a população, em especial a poesia de Homero e Hesíodo. O poeta na Grécia arcaica representava simultaneamente o papel de sábio e de vate, preservador da memória e performático. Sua postura poderia variar desde vate residente na casa de um nobre, como o homérico Demódoco, poeta peripatético visivo em festivais panhelênicos e dependente de encomendas, como fora Simônides. Ou poderia ser um aristocrata independente, como Sólon de Atenas, que apresentava sua poesia como influente legislador e pensador. Hesíodo, entre os versos 22-25 da Teogonia, nos descreve o proceder ritualístico do mythos, ou seja, a manifestação das Musas quando elegem as palavras que serão ditas ao poeta para que componha a narrativa mítica, os mecanismos que o poeta aplica com o fim de transmitir o mythos, do mesmo modo que nos supre a necessidade de compreender as noções 47 HESÍODO, 2011, p. 19. 53 míticas do canto divino, das verdades desveladas, dentre outras. αἵ λύ πνζ᾽ Ἡζίνδνλ θαιὴλ ἐδίδαμαλ ἀνηδήλ, ἄξλαο πνηκαίλνλζ᾽ ἗ιηθ῵λνο ὕπν δαζένην. ηόλδε δέ κε πξώηηζηα ζεαὶ πξὸο κῦζνλ ἔεηπνλ, Μνῦζαη ὆ιπκπηάδεο, θνῦξαη Γηὸο αἰγηόρνην: Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:48 Conforme Detienne49, tradicionalmente, a função do poeta é dupla, ou seja, celebrar os Imortais e celebrar as façanhas dos homens valorosos. O primeiro fato notável é, pois, a dualidade da poesia: ao mesmo tempo palavra que celebra a façanha humana e palavra que conta a história dos deuses. Esse duplo registro da palavra poética estaria relacionado, segundo Detienne (1981, p. 18), às duas ordens em torno das quais se organizava o sistema palaciano da época: uma esfera do rei todo-poderoso, que concentrava as funções religiosas, econômicas e políticas; e uma casta guerreira comandada pelo ―chefe do Laos‖. No primeiro sentido, as teogonias narradas pelo poeta seriam inseparáveis dos mitos de soberania e de emergência os quais alçavam ao primeiro plano a figura de um rei-divino responsável pela instauração da ordem no Cosmos. Nesse nível, o poeta é antes de tudo um ‗funcionário da soberania‘; ao relatar os mitos de emergência, ele colabora diretamente a pôr ordem no mundo. No segundo registro, a palavra do poeta estaria inteiramente voltada a louvar as façanhas ilustres dos guerreiros. Numa sociedade guerreira como Esparta antiga, sociedade agonística de iguais (homoioi), predominava uma espécie de ―tirania do olhar‖ que interditava a experiência de uma consciência interiorizada de si mesmo. A poesia grega, no entanto, é um veículo propagador de um tipo de mensagem que encerra em seu conteúdo história, geografia, medicina, astronomia, conhecimento sobre os deuses - nomes e formas -, anatomia, agricultura, estratégias de guerra e padrões éticos de conduta, preservados e transmitidos pela oralidade mítica, com recursos a deuses e herois. 48 49 HESÍODO, 2007, p. 103. DETIENNE, 1981, p.16. 54 O principal aspecto do verso, somente quando as obras começaram a ser escritas por volta do final do século VI, é que ele era o instrumento da poesia capaz de preservar qualquer narrativa (texto). Até mesmo no século V, durante o período em que os primeiros pensadores gregos, como Parmênides e Empédocles, compunham seus argumentos em versos. Isso torna claro não apenas a continuidade de expressão, na medida em que o verso permanece sendo usado para exprimir o pensamento filosófico, mas também a centralidade da poesia e, portanto, seu desempenho na cultura grega arcaica50. A conservação e transmissão dos costumes fica a cargo do pensamento inconsciente da comunidade e da dinâmica das gerações, sem o concurso de outro meio, gerando práticas vinculadoras para seus membros que legislam de modo quase instintivo e lhes dá seu assentimento através de seus membros mais ilustres. A tradição da cultura e da sociedade helênica, segundo Havelock51, sempre requer a concretização em algum arquétipo verbal, exigindo algum tipo de enunciado linguístico, uma expressão efetiva de alcance ostensivamente geral, que tanto descreve quanto reforça o padrão de conduta geral, política e privada do grupo. Esse padrão fornece o vínculo do grupo, permite que a comunidade funcione como tal e desfrute do que eles chamam de uma identidade e um conjunto de valores comuns. Uma memória social coletiva, duradoura, confiável, não obstante, constitui um prérequisito social indispensável à manutenção da organização de qualquer civilização. A cultura grega, por meio da poesia, foi capaz de desenvolver um enunciado ou paradigma linguístico complexo que permitisse manter a estabilidade e a autoridade, sem sofrer mudanças, na transmissão de uma pessoa para outra e de geração para outra geração. Esse paradigma posto em prática cresceu no interior da família e do clã de modo a dizer o que os homens eram, como deviam se comportar, sendo ensinado e exercido por sucessivas gerações. A única tecnologia verbal possível e disponível, contudo, que garantisse a continuidade e imutabilidade da transmissão oral e da fala rítmica, fora organizada habilmente em padrões verbais e rítmicos, singulares o suficiente para preservar suas formas. É esta a origem histórica, fons et origo, e a verdadeira função da poesia, a causa motora desse fenômeno. 50 51 THOMAS, 2005, p. 159. HAVELOCK, 1996, p. 58. 55 O mythos, no pensamento dos antigos helenos, de acordo com Grimal52, é entendido como uma narrativa acerca de deuses em que sua ação é sensível, mas a gênese do mundo não é posta em questão, e de herois que se limitam a realizar grandes atos de bravura, investir astúcias memoráveis, empreender longos exílios pelo mar superando a medida do humano, ainda que permaneçam na mesma essência que a humanidade. Nele, matiza-se a história e o mythos serve para apoiar ou explicar as crenças e os ritos religiosos. A palavra grega que servia para designá-lo, κῦζνο, aplica-se a qualquer história narrada, seja o assunto de uma tragédia ou a intriga de uma comédia, seja o tema de uma fábula de Esopo. Pieper53, a respeito da investigação acerca da questão ‗que é mito?‘, verificou que, segundo os dados dos dicionários - sobretudo o Greek-English Lexicon de Liddel-Scott, Oxford, 1958 - a palavra mythos pode significar na língua grega comum uma desconcertante multiplicidade de sentidos: palavras, discursos, conversa, provérbios; pode inclusive significar a palavra meramente pensada e não pronunciada, no sentido de plano ou projeto. Existe certamente um significado mais restrito de história, relato, saga, fábula; possivelmente incluso de preferência ao sentido de história inventada ―não verdadeira‖. A pluralidade de significados do nome responde a dos verbos denominativos mythēomai e mythologēo: falo, digo, conto ou invento uma história. Para Untersteiner54, mito ou ―mitopeia‖ é a expressão genuína e fundamental do gênio poético grego, pois é lícito afirmar que na Grécia antiga todo povo foi de certo modo poeta. Mas o que precisamente se deve entender pelo termo mythos? Estabelecer uma definição, para o termo, não é possível, uma vez que não existe um acordo entre os estudiosos do tema. Podese recordar, conquanto, este recente resumo descritivo que, para ele, parece ser plenamente aceitável: Mito é um conto (narrativa) religioso, cujos protagonistas são deuses, seres divinos e homens; suas ações se desenvolvem no mais longínquo passado: para os helenos, na idade anterior à invasão dórica. O mito, todavia, deve ser considerado como uma subdivisão do conto religioso. Por isso, é essencial serem o próprio protagonista, deuses ou heróis, e o distante passado, seu 52 GRIMAL, 1982, p. 8. PIEPER, 1984, p. 15. 54 UNTERSTEINER, 1991, p. 1-2. 53 56 tema, assim como, o do conto religioso em geral é constituído da revelação destes protagonistas, isto é, a partir de suas empresas – destino, tarefas, missões –, eficácia, atividades e também suas paixões. O conto religioso é, portanto, esta parte da manifestação religiosa, na qual a conexão do homem com os deuses se manifesta nas narrativas e em suas relações. De acordo com essa definição de mito de Pfister55, mythos é ainda uma parte da religião. O mito pode recorrer ao ritual, o nome pode ser etimologicamente transparente e elucidativo, as imagens podem apontar com os seus vários atributos para o culto e o mito, mas já o fato de o nome e o mito poderem ser transmitidos mais facilmente através do espaço e do tempo, e ainda porque as imagens saltam por cima de todas as barreiras linguísticas, os elementos acabam por ser dissociados uns dos outros para depois se combinarem de novo56. Untersteiner compilou as várias definições de mythos, que serão especificadas a seguir, e comparou-as em busca de solucionar uma das dificuldades que se encontram em delimitar o conceito de mythos, visto que o próprio conceito reside num ponto de contato entre mythos e religião. Mythos não é propriamente religião, pois sua forma definitiva é a da narrativa, conto, um véu que, sobretudo, os poetas puseram na religião. No entanto, se a religião é o desejo real de estar numa boa e justa ligação com o Poder que se manifesta no universo 57, a mitologia com suas explicações e ilustrações da natureza e do caráter dos deuses ou de outros poderes, ajudará o homem a colocar suas relações com eles numa base justa58. Por isso, ainda será possível dizer que o mundo mitológico é o mundo que se expande em forma de explicações divinas, segundo as preferências particulares deste59. Na origem mythos e religião (sagrado - ἱεξόο) eram idênticos, conforme o resultado inicial da investigação de Untersteiner (1991, p. 3), pois que a distinção entre as duas manifestações do espírito teve início quando os mythoí tomaram um fundo histórico, como já ocorreu com os mais antigos mitos da era micênica, ou quando se lhes matizem de um objetivo ético, ou alegórico, ou etiológico. O fato é que os mythoí estão contaminados de 55 PFISTER, 1930, p. 146. BURKERT, 1993, p. 244. 57 W. Warde Fowler. The Religious Experience of the Roman People. London: MacMilliam and Co, 1993, p.8. 58 E. A. Gardner. Mythology, ERE IX, p. 118-a. 59 Kerényi, Karl. What ist Mythology?, in «Europäische Revue», n. 15, 1939, p. 572. 56 57 motivos e exigências que nosso pensamento abstrato gostaria de distinguir, mas que é necessário deixar neles sua unidade originária. É necessário, neste momento, conforme Radermacher60, precisar a função gnoseológica do mythos: O mito fornece uma resposta às perguntas: quê? como? por quê?, frente ao mistério do nosso ser e do acontecimento cósmico. Trata-se, na verdade, de uma resposta não oferecida pela razão que investiga com rigor, mas pelo imaginar, pela imaginação, que intenta mudar aquilo que é obscuro, conturbante, ameaçador ou tranquilizante numa visão (imagem) fácil para o homem. Disso, segue-se que o mythos não flutua livremente como a fábula, mas está relacionado ao seu objeto que expressa algo. A concepção mítica é o primeiro impulso em direção ao conhecimento. Em sentido restrito, é apenas uma forma poética de compreender porque são geradas por inspiração. Talvez seja possível acomodar a definição de mythos como aquilo que está no meio, entre o problema e a solução; é aquele fio condutor que evoca a vida em todos os lugares, mesmo onde se encontra extinto. Brelich61, com o fim de entender a definição conceitual de mythos, afirmou que ―o mito é antes de tudo uma narrativa, que possui determinadas características de conteúdo e de forma. Quanto ao conteúdo, o mythos narra acontecimentos realizados num tempo antigo, geralmente anterior aos tempos dos quais ainda vive na memória ou de que existe uma documentação histórica, mas, sobretudo qualificada como diferente deste último período‖. Posterior a essa definição forneceu M. Eliade62 para quem ―o mito narra uma história sagrada; ela relata um evento que teve lugar num tempo primordial, o tempo fabuloso do ‗princípio‘. Em outras palavras, conta como, em favor de empresas sobrenaturais, uma realidade venha à existência, quer se trate de uma realidade total, o cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, um comportamento humano, uma instituição, etc.‖. Viver os mythoi resulta verdadeiramente numa experiência religiosa. Não se trata de uma comemoração de um evento, mas a sua repetição. As pessoas do mito são feitas presentes; tornam-se seus 60 RADEMACHER, 1938, p. 64-5. BRELICH, Angelo, 1958. 62 ELIADE, 1963, p. 15-16. 61 58 contemporâneos. Isto implica que não se vive mais em um tempo cronológico, mas no tempo primordial, em que o evento ocorreu pela primeira vez. Dirigindo-se para o núcleo do campo significativo que é o lugar dos mitos no sentido estrito da palavra, segundo Pieper (1984, p.18), são os relatos (narrativas) acerca da origem do cosmo, da história primitiva da felicidade e da desgraça, do destino dos mortos, do julgamento e da recompensa no mais além. Estas definições de mythos capturam uma etapa crucial que envolve sua própria validade universal, e é o que Cassirer63 havia detectado, ou seja, que o verdadeiro caráter dos seres míticos remonta em última análise ao caráter sagrado da origem. Certamente não é inerente ao conteúdo dado, mas a sua origem; não à sua qualidade, mas ao seu vir a ser. Mais sucintamente se dirá com Paula Philippson64 que a ordem nascida do encontro do ser com o vir a ser se contempla por meio do mito. Esta fixação do mito em um passado único e exemplar transforma o mito em forma eterna, paradigmática. Aquela racionalidade, que está localizada na base do pensamento mítico, como aponta Untersteiner (1991, p. 8), se desdobra ao longo dos tempos em possibilidades infinitas: gradualmente o pensamento lógico é construído e organiza cada vez mais, pré-formado em representações míticas, as próprias categorias. O discurso mítico, por sua vez, não tinha nenhuma pretensão científica. A principal diferença entre mythos e ciência, ἐπηζηήκε, é que aquele se desinteressa em essência e, precisamente no interesse, ou seja, na medida em que se entende interesse etimologicamente como ―estar dentro (inter > esse) do ser (esse > ser)‖. A ciência moderna, como observa Mantovaneli (2011, p. 21), consiste na separação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser apreendido, para o pensamento mítico essa separação não faz o menor sentido. O todo sem a parte não é todo e a parte sem o todo não é nada. O mythos se opõe ao ιόγνο assim como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Lógos e mythos, na perspectiva de Grimal (1982), são as duas metades de uma linguagem, isto é, duas funções igualmente essenciais da vida do espírito. O lógos, sendo uma argumentação ou raciocínio, pretende convencer; implica naquele que ouve, a necessidade de formular uma razão, juízo. O lógos é verdadeiro, no caso de ser justo e 63 64 CASSIRER, 1964, p. 151. PHILIPPSON, 1949, p. 25. 59 conforme uma razão, é falso quando assimila alguma burla secreta, um ―sofisma‖, uma falsa pretensão de saber. A narrativa mítica tem por finalidade apenas a si mesma. Nela acredita-se ou não, segundo a própria vontade, mediante um ato de crença, caso pareça belo ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. Desse modo, ela atrai em torno de si toda parcela do irracional que existe no pensamento humano; por natureza é arte, em todas as suas criações. Talvez esse seja o aspecto mais marcante do mito grego: pode-se constatar sua integração em todas as atividades do espírito65. Nas cidades como Atenas, conforme Finley66, o saber ler, escrever e narrar era, ao que parece, comum entre os cidadãos livres. A educação não ficava a cargo do Estado, a não ser no que tange ao treinamento militar e o ginásio, e até meados do século V o ensino regular se detinha ao nível dos conhecimentos elementares. A formação profissional se adquiria habitualmente no lugar ou por meio da aprendizagem. Mas, por outro lado, não seria justo dar muita importância ao que significou para aquela cultura a palavra escrita, visto que os gregos preferiam dialogar e ouvir, ou seja, seus próprios princípios são a de um povo afeiçoado pela conversa. Em sua própria arquitetura encontramse não somente grandes teatros abertos ao público e as construções em que aconteciam as assembleias; mas também a principal característica de todas as edificações gregas, o estoá, ζηνά, o pórtico, as arcadas cujo teto é sustentado por colunas. A Grécia, na verdade, possuía uma cultura baseada na oralidade, isto é, tudo era transmitido pela apresentação oral, quer por meio do aedo, quer pelo teatro, pelos jogos olímpicos, dentre outros. A função da poesia no contexto cultural se configura como o melhor meio de preservar a transmissão da tradição da cultura grega: leis, costumes, paideia, etc. Isso porque, para o estudo da poesia grega - ainda que seja necessária uma transparente imaginação para visualizar a apresentação da poesia helênica - é essencial que se perceba que grande parte dela era acompanhada por música e até mesmo por dança parte integrante de sua expressão cultural. Na realidade, a maioria dos helenos teve essa experiência a partir de sua própria expressão cultural como algo recitado ou, ainda, através dos espetáculos. Era puramente uma questão de ouvir e de ver, contemplar, em vez de ler ou ver a página escrita. 65 66 GRIMAL, 1982, p. 9. FINLEY, p. 95. 60 Uma ampla variedade havia de modos de apresentação: desde a recitação do rapsodoretórica rítmica, lírica coral e não-coral, poesia elegíaca, hinos aos deuses em festivais religiosos políticos, peãs em honra de Apolo, odes de vitórias nos jogos, contos em casamentos e funerais, cantos matrimoniais, cantos virginais, nênias até as atuações retóricas dos oradores, que se esforçavam para dar a impressão de improvisação, ou as ―leituras‖ atribuídas a historiadores como Heródoto. A apresentação de poesia, contudo, deixou de ser inteiramente central à vida grega entre o final do século V e início do século IV. A arte retórica, a mais alta forma de representação, apenas começou a se formalizar no último terço do século V, e estava sendo desenvolvida bem na época em que os mecanismos da democracia direta em Atenas requeriam mais do que nunca que os políticos fossem capazes de persuadir. Devido à especificidade da tradição politeísta das divindades helênicas, como observa Burket (1993, p. 245), somente uma autoridade pode introduzir uma ordem na confusão de todas essas tradições que, na realidade, são cultos muitos semelhantes com nome de deuses – Zeus, Ártemis, Afrodite, Hera, Posídon, Asclépio, Apolo, dentre os restantes. A unidade espiritual dos gregos foi criada e preservada pela poesia que, vindo ainda do domínio da oralidade, reuniu a liberdade e a forma, a espontaneidade e a configuração. Ser grego significa ter formação, e o fundamento de toda a formação era Homero. Na visão histórica e científica de mythos, Baccou67 acredita que Homero era conhecedor das diversas técnicas dos artesãos de seu tempo: o ραιθεύο, metalúrgico que trabalha com o bronze; o θεξακεύο, ceramista; o ηέθησλ, carpinteiro ou marceneiro, o ζθπηνηόκνο, sapateiro. Homero aprendeu sobre as matérias-primas que se usam, e notavelmente os metais ouro, prata, bronze, chumbo, ferro. Numa das passagens da Odisseia (canto IX, v. 391 ss), ele indica o método de têmpera do bronze e do ferro, do mesmo modo que distribuiu, de forma perfeita e detalhada, a feitura metalúrgica e artística do deus Hefesto nas cinco camadas do escudo de Aquiles, no canto XVIII, v. 485-526, da Ilíada. É interessante também mencionar os conhecimentos náuticos e astronômicos de Homero, que revelam uma experiência e observações assaz longas, bem como seus conhecimentos em botânica68. Mas, é, sobretudo, acerca da medicina que o poeta claramente 67 68 BACCOU, 1951, p. 37-8. Sobre astronomia em Homero pode-se consultar: Anton KRICHENBAUER, Beiträge zur homerischen 61 conhecido como ‗educador da Grécia‘ nos forneceu documentos surpreendentes. Na Ilíada e na Odisseia, por exemplo, mais de cento e cinquenta termos característicos relativos à anatomia do corpo humano serão encontrados posteriormente, em sua maioria, na nomenclatura do vocabulário de Hipócrates. A importância de Homero para a religião helênica pela maneira de falar dos deuses devia estar patente já na tradição épica mais antiga, para qual apontam as formulações linguísticas, bem assim como os paralelos orientais. Na mitologia existiam histórias meramente sobre os deuses, as lutas dos deuses, os casamentos dos deuses. Herois poderosos podiam enfrentar os deuses diretamente, como Gilgames fez com Ister, Hércules com Hera. Na epopeia grega os heróis poderosos são filhos de deuses ou, pelo menos, netos de deuses69. Desse modo, os deuses são espectadores, mas intervêm rapidamente quando se sentem afetados. Isto, a avaliar pelas formulações utilizadas, deve ser também pré-homérico. O mesmo se pode dizer relativamente ao artifício sofisticado segundo o qual a intervenção divina se manifesta primordialmente no domínio psíquico: um deus envia ou lança coragem ou desespero, astúcia ou cegueira ―para dentro‖ dos homens. Quanto ao que se opera no homem – o modo como se manifesta o se comportamento – tanto o início como a decisão encontram-se nas mãos dos deuses70. Na composição da Ilíada, o palco duplo do «dispositivo divino» é utilizado de um modo especial, não só para o lado divino motivar o humano, mas também para que ambos se reflitam um no outro, nos seus paralelos e nos seus contrastes. Os deuses, de vida fácil, são o mundo inverso do dos mortais. A Odisseia também utiliza o palco duplo da ação divina e da ação humana. Uma assembleia de deuses abre e fecha o poema. Não obstante, dentre eles é praticamente só Atenas que desempenha um papel ativo. A ação conducente ao que é justo e bom tornar-se, mais do que na Ilíada, num plano divino71. Após essa breve incursão nos domínios da poesia homérica, é relevante expor acerca de outro grande e importante poeta grego, que muito contribuiu para educação do povo helênico, Hesíodo que viveu, como se sabe, no VIII século. Com ele nasceu uma poesia evidentemente didática, e com ele também os mitos se coordenam e tomam uma forma mais lógica, em que Uranologie (Wien, 1874). Sobre a botânica: Stephan FELLNER, Die homerischen Flora, Wien, 1897. 69 BURKERT, 1993, p. 247. 70 SNELL, 1961, p. 4. 71 BURKERT, 1993, p. 248. 62 se descreve uma pressuposição de ciência. Assim como Homero, Hesíodo era um homem perfeitamente instruído nas coisas de seu tempo. As obras que nos restaram, notadamente Trabalhos e Dias, estão repletas de indicações precisas sobre agricultura, calendário rústico, navegação, meteorologia dos Antigos, dentre outros temas. Ao lado de Homero, Hesíodo, figura de poeta original e tangível, na Teogonia, criou um livro fundamental da religião grega. Na grelha da genealogia, da procriação e do nascimento, os poderes do universo e, sobretudo, os deuses dominantes, são representados numa articulação impressiva e com sentido72. Os deuses são representados em três gerações, das quais a segunda alcança o poder através de uma ação monstruosa, a castração do Céu por Cronos, enquanto a terceira vence os Titãs sob a liderança de Zeus numa grande batalha e estabelece o domínio duradouro da ordem justa que Zeus consegue defender mesmo contra a revolta de Tifos. Hesíodo, certamente, expõe seu pensamento segundo um modo muito poético, frequentemente simbólico, mas há nele a intenção de busca da verdade. Essa sede de busca da verdade é, de fato, como a intenção dominante da filosofia grega, da sua origem a seu termo; talvez seja até o que a caracterize mais. O duplo olhar de Hesíodo ―filosófico-poético‖ está ligado à matéria, à terra, e profundamente ao religioso: em Trabalhos e Dias se manifesta pelo olhar que o poeta deposita na família – é o primeiro filósofo da família e do trabalho –; e na Teogonia nos desvela seu olhar de ―teólogo‖, procurando os primeiros, as fontes primeiras da genealogias dos deuses e descobrindo os três absolutos além dos quais o sábio não pode mais nada: ἦ ηνη κὲλ πξώηηζηα Χάνο γέλεη᾽, αὐηὰξ ἔπεηηα Γαῖ᾽ εὐξύζηεξλνο, πάλησλ ἕδνο ἀζθαιὲο αἰεὶ ἀζαλάησλ, νἳ ἔρνπζη θάξε ληθόεληνο ὆ιύκπνπ, Σάξηαξά η᾽ ἠεξόεληα κπρῶ ρζνλὸο εὐξπνδείεο, ἠδ᾽ Ἔξνο, ὃο θάιιηζηνο ἐλ ἀζαλάηνηζη ζενῖζη, ιπζηκειήο, πάλησλ δὲ ζε῵λ πάλησλ η᾽ ἀλζξώπσλ δάκλαηαη ἐλ ζηήζεζζη λόνλ θαὶ ἐπίθξνλα βνπιήλ.73 Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, 72 73 BURKERT, 1993, p. 249. HESIOD, 1914, 116-122. 63 e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. 74 Esse olhar filosófico ainda tão poético, unindo ainda o ιόγνο e o κῦζνο e desvelando, no entanto, realidades tão profundas, tão radicais, é a um só tempo olhar muito realista e projeção psicológica da alam religiosa sobre os deuses.75 Hesíodo tem em comum com Homero, consoante Burket (1993, p. 250), a técnica altamente desenvolvida da velha epopeia. Um indício conspícuo do estilo, que simultaneamente alivia consideravelmente a construção do verso, são os epítetos, sobretudo os dos deuses. Por seu intermédio é marcado um traço essencial de cada deus, o qual está impresso na memória pela repetição constante: Zeus que amontoa as nuvens, o moreno Posídon, Hera de braços brancos, a dourada Afrodite, Apolo com o arco de prata. Ainda mais importante, contudo, é a arte de narração que cria um mundo próprio, onde os deuses falam, agem e reagem como homens. De um ponto de vista diferente, a Teogonia merece uma menção especial: é sem dúvida uma obra de caráter puramente mítico e que, como tal, não parece ser diretamente interessante à história das ciências. Os filósofos modernos, por exemplo, estudaram essa mentalidade que eles chamam primitiva e a definem, de fato, como uma espécie de alucinação vaga da alma coletiva. Considerada assim, como um sonho de um povo infantil, não parece ter nenhuma relação, mesmo distante, com o pensamento científico. De acordo com Baccou (1951), entretanto, essa concepção, é extremamente sintética, pois procede sem examinar os dados sobre os quais se pretende fundar, e sem ocupar com o mito em geral, deve-se dizer que, em relação aos mitos helênicos, ela se revela absolutamente inapropriada. A mitologia grega - levando-se em consideração os deuses, personificação da natureza e causas secundárias do cosmo - reduzida ao essencial, é bem mais explicativa que imaginativa. e, certamente, reconhece-se que a explicação está em função da imaginação, mas de uma imaginação clara, nítida, que cumpre inconscientemente às leis da lógica, e que, mais tarde, 74 75 Teog., 2007, p. 109. PHILIPPE, 2002, p. 15. 64 retirada de sua disposição mítica e poética, fornecerá os esquemas de pensamento científico. Isso porque, ao analisar o período homérico e hesiódico, Baccou (1951) acreditava que não é inútil observar que o trabalho de unificação e de síntese mítica que se opera no VIII e VII séculos, e de que Teogonia de Hesíodo é o mais antigo e célebre monumento. Pode-se concluir que o mito grego não é uma alucinação coletiva, e também não é um ‗sonhar acordado‘ de uma mentalidade pueril, mas é tal qual aparece em Hesíodo: o primeiro esforço de uma explicação simbólica da natureza, ou seja, um pressuposto por imagens das primitivas sínteses do pensamento científico. A evolução do mito, no final do VIII e VII séculos, preparou e restituiu, na medida do possível, a interpretação naturalista dos fenômenos que aparecerão na Escola de Mileto. A refutação filosófica aos poetas, no entanto, vai além de uma reconfiguração das Musas76. Filósofos como Xenófanes, Heráclito, Parmênides e Platão constroem seu mundo intelectual em oposição ao conteúdo e exposição das narrativas poéticas. A produção poética do período arcaico implicou no uso do mythos. As narrativas da poesia épica, em seus mythoi, estão repletas de material mitológico. Mythos não era reconhecido como um gênero narrativo universal, mas o mundo dos poetas era um mundo de mýthoi. Os poetas não habitam um mundo diferente dos filósofos, mas operaram por diferentes critérios: a história dos filósofos, por exemplo, implicou numa fundamentação particular entre mito e filosofia, e qualificou o mito como irracional. Mito torna-se ―outro‖ e a oposição que se conhece por mythos versus lógos ou mythos versus ciência e racionalidade veio a ser. A oposição entre mythos e filosofia, por um lado, influenciou toda recepção ocidental do pensamento filosófico grego. Esta influência, entretanto, arrisca-se cegando-nos do importante papel representado pelo mythos na filosofia grega, não apenas como invólucro, mas como um modo de pensamento e de demonstração filosóficos. A interação entre mythos e filosofia, por outro lado, em que se podia esperar a rejeição do modelo de inspiração poético e do conteúdo de suas obras pelos filósofos, na verdade, não aconteceu. A presença de elementos da mitologia tanto na deusa de Parmênides ou no cocheiro das almas de Platão requer esclarecimentos. O início da filosofia científica não coincide, portanto, nem com o pensamento racional 76 MORGAN, 2000, p. 3. 65 nem com o fim do pensamento mítico77. Encontramos ainda a mais genuína mitologia, deste modo, no núcleo da filosofia de Platão e de Aristóteles como no mito platônico do destino da alma após a morte ou na intuição aristotélica do amor à coisa verdadeira em direção ao motor imóvel do mundo. A intuição mítica sem algum elemento informante do lógos é cega, e o conceito lógico sem algum núcleo vivo de intuição mítica original torna-se vazia. Segundo esse critério, a história da filosofia grega deve ser considerada como um processo de progressiva racionalização da original consciência religiosa do mundo, baseada no mito. Da relação entre mythos e pensamento abstrato tinha sido advertido desde Aristóteles, ao afirmar que uma estreita equivalência medeia entre o mitológico (θηιόκπζνο) e o filosófico (θηιόζνθνο); além de que existe uma continuidade entre Hesíodo e alguns naturalistas. Mesmo assim, acontece que o sábio, absorvido pela riqueza de profundidade, não tendo o tempo de renovar a explicação geral da coisa, a aceita sem controlá-la, como lhe oferece o mito. O pensamento helênico, contudo, abandonará seu mythos, depois paulatinamente se desintegrará e o lógos triunfará78. No mundo grego, para outros, este triunfo não parece ser duradouro, visto que com a dissolução do mythos e o enfraquecimento dos deuses da mitologia, o lógos em pouco tempo e no mesmo ritmo perderá toda a força dialética e construtiva para a força sufocante do misticismo. Com a ascensão da filosofia, o contributo mais original dos gregos para a tradição intelectual da humanidade, irrompe finalmente na mudança e na revolução das estruturas estáticas da religião grega. A partir desse momento, o mythos sucumbe gradualmente ao lógos e o arcaico dá lugar ao moderno. O que se altera, na verdade, quando a filosofia aparece em cena é a perspectiva e o modo de colocar as questões79. A linguagem natural sem forma só tem sentido na medida em que se refere a um objeto. Este objeto é concebido na sua forma mais geral como o ―ente‖, o qual em grego tem uma forma plural: tà ónta. Os primeiros textos em prosa eram leis e instruções práticas reunidas nos primeiros ―manuais‖. A filosofia surge com a tentativa de dizer simplesmente o que é correcto igualmente para ―tudo‖. Assim, os objetos favoritos destas explicações começam por 77 UNTERSTEINER, 1991, p. 207. UNTERSTEINER, 1991, p.8. 79 BURKERT, 1993, p. 581. 78 66 ser as ―coisas no céu‖, metéora, as ―coisas debaixo da terra‖ e o início, arché, partindo do qual tudo se tornou aquilo que é. É precisamente o que se consta no prelúdio do diálogo Timeu, no excerto 29b2-3: κέγηζηνλ δὴ παληὸο ἄξμαζζαη θαηὰ θύζηλ ἀξρήλ. O mais importante de tudo é iniciar-se (pelo) o princípio conforme a natureza. O fato de o mundo ter de ser concebido como uma unidade a partir de um início, de existir um devir, phýsis, na tradição latina natura, com leis próprias que o homem não pode influenciar, de o mundo existente ser em última instância, ―ordem‖, kosmos, tudo isto são postulados que foram assimilados da tradição sem qualquer reflexão, mas que vão ser explicados pelos novos conceitos. A ordem, que a realidade parecia começar a pôr em causa, será restaurada através de um projeto intelectual global. A forma do mythos, a narração sobre o passado, também é assimilada da tradição com naturalidade, para ser utilizada na descrição da gênese do mundo80. O evoluir gradativo do pensamento grego, a partir de sua mais remota origem até a sofística, pode ser definido como uma transição do mythos para o lógos, considerando-o, a partir disso, como um princípio claro. É preciso penetrar mais profundamente na história do mythos helênico, a fim de descobrir as infinitas raízes que o ligam ao verdadeiro, ainda obscuro e remoto, e, todavia, presente com uma eterna vitalidade para as criações da imaginação tão predestinadas a impor os grandes problemas do pensamento filosófico e sugerir soluções81. Deve-se, no entanto, referir às origens desta civilização, remontando a espiritualidade helênica, para que seja possível reconstruir os conceitos que, ricos em conteúdo, se desenvolveram refletindo-se em múltiplos aspectos abundantes em problemas e em suas respectivas soluções. O trabalho do lógos foi o de discernir uns e elaborar outros. Tales de Mileto é considerado o iniciador da filosofia e da matemática82 entendidas como busca do princípio, de alguma realidade natural (uma ou mais de uma) da qual todas as outras coisas derivam, ao passo que ela continua a existir imutável, conforme Aristóteles 80 BURKERT, 1993, p. 583. Este problema foi indicado por Untersteirner na crítica ao livro de Nestle, em ―Mondo Classico‖ 12 (1942), 34, p. 85-6. 82 CATTANEI, 2005, p. 22. 81 67 pontuou na Metafísica (A 3, 983b20-21). Foi o primeiro que, tendo ido ao Egito, onde a geometria nasceu para responder as necessidades práticas, trouxe de lá essa doutrina e a introduziu na Hélade, e ele próprio fez muitas descobertas e, de muitas, deixou uma ideia a seus sucessores, abordando alguns problemas de modo mais geral e outros de modo mais prático83. Tales aparece em primeiro lugar na lista de Platão dos ―Sete Sábios‖, aos quais se atribui a primeira definição, ainda que empírica, de regras gerais de comportamento84. E Tales também conhecia as regras dos mecanismos celestes, se é verdade que previu um eclipse do sol e se enriqueceu ao calcular que, em determinado ano, a colheita de azeitonas seria 85 excepcionalmente abundante. Com Tales, ―o mais importante, sem dúvida, entre estes sete homens famosos por sua sabedoria, o primeiro descobridor da geometria, o seguríssimo observador da natureza, o doutíssimo estudioso das estrelas‖, o esforço de organização racional que anima matemática e filosofia já considera também as disciplinas físicomatemáticas, particularmente a astronomia e, sobretudo, a própria conduta de vida. O pensamento lógico se expandirá ao longo de uma admirável linha contínua até o momento em que se extingue, no sentido de originalidade, ou seja, a energia criativa do pensamento religioso e mítico. O lógos, tendo sido tornado superno, assume a direção do pensamento helênico. O início desta supremacia se efetua por obra da era da sofística. O século V, embora fértil, no que concerne a produção literária helênica, estava longe de ser considerado uma era de rabiscos, em razão de os gregos ainda preferirem obter conhecimento através dos ouvidos (oralidade) ao invés dos olhos (escrita). Os antigos rapsodos desapareceram gradualmente, mas seu lugar na vida pública da Grécia foi preenchido por um novo representante: o sofista86. Os sofistas de Olímpia e de outras partes usavam a mesma vestimenta púrpura, participavam dos mesmos grandes festivais e proferiam as mesmas discussões e panegíricos, em lugar dos antigos poemas heroicos, que antes reuniam os viajantes. Por outro lado, elaboram leituras em diversos pequenos círculos sociais que, a partir disso, pode-se mensurar 83 Comentário de Proclo ao primeiro livro dos Elementa de Euclides, Elementorum librum commentarii: G. Friedlein, Procli Diadochi In primum Euclidis Elementorum librum commentarii, Lipsiae, 1873, reimpr. Hildesheim, 167, p. 65. 84 Cf. Protágoras, 343a. 85 Cf. 11 A 19 Diels-Kranz. 86 GOMPERZ, 1920, p. 412. 