PEDRO LUIS RIBEIRO DE SANTI
A CONSTRUÇÃO DO EU NA MODERNIDADE
INTRODUÇÃO
Este livro nasceu de uma pesquisa iniciada em agosto de 1995 que tinha a finalidade de
produzir material didático para o curso "Teorias e Sistemas Psicológicos", que ministro no primeiro
ano do curso de Psicologia desde 1992. Boa parte deste curso é dedicado ao estudo das condições
que levaram ao surgimento da Psicologia, no final do século XIX.
Desde então, tenho tentado ampliar este trabalho, organizando textos, combinando trechos
de obras de comentadores e adicionando novos textos originais de cada época. Combinando a
preocupação com a abertura de vias de comunicação com os alunos e um interesse pessoal, com
frequência uso outros recursos que não apenas textos teóricos, como literatura geral, filmes,
referências à 'história dos costumes' e, muito especialmente, a audição de música de época. Essa
reunião entre uma linguagem teórica e mais abstrata com outras mais imediatas e prazerosas não
apenas mostrou-se produtivo, atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante
universitário de hoje, o aumento de sua cultura geral. Ela também deixa evidente para o aluno a
relação entre os problemas filosóficos das várias épocas, que se refletem em toda a expressão
humana -dos hábitos à arquitetura, da música à visão de si mesmo.
Tenho procurado digerir esta experiência de mais de quatro anos através da produção de um
texto didático. Para isso, há que se pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se
compilam fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tornar um texto sobre a história do
pensamento humano acessível à linguagem de alunos de graduação.
A esperança maior deste livro é a de convidar, de um lado, os alunos de Psicologia a pensar
nas relações dessa área de pensamento com o restante do conhecimento e em suas condições de
surgimento. De outro, convidar o público leitor geral a compreender e refletir um pouco sobre a
história dos problemas filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a
Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o qual todos têm contato. Afastamonos de uma posição "substancialista", que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma coisa
eterna e imutável, a qual a ciência finalmente teria vindo desvelar. Assim, colocamos no livro a
questão da construção do mundo psicológico, assim como a Psicologia com uma instância de
produção de conhecimento científico. Ao menos, creio que este livro permite introduzir os alunos à
ideia de que a compreensão da questão psicológica é muito anterior à sua formulação em uma
linguagem científica. Ao público leigo geral, compreender que, antes da visão de si mesmo que se
têm hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras maneiras diferentes de ver a si mesmo e de
compreender a posição do homem no universo.
Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre o que é alma, desejo, liberdade,
etc. Mas foi apenas no final do século XIX que surgiram os projetos de se realizar uma ciência da
mente, nos moldes que conhecemos hoje. Para uma primeira aproximação com o campo da
Psicologia, é essencial que se procure pensar no motivo pelo qual nasceu a demanda por um
profissional, dentro dos moldes da ciência, para dar conta das crises de identidade ou do controle
dos comportamentos.
Como se sabe, a Psicologia é composta de uma grande quantidade de teorias diferentes, que mal
conseguem se comunicar entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da 'Psicologia
e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o sentido do surgimento da Psicologia, talvez
também possamos entender o motivo dessa dispersão.
Essa história é imensa. Ela remonta à filosofia grega e acompanha toda a reflexão filosófica
posterior e, mais recentemente, alcança as teorias psiquiátricas até o início de nosso século. Por
isso, tomamos algumas teses sobre o assunto para organizar nosso percurso. Está longe de nossa
pretensão realizarmos uma obra totalizadora ou sequer de nos aproximarmos disso. Trata-se
simplesmente de perseguir um fio nesta rede, na esperança de que ele convide os leitores a explorar
outras vias. Como será possível perceber, cada época tem um número de correntes de pensamento
paralelas e um número de formas de expressão desses pontos de vista. A seleção dos autores e temas
obedeceu à orientação de alguns comentadores clássicos, de um lado, e a motivos menos nobres, de
outro, como o ponto de vista do conhecimento prévio do autor. Muitas discussões essenciais são
apenas mencionadas, como a questão da Modernidade, algumas passagens da própria história;
muitas questões paralelas às vezes sequer são mencionadas. Peço desculpas ao leitor mais bem
informado e reafirmo o caráter meramente didático deste projeto.
A tese básica que orienta este percurso é a de Luis Cláudio Figueiredo, em "Psicologia.
Uma introdução". Ele propõe a idéia de que houve duas pré-condições para o surgimento de um
projeto de Psicologia como ciência. A primeira seria o surgimento de uma noção clara de
subjetividade privada (ou seja, uma afirmação da idéia de que as pessoas são indivíduos livres e,
enquanto tais, indivisíveis, separados, independentes uns dos outros e donos de seus destinos. A
segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em crise, gerando assim um sujeito
em crise de identidade e a procura de um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. De
momento, essa tese pode parecer obscura, mas gradativamente ela irá sendo explicitada.
De uma forma genérica, podemos dizer que noção de subjetividade privada data do início da
Modernidade, ou seja, do Renascimento. Será justamente na passagem da Idade Média para o
Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito chegará a seu ponto máximo
no século XVII e, a partir de então, iniciará uma longa crise até o final do século XIX.
No final do século XIX, surgirão os primeiros projetos de Psicologia, já com algumas características
definitivas da diversidade que marca esta ciência. Wundt cria condições para a criação de uma
Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta tese, que mostra os modos de
afirmação do eu desde o século XVI, acrescento uma observação minha: a de que, desde o início do
Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fraquezas e insuficiências do eu. Isto
indicaria a possibilidade de que a Modernidade incluísse procedimentos de auto-crítica e dissolução
do eu, além dos clássicos procedimentos de auto-afirmação.
2
A PASSAGEM DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO
Nesta parte, trata-se de expor que nossa concepção
atual do que seja o "eu" não era possível na Idade
Média.
No humanismo moderno. De acordo com a tese de Luis Cláudio Figueiredo, seria neste
período que passaria a se afirmar uma concepção de subjetividade privada -aí incluída a idéia de
liberdade do homem e de sua posição como centro do mundo. Voltemos alguns passos: o que
significa dizer que a noção de 'subjetividade privada' passa a existir? Por que tal concepção não
seria possível anteriormente, no mundo medieval?
Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de privacidade não existisse em um
num determinado momento. Nossa intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou, até
mais, solitários- parece-nos clara, certa. "Ter um tempo para si", sem estar trabalhando ou
estudando (produzindo, de um modo geral), possui um grande valor em nossas vidas. Certamente,
essa é uma das poucas coisas pelas quais lutamos hoje -é preciso garantir nossa privacidade, diante
da alta exigência atual para que dediquemos toda a nossa energia e tempo às atividades
consideradas "úteis". Há até quem diga, e não são poucos, que nosso excessivo individualismo é um
dos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os problemas que derivariam disso,
poderíamos enumerar: a imposição dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao
que não nos diz respeito imediatamente, a solidão, a falta de um sentido para a vida, o desrespeito
generalizado às leis, o crescimento -como reação a tudo isso- de movimentos ideológicos ou
religiosos dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com aquilo que é diferente
de si ou do grupo, etc.
Existem as nações, grupos religiosos, familiares, etc., mas a menor unidade seria a pessoa. O
termo 'indivíduo/ remete a isto, somos o "átomo" indiviso do mundo humano- Este sentimento de
individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos profundamente infelizes e
nos sentimos incompreendidos, passando por uma dor que provavelmente ninguém jamais passou
antes. Se um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos compreender e já ter passado pela
mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e reagimos dizendo que ele não entendeu nada, nosso
sofrimento é incomparavelmente maior que o dele!
Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que lhe atribuamos, parece-nos
certo que o sujeito isolado é a unidade básica de valor e referência de Judô. Ainda assim, se dermos
uma olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que nem sempre foi assim. Esta
afirmação do "eu" parece ter-se construído gradativamente, através de séculos. O "eu" nem sempre
foi soberano.
Se nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (século V A.C.), certamente já
encontraríamos algo que poderíamos chamar de humanismo, como uma valorização do ser humano
já não submetido ao poder dos deuses, (como na filosofia de Sócrates ou no teatro de Eurípedes), a
criação do direito e da democracia, etc. Mas o humanismo, entendido como a colocação do homem
como medida de todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma que tem hoje no
Renascimento, surgindo de dentro da Idade Média.
Ainda que não entremos em detalhe na discussão do pensamento medieval ou grego, vale a
pena destacarmos alguns momentos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Em uma
obra recente, chamada As fontes do Self, Charles Taylor realiza uma análise profunda do nascimento
do sentimento característico da Modernidade; o de que possuímos uma interioridade.
O ponto de partida da análise de Taylor é Platão. Trata-se de mostrar como, para ele, a razão
é a percepção de uma ordem absoluta. Ser racional significa ver a ordem como ela é. Não há como
ser; racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo tempo. Podemos já reconhecer aqui o
nível de certeza pelo qual aspira a Modernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes.