68 a revolução que ocorreu na educação dos jovens pouco antes do último terço do século. O movimento sofista, do ponto de vista da degeneração das boas e velhas tradições, em particular a moral e a religião, como observa o estudo da religião grega antiga e arcaica de Burket (1993, p. 591), tinha como verdadeiro objetivo o valor mais elevado da moral tradicional, designadamente a distinção conquistada através do empenho e do sucesso, areté, ―o que é o melhor‖, um conceito que só incorretamente pode ser traduzido por virtude. A novidade era que homens que iam de cidade em cidade prometiam, em troca de um alto honorário, ensinar esta areté, ou seja, ―tornarem melhores‖ as pessoas. Tratava-se, portanto, do desenvolvimento de uma ―educação superior‖ como meio de ascensão social. A mobilidade social era acrescentada à mobilidade local. Protágoras foi o mais famoso, e talvez o primeiro, dentre os Sofistas profissionais, que adestrava os outros para a profissão, assim como para a vida pública. Era muito conhecido em Atenas, a qual visitou muitas vezes, além de fazer amizade com Péricles. Muitas de nossas informações sobre o pensamento de Protágoras são oriundas dos diálogos de Platão, e, por conseguinte nossa mensuração de suas realizações filosóficas depende, em certa medida, do valor histórico que estamos dispostos a concedê-las. No debate intervieram numerosos especialistas e, provavelmente, nunca se conseguirá um acordo total. Há algo, entretanto, que não se pode utilizar contra a veracidade de Platão: seu objetivo de denegrir ou destruir a fama de Protágoras. O respeito com que trata suas opiniões é mais impressionante ainda, se se tem presente seu profundo desacordo com elas87. O objetivo da educação de Protágoras era, sobretudo, prático, e consoante as necessidades do momento o baseara amplamente na arte do discurso persuasivo, exercitando seus alunos para arguir em favor das faces de uma mesma hipótese e fornecendo exemplos para demostrar suas teses de que existem argumentos contrários em cada questão. A arte dos lógoi se adquiria mediante vários exercícios, que incluíam o estudo e a crítica dos poetas (os antecessores dos Sofistas na educação para a vida), e a análise e a crítica das formas usuais de linguagem. A legitimidade em adotar um ou outro aspecto de um argumento, segundo as circunstâncias, se apoiava em teorias do conhecimento e do ser que constituíam uma reação extrema contra a antítese eleata do conhecimento e opinião, que eram uma verdadeira e a 87 GUTHRIE, 1994, p. 258-260. 69 outra privada de confiança genuína. Conforme Guthrie (1994, p. 262), não existia a falsidade, e ninguém podia contradizer o outro ou dizer-lhe que se equivocava, porque o homem era o único juiz de suas próprias sensações e crenças, que eram verdadeiras para ele na medida em que lhe pareciam ser assim. O mito é deixado para trás. A palavra mythos, obsoleta na Ática, é desvalorizada e passa a designar o que os antigos poetas narravam e que agora já só se conta às crianças (Plat., Prot., 318d-e). Um sofista pode utilizar um mito como forma de ocultar ou embelezar o que pretendia dizer. Mas já não é possível utilizá-lo para contar uma história que cause espanto e deleite a uma audiência e que sirva de chave para o entendimento de uma realidade complexa. Surgem as objeções, os argumentos e os contra-argumentos, o lógos, no sentido de uma argumentação coerente na discussão entre indivíduos críticos. ―A cada discurso opõe-se um outro discurso‖, ensinava Protágoras (A 20; B 6a)88. As exigências da vida política e as reivindicações de uma crescente atividade intelectual já não se satisfaziam com a antiga escassez de instrução dos elementos de leitura, escrita, aritmética, que junto com a música, a ginástica, e por fim a pintura formavam o currículo completo de ensino. A essência do ensino continha as ciências éticas e políticas, ou nos fundamentos como foram construídas ou em fase de construção. A arte da eloquência, contudo, a alta relevância e o constante cuidado eram a alma da prática política. Na concepção teológica, no entanto, com o novo prazer em experiências intelectuais radicais, podia-se tirar agora as devidas consequências sem o obstáculo da tradição, ou seja, se se pretende conceituar as divindades, o que são e como se constituem: elas não devem ter figura humana89; não só de ser incorruptível, como também nunca ter sido gerado; deve ser autossuficiente e não carecer de nada, o que constitui a sua força e a sua felicidade; deve atuar através do seu espírito onisciente e que tudo governa. Empédocles, por sua vez, incorporou uma passagem teológica em seu poema sobre a natureza, um discurso elogioso sobre os deuses sagrados.. Não são figuras humanas ou figuras híbridas que devem ser imaginadas, mas somente o pensamento sagrado, inexprimível, que se precipita por todo cosmo com pensamentos velozes: νὐθ ἔζηηλ πειάζαζζαη ἐλ ὀθζαικνῖζηλ ἐθηθηόλ 88 89 BURKERT, 1993, p. 592. Como aponta Burkert (1993, p. 601-2), o antropomorfismo deixou de ser defendido seriamente. 70 ἡκεηέξνηο ἢ ρεξζὶ ιαβεῖλ, ἧηπέξ ηε κεγίζηε πεηζνῦο ἀλζξώπνηζηλ ἁκαμηηὸο εἰο θξέλα πίπηεη.90 Impossível é trazer [o divino] até ao alcance dos nossos olhos ou agarrá-lo com as mãos — se bem que seja esta a principal via da persuasão que penetra na mente dos homens. 91 Heráclito afirmava que todas as leis humanas se nutrem do uno, do divino: μὺλ λ῵η ιέγνληαο ἰζρπξίδεζζαη ρξὴ η῵η μπλ῵η πάλησλ, ὅθσζπεξ λόκση πόιηο, θαὶ πνιὺ ἰζρπξνηέξσο. ηξέθνληαη γὰξ πάληεο νἱ ἀλζξώπεηνη λόκνη ὑπὸ ἑλὸο ηνῦ ζείνπ· θξαηεῖ γὰξ ηνζνῦηνλ ὁθόζνλ ἐζέιεη θαὶ ἐμαξθεῖ πᾶζη θαὶ πεξηγίλεηαη. 92 Os que falam com juízo devem apoiar-se no que a todos é comum, como uma cidade deve apoiar-se na lei, e com muito mais confiança. Pois todas as leis humanas são alimentadas por uma só, a lei divina; é que ela tem tanto poder quanto quer, e para tudo ela é bastante e ainda sobra.93 Anaxágoras ensinava que o noûs, tudo move e governa, mas não o denomina explicitamente deus (VS, 59 B 12). Diógenes de Apolónia, contudo, que identifica este noûs de Anaxágoras com o ar, não tem qualquer escrúpulo em aplicar os nomes «Deus» e «Zeus» a este «corpo eterno e imortal» que tudo impregna e governa como a mais sutil das substâncias (VS, 64 B 5, A 8). Com Platão é possível falar do divino e de sua relação com o homem com um tipo inteiramente novo de segurança intelectual, por meio de conceitos e demonstrações. Onde anteriormente os poetas tateavam entre a imagem e frase ou onde os oráculos formulavam enigmas ambíguos, surge agora uma doutrina do ser que conduz diretamente a Deus. O Sócrates de Platão encontra-se em oposição aos sofistas pelo fato de ele, em vez de ostentar pretensos conhecimentos, questionava de modo mais profundo e fundamental. Prometendo simplesmente a areté, os sofistas fracassam quando colocados perante a questão socrática sobre o que faz a «virtude» verdadeiramente virtude e o «bem» verdadeiramente bem94. O termo ζνθηζηήο, ou sofista, segundo Gomperz (1920, p. 416), deriva do adjetivo ἖ΜΠΔΓΟΚΛΉ΢, Περὶ θύζεως, Βηβιίνλ γʹ, Clem. Alex., Strom. V 81,2 (Diels-Kranz 31, B 133), no site www.hs-augsburg.de/~harsch/graeca/Chronologia/S_ante05/Empedokles/emp_phy3.html 91 KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 2010, Fr. 133, Clemente Strom, v, 81, 2, p. 327. 92 ἩΡΆΚΛΔΗΣΟ΢, Ἀποζπάζμαηα, Fragmentum B 114, no site http://www.hsaugsburg.de/~harsch/graeca/Chronologia/S_ante06/Herakleitos/her_frag.html. 93 KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 2010, parte do Frag.114, Estobeu Anth. III, 1, 179 p. 219. 94 BURKERT, 1993, p. 609. 90 71 ζνθόο, sábio, e diretamente do verbo ζνθίδνκαη, pensar ou conceber. Desse modo, significa originalmente mais ou menos um homem que atingiu um sucesso eminente em alguma faculdade ou em outra. Aplicou-se o nome sofista aos grandes poetas, a importantes filósofos, músicos famosos e a sete sábios cujas máximas fizeram-nos renomados tanto na vida pública quanto na privada. A princípio, a palavra parece ter adquirido uma nuance favorável ao menos no início a nuance deve ter sido muito leve, caso contrário Protágoras e seus sucessores nunca teriam escolhido o título para eles mesmos. Platão condenou a toda classe de sofistas da sociedade grega vigente. Seus maiores estadistas pareciam-lhe tão desprezíveis quanto os poetas e outros líderes intelectuais. Nesse caso, no entanto, o criticismo platônico atinge o alvo. Vemos seus sofistas mensurando a si mesmos com Sócrates em dialéticos ataques e eles a sofrerem completa derrota. Os diálogos em si eram pura ficção, mas esse traço particular pode ser tomado como um fato histórico 95 que nos permite visualizar como se procediam o campeonato de Sócrates, em forma dialética, com efeito, um incontestável título de notoriedade e é um dos segredos de sua influência na posterioridade. A capacidade de falar com sentido e coerência, todavia, não nasceu apenas com o chamado ―pensamento lógico‖, como também não apenas com o pensamento racional nasceu a necessidade de buscar a causa dos fatos e de conceber a sucessão de dois acontecimentos como necessária relação de causa e efeito. O pensamento mítico também se preocupou com a relação etiológica; a busca da origem do mundo, por exemplo, dos fenômenos da natureza, dos homens, das suas instituições, usos, instrumentos, e assim por diante96. O contraste entre imagem mítica e pensamento lógico delineia-se, claro e preciso, na interpretação causal da natureza. Nesse campo, também a passagem do pensamento mítico para o lógico adquire uma evidência imediata: aquilo que, nos primeiros tempos, era interpretado como obra de deuses, de demônios e de heróis será mais tarde interpretado em sentido racional. A causalidade mítica, como reflete Snell (2012, p. 226), não se limita, porém aos fatos naturais, passíveis de serem explicados pela lei de causalidade científica: ela diz respeito, sobretudo, à origem das coisas e à vida, fenômenos cujas causas não se podem determinar exatamente. 95 96 GOMPERZ, 1920, p. 420. SNELL, 2012, p. 217. 72 O pensamento mítico não se limita a explicar as causas, e também serve, por exemplo, para o entendimento do ser humano, é evidente que o pensamento mítico e o pensamento lógico não cobrem um único e mesmo campo. Assim como muitas coisas do mundo mítico permanecem inacessíveis ao pensamento lógico, assim também muitas coisas novas, descobertas no campo da lógica, não podem ser substituídas por nenhum elemento mítico. Diz-se impropriamente de um contraste entre mito e logos fora do âmbito da interpretação causal da natureza, na medida em que o mito diz respeito ao conteúdo do pensamento e a lógica, à forma. Para os filósofos da época clássica, adquire cada vez maior importância aquele setor da experiência que se possa dominar com o pensamento, que satisfaça às severas exigências da repetibilidade, da identidade e da não-contradição. Mas são assim postas de lado muitas coisas, ou seja, o fator vital propriamente dito; e não só o significado, mas também o valor de cada acontecimento escapa ao controle do pensamento, como já fica evidente no fato de um confronto só ser possível em limitadas categorias da língua. Dentro desse campo limitado, os gregos elaboraram um severo método de pensamento; aqui as formas iniciais, como constata Snell (2012, p.228), foram coerentemente desenvolvidas em relação a um fim determinado. Construíram eles, assim, a base sólida não só da ciência natural de seu tempo, mas também das dos tempos modernos. Ao revelar-se aí a possibilidade de um uso o mais absolutamente seguro da conclusão analógica e de um progresso científico consequente, essa forma de pensamento foi tomada como modelo na tentativa de se alcançar precisão semelhante também em outros campos (por Platão, por exemplo). Dedicando-se, não obstante, a um acurado estudo àquelas categorias da língua que se desenvolveram no pensamento das ciências naturais, talvez se possa contribuir para abrir caminho em direção a uma nova lógica (ou talvez a duas) que também responda às exigências do que não se inclui no campo das ciências naturais. Na língua acha-se em germe, apesar dos limites da língua grega, tais como se revelam na concepção dos números e das formas de ação do verbo, a estrutura do espírito humano, que só desabrocha por completo no desenvolvimento do discurso e, finalmente, no pensamento filosófico. Há uma tripartição que permeia todo o edifício da gramática (pelo menos da indogermânica); essa tripartição fixa as possibilidades do pensamento filosófico e já coloca as 73 bases das três formas fundamentais da filosofia nos três diferentes gêneros da poesia; respectivamente na épica, na lírica e no drama97. O pensamento científico representa apenas uma das formas que se acham em germe na língua; mas nenhuma outra se desenvolveu de forma tão coerente no pensamento humano, e nenhuma outra formação conceitual tanto se distanciou da língua falada. Mas em nenhuma outra língua aparece com tamanha evidência como na língua grega, a maneira pela qual os conceitos das ciências naturais surgiram do terreno da língua e com quais raízes ainda agora nele imergem, visto que o grego, na ciência natural, soube dar autonomia ao lógos em relação à língua. O mesmo vale, porém, para as duas outras formas do pensamento, e talvez por isso possa o grego um dia ajudar-nos a resolver o problema de como poderá a filosofia, através da fusão das três distintas categorias do pensamento, reconquistar aquela unidade que a linguagem primitiva realiza tão naturalmente no uso das diversas categorias da língua98. Ainda mais importante, contudo, é que o uso de mythos provoca questões sobre o estatuto de uma narrativa que é tomada mais adiante nos diálogos médios de Platão. Nós temos visto como o contexto argumentativo tem uma função crucial, em especial, se a narrativa é um mythos. O auto-exame dos mythos do período médio nos relembra os limites da linguagem e do pensamento humanos. O vocabulário mythos no último período traz questões similares de como se constroem ou se antecipam as análises. O exame do vocabulário nos mostrará que até a teoria filosófica poderá ser chamada mythos. Mythos está em estreita relação com o pensamento que se exprime por imagem e similitudes. Ambos distinguem-se psicologicamente do pensamento lógico porque este se ocupa exaustivamente com a investigação, ao passo que as imagens do mito e dos símiles impõem-se à imaginação99. Isso acarreta uma diferença de fato: para o pensamento lógico a verdade é algo que deve ser pesquisado, indagado e sondado, é a incógnita de um problema do qual se busca a solução com método e precisão, com rigoroso respeito ao princípio de contradição, e cujo resultado apresenta um caráter de obrigatoriedade universal. As figuras míticas, de outro modo, apresentam-se de per se absolutamente dotadas de sentido e de valor, tanto quanto as imagens dos símiles, que falam uma língua viva 97 SNELL, 2012, p. 244. Idem, p. 245. 99 SNELL, 2012, p. 227. 98 74 imediatamente compreensível para o ouvinte, têm elas aquela mesma evidência imediata que para o poeta, que as recebe como um dom das Musas, isto é, por intuição. O pensamento mítico exige receptividade, o pensamento lógico, atividade; este se desenvolve, com efeito, depois que o homem chega à consciência de si, ao passo que o pensamento mítico é vizinho do estado de sonho, no qual imagens e pensamentos vagam sem controle por parte da vontade. Logos pode ser interpretado como um estado evolutivo do logos de Homero100, na estrutura e forma, mas não em seu conteúdo (dialética). Evolução que é transparente de alguns modos: em sua estrutura, forma e conteúdo. Aquilo que Homero e, posteriormente, Hesíodo narraram, passou, no século V, por profundas mudanças, em primeiro lugar, no tema físico e filosófico em que os poemas portavam (filósofos da natureza); em segundo lugar, com a intervenção de Sócrates que formulou um novo método para abordar os principais temas filosóficos a fim de defini-los. Aplicando esse nome, salienta-se que a análise filosófica é uma construção socialmente integrada, e isso, por sua vez, lembra o início do uso de mythos marcado positivamente como discurso confiável. Reconhece-se que essa marca veio representar aspirações e consensos sociais. Como a filosofia veio por si mesma, esse autoritarismo é apropriado, mas os filósofos aludidos nunca permitiram a seus ouvintes esquecer que mesmo suas próprias questões surgiram fora do mundo sensível e estão circunscritas pelos limites da linguagem. Platão, o apogeu dessa tradição, está consciente de que o mythos é a narrativa mais influente e convincente, o maior perigo de que a interação dinâmica no coração da filosofia estará perdida. Chamar uma teoria de mythos chama a atenção para a existência de uma quase narrativa construída com implicações sociais e literárias. Os mythoi teatrais eleáticos e de Protágoras previnem questionamentos e análises. A cosmologia do Timeu é fundada no princípio de uma divindade benfeitora. Essas narrativas, quando muito, são relatos verossímeis, no pior dos casos, elas tiranizam o intelecto numa indevida impressão de conhecimento. O melhor relato ainda é inevitavelmente um mythos por causa da fragilidade humana e da instabilidade da língua. O relato da criação do mundo de Timeu, embora baseada em diferentes princípios cosmológicos, ontológicos, epistemológicos, gnosiológicos, físicos, etc. - transpõe essas mesmas fronteiras e nos permite perceber um elo entre essa permeabilidade e fraqueza. 100 MORGAN, 2000 p. 243-4. 75 A dialética de Platão surge como novo método de investigação que vai direto ao cerne dos problemas, ou seja, a essência das coisas procuradas. É esse o método construído a partir do questionamento socrático, que, em sua formulação mais simples, se exprime na forma de pergunta ―o que é?‖101. É interessante observar, por outra óptica, que, ao longo de seus diálogos, Platão nos forneceu uma definição para lógos, mas não delimitou mythos. É possível demonstrar a concepção platônica de lógos, através de alguns de seus diálogos, mas no que concerne a uma concepção platônica de mythos, encontraremos, especialmente na Politeia e no Timeu, críticas e elucidações quanto ao conteúdo dos discursos míticos com fim de assegurar a veracidade dos mesmos. As grandes tradições míticas são, por sua vez, meras peças parciais de uma tradição, que em seu todo não está ao alcance de Platão. Parece que Platão se dava conta disso. Assim, se adverte em observações ocasionais, com as quais se encontram, por exemplo, um dos diálogos tardios em que a propósito das antigas histórias maravilhosas se diz que algumas coisas desaparecem por completo com o decorrer do tempo, outros elementos sofreram uma ampla dispersão e o particular separou-se do todo sem que, até agora, se possa apontar a causa de tudo isso102. Por outro lado, diz-se de Platão que seu verdadeiro mérito consiste em poder depurar, unir e dar uma nova forma a esses fragmentos de um grande mito. A opinião pessoal de Pieper é de que Platão não esteve em condições de levar a cabo essa empresa. No conjunto total da tradição mítica que, de fato, chegou até ele não lhe foi possível distinguir e separar o verdadeiro do falso, o núcleo da casca, o essencial do acessório. O pensamento pré-cristão tropeçou aqui com uma barreira que não pôde superar. Platão considerou como verdade inatingível o conteúdo dos mitos. Talvez convenha dizer uma palavra sobre o que aqui se entende por verdade. Os mitos platônicos sobre a origem das coisas primeiras e posteriores, a origem divina do mundo, a perfeição paradisíaca do homem e sua perda, o julgamento depois da morte, etc., serão verdadeiras se todos eles existirem realmente103. 101 TRABATTONI, 2010, p. 85. PIEPER, 1984, p. 30. 103 PIEPER, p. 53. 102 76 Pode-se muito bem considerar algo verdadeiro - ao menos assim é o que parece a Pieper (1984, p. 55) - sem que tenhamos que ―tomá-lo como verdade histórica‖. O crente cristão, por exemplo, não tem por ―realidade histórica‖ nem o relato bíblico da criação, nem tão pouco o relato sobre o paraíso e, entretanto, está persuadido de que em tais histórias se diz algo inatingivelmente verdadeiro. É desde já indiscutível que para o homem antigo o mito ―não está sujeito a nenhuma autoridade‖, entendendo por autoridade algo como uma instituição docente oficial, um magistério. O que não quer dizer de modo algum que o mito tenha sido ―abandonado‖ pela inteligência e mutável. Quando, por exemplo, Platão fala, na Carta VII, de que ―convém crer nos antigos e sagrados relatos que nos dizem que a alma é imortal e que comparecerá diante do juiz‖, está se referindo claramente a uma autoridade, cuja forma existencial e cuja obrigatoriedade são certamente difíceis de compreender: πείζεζζαη δὲ ὄλησο ἀεὶ ρξὴ ηνῖο παιαηνῖο ηε θαὶ ἱεξνῖο ιόγνηο, νἳ δὴ κελύνπζηλ ἡκῖλ ἀζάλαηνλ ςπρὴλ εἶλαη δηθαζηάο ηε ἴζρεηλ θαὶ ηίλεηλ ηὰο κεγίζηαο ηηκσξίαο, ὅηαλ ηηο ἀπαιιαρζῆ ηνῦ ζώκαηνο104: Na verdade, é preciso crer sempre nas antigas e sacras palavras que nos revelam ser a alma imortal e que, quando libertada do corpo, vai a julgamento e paga com os maiores castigos105. Ao refletir a literatura platônica predomina uma pluralidade e confusão bélicas (de grandes proporções), que pode parecer a alguns um exagero. Por isso, como aponta Pieper (1984, p. 56-7), será bom falar de um modo totalmente concreto e tomar conhecimento, por exemplo, de quais são as explicações que se têm dado de um texto muito preciso. Timeu narra o mythos verossímil da criação do mundo e diz: ―Como o falar das coisas divinas está acima de nossas forças, devemos acreditar naqueles que em tempos passados tiveram notícia das mesmas e que poderiam chamar-se descendentes dos deuses, obtendo de seus antepassados seu conhecimento seguro. E não nos é permitido negar a fé aos filhos dos deuses, ainda que seu ensinamento possa não ser verossímil nem demonstrável de modo certo‖. Precisamente aquilo que o personagem Timeu expõe na passagem 40d6-e3: 104 105 PLATO, 1903, 335a3-4. PLATÃO, 2008, p. 73. 77 ... ἀδύλαηνλ νὖλ ζε῵λπαηζὶλ ἀπηζηεῖλ, θαίπεξ ἄλεπ ηε εἰθόησλ θαὶ ἀλαγθαίσλ ἀπνδείμεσλ ιέγνπζηλ, ἀιι᾽ ὡο νἰθεῖα θαζθόλησλ ἀπαγγέιιεηλ ἑπνκέλνπο ηῶ λόκῳ πηζηεπηένλ. ... pois não é possível não dar crédito aos filhos dos deuses, até quando falam sem provas verossímeis e irrefutáveis mas deve-se acreditar, seguindo a tradição, que o 106 transmitem, quando o afirmam como coisas de casa. Qualquer que seja o modo com que nos representem a fé do ―homem antigo‖ em geral ou dos ―helenos‖ em sua totalidade, a que Platão se refere, pode ser demonstrada e aceita o mito como uma verdade. E se ela for uma exceção – o que é muito pouco verossímil – haveria de dizer que se trata de uma exceção de peso notável. Se se pretender uma identificação dos sentidos que o mythos tem em Platão, realizando, de modo sucinto, uma compilação de passagens essenciais e confiáveis que se situam, em especial, no Sofista, na Politeia e no Timeu, o resultado é aproximadamente o que se subsegue: κῦζόλ ηηλα ἕθαζηνο θαίλεηαί κνη δηεγεῖζζαη παηζὶλ ὡο νὖζηλ ἡκῖλ, ὁ κὲλ ὡο ηξία ηὰ ὄληα, πνιεκεῖ δὲ ἀιιήινηο [d] ἐλίνηε αὐη῵λ ἄηηα πῃ, ηνηὲ δὲ θαὶ θίια γηγλόκελα γάκνπο ηε θαὶ ηόθνπο θαὶ ηξνθὰο η῵λ ἐθγόλσλ παξέρεηαη: δύν δὲ ἕηεξνο εἰπώλ, ὑγξὸλ θαὶ μεξὸλ ἢ ζεξκὸλ θαὶ ςπρξόλ, ζπλνηθίδεη ηε αὐηὰ θαὶ ἐθδίδσζη: ηὸ δὲ παξ᾽ἡκῖλ ἖ιεαηηθὸλ ἔζλνο, ἀπὸ Ξελνθάλνπο ηε θαὶ ἔηη πξόζζελ ἀξμάκελνλ, ὡο ἑλὸο ὄληνο η῵λ πάλησλ θαινπκέλσλ νὕησ δηεμέξρεηαη ηνῖο κύζνηο. Ἰάδεο δὲ θαὶ ΢ηθειαί ηηλεο ὕζηεξνλ Μνῦζαη ζπλελόεζαλ ὅηη ζπκπιέθεηλ [e] ἀζθαιέζηαηνλ ἀκθόηεξα θαὶ ιέγεηλ ὡο ηὸ ὂλ πνιιά ηε θαὶ ἕλ ἐζηηλ, ἔρζξᾳ δὲ θαὶ θηιίᾳ ζπλέρεηαη. δηαθεξόκελνλ γὰξ ἀεὶ ζπκθέξεηαη, θαζὶλ αἱ ζπληνλώηεξαη η῵λ Μνπζ῵λ: αἱ δὲ καιαθώηεξαη ηὸ κὲλ ἀεὶ ηαῦηα νὕησο ἔρεηλ ἐράιαζαλ, ἐλ κέξεη δὲ ηνηὲ κὲλ ἓλ εἶλαί θαζη ηὸ πᾶλ θαὶ θίινλ ὑπ᾽ [243] ἀθξνδίηεο, ηνηὲ δὲ πνιιὰ θαὶ πνιέκηνλ αὐηὸ αὑηῶ δηὰ λεῖθόο ηη. ηαῦηα δὲ πάληα εἰ κὲλ ἀιεζ῵ο ηηο ἢ κὴ ηνύησλ εἴξεθε, ραιεπὸλ θαὶ πιεκκειὲο νὕησ κεγάια θιεηλνῖο θαὶ παιαηνῖο ἀλδξάζηλ ἐπηηηκᾶλ: ἐθεῖλν δὲ ἀλεπίθζνλνλ ἀπνθήλαζζαη107. Parece que cada um deles nos narrou um mito, como se fôssemos crianças. Um, que são três as coisas que são, que algumas vezes guerreiam de [d] algum modo umas com as outras, e depois, tornando-se amigas, casam, fazem filhos, alimentam-nos. Outro, tendo dito que são dois, o húmido e o seco, ou o quente e frio, fê-los coabitar e casar-se. Uma gente de Eleia, começando a partir de Xenófanes e mesmo antes dele, conta que todas as coisas são chamadas a partir de um ser, e desse modo desenvolvem os seus mitos. E algumas Musas Jônicas e mais tarde umas Sicilianas reflectiram e chegaram à conclusão de [e] que seria mais seguro combinar as duas histórias e dizer que o que é múltiplo e único, e que é consagrado pelo ódio e pela amizade. Pois, o que se separa sempre se reúne, dizem as Musas mais firmes, enquanto as mais gentis deixaram essas coisas ficar assim soltas, acrescentando que, num momento em parte o todo é um amigo, sob o efeito de [243] Afrodite, e, em 106 107 MURACHCO, F., 2014, p. 106. PLATO, 1903, Tomus I, 242c8-243a3. 78 outro momento, é múltiplo e guerreia contra si mesmo, por causa de uma certa discórdia. Tudo isto, se algum desses aí disse a verdade ou não, é excessivamente difícil e impróprio atribuir a homens tão famosos e antigos. mas uma outra coisa pode ser manifesta sem constrangimento 108. Na Politeia, II, 376d9-377a8, temos a seguinte posição de Sócrates: (S) ἴζη νὖλ, ὥζπεξ ἐλ κύζῳ κπζνινγνῦληέο ηε θαὶ ζρνιὴλ ἄγνληεο ιόγῳ παηδεύσκελ ηνὺο ἄλδξαο. (G) ἀιιὰ ρξή. (S) ηίο νὖλ ἡ παηδεία; ἢ ραιεπὸλ εὑξεῖλ βειηίσ η῅ο ὑπὸ ηνῦ πνιινῦ ρξόλνπ εὑξεκέλεο; ἔζηηλ δέ πνπ ἡ κὲλ ἐπὶ ζώκαζη γπκλαζηηθή, ἡ δ᾽ ἐπὶ ςπρῆ κνπζηθή. (G) ἔζηηλ γάξ. (S) ἆξ᾽ νὖλ νὐ κνπζηθῆ πξόηεξνλ ἀξμόκεζα παηδεύνληεο ἢ γπκλαζηηθῆ; (G) π῵ο δ᾽ νὔ; (S) κνπζηθ῅ο δ᾽, εἶπνλ, ηηζεῖο ιόγνπο, ἢ νὔ; (G) ἔγσγε. (S) ιόγσλ δὲ δηηηὸλ εἶδνο, ηὸ κὲλ ἀιεζέο, ςεῦδνο δ᾽ ἕηεξνλ; (G) λαί. (S) παηδεπηένλ δ᾽ ἐλ ἀκθνηέξνηο, πξόηεξνλ δ᾽ ἐλ ηνῖο ςεπδέζηλ; (G) νὐ καλζάλσ, ἔθε, π῵ο ιέγεηο. (S) νὐ καλζάλεηο, ἦλ δ᾽ ἐγώ, ὅηη πξ῵ηνλ ηνῖο παηδίνηο κύζνπο ιέγνκελ; ηνῦην δέ πνπ ὡο ηὸ ὅινλ εἰπεῖλ ςεῦδνο, ἔλη δὲ θαὶ ἀιεζ῅. πξόηεξνλ δὲ κύζνηο πξὸο ηὰ παηδία ἢ γπκλαζίνηο ρξώκεζα. (G) ἔζηη ηαῦηα. (S) Ora vamos lá! Eduquemos estes homens em imaginação, como se estivéssesmos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados. (G) É o que nós devemos fazer. (S) Então que educação há de ser? Será difícil achar uma que seja melhor do que a encontrada ao longo dos anos – a ginástica para o corpo e a música para a alma? (G) Será, efectivamente. (S) Ora começaremos por ensinar primeiro a música do que ginástica? (G) Pois não! (S) Incluis na música a literatura, ou não? (G) Decerto. (S) Mas há duas espécies de literatura, uma verdadeira, e outra falsa! (G) Há. (S) E ambas serão ensinadas, mas primeiro a falsa? (G) Não entendo o que queres dizer. (S) Não compreendes – disse eu – que primeiro ensinamos fábulas (mythos) às crianças? Ora, no conjunto, as fábulas são mentiras, embora contenham algumas verdades. E servimo-nos de fábulas para as crianças, antes de as mandarmos para os ginásios. (G) Assim é.109 A primeira passagem do Timeu que ressalto está em 29c4-d3: 108 109 PLATÃO, 2011, p. 211-2. PLATÃO, 2001, p. 86. 79 ἖ὰλ νὖλ, ὦ ΢ώθξαηεο, πνιιὰ πνιι῵λ πέξη, ζε῵λ θαὶ η῅ο ηνῦ παληὸο γελέζεσο, κὴ δπλαηνὶ γηγλώκεζα πάληῃ πάλησο αὐηνὺο ἑαπηνῖο ὁκνινγνπκέλνπο ιόγνπο θαὶ ἀπεθξηβσκέλνπο ἀπνδνῦλαη, κὴ ζαπκάζῃο: ἀιι᾽ ἐὰλ ἄξα κεδελὸο ἧηηνλ παξερώκεζα εἰθόηαο, ἀγαπᾶλ ρξή, κεκλεκέλνπο ὡο ὁ ιέγσλ ἐγὼ [d] ὑκεῖο ηε νἱ θξηηαὶ θύζηλ ἀλζξσπίλελ ἔρνκελ, ὥζηε πεξὶ ηνύησλ ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ ἀπνδερνκέλνπο πξέπεη ηνύηνπ κεδὲλ ἔηη πέξα δεηεῖλ. Então, ó Sócrates, se não nos tornássemos capazes de restituir os discursos, em torno de muitas coisas de muitos deles, acerca dos deuses e da origem do todo, em tudo e por tudo, convindo com discursos de modo não perfeito, não te admires; mas, afinal, se fornecêssemos nada mais verossímil, é bom alegrar-se, lembrando-se que eu o falante e vós, os juízes, temos a natureza humana, e que aceitando o mito verossímil acerca deles [d], convém ainda buscar nada mais além disso. O segundo trecho encontra-se em 40d6-9: πεξὶ δὲ η῵λ ἄιισλ δαηκόλσλ εἰπεῖλ θαὶ γλ῵λαη ηὴλ γέλεζηλ κεῖδνλ ἢ θαζ᾽ ἡκᾶο, πεηζηένλ δὲ ηνῖο εἰξεθόζηλ ἔκπξνζζελ, ἐθγόλνηο κὲλ ζε῵λ νὖζηλ, ὡο ἔθαζαλ, ζαθ῵ο δέ πνπ ηνύο γε αὑη῵λ πξνγόλνπο εἰδόζηλ: Mas, falar acerca dos outros daimones e conhecer a origem mais do que segundo nós mesmos, deve-se confiar nos que disseram anteriormente, sendo descendentes de deuses, como se diziam, manifestamente conhecido como progenitor deles: Ao refletir os diálogos platônicos em busca de catalogar as passagens em que seja possível demonstrar as ocorrências do termo logos, bem como sua definição, pode-se elucidar algumas fundamentais ocorrências no Sofista e na Carta VII. O exame do lógos, que Platão empreende no Sofista, resolve desde uma dupla perspectiva, a das formas e a dos nomes, que não se trata de dois desenvolvimentos já que a mesma noção de mistura e combinação rege ambos110. Com efeito, Platão insiste que não são as formas isoladas, senão mutuamente combinadas, as que realizam a gênese do discurso, ... δηὰ γὰξ ηὴλ ἀιιήισλ η῵λ εἰδ῵λ ζπκπινθὴλ ὁ ιόγνο γέγνλελ ἡκῖλ.111 ... pois é através do entrelaçamento das formas entre si que o enunciado se gera em nós.112 do mesmo modo que não é a mera sucessão ou continuidade dos nomes, senão sua entrelaçamento, composição de elementos de diferentes tipos e função, um nome e um verbo (ζπκπινθή, 262c6) o que dá lugar ao lógos. Se, de um lado, a descrição de Górgias acerca da origem do lógos evidencia o encontro 110 PINOTTI, 2009, p. 85. PLATO, 1903, 259e5-6. 112 PLATÃO, 2011, p. 245. 111 80 do sujeito cognoscente com o objeto visto, ouvido, e os sentidos restantes; por outro, Platão alega que o lógos se origina para nós pela ação da combinação mútua das formas. A correta interpretação desta célebre e discutida passagem não depende puramente de resolver se uma sympokle, combinação, de formas está presente em ou por todo lógos, senão de alertar que esta tem seu fundamento último numa realidade de natureza suprassensível a qual é estruturalmente semelhante113: δεινῖ γὰξ ἤδε πνπ ηόηε πεξὶ η῵λ ὄλησλ ἢ γηγλνκέλσλ ἢ γεγνλόησλ ἢ κειιόλησλ, θαὶ νὐθ ὀλνκάδεη κόλνλ ἀιιά ηη πεξαίλεη, ζπκπιέθσλ ηὰ ῥήκαηα ηνῖο ὀλόκαζη. δηὸ ιέγεηλ ηε αὐηὸλ ἀιι᾽ νὐ κόλνλ ὀλνκάδεηλ εἴπνκελ, θαὶ δὴ θαὶ ηῶ πιέγκαηη ηνύηῳ ηὸ ὄλνκα ἐθζεγμάκεζα ιόγνλ.114 Pois, ele mostra já algo a respeito das coisas que são, ou que vêm a ser, ou que vieram a ser, ou que virão a ser, e não somente nomeiam, mas conclui algo, combinando os verbos com os nomes. É por isso que afirmamos que está a dizer e não somente a nomear; de modo que a essa combinação damos o nome de enunciado.115 A partir dessa síntese da concepção platônica de lógos, esta passagen não apenas contém os elementos necessários para refutar a posição sofista que nega a possibilidade do falso, mas contém uma resposta específica a Górgias. Dentre outras coisas, estabelece que o discurso é por necessidade sobre algo (ηηλόο, 262e6) e tem uma certa qualidade (πνηόλ ηηλα, 262e8), ou seja, é verdadeiro ou falso. Logos é definido no Sofista, por indiferença à dianoia, no excerto 263e3-9: Ξέλνο: νὐθνῦλ δηάλνηα κὲλ θαὶ ιόγνο ηαὐηόλ: πιὴλ ὁ κὲλ ἐληὸο η῅ο ςπρ῅ο πξὸο αὑηὴλ δηάινγνο ἄλεπ θσλ῅ο γηγλόκελνο ηνῦη᾽ αὐηὸ ἡκῖλ ἐπσλνκάζζε, δηάλνηα; Θεαίηεηνο: πάλπ κὲλ νὖλ. Ξέλνο: ηὸ δέ γ᾽ ἀπ᾽ ἐθείλεο ῥεῦκα δηὰ ηνῦ ζηόκαηνο ἰὸλ κεηὰ θζόγγνπ θέθιεηαη ιόγνο; Θεαίηεηνο: ἀιεζ῅. Hóspede de Eleia: Pois bem, pensamento e discurso são o mesmo; mas o primeiro, que é o diálogo íntimo da alma consigo mesma, que nasce sem voz, é esse mesmo que foi por nós denominado pensamento? Teeteto: Muito bem. Hóspede de Eleia: E o outro, um fluxo a partir da alma, indo através da boca com som, se chama discurso? 113 PINOTTI, 2009, p. 86. PLATO, 1903, 262d2-6. 115 Sof., 2011, p.250. 114 81 Teeteto: É verdade.116 Na Carta VII, ao responder a pergunta ‗o que é logos?‘, Platão parece ter em mente uma fórmula definidora expressa pela linguagem:117 o logos de um círculo é ―a coisa que tem em todo lugar igual distância entre as suas extremidades e o centro‖. Argumenta, em 342a7-b3, que a instabilidade dos nomes se estende também aos logoi, porque eles são compostos de nomes e de predicados: ἔζηηλ η῵λ ὄλησλ ἑθάζηῳ, δη᾽ ὧλ ηὴλ ἐπηζηήκελ ἀλάγθε παξαγίγλεζζαη, ηξία, ηέηαξηνλ δ᾽ αὐηή – πέκπηνλ δ᾽ αὐηὸ (b) ηηζέλαη δεῖ ὃ δὴ γλσζηόλ ηε θαὶ ἀιεζ῵ο ἐζηηλ ὄλ – ἓλ κὲλ ὄλνκα, δεύηεξνλ δὲ ιόγνο, ηὸ δὲ ηξίηνλ εἴδσινλ, ηέηαξηνλ δὲ ἐπηζηήκε. Há em cada um dos seres três [elementos], a partir dos quais é necessário que o saber surja, sendo o quarto ele mesmo; em quinto lugar, há que pôr o que é em si cognoscível e verdadeiramente é. Um é o nome, o segundo, a definição, o terceiro, a imagem, o quarto, o saber.118 No que se refere aos nomes e predicados, Platão, no Sofista 262a9-b7, afirma o seguinte: Ξέλνο: νὐθνῦλ ἐμ ὀλνκάησλ κὲλ κόλσλ ζπλερ῵ο ιεγνκέλσλ νὐθ ἔζηη πνηὲ ιόγνο, νὐδ᾽ αὖ ῥεκάησλ ρσξὶο ὀλνκάησλ ιερζέλησλ. Θεαίηεηνο: ηαῦη᾽ νὐθ ἔκαζνλ. [Ξ] δ῅ινλ γὰξ ὡο πξὸο ἕηεξόλ ηη βιέπσλ ἄξηη ζπλσκνιόγεηο: ἐπεὶ ηνῦη᾽ αὐηὸ ἐβνπιόκελ εἰπεῖλ, ὅηη ζπλερ῵ο ὧδε ιεγόκελα ηαῦηα νὐθ ἔζηη ιόγνο. [Θ] π῵ο; [Ξ] νἷνλ ‗βαδίδεη‘ ‗ηξέρεη‘ ‗θαζεύδεη,‘ θαὶ ηἆιια ὅζα πξάμεηο ζεκαίλεη ῥήκαηα, θἂλ πάληα ηηο ἐθεμ῅ο αὔη᾽ εἴπῃ, ιόγνλ νὐδέλ ηη κᾶιινλ ἀπεξγάδεηαη. Hóspede de Eleia: Portanto, ao dizer nomes em sequência, não obtemos jamais um enunciado, nem por sua vez, dizendo verbos, separados de nomes. Teeteto: Isso aí não entendi. Hóspede de Eleia: É, pois, evidente que há pouco concordaste comigo com outra coisa em mente, uma vez que era isso mesmo que eu queria dizer, que essas coisas, ditas em sequência não são um enunciado. Teeteto: Como? Hóspede de Eleia: Por exemplo, ―caminha‖, ―corre‖, ―está a dormir‖ e outras expressões, quantas significam acções, mesmo que alguém as diga em sequência, não realizam um enunciado de todo.119 Após examinar a tradição mítica grega, desde o princípio com a poesia homérica até a ascensão da filosofia com a ciência dialética platônica, passa-se a investigar a trajetória do 116 Sof., 2011, p. 253. Carta VII, 2008, p. 31. 118 Carta VII, 2008, p. 91. 119 Sofista, 2011, p. 249. 117 82 mythos na linguagem e no pensamento de Platão. O mythos em Platão partilha junto com as analogias e as imagens a estrutura argumentativa e o estatuto epistemológico do discurso. Platão se refere às argumentações filosóficas em alguns casos chamando-as mythos, em outros logos120. O fato é que a palavra decisiva não é o substantivo (mythos ou logos), mas sim o termo que o qualifica, que é eikos, ou seja, parecido (ao verdadeiro) e, portanto, verossímil, plausível, provável.121 1.1. Μῦθορ em Platão: paidéia, mímesis e instrumento do logos Tratar-se-á, nesta seção da tese, em primeira ordem, acerca da questão do mythos, e evidentemente da poesia. Μῦζνο e πνίεζηο podem encantar e persuadir, adular e subjugar qualquer ouvinte, mas estes são precisamente os poderes que lhes são desastrosos, bem como pelo efeito que a poesia estabelece como disciplina educativa para a paideia da polis ao oferecer um perigo moral e intelectual aos jovens atenienses. Em segundo plano, elucidar a crítica platônica contra a poesia que desde o prefácio da Politeia aponta para o caráter mimético dela e que deve ser recusado. O personagem Sócrates discorrerá sobre o emprego da mimesis a princípio como uma classificação estilística para definir a obra dramática em oposição à descritiva; depois, a κίκεζηο constituirá o ato integral da produção poética e não mais o estilo dramático. Por fim, expor a modificação histórica do termo κῦζνο em função da transformação que influenciou o vocabulário da ―fala‖ do qual Platão, foi, não por acaso, quem estabeleceu o sentido crítico que lhe pertence agora. A partir de pesquisas lexicológicas e da dificuldade de definir mythos antes de Platão, é permitido, segundo Brisson122, distinguir dois usos precisos do vocábulo mythos, a saber, o uso descritivo e o uso crítico. A respeito da questão do mythos em Platão, há muitos aspectos em seu estilo que contribuem para este apelo, incluindo a linguagem, as imagens e a forma dramática uitlizadas123. A República ocupa-se com um desses aspectos em particular: o uso de mythos. É 120 Esta tese pretende sustentar que Platão, especificamente nos corpora aqui abordados, também se refere às argumentações filosóficas como imagens, εἰθόλεο. 121 FERRARI, 2010, p. 52. 122 BRISSON, 2005, p. 16. 123 WERNER, 2012, p. 1. 83 difícil superestimar a importância do mito na cultura grega; dos tempos micênicos até o fim do período helenístico, o mito manteve uma posição central na vida cultural, religiosa e educacional dos gregos. Em qualquer lugar, voltando-se para os escritos platônicos, esta influência é clara, como seus diálogos são literalmente movimentados por material mítico. Por exemplo, quase todos os diálogos de Platão contêm algum tipo de referência a um mito particular ou de algum elemento da figura da tradição mitológica grega. Mais significativamente, o filósofo também criou seu próprio mythos, e eles figuram proeminentemente em algumas de suas mais importantes obras, inclusive no Górgias, Fédon, República, Fedro e Timeu. Esses diálogos contêm passagens essenciais de narrativas ininterruptas que, embora contenham ideias filosóficas, são (ou pelo menos parecem ser) em forma de mythos. Quando os mitos platônicos surgem, contudo, eles interpretam dramaticamente o jogo pergunta-resposta dialógico, ao mesmo tempo, Platão deveria seguramente estar tentando fazer um ponto filosófico através do mito. Obtém-se, portanto, um amálgama interessante: um filósofo, uma escritura de textos filosóficos que liberalmente estimulou esses textos com material mitológico. As imagens míticas nos diálogos platônicos, entretanto, não foram estruturadas por meio de hexâmetros dáctilos, mas em forma de diálogo cujo conteúdo é constituído não apenas de mythoi, mas de imagens e de analogias. A estrutura dos diálogos platônicos aponta os mythos e as analogias como elementos estruturantes das imagens, ou seja, os εἰθόλεο são um todo composto de κῦζνο e de ἀλαινγία124. Os mitos, para alguns comentadores, teriam utilidade pedagógica (Schleiermacher) ou constituiriam uma retórica moralizadora (Hirzel, Teichmuller, Couturat)125. Na estratégia política, o mythos teria valor instrumental, como recurso para educar o povo inculto (apaídeutoi); ou funcionaria como purificador de opinião, em favor da ortodoxia útil à pólis, e seu efeito estaria garantido pelo medo do castigo no além. Contudo, há quem julgue absurdo reduzir a religião de Platão a uma religião do Estado. Como argumento, é lembrado o espiritualismo do Fédon, que ultrapassa o caráter oficial da religião, tal como esta é 124 Esta afirmação será demonstrada e detalhada no seguinte ponto deste capítulo. BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Platão: Mito e Paideia. São Paulo: Revista Notandum Libro, v. 10, p. 0180, CEMOrOc-Feusp, IJI-Universidade do Porto, 2008, p. 26. 125 84 apresentada na República e nas Leis. Outros, por sua vez, veem no mythos um instrumento para expor a opinião platônica acerca do mundo do devir (Deuschle, Susemihl, Fischer, Forster). Em restrição a essa perspectiva, observa-se que nem todos os mitos abarcam a nítida oposição platônica entre sensível e inteligível. No Timeu, por exemplo, isso se dá parcialmente, pois nele há uma física e uma cosmologia. Além disso, escapam a essa referência os mitos que tratam da alma. Sujeita ao devir, contudo, a alma participa também estreitamente das ideias, e por isso é imortal. Então, deve ser colocada à parte, em lugar intermediário, entre o sensível e o inteligível. Brisson126 reconhece que o logos, no pensamento platônico, possibilita um discurso verificável, ao passo que o mythos não; portanto, o discurso do lógos tem um status superior ao do discurso mítico. Platão critica o mythos por não ser um discurso verificável e nem argumentativo. Contudo, isto não o impede de utilizá-lo e reconhecer a sua utilidade e de integrá-lo em seu próprio discurso. Para ele, tanto o mythos descreve o testemunho de Platão sobre o que é o mito como instância de comunicação127, ou seja, o discurso pelo qual se comunica o que uma dada coletividade conserva na memória de seu passado e o transmite de geração a geração, seja através de um especialista, poeta, ou não; quanto, analisa as críticas platônicas ao discurso em que consiste o mythos, a partir do discurso que o caracteriza como filósofo e que Platão considera como dotado de um estatuto superior, ou seja, o discurso do logos. Desde este ponto de vista, criticará o mythos por não ser um discurso verificável e nem argumentativo. O caráter de discurso verificável que o mythos assumiu nos diálogos de Platão é oriundo da definição de logos, no sentido de discurso verificável, que Platão investigou no Sofista, entre os passos 260a e 264b. Na passagen 260a5-b2, o Estrangeiro de Eleia evidencia que sem enunciado, sem logos, não haveria filosofia128. Há que estabelecer o logos entre os gêneros, dizendo o que ele é, sob pena de nada mais poder dizer, como aconteceria se nada se misturasse com algo: [Ξέλνο] πξὸο ηὸ ηὸλ ιόγνλ ἡκῖλ η῵λ ὄλησλ ἕλ ηη γελ῵λ εἶλαη. ηνύηνπ γὰξ 126 BRISSON, 2008, p. 19-26. Idem, p. 05-07; 16-17. 128 Sof., 2011, p. 30. 127 85 ζηεξεζέληεο, ηὸ κὲλ κέγηζηνλ, θηινζνθίαο ἂλ ζηεξεζεῖκελ: ἔηη δ᾽ ἐλ ηῶ παξόληη δεῖ ιόγνλ ἡκᾶο δηνκνινγήζαζζαη ηί πνη᾽ ἔζηηλ, εἰ δὲ ἀθῃξέζεκελ αὐηὸ κεδ᾽ εἶλαη ηὸ παξάπαλ, νὐδὲλ ἂλ ἔηη πνπ ιέγεηλ νἷνί η᾽ ἦκελ. (b) ἀθῃξέζεκελ δ᾽ ἄλ, εἰ ζπλερσξήζακελ κεδεκίαλ εἶλαη κεῖμηλ κεδελὶ πξὸο κεδέλ. [Hóspede de Eleia] Avancemos com vista a estabecer para nós o enunciado como um dentre os géneros. Pois, privados dele, ficaríamos privados da filosofia, que é o mais importante, e ainda mais, é preciso que cheguemos agora a acordo em relação ao que é o enunciado; e que não seríamos capazes de dizer coisa nenhuma se decidíssemos que não é absolutamente nada; e que seríamos privados dele se concordássemos que não há em nada mistura nenhuma em relação a nada. 129 O pensamento (δηάλνηα) é o diálogo íntimo da alma consigo mesma, sem voz; enquanto o discurso (ιόγνο) é um fluxo que vem da alma pela boca, com som130. Na passagem 263e3-5, o Eleata retoma a análise da estrutura e da natureza do logos, investigando as definições de logos e dianoia, para introduzir a distinção entre verdade e falsidade, assim como, tornar possível estabelecer ―pensamento‖ (dianoia), ―opinião‖ (doxa) e ―imaginação‖ (phantasia), como gêneros que nascem nas almas, atribuindo-lhes verdade e falsidade (263e)131: Ξέλνο: νὐθνῦλ δηάλνηα κὲλ θαὶ ιόγνο ηαὐηόλ: πιὴλ ὁ κὲλ ἐληὸο η῅ο ςπρ῅ο πξὸο αὑηὴλ δηάινγνο ἄλεπ θσλ῅ο γηγλόκελνο ηνῦη᾽ αὐηὸ ἡκῖλ ἐπσλνκάζζε, δηάλνηα; Hóspede de Eleia: Pois bem, pensamento e discurso são o mesmo; mas o primeiro, que é o diálogo íntimo da alma consigo mesma, que nasce sem voz, é esse mesmo que foi por nós denominado pensamento?132 O sentido de mythos, cuja etimologia não se conhece, sofreu profundas modificações entre Homero e Platão, em função do lugar cada vez mais importante ocupado por logos no vocabulário da ―palavra‖. Mas a evolução semântica de logos impossibilita a identificação de mythos com logos; de fato suscitam mesmo algumas oposições, as principais sendo mythos como relato e logos como discurso argumentativo. Platão, ao assimilar mythos a logos, atualiza o seu antigo sentido de ―discurso‖ como ―pensamento que se expressa, opinião‖. E o filósofo reorganizará de modo original e decisivo o vocabulário da palavra em grego antigo em função de seu objetivo principal: fazer do discurso do filósofo o padrão ou norma que permita determinar a validade de todos os outros 129 Sof., p. 245. Idem, p. 31. 131 Idem, p. 124. 132 Idem, p. 253. 130 86 tipos de discursos, incluindo-se aqui fundamentalmente o do poeta. Assim, mythos se oporá a logos, como o discurso inverificável ao verificável e como o relato ao discurso argumentativo133. No contexto do diálogo Timeu, a seu turno, as objeções contra o discurso mítico serão abandonadas. O mito possuirá a característica de um discurso que porta a verossimilhança daquilo que se quer demonstrar como parte de um método de exposição cujos raciocínios devem ser firmes e imutáveis, como é possível observar no passo 29b7-c1: ... - θαζ᾽ ὅζνλ νἷόλ ηε θαὶ ἀλειέγθηνηο πξνζήθεη ιόγνηο εἶλαη θαὶ ἀληθήηνηο, ηνύηνπ δεῖ [c] κεδὲλ ἐιιείπεηλ -... ... - convém ser aos discursos tanto irrefutáveis quanto invencíveis segundo a qualidade e a quantidade, é necessário não se descuidar [c] disso -, ... No passo seguinte, que finaliza da fala inicial de Timeu, em 29c7-d3, é refletida a incapacidade, em razão da natureza humana, que os discursos, ιόγνη, têm de restituir uma explicação acerca dos deuses e da origem do cosmo de modo perfeito, em tudo e por tudo: ... ἀιι᾽ ἐὰλ ἄξα κεδελὸο ἧηηνλ παξερώκεζα εἰθόηαο, ἀγαπᾶλ ρξή, κεκλεκέλνπο ὡο ὁ ιέγσλ ἐγὼ [d] ὑκεῖο ηε νἱ θξηηαὶ θύζηλ ἀλζξσπίλελ ἔρνκελ, ὥζηε πεξὶ ηνύησλ ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ ἀπνδερνκέλνπο πξέπεη ηνύηνπ κεδὲλ ἔηη πέξα δεηεῖλ. ... mas, afinal, se fornecêssemos nada mais verossímil, é bom alegrar-se, lembrandose que eu o falante e vós, os juízes, temos a natureza humana, e que [d] aceitando o mito verossímil acerca deles, convém ainda buscar nada mais além disso. No livro X da Politeia, no passo 602a8-9, por exemplo, Platão assimila a imitação empregue por um imitador, tal como o poeta, a um jogo, ou seja, a uma atividade pouco séria: νὔηε ἄξα εἴζεηαη νὔηε ὀξζὰ δνμάζεη ὁ κηκεηὴο πεξὶ ὧλ ἂλ κηκ῅ηαη πξὸο θάιινο ἢ πνλεξίαλ. O imitador não possui, portanto, ciência nem opinião reta quanto à beleza ou aos defeitos das coisas que imita.134 E, na passagem 602b6-10, Sócrates conclui que o imitador não conhece nada digno de um discurso verificável no tocante ao que imita, uma vez que a imitação é um jogo ou uma 133 134 BRISSON, 2005, p. 122-3. PLATÃO, 1965 e 1973, volume 2, p. 230. 87 atividade pouco séria: ηαῦηα κὲλ δή, ὥο γε θαίλεηαη, ἐπηεηθ῵ο ἡκῖλ δησκνιόγεηαη, ηόλ ηε κηκεηηθὸλ κεδὲλ εἰδέλαη ἄμηνλ ιόγνπ πεξὶ ὧλ κηκεῖηαη, ἀιι᾽ εἶλαη παηδηάλ ηηλα θαὶ νὐ ζπνπδὴλ ηὴλ κίκεζηλ, ηνύο ηε η῅ο ηξαγηθ῅ο πνηήζεσο ἁπηνκέλνπο ἐλ ἰακβείνηο θαὶ ἐλ ἔπεζη πάληαο εἶλαη κηκεηηθνὺο ὡο νἷόλ ηε κάιηζηα. Eis, portanto, parece, dois pontos sobre os quais estamos realmente de acordo: em primeiro lugar, o imitador não tem nenhum conhecimento válido do que ele imita, sendo a imitação apenas uma espécie de jogo de criança, despido de seriedade; em segundo, os que se aplicam à poesia trágica, componham eles em versos jâmbicos ou em versos épicos, são imitadores ao supremo grau. 135 Ao relacionar mythos à paideia grega, através da passagem 608b1-2 do livro X da Politeia, Sócrates revela o cerne do problema: ... πεξὶ η῅ο ἐλ αὑηῶ πνιηηείαο δεδηόηη, θαὶ λνκηζηέα ἅπεξ εἰξήθακελ πεξὶ πνηήζεσο. ... caso se tema o governo da própria alma e enfim observar como lei tudo o que dissemos acerca da poesia.136 O alvo de Platão parece ser a experiência poética como tal. Desse modo, o poeta, diz ele, consegue colorir seus enunciados mediante o uso de palavras e frases 137 e embelezá-los pela exploração dos recursos do verso, ritmo e harmonia138. Segundo a interpretação de Havelock (1996), estes são como cosméticos aplicados à superfície, que ocultam a pobreza do enunciado subjacente (X, 601b2). Assim como os desenhistas empregam a ilusão ótica para nos enganar (X, 602d1-4), os efeitos acústicos empregados pelo poeta confundem nossa inteligência. Isto é, Platão ataca exatamente a forma e a essência do discurso poético, suas imagens, seu ritmo, sua qualidade como linguagem poética. O problema se encontra precisamente nessa variedade de representar milhares de situações e reproduzir milhares de sentimentos. Mediante essa representação, o poeta pode liberar em nós uma reserva correspondente de reação empática e evocar uma grande variedade de emoções. Todas elas perigosas, nenhuma admissível. Para Platão, contudo, tudo 135 PLATÃO, 1965 e 1973, volume 2, p. 230. Idem, p. 239. 137 PLATO, 1903, X, 601a 4-5. 138 Idem, X, 601a8. 136 88 isso é uma espécie de enfermidade, e temos de nos indagar por quê. Suas objeções são elucidadas pelo contexto dos padrões que ele está estabelecendo para a educação. Para ele, a poesia como uma disciplina educativa representa um malefício moral assim como intelectual. A poesia não é acusada de uma ofensa política, mas de uma ofensa intelectual e, consequentemente, a disposição que deve ser protegida contra sua influência é definida duas vezes como o ―governo interior‖. Questionar a tradição, para Platão, significa pôr em causa aquilo que os gregos tinham e julgavam, mas o faz para adquiri-lo de volta mediante o exame e a fundamentação. Em primeiro lugar, estuda a poesia como importante componente da paideia, da cultura e da educação helênicas. A interpretação das tradições poéticas se realiza esencialmente a partir de uma perspectiva moral. A crítica platônica à poesia não tem como objetivo, tal como se reitera em alguns comentários, a eliminação da poesia da polis. Platão está consciente do papel fundamental que a tradição poética lança na paideia grega. De acordo com a análise do livro III, que, por sua vez, segue um ataque anterior ao conteúdo da poesia, Platão propôs um programa de censura severa e radical aos poetas gregos passados e presentes. Considerando o questionamento acerca de qual orientação ética a poesia tradicional pode propiciar, as histórias dos deuses, heróis e homens comuns estão cheias de assassinatos e incestos, crueldade e traições, paixões descontroladas, fraquezas, covardias e maldades. Conforme Havelock139, a repetição de tais coisas só pode levar mentes jovens e influenciáveis à imitação desses atos. A postura de Platão, então, constituiu à censura única garantia. O desafio que a Politeia coloca aponta uma inovação, ou seja, um tal grau de pureza na ética que jamais havia sido imaginável antes. Com efeito, aquilo que Adimanto diz, em 362e1-367a4, é que a Grécia até então desfrutara de uma meia moralidade, na melhor das hipóteses um compromisso e, na pior, uma conspiração cínica, segundo a qual a geração mais jovem é continuamente doutrinada na visão de que o essencial não é tanto os princípios éticos quanto o prestígio social e a recompensa material que podem resultar de uma reputação moral, seja esta merecida ou não. A falta de princípios, na maioria das vezes, é mais vantajosa. A consequência final é que o efebo grego é constantemente condicionado a uma atitude que, no fundo, é cínica, visto que 139 HAVELOCK, 1996, p. 26. 89 é mais importante manter as aparências do que exercer a prática da justiça. A dignidade e o comportamento decente não são, manifestamente, infrigidos, mas a essência do princípio sim. Trata-se, no entanto, de uma denúncia à tradição e ao sistema educacional gregos: a Politeia estaria contestando as principais autoridades gregas, isto é, Hesíodo e Homero, colocando claramente o problema que não é tanto filosófico no sentido restrito do termo quanto social e cultural. Ela inquire a tradição grega como ela é em si mesma e as bases sobre as quais se edificou. São fundamentais a essa tradição o estado e a qualidade da paideia, educação grega. Seja qual for o processo pelo qual a mente e a conduta dos jovens são formadas, constitui o cerne do problema: a presença dos poetas e a poesia. Platão, na realidade, considerava os saberes tradicionais como mitologia, como uma espécie de paidia, de jogo ou entretenimento. A figura do filósofo, em contrapartida, como homem ―sério‖ se opõe no corpus platônico à atividade do poeta, logógrafo e legislador, os outros educadores da polis. O paradoxo consiste no fato de que Platão realiza uma análise crítica, dessas atividades e saberes tradicionais e ao mesmo tempo atua como poeta, logógrafo ou arqueólogo e legislador. Platão escreve mitos, discursos de arqueologia e redige leis. Levada em conta a importância dos poetas na estrutura educacional existente na Grécia, as repetidas críticas à poesia ajustam-se à lógica da organização geral da Politeia: a parte da discussão que argumenta diretamente a teoria política ocupa apenas cerca de um terço dos nove livros e, quando intervém, é para fornecer sucessivos pretextos para o desenvolvimento de discussões em torno da teoria educacional. A estrutura política pode ser utópica, mas as propostas educacionais não. Desse modo, no livro VII, o mais importante da obra e que tem em vista a construção da justiça na alma do cidadão e da evolução da polis como um todo, segue-se um currículo detalhado no qual o filósofo - o único receptor confiável e adequado ao poder político - deve ser treinado para sua tarefa. Ele vai da matemática à dialética e deve ser acessível (VII, 537b8-539e2) ao grupo etário entre vinte e trinta e cinco anos, mas obtido somente por meio de competição, a qual, nos sucessivos estágios, elimina os menos talentosos. Portanto, nessa perspectiva, a questão da paideia na Politeia desloca-se entre dois estágios principais: o currículo primário e o secundário, chamado κνπζηθή, e o currículo 90 universitário140 do livro VII. Para cada um deles, fornece-se uma alegação política, mediante a introdução dos guardiães no livro II e dos reis-filósofos no livro V. No primeiro nível, o currículo poético tradicional deve ser mantido, mas sucessivamente expurgado; no segundo ele deve ser expulso sem superficialidades. Concernente à questão da κίκεζηο, Platão, ainda sob a ótica da Politeia, começa argumentando que, virtualmente, em toda comunicação verbal existe uma distinção essencial entre o método descritivo e o da dramatização. Até, então, Homero é o modelo de ambos. A mímesis tornou-se um termo para o instrumento linguístico próprio do poeta e sua capacidade especial de utilizar-se dele - incluindo, no ataque, ritmo e figuras - para representar a realidade. Para Platão, a realidade é racional, científica e lógica, ou não é nada. O instrumento poético, segundo a visão de Havelock (1996), ao invés de revelar as verdadeiras relações entre as coisas ou as verdadeiras definições das virtudes morais, forma uma espécie de tela refratora que dissimula e distorce a realidade e, simultaneamente, distrai, recorrendo à mais superficial das nossas percepções. A indagação platônica acerca da criação poética envolve uma pressuposição que não faz muito sentido: o poeta necessita mesmo ser hábil em tudo aquilo que canta? Essa é exatamente a hipótese que Platão, no livro X, adota sem discussão e leva a enfrentar o mais crucial problema na busca para o significado disso tudo. O exame do tratado como um todo cuja teoria educacional constitui a essência do plano da Politeia, portanto também a poesia o é com relação à teoria educacional141. A poesia, na sociedade contemporânea, figurava uma posição que fornecia um reservatório de conhecimentos úteis, ou seja, uma espécie de enciclopédia de ética, política, história e tecnologia que os cidadãos ativos eram obrigados a aprender com base em seu preparo educacional. Platão, no livro X, observou que a pretensão de competência técnica dos temas desenvolvidos em Homero no que concerne a todas as artes e todas as coisas humanas em torno da virtude e do vício, e também das coisas divinas, além de guerras, tática militar, administração de cidades, educação do homem, passou a pertencer ao próprio Homero. A partir disso, Platão esclarece que a respeito da opinião tradicional estabelecida sobre a poesia homérica e dos trágicos se estagna na concepção de Homero como o manual 140 141 HAVELOCK, 1996, p. 29. Idem, p. 44. 91 educacional por excelência. Os poetas em geral e Homero em particular, contudo, eram não apenas considerados como a fonte de instrução em ética e habilidades administrativas, mas também desfrutavam de uma espécie de caráter institucional na sociedade grega. A personificação de conceitos abstratos é um fenômeno complicado e controverso. A arte da retórica que surgirá mais tarde vai ensiná-los como artifícios artísticos, e a poesia alegórica servir-se-á deles generosamente até à época do barroco. O fato de este procedimento não poder ser imputado à antiguidade parece ser claro. Na medida em que os nomes dos deuses têm significado, a fronteira entre nome e conceito torna-se fluida. É precisamente atavés da homerização que as personificações gregas arcaicas adquirem o seu caráter específico, pelo qual medeiam entre os deuses individuais e as várias regiões da realidade142. Elas recebem dos deuses elementos míticos e pessoais e, em contrapartida, permitem a estes participar na ordem conceptual das coisas. As personificações começam por surgir na poesia, são transferidas para as artes visuais e desbocam, por fim, na região do culto143. Para os tempos antigos, os deuses antropomórficos eram algo evidente, embora seja difícil entender isto seriamente. Um deus é um deus na medida em que se revela. Contudo, só numa medida muito reduzida se poderia falar de epifania dos deuses antropomórficos. Platão, por sua vez, não admite que os deuses sejam suscetíveis à mudança de forma, pois são imortais e imutáveis; não enganam os homens nem com ações, nem com palavras. No livro III, 393c, ele ataca a mímesis e toda forma de imitação na epopeia, tragédia, comédia, nos ditirambos e em muitos outros gêneros; pois, para educar os guardiães da polis esse tipo de paradigma os tornariam imitadores e cidadãos duplos, uma vez que as virtudes como coragem, temperança, pureza, sabedoria, liberdade, etc., não deveriam ser imitadas por eles, mas, sim, qualidades que lhes convém adquirir desde a infância. A mimesis gerada pela poesia, no entanto, na visão platônica, será tratada por sua eficácia apenas no que concerne às ilusões que pinta, como um pintor o faz, ou mediante imagens verbais e rítmicas sem um procedimento exato de fabricação daquilo que cria. É esta, portanto, a mimesis, três vezes afastada144 que o personagem Sócrates repele a poesia na parte 142 Reinhardt, Karl. Personifikation und Allegorie, in. Vermächtnis der Antike: Gesalmmelte Essays zur Philosophie und Geschichtsschreibung, 2nd ed. (Göttingenn, 1966) p. 7-40. 143 BURKERT, 1993, p. 361. 144 PLATÃO, 1965 e 1973, vol. 2, X, 597 ss, p. 222. 92 mais importante de sua crítica, no livro X. Este uso de mimesis aponta que o discurso poético é dissimulado, ilusório, oposto à exatidão e à fidelidade mecânica do carpinteiro, e o termo aplica-se a todo conteúdo do discurso poetizado, e não apenas ao teatro. O sentido de mythos, para Platão um discurso inverificável, é contrastado com outro aspecto de discurso considerado superior por ele: o ιόγνο ou discurso verificável, aquele a partir do qual é possível comprovar algo, em seu conteúdo. A temática complexa, rica e interessante acerca das formas que o mythos assumiu e a importância que o autor a ele atribui em muitos de seus diálogos, gera consequências filosóficas essenciais. O estudo da palavra mythos, entretanto, instaura dois problemas importantes: em primeiro lugar, a relação entre mythos e logos, e o significado concreto de ambos os vocábulos, é um problema complexo e difícil, visto que, apesar da insistência dos historiadores em separar estas duas palavras como duas coisas totalmente distintas no corpus platônico, a questão não está tão clara. No caso dos relatos, parece que há uma maior distinção: Platão aplica a palavra lógos aos relatos sobre os homens, embora a palabra mythos se refira às narrações sobre deuses, daimones, herois e o Hades. Mas em outros casos, a distinção entre mythos e logos não é tão incisiva. Este fato conduz ao segundo problema relacionado ao termo mythos. O mito é exclusivamente um relato ou também faz menção a refrãos, provérbios, o contínuo ‗diz-se‘, legetai, da tradição? Tudo faz pensar que, apesar de Platão se referir geralmente a relatos, às narrações de caráter oral, também é possível relacionar a palavra mythos com um provérbio, um cânone transmitido pela comunidade e repetido constantemente. O exemplo mais claro no corpus platônico é o famoso preceito que institui a verdade de Protágoras (homem-medida) e que Platão considera um mythos.145 O significado que a palavra mythos atingiu como uma história fictícia é atribuído a Platão, visto que ele foi o primeiro a utilizá-lo neste sentido, assim como criticar seu uso e poder. Mas como indica Brisson146, há, na realidade, uma ausência de definição de mythos que procede de uma autêntica dificuldade que se refere ao termo κῦζνο. Em primeiro plano, κῦζνο, como se sabe, significa narrativa. Como Platão, no entanto, 145 146 AMORÓS, 2002, p 1-192, p. 17. BRISSON, 2005, p. 16. 93 não definiu mythos, conforme a contribuição de Vernant147, mythos é designado como uma palavra formulada quer se trate de uma narrativa (em poesia), quer de um diálogo ou da enunciação de um projeto. Μῦζνο é, então, da ordem do ιέγεηλ, do dizer, como indicam os compostos κπζνινγεῖλ e κπζνινγία, e não contrasta inicialmente com os ιόγνη, termos cujos valores semânticos são próximos e que se relacionam às diversas formas do que é dito. Antes de Platão, portanto, ele não é usado ou assimilado, no sentido de narrativa falsa, fictícia ou inverossímil. Com o auxílio deste léxico descreve-se uma prática discursiva particular, emitindo um juízo sobre o seu estatuto em relação à outra prática discursiva que ele considera dotada de um estatuto elevado. O que se deve analisar são as críticas platônicas ao discurso em que consiste o mythos, discurso mítico, a partir do discurso que caracteriza o filosófico e que Platão descreve como provido de uma constituição superior, a saber, o discurso do ιόγνο. Contudo, isto não impede Platão de utilizá-lo em seus diálogos e nem de reconhecer a sua utilidade, integrando-o em seu próprio discurso, ainda que mythos não seja verificável, nem argumentativo. O mythos - sob uma perspectiva que remonta à origem dos deuses e que se refere às experiências transmitidas oralmente por sucessivas gerações durante um largo período - se caracteriza pela falta de uma cronologia precisa e fundamentalmente pela ignorância sobre o que se produziu, ou aconteceu, realmente; já para a história uma cronologia, ou datação tão exata quanto possível é imprescindível. Platão declara que apesar de não sabermos a veracidade dos relatos míticos do passado, o mythos mostra-se útil, ainda que possua um caráter mimético, ilusório, pois a imitação porta em si uma eficácia temível148: a persuasão. O estudo passará, em seguida, a tratar dos ἐηθόλεο de Platão de modo a investigá-los por meio de amostras retiradas dos próprios corpora, sugerindo algumas reflexões sobre o significado do termo em si, tal como a estrutura e os conceitos que essas imagens anunciam. 147 148 VERNANT, 1999, p. 172. BRISSON, 2005, p. 89-95. 94 2. O significado dos εἰκόνερ nos corpora da Politeia e do Timeu Antes de apresentar o significado dos εἰθόλεο em Platão, evidencio a multiplicidade de sentidos do termo εἰθώλ, imagem, que toma em consideração o âmbito filológico e filosófico, pitagóricos e pressocráticos. Na verdade, não há em grego um termo único equivalente ao nosso ―imagem‖, o que se pretende é verificar, breve e claramente, devido a grande amplitude de significados desse termo, os campos semânticos e sua correlação com os muitos atributos para o mesmo nome: imagem. Nos Pitagóricos aparecem somente os termos εἰθώλ e ἄγαικα e seu significado passa a ser equivalente. No âmbito das chamadas ―proibições pitagóricas‖, Jâmblico (v. P. 84 = DK58C4) cita a que consiste em não usar a imagem (εἰθόλα) de um deus como sinete de um anel, para que a imagem não seja contaminada. A imagem (ἄγαικα), pelo contrário, deve ser honrada e guardada em casa. Aqui a imagem indica simplesmente um símbolo, ou seja, ―o que remete para‖ outra coisa, neste caso, um deus, quer se trate de uma imagem representada por uma pintura ou por uma estátua (ἄγαικα)149. A ―proibição‖, desse modo, se for autêntica, recomenda que não contaminemos a imagem de um deus, expondo-os a todos e em público, mas que a veneremos apenas em ambiente doméstico, onde se pressupõe que haja uma atmosfera piedosa. Por sua vez, isso pressupõe que entre a imagem e o que é representado pela imagem haja uma estreita relação, tanto que a eventual ofensa à primeira recairia também sobre o segundo. Também em Arquitas encontramos os termos pitagóricos εἰθώλ e ἐνηθέλαη na tradução latina por imago e similitudo, usados numa passagem de Apuleio150 (apol. 15). O autor questiona se o filósofo deve olhar-se no espelho, defendendo que ele não só deve olhar para sua imagem (similitudinem), mas também examinar as causas da imagem (similitudinis). Para Anaxágoras, nenhuma semente ―se parece‖ com outra e, por conseguinte, nenhuma coisa se assemelha a outra: ―as sementes ilimitadas por quantidade não são semelhantes umas às outras em nada (νὐδὲλ ἐνηθόησλ ἀιιήινηο). Nem das outras coisas uma é semelhante (ἔνηθε) à outra‖ (Simpl. phys. 157, 9 = DK59B4); ―estas coisas [sementes] giravam e 149 CASERTANO, in Teoria da Imagem na Antiguidade, 2012, p. 120. Apuleius, philosophus, orator, poeta, natus circiter anno 125 Madaurae in Numidia, circiter anno 160 Carthagine sacerdos provinciae, obiit circiter anno 180. Fonte: http://www.hsaugsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost02/Apuleius/apu_intr.html 150 95 separavam-se por ação da força e da velocidade. De fato, é a velocidade que produz a força (βίελ δὲ ηαρύηεο πνηεῖ). Mas sua velocidade não é semelhante (ἔνηθε) à de nenhuma das coisas que agora existem entre os homens‖ (Simpl. phys. 35, 13 = DK59B9)151. Górgias, por sua vez, usa ἀγάικαηα com o sentido comum de estátuas ou pinturas: ―ergueram troféus dos inimigos, que servem como ornamentos (ἀγάικαηα) votivos a Zeus e monumentos a si mesmos‖ (Planud. ad Hermog. v 548 Walz = DK82B6). Aqui Górgias está fazendo um elogio aos Atenienses que se distinguiram na guerra. São imagens as figuras e os retratos que se assemelham àquilo do que são figuras e retratos, e o que Platão, em um famosos passo do Crátilo, define como eikonos orthotes, correção representativa152: ΢σθξάηεο: ὁξᾷο νὖλ, ὦ θίιε, ὅηη ἄιιελ ρξὴ εἰθόλνο ὀξζόηεηα δεηεῖλ θαὶ ὧλ λπλδὴ ἐιέγνκελ, θαὶ νὐθ ἀλαγθάδεηλ, ἐάλ ηη [d] ἀπῆ ἢ πξνζῆ, κεθέηη αὐηὴλ εἰθόλα εἶλαη; ἢ νὐθ αἰζζάλῃ ὅζνπ ἐλδένπζηλ αἱ εἰθόλεο ηὰ αὐηὰ ἔρεηλ ἐθείλνηο ὧλ εἰθόλεο εἰζίλ; 153 Sócrates: Não vê então, ó amigo, que é necessário procurar outra justeza da imagem diferente da que a pouco falávamos, e que não deixe de ser por necessidade imagem, se retirar ou inserir algo? Ou tu não percebes o quanto as imagens estão longe de manterem-se o mesmo das quais são imagens? Ao inferir um modelo para o cosmo, Platão estabeleceu uma ἀξρή, um princípio, para a causa de tudo que por natureza é gerado. Sendo o cosmo necessariamente imagem de algo, significa que há outra realidade inteligente e racional que se encontra num lugar hiperurânio, conforme o Livro X da Politeia, mas que no Timeu representa o intelecto de um demiurgo, ηὸλ πνηεηὴλ θαὶ παηέξα ηνῦδε ηνῦ παληὸο, criador e pai deste todo (cosmo), que realizou, ordenou e constituiu todo devir. O cosmo físico, desse modo, foi gerado por um demiurgo como imagem sensível de um modelo inteligível. ηόδε δ᾽ νὖλ πάιηλ ἐπηζθεπηένλ πεξὶ αὐηνῦ, πξὸο πόηεξνλ η῵λ παξαδεηγκάησλ ὁ ηεθηαηλόκελνο αὐηὸλ [29a] ἀπεξγάδεην, πόηεξνλ πξὸο ηὸ θαηὰ ηαὐηὰ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ ἢ πξὸο ηὸ γεγνλόο154. Por isso, outra vez, isto deve ser refletido acerca dele mesmo em relação a um dos paradigmas, o que constituiu o realizava [29] conforme o que se mantém um só e o mesmo ou com relação ao que está gerado? 151 CASERTANO, in Teorias da Imagem na Antiguidade, 2012, p. 132-3. PALUMBO, L, in Teorias da Imagem na Antiguidade, 2012, p. 148. 153 PLATO, 1903, Tomus I, 432c7-d3. 154 PLATO, 1903, Tomus IV, 28c5-29a2. 152 96 Na Politeia, em 509a9-10, Platão, antes de estabelecer a analogia entre o Sol e o Bem, coloca na boca do personagem Sócrates os seguintes dizeres: εὐθήκεη, ἦλ δ᾽ ἐγώ: ἀιι᾽ ὧδε κᾶιινλ ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ ἔηη ἐπηζθόπεη. Bom augúrio, disse eu, mas observa ainda mais esta imagem dele.155 No tocante à imagem que podemos fazer do Bem para Platão, Brisson 156 situa essa passagem a partir de seu contexto, ou seja, exatamente como o sol, que é a causa da geração do mundo sensível, se encontra para além de toda geração, mesmo que ele pertença ao domínio da geração, assim também a Forma do Bem se encontra para além de todo ser, ainda que ele pertença ao domínio do ser. Como interpretar essa passagem, fugindo da contradição? 1) O ser e a realidade que o Bem dispensa são sempre um ser determinado e uma realidade determinada (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ, 509b7-8). 2) Esse ser e essa realidade, as coisas tomam-nos do bem que se encontra no exterior delas (ὑπ᾽ ἐθείλνπ αὐηνῖο πξνζεῖλαη, 509b8). 3) Mas a transcendência do Bem não é absoluta, ela é qualificada: ela ultrapassa a ousía das outras realidades, não em si, mas em dignidade e em potência, exatamente como o rei excede seus súditos em dignidade e em potência, mesmo que ele continue sendo um humano. Em outros termos, o Bem não é uma ousía no mesmo sentido que as coisas dele dependentes o são; o Bem é a causa enquanto as outras coisas só são o efeito, tal como o sol dá conta da geração das coisas sensíveis, sem ele mesmo pertencer ao tipo de geração da qual é a causa, pois é um deus. Entretanto, ele veio a ser (poderia ser, portanto, destruído), e ele se move. Em outros termos, o sol apresenta sobre as coisas sensíveis, cuja geração ele explica, uma superioridade evidente (ele não cresce, nem definha), mas ele permanece uma divindade sensível, cuja luminosidade e movimento podemos observar bem como perceber o calor. Guardada a devida proporção, com o Bem acontece o mesmo em relação ao ser. É interessante perceber, antes de concluir por analogia, que o Sol é o que fornece às coisas que são vistas a capacidade de serem vistas, não sendo ele a origem157. Por outro lado, 155 MURACHCO, 1998, p. 177. BRISSON, 2003, p. 107. 157 PLATO, 1903, Resp., VI, 509b1-3: ―ηὸλ ἥιηνλ ηνῖο ὁξσκέλνηο νὐ κόλνλ νἶκαη ηὴλ ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο, ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ αὔμελ θαὶ ηξνθήλ, νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα.‖. ―Tu dirás, creio eu, que o 156 97 para as coisas que são conhecidas, não apenas o ser conhecido, mas também o existir e a essência estão presentes sob o efeito do bem, ainda que ele não seja a essência 158; uma imagem é anunciada e construída por meio de um raciocínio analógico que o εἰθώλ comporta e compreende ao mesmo tempo. Esse comportamento do diálogo em que uma analogia é conteúdo de uma imagem, isto é, em que um εἰθώλ anuncia uma ἀλαινγία, só pode ser reconhecido, até então, no contexto da Politeia. No Timeu, por exemplo, cria-se uma relação entre os discursos, ιόγνη, a imagem, εἰθώλ, o verossímil, ἐηθώο, e o paradigma, παξάδεηγκα, para o qual o demiurgo olha para criar o cosmo, ou seja, o belo e o eterno: ηνὺο δὲ ηνῦ πξὸο κὲλ ἐθεῖλν ἀπεηθαζζέληνο, ὄληνο δὲ εἰθόλνο εἰθόηαο ἀλὰ ιόγνλ ηε ἐθείλσλ ὄληαο: ὅηηπεξ πξὸο γέλεζηλ νὐζία, ηνῦην πξὸο πίζηηλ ἀιήζεηα.159‖ ... mas, com relação aos discursos (congêneres) do que foi feito imagem em relação àquele (paradigma), sendo imagens e que são verossímeis por analogia daquelas: o que precisamente a essência é em relação à origem, isso é a verdade em relação à essência. No contexto do Timeu, εἰθώο significa que dois objetos, duas situações ou duas ideias têm algum ponto em comum. Δἴθώλ, por sua vez, tem o significado de imagem ou cópia, é a representação do modelo pelo qual o cosmo será constituído, como fica evidente no passo 29b1-4: ηνύησλ δὲ ὑπαξρόλησλ αὖ πᾶζα ἀλάγθε ηόλδε ηὸλ θόζκνλ εἰθόλα ηηλὸο εἶλαη. κέγηζηνλ δὴ παληὸο ἄξμαζζαη θαηὰ θύζηλ ἀξρήλ. ὧδε νὖλ πεξί ηε εἰθόλνο θαὶ πεξὶ ηνῦ παξαδείγκαηνο αὐη῅ο δηνξηζηένλ… Sendo isso, por sua vez, o que subjaz, há toda necessidade de ser o cosmo imagem de algo. O mais importante de tudo é iniciar-se o princípio conforme a natureza. Afinal, assim, deve-se delimitar, acerca da imagem e do modelo dele. Por outro lado, Sócrates proporciona uma primeira definição de εἰθώλ no livro VI, na ilustração da Linha, em 509e-510a3: sol não só fornece às coisas que são vistas a faculdade de serem vistas, mas também a origem, o crescimento e o alimento, mesmo não sendo ele a origem‖. 158 PLATO, 1903, 509b5-9: ―θαὶ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ ἀγαζνῦ παξεῖλαη, ἀιιὰ θαὶ ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ᾽ ἐθείλνπ αὐηνῖο πξνζεῖλαη, νὐθνὐζίαο ὄληνο ηνῦ ἀγαζνῦ, ἀιι᾽ ἔηη ἐπέθεηλα η῅ο νὐζίαο πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη ὑπεξέρνληνο.‖. ―Pois é; também para as coisas que são conhecidas tenhas claro que não só o ser conhecido está presente sob o efeito do Bem, mas também que o existir e a essência se acrescentam a elas, sob o efeito dele, não por ser o Bem uma essência, mas até estando de longe acima da essência em majestade e poder.‖. 159 PLATO, 1903, 29c1-2. 98 ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκ῅κα εἰθόλεο - ιέγσ δὲ ηὰο εἰθόλαο πξ῵ηνλκὲλ ηὰο ζθηάο, ἔπεηηα ηὰ ἐλ ηνῖο ὕδαζη θαληάζκαηα θαὶ ἐλ ηνῖο ὅζα ππθλά ηεθαὶ ιεῖα θαὶ θαλὰ ζπλέζηεθελ, θαὶ πᾶλ ηὸ ηνηνῦηνλ, εἰ θαηαλνεῖο. ... no segmento que é visto o outro segmento: imagens. E eu chamo imagens, em primeiro lugar, as sombras; a seguir, as aparições/projeções nas águas e nos corpos, quantos, em sua consistência, são sólidos, lisos e brilhantes e tudo quanto é desse gênero, se és que estás me entendendo.160 A leitura de Brisson (2003, p. 108) sobre a imagem do Bem evidencia que nada na obra de Platão, em geral, e na República, em particular, permite situar o Bem para além do inteligível, visto que, o Bem na República, não se encontra, em sentido estrito, para além do inteligível, apesar de ele construir o cimo. Nesse diálogo, Platão evoca várias vezes a Forma161 do Bem, (505a2, 508e2, 517b8, 534b9) e a qualifica muito naturalmente de modelo (paradeigma). Por outro lado, Platão apresenta o Bem como o que há de mais brilhante no ser, ηνῦ ὄληνο ηὸ θαλόηαηνλ, em VII 518c9; o que apresenta a maior felicidade no ser, ηὸ εὐδαηκνλέζηαηνλ ηνῦ ὄληνο, em 526e3; e o que há de melhor entre os seres, ηνῦ ἀξίζηνπ ἐλ ηνῖο νὖζη, em 532c5. Assim sendo, o Bem deve ser apreendido pelo intelecto, como o prova a passagem que compara o processo de conhecimento à elevação do prisioneiro que sai da caverna. Quando se recorre à prática da dialética, sem nenhum recurso dos sentidos, por meio da razão, para atingir o que cada coisa é em si; quando não se desiste desse esforço, antes de se ter apreendido só pela intelecção o que é o Bem em si, atinge-se o termo mesmo do inteligível, ou pensável, como o prisioneiro, outrora havia alcançado o termo do visível162: νὕησ θαὶ ὅηαλ ηηο ηῶ δηαιέγεζζαη ἐπηρεηξῆ ἄλεπ παζ῵λ η῵λ αἰζζήζεσλ δηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐπ᾽ αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ ὁξκᾶλ, θαὶ κὴ ἀπνζηῆ πξὶλ [b] ἂλ αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἀγαζὸλ αὐηῆ λνήζεη ιάβῃ, ἐπ᾽ αὐηῶ γίγλεηαη ηῶ ηνῦ λνεηνῦ ηέιεη, ὥζπεξ ἐθεῖλνο ηόηε ἐπὶ ηῶ ηνῦ ὁξαηνῦ.163 Assim, quando um homem intenta, pela dialética, sem o auxílio de nenhum sentido, mas por meio da razão, atingir a essência de cada coisa, e não se detém até que tenha apreendido pela só inteligência a essência do bem, ele alcança o termo do inteligível, 160 MURACHCO, 1998, p. 178. Na verdade, meu ponto de vista é o de que Sócrates se refere à ideia do Bem, ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα, VI 5050a2. 