No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'dentro' de nós, para Platão ela reside no
absolutamente Bom.
É em Santo Agostinho que Taylor encontra a grande passagem para a interioridade, Santo
Agostinho é assustadoramente moderno, considerando que viveu entre os séculosJV_e3Lde nossa
era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções de 'interno-externo': espírito/matéria,
alto/baixo, eterno/temporal, imutável/ mutante, etc. Aqui aparece um movimento inédito: com a
desvalorização do corpo e de tudo o que é mundano, com a correspondente valorização da alma
como algo interno, a busca por Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado
no que vemos, mas no próprio olhar, Ele seria a própria luz interior. Santo Agostinho estaria, com
isto, inaugurando uma experiência radical experiência passa a ser altamente subjetivada e
dependente de nós. A tradição moderna teria levado esta concepção ao extremo, passando a referirse a objetos internos e, ao mesmo tempo, a um 'eu penso' totalmente separado do 'externo'. Mas isto
já é adiantar demais nossa discussão.
Em uma imagem que reconhecemos como caricatural e bastante insuficiente da concepção
de mundo medieval no Ocidente -apenas como pano de fundo para introduzirmos as idéias do
Renascimento, poderíamos dizer que ela se caracteriza por considerar o mundo organizado em torno
de um centro. Haveria uma ordem absoluta, representada por Deus e Seus legítimos representantes
na terra: a Bíblia e a Igreja. Cada coisa existente estaria relacionada necessariamente a esta ordem
superior. Em última instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que seria a
criação divina. Aí se encontraria o sentido de tudo.
A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restrita, já que tudo faz parte de um
plano maior, de um todo perfeito disposto por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por
exemplo, é a da colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tampouco haveria lugar para a
privacidade. Na medida em que a onipresença e a onisciência são atributos de Deus, nada poderia
ser mantido em segredo e nunca estaríamos sozinhos: pecar em pensamento já é pecar.
MÚSICA - Canto Gregoriano
A audição e compreensão do canto gregoriano presta-se de forma exemplar à tentativa de
apresentar o espírito medieval. Ele é um canto em uníssono, ou seja, trata-se de um coral onde todos
cantam rigorosamente a mesma coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto sagrado e já conhecido
pelos ouvintes: trata-se da reafirmação do já sabido e da apresentação de um mundo sem novidades.
Associando-se ao caráter da letra, não há propriamente uma melodia, mas apenas uma sinuosa linha
melódica que não se repete; não há refrão ou passagens bruscas, de forma que o ouvinte não
consegue "segurar-se" em nada. Ele não pode se localizar e não deve "prestar atenção" ou estar
consciente do que ouve, mas se deixar levar por este mar ou rebanho. Hoje, ouvimos o canto
gregoriano de forma muito diferente da que o caracteriza: nós o utilizamos para meditar, ou relaxar.
De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia liga-se ao que há de mais
espiritual -o sopro da voz, o sublime, a uma nota que se sustenta idêntica e linear. O ritmo, em
oposição, representa mais proximamente o corpo e seus movimentos, ele chama à dança, ao que é
mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso, deus da embriaguez, do vinho, do teatro,
etc. Ela conteria, assim, um elemento diabólico, excitante. Ao ser assimilada pela igreja, o que é
atribuído ao Papa Gregório, no século VI D.C., a música é filtrada, retirando-se dela ao máximo
seus elementos rítmicos; ela passa a se restringir à pura emissão vocal, sem haver sequer
instrumentos de acompanhamento 5.
Ainda no contexto medieval, surge um outro tipo de música que, de outra forma, reafirma a
certeza e a necessidade de um centro e de uma referência externa. Nela, a voz da melodia é
acompanhada por uma segunda, que sustenta uma mesma nota, chamada 'bordão' (segundo Aurélio,
"uma nota grave, prolongada e constante", mas "também um pau grosso que serve como animo,
amparo"). Trata-se propriamente de manter uma referência, um centro em torno do qual a melodia
pode voltear sem jamais se perder6. Já se encontra nesse
TEXTO ANEXO - John of Salisbury (Século XQ)
No texto que se segue pode-se ver a rigidez de um mundo concebido como hierarquizado
por uma ordem superior. Não cabe ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar
que lhe cabe.