162 BRISSON, 2003, p. 109. 163 PLATO, 1903, VII 532a5-b2. 161 99 assim como o outro, há pouco, alcançava o termo do visível. 164 A metáfora da Linha dividida realiza a principal divisão gnosiológica platônica, ou seja, entre sensível e inteligível, respectivamente entre opinião e conhecimento. A opinião pertence, contudo, aos domínos do mundo sensível, ao passo que, por analogia, a ciência e o conhecimento, aos do mundo inteligível.165 Trabattoni chama ―pensamento‖ a νοήζις e διάνοια. Segundo a interpretação mais difundida, a dianoia seria um pensamento de caráter discursivo, teria por objeto os entes matemáticos-geométricos, enquanto a noesis seria um pensamento de caráter intuitivo e teria como principal objeto verdadeiramente as ideias. Dianoia, antes de tudo, significa pensamento em geral. O termo noesis é introduzido por Sócrates para distinguir, dentro do pensamento em geral, um pensamento de tipo particular: trata-se do pensamento que não se move a partir de hipóteses (de natureza sensível) em direção ao baixo, isto é, para o mundo da experiência, mas se move em direção ao alto, à procura do princípio não hipotético. Da análise desse trecho, podemos chegar a duas conclusões: 1) a forma mais elevada de saber (noesis) possui caráter discursivo/proposicional, mas não intuitivo; 2) não existe uma diferença real entre os objetos tratados pela dianoia e aqueles estudados pela noesis: dado que ambas as noções indicam o pensamento e dado também que o pensamento só pode se ocupar dos inteligíveis, o objeto das duas faculdades deve ser o mesmo. A única diferença será em relação ao método e consiste precisamente no fato de que somente a noesis considera os inteligíveis como ideias puras e os trata de forma apropriada166. Na Politeia, VI 510d6-511e5, a imagem da Linha Seccionada formula a seguinte estrutura analógica de base epistemológica, através das quatro afecções expostas no corte do gênero inteligível: λνήζηο = δηάλνηα πίζηηο εἰθαζία Cabe ao estudo realizar um exame que possibilite uma distinção entre os pares λνήζηο/δηάλνηα e πίζηηο/εἰθαζία, na primeira estrutura analógica. ‗Noesis‘ e ‗dianoia’, cujo campo é o inteligível, formam as bases epistemológicas do enunciado e ocupam uma posição 164 PLATÃO, 1965 e 1973, vol. 2. p. 131. TRABATTONI, 2010, p. 112-3. 166 Idem, 115. 165 100 superior na linha. Πίζηηο e εἰθαζία, por sua vez, ocupando um lugar inferior do segmento inteligível, remetem a uma subjetividade da sensação que não fornece conhecimento verdadeiro. A Linha Seccionada é o primeiro lugar em que Platão contrasta dois modos de operar da parte racional da alma. A distinção não é, neste caso, renovada ao longo da crítica das ciências matemáticas no livro VII, onde, com a abstenção de uma linguagem técnica comum em Platão, λνήζηο, δηάλνηα e ινγηζκόο são sinônimas, todas significam reflexão ou inteligência ou pensamento abstrato167. Mas noesis e dianoia tornam-se novamente distintas nas explicações posteriores da dialética (531d-535a). Qual o grau de distinção? Ocorre, primeiro, no contraste entre matemática e dialética (510b-511e). Aqui será conveniente manter separado quatro elementos em contraste: (a) objetos; (b) métodos de proceder; (c) movimentos do pensamento, dedutivo e intuitivo, mostrados nos processos; (d) estados de mente, característicos dos matemáticos e dos consumados dialéticos. A única distinção indicada não é a diferença entre alto e baixo, mas consiste na natureza de dois tipos de ideias. Os matemáticos podem usar imagens visíveis: um número pode ser representado por um conjunto de coisas, um quadrado por uma imagem. Para as ideias éticas não há imagens visíveis, sua semelhança nesse mundo são invisíveis atributos da alma. Cornford168 conclui que os termos noesis e dianoia, a partir de uma distinção observada entre eles, são usados em diferentes sentidos, assim como o curioso nome εἰθαζία, para a quarta experiência intelectual, inclui ‗percepções de imagens‘ e ‗conjeturas‘ (os prisioneiros na Caverna assistem à sequência de sombras cambiantes que passam, e divino que virá a seguir, 516c-d). Noesis significa, em geral, (a) como o oposto de αἴζζεζηο ou δόμα, a cognição de cada objeto ou verdades no domínio do inteligível; (b) em oposição a dianoia, primeiro, o ato intuitivo de apreender, por um salto superior, uma Ideia ou uma verdade anterior implícita na conclusão (por este sentido ἅςαζζαη, θαηηδεῖλ, ζεᾶζζαη, etc., são frequentemente substituídas por λνεῖλ); segundo, o estado de mente (propriamente chamado λνῦλ ἔρεηλ ou ἐπηζηήκε) de alguém que veja com perfeita clareza a estrutura total da verdade iluminada pelo princípio inquestionável. 167 168 ALLEN, 1965, p. 62. Idem, p.76. 101 Dianoia significa, de modo geral, (a) pensamento abstrato (com λνήζηο e ινγηζκόο como sinônimos); (b) em oposição à noesis, primeiro, o movimento descendente do entendimento, que segue um argumento dedutivo de uma premissa até uma conclusão; segundo, o estado de mente incerto de que é denominado ‗conhecimento‘ consiste apenas em correntes isoladas de raciocínio dependentes de um pressuposto também não demonstrado ou não visto como indemonstrável.169 Os axiomas epistemológicos de base ontológica no Timeu, em 29c3, geram a seguinte proporção: νὐζία = γέλεζηο ἀιήζεηα πίζηηο Οὐζία e γέλεζηο são oriundas, respectivamente, de ηὸ ὂλ ἀεί – que representa o domínio da λνήζηο e do ιόγνο - e de ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί – que corresponde ao plano da δόμα, πίζηηο e αἴζζεζηο: ηὸ κὲλ δὴ λνήζεη κεηὰ ιόγνπ πεξηιεπηόλ, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, ηὸ δ᾽αὖ δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ δνμαζηόλ, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, ὄλησο δὲ νὐδέπνηε ὄλ.170 Um, apreensível pelo pensamento com a razão, sendo sempre um só e o mesmo outro, opinável pela opinião com a sensação irracional, tornando-se e perecendo, mas jamais sendo. A νὐζία é sempre aquilo que ela é, é permanência, é eternidade. Em 37e3-5, Timeu explica que a única maneira de falar corretamente da essência, é dizer dela que ela é, nunca que era ou será, formas que só podem servir para o tempo que começou um dia. ηαῦηα δὲ πάληα κέξε ρξόλνπ, θαὶ ηό η᾽ ἦλ ηό η᾽ ἔζηαη ρξόλνπ γεγνλόηα εἴδε, ἃ δὴ θέξνληεο ιαλζάλνκελ ἐπὶ ηὴλ ἀίδηνλ νὐζίαλ νὐθ ὀξζ῵ο. E todas essas porções de tempo, e o ―era‖ e o ―será‖, formas do tempo nascidas, nós, sem perceber, as aplicamos incorretamente à essência eterna. 171 As propriedades da γέλεζηο são distintas dos atributos da νὐζία, visto que a origem está ligada ao tempo, ao movimento do que nasce e morre. A gênese, enquanto ela, começou um dia e existe em função do decorrer do tempo. 169 CORNFORD, 1965, p. 77. PLATO, 1903, 28a1-4. 171 MURACHCO, F. Y., 2004, p. 88. 170 102 ιέγνκελ γὰξ δὴ ὡο ἦλ ἔζηηλ ηε θαὶ ἔζηαη, ηῆ δὲ ηὸ ἔζηηλ κόλνλ θαηὰ ηὸλ [a] ἀιεζ῅ ιόγνλ πξνζήθεη, ηὸ δὲ ἦλ ηό η᾽ ἔζηαη πεξὶ ηὴλ ἐλ ρξόλῳ γέλεζηλ ἰνῦζαλ πξέπεη ιέγεζζαη.172 Pois, na verdade, dizemos: ―era‖, ―é‖ e ―será‖, no entanto, para ela, só o ―é‖ se encaixa segundo um enunciado verdadeiro, e o ―era‖ e o ―será‖ convém que sejam ditos a respeito do devir que progride no tempo:173 O homem imerso no devir, por sua constituição, participa da essência eterna, mas não é capaz de conhecê-la em toda sua plenitude. De fato, a essência não lhe é dada como evidência, mas como algo a desvendar: este é o primero significado de ἀιήζεηα.174 Ἀιεζήο é o que as palavras revelam das coisas, sendo conforme à realidade dessas: ιόγνο δὲ ὁ θαηὰ ηαὐηὸλ ἀιεζὴο γηγλόκελνο πεξί ηε ζάηεξνλ ὂλ θαὶ πεξὶ ηὸ ηαὐηόλ, ...175 O enunciado, que se torna verdadeiro segundo si mesmo e sobre o que é o outro e o que é o mesmo, ...176 Mais ainda, a verdade é a própria realidade da essência, enquanto o vir-a-ser só pode contar com uma adesão à sua existência: ὅηηπεξ πξὸο γέλεζηλ νὐζία, ηνῦην πξὸο πίζηηλ ἀιήζεηα.177 O que precisamente a essência é em relação à origem, isso é a verdade em relação à crença. O verdadeiro antes de ser uma relação ou um julgamento, é essencialmente um em si. Esse é o significado que Platão parece dar ao termo ἀιήζεηα ao estabelecer uma analogia entre νὐζία e ἀιήζεηα e entre γέλεζηο e πίζηηο. A crença é uma atitude do espírito frente ao vir a ser que comporta uma adesão não isenta de incertezas, pois remete ao que é imagem do ser.178 172 PLATO, 1903, 37e5-38a2. MURACHCO, F. Y., 2004, p. 90. 174 Idem, p. 230. 175 Idem, p. 86. 176 PLATO, 1903, 37b3-5. 177 PLATO, 1903, 29c3. 178 MURACHCO, F., 2004, p. 232. 173 103 A Caverna é claramente introduzida pelo verbo ἀπεηθάδσ que conduz ao sentido daquilo que Platão já vem desenvolvendo desde a imagem analógica do Sol com o Bem até a noção de εἰθαζία no segmento inteligível da Linha: κεηὰ ηαῦηα δή, εἶπνλ, ἀπείθαζνλ ηνηνύηῳ πάζεη ηὴλ ἡκεηέξαλ θύζηλ παηδείαο ηε πέξη θαὶ ἀπαηδεπζίαο.179 Depois dessas coisas, disse, imagina com tamanha afecção a nossa natureza acerca da educação e da ausência de educação. A intenção de Sócrates ao utilizar o verbo ἀπείθαζνλ no imperativo aoristo é a de exortar Glauco e os demais participantes do diálogo a ―formarem uma imagem‖, ―representarem pela imagem‖, ―conjeturarem‖, ou simplesmente ―imaginarem‖ uma imagem, cuja base se apoia em um ἐηθώλ. Na imagem da Caverna, contudo, ἀπεηθάδσ tem o sentido de ―eu comparo‖, ―faço uma imagem a partir de‖, mas ele também pode ser traduzido com a acepção de ―reproduzir por imitação‖, o que sugere sempre um modelo a copiar. Aparência, imagem da realidade, semelhança interna, ἐηθώλ e ἀπεηθάδσ, são, não obstante, aquilo que o homem é capaz de apreender num primeiro momento, e às vezes não é capaz de ultrapassar esse estágio até quando vislumbra uma realidade superior. Sendo possível pensar com imagens, ícones e paradigmas dos valores, então será possível encontrar similaridades entre os movimentos da alma que apreende as formas das virtudes nos livros iniciais da Politeia e o que apreende a ideia do bem nos livros centrais, a partir do modo como as diferentes imagens são utilizadas, recebidas e produzidas pela alma: εἴδσινλ, ἐηθώλ, θάληαζκα. Platão utiliza os diversos conceitos de imagens, dentre os quatro aqui enumerados: ídolo = εἴδσινλ, ícone = ἐηθώλ, simulacro = θάληαζκα e paradigma = παξάδεηγκα, sem qualquer critério de diferenciação dos termos entre si. Os εἴδσια percorrem três momentos da Politeia: a educação inicial do imaginário dos jovens, a apresentação da imagem da justiça e da imagem do bem encontradas no sono e a crítica aos poetas no livro X. A passagem da imagem da justiça (εἴδσιόλ ηη η῅ο δηθαηνζύλεο, 443c3-4) não chega a ser adjetivada de falsa, como acontecerá com a crítica às imagens de alguns poetas, mas indica aspectos não muito claros do que acontece quando encontramos a 179 PLATO, 1903, VII, 514a1-2. 104 justiça em um sonho. A caverna, portanto, sintetiza e reúne os diversos eikones apresentados em relação aos valores mais importantes para a polis, promovendo a convergência entre εἴδσια (ídolos), εἰθόλεο (ícones), θάληαζκαη (simulacros) e ζθηαί (sombras) para indicar o caminho correto pelo qual a alma deve transitar para ir da justiça até o bem. 3. Os conceitos de ἀλαινγία na antiguidade Sobre a noção de analogia, em primeira ordem, apegado aos poucos fragmentos de Arquitas que nos chegaram, pode-se vislumbrar como elemento chave de seu pensamento as principais definições e estudos sobre a analogia que correspondem plenamente ao processo filosófico do pitagorismo. Um estudo a respeito da Escola de Mileto nos conduziria, com Anaxímenes, até a metade do século V a. C. Por volta da mesma época vemos instaurar-se uma nova escola, na ilha de Samos, que se situa não muito distante da costa da Ásia Menor, entre Éfeso e Mileto. Essa escola, em seguida, emigrará para Crotona, próspera cidade da Magna Grécia, na parte ocidental do Golfo de Tarento, e depois para Metaponto. Ela conhecerá desde suas origens uma fortuna extraordinária, e, após sua dispersão, continuará a exercer, por suas doutrinas, uma influência preponderante no desenvolvimento do pensamento científico e filosófico gregos180. No séclo IV a.C., a principal sede da escola, consoante Burnet 181, era a cidade dórica de Tarento, e encontram-se os pitagóricos liderando a oposição a Dionísio de Siracusa. É a esse período que pertence a atividade de Arquitas. Ele era amigo de Platão e quase realizou o ideal do rei filósofo. Governou Tarento durante anos, e Aristóxeno nos conta que nunca foi derrotado no campo de batalha182. Foi também o inventor da mecânica matemática. Nessa mesma época, o pitagorismo enraizou-se no Oriente. Lísis permaneceu em Tebas, onde Símias e Cebes tinham ouvido Filolau, enquanto o restante da escola pitagórica de Régio instalou-se em Fliunte. 180 BACCOU, 1951, p. 87. BURNET, 2006, p. 293. 182 Diógenes, VIII, 79-83 (R. P., 61). O próprio Aristóxeno veio de Tarento. A história de Dámon e Fíntias (contada por Aristóxeno) pertence a esse período. 181 105 Aristóxeno, por sua vez, conheceu pessoalmente a última geração dessa escola e mencionou nominalmente Xenófilo da Cálcida, da Trácia, junto com Fânton, Equécrates, Díocles e Polimnasto de Fliunte. Todos eram, disse ele, discípulos de Filolau e Êurito183. Sabe-se por Platão que Símias e Cebes, de Tebas, e Equécrates de Fliunte, também foram contemporâneos de Sócrates184. Xenófilo foi mestre de Aristóxeno e viveu em Atenas em perfeita saúde até os 105 anos185. Através de Platão, que muito deve a Pitágoras, a escola propagará algumas de suas ideias essenciais no mundo, e fará expandir, além disso, uma revivificação até o século V de nossa era. Isso significa que com ela se remontará a uma das principais fontes de especulação helênica, e, dentro da ampla mesura a que ela o deve, a uma das fontes da filosofia ocidental. Não seria, contudo, Pitágoras, o fundador da Escola de Samos chamada mais tarde de Escola Itálica, visto como um personagem legendário? Pitágoras foi, com efeito, considerado como um ser sobre-humano, quase divino, e sua memória, após sua morte, está envolta por verdadeiros cultos, por seus discípulos entusiastas e piedosos. Baccou (1951, p. 92-3), observou que, no que concerne à escola pitagórica, e apesar der ser lendária, ela ainda não aparecerá, e, se já existe, ela é sutilmente secreta. O próprio Platão quando se refere ao filósofo de Samos, no Livro VII da Politeia, em 530d6-9, não a menciona: θηλδπλεύεη, ἔθελ, ὡο πξὸο ἀζηξνλνκίαλ ὄκκαηα πέπεγελ, ὣο πξὸο ἐλαξκόληνλ θνξὰλ ὦηα παγ῅λαη, θαὶ αὗηαη ἀιιήισλ ἀδειθαί ηηλεο αἱ ἐπηζη῅καη εἶλαη, ὡο νἵ ηε Ππζαγόξεηνί θαζη θαὶ ἡκεῖο, ὦ Γιαύθσλ, ζπγρσξνῦκελ. ἢ π῵ο πνηνῦκελ; Parece que - redargui – assim como os olhos foram formados para a astronomia, os ouvidos o foram para o movimento harmônico, e que estas ciências são irmãs, como afirmam os Pitagóricos, e como nós, ó Glauco, admitimos, não é? 186 E sua descrição é tão mais significativa que ele provavelmente fora iniciado por Arquitas aos segredos da seita. Será necessário chegar até Aristóteles para encontrar um primeiro rumor. Mas este rumor é preciso, tão preciso que supõe uma tradição amplamente 183 Diógenes, VIII, 46 (R. P., 62). Toda encenação do Fédon pressupõe isso, e é realmente inacreditável que Platão tenha feito uma exposição equivocada do assunto. Símias e Cebes eram pouco mais jovens que Platão. Ele dificilmente se arrisacaria a apresentá-los como discípulos de Sócrates, se de fato não o tivessem sido. Também Xenofonte (Mem., I, 2, 48) inclui Símias e Cebes em sua lista de discípulos autênticos de Sócrates e, noutro trecho (III, 11, 7), diz-nos que eles foram chamados de Tebas por Sócrates e não mais se afastaram dele. 185 Ver Aristóxeno apud Val. Max., VIII, 13, ext. 3, e Suda, s. v. 186 PLATÃO, 1965 e 1973, vol. 2. p. 129. 184 106 elaborada. É concebível também pensar que essa tradição surgiu em meio aos pitagóricos por volta do final do século, mas não fora tão plenamente divulgado como no século VI. O fundador do Liceu a recolhe numa obra intitulada Περί ηων Πσθαγορείων, do qual lamentavelmente nos restam apenas fragmentos citados por Apolônio, o paradoxógrafo (Diels 4,7), e por Eliano (Var. Hist., II 26 e IV, 17). A figura de Pitágoras, no entanto, já aparece nesse período como a de um taumaturgo a qual especificamente se relacionam muitos milagres ocorridos nos teatros de Crotona e Metaponto. Ele possuía, conforme as fontes já apontadas, o dom da segunda visão, da precognição ou previsão e da ubiquidade, ou seja, estar ao mesmo tempo em dois locais distintos. Sua influência e domínio se exerciam sobre as criaturas e sobre o mundo inanimado. Dentre as diversas etapas da lenda acerca da vida de Pitágoras, é preciso admitir a grande dificuldade em revelar, como em todas as lendas, o progredir da tradição pitagórica e de como é possível compreender o pitagorismo por inteiro. A dúplice divisão da escola fez brotar no cerne do pitagorismo duas correntes, ou seja, a primeira tradição esotérica designada acusmáticos, ἀθνπζκαηηθνί, e a segunda matemáticos, καζεκαηηθνί. De uma parte ela representa Pitágoras como um tipo de ser sobrenatural, profundamente sábio e reformador religioso; de outra, como um filósofo e um excepcional estudioso. Mas sob as duas formas, ela não está plenamente vulgarizada quanto nos séculos V e III. Este componente, a dupla forma de tradição esotérica com que a escola pitagórica assumiu, é o que permite introduzir determinada ordem aos documentos biográficos 187. A existência dessa dupla tradição reporta, conforme todas as possibilidades, ao século V – início ou fim, difícil precisar. Mas Pitágoras morreu nos primeiros anos desse século, entre 497 e 496, data com a qual concorda a maior parte dos autores. Portanto, a dupla tradição que se formou no interior da escola pitagórica está apenas a uma ou duas gerações após a morte do sábio de Samos. O analogismo ou proporcionalismo que se desenvolveu nos grandes sistemas filosóficos da antiguidade e do medievo se aproximam mais de uma conceitualização lógica que matemática da analogia. Isto leva a um conceito distinto desta categoria, conceito que ainda se conserva na lógica atual e de cujas características seguintes se sobressaem: trata-se de um 187 BACCOU, 1951, p. 94. 107 raciocínio não dedutivo; é um raciocínio inferencial usado muito habitualmente por todos os homens; não pretende ser matematicamente preciso; utiliza-se na descrição e na explicação, ainda que de modo distinto em relação ao raciocínio; busca-se a similitude entre os elementos da comparação. No contexto histórico-filosófico surge a figura de Arquitas de Tarento (440-360 a. C.), matemático contemporâneo de Platão. Forneceu pela primeira vez uma teoria, a priori musical, em que ele subdividia as proporções em três classes: aritmética, quando o primeiro excede o segundo tanto quanto o segundo excede o terceiro (a/b = b/c); geométrica, quando o primeiro se relaciona com o segundo assim como o terceiro a um quarto (a/b = c/d), se os termos médios não forem iguais a proporção é denominada descontínua e se forem iguais é chamada contínua (a/b = b/c), e, enfim, quando o primeiro elemento excede o segundo por uma parte dele mesmo e o segundo excede a um terceiro pela mesma parte (a/b = a/x, b/c = b/x)188. Com o intuito de melhor reforçar os pensamentos do movimento pitagórico implícitos em Arquitas, em especial no estudo das analogias, expõe-se um dos fragmentos em que é possível perceber a tendência ao analogismo no estudo dos distintos ramos do saber, interpretando o pitagorismo como um movimento essencialmente analogista: ζηάζηλ κὲλ ἔπαπζελ, ὁκόηαλ δὲ αὔμεζελ ινγηζκὸο εὑξεζείο· 189 Tendo sido encontrado o cálculo (reflexão), tanto fez cessar o levante, quanto fará crescer a similitude (harmonia): Para o pensamento do tarentino, ινγηζκὸο, isto é, o cálculo, a reflexão, é o elemento principal do todo terreno. Trata-se de um princípio racional que agrega o semelhante, ὁκόηαλ, e harmoniza o levante, a disputa, ζηάζηλ, porque ele é centro do pensamento mesmo. Este ινγηζκὸο, seguindo os aspectos essenciais do pensamento do pitagórico, tem que ser analogia, elemento filosófico primordial, aplicado a todos os campos do saber, sobretudo à ciência. O pitagórico definiu as três médias proporcionais na música, κέζαη ἐληη ηξῖο ηᾷ κνπζηθᾷ: ἁ ἀξηζκεηηθά, ἁ γεσκεηξηθά, ἁ ὑπελαληία (ἡ ἁξκνλία). Todas explicadas por meio 188 As fontes e textos em que se pode encontrar referências ao pitagórico Arquitas de Tarento foram reunidos e traduzidos por J-P Dumond em ―Archytas‖. In: Les Présocratiques. Paris: Gallimard, 1988, p. 518-539. 189 Estobeu Fl., 1, 139. D-K 47B, 3. 108 de três elementos ou termos que se estabelecem analogicamente, ἀλὰ ιόγνλ, segundo as características de cada uma. A média aritmética é descrita por Arquitas da seguinte forma: ᾧ πξᾶηνο δεπηέξνλ πνηὶ ὑπεξέρεη ηνύηῳ δεύηεξνο ηξίηνπ ὑπεξέρεη.190 No que o primeiro supera o segundo, o segundo supera o terceiro. A geométrica é expressa por ele deste modo: ἔσληη νἷνο πξᾶηνο πνηὶ ηὸλ δεύηεξνλ θαὶ ὁ δεύηεξνο πνηὶ ηὸλ ηξίηνλ.191 São iguais o do primeiro ao do segundo e o do segundo ao do terceiro. Por fim, a média proporcional subcontrária ou harmônica cuja formulação é a seguinte: (ᾧ) ὁ πξᾶηνο ὅξνο ὑπεξέρεη ηνῦ δεπηέξνπ αὐηαύηνπ κέξεη, ηνύηῳ ὁ κέζνο ηνῦ ηξίηνπ ὑπεξέρεη ηνῦ ηξίηνπ κέξεη192 Seja tal que na parte do mesmo em que o primeiro supera ao segundo, nessa mesma parte do terceiro, o médio supera o terceiro. Arquitas além de ser considerado um dos mais importantes representantes do pitagorismo antigo por ter elaborado, entre outras coisas, a teoria das proporções aritmética, geométrica e harmônica, desempenhou também ao longo do IV século o cargo de governante da cidade de Tarento. Cícero, em sua tradução latina do diálogo Timeu, Timaeus, tomou o cuidado de explicitar o fato de que a palavra grega ἀλαινγία é traduzida pela primeira vez em latim e que se arrisca quando lhe dá um termo equivalente: Id optime adsequitur quae Graece ἀναλογία, Latine - audendum est enim quoniam haec primum a nobis novantur - comparatio pro portione dici potest.193 Segue-se isso muito bem: o que em grego se diz ἀναλογία, em latim - pois deve ser ousado, porque nós em primeiro lugar inovamos nisso - pode ser dito relação 190 Porfírio in Ptolemeu Harmonica. D-K. 47B, p. 92. Idem. 192 Idem. 193 CICERONIS, MCMLXV, 4-13. 191 109 segundo uma razão.194 Uma possível etimologia para a palavra portio, aparentemente pouco usada nos textos literários, esclarece-se como a aglomeração da expressão pro portione, ratio, deve ser tomada em suas acepções primeiras de cálculo, conta, razão, no sentido matemático do termo, em concordância com a noção a que ela se aplica ao conteúdo do diálogo. O sentido etimológico da preposição latina pro é ―na frente de, diante de, com a ideia acessória de que algo está por trás e de movimento a partir disso‖, o que explica o uso do ablativo. Por metonímia, pro passa a significar uma ideia de referência: segundo, conforme, na medida em que. Isso nos leva a entender a expressão pro ratione como ―segundo uma razão‖, ―conforme um cálculo‖. O sentido de portione, não obstante, nas línguas modernas como ―porção‖ conserva uma noção de cálculo. É sem dúvida, parte de um todo, mas uma parte delimitada segundo uma razão, é a fração de um todo. O vocábulo proportio, ou seja, ―proporção‖ em português, igualmente contém a ideia de cálculo. Portanto, ―segundo uma razão‖ é o significado rigoroso da expressão ἀλὰ ιόγνλ frequentemente usado por Platão195. Assim o demiurgo em 32b3-5 expõe que: λῦλ δὲ ζηεξενεηδ῅ γὰξ αὐηὸλ πξνζ῅θελ εἶλαη, ηὰ δὲ ζηεξεὰ κία κὲλ νὐδέπνηε, δύν δὲ ἀεὶ κεζόηεηεο ζπλαξκόηηνπζηλ: νὕησ δὴ ππξόο ηε θαὶ γ῅ο ὕδσξ ἀέξα ηε ὁ ζεὸο ἐλ κέζῳ ζείο, θαὶ πξὸο ἄιιεια θαζ᾽ ὅζνλ ἦλ δπλαηὸλ ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ ἀπεξγαζάκελνο, ... Pois, agora, convinha-lhe (o corpo do todo) ser em forma de sólido, e nunca é uma só mediedade, mas sempre duas harmonizam os sólidos: a divindade tendo colocado no meio a partir do fogo e da terra, água e ar, e tendo sido realizado conforme a mesma razão, uns em relação aos outros, o quanto era possível, ... Na matemática, a proporção é uma relação entre dois termos A e C, tal que eles sejam proporcionais entre si se e somente se houver um terceiro termo B, que possa ser colocado em relação tanto com A quanto com C. O termo B servirá, por isso, de ―intermediário‖ ou ―ponto de ligação‖ entre A e C, e dizemos que A está para B, assim como, B está para C (A:B::B:C). O conhecimento de como era a matemática na época de Platão é delicado e não restou 194 195 MURACHCO, F. Y., 2004, p. 65. Idem, p. 153. 110 nenhum tratado anterior aos Σηοιτεῖων ou Elementa de Euclides, redigido no séc. III a.C., embora se saiba que outros Elementos foram redigidos bem antes dele, particularmente por Hipócrates de Quíos no séc V a. C. Portanto, é muito difícil imaginar a história da matemática antes de Euclides e ter uma ideia do estado da matemática na época de Platão.196 O Livro V dos Σηοιτεῖων de Euclides é estruturado substancialmente por dezoito definições de analogia, seguidas por vinte e cinco proposições ou teoremas, que, na verdade, mostram a Teoria da Proporção de Eudoxo de Cnido. Dentre as 18 definições, ὅξνη, extrairei para a análise aquelas que se relacionam diretamente com as analogias dos corpora selecionados, ou seja, analogia do Sol com o Bem, a Linha Seccionada e a Caverna, assim como, as estruturas analógicas dos axiomas ontológicos e epistemológicos do Timeu. Cada proposição, por sua vez, resulta das definições, axiomas e das próprias proposições anteriormente provadas, de acordo com uma demonstração rigorosa. Euclides foi o primeiro a utilizar o método axiomático, sendo assim, seus Σηοιτεῖων constituem o primeiro e maior exemplo de um sistema lógico até hoje utilizado por outras ciências. Desse modo, em ὅξνο ε´, Euclides elucida a natureza da analogia em si. Ao que parece trata-se do aspecto essencial a toda analogia: a de que só é possível existir proporção entre dois elementos ou entre pares de elementos, se forem relacionados a partir de um terceiro que expressa essa relação: Ἀλαινγία δὲ ἐλ ηξίζηλ ὅξνηο ἐιαρίζηελ. 197 A analogia entre três termos é a menor. Precisamente aquilo que o personagem Timeu argumenta (e que será tratado posteriormente), no passo 31b8-c1: δύν δὲ κόλσ θαι῵ο ζπλίζηαζζαη ηξίηνπ ρσξὶο νὐ δπλαηόλ: Afastado de um terceiro, não é possível compor belamente apenas com dois. A definição euclidiana que se sucede, ὅξνο ϑ´, estabelece a estrutura de uma analogia composta de três termos: ὅηαλ δὲ ηξία κεγέζε ἀλάινγνλ ᾖ, ηὸ πξ῵ηνλ πξὸο ηὸ ηξίηνλ δηπιαζίνλα ιόγνλ ἔρεηλ 196 197 BRISSON, 2010, p. 47-8. Na notação moderna, uma proporção de três termos – α, β e γ –, lê-se: α : β :: β : γ. 111 ιέγεηαη ἤπεξ πξὸο ηὸ δεύηεξνλ.198 E quando três magnitudes estejam em proporção, a primeira é dita ter para a terceira uma razão dupla da que para a segunda. 199 Por fim, a proposição ὅξνο η´ que parece formular uma analogia de quatro termos: ὅηαλ δὲ ηέζζαξα κεγέζε ἀλάινγνλ ᾖ, ηὸ πξ῵ηνλ πξὸο ηὸ ηέηαξηνλ ηξηπιαζίνλα ιόγνλ ἔρεηλ ιέγεηαη ἤπεξ πξὸο ηὸ δεύηεξνλ, θαὶ ἀεὶ ἑμ῅ο ὁκνίσο, ὡο ἂλ ἡ ἀλαινγία ὑπάξρῃ.200 E quando quatro magnitudes estiverem em proporção, a primeira é dita ter para a quarta uma tripla razão da que para a segunda, e sempre continuadamente do mesmo modo, quando a proporção existir realmente. 201 Quando Platão introduz o delineamento da Linha Seccionada, no final do livro VI, atribuindo-lhe as dimensões proporcionais, ou seja, uma linha seccionada em dois cortes desiguais202, cuja estrutura pode ser comparada à Porposição 18 de Euclides203, que estabelece: ἐὰλ δηῃξεκέλα κεγέζε ἀλάινγνλ ᾖ, θαὶ ζπληεζέληα ἀλάινγνλ ἔζηαη. Caso magnitudes, tendo sido separadas, estejam em proporção, também, tendo sido compostas, estarão em proporção. A E B _______________________________________ Γ Ε Ζ Γ _______________________________________________ ἔζησ δηῃξεκέλα κεγέζε ἀλάινγνλ ηὰ ΑΔ, ΔΒ, ΓΕ, ΕΓ, ὡο ηὸ ΑΔ πξὸο ηὸ ΔΒ, νὕησο ηὸ ΓΕ πξὸο ηὸ ΕΓ· ιέγσ, ὅηη θαὶ ζπληεζέληα ἀλάινγνλ ἔζηαη, ὡο ηὸ ΑΒ πξὸο ηὸ ΒΔ, νὕησο ηὸ ΓΓ πξὸο ηὸ ΕΓ. Estejam as magnitudes separadas AE, EB, CF, FD em proporção, como a AE para a EB, assim a CF para a FD; digo que também, tendo sido compostas, estarão em proporção, como a AB para a BE, assim a CD para a FD. 204 Em outras palavras, se α : β :: β : γ, então α : γ :: α2 : β2. EUCLIDES, 2009, p. 206. 200 Em outras palavras, se α : β :: β : γ :: γ : δ, então α : δ :: α3 : β3. 201 Idem. 202 Pol., VI, 509d6-7: Ὥζπεξ ηνίλπλ γξακκὴλ δίρα ηεηκεκέλελ ιαβὼλ ἄληζα ηκήκαηα... Assim pois, como tendo tomado uma linha seccionada em dois cortes desiguais... 203 Na notação moderna: se α : β :: γ : δ, então α + β : β :: γ+ δ : δ. Aqui Euclides assume, sem prova, que a quarta magnitude proporcional para três magnitudes dadas sempre pode ser encontrada. 204 EUCLIDES, 2009, p. 223. 198 199 112 Aristóteles, por conseguinte, dá a seguinte definição de analogia na Ética a Nicômaco, em 1131c, ―analogia é igualdade de razões‖ - γὰξ ἀλαινγία ἰζόηεο ἐζηὶ ιόγνλ. 3.1. O contexto das ἀλαινγίαη nos corpora da Politeia e do Timeu Após ter realizado um estudo sobre mythos e imagem em Platão, impõe-se o estudo sobre a noção de analogia evidentes no contexto da Politeia e aprofundadas no Timeu, assim como a explicação etimológica dos termos ἀλαινγία, ἀλάινγνο e da expressão adverbial ἀλὰ ιόγνλ. Em seguida, tenciona-se enumerar as ocorrências das analogias nas passagens dos corpora dos diálogos, identificando sua estrutura e restringindo seus tipos, ainda que seja preciso ultrapassar os limites desses corpora. O termo ἀλαινγία, em grego, é formado do prefixo ἀλὰ, do substantivo ιόγνο e do sufixo -ία. A principal definição a ser feita é tentar elucidar semanticamente o que é ιόγνο, visto que seu campo semântico é muito amplo e para o qual não há termos que cubram todos os significados. O vocábulo ιόγνο de forma isolada pode implicar vários sentidos, traduzindo-se por palavra, discurso, razão, dentre outros que derivam dessas três principais noções. A essa multiplicidade de sentidos, muito comum de se encontrar em alguns termos quando se estuda o grego clássico, entretanto, se agregam outras, ou se derivam delas, ou ainda podem combinar-se a algumas delas. Dessa maneira, ιόγνο pode ser entendido por discurso racional, lei, princípio, léxico, etc. A raiz do termo está no verbo ιέγσ cujo sentido original é reunir, juntar, colher, acolher as palavras como se faz ao ler e se obtêm, sendo assim, o dito, o discurso, a razão. O verbo ιέγσ, conforme o dicionário etimológico de Chantraine205, às vezes significa enumero, converso, discorro e, desse modo, nasce o emprego desse verbo no sentido de conto, digo. Concretamente, parece ser o movimento que recolhe objetos de um monte para formar outro. Metaforicamente, é ajuntar ideias escolhidas, daí o significado de ‗dizer, enunciar‘. Com a forma de perfeito passa a significar o resultado de uma ação; ιόγνο seria então o resultado de uma ação mental de escolher conceitos associando-os, vindo a significar tanto a coisa pensada quanto a coisa enunciada, seja sob a forma de palavra, frase, discurso, seja sob 205 CHANTRAINE, 1968, Tome III, p. 625. 113 a forma de expressão matemática. Implica, em todos os casos, numa construção mental que é ao mesmo tempo escolha e junção, que é enunciável e que revela uma inteligência capaz de produzi-la206. O prefixo ἀλὰ em ἀλαινγία, preposição em ἀλά-ινγνο é em primeiro plano um advérbio. Seu sentido é ―de baixo para cima‖, com a ideia de ―esforço repetido de cima para baixo, a partir do contato com uma superfície; esforço repetido, recomeçando, subindo, percorrendo, por oposição a θαηὰ‖. A expressão adverbial ἀλὰ ιόγνλ, por sua vez, acusativo de relação, significará ‗conforme o raciocínio, seguindo o raciocínio‘207. O estudo, portanto, se debruçará sobre os usos de analogias em Platão recolhendo, por meio das principais passagens em que elas ocorrem, a demonstração dos tipos de analogias que só existem entre dois elementos ou pares de elementos, relacionados a partir de um terceiro que expressa essa relação. 3.1.1. O contexto das ἀλαινγίαη na Politeia: VI, 506d-VII, 515d Platão representou a ideia da analogia na Politeia, em VI 508b13, e também como se sabe no Timeu, em 31b8-32a7. Será possível observar que o Timeu é especialmente significativo para a análise da analogia por causa de suas explícitas exposições e concepções analógicas do cosmo. A noção de analogia é perscrutada a partir da manifestação da estrutura e essência da alma do cosmo unindo-se a ela as progressões geométricas com intervalo de duplas (1, 2, 4, 8) e triplas (1, 3, 9, 27) relações que recorrem às médias proporcionais da música, especificamente a aritmética e a geométrica. A linguagem da geometria invocada por Platão é a linguagem das proporções 208, ou linguagem proporcional, que deve ser considerada não apenas como um simples artifício de expressão, mas verdadeiramente com uma técnica de invenção relevante do método matemático da analogia, posta a serviço de investigação que define/definicional. Na analogia do Sol, exposta no Livro VI, entre 507c10-508d10, Platão introduz a noção de γέλνο ηξίηνλ, um terceiro gênero, nascido apropriadamente para que a visão veja e as cores 206 Hypnos, nº 12, MURACHCO, 2004, p. 31. MURACHCO, 2001, vol. I, p. 537-8. 208 HENRY, 2001, p. 258. 207 114 sejam visíveis, a saber, o sentido do ver e a capacidade de ser visto necessitam da luz oriunda do sol cujas potências são fornecidas por ele. A seguir, Sócrates anuncia que o Sol é o filho do Bem e foi gerado análogo a si mesmo: ηνῦηνλ ηνίλπλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θάλαη κε ιέγεηλ ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ, ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῶ…209 Pois bem, disse eu, tenhas claro que é esse que eu dizia ser o filho do Bem, que o Bem gerou segundo ele próprio...210 A partir disso, o discurso de Sócrates constituirá o primeiro esquema analógico, em 508b13-508c2, que servirá de modelo para as próximas estruturas analógicas utilizadas por Platão: ὅηηπεξ = αὐηὸ ἐλ ηῶ λνεηῶ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ λννύκελα ηνῦην = ηνῦηνλ ἐλ ηῶ ὁξαηῶπξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα O Bem será retomado pela conjunção integrante ὅηη-πεξ, na verdade, ὅ ηη é o acusativo de relação (adverbial) do pronome relativo indefinido ὅηη (em relação ao que, porque 211), e, mais propriamente, pelo pronome de terceira pessoa αὐηὸ; do mesmo modo o Sol será comparado ao Bem pelo emprego dos dêiticos ηνῦην e ηνῦηνλ. Mas, a relação frontal que coloca duas coisas ou duas ideias diante uma da outra, ou uma em relação à outra, é formada, no enunciado, pela preposição πξόο seguida de acusativo. Assim, Platão estabeleceu a seguinte analogia: (...) e o que ele (Bem) é no espaço inteligível em relação à inteligência e às coisas que são pensadas, isso mesmo esse (Sol) é no espaço visível em relação à visão e às coisas que são vistas212. É possível observar que a mesma estrutura analógica é encontrada no Timeu, no final do prelúdio, em 29c3: ὅηηπεξ πξὸο γέλεζηλ νὐζία, ηνῦηνπξὸο πίζηηλ ἀιήζεηα. O que precisamente a essência é em relação à origem, isso (mesmo) é a verdade em relação à crença. 209 PLATO, 1903, 508b12-13. MURACHCO, 1998, p. 176. 211 MURACHCO, 2001, p. 671. 212 MURACHCO, 1998, p. 176. 210 115 A segunda analogia que este estudo aponta não apresenta a mesma estrutura dessas que foram anteriormente examinadas, mas possui um vocabulário de caráter gnosiológico e ontológico que marca o pensamento e a linguagem de Platão de acordo com o raciocínio que ele vem construindo ao longo dos diálogos em torno dos conceitos ηὸ ὂλ ἀεί, ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί, ἀιήζεηα e δόμα. Simultaneamente ela prepara a discussão para atingir a ideia do Bem e, por conseguinte, o esquema da Linha Seccionada. Com relação à alma, segundo o passo 508d4-9, quando se fixa na verdade e em ‘o que é’, ἀιήζεηα ηε θαὶ ηὸ ὂλ, tornando-se assim iluminada, ela o pensa, o reconhece e se mostra como o que tem inteligência, λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη. Por outro lado, quando se assenta naquilo que está obscurecido pela ausência de luz, isto é, no que nasce e perece, ela, por sua vez, se mostra como o que não tem inteligência, λνῦλ νὐθ ἔρνληη. Nessa passagem é possível perceber o dualismo platônico que une intimamente a imagem analógica do Sol com a Linha que a sucede e que culminará com a Caverna, servindo-lhes de estrutura comum na medida em que cada uma delas percorre essas duas esferas e mostra como elas são ou podem ser conhecidas. O dualismo, por seu turno, parte de dois níveis, a saber, inteligível e sensível, um, identificado pelos termos ἀιήζεηα e por ηὸ ὂλ; o outro, pelos particípios ηὸ γηγλόκελόλ e ηὸ ἀπνιιύκελνλ: ἀιήζεηα ηε θαὶ ηὸ ὂλ ηὸ γηγλόκελόλ ηε θαὶ ἀπνιιύκελνλ = ἐλόεζέλ ηε θαὶ ἔγλσ αὐηὸ = δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη = λνῦλ ἔρεηλ = λνῦλ νὐθ ἔρνληη Ademais, o passo possui uma estreita relação com os princípios metafísicos de base do Timeu, entre 27d5-28a4, ou melhor, com ηὸ ὂλ ἀεί e ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί. Uma vez que ‗o que sempre é‘ é apreendido pela inteligência com a participação da razão e ‗o que sempre se torna‘ é opinável pela opinião com a sensação desprovida de razão. Desse modo, a linguagem de Platão é capaz de manter no mesmo plano noções ontológicas e epistemológicas de verdade, ‗o que sempre é‘, alma, pensamento, (re)conhecimento, inteligência, ou segundo o diálogo Timeu as denomina, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, o que sempre é um só e o mesmo ou o que se mantêm conforme si mesmo. Essas noções, todavia, estão em plena oposição à opinião, ao que é opinável, àquilo que está em constante devir, sujeito a mudança, e nos apontam que planos epistemológicos distintos, λνῦο/λόεζηο e 116 δόμα, se fundamentaram em planos ontológicos distintos: ηὸ ὂλ ἀεί e ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί. Ao passo que ηὸ ὂλ ἀεί, apreensível pelo intelecto conforme o raciocínio, é ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, se mantém conforme um só e o mesmo; γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, o que nasce e se corrompe é tanto δνμαζηόλ, perceptível pela sensação, corpóreo, quanto ἀιόγνπ, irracional. No curto intervalo que compreende os passos 508e-509c11, o personagem Sócrates tratará da ideia do Bem, posicionando-a no cume da relação ontológica e epistemológica entre ser e devir, saber e opinião. É importante, entretanto, delimitar que ela permeia tanto as três imagens da Politeia - do Sol e do Bem, da Linha Seccionada e da Caverna -, quanto o Timeu, em razão do Bem e do belo serem paradigmas e princípio de criação e causalidade cósmica. Consoante Reale213, a inteligência do demiurgo opera sobre o princípio material sensível, que por si se agita sem regra e de maneira desordenada; e esta sua obra, em geral, consiste em levar tal massa informe da desordem para a ordem. Esse conduzir da desordem à ordem é justamente conduzir o informe à forma, conduzir a matéria sensível e acolher a estrutura do inteligível, realizando uma cópia, ou seja, uma imagem sensível da realidade inteligível. Compreender isso leva a entender o que para Platão significa conduzir do ―não-ser ao ser‖, levar ―o que não era para o ser‖, para a νὐζία. A ideia do Bem, segundo a Politeía, fornece verdade às coisas que vão sendo conhecidas pela alma, dá capacidade de conhecer ao que conhece, conhecedor, e, sobretudo, é causa da ciência e da verdade. Desta forma, ambas participam do belo: conhecimento e verdade, ἐπηζηήκελ θαὶ ἀιήζεηαλ. Além disso, o ser conhecido, o existir e a essência apenas são possíveis sob o efeito do Bem, ὑπὸ ηνῦ ἀγαζνῦ. Platão, antes de iniciar a explanação sobre a Linha, conclui o discurso sobre a analogia do Sol com o Bem, delimitando as esferas de atuação ontológica. Reconheceu que cada um reina em sua ordem própria, isto é, o Sol na região do visível como representação do Bem no sensível, e o próprio Bem que equivaleria a região do inteligível, do conhecimento. A fala de Sócrates é bastante clara quando pede a Glauco que observe a imagem dele, ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ, no momento em que se refere ao Bem em analogia com o Sol: 1º esquema analógico: ηὸλ ἥιηνλ = ηνῦ ἀγαζνῦ = 213 REALE, 2004, p. 472. ηνῖο ὁξσκέλνηο/ ηὴλ ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο/ηὸ γηγλώζθεζζαη 117 2º esquema analógico: ηὸλ ἥιηνλ = ηὴλ γέλεζηλ θαὶ αὔμελ θαὶ ηξνθήλ = νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα ηνῦ ἀγαζνῦ = ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ = νὐθ νὐζίαο ὄληνο ηνῦ ἀγαζνῦ Essa imagem analógica, exposta em 509b2-10, reflete a conclusão dos reinos (βαζηιεύεηλ) em que o Sol e o Bem operam: na primeira parte do esquema analógico, o Sol fornece às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, assim como, o Bem, proporciona às coisas cognoscíveis a possibilidade de serem conhecidas, o ser conhecido. No esquema seguinte, o Sol domina sobre a origem, o crescimento e o alimento, mas não é a origem; o mesmo é o Bem que está para o ser e a essência, mas não é essência, visto que, segundo Platão, está acima em majestade e poder214. É, portanto, após estabelecer os domínios epistemológicos e ontológicos acerca do Sol e da ideia do Bem que a imagem da Linha Seccionada, em 509d-515e5, se apresentam como a natural continuação da explicação da imagem anterior, e somente por meio de um estudo didático é que se pode forçar uma separação delas215. A Linha, em primeira ordem, é pensada e delineada conforme o próprio lógos ou razão, ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ, abrangendo, destarte, o corte do gênero que é visto, ηό ηνῦ ὁξσκέλνπ γέλνπο, e o gênero do que é pensado, ηὸ ηνῦ λννπκέλνπ (γέλνπο), de modo que há entre os segmentos uma relação de clareza e não clareza, ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια, correspondente a um raciocínio analógico: ὥζπεξ ηνίλπλ γξακκὴλ δίρα ηεηκεκέλελ ιαβὼλ ἄληζα ηκήκαηα, πάιηλ ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκ῅κα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ, ηό ηε ηνῦ ὁξσκέλνπ γέλνπο θαὶ ηὸ ηνῦ λννπκέλνπ, θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια...216 Pois bem, é como, tendo tomado uma linha seccionada em dois segmentos desiguais, secciona novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o do gênero que é visto e o do gênero pensado, e, com nitidez e sem nitidez a ti estarão (tu terás), um em relação ao outro... 217 Esse mesmo raciocínio ou proporção se repete em 510a8-9, após a exposição dos dois 214 Os termos majestade e poder, que traduzem πξεζβείᾳ e δπλάκεη, são oriundos da proposta de tradução de Henrique Murachco, 1998, p. 177. 215 É importante sempre ter em mente a inseparabilidade, dentro do diálogo discorrido na Politeia, das três passagens sobre a ideia do Bem, a do Sol, a da Linha e a da Caverna. 216 PLATO, 1903, 509d6-9. 217 MURACHCO, 1998, p. 178. 118 segmentos do corte do gênero sensível, em 510a8-10. Nele, Sócrates relaciona a noção de ζαθελείᾳ, a clareza, com a de ἀιεζείᾳ, verdade, algo verdadeiro; e de ἀζαθείᾳ, não clareza ou obscuridade, com a de κή ἀιεζείᾳ, algo que eventualmente seja uma não verdade, algo não verdadeiro. ἦ θαὶ ἐζέινηο ἂλ αὐηὸ θάλαη, ἦλ δ᾽ ἐγώ, δηῃξ῅ζζαη ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή, ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ, νὕησ ηὸ ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε; Acaso quererias afirmar, disse eu, que ele se distingue pela verdade ou pela não verdade: como o opinável está em relação ao conhecível assim também o feito semelhante está para ao que foi feito semelhante? 218 A verdade é, no contexto da Linha e da epistemologia platônica, o κέηξνλ, medida pela qual as outras coisas possam ser definidas como opináveis ou conhecidas, ou seja, é tão somente em relação a ‗o que é verdadeiro‘ e a ‗o que não é‘ que é possível dizer que algo é opinião, conhecimento ou ciência. A partir dessa relação, estabelece-se outra analogia, em 510a9-10, que servirá de paradigma para os outros cortes da Linha, tanto para o do sensível quanto para o do pensável. Percebe-se nessas analogias, deste modo, uma base gnosiológica, epistemológica, visto que seu vocabulário se serve dos termos gregos δνμαζηὸλ e γλσζηόλ, construindo uma relação entre conhecimento e opinião, ainda que já sejam perceptíveis alguns princípios matemáticos que a estrutura do enunciado aponta, como é o caso da relação final entre duas coisas distintas que a preposição πξὸο agrupa: ηὸ δνμαζηὸλ = πξὸο ηὸ γλσζηόλ ηὸ ὁκνησζὲλ = πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε Em 511e2, por seu turno, ocorre a expressão ἀλὰ ιόγνλ a seguir a exposição dos quatro segmentos do gênero do pensável - λόεζηο, δηάλνηα, πίζηηο e εἰθαζία - que certamente segue a analogia que divide os segmentos com base na verdade: ... θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ, ὥζπεξ ἐθ᾽ νἷο ἐζηηλ ἀιεζείαο κεηέρεη, νὕησ ηαῦηα ζαθελείαο ἡγεζάκελνο κεηέρεηλ. ... e ordena-os segundo uma razão, julgando terem desse modo participação da clareza aqueles nos que do mesmo modo é possível participar da verdade.219 218 219 MURACHCO, 1998, p. 178. Idem, p. 180. 119 Sócrates encerra a ilustração da Linha com esses dizeres, retoma as noções de clareza e verdade no início da exposição, quando estabeleceu uma relação analógica em que distingue por meio da verdade os segmentos do visível e do pensável, ordenando-os de acordo com a participação deles na clareza e na verdade. A passagem da Linha, portanto, aprofunda aquilo que é dito na analogia do Sol, tanto em relação ao objeto quanto à faculdade de conhecimento. Retomando a distinção entre gênero visível e gênero pensável, ela subdivide um e outro e, a cada uma das espécies assim obtidas, associa respectivamente quatro παζήκαηα, afecções na alma. Por fim ela ordena essas espécies pelo grau de claridade ou obscuridade na medida em que seus objetos se relacionam mais ou menos com a verdade. A imagem da Caverna imporá uma educação com base nos princípios filosóficos estabelecidos na Linha, em razão de explicar a potência de uma paideia dialética que torna o conhecimento princípio moral de ação. O modelo de educação platônico é um processo educativo para o conhecimento de modo que ascensão educativa e ascensão cognoscitiva coincidam, isto é, o caminho ascendente da alma a um estado de clareza cognoscitiva leva em consideração que seu estado inicial é dependente da opinião, δόμα, pois não faz uso do intelecto, λνῦο. 3.1.2. O contexto das ἀλαινγίαη no Timeu O Timeu é dentre os diálogos platônicos o lugar oportuno para o estudo da noção de analogia, estrutura e tipos, tendo em vista que em sua linguagem elas apresentam uma forma consistente capaz de representar de modo racional a constituição do todo, πᾶλ. A analogia é, antes de tudo, uma relação matemática que o personagem Timeu se esforça em demonstrar durante todas as etapas de seu discurso o trabalho do demiurgo na composição da estrutura do corpo e da alma do cosmo. Na passagem 31b8-c4, é possível perceber uma primeira definição de analogia atribuída a Platão: δύν δὲ κόλσ θαι῵ο ζπλίζηαζζαη ηξίηνπ ρσξὶονὐ δπλαηόλ: δεζκὸλ γὰξ ἐλ κέζῳ δεῖ ηηλα ἀκθνῖλ ζπλαγσγὸλ γίγλεζζαη. δεζκ῵λ δὲ θάιιηζηνο ὃο ἂλ αὑηὸλ θαὶ ηὰ ζπλδνύκελα ὅηη κάιηζηα ἓλ πνηῆ, ηνῦηνδὲ πέθπθελ ἀλαινγία θάιιηζηα ἀπνηειεῖλ. 120 Afastado de um terceiro, não é possível compor belamente apenas duas coisas. Pois é, preciso existir no meio alguma ligação reunindo ambas. E o mais belo dos liames é o que faça que ele e as coisas amarradas fossem uma só o quanto possível, e resultar disso: a mais bela analogia está gerada. A primeira analogia que esse estudo evidencia, encontra-se no prelúdio do discurso de Timeu, em 29c3, cuja estrutura se compõe de quatro termos ou elementos e que pode ser representada da seguinte maneira: ὅηηπεξ νὐζία = πξὸο γέλεζηλ ηνῦην ἀιήζεηα = πξὸο πίζηηλ Ao que parece, essa estrutura analógica conclui aquilo que foi estabelecido pela Linha Seccionada, visto que dispõe, por um lado, a essência em relação à verdade e, por outro, a gênese ou origem em relação à crença. Em 32a1-5, Platão, por meio do personagem Timeu, define pormenorizadamente como se comporta a analogia de três termos ou elementos, que ele considera mais bela: ὅηηπεξ ηὸ πξ῵ηνλ πξὸο αὐηό, ηνῦην αὐηὸ πξὸο ηὸ ἔζραηνλ, θαὶ πάιηλ αὖζηο, ὅηη ηὸ ἔζραηνλ πξὸο ηὸ κέζνλ, ηὸ κέζνλ πξὸο ηὸ πξ῵ηνλ, ηόηε ηὸ κέζνλ κὲλ πξ῵ηνλ θαὶ ἔζραηνλ γηγλόκελνλ, ηὸ δ᾽ ἔζραηνλ θαὶ ηὸ πξ῵ηνλ αὖ κέζα ἀκθόηεξα… O que o primeiro é em relação a ele mesmo, isso mesmo o primeiro é em relação ao último; e, de novo, por sua vez, o que o último é em relação ao médio, o médio é em relação ao primeiro; quando, de um lado, o médio tornando-se primeiro e último; de outro, o último e o primeiro, por sua vez, no meio de um e de outro (entre ambos)... A proporção a que Platão se refere, conforme Reale 220, é a geométrica na qual a proporção entre os intervalos é medida pelas partes deles mesmos: 2:4=4:8 Essa proporção implica que, multiplicando entre si os extremos (2 x 8 = 16) e os meios (4 x 4 = 16), obtém-se o mesmo produto, de modo que os meios possam tomar o lugar dos extremos, mantendo a mesma proporção: 220 REALE, 2004, p. 483. 121 4:2=8:4 Platão, desse modo, conclui o raciocínio afirmando que todas as proporções serão um só: ... πάλζ᾽ νὕησο ἐμ ἀλάγθεο ηὰ αὐηὰ εἶλαη ζπκβήζεηαη, ηὰ αὐηὰ δὲ γελόκελα ἀιιήινηο ἓλ πάληα ἔζηαη.221 ... e, assim, decorrerá que todos sejam por necessidade os mesmos, e os mesmos tendo se tornado uns com os outros serão todos um só. Por outro lado, uma vez que o cosmo devia ter três dimensões (Reale, 2004), ou seja, ter um corpo sólido, não basta uma única mediedade, mas sempre necessitam de duas mediedades, em adequada proporção entre si, de modo a obter a seguinte equação: fogo : ar = ar : água = água : terra Em 32b5-7, Timeu revela, por analogia, a composição do cosmo através dos quatro elementos físicos ou da natureza, aplicando os quatro elementos à fórmula analógica, que se serve de duas mediedades, ἀήξ e ὕδσξ, para harmonizar os sólidos: ὅηηπεξ πῦξ πξὸο ἀέξα, ηνῦην ἀέξα πξὸο ὕδσξ, θαὶ ὅηη ἀὴξ πξὸο ὕδσξ, ὕδσξ πξὸο γ῅λ… O que o fogo é em relação ao ar, isso é o ar em relação à água, e o que o ar é em relação à água, a água é em relação à terra... E conclui o raciocínio, em 32b7-8, da seguinte forma: ...ζπλέδεζελ θαὶ ζπλεζηήζαην νὐξαλὸλ ὁξαηὸλ θαὶ ἁπηόλ.‖ … amarrou e constituiu um céu visível e tangível.‖ E, por causa disso, e a partir dessas coisas mencionadas, o discurso de Timeu afirma que o corpo do cosmo foi gerado em número de quatro através da analogia, de modo a tornar-se indissolúvel, ἄιπηνλ, exceto por quem o amarrou, compôs, πιὴλ ὑπὸ ηνῦ ζπλδήζαληνο. É, pois, segundo a mesma razão, ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ, que Platão explica como a 221 PLATO, 1903, 32a5-7. 122 divindade gerou o corpo do cosmo tendo concordado em número de quatro por meio da analogia, em 32c5-7: Σ῵λ δὲ δὴ ηεηηάξσλ ἓλ ὅινλ ἕθαζηνλ εἴιεθελ ἡ ηνῦ θόζκνπ ζύζηαζηο. ἐθ γὰξ ππξὸο παληὸο ὕδαηόο ηε θαὶ ἀέξνο θαὶ γ῅ο ζπλέζηεζελ αὐηὸλ ὁ ζπληζηάο... A composição do cosmo tomou cada um desses quatros (elementos) como um só todo. Pois, o constituinte (demiurgo) o estabeleceu a partir de todo fogo, de água e de ar e, também de terra... Platão sustenta que, para construir o vivente, foram necessários o fogo e a terra, e, entre eles, duas mediedades proporcionais: água e ar. Todos eles, como é possível perceber, se relacionam entre si de forma analógica. Por outro prisma, a análise dos aspectos matemáticos que descrevem a composição da alma do cosmo – o que ela é e como se constitui – que se encontram no trecho 35b4-c2, observando que a harmonia da alma do cosmo resulta em duas progressões geométricas de base dois (2) e três (3), isto é, 2º ou 3º, 2¹, 3¹, 2², 3², 2³, 3³, respectivamente: ἤξρεην δὲ δηαηξεῖλ ὧδε. κίαλ ἀθεῖιελ ηὸ πξ῵ηνλ ἀπὸ παληὸο κνῖξαλ, κεηὰ δὲ ηαύηελ ἀθῄξεη δηπιαζίαλ ηαύηεο, ηὴλ δ᾽ αὖ ηξίηελ ἡκηνιίαλ κὲλ η῅ο δεπηέξαο, ηξηπιαζίαλ δὲ η῅ο πξώηεο, ηεηάξηελ δὲ η῅ο δεπηέξαο δηπι῅λ, πέκπηελ δὲ ηξηπι῅λ η῅ο (c) ηξίηεο, ηὴλ δ᾽ ἕθηελ η῅ο πξώηεο ὀθηαπιαζίαλ, ἑβδόκελ δ᾽ ἑπηαθαηεηθνζηπιαζίαλ η῅ο πξώηεο· E (o demiurgo) começou a dividir assim: tirou uma parte, a primeira, a partir do todo e depois dela separou o dobro dela; a terceira, por sua vez, um e um meio da última (segunda), o triplo da primeira; a quarta, o dobro da segunda; a quinta, o triplo da terceira; a sexta, o óctuplo da primeira; e a sétima, vinte e sete vezes a primeira. Trata-se, portanto, da analogia denominada musical, a qual provavelmente teve sua origem no pitagorismo e que, sem dúvida alguma, nesse sentido, é notória a influência que Arquitas e sua escola exerceram nos últimos diálogos platônicos. Desta maneira, em geral, é plausível ler a República como um experimento mental por meio do qual o mais profundo significado da máxima de Sócrates em que virtude é o conhecimento está fundamentada num ideal de ordem político. Similarmente, o Timeu pode ser interpretado como uma construção paralela de uma cosmológica inteligível que é um pressuposto necessário ao tipo de explicação teológica que o Sócrates do Fédon busca em sua suposta autobiografia.222 A teoria da proporção foi desenvolvida na matemática, sobretudo, pelos Pitagóricos. 222 CLEARY, 2013, p. 153-4. 123 Platão vale-se dela para as suas deduções analógicas mesmo fora do campo matemático; mas, aqui surge outro problema: isto é, o de saber se esse método conserva sua força demonstrativa mesmo quando transferido para um outro campo, pois, se o confronto se transforma em demonstração, a fórmula de igualdade em vastos campos da língua não pode, de modo algum, acontecer, como já nos foi demonstrado por numerosos exemplos.223 Platão estabelece, no Górgias, esta proporção: a retórica está para a filosofia como a arte culinária para a medicina. Nessa ―proporção‖, é a filosofia a incógnita a ser determinada – mas já a impostação da proporção se baseia em determinados conceitos que, por sua vez, só podem ser obtidos por meio de deduções analógicas. Já Sócrates se valera da imagem do artífice e de sua ηέρλε como modelo para o conhecimento do bem: por exemplo, o artífice que faz uma mesa tem de saber o que seja propriamente uma boa mesa, e, baseando-se nesse conhecimento, ele constrói sua mesa. Nessa analogia, o elemento moral dileto a Sócrates, ou seja, o fim de ação, torna-se uma coisa conhecida, previamente dada. Também Platão se atém firmemente a essa transformação e a desenvolve sistematicamente, na medida em que, para ele, todo ato e toda ação se realizam na ―ideia‖ contemplável, que constitui o mais alto objeto do conhecimento. Platão, mais tarde (no Ménon), consolida esse conhecimento alcançado por analogia com o método usado nas ciências matemáticas, e, mais adiante (no Sofista), procura ampliar também para outros campos o princípio da definição e da repartição lógica, que tão facilmente se deixa aplicar, por exemplo, na classificação dos animais. Desse modo, porém, ele restringe a arte do confrontar e do distinguir, do unir e do dividir, válida para toda ciência, ao esquema da diaíresis. Na filosofia platônica, encontramos por toda a parte essas analogias que se referem a campos diversos e, na verdade, toda filosofia que não se contente apenas em captar apenas um aspecto do mundo, mas que queira a unidade do saber terá, necessariamente, de realizar essa κεηάβαζηο εἰο ἄιιν, essa transposição de modelos e esse ―salto analógico‖. Dado que Platão é o primeiro a construir um caminho filosófico, que tende a reunir os diferentes escritos dos filósofos precedentes, os problemas conexos a essa tentativa apresentam-se, na sua filosofia, com maior clareza do que nos filósofos mais tardios e, com 223 SNELL, 2012, p. 224-5. 124 base nela, mais do que em qualquer outra, compreendemos como aquilo que, na língua primitiva, se compõe naturalmente na imagem e no símile, na metáfora e nas circunlocuções gramaticais, decompõem-se diante da consciência reflexiva, que começa exaustivamente separando os diversos fenômenos alicerçadores de uma linguagem e de um pensamento ainda vagos e indistintos, para, em seguida, recompô-los num claro conjunto. 125 III. Vocabulário platônico dos corpora Politeia e Timeu Murachco aponta, não somente em suas traduções dos diálogos platônicos, mas também em outros autores da literatura grega, em especial o vocabulário grego, que o padrão seguido é o das traduções latinas, que apresentam dificuldade na versão dos infinitivos e dos particípios, abundantes em grego e muito poucos em latim. Platão emprega um vocabulário preciso, tanto na Politeia quanto no Timeu, em que ora é traduzido de uma maneira ora de outra pelos tradutores. O que se pretende, no entanto, para o capítulo final deste estudo é o levantamento dos principais termos que compõem o léxico dos corpora Politéia e Timeu224 na tentativa de tornar claro os conceitos que exprimem. A abordagem dos termos será iniciada, em primeiro lugar, pelo sentido etimológico e em seguida pelo sentido que ela ocupa no contexto da obra, buscando sempre elucidar o ver de Platão. A finalidade do estudo do vocabulário platônico é o de formar um núcleo lexical, em torno dos corpora selecionados, com os principais termos que portem a essência dos enunciados formulados por Platão. Outro ponto que deve ser verificado é que os léxicos selecionados a partir da Politeia e do Timeu podem ser aplicados ao restante dos diálogos, uma vez que o vocábulo, na verdade, refere-se a temas, conteúdo filosófico de análise, que já foram e serão retomados à medida que o filósofo aprofunda os temas e os exaure pelo método dialético. A linguagem da geometria aqui invocada é a linguagem proporcional que deve ser considerada não apenas como um simples artífice de expressão, mas verdadeiramente com uma técnica de invenção relevante do método matemático da analogia, posta a serviço de investigação que define/definicional/especulativo225. Para o corpus da Politeia, planea-se ocupar dos principais vocábulos, que a imagem analógica do sol e do Bem, da Linha Seccionada e da Caverna dispõem: ὁξᾶζζαη, ὁξώκελα, ἰδέα, ὄςηο, ὄκκα/ὀθζαικνί, λνεηόο/λννύκελα, λνῦο/λνήζηο, εἶδνο/εἴδε, εἰθώλ, δηάλνηα, δόμα, πίζηηο, εἰθαζία, ἀπείθαζνλ. 224 No caso do diálogo Timeu, não apenas o vocabulário do corpus delimitado, mas também outras palavras que sejam importantes para a compreensão do léxico como um todo. 225 HENRY, 2001, p. 258. 126 Já para o Timeu tenciona-se elencar tanto os termos que participam do corpus selecionado, ou seja, os que estão no prelúdio do diálogo, quanto aqueles que são importantes para a compreensão da obra em geral, a saber: ηὸ ὄλ, ηὸ γηγλόκελνλ, ηὸ πεξηιεπηὸλ, ηὸ δνμαζηὸλ, γέλεζηο, ηὸ πᾶλ, θόζκνο, δῶνλ, θύθινο, νὐζία, ζ῵κα, ςπρή, ἀίδηνο, πεξίνδνο. 1. O vocabulário do corpus da Politeia Todo esse vocabulário corresponde à imagem do Sol, à Linha e à Caverna e que reporta, conforme a própria distribuição dos temas, ao longo dessas imagens, a um léxico que ao discorrer acerca da visão com os olhos e com a mente (pensamento), muitas vezes, é difícil fixar um termo ou uma fórmula equivalente em português e nas outras línguas modernas. I. ἀγαθόν Devido à pluralidade de sentidos em que o adjetivo ἀγαζόο, -ή, -όλ, é empregado em grego antigo, seria importante indicar seu significado original, ou seja, ressaltar que o uso do termo, em Homero, está relativamente restrito com relação a seus sinônimos mais ou menos próximos ἐζζιόο (nobre), ἀκύκσλ (perfeito), etc. Na forma neutra ἀγαζόλ designa o bem de modo geral, de onde por vezes como ἀγαζὸλ πνηεῖλ ἀγαζὸλ πξάηηεηλ; no neutro plural, ηὰ ἀγαζά designa as qualidades de um homem, mas igualmente, e mais frequentemente, seus bens, suas riquezas226. Na Politeia, no final do Livro VI, no passo 508e1-3, Sócrates, por uma visão epistemológica, expõe a seguinte premissa em torno da ideia do Bem: ηνῦην ηνίλπλ ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῶ γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη· Então, isso que fornece a verdade às coisas que são reconhecidas e que confere a capacidade àquele que reconhece, dize tu ser a ideia do Bem; ... Para a alma, o bem consiste na manutenção de uma verdadeira harmonia entre as três espécies – razão, ira e apetite – e, sobretudo na contemplação do inteligível pelo intelecto. 226 CHANTRAINE, 1968, p. 6. 127 Assim como a felicidade, que é o fim último do homem, depende do bem, também o inteligível, a existência desta ou daquela realidade se justifica por sua relação com o Bem, que constitui o foco para o qual convergem todas as Formas, sem que, no entanto, elas sejam engendradas por ele227. Para Platão o Bem é uma ideia, algo abstrato, e é apreensível pelo intelecto. Na República, Platão evoca várias vezes a Forma (ideia) do Bem (he idéa toû agathoû) – 505a2, 508e2, 517b8, 534b9 – e qualifica muito naturalmente de modelo (parádeigma), em 504a9. No começo do Livro VII, em 517b8, o Bem foi apresentado como ―situado no termo do que pode ser conhecido (en tôi gnostôi teleutaía)‖ o lugar disso que pode ser conhecido (gnostá) correspondente ao do inteligível (noetá), nas passagens 510a9, 477a, 479d. Conquanto seja o ponto final, o Bem pertence sempre ao domínio do inteligível.228 II. αἴζθηζιρ Conforme Chantraine (1968, p. 42), sobre o tema ἀΐσ foi construído com o morfema -ζindicando possivelmente a concretização do processo αἴζζάλνκαη, ἀΐζζσ (exemplo raro e duvidoso). Dentre os derivados nominais desse tema, destaco o adjetivo verbal αἰζζεηόο ―sensível, perceptível‖, de onde αἰζζεηηθόο ―relativo às sensações, sentidos‖. Por fim, αἴζζεζηο, percepção pelos sentidos, sensação, nome deverbal em -ζηο, cujo sufixo significa a ação do verbo, nesse caso, αἰζζάλνκαη, ―eu sinto, percebo pelos sentidos‖. A αἴζζεζεηο são faculdades especializadas que se vinculam unicamente as suas próprias funções, por exemplo, a visão, a ação de ver, capta apenas as cores, mas não os sons; e a audição os sons, mas não as cores, raciocínio que Platão descreve em Teeteto, 184e8-185a2: ἦ θαὶ ἐζειήζεηο ὁκνινγεῖλ ἃ δη᾽ἑηέξαο δπλάκεσο [185] αἰζζάλῃ, ἀδύλαηνλ εἶλαη δη᾽ ἄιιεο ηαῦη᾽ αἰζζέζζαη, νἷνλ ἃ δη᾽ ἀθν῅ο, δη᾽ ὄςεσο, ἢ ἃ δη᾽ ὄςεσο, δη᾽ ἀθν῅ο; E será que tu não quererias reconhecer que tu percebes por outra faculdade, é impossível ser percebida essas através de outra; assim como, o que se percebe por meio do ouvido, não é possível pela visão, ou que pela visão, por meio do ouvido? Assim como o grego αἰζζάλεζζαη, o verbo sentire significa ―sentir‖, quer pelos 227 228 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 17-18 BRISSON, 2003, p. 108. 128 sentidos, quer pelo espírito. Há que estar atento, portanto, à polissemia do substantivo masculino derivado, sensus = αἴζζεζηο, que designará ora os sentidos ou a sensibilidade ou a sensação, ora o sentimento, ora a faculdade de pensar, de compreender o pensamento, ora a frase que exprime o pensamento ou seu sentido.229 III. ἀλήθεια Λαλζάλσ, segundo Levet230, significa ‗estar velado ao cumprir tal ou tal ação, passar desapercebido aos olhos de...‖, de onde, na voz média: ―me deixo cobrir, em mim mesmo, de um véu de noite, portanto, equeço.‖ Com α- privativo, ἀιήζεηα e ἀιεζήο seriam, na origem, a ausência desse véu, o qual encobre algo. O desvelar, o desvendar se dá, todavia, de duas maneiras: revela ou coloca na presença da consciência o que é esse algo, identificando esse algo com sua revelação, ou o desvenda ao enunciá-lo. Quando o termo aparece no passo 510a8 do livro VI, não por acaso, no dativo (ἀιεζείᾳ), com a ideia de instrumento, prediz a condição a que os graus (segmento da Linha) se aproximam da verdade, ao alcance da luz, e se distanciam do não verdadeiro, tornando-se obscuras. ἦ θαὶ ἐζέινηο ἂλ αὐηὸ θάλαη, ἦλ δ᾽ ἐγώ, δηῃξ῅ζζαη ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή, ... Será que quererias afirmar, disse eu, que ele (segmento) se distingue pela verdade e pela não verdade, ... Platão, sob outra perspectiva, parece dar ao termo ἀιήζεηα o sentido de que o discurso deve ter os mesmos atributos que as coisas das quais se fala; o verdadeiro, a seu turno, referese ao que é dito das coisas, mas não às coisas em si. No Timeu, em 37b3-5, ἀιεζήο é o que as palavras revelam das coisas, sendo conforme a realidade dessas: ιόγνο δὲ ὁ θαηὰ ηαὐηὸλ ἀιεζὴο γηγλόκελνο πεξί ηε ζάηεξνλ ὂλ θαὶ πεξὶ ηὸ ηαὐηόλ,... O enunciado que se trona verdadeiro segundo si mesmo e sobre o que é o outro e o que é o mesmo, ...231 229 FONTANIER, 2007, p. 118. LEVET, 1976. 231 MURACHCO, 2004, p. 86. 230 129 IV. ἀπεικάζυ Ἀπείθαζνλ aparece na segunda pessoa do singular, no modo imperativo aoristo do verbo ἀπεηθάδσ que, por sua vez, é formado pelo prevérbio ἀπὸ - visto como o esgotamento do ato verbal desde o ponto de partida232- e pelo verbo εἰθάδσ, que significa eu imagino, conjecturo, faço uma imagem a partir de; mas ele também pode ser traduzido com o sentido de reproduzir por imitação, o que sugere sempre um modelo a copiar. V. διάνοια Na Linha de Platão, a δηάλνηα é um tipo de cognição entre δόμα e λνήζηο. O prevérbio δηα- indica a separação e também a presença ou a passagem através de algo; pode ter o mesmo sentido que inter, em latim. A δηάλνηα parece-se justamente a própria inteligência naquilo que ela percebe as ideias e as processa: δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ η῵λ γεσκεηξηθ῵λ ηε θαὶ ηὴλ η῵λ ηνηνύησλ ἕμηλ ἀιι᾽ νὐ λνῦλ, ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ. 233 Tu me pareces chamar raciocínio a posição dos geômetras e dos do mesmo tipo, mas não intelecto, como se o raciocínio fosse algo entre a opinião e o intelecto. VI. δικαιοζύνη A princípio δηθαηνζύλε significa justo, para Lalande234, o que é possuidor de um bom julgamento moral (com justeza) - com o sentido de uma operação que consiste em emitir opinião que regule sua conduta, no caso em que não se pode alcançar um conhecimento incontestável -, e da vontade de se conformar. É justo, nessa acepção, o homem capaz de reconhecer… A justiça é uma das quatro virtudes cardinais geralmente consentidas/admitidas na filosofia grega, nas teses do Livro I da Politeia, assim como nas teses do livro X. 232 MURACHCO, 2001, vol. I, p. 546. PLATO, 1903, Tomus IV, VI, 511d2-5. 234 LALANDE, 1947, p.535. 233 130 A raiz δηθ- ou δεηθ-, que também existe em latim e em sânscrito, deu ao latim dicere, e em grego δείθλπκη, mostrar; δίθε, de onde, por meio de sufixos, δίθαζηεο, δίθαηνο, δηθαηνζύλε. VII. δόξα A intenção da imagem da Linha, no final do livro VI, é fazer a distinção entre ἐπηζηήκε, conhecimento, e δόμα, opinião, para que se perceba que ambos estão relacionados com a paideia dos filósofos-governantes, mas ao mesmo tempo são opostas. A paideia delineada por Platão exclui a δόμα de seu método e culmina com a ciência dialética como forma de saber filosófico acompanhada pela matemática e pela astronomia, juntamente com as ciências do cálculo e do número, todas elas como graus que conduzem ao conhecimento do Bem e da verdade. VIII. εἶδορ/εἴδη O termo εἴδε é o nominativo neutro plural de εἶδνο e deve ser compreendido como a forma aparente, a visão, o aspecto externo de uma ideia. Como ἰδέα é um substantivo aoristo, εἶδνο é um substantivo infectum, pois, é formado sobre o tema εἰδ- do infectum e o sufixo nominal -εο e -νο, de nome neutros de significado abstrato, que expressam o efeito ou produto da ação no tema verbal de ὁξάσ, vejo, olho. A noção de εἶδνο, com efeito, era uma palavra já bem consagrada e até mesmo bastante sofisticada e possui uma história anterior ao uso que Platão faz do termo. Na primeira acepção, por exemplo, em Homero, εἶδνο designa aparência, aquilo que se vê, forma, normalmente do corpo de uma coisa de natureza sensível, ou seja, a aparência visível que permite reconhecer um homem (Aquiles ou Heitor) ou uma divindade (Atena ou Apolo). Quando um homem morre, ele se apresenta àquele que visita os Infernos como εἴδσινλ, forma, figura: reconhece-se alguma coisa de sua aparência visível, mas é uma aparência sem consistência, como fumaça235. Δἶδνο, conforme acepção apresentada acima, talvez signifique aquilo que os latinos 235 DUPOND, 2013, p. 24. 131 posteriormente, como consta na Eneida de Virgílio236, denominaram tanto simulacrum que, em sentido metafórico, significa o espectro, fantasma, simulacro; quanto, umbra, sombra, cujo sentido figurado abrange o mesmo alcance que o de simulacrum. Na segunda acepção de Dupond, mais tardia, εἶδνο designa a natureza característica de uma coisa que aparenta outros objetos abrangidos todos eles numa mesma classe. Na prosa científica dos séculos V e IV, εἶδνο qualifica comumente um gênero ou uma espécie de caso onde os indivíduos possuem um traço comum. Além de ser grande a dificuldade de entender essas formas, visões, usadas por Platão no texto, maior é a variedade de sentidos que o termo εἶδνο se sobrecarregou ao longo dos séculos de estudo e tradução. O substantivo feminino forma – na origem o contorno que circunscreve uma matéria e a define – tem o significado de forma (εἶδνο, κνξθή, ζρ῅κα), seja a forma formante, seja a forma formada. Daí os principais sentidos da palavra em filosofia: primeiro, forma inteligível exemplar, em Cícero237; Apuleio238; Agostinho239; forma que determina o ser de uma coisa, em Mário Vitoriano240, Tomás de Aquino241. Quanto ao uso filosófico de eidos, no entanto, a concepção platônica afirma que os eide existiam separadamente242 e as razões disto podem ser encontradas levando-se em consideração que εἶδνο, εἴδε, ἰδέα são a causa, αἰηία, das coisas sensíveis, ηὰ αἰζζεηά, e dizse que essas últimas participam dos eide. As formas não dependem da sensação nem da opinião, ao invés disso, elas permitem explicar a existência das coisas sensíveis, pois é na alma, e mais exatamente em sua faculdade chamada de intelecto, λνῦο, que é possível perceber as formas inteligíveis. Em suma, numa elaborada metáfora, constante em Platão, o aistheton é explicado como uma cópia ou imagem, εἰθώλ, do seu modelo eterno, παξαδείγκα, o eidos.243 236 Vergil. Bucolics, Aeneid, and Georgics Of Vergil. J. B. Greenough. Boston. Ginn & Co. 1900, II, v. 772, ―infelix simulacrum atque ipsius umbra Creusae‖. ― Infeliz simulacro e a sombra da própria Creúsa‖. 237 M. Tullius Cicero. M. Tulli Ciceronis Rhetorica, Tomus II. A. S. Wilkins. Oxonii. e Typographeo Clarendoniano. 1911. Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis, 3, 10: has rerum formas appellant ἰδέαο ille non intellegendi solum sed etiam dicendi gravissimus auctor et magister Plato, ... 238 De Platone 1, 5, 190; 1, 6, 192. 239 Diu. quaest. 46, 2. 240 Adv. Ar. 2, 4; 4, 10. 241 IN V Metaph. lect. 2, n. 775. 242 Cf. Tim., 52a-c. 243 PETERS, 1974, p. 64. 132 Cassirer244 sublinha, por sua vez, como é de importância fundamental a relação do termo eidolon com o termo eidos. Os dois termos estabelecem os limites do mundo do filósofo; um testemunho da potente força linguística de Platão é o fato de que ele tenha conseguido, com uma única variação da mesma raiz linguística, variação que se desdobra a partir do mesmo significado fundamental de ‗ver‘, fixar uma diferença de significado que não encontra par, na sua doutrina, em agudeza e densidade sistemática. Eidolon e eidos representam assim as duas qualidades diversas da visão: em um caso, o ver tem caráter passivo da percepção sensível, que busca somente registrar e reproduzir em si um objeto sensível externo, no outro, ao invés, o ver torna-se livre contemplação de uma veraz e estável conformação do ser. IX. εἰκαζία A palavra εἰθαζία, derivada de εἰθώλ, com a acepção de imagem, reflexo, denota o estado de perceber meras imagens e reflexos é o segmento inferior do corte do inteligível na Linha platônica, de acordo com a passagem 509e. O universo visível, segundo Peters 245, é o εἰθώλ do universo inteligível que abrange os εἴδε, as formas, visões, imagens; assim como, o tempo é uma imagem da eternidade. X. εἰκών Os dois termos εἰθώλ e εἰθώο têm como origem o verbo εἴθσλ do qual existem algumas formas, e que tem como significado ‗ser semelhante‘, ‗parecer com algo‘. No entanto, Sócrates já definiu o εἰθώλ, no segmento do sensível, em 509e-510a3: ιέγσ δὲ ηὰο εἰθόλαο πξ῵ηνλ κὲλ ηὰο ζθηάο, ἔπεηηα ηὰ ἐλ ηνῖο ὕδαζη θαληάζκαηα θαὶ ἐλ ηνῖο ὅζα ππθλά ηε θαὶ ιεῖα θαὶ θαλὰ ζπλέζηεθελ, θαὶ πᾶλ ηὸ ηνηνῦηνλ, εἰ θαηαλνεῖο. E por imagens refiro-me, primeiro, às sombras; em seguida, às aparições nas águas e nas coisas, quantas, se constituem sólidas, lisas e brilhantes e tudo desse tipo, se tu me entendes. 244 245 CASSIRER, 2009, p. 7. Idem, p. 67-68. 