O CORPO SOCIAL ("The Body Social")
"Uma comunidade, de acordo com Plutarco, é um certo corpo dotado de vida pelo benefício
do favor divino, que opera impelido pela mais elevada equidade e que é regulado pelo que pode ser
chamado de poder moderador da razão. Aqueles que em nós estabelecem e implantam a prática da
religião e nos transmitem a devoção a Deus... preenchem o lugar da alma no corpo da comunidade.
E assim, aqueles que presidem a prática da religião devem ser considerados e venerados como a
alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros da santidade de Deus são Seus
representantes? Além disso, desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e legisla sobre
todo o restante, então aqueles aos quais nosso autor chama os prefeitos da religião presidem o corpo
inteiro...
O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado pelo príncipe, que se submete apenas
a Deus e àqueles que estão a Seu serviço e O representam na terra, da mesma forma que, no corpo
humano, a cabeça é animada e governada pela alma. O lugar do coração é preenchido pelo senado,
do qual procede o início de boas e más obras. Os deveres de olhos, ouvidos e língua são cumpridos
pelos juízes e governadores das províncias. Oficiais e soldados correspondem às mãos. Aqueles que
sempre servem ao príncipe são semelhantes aos flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem
ser comparados com o estômago e os intestinos... Os camponeses correspondem aos pés, que
sempre semeiam a terra, e precisam mais especificamente dos cuidados e das preocupações da
cabeça, já que, enquanto caminham sobre a terra trabalhando com seus corpos, eles se deparam
frequentemente com pedras de hesitação e, por isto, merecem mais ajuda e proteção que os demais
com toda justiça, desde que são eles que erguem, sustentam e movem adiante o peso de todo o
corpo...
Então, e só então, a saúde da comunidade será sólida e florescente quando os membros mais
altos protegem os mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plenamente na mesma medida às
justas demandas de seus superiores, de modo que todos e cada um operassem como que membros
uns dos outros por uma espécie de reciprocidade, e cada um considerasse que seu próprio interesse
era mais bem atendido por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os outros".
O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de uma relação orgânica entre todos
os seres, sua interdependência. Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a
liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem não seria, assim, propriamente sujeito.
PINTURA - Giotto
Questões para discussão
1. Qual é a diferença entre a meditação solitária de um monge medieval e a experiência de solidão
de um homem do século XX?
2. Procure identificar alguma forma atual de entender o mundo que seria impensável na Idade
Média.
3. Hoje ainda existe a idéia de "corpo social"?
3
O HUMANISMO NO RENASCIMENTO
Nesta parte, introduzimos o tema da valorização do homem como um
todo e de cada indivíduo, no Renascimento, em função da perda das
referências sólidas medievais.
Iniciemos esta parte por uma definição de humanismo:
"O termo 'humanismo' derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.)
designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana,
correspondendo à palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a
atividades exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...) As chamadas 'humanidades'
-poética, retórica, história, ética e política- passam, desse modo, a constituir, sob a inspiração dos
antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício da liberdade." (...)
"Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o
reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmação do valor espiritual do
homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e dos seus prazeres."
Fica evidente, pela passagem acima, que houve uma mudança na concepção do lugar do
homem no mundo. Há agora uma grande valorização do homem e, ao mesmo tempo, a idéia de que
ele tem que buscar uma formação, ele deve se constituir enquanto humano.
Se o homem não nasce com seu destino predestinado, ele se deve formar, educar. Nasce a
necessidade do "cuidado de si".
É comum que tenhamos uma noção da passagem da Idade Média para o Renascimento em termos
de história; com a diminuição do poder da igreja e advento da reforma, a crise do sistema feudal e o
nascimento das cidades e rotas de comércio, a expansão marítima, etc. Mas raramente consideramse as mudanças de modo de vida das pessoas implicadas nessas transformações políticas e
econômicas. Há toda uma linha de investigação histórica, que se dedica especificamente ao estudo
da história dos costumes, da vida cotidiana das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da
idéia que elas tinham de si mesmas.
Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igrej a e a abertura operada sobre o mundo
fechado dos feudos foi acompanhada por uma crise da concepção fechada de mundo que vigorava.
Se os homens acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do mundo) sobre o qual
podiam se apoiar, agora já não podiam contar com essa certeza. Numa nova caricatura, poderíamos
dizer que, sob um poder absoluto, não há liberdade, o que é terrível, embora seja relativamente fácil
'compreender' o mundo, pois há referências claras: o que é certo e o que é errado está pré-definido,
cabendo, no máximo, tomar um partido ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas,
surge a idéia de liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se o homem não
pode mais contar com uma resposta dada por uma autoridade absoluta, ele deverá buscar ou
construir suas próprias respostas. Este é um dos principais elementos do humanismo.
Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse ateu, mas, de certa forma, Deus
parece ter se afastado para o céu, deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade Média, é muito
comum a representação plástica do mundo como uma esfera cujo centro é Deus, Cristo ou, o que é
menos ortodoxo, a Virgem Maria; já no Renascimento, há inúmeras representações do mundo nas
quais Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem.
É também comum que no Renascimento comecem a surgir as assinaturas dos artistas em
suas obras de arte, o que quase não existia no período anterior. Quando pensamos nos pintores mais
antigos exemplo, ainda que ele estivesse beirando o Renascimento, tendo vivido entre os séculos
XIII e XIV. Não era o ser humano que criava, ele era apenas um instrumento da criação divina;
como numa representação do Papa Gregório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a música que está a
escrever.
No contexto renascentista, não há mais apenas uma certa cena bíblica que importa, mas a
mão do sujeito que deixa sua marca na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do
Renascimento, como Leonardo da Vinci ou Michelangelo, que, mais que artistas, são gênios de
inúmeros talentos. São homens que se formam e que deixam seu traço pessoal na obra que criam.
Sem sofrer restrições por parte da igreja em suas investigações sobre a anatomia humana ou sobre
os astros, o homem abre-se para um mundo novo -quer em suas viagens pelo mundo, quer pelo
estudo da natureza.
Em anexo, trechos de um livro de 1486, bastante expressivo como concepção do humanismo
renascentista.
TEXTO ANEXO - Pico Delia Mirandola
DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM
"Já o sumo pai, Deus arquiteto, tinha construído, segundo leis de arcana sabedoria, este lugar
do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão
de animais de toda a espécie as partes vis e fermentares do mundo inferior. Mas, consumada a obra,
o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande,
que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e
Timeu atestam, pensou por último em criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum
sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum para oferecer em herança ao
novo filho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador
do universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos
ínfimos graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na
sua última obra, não era próprio da sua paciência permanecer incerta numa obra necessária, por
falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor que a quem estava destinado a louvar nos
outros a liberdade divina fosse constrangido a lamentá-la em si mesmo.
Estabeleceu, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio
podia oferecer, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o
homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:
'O Adão,,, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa
alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que
tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos
outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não será constrangido por
nenhuma limitação, determina-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei.
Coloquei-te no centro do mundo para que daí possas olhar melhor tudo que há no mundo. Não te
fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice, te
plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até
aos seres que são as bestas, poderá regenerar-te até as realidades superiores que são divinas, por
decisão do teu ânimo'
"Quem não admirará este nosso camaleão?" (p. 51-53)
"Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que compreendamos, a partir do momento
em que nascemos, na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é preocuparmo-nos
sobretudo com isto: que não se diga de nós que estando em tal honra, não nos demos conta de nos
termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga." (p. 55)
*
Assim, a fé em Deus não foi abalada, mas agora ele é entendido como um criador que paira
por sobre sua obra, que passa ater vida própria, liberdade. Deus está "antes" do mundo como criador
e "depois" dele como juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e o deixado funcionar por suas
próprias leis. Daí surgirá a possibilidade do conhecimento das leis naturais; se Deus interviesse a
cada momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento e previsão sobre os
fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior dado ao homem, fará com que ele tenha que passar a
tentar descobrir os caminhos do bem, definir o que é certo e errado. Este é o campo da moral, que
será muito estudado nos séculos seguintes.
A colocação do homem no centro do mundo nos traz ainda a idéia de que todas as coisas
existem para sua contemplação e uso. Torna-se natural para o homem matar animais ou devastar a
natureza na medida de seu interesse. A relação do homem com relação ao mundo se tornará cada
vez mais a de exclusão. O homem julga-se quase como Deus, relativamente acima do mundo, e as
coisas (e mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos.
Figueiredo observa a peculiaridade dessa posição do homem. Ele é o centro e é livre para
tornar-se o que quiser, mas ele não é propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é
justamente esse vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já não há estabilidade
possível, o homem deve continuamente tornar-se, constituir-se, mover-se:
"Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde
então no bom uso desta liberdade. E ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem ânimos
nem garantias. É, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro, da dúvida e da
suspeita." (p. 24)
Questões para discussão
1. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente e a crença na liberdade do homem?
2. Como a valorização do homem contribuiu para p aumento do conhecimento sobre a natureza?
3. Entre o mundo medieval e o mundo renascentista, qual parece gerar mais angústia no homem?
Por quê?