133 Aparência, imagem de realidade, semelhança incerta, εἰθώλ e εἰθώο são aquilo que o homem é capaz de apreender num primeiro momento, e às vezes não é capaz de ultrapassar esse estágio até quando vislumbra uma realidade superior246. Platão define εἰθώλ, no Sofista em 235d-e2, como a imagem que transporta as proporções exatas do modelo (θαηὰ ηὰο ηνῦ παξαδείγκαηνο ζπκκεηξίαο). O θάληαζκα, por outro lado, é o simulacro de imagem, uma imagem menos fiel de uma obra de proporções para espectadores desfavoravelmente colocados (236b4-7). Desse modo, ele situa o θάληαζκα em um plano inferior entre as imagens (εἰθόλεο > εἰθώλ). O atributo principal do θάληαζκα, contudo, é a dificuldade em discerni-lo, quando confrontado com o original. O θάληαζκα – as aparições ou projeções nas águas –, portanto, é da ordem da aparência. O εἰθώλ, por outro lado, é descrito em termos de semelhança com o modelo, o que significa que a relação de semelhança não é enganosa, por que admite o reconhecimento de que se está diante de dois termos diferentes, ainda que associados por uma relação de imitação.247 XI. ἐπιζηήμη Formado pela preposição ἐπὶ, sobre, em cima de; e pelo verbo ἵζηεκη, eu ponho em pé, estabeleço, o substantivo ἐπηζηήκε designa a ação de estar de pé sobre algo, exercendo o domínio que se aplica à ciência, ao saber, por oposição a δόμα, como se percebe no passo 477b7-8, no final do Livro V da Politeia: ἐπ᾽ ἄιιῳ ἄξα ηέηαθηαη δόμα θαὶ ἐπ᾽ ἄιιῳ ἐπηζηήκε, θαηὰ ηὴλ δύλακηλ ἑθαηέξα ηὴλ αὑη῅ο. Logo, a opinião visa a um objeto, e a ciência outro, cada um segundo a potência que lhe é própria248. A epistéme é o nome que designa a percepção que alma tem da realidade, do que existe. Por isso, é o único conhecimento verdadeiro e estável que seja possível de todas as coisas, e seu exercício é o que permite ser filósofo. Esse conhecimento se encontra definido de formas 246 MURACHCO, 2004, p. 230. SOUZA, 2009, p. 174. 248 ROCHA PEREIRA, 2001, p. 258. 247 134 diversas nos diálogos, em função do que Platão entende por realidade249. A epistéme ou ciência é, então o nome e o princípio de uma competência, de uma capacidade de realizar certa atividade; uma técnica é, pois, uma ciência relativa à produção ou ao uso de dado objeto. O inverso, contudo, não é verdadeiro: nem toda ciência é técnica, pois pode bastar uma opinião reta para dominar convenientemente uma técnica. Na medida em que é conhecimento da razão de ser e da natureza das coisas, a ciência pode ser ensinada. A linha deve oferecer uma representação dos quatro modos de conhecimento e seus diferentes objetos são dispostos, uns em relação aos outros, segundo relações de analogia. A linha distingue, segundo Brisson e Pradeau (2010, p. 26), primeiro o segmento dos objetos perceptíveis pelos sentidos daqueles que só são perceptíveis pela inteligência: o ―visível‖ ou ―sensível‖ por um lado, o ―inteligível‖ ou ―pensável‖, por outro. XII. ἰδέα A palavra ἰδέα é formada sobre o verbo ἰδεῖλ que é uma forma aorista do verbo ὁξάσ, aspecto verbal sem tempo interno, pontual, que exprime o ato em si. Ἰδέα é o que se faz presente à mente, o λνῦο, como percepção. É uma construção da mente que dispensa o sensível; é do âmbito do inteligível e é um dado imediato. É claramente um substantivo aoristo e, sendo assim, tem significado pontual, pois seu tema deriva de ƒηδ-, que, por sua vez, não tem infectum. Segundo Chantraine250, ἰδέα é o derivado nominal mais importante de ἰδεῖλ, composto pelo tema ηδ- e do sufixo -έα, que significa aparência, aspecto; de onde, espécie, categoria. Designa, em Platão, as ideias suprassensíveis, aquelas que se alcançam com o intelecto, a inteligência. Em todos esses empregos, o termo se encontra em oposição a εἶδνο. Os termos gregos εἶδνο ou ἰδέα não podem ser traduzidos por ideia, que denomina inelutavelmente, desde Descartes pelo menos, uma representação, ou seja, um objeto mental. Ao contrário, as formas inteligíveis são realidades imutáveis e universais, independentes dos intelectos que as percebem. São, ademais, as únicas realidades, pois é participando das formas 249 250 Idem, p. 36. CHANTRAINE, 1968, p. 455. 135 inteligíveis que todas as coisas existem.251 Para designar as Formas inteligíveis que Platão colocava no princípio de toda realidade, e que ele chamava ἰδέα ou εἶδνο, os filósofos romanos utilizavam geralmente termos latinos. Acontece, todavia, que eles empregavam com certa frequência a palavra grega ἰδέα tal qual ou transliterada em idea. Idea, não obstante, geralmente designará tambéma causa paradigmática da produção de uma coisa, não mais uma forma transcendente contida na Inteligência divina, mas a ideia presente no espírito do artista ou do artesão humano, de acordo com a qual ele cria sua obra: o que Aristóteles chamava εἶδνο, mas os médios-platônicos ἰδέα, por oposição ao εἶδνο, que segundo eles, designaria apenas a obra realizada na obra.252 XIII. λογιζμόρ Λνγηζκόο, cujo sentido principal é ―cálculo‖, ―reflexão‖, é um nome derivado de ιέγσ, donde subsiste a noção de escolher, colher. O termo grego ιόγνο, como foi elucidado anteriormente, também expressa essa escolha referente a uma atividade mental. No Timeu, em 34a8-b3, Platão atribue ao demiurgo à inteligência, o cálculo racional que dá inicío ao cosmo, estabelecendo todas as coisas que ele abarca νὗηνο δὴ πᾶο ὄληνο ἀεὶ ινγηζκὸο ζενῦ πεξὶ ηὸλ πνηὲ ἐζόκελνλ ζεὸλ ινγηζζεὶο ιεῖνλ θαὶ ὁκαιὸλ παληαρῆ ηε ἐθ κέζνπ ἴζνλ θαὶ ὅινλ θαὶ ηέιενλ ἐθ ηειέσλ ζσκάησλ ζ῵κα ἐπνίεζελ· Esse é todo o cálculo de um deus que sempre é, calculado em torno de quem um dia será um deus, cálculo que produziu um corpo sem asperidade e liso, por toda parte igual a partir do meio, inteiro e perfeito dentre os corpos perfeitos; ... 253 XIV. μίμηζιρ O primeiro termo conhecido com a mesma raiz de mímesis é o substantivo κῖκνο que possui diversos significados, dentre eles, imitador, imitação ou ator que recitava, cantava e 251 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 124. FONTANIER, 2007, p. 73. 253 MURACHCO, 2004, p. 74. 252 136 dançava em festas religiosas que posteriormente passou a designar um gênero literário.254 Formou-se também a partir do substantivo o verbo denominativo µηµένµαη, tendo os seguintes significados para obras de arte: imitar, representar e reproduzir. É possível encontrar, além desses termos, nas formações dos derivados com sufixo -ζηο, o termo µίµεζηο que tem o significado de imitação, ou melhor, ato de imitar. Esse termo foi largamente empregado na filosofia platônica e aristotélica. Há também µίµεµα que é mais raro, mas que foi empregado por Ésquilo e Platão255, tendo também µίµεµα um sentido mais abstrato cujo significado é imitação. XV. μῦθορ Μῦζνο, de acordo com Chantraine (1968, p. 718), é uma sequência de palavras que tem sentido, tema, narrativa (discurso); associado a ἔπνο que significa termo, palavra, forma, distinguindo-se do conteúdo das palavras, opinião, intenção, pensamento, história, etc. No diálogo Sofista, o Estrangeiro de Eléia revela ao seu interlocutor, Teeteto – quanto à tradição grega em que cada pensador narrara um mito acerca de o que é, ηὸ ὄλ, do ser, εἶλαη –, que o mito tornou-se uma narrativa ou estória que se conta às crianças. Ao querer superar o mito, o seu relato ainda parece mítico a Platão, isto é, sem método demonstrativo da verdade que as palavras portam. Então, em 242c8-9, o hóspede afirma o seguinte: Ξέλνο: κῦζόλ ηηλα ἕθαζηνο θαίλεηαί κνη δηεγεῖζζαη παηζὶλ ὡο νὖζηλ ἡκῖλ,... Hóspede de Eleia: Parece que cada um deles nos narrou um mito, como se fôssemos crianças. Platão, no livro III da Politeia, realiza uma análise do discurso mítico com o fim de verificar o que, afinal, esses discursos incutem no cidadão, desde crianças (ἐθ παίδσλ – III, 386a), quando eles reproduzem os deuses. A intenção de Sócrates é a de que se faça perceber que quanto mais poética for a visão do Hades, a mansão dos mortos, dos genitores e dos próprios deuses, menos se ajustará aos ouvidos das crianças e dos homens, os quais devem 254 CHANTRAINE, 1968, p. 703. Em Platão há diversas ocorrências para o termo, constando em Crátilo 423b, 430a-e; Sofista 267b; Político 274a; Politeia 382b. Em Ésquilo, todavia, há as seguintes ocorrências do termo: tetralogia 44 fragmento 711712; fragmento 78 a; fragmento 364. 255 137 tornar-se livres e temer a escravidão mais do que a morte (III, 387b). É no Timeu, com efeito, que Platão nos fornece uma reflexão acerca dos sentidos essenciais de κῦζνο o prelúdio do discurso de Timeu, no passo 29d1-3, se encerra, concluindo que o mito verossímil, ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ, é aquele que deve ser aceito, simplesmente porque este discurso não pode ser verdadeiro em pleno sentido de termo, uma vez que versa sobre imagens, visões, e não sobre a realidade verdadeira e imutável que é o seu modelo, παξαδείγκα: ... ὥζηε πεξὶ ηνύησλ ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ ἀπνδερνκέλνπο πξέπεη ηνύηνπ κεδὲλ ἔηη πέξα δεηεῖλ. ... e que aceitando o mito verossímil acerca deles256, convém ainda buscar nada mais além disso. XVI. νοηηόρ/νοούμενα Derivados de λνέσ, o primeiro vocábulo, λνεηόο, na forma de um adjetivo verbal que exprime a noção daquilo que é possível ser apreendido pelo ato de pensar, o inteligível. O outro, ηὰ λννύκελα, um particípio presente médio-passivo que deve ser traduzido pela expressão ‗as coisas que são pensadas‘, ‗o que é pensado‘, a fim de que o sentido de λννύκελα não seja confundido com o de λνεηόο. XVII. νοήζιρ/νοῦρ A λνήζηο é a ação do λνῦο, significa pensar em oposição a sentir, intuição como oposto ao raciocínio discursivo. A distinção previamente traçada no livro IV da Politeia257 entre a ἐπηζηήκε e a δόμα é mantida no segmento inteligível, mas descobre-se que há mais de um tipo de ἐπηζηήκε na Linha de Platão: a parte superior da linha que representa o conhecimento dos inteligíveis (λνεηά) é ainda subdividida naquilo que Platão denomina λνήζηο e δηάλνηα. Ννήζηο, com efeito, é um substantivo derivado do verbo λν῵, eu penso, exerço o intelecto, a inteligência, e indica a ação do λνῦο: o ato de pensar é aquilo que se designa, segundo A expressão adverbial ―acerca deles‖, em grego ‗πεξὶ ηνύησλ‘, retoma o que foi dito um pouco antes, a saber, ―πνιιὰ πνιι῵λ πέξη, ζε῵λ θαὶ η῅ο ηνῦ παληὸο γελέζεσο‖, ou seja, ―os discursos em torno dos deuses e da origem do todo‖. 257 GUINSBURG, 2007, 476a-480a, p. 215-221. 256 138 Murachco, por intelecção. O λνῦο, por sua vez, é um modo de conhecer específico, intuitivo e direto, ou seja, é a faculdade de apreender ideias. XVIII. ὄμμα/ὀθθαλμοί O termo ὄκκα, por sua vez, em 507d e 508d, tem a mesma raiz de ὄςηο (ὀπ-), mas, dessa vez, vem acompanhada do sufixo -καη > κα, que exprime o resultado da ação, ou seja, a vista como produto do ver. A tradução latina por oculis, olhos, é aceitável por ausência de outra palavra. Mas, deve-se entender que o sentido de oculis é o de olho como depositário da faculdade de ver e não olhos como instrumento do ver, olhar, aos quais são chamados por Platão de ὀθζαικνί cujo tema é o mesmo de ὄκκα e ὄςηο e que, de acordo com a fala de Sócrates em 508c-d, eles somente vêem claramente quando o sol espalha luz. Se a luminosidade do sol não estivesse presente eles veriam as cores, existentes nas coisas, turvas e próximas da cegueira como se lá não houvesse a mesma visão fornecida pela luz diurna. XIX. ὁπᾶζθαι/ὁπώμενα O particípio médio-passivo no neutro plural, ηὰ ὁξώκελα, significa, em sentido primeiro, as coisas que são vistas, olhadas, é interpretado de diversas maneiras no latim, por exemplo, encontram-se as formas oculis objecta, em 508a, lançadas diante dos olhos; quae videntur, em 508c, que são vistas; quae cernuntur, em 509b, que são discernidas; species quae cernuntur, em 510a, visões, formas que são discernidas. A desvantagem da língua latina em não ter artigo explica porque o vocabulário latino se vê obrigado a criar uma flexão, não apenas para o particípio, mas também para o infinitivo ὁξᾶζζαη, dando-lhe o nome de gerúndio, cujo emprego é muito menos frequente em latim do que em grego. A língua grega, ao contrário disso, possui artigo e os usa com todos os particípios e infinitivos, tendo a vantagem de descarregar no artigo todas as funções do verbo-substantivo, que gera, desse modo, todos os particípios e infinitivos em todos os aspectos e vozes. 139 XX. ὄτιρ O sentido da palavra ὄςηο utilizado na imagem do Sol por Platão, entre os passos 508a e 509a, é o de visão - outro significado encontrado para o termo é exame -, cujo tema é ὀπ- ,na expressão aorista e perfeita, semanticamente incompatível com o infectum, que juntamente com o sufixo -ζηο, -tione em latim, -ção em português, exprime o ato verbal, isto é, a ação de ver, o ato de ver, em que geralmente o sufixo -ζηο forma um substantivo abstrato. XXI. πίζηιρ O terrmo πίζηηο, a seu turno, tem o sentido de crença, algo que inspira crença, uma convicção subjetiva. No esquema da Linha, os estados mentais que não são verdadeiro conhecimento (ἐπηζηήκε), mas possuem, antes de tudo, semelhança com a opinião são divididos em duas classes: um diz respeito às imagens (ἐηθόλεο) das coisas que são sensíveis, enquanto a outra, descrita como πίζηηο, é a percepção das coisas sensíveis. A crença é uma atitude do espírito frente ao vir a ser que comporta uma adesão não isenta de incerteza, pois remete ao que é do ser. XXII. ποίηζιρ Πνίεζηο, que, de um modo geral, seriam bem traduzidas pela palavra portuguesa produção. No entanto, essa palavra grega possui outras possibilidades semânticas, como: fabricação, ação, criação Poética, etc., e, segundo essas acepções, nota-se claramente a idéia de um processo de produção: seja de uma poesia, de um sapato, ou qualquer outro objeto resultante dessa atividade. Com efeito, esse léxico em grego é definido como um substantivo abstrato cuja marca de sua atividade é expressa pelo sufixo –ζηο que impõe a idéia de ação à palavra. XXIII. ηέσνη O termo ηέρλε refere-se, em primeira ordem, ao saber-fazer de uma função, de uma 140 atividade, de uma arte, por exemplo, metalurgia, artesanato, técnica, onde por vezes o termo adquire o sentido de artifício, embuste, e num sentido geral, modo de fazer, meio, mas também tratado técnico. Em Platão ηέρλε (técnica) se opõe a θύζηο (ação de nascer) e a ἐπηζηήκε (conhecimento)258. Na filosofia platônica, a reflexão sobre a técnica ocupa um lugar determinante e constante: a técnica é o paradigma da relação que o homem estabelece com todos os objetos. A ηέρλε é uma atividade, de produção, de uso ou de cuidado, que põe em relação um agente e um objeto único, aquele que o técnico produz, de que ele cuida ou que ele utiliza. O técnico domina sua técnica particular graças à posse de certo saber, de certa ciência259. XXIV. ὑπόθεζιρ ὘πὸ com genitivo significa sob, em baixo de, por baixo de. Associado à ideia de origem, de separação, de ponto de partida ou de partitivo (genitivo). A ideia-base é ‗sob o efeito de‘, à qual está associado um verbo de ação. O substantivo ζέζηο tem como principal acepção a ação de colocar, pôr, de estabelecer (as leis), de depositar, de adotar, etc., mas, também com sentido técnico na geometria, na lógica, na métrica (Alc., Pi., ion.-att., etc.)260. Os matemáticos fundamentaram, de acordo com o raciocínio da Linha, sobre suas hipóteses aquilo que eles consideraram como princípios. A ação de estabelecer, aquilo que está posto, que foi estabelecido sob o efeito de algo, pode, portanto, assumir o sentido de princípio. O substantivo feminino latino suppositio foi retirado do verbo sub-ponere, que significa ―pôr embaixo‖ ou ―pôr no lugar de‖. Sub-positio poderá, portanto, traduzir o termo aristotélico ὑπό-ζεζηο261: Uma tese (positio = ζέζηο) que adota qualquer uma das partes da enunciação, como quando digo que uma coisa é ou não é, consiste numa suppositio. Sem isso, é um definitivo [...] Pois o aritmético postula (posit) que a unidade é o indivisível segundo a quantidade; ora, isso não é uma suppositio, pois o que é a unidade e que a unidade 258 CHANTRAINE, 1968, p. 1112. BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 70. 260 CHANTRAINE, 1968, p. 1117. 261 FONTANIER, 2007, p. 130. 259 141 é não é a mesma coisa.262 A alma, servindo-se de imagens de coisas então imitadas, é forçada a buscar, de uma parte dele, a partir de hipótese, ἐμ ὑπνζέζεσο dirigindo-se não para o princípio, νὐθ ἐπ᾽ ἀξρὴλ, mas para a conclusão, o término, ἐπὶ ηειεπηὴλ; da outra parte, sobre o princípio não- hipotético, ηὸ ἐπ‘ἀξρήλ ἀλππόζεηνλ, alma vai, a partir de uma hipótese sem imagens, ἄλεπ η῵λ εἰθόλσλ, e busca esse princípio que não está numa hipótese, ἀλππόζεηνλ, fazendo seu caminho, com as próprias imagens, εἴδεζηλ αὐηνῖο, e a partir das visões. No entanto, através dessa ilustração do movimento que alma faz em busca de conhecimento – quer, tomando as hipóteses como conclusões, quer partindo dessas hipóteses em direção ao princípio não-hipotético –, Platão absorveu a linguagem dos matemáticos e dos geômetras, aplicou em seus diálogos, ao mesmo tempo, construiu o alicerce de sua epistemologia ou teoria do conhecimento, com o interesse em discernir a opinião do verdadeiro conhecimento. Os matemáticos fundamentaram, de acordo com o raciocínio da Linha, sobre suas hipóteses aquilo que eles consideram como princípios. Porém, a hipótese, em grego ὑπόζεζηο, formada pela preposição ὑπὸ, sob, embaixo de, sob o efeito de, e pelo nome ζέζηο, ‗a ação de colocar‘, ‗colocação‘, ‗posição‘, cuja origem está no verbo ηίζεκη, por, colocar; donde, estabelecer. É precisamente aquilo que está posto, que foi estabelecido sob o efeito de algo e que, portanto, pode assumir o sentido de princípio. O princípio, por sua vez, ἀξρή, encontrada no vocabulário de Platão, tem o sentido de ‗começo‘, de ‗comando‘ que o próprio substantivo transmite. O princípio, aquilo que está no comando, portanto, precede tanto as hipóteses, as opiniões e as conclusões, quanto é anterior a origem e a causa de todas as coisas. 2. O vocabulário do corpus do Timeu O vocabulário do Timeu condensa em seu conteúdo, pela primeira vez na história da ciência, uma linguagem matemática como instrumento para explicar a formação do universo, bem como sua essência, gênese ou origem e natureza. 262 BOÉCIO, Post. analyt. interpr. 1, 2 = PL 64, 714. 142 I. αἰηία No Timeu, no que concerne à física do conhecimento e da natureza do cosmo, a definição de causa deve permitir explicar como são as coisas sensíveis, o próprio todo (πᾶλ) – de que elementos são feitas, quais são as suas mediedades e movimentos – e por que elas são; em outras palavras, em virtude de que elas diferem, por que estão ordenadas de uma maneira e não de outra.263 Platão, no entanto, argumenta que o todo ou cosmo veio a ser, por necessidade por meio de alguma causa: πᾶλ δὲ αὖ ηὸ γηγλόκελνλ ὑπ᾽ αἰηίνπ ηηλὸο ἐμ ἀλάγθεο γίγλεζζαη: Todo tornar-se que se torna, por necessidade, a partir de uma causa. É impossível para o cosmo ter sido gerado pelo demiurgo afastado de uma causa: παληὶ γὰξ ἀδύλαηνλ ρσξὶο αἰηίνπ γέλεζηλ ζρεῖλ. Pois, para o todo é impossível ter origem afastado de uma causa. II. αἰώνιορ/ἀίδιορ Αἰώλ significa a princípio força vital, vida, duração, eternidade. O sentido primeiro, segundo Chantraine264, é aquele de força vital, como o prova a aproximação do termo ςπρή. Da acepção de vida, αἰώλ passou ao de duração de uma vida, nos trágicos e noutros, geração, duração (jônico-ático), e finalmente para os filósofos eternidade, por oposição a ρξόλνο (Platão, Timeu, 37d), considerada como uma vida durável e eterna. O adjetivo αἰώληνο diretamente de αἰώλ, parece ter no Timeu um sentido mais restrito que ἀίδηνο, derivado de ἀεὶ: ἀίδηνο sendo usado para expressar tanto o que não teve começo e não terá fim quanto aquilo que, tendo sido iniciado, nunca acabará, e αἰώληνο cobrindo só a segunda acepção265. Destarte, de acordo com a passagem 37d5-7, o que se chama tempo, ρξόλνο, é uma imagem móvel da eternidade, εἰθὼ θηλεηόλ αἰ῵λνο, mas que teve um começo: 263 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 21. CHANTRAINE,1968, Tome I, p. 42. 265 MURACHCO, 2004, p. 179. 264 143 εἰθὼ δ᾽ ἐπελόεη θηλεηόληηλα αἰ῵λνο πνη῅ζαη, θαὶ δηαθνζκ῵λ ἅκα νὐξαλὸλ πνηεῖ κέλνληνο αἰ῵λνο ἐλ ἑλὶ θαη᾽ἀξηζκὸλ ἰνῦζαλ αἰώληνλ εἰθόλα, ηνῦηνλ ὃλ δὴ ρξόλνλ ὠλνκάθακελ. Ele pensava ter feito alguma imagem móvel da eternidade e ordenada ao mesmo tempo o céu, faz uma imagem terrena que vai no uno, conforme o número, permanecendo eterna; sendo isso o que chamamos tempo. O correspondente latino de αἰώλ, aevum, um substantivo neutro que designa, primeiramente, a duração de uma vida, e a vida que perdura. Dele deriva o feminino aeternitas – criado sem dúvida por Cícero, sobre o adjetivo aeternus, forma sincopada de aeviternus266. Aeternus significa então que dura para todo o sempre. Cícero usa o termo sempiternus, composto de semper, para designar o que deve durar para sempre, reunindo numa única palavra ἄπαπζηνλ e πξὸο ηὸλ ζύκπαληα ρξόλνλ no primeiro passo e, no segundo, traduzindo a perífrase ἀεὶ ηε ὄλησλ: ... ζείαλ ἀξρὴλ ἤξμαην ἀπαύζηνπ θαὶ ἔκθξνλνο βίνπ πξὸο ηὸλ ζύκπαληα ρξόλνλ.267 ... diuinum sempiternae sapientisque uitae induxit exordium 268. ινγηζκνῦ δὲ κεηέρνπζα θαὶ ἁξκνλίαο ςπρή, η῵λ λνεη῵λ ἀεί ηε ὄλησλ...269 rationis concentionisque, quae ἁξκνλίαο Graece, sempiternarum rerum 270. Mas a vida do mundo teve começo enquanto a harmonia e o cálculo, coisas inteligíveis, sempre são: isso sugere que Cícero identifica o significado de aeternus e o de sempiternus.271 III. ἀναλογία A preposição ἀλὰ marca quase certamente a ideia de repetição, no latim re-, como nos termos ἀνάκλεζηο, reminiscência; ἀναβίσζηο, ressureição, retorno a vida; ἀνάιεςηο, retorno das forças, restabelecimento, convalescença. Essa ideia de repetição nas expressões ἀλαινγία e ἀλὰ ιόγνλ entende-se como sendo um raciocínio que se funda numa ideia declarada anteriormente e da qual certos elementos são uma referência para o 266 FONTANIER, 2007, p 15. PLATO, 1903, Tomus IV, 36e4-5. 268 CICERONIS, Timaeus, MCMLXV, 8-27. 269 PLATO, 1903, Tomus IV, 36e6-37a1. 270 CICERONIS, MCMLXV, 8-27. 271 MURACHCO, 2004, p. 181. 267 144 discurso atual. A analogia aplicada à constituição do cosmo, no Timeu, nos mostra que existe entre os quatro elementos formadores da parte corpórea do cosmo - o fogo, o ar, a água e a terra -, uma relação que os torna tão perfeitamente amarrados que são indissolúveis. θαὶ δηὰ ηαῦηα ἔθ ηε δὴ ηνύησλ ηνηνύησλ [c] θαὶ ηὸλ ἀξηζκὸλ ηεηηάξσλ ηὸ ηνῦ θόζκνπ ζ῵κα ἐγελλήζε δη᾽ ἀλαινγίαο ὁκνινγ῅ζαλ, θηιίαλ ηε ἔζρελ ἐθ ηνύησλ, ὥζηε εἰο ηαὐηὸλ αὑηῶ ζπλειζὸλ ἄιπηνλ ὑπό ηνπ ἄιινπ πιὴλ ὑπὸ ηνῦ ζπλδήζαληνο γελέζζαη.272 E por causa disso e a partir das coisas desse tipo e que são em número de quatro, o corpo do cosmo foi gerado, estando de acordo por analogia e tirou disso umaunião consigo mesmo a ponto, tendo-se encontrado a si mesmo em si mesmo, de tornar-se indissolúvel por outro, a não ser por quem o amarrou. 273 IV. ἁπμονία No Timeu, em 36e6-37a1, ἁξκνλία está associada a ινγηζκὸο, o cálculo, o resultado de uma ação abstrata e racional: αὐη῅ο ἐηεθηαίλεην θαὶ κέζνλ κέζῃ ζπλαγαγὼλ πξνζήξκνηηελ∙ … e, tendo levado a coincidir o meio com o meio, passou a harmonizá-los: θαὶ ηὸ κὲλ δὴ ζ῵κα ὁξαηὸλ νὐξαλνῦ γέγνλελ, αὐηὴ δὲ ἀόξαηνο κέλ, ινγηζκνῦ δὲ κεηέρνπζα θαὶ ἁξκνλίαο ςπρή, η῵λ λνεη῵λ ἀεί ηε ὄλησλ ὑπὸ ηνῦ ἀξίζηνπ ἀξίζηε γελνκέλε η῵λ γελλεζέλησλ. (36e6-37a1) E então, de um lado nasceu o corpo visível do céu, de outro lado, ela, a alma não visível, mas que participa do cálculo e da harmonia, entre as coisas inteligíveis e que sempre são, nascida sob o efeito do melhor, a melhor das coisas geradas. (France, p. 84) Na língua filosófica, harmonia é, cito Lalande (1926, p. 387), a unidade (orgânica) de uma multiplicidade, isto é, gênero particular de uma ordem consistindo em que as diferentes 272 273 PLATO, Tomus IV, 1903, 32b8-c2. MURACHCO, 2004, p. 66. 145 partes de um ser ou suas diferentes funções não se oponham (opõem) mas concerram (-rrem) para um mesmo efeito de conjunto; de onde, combinação feliz de elementos diversos. V. ἀπσή O sentido original, que a incerteza etimológica não permite fixar seguramente, parece ser ―ir primeiro‖, ―fazer primeiro‖. ―tomar a iniciativa‖, ―começar‖ (nota: cf. Il., V, v. 592; Od., VII, v. 107; Od. V, v. 237). O verbo ἄξρσ, infinitivo ἀξρεῖλ, se emprega na maioria dos casos com genitivo, mas raramente com dativo, às vezes em Homero com a preposição ἐλ.274 A forma substantiva feminina ἀξρή reflete os dois empregos do verbo ἄξρσ/ ἀξρεῖλ no sentido de ―começar‖ e ―comandar‖: o sentido de começo, início, é antigo; verificado após a Ilíada e persiste durante toda história do grego. Por exemplo, a expressão adverbial ἐμ ἀξρ῅ο usada pelos filósofos para designar o princípio, os primeiros elementos.275 A ἀξρή, do mesmo modo, se integrou ao léxico administrativo e militar. Os ἀξραί eram os magistrados propriamente ditos, de ordem governamental ou política. Ἀξρή, portanto, significa magistratura, conjunto dos magistrados (Judiciário); no plural ἀξραί ―as autoridades‖, ―os magistrados‖. VI. γένεζιρ O termo γέλεζηο é um substantivo que deriva do verbo γίγλνκαη, é o nome da ação expressa por esse verbo. A gênese ou origem teve começo um dia e existe em função do transcorrer do tempo. No Timeu, γέλεζηο é a ação de vir a ser; como tal ela tem um ponto de partida e é ao mesmo tempo um processo. Conforme a tradução de Cícero276, γίγλνκαη é considerado como um verbo de estado, uma cópula. Os verbos latinos gignere, generare, procreare, nasci também traduzem γίγλνκαη, mas não possuem verdadeiramente o sentido de nascer; no discurso de Timeu ele tem o significado de vir a ser, tornar-se, isto é, a noção semântica e filosófica de devir. 274 CHANTRAINE, 1968, Tome I, p. 119. Idem, p.120-21. 276 CICERONIS, Timaeus, MCMLXV, 2-5. 275 146 Para traduzir γέλεζηο, a seu turno, Cícero usou termos derivados do verbo oriri que aparece no começo de seu texto para situar o problema do ser e do vir a ser: πόηεξνλ ἦλ ἀεί, γελέζεσο ἀξρὴλ ἔρσλ νὐδεκίαλ, ἢ γέγνλελ, ἀπ᾽ ἀξρ῅ο ηηλνο ἀξμάκελνο. γέγνλελ:277 ... semperne fuerit nullo generatus ortu, nam ortus sit [an] aliquo temporis principatu. Ortus est, ...278 ... ou sempre terá sido, não gerado por algum nascimento, ou terá nascido a partir de algum começo de tempo. Nasceu, ...279 VII. δοξαζηὸν O adjetivo verbal δνμαζηὸο está relacionado diretamente ao que sempre se torna, vem a ser, ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ, o que se pode conhecer é produto de uma δόμα. O opinável depende da avaliação do sujeito, isto é, do julgamento sobre algo que tanto pode apoiar-se sobre meras impressões levadas pelos sentidos quanto fundamentar-se sobre a reflexão e o estudo. No primeiro caso, a apreciação corretas dos fatos é improvável, já que é irracional280: ... ηὸ δ᾽ αὖ δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ δνμαζηόλ, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, ὄλησο δὲ νὐδέπνηε ὄλ.281 ... outro, opinável pela opinião com a senação desprovida irracional, tornando-se e perecendo, mas, realmente, jamais sendo. O que se percebe, a partir desse trecho, é que δόμῃ é o instrumento pelo qual o opinável, δνμαζηόλ, opera emitindo uma conjectura e participa da sensação desprovida de racionalidade, sem razão, como demonstra a expressão descrita por Platão κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ. VIII. ζῷον Um ser vivo é um corpo animado. É a presença de uma alma num corpo que define o 277 PLATO, 1903, 28b6-7. CICERONIS, Timaeus, MCMLXV, 2-5. 279 MURACHCO, 2004, p. 51. 280 MURACHCO, 2004, p. 233. 281 PLATO, 1903, 28a2-4. 278 147 vivente. Portanto, todas as coisas sensíveis dotadas de uma alma e de um corpo são viventes, desde os vegetais ao mundo como um todo. Princípio de vida, a alma é também o sujeito dessa educação; é a aptidão da alma para ordenar suas próprias funções e para cuidar do corpo que permite distinguir os viventes. O vivente total que é o mundo é um corpo cujos movimentos são apenas aqueles, circulares, de sua alma; quanto à alma do mundo, ela exerce tão somente sua função intelectiva. O vivente perfeito, segundo Platão, é uma esfere que gira sobre si mesma pensando282. A vida é o resultado de uma encarnação, da anumação de um corpo (Féd., 246c). O ser vivo. O ser vivo é um corpo composto cuja alma éesquema capaz de realizar certas funções (motoras, desejantes, inteligentes). Diversidade das funções psíquicas e diversidade dos elementos constituintes assim como das funções do corpo fazem do ser vivo uma múltipla realidade. IX. καλόν O adjetivo θαιόο, refere-se, conforme Chantraine283, a beleza do corpo, como em Homero θαιόο ηε κέγαο ηε, diz-se em ático nas declarações de amor; empregado também após Homero para designar belos objetos, armas, vestimentas, etc., como neutro significa ―o belo‖; conveniente, belo, em sentido moral; diz-se daquilo que é útil, em bom estado, de onde a mudança para ―bom, que está bem‖, etc. A expressão θαιόο θἀγαζόο por θαινθἀγαζία se emprega diversamente, mas exprime muitas vezes o ideal do cidadão, às vezes se opõe a δ῅κνο. cf. Th. 8, 48 (Heródoto., att., X) com θαινθἀγαζία284. Do ponto de vista da sensação, o adjetivo θαιὸλ designa tudo que é harmonioso (sýmmetron), ou seja, tudo aquilo cujas partes não estão associadas de modo assustador ou ridículo. Do ponto de vista ético ou político da conduta, o adjetivo θαιόλ é corretamente empregado para designar o que é moralmente conveniente, o que a situação exige. Embora não se possa afirmar que a forma do Belo e a forma do Bem sejam idênticas, pois são duas Formas distintas, percebe-se em que medida essas formas são parentes e como uma conduz a 282 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 76. CHANTRAINE,1968, p. 486. 284 Cf. Berlage, Mnemosyne 1933, 20-40; Jüthner, Caristeria Rzach 99 sqq. 283 148 alma à outra.285 X. κόζμορ A principal acepção de θόζκνο é ordem, boa ordem, no sentido material ou moral. Em Homero (II. 4, 145 3 14, 187) significa ornamento, em Heródoto, organização, constituição; por outro lado, em Pitágoras, Parmênides, Platão, dentre outros, ordem do mundo, universo, e tardiamente adquiriu o sentido de mundo em oposição ao mundo dos escolhidos. No Timeu, θόζκνο é associado, em 28b2-4, à palavra νὐξαλόο, ou melhor, à expressão ὁ πᾶο νὐξαλόο, no entanto, νὐξαλόο é caracterizado por πᾶο que designa que o céu é tomado em toda sua extensão e ultrapassa o sentido de abóbada celeste. ὇ πᾶο νὐξαλόο é o céu visto em seu conjunto e com tudo aquilo que ele abarca286. Cícero traduziu θόζκνο por mundus, assim como o fez continuamente ao verter ηὸ πᾶλ, e a expressão ὁ πᾶο νὐξαλόο por omne caelum, respeitando nos dois termos a intenção de Platão: Omne igitur caelum siue mundus siue quo aliquo uocabulo gaudet, hoc a nobis nuncupatus sit -...287 Tudo então, o céu ou o mundo - ou se ele usufrui de qualquer outro vocábulo, esse fique usado por nós - ...288 Pode-se, portanto, elencar, segundo Platão, que este cosmo é belo 289; foi constituído como imagem de algo290; que ele é corpóreo291 - pois é visível e tangível -; e que é um vivente animado e inteligente292. Para Platão, o mundo existe, ele é uno (Tim., 31a-b, 55c-d) e é um vivente dotado de um 285 BRISSON e PRADEAU, 2010 p. 17. MURACHCO, 2004, p. 162. 287 CICERONIS, Timaeus, MCMLXV, 2-4. 288 MURACHCO, 2004, p. 51. 289 PLATO, 1903, 29a2: ―εἰ κὲλ δὴ θαιόο ἐζηηλ ὅδε ὁ θόζκνο ὅ ηε δεκηνπξγὸο ἀγαζόο...‖. ―Se, de um lado, este mundo é belo e o demiurgo bom...‖. 290 PLATO, 1903, 29b2: ―ηνύησλ δὲ ὑπαξρόλησλ αὖ πᾶζα ἀλάγθε ηόλδε ηὸλ θόζκνλ εἰθόλα ηηλὸο εἶλαη.‖. ―Sendo isso, por sua vez, o que subjaz, há toda necessidade de ser o cosmo imagem de algo‖. 291 PLATO, 1903, 32c: ―... θαὶ ηὸλ ἀξηζκὸλ ηεηηάξσλ ηὸ ηνῦ θόζκνπ ζ῵κα ἐγελλήζε δη᾽ ἀλαινγίαο ὁκνινγ῅ζαλ...‖. ―... o corpo do cosmo foi gerado em número (a partir) de quatro, tendo concordado através da analogia, ...‖. 292 PLATO, 1903, 30b 7-8: ―... ηόλδε ηὸλ θόζκνλ δῶνλ ἔκςπρνλ ἔλλνπλ…‖. ―... este cosmo é um vivente, animado e inteligente...‖. 286 149 corpo e de uma alma. Esse vivente pode ser representado como tendo sido fabricado por um demiurgo que trabalha com os olhos fixos nas formas inteligíveis e que, quando fabrica as coisas sensíveis, molda um material caracterizado por sua indeterminação radical, a ―khôra‖ (Tim., 47e-53b)293. XI. λόγορ O termo ιόγνο de forma isolada pode manifestar vários sentidos, traduz-se por „palavra‘, ‗discurso‘, ‗razão‘, dentre outros que derivam desses três principais significados. A esta multiplicidade de sentidos, encontrada comumente em alguns vocábulos gregos, entretanto, se agregam outras, ou se derivam delas, ou ainda podem combinar-se a algumas delas; dessa maneira, ιόγνο pode ser entendido como uma ―lei‖, ―discurso racional‖, ―léxico‖, etc. A raiz do termo ιόγνο está no verbo ιέγσ, cujo sentido original é ‗reunir‘, ‗juntar‘, ‗colher‘, ‗escolher as palavras‘ como se faz ao ler e se obtêm, portanto, ―o dito‖, ―o discurso‖, “a razão‖. O verbo ιέγσ, consoante Chantraine (1984, p. 625), às vezes significa, ‗enumero‘, ‗converso‘, ‗discorro‘ e, desse modo, nasce o emprego desse verbo no sentido de ‗contar‘, ‗dizer‘. Entre os compostos de ιέγσ, com o sentido de ‗dizer‘, aquele que mais se identifica com o lógos platônico, servindo de exemplo da combinação entre ηέγζ e as partículas prefixais e sufixais que a ele se agregam, é certamente δηαιέγνκαη, ―converso‖, ―dialogo‖, ―pratico a dialética‖, ―discuto‖, ―discorro‖. No Sofista, 263e3-9, Platão distingue a noção de ιόγνο esclarecendo-a juntamente com a noção de pensamento, δηάλνηα: Ξέλνο: νὐθνῦλ δηάλνηα κὲλ θαὶ ιόγνο ηαὐηόλ: πιὴλ ὁ κὲλ ἐληὸο η῅ο ςπρ῅ο πξὸο αὑηὴλ δηάινγνο ἄλεπ θσλ῅ο γηγλόκελνο ηνῦη᾽ αὐηὸ ἡκῖλ ἐπσλνκάζζε, δηάλνηα; Θεαίηεηνο: πάλπ κὲλ νὖλ. Ξέλνο: ηὸ δέ γ᾽ ἀπ᾽ ἐθείλεο ῥεῦκα δηὰ ηνῦ ζηόκαηνο ἰὸλ κεηὰ θζόγγνπ θέθιεηαη ιόγνο; Θεαίηεηνο: ἀιεζ῅. Hóspede de Eleia: Pois bem, pensamento e discurso são o mesmo; mas o primeiro, que é o diálogo íntimo da alma consigo mesma, que nasce sem voz, é esse mesmo que foi por nós denominado pensamento? 293 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 53-4. 150 Teeteto: Muito bem. Hóspede de Eleia: E o outro, um fluxo a partir da alma, indo através da boca com som, se chama discurso? Teeteto: É verdade.294 XII. οὐζία Por oposição à existência (origem, γέλεζηο), seja no sentido metafísico, seja no sentido empírico, a essência, a νὐζία, designa aquilo que constitui a natureza de um ser, por oposição ao fato de ser. A essência se opõe, portanto, à existência, como o racional aos dados da experiência, ou como a possibilidade ao fatual, real.295 Na constituição da alma do cosmo, A νὐζία, tal como parece ser o sentido que Platão lhe atribui, não tem nada de concreto, nada de transitório. A νὐζία é sempre aquilo que ela é, é permanência é eternidade. Timeu, em 37e3-5, elucida que a melhor maneira de falar corretamente da essência é dizer que ela é, nunca que era ou será, formas que só podem servir para o tempo que começou um dia. ηαῦηα δὲ πάληα κέξε ρξόλνπ, θαὶ ηό η᾽ ἦλ ηό η᾽ ἔζηαη ρξόλνπ γεγνλόηα εἴδε, ἃ δὴ θέξνληεο ιαλζάλνκελ ἐπὶ ηὴλ ἀίδηνλ νὐζίαλ νὐθ ὀξζ῵ο. ... e todas essas porções de tempo, e o ―era‖ e o ―será‖, formas do tempo nascidas, nós, sem perceber, as aplicamos incorretamente à essência eterna.296 XIII. πᾶν Etimologicamente, πᾶλ tem o sentido de todo, tudo, com um campo semântico mais extenso que ὅινλ, cuja noção envolve a totalidade de cada coisa, mas não a multiplicidade de todas as coisas. Σὸ πᾶλ é a forma neutra substantiva do pronome adjetivo que expressa ao mesmo tempo todo e cada um, num dos nossos significados de nosso ―todo‖.297 Platão, por sua vez, emprega alguns termos para denominar a criação do demiurgo, aquilo que veio a existir e que foi gerado, exprimindo, desse modo, aspectos diferentes para tudo o que veio a ser - ηὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ e πᾶλ γίγλεζζαη. Em 28b2-4, Timeu apresenta as 294 Sof., 2011, p. 253. LALANDE, 1947, p. 291. 296 MURACHCO, 2014, p. 88. 297 Idem, p. 157. 295 151 possíveis formas de nomear este todo: ὁ δὴ πᾶο νὐξαλὸο - ἢ θόζκνο ἢ θαὶ ἄιιν ὅηη πνηὲ ὀλνκαδόκελνο κάιηζη᾽ἂλ δέρνηην, ηνῦζ᾽ ἡκῖλ ὠλνκάζζσ -...298 Todo céu – ou cosmo ou ainda outro que por acaso aceitaria, sobretudo, sendo denominado, esteja nomeado isso para nós - ... XIV. παπαδείγμα O paradigma existe para que a uma obra, neste caso o cosmo, seja realizada a partir dele, ou seja, ela é uma imitação ou cópia de um modelo. Há dois paradigmas de criação, conforme o discurso de Timeu, o inteligível e o sensível, respectivamente, belo e não-belo: ὅηνπ κὲλ νὖλ ἂλ ὁ δεκηνπξγὸο πξὸο ηὸ θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνλ βιέπσλ ἀεί, ηνηνύηῳ ηηλὶ πξνζρξώκελνο παξαδείγκαηη, ηὴλ ἰδέαλ θαὶ δύλακηλ αὐηνῦ ἀπεξγάδεηαη, θαιὸλ ἐμ ἀλάγθεο νὕησο ἀπνηειεῖζζαη πᾶλ·299 Quando daquele primeiro, então, o demiurgo realiza pela idéia e pela capacidade dele, olhando em direção ao que se mantém sempre um só e o mesmo, servindo-se de algo dessa qualidade como [b] paradigma, assim o todo se realiza(r), por necessidade, belo. O modelo, no entanto, baseado no que é gerável não pode ser tão belo quanto o paradigma baseada no inteligível; por isso o modelo imitado para construir o Todo é eterno e inteligível:300 νὗ δ᾽ ἂλ εἰο γεγνλόο, γελλεηῶ παξαδείγκαηη πξνζρξώκελνο, νὐ θαιόλ. 301 Mas, quando do outro, por sua vez, olhando para o que está gerado, servindo-se como modelo algo gerável, o todo se realiza não belo. O paradigma ou modelo, portanto, têm as mesmas carcterísticas que o inteligível. 298 PLATO, Tomus IV, 1903, 28b6-7. PLATO, Tomus IV, 1903, 28a6-b. 300 MURACHCO, 2004, p. 223. 301 PLATO, Tomus IV, 1903, 28b1-2. 299 152 XV. πεπιληπηὸν A noção de ηὸ ὄλ ἀεὶ é caracterizada por um adjetivo verbal ηὸ πεξηιεπηὸλ, cujo sufixo ηὸο, -ή, -ὸλ traz consigo a marca da potencialidade, da possibilidade de realização do ato verbal contida no tema aoristo ιεπ- do verbo ιακβάλσ, que significa, eu tomo, pego. No passo, 28a, Timeu afirma que: ηὸ κὲλ δὴ λνήζεη κεηὰ ιόγνπ πεξηιεπηόλ, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ... Um, apreensível [28] pelo pensamento com a razão, sendo sempre um só e o mesmo... Πεξηιεπηὸλ, contudo, significa aquilo que pode ser tomado por todos os lados, que é compreensível, apreensível pela inteligência com a razão (λνήζεη κεηὰ ιόγνπ). Isto posto, λνήζεη encontra-se numa noção instrumental expressa pelo dativo, além disso, na expressão κεηὰ ιόγνπ, Platão constitui a noção de participação expressa pela locução κεηὰ com genitivo. XVI. ζσῆμα No final do Livro VI da Politeia, em 506d5-7, o personagem Sócrates revela ter cuidado antes de expor a definição do Bem de modo a não emitir uma resposta desprovida de um esquema, racional e lógico, a fim de não provocar o riso. Para exprimir essa preocupação, Platão utilizou a frase πξνζπκνύκελνο δὲ ἀζρεκνλ῵λ γέισηα ὀθιήζσ, em português, ‗mas, desejando vivamente (no ânimo) sem um esquema, provocarei o riso‘. Esse desejar vivamente de Sócrates em explicar a princípio o que é o Bem, entretanto, tem de necessariamente estar provido de um ζρ῅κα, esquema, forma, figura, uma maneira de ser; pois, do contrário, estando desprovido de um esquema fixado no lógos, na condição de ἀζρεκνλ῵λ, a tentativa de qualquer discurso o levaria, e também a seus interlocutores, ao riso. Já no Timeu, porquanto o vivente não só é corpóreo como também tangível, por consequência, ele tem uma aparência, uma forma exterior, uma figura (esquema), a mais conveniente para aquele que há de abarcar todos os vivente futuros. 153 ζρ῅κα δὲ ἔδσθελ αὐηῶ ηὸ πξέπνλ θαὶ ηὸ ζπγγελέο. ηῶ δὲ ηὰ πάληα ἐλ αὑηῶ δῶα πεξηέρεηλ κέιινληη δῴῳ πξέπνλ ἂλ εἴε ζρ῅κα ηὸ πεξηεηιεθὸο ἐλ αὑηῶ πάληα ὁπόζα ζρήκαηα:302 Deu-lhe a forma a mais conveniente e a mais congênere. A conveniente seria a forma que contém em si todas quantas são as formas para o vivente, que abarca em si mesmo todos os viventes: XVII. ζῶμα Corpo e alma são os principais atributos do vivente assim como de todos os viventes gerados. A primeira descrição feita por Timeu na constituição do todo é o corpo do cosmo, ηὸ ηνῦ θόζκνπ ζ῵κα. O termo ζ῵κα apenas pode designar um composto elementar associado à uma alma, ςπρή. Em 28b7-8, Platão aponta aquilo que subjaz acerca do cosmo no princípio, isto é, que ele foi gerado, tendo sido iniciado a partir de um princípio e que, por esa razão, é visível, tangível e possui um corpo: γέγνλελ: ὁξαηὸο γὰξ ἁπηόο ηέ ἐζηηλ θαὶ ζ῵κα ἔρσλ... Está gerado: pois é visível e tangível, e que tem corpo... O corpo do mundo, tal como descrito, é constituído a partir de quatro elementos primeiros, fogo, ar, água e terra, eles mesmos matematicamente formados como quatro volumes geométricos, a saber, tetraedro, octaedro, icosaedro e cubo. Portanto, fogo, ar, água e terra, que serviram ao demiurgo para compor o corpo do cosmo, também são corpóreos, e nesse ponto opõem-se à alma que não é corpórea e por isso não é visível: … ιεθηένλ ςπρήλ - ηνῦην δὲ ἀόξαηνλ, πῦξ δὲ θαὶ ὕδσξ θαὶ γ῅ θαὶ ἀὴξ ζώκαηα πάληα ὁξαηὰ γέγνλελ -...303 … deve ser chamada alma - e isso é invisível, enquanto fogo, água, terra e ar são corpos todos visíveis -…304 Se seguirmos Eneias e a Sibila dos Infernos, poderemos perceber o barqueiro Caronte 302 PLATO, Tomus IV, 1903, 33b1-4. PLATO, Tomus IV, 1903, 34c4-35a. 304 MURACHCO, 2004, p. 136. 303 154 que transporta em sua barca sombria corpora305: não são corpos, cadáveres, são as sombras dos mortos, simulacros de uma estranha palidez. No entanto, denominam-se corpora, pois o substantivo neutro corpus, o organismo vivo ou privado de vida, mas tudo o que pode ser percebido pelos sentidos, a visão e o tato, e mesmo de modo mais amplo, para os estoicos, toda realidade, pelo menos toda realidade capaz de ação e de efeito assim como o bem, que dá movimento à alma, é um corpus, a própria alma é um corpus, e também os vícios, as paixões e as virtudes306. Assim como o corpo do mundo, o corpo do homem, tal como descrito no Timeu (73b76e), é constituído a partir dos quatro elementos primeiros que são o fogo, o ar, a água e a terra, eles mesmos matematicamente formados como quatro volumes geométricos: o tetraedro, o octaedro, o icosaedro e o cubo. Tudo que é constituído por um ou por vários desses quatro elementos está submetido a um devir, no transcurso do qual os elementos se decompõem e se recompõem, se associam e se dissociam. Porque cada corpo é um composto provisório, a questão é saber se a unidade que, afinal, permite defini-lo como este ou aquele corpo particular pode perdurar ou não, e por quanto tempo307. Entre corpo e alma, Platão instaura não uma oposição, mas uma hierarquia em que o corpo, ainda que dotado de um status inferior ao da alma, deve desempenhar uma função importante. Por isso deve zelar por sua integridade e beleza. Como lembra Platão no final do Timeu, em 88c-d, o homem, em conformidade com o ideal grego tradicional, deve ser bom e belo (kalós kagathós). XVIII. ηὸ γιγνόμενον (ἀεὶ) Γηγλόκελνλ é o particípio presente de γηγλόκαη que estabelece um grande grupo de formas nominais referentes seja à noção de nascimento, raça, gênero, etc, seja há de tornar-se, vir a ser, devir, cujo significado confirma o sentido original do tema. Σὸ γηγλόκελνλ ἀεὶ tem o sentido, para o discurso de Timeu, de o que sempre se torna, o que sempre vem a ser, mas nunca é (ηὸ ὄλ ἀεὶ). 305 VERGIL, 1900, Liber VI, v. 303-306 . FONTANIER, 2007, p. 51. 307 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 29. 306 155 XIX. ηὸ ὄν (ἀεὶ) Ocorrem inúmeras vezes ao longo do discurso do personagem Timeu, mas em todas elas na forma participial ηὸ ὂλ ou apenas ὂλ, isto é, verbo-adjetivo e de uso muito intenso em grego. Com efeito, a ideia do verbo associada à forma e ideia nominal dá-lhe um significado mais concreto e substancial ao termo. Mas, a forma ηὸ ὂλ ἀεί que se encontra apenas na pergunta inaugural do diálogo, implica em ‗aquilo que sempre é‘ ou ‗o que sempre é‘. Σὸ ὂλ ἀεί, do verbo εἰκί, opõe-se a ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί, assim como νὐζία a γέλεζηο, ou seja, ηὸ γηγλόκελνλ ἀεί e γέλεζηο é concebido como aquilo que não tem origem, que sempre vem a ser, mas nunca é porque está em constante devir. Σὸ ὂλ ἀεί é o que se mantém um só e o mesmo, é conforme ele mesmo, de acordo com a expressão adverbial θαηὰ ηαὐηὰ, e significa tudo que é imóvel e eterno em contraposição ao que nasce e perece, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ. XX. τςσή A alma do cosmo e sua estrutura são descritas após a do corpo, não significa que ela seja ulterior nem mais jovem. A alma do cosmo não é secundária ao corpo, pois, conforme o raciocínio de Platão, o mais antigo não há de ser governado pelo mais jovem: ὁ δὲ θαὶ γελέζεη θαὶ ἀξεηῆ πξνηέξαλ θαὶ πξεζβπηέξαλ ςπρὴλ ζώκαηνο ὡο δεζπόηηλ θαὶ ἄξμνπζαλ ἀξμνκέλνπ ζπλεζηήζαην ἐθ η῵λδέ ηε θαὶ ηνηῶδε ηξόπῳ.308 Constituiu, pela origem e pela virtude, a alma primeira e mais velha que o corpo como soberana e haverá de governar o que há de ser governado, a partir disso e dessa maneira. A constituição da alma é claramente diferente da constituição do corpo do cosmo. Nela não há nenhum elemento material, concreto; é essencialmente constituída de uma essência não corpórea e não visível, possuidora de uma complexa estrutura analógica que participando tanto do cálculo quanto da harmonia - reúne, tendo sido misturada, a natureza do mesmo, ηαὐηνπ, do outro, ζαηέξνπ, e da essência, νὐζίαο. 308 PLATO, Tomus IV, 1903, 34c4-35a. 156 Como causa do movimento e sujeito do conhecimento, a alma exerce um certo número de funções. Uma vez encarnada, a alma deve, com efeito, animar o corpo ao qual está ligada: deve movê-lo e conhecê-lo, ou seja, governá-lo. O dualismo platônico não implica uma heterogeneidade e uma separação das funções corporais e psíquicas, mas, ao contrário, sua complementariedade; a alma possibilita a animação do vivente, ou seja, a conservação e o desenvolvimento do corpo ao qual ela dá vida. A alma deve, portanto, exercer sua dupla função levando em conta suas necessidades, ou seja, respirar, alimentar-se, reproduzir-se. Deve, em primeiro lugar, exercer uma função sensitiva, a fim de perceber as impressões que afetam o corpo, e, em segundo lugar, uma função diretiva, a fim de ordenar os movimentos desse corpo, de governar sua conduta309. Animus, em Cícero310, é o que dirige, modera e movimenta o corpo [...] como o deus que ocupa o primeiro lugar (princeps), o faz para nosso mundo. Com efeito, animus corresponde aproximadamente ao que os gregos chamavam ζπκόο, esse órgão da interioridade, de onde nascem os pensamentos, os sentimentos, as paixões do indivíduo – um ζπκόο, que não seria exterior ao λνῦο, como sugere Platão, mas que o englobaria, um ζπκόο tão permeável, por outro lado, à ἐπηζπκία que pode deixar-se invadir por suas turbulências. Em suma, o animus é a alma inteira em relação ao corpo, é a ςπρή, sede da inteligência, da vontade, da afetividade, da sensibilidade – e da própria vida do indivíduo311. O estudo do vocabulário de Platão deteve-se na análise etimológica e conceitual dos léxicos inerentes aos temas tratados nos corpora selecionados; na verdade, esses léxicos não estão restritos exclusivamente aos diálogos Politeia e Timeu, mas a toda literatura platônica, cada qual em seu campo semântico e filosófico. Ao findar a reflexão e o exame dos termos ora tratados longamente, ora mais rapidamente -, reconhece-se que nenhum assunto foi esgotado, ao contrário disso, torna-se clara a dificuldade que cada um deles apresenta. 309 BRISSON e PRADEAU, 2010, p. 12. De Republica, Liber Sextus, 24, 26. 311 FONTANIER, 2007, p. 23. 310 157 CONCLUSÃO As primeiras conclusões a que esta tese alcança são as de que, conquanto existam consideráveis traduções e comentários da Politeia e do Timeu, aquela mentalidade e tradição filosóficas gregas no período de Platão não se manteve ao longo dos séculos. A leitura dos diálogos platônicos no original requer do leitor, em primeiro plano, o conhecimento da língua grega clássica, no dialeto ático, a fim de que, tendo sido feitas imensuráveis leituras sobre um ou mais corpora, se possa atingir as conclusões do ver de Platão. Muitas vezes, essas conclusões nem sempre são aparentes. A mais estimada lição tirada a partir do estudo do mythos, imagens e analogias nos livros VI e VII da Politeia e no prelúdio do Timeu, é que a tradução desses textos é importante, à medida que ela se torna decisiva para o entendimento do pensamento e da linguagem do autor. Mas, na verdade, é relevante para o exame das obras platônicas apreender o que verdadeiramente significou μῦθος, εἰκόνες e ἀναλογία para Platão. Talvez, uma tradução não seja suficiente para responder essa questão. A linguagem de Platão é rica e opera de modo especial: o ιόγνο, marca essencial de seus diálogos se configura como portador e transmissor do λνῦο. Cada diálogo em si, entretanto, possui um tema que toca todos os domínios e conceitos que as ciências, por exemplo, matemática, aritmética, política, artes, poesia, etc, daquela época tinham a oferecer. Não é novidade que Platão, para compor suas obras, se servia do mythos, bem como dos recursos da linguagem matemática, analógica, e das próprias ferramentas linguísticas por ele criadas como se pode perceber através das imagens e do método científico dialético, cuja inspiração e aprendizado têm origem em Parmênides e Sócrates. A dificuldade de toda tradução, contudo, é encontrar na língua em que se traduz palavras e expressões que contenham os conceitos expressos no texto original. Essas considerações em torno do papel da tradução dos diálogos platônicos, ou de qualquer outra obra grega clássica, servem para mostrar que, se o estudioso quer de fato penetrar no pensamento do autor, não se deve confiar cegamente na primeira tradução que lhe vier à mão. A imagem da Caverna abrange tanto a analogia do Sol com o Bem quanto a da Linha Seccionada, no sentido de que nela a educação deve percorrer uma via ascendente, descrita na Linha e reafirmada na Caverna, como o caminho que conduz a alma, por meio da ciência da 158 dialética, a conhecer a verdadeira realidade. No Timeu, por sua vez, ainda em seu prelúdio, o personagem está atento para o fato de que a busca pelos deuses e pelo princípio da origem do cosmo é algo superior àquilo que o discurso, ιόγνο, pode alcançar: ἀιι᾽ ἐὰλ ἄξα κεδελὸο ἧηηνλ παξερώκεζα εἰθόηαο, ἀγαπᾶλ ρξή, κεκλεκέλνπο ὡο ὁ ιέγσλ ἐγὼ ὑκεῖο ηε νἱ θξηηαὶ θύζηλ ἀλζξσπίλελ ἔρνκελ, ὥζηε πεξὶ ηνύησλ ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ ἀπνδερνκέλνπο πξέπεη ηνύηνπ κεδὲλ ἔηη πέξα δεηεῖλ.312 Mas, afinal, se fornecêssemos nada mais verosímil, é bom alegrar-se, lembrando-se que eu o que digo, e vós, os juízes, temos uma natureza humana, e que aceitando o mito verossímil acerca deles, convém, nada mais além disso. Conclui-se que há uma relação na evolução concreta do pensamento platônico que diz respeito ao método que Platão aplica ao tratar de seus principais temas, cuja tese abarcou os campos ontológicos e epistemológicos. Há uma clara mudança entre o método dialético (jogo pergunta-resposta) que reflete a influência de Sócrates para o método matemático pitagórico (analogia). Essa evolução do pensamento de Platão está relacionada à influência pitagórica, em seu pensamento e em sua linguagem, por meio da analogia, mas o filósofo permaneceu autêntico, embora seja possível identificar duas imagens de Platão: a socrática e a pitagórica. A conclusão desse fator explica-se através dos próprios diálogos. Essa trajetória, entretanto, deu-se no plano do pensamento filosófico e linguístico do autor, e isso reflete o papel da matemática que tanto forneceu um modelo para o raciocínio e para a argumentação filosóficos quanto permitiu propor uma explicação da natureza perfeitamente original. A linguagem da proporção foi o principal exemplo que esse estudo pôde apresentar, com efeito, os próprios εἰθόλεο platônicos são constituídos por estruturas analógicas. O lugar da influência de Sócrates na vida e no pensamento de Platão, isto é, como alguém que procede, sobretudo, por meio de perguntas e que, preferencialmente, evita dar respostas definitivas a suas perguntas; e, em segundo lugar, sempre permaneceu, em certo sentido, um socrático, permanecendo socrático até, pelo menos, a sua fase criadora ‗intermediária‘ construtiva. 312 PLATO, 1903, 29c7-d3. 159 A pressuposição não explicitada dessa reconstrução do caminho do desenvolvimento de Platão a partir de uma cronologia reconstruída de seus escritos era o fato de que todo escrito presta contas de modo preciso sobre o último estágio do progresso do pensamento do filósofo. O que Platão havia, a cada vez, obtido em termos de novos discernimentos era imediatamente, assim se crê, transposto para um diálogo. Os diálogos teriam, desse modo, o valor de atas de seu desenvolvimento, talvez mesmo o valor de confissões313. Por oposição à imagem literária dos diálogos com a figura dominante de Sócrates, há muitos elementos a favor da opinião de que o Platão inicial não era primariamente socrático, mas heraclítico, e permaneceu heraclítico na medida em que sua teoria das ideias integra a doutrina heraclítica do fluxo – que, desse modo, não era defendida por Sócrates –, para deixála para trás após atingir o gênero inteligível. O estudo da palavra mythologia conduziu ao terreno da interpretação da tradição. A partir desta perspectiva, é importante advertir que, como reformador da pólis, Platão é um exegeta, um intérprete da tradição, em sentido amplo. Com a palavra mitologia, Platão se refere não apenas ao conjunto de relatos e tradições transmitidos, mas também à reflexão, à investigação de tradições antigas, conforme se manifesta claramente no Crítias (110a). 314 A mitologia nasce, além disso, no âmbito da pólis, no momento em que o homem dispõe de ócio e tempo livre, o que os gregos chamam scholé, isto é, tempo para a reflexão e investigação. Em termos gerais, a «mitologia platônica» abarca as tradições poéticas, os relatos ou discursos sobre os tempos antigos, os costumes e a lei não escrita. Portanto, o estudo da tradição grega integra a poesia, a logografia ou arqueologia, e a legislação, tanto as leis escritas como as leis não escritas, também chamadas costumes tradicionais ou pátrios. No que concerne ao estudo do εἰθόλεο, percebi, em primeiro plano, uma dificuldade em encontrar, na fortuna crítica e, nos principais comentadores de Platão, estudos que esclareçam sua função de instrumento do logos e sua estrutura dentro dos diálogos. Apesar desse obstáculo, é necessário apropriar-se das imagens servindo-se do próprio texto e, a partir dele, esboçar uma análise de como e onde elas ocorrem na linguagem de Platão, buscando elucidar seus tipos e suas estruturas. É possível, contudo, unificar os muitos nomes e os muitos significados da noção de 313 314 SZLEZÁK, 2011, p. 122. AMORÓS, 2002, p. 18. 160 imagem, individuando, segundo um viés levemente platônico do logos (como se pode constatar no Sofista - 240a - e na Politeia - X 596a), o seu traço comum, reconhecendo na imagem, qualquer que seja ela, a percepção de uma coisa distinta da coisa mesma315. No Sofista, Platão apresenta a imagem como aquilo que não é o próprio objeto: Ξέλνο: ἡ γάξ πνπ κίκεζηο πνίεζίο ηίο ἐζηηλ, εἰδώισλ κέληνη, θακέλ, ἀιι᾽ νὐθ αὐη῵λ ἑθάζησλ: ἦ γάξ;316 Hóspede de Eleia: ..., pois, de algum modo, a imitação é uma certa produção, dizem quqe de imagens, mas não de cada uma das próprias coisas, não é assim? 317 Θεαίηεηνο: δύν γὰξ νὖλ ἐζηη ηαῦηα ζείαο ἔξγα πνηήζεσο, αὐηό ηε θαὶ ηὸ παξαθνινπζνῦλ εἴδσινλ ἑθάζηῳ. Ξέλνο: ηί δὲ ηὴλ ἡκεηέξαλ ηέρλελ; ἆξ᾽ νὐθ αὐηὴλ κὲλ νἰθίαλ νἰθνδνκηθῆ θήζνκελ πνηεῖλ, γξαθηθῆ δέ ηηλ᾽ ἑηέξαλ, νἷνλ ὄλαξ ἀλζξώπηλνλ ἐγξεγνξόζηλ ἀπεηξγαζκέλελ; Θεαίηεηνο; πάλπ κὲλ νὖλ. Ξέλνο: νὐθνῦλ θαὶ ηἆιια νὕησ θαηὰ δύν δηηηὰ ἔξγα η῅ο ἡκεηέξαο αὖ πνηεηηθ῅ο πξάμεσο, ηὸ κὲλ αὐηό, θακέλ, αὐηνπξγηθή, ηὸ δὲ εἴδσινλ εἰδσινπνηηθή. 318 Teeteto: Pois então, são duas as obras da criação divina, a própria e a imagem que acompanha de perto cada uma delas. Hóspede de Eleia: E a nossa arte, o que é? Acaso não diremos que fazemos a própria casa pela arte da construção e uma outra pela arte da pintura, realizada tal qual uma sonho humano para os que estão acordados? Teeteto: É isso mesmo. Hóspede de Eleia: Pois bem, então, também dizemos serem duplas as obras de uma actividade produtiva e andarem aos pares: a própria e a imagem319. O estudo dos εἰθόλεο platônicos, por outro lado, se restringiu aos corpora de seus diálogos, em especial, Politeia e Timeu, como principal fonte filológica e filosófica de interpretação do pensamento e linguagem de Platão, do mesmo modo que investigou a definição de εἰθώλ e o significado do uso dos εἰθόλεο nesses textos. Esta tese encontrou dois sentidos para trabalhar os εἰθόλεο: um, na Politeia, que nos permite reconhecê-los como instrumento do logos; outro, no Timeu, em que Platão considera o cosmo, por necessidade, imagem de algo320. Ao inferir um modelo para o cosmo, Platão estabeleceu uma ἀξρή, um princípio, para a causa de tudo que por natureza é gerado. Sendo o cosmo necessariamente imagem de algo, significa que há outra realidade inteligente e racional que se encontra num lugar hiperurânio, conforme o Livro X da Politeia, mas que no Timeu 315 PALUMBO, Lidia: in Teoria da Imagem na Antiguidade, 2012, p. 143-44. PLATO, 1903, Soph., 265b1-3. 317 Sof., 2011, p. 255. 318 PLATO, 1903, Soph., 266c5-d4. 319 Sof., 2011, p. 258. 320 PLATO, 1903, Tim., 29b1-2: ηνύησλ δὲ ὑπαξρόλησλ αὖ πᾶζα ἀλάγθε ηόλδε ηὸλ θόζκνλ εἰθόλα ηηλὸο εἶλαη. 316 161 representa o intelecto de um demiurgo, ηὸλ πνηεηὴλ θαὶ παηέξα ηνῦδε ηνῦ παληὸο, criador e pai deste todo (cosmo), que realizou, ordenou e constituiu todo devir. O pitagorismo, a seu turno, tem uma influência primordial em Platão, especialmente em seus escritos cosmológicos. Para reconhecer quais e quantas doutrinas são paralelas entre ele e este movimento em geral é necessário um esforço para atingir esse reconhecimento. É preciso, não obstante, que se aproxime da filosofia platônica com o intuito de identificar através dele mesmo algumas linhas do pensamento que procedem da escola de Tarento. Platão caracterizou na Politeia, em 349e, o músico como aquele que retesa ou distende cordas, isto significa que, o que afina a lira. Isto se devia provavelmente aos que aprendiam música com os pitagóricos de Tarento, aqueles que se interessavam, sobretudo, no cálculo exato das proporções: a perfeita afinação das notas. A ἀλαινγία ou a expressão adverbial ἀλὰ ιόγνλ podem ser consideradas como a relação entre duas ou mais coisas que portam um traço comum. Quando Platão usa o termo ἀλαινγία para estabelecer uma relação entre o Bem e o Sol, filho do Bem, ou entre o gênero do que é visto e o gênero do que é pensado, ele está, por conseguinte, anunciando algo no sentido rigoroso da expressão frequentemente encontrada como ἀλὰ ιόγνλ ou ἀλάινγνλ: segundo uma razão. O germe desta filosofia é, portanto, oriundo da matemática, mas foi uma descoberta não no campo da aritmética ou da geometria, mas da música, ἁξκνλία. A análise da estrutura matemática do mundo, apesar de ser considerada técnica, permite melhorar uma definição da natureza ontológica do θόζκνο ou πᾶλ321. A respeito da análise, com efeito, não estamos em condições de, não apenas esclarecer como nasceram as interpretações segundo as quais a alma é ou um ente matemático, ou um número, ou uma harmonia; mas também de demonstrar porque deve-se refutá-las. Muito mais, aquilo nos conduzirá a considerar a doutrina das esferas, que representa um papel considerável para a astronomia até a aurora dos tempos modernos. No Timeu, a estrutura matemática da alma do mundo se distingue claramente de sua natureza ontológica. Na verdade, essa estrutura matemática, segundo Brisson (1974, p. 327), representa, no caso da alma do mundo, o papel que representa a proporção geométrica no caso do corpo do mundo. Ao nível do corpo do mundo, por sua vez, a proporção geométrica 321 BRISSON, 1974, p. 324. 162 harmoniza a θηιία aos elementos, em 32c1-4: ... θαὶ ηὸλ ἀξηζκὸλ ηεηηάξσλ ηὸ ηνῦ θόζκνπ ζ῵κα ἐγελλήζε δη᾽ ἀλαινγίαο ὁκνινγ῅ζαλ, θηιίαλ ηε ἔζρελ ἐθ ηνύησλ, ὥζηε εἰο ηαὐηὸλ αὑηῶ ζπλειζὸλ ἄιπηνλ ὑπό ηνπ ἄιινπ πιὴλ ὑπὸ ηνῦ ζπλδήζαληνο γελέζζαη. ... o corpo do cosmo foi gerado em número (a partir) de quatro, tendo concordado através da analogia, e que mantinha um elo a partir desses, e convergiu para si mesmo e por causa de outros, em direção a si mesmo, de modo a tornar-se indissolúvel exceto por quem o compôs. Ao nível da alma do cosmo, a estrutura matemática permite exceder a βία que implica numa mistura ―do mesmo com a natureza de difícil mistura do outro‖, em 35a6-8: θαὶ ηξία ιαβὼλ αὐηὰ ὄληα ζπλεθεξάζαην εἰο κίαλ πάληα ἰδέαλ, ηὴλ ζαηέξνπ θύζηλ δύζκεηθηνλ νὖζαλ εἰο ηαὐηὸλ ζπλαξκόηησλ βίᾳ. E, tendo tomado essas que são três [essência, mesmo e outro], moldou todas em uma só ideia, harmonizando pela força ―o que é‖ para o mesmo com a natureza de difícil mistura do outro. As definições de mythos, eikónes e analogia nos contextos da Politeia e do Timeu, analisadas durante o percurso dos capítulos, foram uma tentativa de demonstrar que elas também não se exauriram com o término desse estudo. O lógos platônico, bem como seu léxico, permitiu-nos constatar que há lacunas e pontos de insuficiência para dominar o ―ver‖ de Platão, além de perceber que haverá sempre a necessidade de recorrer ao texto original a fim de não cometermos anacronismo. 163 REFERÊNCIAS 1. Corpora do estudo FICCINO, Marsilio. Divini Platonis Opera Omnia quae exstant: graece et latine. Interprete Marsilio Ficcino. Lugduni: apud Franciscum le Preux - John Adams Library at the Boston Public Library, 1590. PLATÃO. A República - introdução e notas de Robert Baccou; tradução de J. Guinsburg. São Paulo: DIFEL, 1965 e 1973, 2 volumes. PLATÃO. A República - introdução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 9ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. PLATÃO. Carta VII - texto estabelecido por J. Burnet; introdução de Terence H. Irwin; tradução do grego e notas de José Trindade Santos e Juvino Maia Junior. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008. PLATÃO. Sofista. Trad. Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e José Trindade Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. PLATO. Platonis Opera, ed. John Burnet. London: Oxford University Press. 1903. PLATO. Platonis Opera – ex recencionem – C. E. CH. Schneideri. Volumen Secundum – Graece et Latine. Parisiis: Editore Ambrosio Firmin Didot, M DCCC XLVI. PLATON. La République. Introduction, traduction et notes par Robert Baccou. GF Flammarion. Paris, 1966. PLATONE. La Repubblica – Introduzione, traduzione e note di Mario Vegetti. Milano: BUR, 2006. PLATONE. Repubblica – Traduzione di Giovanni Caccia. A cura di Enrico V. Maltese. Newton Compton Editori, Roma, 2008. PLATONE. Timeo – Introduzione, traduzione, note, apparati e appendice iconografica de Giovanni Reale. Milano: Editore Bompiani, 2013. PLATONE. Timeo – Introduzione, traduzione, note di Francesco Fronterotta. Milano: BUR, 2003. STALLBAUM, Godofredus. Platonis Opera Omnia – uno volumine comprehensa. Lipsiae: Londini, 1850. 164 2. Geral (Crítica) ALLEN, R. E. Studies in Plato‟s Methaphysics – edited by R. E. Allen. London: Routledge & Kegan Paul, 1965. AMORÓS, Pedro. La tradicón en Platon. Murcia: Revista Murciana de Antropología, n. 8, 2002, p 1-192. BACCOU, Robert. Histoire de la science grècque – de Thales a Socrate. Paris: Aubier, 1951. BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1989. BRELICH, Angelo. Gli eroi greci: Un problema storico-religioso. Roma: Edizioni dell'Ateneo & Bizzarri, 1958. BRISSON, Luc. How philosophers saved myths: allegorical and classical mythology. London: University of Chicago Press, 2008. ____________. Leituras de Platão – tradução de Sonia Maria Maciel (Coleção Filosofia, 166). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. ____________. Le Même et l‟Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon. Paris: Éditions Klincksieck, 1974. ____________. Platón, las palabras y los mitos. ¿Cómo y por qué Platón dio nombre al mito?. Madrid: Abada Editores, 2005. ____________. Platon, Les Mots et Les Mythes: comment et pourquoi Platon nomma le mythe?. Paris: Éditions La Découvert, 1994. ________, Luc e PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de Platão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. BRUMBAUGH, R. S. Plato‟s mathematical imagination, The mathematical Passages in the Dialogues and their interpretation. Indiana: Bloomington, 1954. BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica – tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. BURNET, John. A aurora da filosofia grega – tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. CASERTANO, Giovanni. Uma introdução à República de Platão. Paulus. São Paulo, 2011. 165 ______, G. Paradigmas da verdade em Platão – tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Edições Loyola, 2010. CASSIRER, E. Eidos ed eidolon. Il problema del bello e dell‟arte nei dialoghi di Platone, trad. it. Milano: Cortina, 2009. ____________. Filosofia dele forme simboliche, vol. II: Il pensiero mítico. Firenze: La Nuova Italia, 1964. CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1984. 2 vols. CICERO, M. Tullius. Librorum de Re Publica Sex. C. F. W. Mueller. Leipzig: Teubner, 1889. CICERONIS, M. Tulli. Scripta quae manserunt omnia – fasc. 46: De divinatione, De fato, Timaeus. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana Stutigardie in aedibus B.G. Teubneri MCMLXV. CLEARY, John J. Stuides on Plato, Aristotle, and Proclus: Collected essays on ancient philosophy of John Cleraly – edited by John Dillon, Brendan O‘Byrne, Fran O‘Rourke. Brill: Leiden, Boston, 2013. COLLAZOS, Jose Luis del Barco. Platon: Teoria de las Idéas. Málaga: EDINFord S.A., 1991. CORNFORD, F. M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ________________. Plato‟s Cosmology: The Timaeus of Plato - translated with a running commentary – Francis Macdonald Cornford. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1997. ________, F.M. Mathematics and Dialectic in the Republic, ds. Mind (1932), reproduzido em Studies in Plato‘s Metaphysics, London –New York: 1965. DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Trad. de André Telles e Gilza Martins Saldanha da Gama. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, D.F.: UnB,1998. _________, M. Les Maîtres de Vérité dans la Grèce Archaïque. Paris: Maspero, 1981. DROZ, Geneviève. Os Mitos Platônicos. Trad. de Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. DUPOND, Pascal. République – Commentaires du Livres V, VI et VII. Paris: Philopsis éditions numériques, 2013. 166 ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris: Librairie Gallimard ―Idéé‖, 1963. EUCLIDES. Os Elementos – tradução e introdução de Irineu Bicudo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. FELIX, Buffiere. Les mythes d‟Homère et la pensée grecque. Paris: Société d‘Éditions ―Les Belles Lettres‖, 1956. FERRARI, Franco. I miti di Platone, 2ª ed. Milano: BUR, 2010. FINLEY, M. I. Los griegos de la antiguedad. Madrid: Editorial Labor S.A., s/ data. FONTANIER, Jean-Michel. Vocabulário latino da filosofia – tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. FRONTEROTTA, F. e BRISSON, L. (orgs.). Platão: Leituras. São Paulo: Edições Loyola, 2011. GOLDSCHMIDT, Victor. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético, 3ª ed.tradução Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2013. GOMPERZ, Theodor. Greek Thinkers – A history of Ancient Philosophy - translated by Laurie Magnus, vol. I. London: John Murray, 1920. GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega – tradução Carlos Nelson Coutinho, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. GUTHRIE, W. K. C. Historia de la Filosofía Griega – versíon española de Joaquín Rodríguez Feo, vol. III: siglo V – Ilustración. Madrid: Editorial Gredos, 1994. HAVELOCK, Erick. Prefácio a Platão – tradução Enid Abreu Dobránsky. Campinas, SP: Papirus, 1996. __________, E. A Revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Trad. Ordep José Serra. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1996. (Biblioteca básica) HEATH, Thomas L. A History of Greek Mathematics, vol. I. London: Oxford, 1921. HENRY, Joly. Le Renversement Platonicien: Logos, Épistémè, Polis, 2e édition. Paris: Vrin, 2001. HENRY, P. & SCHWYZER, H.-R. Plotini Opera, Scriptorum classicorum Bibliotheca Oxoniensis. Oxford: Univ. Pr. (Editio minor), vv. I-III, 1964-1982. HESIOD. The Homeric Hymns and Homerica with an English Translation by Hugh G. Evelyn-White. Theogony. Cambridge, MA.,Harvard University Press; London, William 167 Heinemann Ltd. 1914. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Introdução, tradução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. 3ª edição. São Paulo: Iluminuras, 1996. 1ª Parte. ________. Os Trabalhos e os Dias. Tradução e estudo de Luiz Otávio Mantovaneli. São Paulo: Odysseus Editora, 2011. ________. Teogonia: a origem dos deuses – estudo e tradução de Jaa Torrano, 7ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2007. HYPNOS. nº 12, MURACHCO France Yvonne, p.37-48. São Paulo: 1º semestre, 2004. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; Schofield, M. Os Filósofos Pré-Socráticos: história crítica com seleção de textos – trad. Carlos Alberto Louro Fonseca, 7ª edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. LAFRANCE, Y. “Platon et la Géometrie: la méthode dialectique en République 509d – 511e”, in Canadian Philosophical Review, vol. XIX, nº I, 1980. LALANDE, André. Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, 5ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1947. LETRAS CLÁSSICAS. n. 2, MURACHCO Henrique Graciano, p.171-186. São Paulo: Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1998. LEVET, Jean-Pierre. Le Vrai et le Faux dans la Pensée Grecque Archaïce – Étude de Vocabulaire. Paris: Les Belles Lettres, 1976. LIDDELL, H.G., SCOTT, R., JONES, H.S. A Greek-English Lexicon. London: Oxford Clarendon Press, 1990. MARQUES, Marcelo Pimenta (org.). Teoria da Imagem na Antiguidade. São Paulo: Paulus, 2012. MORA, J. Ferrater. Diccionario de Filosofía. Barcelona: Ed. Ariel S.A, 1994, 4 volumes. MORGAN, K. Myth and Philosophy from the Pre-Socratics to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. MURACHCO, F. Y. Cícero e o Timeu. 105f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas: Estudos Clássicos) – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. MURACHCO, Henrique G. Língua Grega: visão semântica, lógica, orgânica e funcional, 3ª edição. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Vozes, 2001, II volumes. 168 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura grega, 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, I volume. PERINE, Marcelo. Estudos Platônicos: sobre o Ser e o Aparecer, o Belo e o Bem (Marcelo Perine org.). São Paulo: Loyola, 2009. PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico – prefácio de Miguel Baptista Pereira e tradução de Beatriz Rodrigues Barbosa, 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974. PFISTER, Friedrich. Die Religion der Griechen und Römer («Jahresbericht über die Fortschritte der Kl. Altertumswiss.», Suppl. 229), Leipzig, 1930. PHILIPPE, Marie-Dominique. Introdução a filosofia de Aristóteles – tradução de Gabriel Hibon. São Paulo: Paulus, 2002. PHILIPPSON, Paula. Genealogie als mystische Form, Oslo 1936 – traduzione italiana in P. Philippson, Origine e forme del mito greco. Torino: G. Einaudi, 1949. PIEPER, Josef. Sobre los mitos platônicos. Barcelona: Editorial Herder, 1984. RADEMACHER, Ludwig. Mythos und Sage bei den Griechen, Baden bei Wien, 1938. REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão, 2ª edição. Edições Loyola. São Paulo, 2004. ______. Platão: História da filosofia grega e romana, 10ª edição corrigida, vol. III. São Paulo: Edições Loyola, 2007. ROSSETI, Lívio. Introdução à filosofia antiga – Premissas filológicas e outras “ferramentas de trabalho‖. São Paulo: Ed. Paulus, 2006. SCHLEIERMACHER, F. D. E. Introdução aos diálogos de Platão – tradução de Georg Otte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SZLEZÁK, Thomas Alexander. Platão e os Pitagóricos. In: Revista Archai: As Origens do Pensamento Ocidental. Coimbra: Annablume Clássica – Imprensa Universidade de Coimbra, 2011. SNELL, Bruno. A cultura grega e a origem do pensamento europeu – tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2012. SOUZA, Eliane Christina. Discurso e ontologia em Platão: um estudo sobre o sofista. Inijuí: Ed. Inijuí, 2009. SZLEZÁK, Thomas Alexander. Platão e Aristóteles na doutrina do Nous de Plotino – 169 tradução Monika Ottermann. São Paulo: Ed. Paulus, 2010. _________, Thomas A. Platone e la scrittura della Filosofia – Introduzione e traduzione di Giovanni Reale. Pubblicazioni della Università Cattolica Del Sacro Cuore. Milano, 1998. TAYLOR, A. E. Plato: The Man and his Work. London: Methuen, 1960. TAYLOR, C. C. W. From the beginning to Plato. Routledge History of Philosophy, vol I. General Editors – G. H. R. Parkinson and S. G. Shanker. London, 1997. THOMAS, Rosalind. Letramento e oralidade na Grécia antiga - Tradução Raul Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005. TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino-Português, 8ª edição. Porto: Gráficos Reunidos Ltda., 1998. TRABATTONI F., Platone. Milano: Liside, LED, 2003-2004. UNTERSTEINER, Mario. La fisiologia del Mito. Torino: Bollati Boringhieri, 1991. VEGETTI, M. Introduzione alle culture antiche. 3 voll. II: Il sapere degli antichi. Torino: 1985. _______, M. “L‟idea del Bene nella Repubblica di Platone”. Discipline filosofiche, I, 207229, 1993b. VERGIL. Bucolics, Aeneid, and Georgics Of Vergil. J. B. Greenough. Boston. Ginn & Co. 1900. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. José Olympo, 1999. _________, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1990. WERNER, Daniel S. Myth and Philospphy in Plato‟s Phaedrus. New York: Cambridge University Press, 2012. 170 APÊNDICE PLATÃO. Timeu, 27d5-29d6. Τίμαιορ [27d5] ἔζηηλ νὖλ δὴ θαη᾽ ἐκὴλ δόμαλ πξ῵ηνλ δηαηξεηένλ ηάδε: ηί ηὸ ὂλ ἀεί, γέλεζηλ δὲ νὐθ ἔρνλ, θαὶ ηί ηὸ γηγλόκελνλ κὲλ [28a] ἀεί, ὂλ δὲ νὐδέπνηε; ηὸ κὲλ δὴ λνήζεη κεηὰ ιόγνπ πεξηιεπηόλ, ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὄλ, ηὸ δ᾽ αὖ δόμῃ κεη᾽ αἰζζήζεσο ἀιόγνπ δνμαζηόλ, γηγλόκελνλ θαὶ ἀπνιιύκελνλ, ὄλησο δὲ νὐδέπνηε ὄλ. πᾶλ δὲ αὖ ηὸ γηγλόκελνλ ὑπ᾽ αἰηίνπ ηηλὸο ἐμ ἀλάγθεο γίγλεζζαη: παληὶ γὰξ ἀδύλαηνλ ρσξὶο αἰηίνπ γέλεζηλ ζρεῖλ. ὅηνπ κὲλ νὖλ ἂλ ὁ δεκηνπξγὸο πξὸο ηὸ θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνλ βιέπσλ ἀεί, ηνηνύηῳ ηηλὶ πξνζρξώκελνο παξαδείγκαηη, ηὴλ ἰδέαλ θαὶ δύλακηλ αὐηνῦ ἀπεξγάδεηαη, θαιὸλ ἐμ ἀλάγθεο [b] νὕησο ἀπνηειεῖζζαη πᾶλ: νὗ δ᾽ ἂλ εἰο γεγνλόο, γελλεηῶ παξαδείγκαηη πξνζρξώκελνο, νὐ θαιόλ. ὁ δὴ πᾶο νὐξαλὸο —ἢ θόζκνο ἢ θαὶ ἄιιν ὅηη πνηὲ ὀλνκαδόκελνο κάιηζη᾽ ἂλ δέρνηην, ηνῦζ᾽ ἡκῖλ ὠλνκάζζσ—ζθεπηένλ δ᾽ νὖλ πεξὶ αὐηνῦ πξ῵ηνλ, ὅπεξ ὑπόθεηηαη πεξὶ παληὸο ἐλ ἀξρῆ δεῖλ ζθνπεῖλ, πόηεξνλ ἦλ ἀεί, γελέζεσο ἀξρὴλ ἔρσλ νὐδεκίαλ, ἢ γέγνλελ, ἀπ᾽ ἀξρ῅ο ηηλνο ἀξμάκελνο. γέγνλελ: ὁξαηὸο γὰξ ἁπηόο ηέ ἐζηηλ θαὶ ζ῵κα ἔρσλ, πάληα δὲ ηὰ ηνηαῦηα αἰζζεηά, ηὰ [c] δ᾽ αἰζζεηά, δόμῃ πεξηιεπηὰ κεη᾽ αἰζζήζεσο, γηγλόκελα θαὶ γελλεηὰ ἐθάλε. ηῶ δ᾽ αὖ γελνκέλῳ θακὲλ ὑπ᾽ αἰηίνπ ηηλὸο ἀλάγθελ εἶλαη γελέζζαη. ηὸλ κὲλ νὖλ πνηεηὴλ θαὶ παηέξα ηνῦδε ηνῦ παληὸο εὑξεῖλ ηε ἔξγνλ θαὶ εὑξόληα εἰο πάληαο ἀδύλαηνλ ιέγεηλ: ηόδε δ᾽ νὖλ πάιηλ ἐπηζθεπηένλ πεξὶ αὐηνῦ, πξὸο πόηεξνλ η῵λ παξαδεηγκάησλ ὁ ηεθηαηλόκελνο αὐηὸλ [29a] ἀπεξγάδεην, πόηεξνλ πξὸο ηὸ θαηὰ ηαὐηὰ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ ἢ πξὸο ηὸ γεγνλόο. εἰ κὲλ δὴ θαιόο ἐζηηλ ὅδε ὁ θόζκνο ὅ ηε δεκηνπξγὸο ἀγαζόο, δ῅ινλ ὡο πξὸο ηὸ ἀίδηνλ ἔβιεπελ: εἰ δὲ ὃ κεδ᾽ εἰπεῖλ ηηλη ζέκηο, πξὸο γεγνλόο. παληὶ δὴ ζαθὲο ὅηη πξὸο ηὸ ἀίδηνλ: ὁ κὲλ γὰξ θάιιηζηνο η῵λ γεγνλόησλ, ὁ δ᾽ ἄξηζηνο η῵λ αἰηίσλ. νὕησ δὴ γεγελεκέλνο πξὸο ηὸ ιόγῳ θαὶ θξνλήζεη πεξηιεπηὸλ θαὶ θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνλ δεδεκηνύξγεηαη: [b] ηνύησλ δὲ ὑπαξρόλησλ αὖ πᾶζα ἀλάγθε ηόλδε ηὸλ θόζκνλ εἰθόλα ηηλὸο εἶλαη. κέγηζηνλ δὴ παληὸο ἄξμαζζαη θαηὰ θύζηλ ἀξρήλ. ὧδε νὖλ πεξί ηε εἰθόλνο θαὶ πεξὶ ηνῦ παξαδείγκαηνο αὐη῅ο δηνξηζηένλ, ὡο ἄξα ηνὺο ιόγνπο, ὧλπέξ εἰζηλ ἐμεγεηαί, ηνύησλ αὐη῵λ θαὶ ζπγγελεῖο ὄληαο: ηνῦ κὲλ νὖλ κνλίκνπ θαὶ βεβαίνπ θαὶ κεηὰ λνῦ θαηαθαλνῦο κνλίκνπο θαὶ ἀκεηαπηώηνπο—θαζ᾽ ὅζνλ νἷόλ ηε θαὶ ἀλειέγθηνηο πξνζήθεη ιόγνηο εἶλαη θαὶ ἀληθήηνηο, ηνύηνπ δεῖ [c] κεδὲλ ἐιιείπεηλ — ηνὺο δὲ ηνῦ πξὸο κὲλ ἐθεῖλν ἀπεηθαζζέληνο, 171 ὄληνο δὲ εἰθόλνο εἰθόηαο ἀλὰ ιόγνλ ηε ἐθείλσλ ὄληαο: ὅηηπεξ πξὸο γέλεζηλ νὐζία, ηνῦην πξὸο πίζηηλ ἀιήζεηα. ἐὰλ νὖλ, ὦ ΢ώθξαηεο, πνιιὰ πνιι῵λ πέξη, ζε῵λ θαὶ η῅ο ηνῦ παληὸο γελέζεσο, κὴ δπλαηνὶ γηγλώκεζα πάληῃ πάλησο αὐηνὺο ἑαπηνῖο ὁκνινγνπκέλνπο ιόγνπο θαὶ ἀπεθξηβσκέλνπο ἀπνδνῦλαη, κὴ ζαπκάζῃο: ἀιι᾽ ἐὰλ ἄξα κεδελὸο ἧηηνλ παξερώκεζα εἰθόηαο, ἀγαπᾶλ ρξή, κεκλεκέλνπο ὡο ὁ ιέγσλ ἐγὼ [d] ὑκεῖο ηε νἱ θξηηαὶ θύζηλ ἀλζξσπίλελ ἔρνκελ, ὥζηε πεξὶ ηνύησλ ηὸλ εἰθόηα κῦζνλ ἀπνδερνκέλνπο πξέπεη ηνύηνπ κεδὲλ ἔηη πέξα δεηεῖλ. Συκπάηηρ ἄξηζηα, ὦ Σίκαηε, παληάπαζί ηε ὡο θειεύεηο ἀπνδεθηένλ: ηὸ κὲλ νὖλ πξννίκηνλ ζαπκαζίσο ἀπεδεμάκεζά ζνπ, ηὸλ δὲ δὴ λόκνλ ἡκῖλ ἐθεμ῅ο πέξαηλε. Tradução linear: [27d5] TIMEU. Então, segundo minha opinião, essas coisas devem ser distinguidas: que é aquilo que sempre é, mas que não tem origem; e que é aquilo que sempre se torna, mas que nunca é? Um, apreensível [28] pelo pensamento com a razão, sendo sempre um só e o mesmo, outro, opinável pela opinião com a sensação irracional, tornando-se e perecendo, mas jamais sendo. Todo tornar-se que se torna, por necessidade, a partir de uma causa. Pois, para o todo é impossível ter origem afastado de uma causa. Quando daquele primeiro, então, o demiurgo realiza pela idéia e pela capacidade dele, olhando em direção ao que se mantém sempre um só e o mesmo, servindo-se de algo dessa qualidade como [b] paradigma, assim o todo se realiza(r), por necessidade, belo. Mas, quando do outro, por sua vez, olhando para o que está gerado, servindo-se como modelo algo gerável, o todo se realiza não belo. Todo céu - ou cosmo ou ainda outro sendo denominado, que por acaso aceitaria, sobretudo, esteja denominado isso para nós -, então, primeiro, deve ser observado acerca dele, precisamente o que subjaz sobre o todo no princípio. Qual dos dois era sempre: tendo nenhum princípio de origem ou está gerado, tendo sido iniciado a partir de algum princípio? Está gerado, pois, é visível e tangível, e que tem corpo; todas essas coisas são sensíveis. As coisas [c] sensíveis, contudo, são apreensíveis pela opinião com os sentidos, mostram-se coisas que se tornam e coisas geráveis. Para o que está gerado, dizemos haver toda necessidade de ser gerado a partir de alguma causa. Então, encontrar o criador e o pai deste todo, é trabalhoso, e tendo encontrado, é impossível dizer a todos. Por isso, outra vez, isto deve ser refletido acerca dele 172 mesmo em relação a um dos paradigmas, o que constituiu o realizava [29] conforme o que se mantém um só e o mesmo ou com relação ao que está gerado? Se, de um lado, este mundo é belo e o demiurgo bom, é evidente que olhava em direção ao eterno. Se, por outro lado, não é lícito dizer a alguém que ele olhava em direção ao eterno. É manifesto que para o todo ele olhava para o eterno. Pois, um deles é a melhor das coisas geradas, o outro a melhor das causas. Desse modo, o que está gerado foi trabalhado em relação ao que é apreensível pela razão e sabedoria e ao que se mantém um só e o mesmo. [b] Sendo isso, por sua vez, o que subjaz, há toda necessidade de ser o cosmo imagem de algo. O mais importante de tudo é iniciar-se o princípio conforme a natureza. Afinal, assim, deve-se delimitar acerca da imagem e do modelo do princípio, de modo a, portanto, em relação aos discursos que são congêneres das mesmas coisas de que são condutoras. Então, do estável e do firme e com a razão clara, em relação aos discursos estáveis e constantes - convém ser aos discursos tanto irrefutáveis quanto invencíveis segundo a qualidade e a quantidade, é necessário não se descuidar [c] disso -, entretanto, em relação àqueles que tendo sido feitos imagem àquele paradigma, sendo imagens e que são verossímeis por analogia daquelas: o que precisamente a essência é em relação à origem, isso é a verdade em relação à crença. Então, ó Sócrates, se não nos tornássemos capazes de restituir os discursos, em torno de muitas coisas de muitos deles, acerca dos deuses e da origem do todo, em tudo e por tudo, convindo com discursos de modo não perfeito, não te admires; mas, afinal, se fornecêssemos nada mais verossímil, é bom alegrar-se, lembrando-se que eu o falante e vós, os juízes, temos a natureza humana, e que [d] aceitando o mito verossímil acerca deles, convém ainda buscar nada mais além disso. SÓCRATES. Deve-se admitir, ó Timeu, que tu exortas as melhores coisas absolutamente: de um lado, então, nós admiravelmente recebemos o proêmio de ti, de outro, a seguir, expõe para nós a lei (o fundamento). Plato. Platonis Opera, ed. John Burnet. Oxford University Press. 1903. Tomus IV, Tetralogiam VIII, Respublica Corpora: VI, 506d2 – VII, 515d5 [506d6] Καὶ γὰξ ἐκνί, ἦλ δ᾽ ἐγώ, ὦ ἑηαῖξε, θαὶ κάια ἀξθέζεη: ἀιι᾽ ὅπσο κὴ νὐρ νἷόο η᾽ ἔζνκαη, πξνζπκνύκελνο δὲ ἀζρεκνλ῵λ γέισηα ὀθιήζσ. ἀιι᾽, ὦ καθάξηνη, αὐηὸ κὲλ ηί πνη᾽[e] 173 ἐζηὶ ηἀγαζὸλ ἐάζσκελ ηὸ λῦλ εἶλαη - πιένλ γάξ κνη θαίλεηαη ἢ θαηὰ ηὴλ παξνῦζαλ ὁξκὴλ ἐθηθέζζαη ηνῦ γε δνθνῦληνο ἐκνὶ ηὰ λῦλ - ὃο δὲ ἔθγνλόο ηε ηνῦ ἀγαζνῦ θαίλεηαη θαὶ ὁκνηόηαηνο ἐθείλῳ, ιέγεηλ ἐζέισ, εἰ θαὶ ὑκῖλ θίινλ, εἰ δὲ κή, ἐᾶλ. (S) Pois, amigos, para mim também bastará, e muito; mas, de modo que, eu não estarei afastado/sozinho/só, e, no entanto, sendo incinvenientemente insistente, exporei-me ao riso. Contudo, ó meus bons amigos, o que o próprio Bem é, deixemos estar por agora. Visto que, parece-me maior do que o presente esforço para atingir, pelo menos creio ser para mim agora. O que é gerado a partir do Bem e que se mostra o mais semelhante àquele, se a vós agrada, se não deixemos. ἀιι᾽, ἔθε, ιέγε: εἰο αὖζηο γὰξ ηνῦ παηξὸο ἀπνηείζεηο ηὴλ δηήγεζηλ. (G) Mas, fala, disse. Pois, outra vez, pagarás com a narração do pai. [507] βνπινίκελ ἄλ, εἶπνλ, ἐκέ ηε δύλαζζαη αὐηὴλ ἀπνδνῦλαη θαὶ ὑκᾶο θνκίζαζζαη, ἀιιὰ κὴ ὥζπεξ λῦλ ηνὺο ηόθνπο κόλνλ. ηνῦηνλ δὲ δὴ νὖλ ηὸλ ηόθνλ ηε θαὶ ἔθγνλνλ αὐηνῦ ηνῦ ἀγαζνῦ θνκίζαζζε. εὐιαβεῖζζε κέληνη κή πῃ ἐμαπαηήζσ ὑκᾶο ἄθσλ, θίβδεινλ ἀπνδηδνὺο ηὸλ ιόγνλ ηνῦ ηόθνπ. (S) Quisera (Pudesse) eu, disse, puder devolvê-la e vós recolhê-la; mas não como agora, somente os juros. Esse juro, então, oriundo do próprio Bem, recolhe-o (tomai-o); no entanto, tende cuidado para que eu não vos engane, ao devolver/devolvendo um discurso falso acerca do juro. Δὐιαβεζόκεζα, ἔθε, θαηὰ δύλακηλ: ἀιιὰ κόλνλ ιέγε. (G) Tomemos cuidado, disse, na medida do possível. Apenas fala. Γηνκνινγεζάκελόο γ᾽ ἔθελ ἐγώ, θαὶ ἀλακλήζαο ὑκᾶο ηά η᾽ ἐλ ηνῖο ἔκπξνζζελ ῥεζέληα θαὶ ἄιινηε ἤδε πνιιάθηο εἰξεκέλα. (S) Então tendo concordado, dizia eu, e tendo vos recordado o que foi ditto antes e o que acaba de ser dito já muitas vezes em outros momentos. 174 [b] Σὰ πνῖα; ἦ δ᾽ ὅο. (G) Que coisas, disse ele? Πνιιὰ θαιά, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θαὶ πνιιὰ ἀγαζὰ θαὶ ἕθαζηα νὕησο εἶλαί θακέλ ηε θαὶ δηνξίδνκελ ηῶ ιόγῳ. (S) Muitas coisas belas, dizia eu, e muitas coisas boas, e cada uma delas dizemos ser assim e delimitamos pelo discurso. Φακὲλ γάξ. (G) Dizemos sim. [É, afirmamos sim.] Καὶ αὐηὸ δὴ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ, θαὶ νὕησ πεξὶ πάλησλ ἃ ηόηε ὡο πνιιὰ ἐηίζεκελ, πάιηλ αὖ θαη᾽ ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο, ‗ὃ ἔζηηλ‘ ἕθαζηνλ πξνζαγνξεύνκελ. (S) E também o próprio Belo e o próprio Bem, e assim quanto a todas as coisas que então colocamos como múltiplas, colocando novamente conforme uma só ideia de cada, sendo uma só, nós denominamos o que é cada uma. Ἔζηη ηαῦηα. (G) São essas coisas. Καὶ ηὰ κὲλ δὴ ὁξᾶζζαί θακελ, λνεῖζζαη δ᾽ νὔ, ηὰο δ᾽ αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ, ὁξᾶζζαη δ᾽ νὔ. (S) E então dizemos que, por um lado, as coisas são vistas mas não pensadas; e que as ideias, por sua vez, são pensadas mas não vistas. Παληάπαζη κὲλ νὖλ. (G) É, inteiramente. [c] Σῶ νὖλ ὁξ῵κελ ἡκ῵λ αὐη῵λ ηὰ ὁξώκελα; (S) Então, por meio de que nós mesmos vemos as coisas que são vistas? 175 Σῆ ὄςεη, ἔθε. (G) Pela visão, respondeu. Οὐθνῦλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θαὶ ἀθνῆ ηὰ ἀθνπόκελα, θαὶ ηαῖο ἄιιαηο αἰζζήζεζη πάληα ηὰ αἰζζεηά; (S) Então, dizia eu, também que é ouvido com a audição e com os outros sentidos todas as coisas sensíveis? Σί κήλ; (G) O quê? Ἆξ᾽ νὖλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, ἐλλελόεθαο ηὸλ η῵λ αἰζζήζεσλ δεκηνπξγὸλ ὅζῳ πνιπηειεζηάηελ ηὴλ ηνῦ ὁξᾶλ ηε θαὶ ὁξᾶζζαη δύλακηλ ἐδεκηνύξγεζελ; (S) Acaso não pensaste que o demiurgo dos sentidos o quão perfeitamente realizou/trabalhou a faculdade de ver e de ser visto? Οὐ πάλπ, ἔθε. (G) Certamente não, respondi. Ἀιι᾽ ὧδε ζθόπεη. ἔζηηλ ὅηη πξνζδεῖ ἀθνῆ θαὶ θσλῆ γέλνπο ἄιινπ εἰο ηὸ ηὴλ κὲλ ἀθνύεηλ, ηὴλ δὲ ἀθνύεζζαη, ὃ [d] ἐὰλ κὴ παξαγέλεηαη ηξίηνλ, ἡ κὲλ νὐθ ἀθνύζεηαη, ἡ δὲ νὐθ ἀθνπζζήζεηαη; (S) Mas, observa assim: há algo de outro gênero que é preciso à audição e à voz para uma ouvir e a outra ser ouvida, um terceiro que se não estiver presente tanto aquela não ouvirá quanto esta não será ouvida? Οὐδελόο, ἔθε. (G) Nada, disse. Οἶκαη δέ γε, ἦλ δ᾽ ἐγώ, νὐδ᾽ ἄιιαηο πνιιαῖο, ἵλα κὴ εἴπσ ὅηη νὐδεκηᾷ, ηνηνύηνπ πξνζδεῖ νὐδελόο. ἢ ζύ ηηλα ἔρεηο εἰπεῖλ; (S) Eu penso, dizia eu, que nem a muitas outras para não dizer a nenhuma, é necessário 176 nenhuma desse tipo. Ou tu tens algo a dizer? Οὐθ ἔγσγε, ἦ δ᾽ ὅο. (G) Não, disse ele. Σὴλ δὲ η῅ο ὄςεσο θαὶ ηνῦ ὁξαηνῦ νὐθ ἐλλνεῖο ὅηη πξνζδεῖηαη; (S) E a da visão e a do visível não pensas de que necessita? Π῵ο; (G) Como? ἖λνύζεο πνπ ἐλ ὄκκαζηλ ὄςεσο θαὶ ἐπηρεηξνῦληνο ηνῦ ἔρνληνο ρξ῅ζζαη αὐηῆ, παξνύζεο δὲ ρξόαο ἐλ αὐηνῖο, ἐὰλ κὴ [e] παξαγέλεηαη γέλνο ηξίηνλ ἰδίᾳ ἐπ᾽ αὐηὸ ηνῦην πεθπθόο, νἶζζα ὅηη ἥ ηε ὄςηο νὐδὲλ ὄςεηαη, ηά ηε ρξώκαηα ἔζηαη ἀόξαηα. (S) Estando a visão nos olhos e intentando o que mantém servir-se dela, e estando presente cores nelas/nas coisas se não se fizer presente um terceiro gênero particularmente nascido para isso, sabes que a visão nada veria e que as cores seriam invisíveis. Σίλνο δὴ ιέγεηο, ἔθε, ηνύηνπ; (G) Que é isso de que falas, disse? Ὃ δὴ ζὺ θαιεῖο, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θ῵ο. (S) O que tu chamas, dizia eu, luz. Ἀιεζ῅, ἔθε, ιέγεηο. (G) Dizes o verdadeiro, respondeu. Οὐ ζκηθξᾷ ἄξα ἰδέᾳ ἡ ηνῦ ὁξᾶλ αἴζζεζηο θαὶ ἡ ηνῦ ὁξᾶζζαη [508] δύλακηο η῵λ ἄιισλ ζπδεύμεσλ ηηκησηέξῳ δπγῶ ἐδύγεζαλ, εἴπεξ κὴ ἄηηκνλ ηὸ θ῵ο. (S) Então, não é por uma pequena ideia que a sensação do ver e a faculdade de ser visto atrelaram-se por um jugo mais valoroso dentre os outros liames, se a luz não é sem valor. 177 ἀιιὰ κήλ, ἔθε, πνιινῦ γε δεῖ ἄηηκνλ εἶλαη. (G) Mas sim, disse ele, é preciso ser muito sem valor. Σίλα νὖλ ἔρεηο αἰηηάζαζζαη η῵λ ἐλ νὐξαλῶ ζε῵λ ηνύηνπ θύξηνλ, νὗ ἡκῖλ ηὸ θ῵ο ὄςηλ ηε πνηεῖ ὁξᾶλ ὅηη θάιιηζηα θαὶ ηὰ ὁξώκελα ὁξᾶζζαη; (S) Então, quem dentre os deuses no céu tu tens como senhor causador disso, cuja luz faz nossa visão ver o mais belamente e as coisas serem vistas? Ὅλπεξ θαὶ ζύ, ἔθε, θαὶ νἱ ἄιινη: ηὸλ ἥιηνλ γὰξ δ῅ινλ ὅηη ἐξσηᾷο. (G) Exatamente, o que tu, disse ele, e os outros: o sol, pois é evidente o que tu perguntas. Ἆξ᾽ νὖλ ὧδε πέθπθελ ὄςηο πξὸο ηνῦηνλ ηὸλ ζεόλ; (S) Então, será que a visão nasceu, desse modo, em relação a esse deus? Π῵ο; (G) De que modo? Οὐθ ἔζηηλ ἥιηνο ἡ ὄςηο νὔηε αὐηὴ νὔη᾽ ἐλ ᾧ ἐγγίγλεηαη, ὃ [b] δὴ θαινῦκελ ὄκκα. (S) A visão não é o sol nem ela mesma nem em que ela nasce, o que chamamos vista. Οὐ γὰξ νὖλ. (G) Pois não, então. Ἀιι᾽ ἡιηνεηδέζηαηόλ γε νἶκαη η῵λ πεξὶ ηὰο αἰζζήζεηο ὀξγάλσλ. (S) Mas, quanto aos órgãos dos sentidos, eu creio ser ela a que mais tem a forma do sol. Πνιύ γε. (G) Muito mesmo. Οὐθνῦλ θαὶ ηὴλ δύλακηλ ἣλ ἔρεη ἐθ ηνύηνπ ηακηεπνκέλελ ὥζπεξ ἐπίξξπηνλ θέθηεηαη; 178 (S) Então, também a capacidade que ela possui fornecida a partir desse (ἥιηνο), como adiquirida com abundância. Πάλπ κὲλ νὖλ. (G) É sim. Ἆξ᾽ νὖλ νὐ θαὶ ὁ ἥιηνο ὄςηο κὲλ νὐθ ἔζηηλ, αἴηηνο δ᾽ ὢλ αὐη῅ο ὁξᾶηαη ὑπ᾽ αὐη῅ο ηαύηεο; (S) Por acaso/ Será que, então, (νὐ θαὶ) o sol não é a visão, mas sendo o causasdor dela, é visto por ela mesma? Οὕησο, ἦ δ᾽ ὅο. (G) É asssim, disse ele. Σνῦηνλ ηνίλπλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θάλαη κε ιέγεηλ ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ, ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῶ, ὅηηπεξ αὐηὸ [c] ἐλ ηῶ λνεηῶ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ λννύκελα, ηνῦην ηνῦηνλ ἐλ ηῶ ὁξαηῶ πξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα. (S) Na verdade, dizia eu, tenhas claro que é esse que eu dizia ser o filho do Bem, que o Bem gerou análogo a si mesmo; o que precisamente ele é no espaço inteligível, em relação ao intelecto e às coisas inteligíveis, isso mesmo esse é no espaço visível com relação à vista e às coisas visíveis. Π῵ο; ἔθε: ἔηη δίειζέ κνη. (G) Como? disse; esclarece me mais. ὆θζαικνί, ἦλ δ᾽ ἐγώ, νἶζζ᾽ ὅηη, ὅηαλ κεθέηη ἐπ᾽ ἐθεῖλά ηηο αὐηνὺο ηξέπῃ ὧλ ἂλ ηὰο ρξόαο ηὸ ἡκεξηλὸλ θ῵ο ἐπέρῃ, ἀιιὰ ὧλ λπθηεξηλὰ θέγγε, ἀκβιπώηηνπζί ηε θαὶ ἐγγὺο θαίλνληαη ηπθι῵λ, ὥζπεξ νὐθ ἐλνύζεο θαζαξᾶο ὄςεσο; (S) Os olhos, dizia eu, tu sabes que, quando alguém ainda não os dirige em direção àquelas coisas cuja luz do dia reflete as cores, mas sobre as quais incide a escuridão da noite, eles vêem turvo? 179 Καὶ κάια, ἔθε. (G) E muito, respondeu. [d] Ὅηαλ δέ γ᾽ νἶκαη ὧλ ὁ ἥιηνο θαηαιάκπεη, ζαθ῵ο ὁξ῵ζη, θαὶ ηνῖο αὐηνῖο ηνύηνηο ὄκκαζηλ ἐλνῦζα θαίλεηαη. (S) E quando, creio eu, é sobre o que o sol espalha luz/ilumina, ele vêem claramente, e se mostram estando a visão nessas mesmas coisas/e a visão se revela estar na própria vista. Σί κήλ; (G) O quê? Οὕησ ηνίλπλ θαὶ ηὸ η῅ο ςπρ῅ο ὧδε λόεη: ὅηαλ κὲλ νὗ θαηαιάκπεη ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ, εἰο ηνῦην ἀπεξείζεηαη, ἐλόεζέλ ηε θαὶ ἔγλσ αὐηὸ θαὶ λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη: ὅηαλ δὲ εἰο ηὸ ηῶ ζθόηῳ θεθξακέλνλ, ηὸ γηγλόκελόλ ηε θαὶ ἀπνιιύκελνλ, δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη ἄλσ θαὶ θάησ ηὰο δόμαο κεηαβάιινλ, θαὶ ἔνηθελ αὖ λνῦλ νὐθ ἔρνληη. (S) Desse modo, então, pensa assim também em relação à alma: quando, de um lado, onde a verdade e o que é, espalha luz/ilumina, ela se fixa nisso, ela o pensa e o reconhece, e parece ter inteligência; mas, quando, por outro lado, ela se fixa no misturado/que se mistura com a escuridão, o que nasce e o que perece, ela opina e vê turvo, oscilando com as opiniões para cima e para baixo, e, por sua vez, parece com o que não tem inteligência. Ἔνηθε γάξ. (G) Pois, parece. [e] Σνῦην ηνίλπλ ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῶ γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη: αἰηίαλ δ᾽ ἐπηζηήκεο νὖζαλ θαὶ ἀιεζείαο, ὡο γηγλσζθνκέλεο κὲλ δηαλννῦ, νὕησ δὲ θαι῵λ ἀκθνηέξσλ ὄλησλ, γλώζεώο ηε θαὶ ἀιεζείαο, ἄιιν θαὶ θάιιηνλ ἔηη ηνύησλ ἡγνύκελνο αὐηὸ ὀξζ῵ο ἡγήζῃ: ἐπηζηήκελ [509] δὲ θαὶ ἀιήζεηαλ, ὥζπεξ ἐθεῖ θ῵ο ηε θαὶ ὄςηλ ἡιηνεηδ῅ κὲλ λνκίδεηλ ὀξζόλ, ἥιηνλ δ᾽ ἡγεῖζζαη νὐθ ὀξζ῵ο ἔρεη, νὕησ θαὶ ἐληαῦζα ἀγαζνεηδ῅ κὲλ λνκίδεηλ ηαῦη᾽ ἀκθόηεξα ὀξζόλ, ἀγαζὸλ δὲ ἡγεῖζζαη ὁπόηεξνλ αὐη῵λ νὐθ ὀξζόλ, ἀιι᾽ ἔηη κεηδόλσο ηηκεηένλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ. 180 (S) Então, isso que fornece a verdade às coisas que são reconhecidas e que confere a capacidade àquele que reconhece, dize tu ser a ideia do Bem; mas, sendo a causa da ciênca e da verdade, raciocina como sendo reconhecidas, sendo ambas belas, conhecimento e verdade, e pensando ser ele outro e ainda mais belo do que esses, tu o julgarás corretamente. E assim, como é correto considerar ali a ciência e a verdade serem a luz e a visão com forma de sol, mas não é correto julgar serem o sol, e dessa maneira, também aqui é correto considerar que ambas têm a forma do Bem, mas não é correto pensar que uma delas é o Bem, mas deve ser muito mais honrada a postura do Bem. ἀκήραλνλ θάιινο, ἔθε, ιέγεηο, εἰ ἐπηζηήκελ κὲλ θαὶ ἀιήζεηαλ παξέρεη, αὐηὸ δ᾽ ὑπὲξ ηαῦηα θάιιεη ἐζηίλ: νὐ γὰξ δήπνπ ζύ γε ἡδνλὴλ αὐηὸ ιέγεηο. (G) Tu dizes, dizia, um belo inconcebível, se ele fornece conhecimento e verdade, mas ele está acima delas em beleza; pois, certamente, tu não afirmas que ele é o prazer. Δὐθήκεη, ἦλ δ᾽ ἐγώ: ἀιι᾽ ὧδε κᾶιινλ ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ ἔηη ἐπηζθόπεη. (S) Bom augúrio, dizia eu; mas observa ainda mais a imagem dele. [b] Π῵ο; (G) Como? Σὸλ ἥιηνλ ηνῖο ὁξσκέλνηο νὐ κόλνλ νἶκαη ηὴλ ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο, ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ αὔμελ θαὶ ηξνθήλ, νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα. (S) Eu creio que tu dirás que o sol não só fornece a capacidade de ver as coisas que são vistas, mas também a gênese/origem, o crescimento e o alimento, não sendo ele a origem. Π῵ο γάξ; (G) Como, pois? Καὶ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ ἀγαζνῦ παξεῖλαη, ἀιιὰ θαὶ ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ᾽ ἐθείλνπ αὐηνῖο πξνζεῖλαη, νὐθ νὐζίαο ὄληνο ηνῦ ἀγαζνῦ, ἀιι᾽ ἔηη ἐπέθεηλα η῅ο νὐζίαο πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη ὑπεξέρνληνο. 181 (S) Então, também não apenas dizer que o ser conhecido está presente por causa (sob o efeito) do Bem, mas também que o existir e a essência estão junto delas (se acrescentam) por causa daquele (Bem), não sendo o Bem uma essência, mas ainda estando acima daquelas em proeminência e poder. [c] Καὶ ὁ Γιαύθσλ κάια γεινίσο, Ἄπνιινλ, ἔθε, δαηκνλίαο ὑπεξβνι῅ο. (G) E Glauco, rindo muito, disse, por Apolo, que exagero divino! ΢ὺ γάξ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, αἴηηνο, ἀλαγθάδσλ ηὰ ἐκνὶ δνθνῦληα πεξὶ αὐηνῦ ιέγεηλ. (S) Pois, tu és o causador, forçando-me a discorrer sobre as coisas que eu penso a respeito dele (Bem). Καὶ κεδακ῵ο γ᾽, ἔθε, παύζῃ, εἰ κή ηη, ἀιιὰ ηὴλ πεξὶ ηὸλ ἥιηνλ ὁκνηόηεηα αὖ δηεμηώλ, εἴ πῃ ἀπνιείπεηο. (G) E não interrompas de modo algum, disse ele, ao contrário, se não há algo/alguém de discorrer sobre a semelhança acerca do sol, se é que, de algum modo, não estás deixando alguma coisa de lado. Ἀιιὰ κήλ, εἶπνλ, ζπρλά γε ἀπνιείπσ. (S) Mas, na verdade, dizia eu, estou deixando, e muito. Μεδὲ ζκηθξὸλ ηνίλπλ, ἔθε, παξαιίπῃο. (G) Pois, por menor que seja, não deixas nada de lado. Οἶκαη κέλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, θαὶ πνιύ: ὅκσο δέ, ὅζα γ᾽ ἐλ ηῶ παξόληη δπλαηόλ, ἑθὼλ νὐθ ἀπνιείςσ. (S) Eu acredito que sim, dizia eu, em muitas coisas; no entanto, quantas forem possíveis, no presente, de grado, não deixarei de lado. Μὴ γάξ, ἔθε. (G) Nesse caso, não deixes, respondeu. 182 [d] Νόεζνλ ηνίλπλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ, ὥζπεξ ιέγνκελ, δύν αὐηὼ εἶλαη, θαὶ βαζηιεύεηλ ηὸ κὲλ λνεηνῦ γέλνπο ηε θαὶ ηόπνπ, ηὸ δ᾽ αὖ ὁξαηνῦ, ἵλα κὴ νὐξαλνῦ εἰπὼλ δόμσ ζνη ζνθίδεζζαη πεξὶ ηὸ ὄλνκα. ἀιι᾽ νὖλ ἔρεηο ηαῦηα δηηηὰ εἴδε, ὁξαηόλ, λνεηόλ; (S) Pensa então, dizia eu, como dizemos, serem aqui dois e regerem, um, o gênero e o espaço do pensável; o outro, por sua vez, o do visível, a fim de que, falando do céu, não te pareça estar sofismando a respeito do nome. Em todo caso, tu tens essas duas visões, a visível e a inteligível? Ἔρσ. (G) Tenho. Ὥζπεξ ηνίλπλ γξακκὴλ δίρα ηεηκεκέλελ ιαβὼλ ἄληζα ηκήκαηα, πάιηλ ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκ῅κα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ, ηό ηε ηνῦ ὁξσκέλνπ γέλνπο θαὶ ηὸ ηνῦ λννπκέλνπ, θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια ἐλ κὲλ ηῶ ὁξσκέλῳ [e] ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκ῅κα εἰθόλεο— ιέγσ δὲ ηὰο εἰθόλαο πξ῵ηνλ [510] κὲλ ηὰο ζθηάο, ἔπεηηα ηὰ ἐλ ηνῖο ὕδαζη θαληάζκαηα θαὶ ἐλ ηνῖο ὅζα ππθλά ηε θαὶ ιεῖα θαὶ θαλὰ ζπλέζηεθελ, θαὶ πᾶλ ηὸ ηνηνῦηνλ, εἰ θαηαλνεῖο. (S) Assim pois, como tendo tomado uma linha seccionada em dois cortes desiguais, secciona outra vez cada um dos segmentos conforme a mesma proporção, o do gênero que é visto e o do que é pensado, e para ti estará com clareza e sem clareza, um em relação ao outro; no segmento visível [e], outro segmento: o das imagens – e por imagens refiro-me, primeiro, às sombras; em seguida, às aparições nas águas e nas coisas, quantas, se constituem sólidas, lisas e brilhantes e tudo desse tipo, se tu me entendes. ἀιιὰ θαηαλν῵. (G) Mas, estou entendendo. Σὸ ηνίλπλ ἕηεξνλ ηίζεη ᾧ ηνῦην ἔνηθελ, ηά ηε πεξὶ ἡκᾶο δῶο θαὶ πᾶλ ηὸ θπηεπηὸλ θαὶ ηὸ ζθεπαζηὸλ ὅινλ γέλνο. (S) Coloca, então, o outro o qual é parecido com o anterior: os viventes em torno de nós, todo 183 gênero que é plantável e todo que é fabricado. Σίζεκη, ἔθε. (G) Eu coloco, respondeu. Ἦ θαὶ ἐζέινηο ἂλ αὐηὸ θάλαη, ἦλ δ᾽ ἐγώ, δηῃξ῅ζζαη ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή, ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ, νὕησ ηὸ ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε; (S) Será que quererias afirmar, disse eu, que ele (segmento) se distingue pela verdade e pela não verdade, como o opinável está para o que é conhecido, do mesmo modo o assemelhado em relação ao que foi assemelhado? [b] Ἔγσγ᾽, ἔθε, θαὶ κάια. (G) Sim, disse ele, quereria e muito. ΢θόπεη δὴ αὖ θαὶ ηὴλ ηνῦ λνεηνῦ ηνκὴλ ᾗ ηκεηένλ. (S) Observa, por sua vez, também o segmento do inteligível, de que modo deve ser seccionado. Πῆ; (G) De que modo? Ἧη ηὸ κὲλ αὐηνῦ ηνῖο ηόηε κηκεζεῖζηλ ὡο εἰθόζηλ ρξσκέλε ςπρὴ δεηεῖλ ἀλαγθάδεηαη ἐμ ὑπνζέζεσλ, νὐθ ἐπ᾽ ἀξρὴλ πνξεπνκέλε ἀιι᾽ ἐπὶ ηειεπηήλ, ηὸ δ᾽ αὖ ἕηεξνλ - ηὸ ἐπ᾽ ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ - ἐμ ὑπνζέζεσο ἰνῦζα θαὶ ἄλεπ η῵λ πεξὶ ἐθεῖλν εἰθόλσλ, αὐηνῖο εἴδεζη δη᾽ αὐη῵λ ηὴλ κέζνδνλ πνηνπκέλε. (S) De modo que a alma, servindo-se de imagens de coisas imitadas, tanto, é forçada a buscar uma parte dele a partir de hipóteses, sendo conduzida não para o princípio mas para a conclusão (o fim); quanto, por sua vez, a outra parte, que vai a partir de hipóteses em direção ao princípio não-hipotético e sem as imagens em acerca daquele/a, busca-o, fazendo seu caminho pelas próprias imagens e por meio de visões. 184 Σαῦη᾽, ἔθε, ἃ ιέγεηο, νὐρ ἱθαλ῵ο ἔκαζνλ. (G) Não estou compreendendo o suficiente essas coisas que tu dizes, repondeu. [c] Ἀιι᾽ αὖζηο, ἦλ δ᾽ ἐγώ: ῥᾷνλ γὰξ ηνύησλ πξνεηξεκέλσλ καζήζῃ. νἶκαη γάξ ζε εἰδέλαη ὅηη νἱ πεξὶ ηὰο γεσκεηξίαο ηε θαὶ ινγηζκνὺο θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πξαγκαηεπόκελνη, ὑπνζέκελνη ηό ηε πεξηηηὸλ θαὶ ηὸ ἄξηηνλ θαὶ ηὰ ζρήκαηα θαὶ γσλη῵λ ηξηηηὰ εἴδε θαὶ ἄιια ηνύησλ ἀδειθὰ θαζ᾽ ἑθάζηελ κέζνδνλ, ηαῦηα κὲλ ὡο εἰδόηεο, πνηεζάκελνη ὑπνζέζεηο αὐηά, νὐδέλα ιόγνλ νὔηε αὑηνῖο νὔηε ἄιινηο ἔηη ἀμηνῦζη πεξὶ αὐη῵λ δηδόλαη [d] ὡο παληὶ θαλεξ῵λ, ἐθ ηνύησλ δ᾽ ἀξρόκελνη ηὰ ινηπὰ ἤδε δηεμηόληεο ηειεπη῵ζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ ηνῦην νὗ ἂλ ἐπὶ ζθέςηλ ὁξκήζσζη. (S) Mas, de volta, dizia eu; pois tu enderás mais facilmente do que essas coisas ditas anteriormente. Com efeito, eu presumo que tu saibas que os que se ocupam das geometrias, dos cálculos e de coisas desse tipo, e os que supõem o par e o ímpar, as figuras, as três visões do triângulo, e também as irmãs dessas, conforme o método de cada uma, e como conhecedores desses assuntos, tendo fieto delas hipóteses, não se importam em dar alguma razão acerca deles, nem a eles mesmos, nem aos outros, como se fossem coisas evidentes a todos; e, iniciando a partir disso e percorrendo pelas restantes, eles concluem por unanimidade naquilo que buscam para a observação. Πάλπ κὲλ νὖλ, ἔθε, ηνῦηό γε νἶδα. (G) É isso mesmo, eu sei muito bem. Οὐθνῦλ θαὶ ὅηη ηνῖο ὁξσκέλνηο εἴδεζη πξνζρξ῵ληαη θαὶ ηνὺο ιόγνπο πεξὶ αὐη῵λ πνηνῦληαη, νὐ πεξὶ ηνύησλ δηαλννύκελνη, ἀιι᾽ ἐθείλσλ πέξη νἷο ηαῦηα ἔνηθε, ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ ἕλεθα ηνὺο ιόγνπο πνηνύκελνη θαὶ δηακέηξνπ αὐη῅ο, ἀιι᾽ νὐ [e] ηαύηεο ἣλ γξάθνπζηλ, θαὶ ηἆιια νὕησο, αὐηὰ κὲλ ηαῦηα ἃ πιάηηνπζίλ ηε θαὶ γξάθνπζηλ, ὧλ θαὶ ζθηαὶ θαὶ ἐλ ὕδαζηλ εἰθόλεο εἰζίλ, ηνύηνηο κὲλ ὡο εἰθόζηλ αὖ ρξώκελνη, δεηνῦληεο [511] δὲ αὐηὰ ἐθεῖλα ἰδεῖλ ἃ νὐθ ἂλ ἄιισο ἴδνη ηηο ἢ ηῆ δηαλνίᾳ. (S) Então, que eles também se servem de visões que são vistas e criam seus discursos em 185 torno delas, não raciocinando sobre elas, mas acerca daquelas as quais elas mesmas se parecem, produzindo seus discursos em vista do quadrado dele e do diâmetro dela, mas não em vista dela mesma que eles traçam e as outras coisas do mesmo modo; essas mesmas coisas que eles moldam e escrevem das quais existem sombras e imagens nas águas, servindo-se delas como imagens, buscando ver aquelas mesmas que não veriam de outro modo se não pelo raciocínio. ἀιεζ῅, ἔθε, ιέγεηο. (G) É verdadeiro, respondi, o que tu dizes. Σνῦην ηνίλπλ λνεηὸλ κὲλ ηὸ εἶδνο ἔιεγνλ, ὑπνζέζεζη δ᾽ ἀλαγθαδνκέλελ ςπρὴλ ρξ῅ζζαη πεξὶ ηὴλ δήηεζηλ αὐηνῦ, νὐθ ἐπ᾽ ἀξρὴλ ἰνῦζαλ, ὡο νὐ δπλακέλελ η῵λ ὑπνζέζεσλ ἀλσηέξσ ἐθβαίλεηλ, εἰθόζη δὲ ρξσκέλελ αὐηνῖο ηνῖο ὑπὸ η῵λ θάησ ἀπεηθαζζεῖζηλ θαὶ ἐθείλνηο πξὸο ἐθεῖλα ὡο ἐλαξγέζη δεδνμαζκέλνηο ηε θαὶ ηεηηκεκέλνηο. (S) É essa, portanto, a forma inteligível que eu me referia; que a alma, sendo forçada a servirse de hipóteses acerca da investigação dela mesma, não indo até o princípio, como se não pudesse abandonar as hipóteses para o mais alto; mas servindo-se das próprias coisas imaginadas às quais tendo sido feitas imagens e em relação aquelas lá como de coisas conjeturadas e honradas. [b] Μαλζάλσ, ἔθε, ὅηη ηὸ ὑπὸ ηαῖο γεσκεηξίαηο ηε θαὶ ηαῖο ηαύηεο ἀδειθαῖο ηέρλαηο ιέγεηο. (G) Eu entendo, respondeu, que tu falas de algo que está sob o efito das artes da geometria e das irmãs dela. Σὸ ηνίλπλ ἕηεξνλ κάλζαλε ηκ῅κα ηνῦ λνεηνῦ ιέγνληά κε ηνῦην νὗ αὐηὸο ὁ ιόγνο ἅπηεηαη ηῆ ηνῦ δηαιέγεζζαη δπλάκεη, ηὰο ὑπνζέζεηο πνηνύκελνο νὐθ ἀξρὰο ἀιιὰ ηῶ ὄληη ὑπνζέζεηο, νἷνλ ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο, ἵλα κέρξη ηνῦ ἀλππνζέηνπ ἐπὶ ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρὴλ ἰώλ, ἁςάκελνο αὐη῅ο, πάιηλ αὖ ἐρόκελνο η῵λ ἐθείλεο ἐρνκέλσλ, νὕησο ἐπὶ ηειεπηὴλ θαηαβαίλῃ, [c] αἰζζεηῶ παληάπαζηλ νὐδελὶ πξνζρξώκελνο, ἀιι᾽ εἴδεζηλ αὐηνῖο δη᾽ αὐη῵λ εἰο αὐηά, θαὶ ηειεπηᾷ εἰο εἴδε. 186 (S) Entende, nesse caso, que o segmento inteligível, a que estou me referindo, do qual a própria razão atinge pela capacidade do dialogar, fazendo das hipóteses, não princípios mas para o que são, hipóteses, qual degraus e lances, para que indo até o não-hipotético, em direção ao princípio do todo, tendo-o atingido, outra vez, mantendo-se, por sua vez, no que se mantem naquelas (hipóteses); de modo que desça até a conclusão (fim), não fazendo uso absolutamente de nada sensível, mas das próprias visões, por meio delas, para elas mesmas e que termina em visões. Μαλζάλσ, ἔθε, ἱθαλ῵ο κὲλ νὔ - δνθεῖο γάξ κνη ζπρλὸλ ἔξγνλ ιέγεηλ - ὅηη κέληνη βνύιεη δηνξίδεηλ ζαθέζηεξνλ εἶλαη ηὸ ὑπὸ η῅ο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ ζεσξνύκελνλ ἢ ηὸ ὑπὸ η῵λ ηερλ῵λ θαινπκέλσλ, αἷο αἱ ὑπνζέζεηο ἀξραὶ θαὶ δηαλνίᾳ κὲλ ἀλαγθάδνληαη ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη, δηὰ δὲ ηὸ κὴ ἐπ᾽ ἀξρὴλ [d] ἀλειζόληεο ζθνπεῖλ ἀιι᾽ ἐμ ὑπνζέζεσλ, λνῦλ νὐθ ἴζρεηλ πεξὶ αὐηὰ δνθνῦζί ζνη, θαίηνη λνεη῵λ ὄλησλ κεηὰ ἀξρ῅ο. δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ η῵λ γεσκεηξηθ῵λ ηε θαὶ ηὴλ η῵λ ηνηνύησλ ἕμηλ ἀιι᾽ νὐ λνῦλ, ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ. (G) Estou apreendendo, respondeu, mas não o suficiente – pois, tu me pareces se referir a um trabalho extenso – que, certamente, tu queres delimitar ser mais verdadeiro o que é contemplado do ser e do inteligível pela ciência do dialogar do que pelas que denominamos artes, cujas hipóteses são princípios e os que contemplam são obrigados a contemplá-las pelo raciocínio, mas não pelos sentidos; e, por observar, não tendo subido até o princípio, mas a partir de hipóteses, eles não te parecem manter o intelecto acerca delas, ainda que, na verdade, são inteligíveis com o princípio. Tu me pareces chamar raciocínio a posição dos geômetras e dos do mesmo tipo, mas não intelecto, como se o raciocínio fosse algo entre a opinião e o intelecto. Ἱθαλώηαηα, ἦλ δ᾽ ἐγώ, ἀπεδέμσ. θαί κνη ἐπὶ ηνῖο ηέηηαξζη ηκήκαζη ηέηηαξα ηαῦηα παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ γηγλόκελα ιαβέ, λόεζηλ κὲλ ἐπὶ ηῶ ἀλσηάησ, δηάλνηαλ [511ε] δὲ ἐπὶ ηῶ δεπηέξῳ, ηῶ ηξίηῳ δὲ πίζηηλ ἀπόδνο θαὶ ηῶ ηειεπηαίῳ εἰθαζίαλ, θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ, ὥζπεξ ἐθ᾽ νἷο ἐζηηλ ἀιεζείαο κεηέρεη, νὕησ ηαῦηα ζαθελείαο ἡγεζάκελνο κεηέρεηλ [5]. 187 (S) Tu apreendeste suficientemente, dizia eu. Toma sobre os quatro segmentos, em relação à essas quatro afecções que nascem na alma: sobre o mais alto, a intelecção; sobre o seguinte o raciocínio; sobre o terceiro a crença; e em último a imagem. E ordena-os conforme uma razão, julgando, assim, essas coisas participarem da clareza, do mesmo modo é sobre os que participa da verdade. καλζάλσ, ἔθε, θαὶ ζπγρσξ῵ θαὶ ηάηησ ὡο ιέγεηο. (G) Estou entendendo, disse, e acompanho e disponho como tu dizes. [514] Μεηὰ ηαῦηα δή, εἶπνλ, ἀπείθαζνλ ηνηνύηῳ πάζεη ηὴλ ἡκεηέξαλ θύζηλ παηδείαο ηε πέξη θαὶ ἀπαηδεπζίαο. ἰδὲ γὰξ ἀλζξώπνπο νἷνλ ἐλ θαηαγείῳ νἰθήζεη ζπειαηώδεη, ἀλαπεπηακέλελ πξὸο ηὸ θ῵ο ηὴλ εἴζνδνλ ἐρνύζῃ καθξὰλ παξὰ πᾶλ ηὸ ζπήιαηνλ, ἐλ ηαύηῃ ἐθ παίδσλ ὄληαο ἐλ δεζκνῖο θαὶ ηὰ ζθέιε θαὶ ηνὺο αὐρέλαο, ὥζηε κέλεηλ ηε αὐηνὺο εἴο ηε ηὸ [b] πξόζζελ κόλνλ ὁξᾶλ, θύθιῳ δὲ ηὰο θεθαιὰο ὑπὸ ηνῦ δεζκνῦ ἀδπλάηνπο πεξηάγεηλ, θ῵ο δὲ αὐηνῖο ππξὸο ἄλσζελ θαὶ πόξξσζελ θαόκελνλ ὄπηζζελ αὐη῵λ, κεηαμὺ δὲ ηνῦ ππξὸο θαὶ η῵λ δεζκση῵λ ἐπάλσ ὁδόλ, παξ᾽ ἣλ ἰδὲ ηεηρίνλ παξῳθνδνκεκέλνλ, ὥζπεξ ηνῖο ζαπκαηνπνηνῖο πξὸ η῵λ ἀλζξώπσλ πξόθεηηαη ηὰ παξαθξάγκαηα, ὑπὲξ ὧλ ηὰ ζαύκαηα δεηθλύαζηλ. (S) Depois disso, então, disse, imagina com tamanha afecção a nossa natureza em relação à educação e à falta de educação. Vê, pois, homens qual numa morada subterrânea em forma de caverna que tem uma grande entrada voltada para a luz ao longo de toda a caverna; nela, estando acorrentados, desde crianças, tanto nas pernas quanto no pescoço, de modo a permanecerem (os mesmos) e a olharem apenas para frente (b), impossibilitados, por causa das amarras, de mover a cabeça em redor; quanto às cabeças, estavam impossibilitadas de mover em redor por causa das amarras; a luz iluminando-lhes a partir de um fogo acima e de longe e por trás deles, e entre o fogo e os prisioneiros, acima, uma subida, ao longo da qual vê um muro construído e, como para os prestidigitadores diante dos homens está disposta uma cortina, por cima da qual expõem coisas maravilhosas. ὇ξ῵, ἔθε. 188 (G) Estou vendo, respondeu. Ὅξα ηνίλπλ παξὰ ηνῦην ηὸ ηεηρίνλ θέξνληαο ἀλζξώπνπο [c] ζθεύε ηε παληνδαπὰ ὑπεξέρνληα ηνῦ ηεηρίνπ θαὶ ἀλδξηάληαο [515a] θαὶ ἄιια δῶα ιίζηλά ηε θαὶ μύιηλα θαὶ παληνῖα εἰξγαζκέλα, νἷνλ εἰθὸο ηνὺο κὲλ θζεγγνκέλνπο, ηνὺο δὲ ζηγ῵ληαο η῵λ παξαθεξόλησλ. (S) Vê, no entanto, junto a essa mureta, homens que portam equipamentos de toda espécie, ultrapassando o muro; tanto estátuas quanto outros animais de pedra e de madeira e de toda variedade de artefatos, como é natural entre os carregadores, uns estão a falar, os outros se mantêm silenciosos. Ἄηνπνλ, ἔθε, ιέγεηο εἰθόλα θαὶ δεζκώηαο ἀηόπνπο. (G) Tu te referes, disse, à uma estranha imagem e a prisioneiros incomuns. ὇κνίνπο ἡκῖλ, ἦλ δ᾽ ἐγώ: ηνὺο γὰξ ηνηνύηνπο πξ῵ηνλ κὲλ ἑαπη῵λ ηε θαὶ ἀιιήισλ νἴεη ἄλ ηη ἑσξαθέλαη ἄιιν πιὴλ ηὰο ζθηὰο ηὰο ὑπὸ ηνῦ ππξὸο εἰο ηὸ θαηαληηθξὺ αὐη῵λ ηνῦ ζπειαίνπ πξνζπηπηνύζαο; (S) Semelhantes a nós, dizia eu: pois, primeiro, tu achas que esses, dentre eles mesmo e uns com os outros, viram alguma outra coisa a não ser sombras que se projetam diante deles a partir de um fogo em direção a caverna? Π῵ο γάξ, ἔθε, εἰ ἀθηλήηνπο γε ηὰο θεθαιὰο ἔρεηλ ἠλαγθαζκέλνη [b] εἶελ δηὰ βίνπ; (G) Como, pois, disse, se são forçados a manter as cabeças imóveis através da vida! Σί δὲ η῵λ παξαθεξνκέλσλ; νὐ ηαὐηὸλ ηνῦην; (S) E acerca das coisas transportadas? Não seria o mesmo? Σί κήλ; (G) Quê? Δἰ νὖλ δηαιέγεζζαη νἷνί η᾽ εἶελ πξὸο ἀιιήινπο, νὐ ηαῦηα ἡγῆ ἂλ ηὰ ὄληα αὐηνὺο λνκίδεηλ ἅπεξ 189 ὁξῶελ; (S) E como seria, então, se eles dialogassem uns com os outros, tu não pensas que eles poderiam denominar a realidade precisamente o que veriam? Ἀλάγθε. (G) Por necessidade. Σί δ᾽ εἰ θαὶ ἠρὼ ηὸ δεζκσηήξηνλ ἐθ ηνῦ θαηαληηθξὺ ἔρνη; ὁπόηε ηηο η῵λ παξηόλησλ θζέγμαηην, νἴεη ἂλ ἄιιν ηη αὐηνὺο ἡγεῖζζαη ηὸ θζεγγόκελνλ ἢ ηὴλ παξηνῦζαλ ζθηάλ; (S) Mas, e se a prisão também tivesse um eco exatamente [a partir de] à frente deles? No tempo em que algum dos transeuntes falasse, tu pensas que eles julgariam o som emitido algum outro que não a sombra passante? Μὰ Γί᾽ νὐθ ἔγσγ᾽, ἔθε. (G) Sim, por Zeus, eu penso que sim, respondeu. [c] Παληάπαζη δή, ἦλ δ᾽ ἐγώ, νἱ ηνηνῦηνη νὐθ ἂλ ἄιιν ηη λνκίδνηελ ηὸ ἀιεζὲο ἢ ηὰο η῵λ ζθεπαζη῵λ ζθηάο. (S) Então, disse eu, de uma maneira total, esses aí não acreditariam o verdadeiro ser outra coisa do que as sombras dos objetos fabricados. Πνιιὴ ἀλάγθε, ἔθε. (G) Muito forçosamente, disse. ΢θόπεη δή, ἦλ δ᾽ ἐγώ, αὐη῵λ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ η῵λ ηε δεζκ῵λ θαὶ η῅ο ἀθξνζύλεο, νἵα ηηο ἂλ εἴε, εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο: ὁπόηε ηηο ιπζείε θαὶ ἀλαγθάδνηην ἐμαίθλεο ἀλίζηαζζαί ηε θαὶ πεξηάγεηλ ηὸλ αὐρέλα θαὶ βαδίδεηλ θαὶ πξὸο ηὸ θ῵ο ἀλαβιέπεηλ, πάληα δὲ ηαῦηα πνη῵λ ἀιγνῖ ηε θαὶ δηὰ ηὰο καξκαξπγὰο ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ ἐθεῖλα ὧλ [d] ηόηε ηὰο ζθηὰο ἑώξα, ηί ἂλ νἴεη αὐηὸλ εἰπεῖλ, εἴ ηηο αὐηῶ ιέγνη ὅηη ηόηε κὲλ ἑώξα θιπαξίαο, λῦλ δὲ κᾶιιόλ ηη ἐγγπηέξσ ηνῦ ὄληνο θαὶ πξὸο κᾶιινλ ὄληα ηεηξακκέλνο ὀξζόηεξνλ βιέπνη, θαὶ δὴ θαὶ ἕθαζηνλ η῵λ παξηόλησλ δεηθλὺο αὐηῶ ἀλαγθάδνη ἐξση῵λ ἀπνθξίλεζζαη ὅηη ἔζηηλ; νὐθ νἴεη αὐηὸλ ἀπνξεῖλ 190 ηε ἂλ θαὶ ἡγεῖζζαη ηὰ ηόηε ὁξώκελα ἀιεζέζηεξα ἢ ηὰ λῦλ δεηθλύκελα; (S) Observa, então, dizia eu, soltura e a cura dos prisioneiros das amarras e da imprudência, como ela seria se, naturalmente, acontecesse-lhes algo deste tipo: quando algum deles, tendo sido libertado, e fosse forçado a levantar-se subitamente e a conduzir a cabeça ao redor, tanto a andar quanto a direcionar os olhos para a luz, ele sentiria dores ao fazer todas essas coisas e seria incapaz de enxergar, por causa da luminescência, aquelas coisas [d] das quais as sombras há pouco mostravam. O que tu pensarias se algum lhe dissesse que antes ele via coisas sem importância, mas, agora, algo muito mais próximo da realidade, e voltando-se mais para junto de coisas reais, ele veria o mais justo, e naturalmente também, tendo mostrado-lhe cada um dos objetos passantes, seria forçado por perguntas a responder o que elas são? Tu não achas que ele teria dificuldade e julgaria as coisas antes vistas as mais verdadeiras do que agora são mostradas? Πνιύ γ᾽, ἔθε. (G) E muito, respondeu. 191 ÍNDICE REMISSIVO Esse índice remete aos termos gregos estudados no capítulo III dessa tese; esses mesmos termos estão delimitados de acordo com o diálogo ao qual foram extraídos, ou seja, referemse, primeiro, à Politeia e, a seguir, ao Timeu. I. Politeia ἀγαθόν, I, p. 126. αἴζθηζιρ, II, p. 127. ἀλήθεια, III, p. 128. ἀπεικάζυ, IV, p. 129. διάνοια, V, p. 129. δικαιοζύνη, VI, p 129. δόξα, VII, p. 130. εἶδορ/εἴδη, VIII, p. 130. εἰκαζία, IX, p. 132. εἰκών, X, p. 132. ἐπιζηήμη, XI, p. 133. ἰδέα XII, p. 134. λογιζμόρ, XIII, p 135. μίμηζιρ, XIV, p. 135. μῦθορ, XV, p. 136. νοηηόρ/νοούμενα, XVI, p. 137. νοήζιρ/νοῦρ, XVII, p. 137. ὄμμα/ὀθθαλμοί, XVIII, p. 138. ὁπᾶζθαι/ὁπώμενα, XIX, p. 138. ὄτιρ, XX, p. 139. ποίηζιρ, XXI, p. 139. πίζηιρ, XXII, p. 139. ηέσνη, XXIII, p. 139. 192 ὑποθέζιρ, XXIV, p. 140. II. Timeu αἰηία, I, p. 142. αἰώνιορ/ἀίδιορ, II, p. 142. ἀναλογία, III, p. 143. ἁπμονία, IV, p. 144. ἀπσή, V, p. 145. γένεζιρ, VI, p. 145. δοξαζηὸν, VII, p. 146. ζῷον, VIII, p. 146. καλόν, IX, p. 147. κόζμορ, X, p. 148. λόγορ, XI, p. 149. οὐζία, XII, p 150. πᾶν, XIII, p. 150. παπαδείγμα, XIV, p. 151. πεπιληπηὸν, XV, 152. ζσῆμα, XVI, p. 152. ζῶμα, XVII, p. 153. ηὸ γιγνόμενον (ἀεὶ), XVIII, p. 154. ηὸ ὄν (ἀεὶ), XIX, p. 155. τςσή, XX, p. 155.