4
O ENCONTRO COM A MULTIPLICIDADE
Trabalhamos, nesta parte, o encontro com a diversidade do
mundo. O confronto com a diferença fez com que o homem se
perguntasse sobre si.
Derivamos do tema anterior outro que o acompanha. Ainda segundo Figueiredo, a
multiplicidade é uma característica do Renascimento. A abertura do mundo trouxe o conhecimento
de civilizações novas, com seus costumes, línguas, hábitos alimentares, etc. Isto, é claro,
acompanha os novos valores segundo os quais o homem (cada um) deve buscar seu caminho.
Citando novamente Figueiredo:
"Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. O que se pode esperar
legitimamente de um mundo infinitamente diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a
liberdade de imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir do modelo
'científico' dos séculos posteriores; elas não são índices de ingenuidade e ausência de espírito
crítico. São formas maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a esse
momento particular de abertura do mundo."10 (p. 34)
Introduzimos com isso, uma outra imagem significativa do período, a feira de rua. Ainda que
a feira já fosse uma instituição medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da
Europa à diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar uma feira renascentista com
as novidades trazidas das mais diversas partes do mundo recém-descobertas. Alimentos básicos da
cozinha, como a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas; pessoas e animais
de diversas partes são trazidos à Europa no mesmo espírito de exotismo. A própria idéia de
comércio, como intercâmbio de bens, circulação de mercadorias ou necessidade da criação de
valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira de rua contém um elemento de festa
popular, desordem e gritaria diante de uma profusão de mercadorias. Difícil nisto -e isto é
significativo do período- devia ser a atribuição de valor a cada coisa: quanto vale um cocar
indígena, que importância ele tinha em seu Contexto original? Quanto vale uma pequena estátua
que representa a divindade de uma certa cultura? Como crer na fidedignidade do produto oferecido?
De modo idêntico, podemos imaginar o espanto do homem ocidental ao defrontar-se com as
religiões e costumes distintos pelo mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante
desse confronto. Uma é mais convencional e reassegura as certezas sobre si: consideraria a
diferença um erro. Se o outro pensa de forma diferente da minha, ele está errado; cabe, por isso,
catequizá-lo, conduzi-lo à verdade. Caso ele se recuse, justifica-se a utilização de meios, digamos,
mais convincentes, dado que se trata de seu próprio bem. A chamada "conquista da América"
mostrou muito bem como se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extermínio
massivo de culturas.
A outra atitude parece ser mais auto-crítica e parece ter tido um lugar considerável no
Renascimento. Diante do confronto com a verdade do outro, acaba-se por se colocar em questão a
própria verdade, não para substituí-la, mas para tomá-la não mais como única, mas com uma dentre
as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas, ou ambas inválidas.
Há um brilhante estudo de Todorov sobre este tema, em A conquista da América. Nele é
analisada a questão do confronto com o outro através do que considera ter sido, mais do que o
maior genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade.
A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos tinham uma absoluta
incapacidade de entrar em contato com o outro enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo
auto-referente: alguns astecas tomavam Cortez como o deus e imperador Quetzalcoatl, cujo retorno
estava predito; os nativos de nações dominadas violentamente pelos astecas viam tão somente a
troca de um algoz mais violento por um outro erroneamente tomado como menos violento. Quanto
aos espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a ser escravizado ou morto
gratuitamente, ou pensavam ter encontrado na América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -como
Colombo- na crença de que haviam de alcançado as índias, denominando os nativos de "índios". De
toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista, subjugaram os nativos de muitas etnias (e
aniquilaram completamente outras), que possuíam uma população quantitativamente muito superior
a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma entregou-se aos espanhóis e
parece ter entregue sua nação sem resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta
este fato:
"O encontro de Montezuma com Cortez, dos índios com os espanhóis, é, antes de mais nada,
um encontro humano; e não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação humana
levam a melhor Mas essa vitória, de que somos todos originários, europeus e americanos dá ao
mesmo tempo um grande golpe em nossa capacidade de nos sentirmos em harmonia com o mundo,
de pertencer a uma ordem pré-estabelecida; tem por efeito recalcar profundamente a comunicação
do homem com o mundo, produzir a ilusão de que toda comunicação é comunicação inter-humana;
o silêncio dos deuses pesa no campo dos europeus tanto quanto no dos índios Ganhando de um
lado, o europeu perdia de outro; impondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade,
arrasava em si mesmo a capacidade de integração no mundo. Durante os séculos seguintes sonhará
com o bom selvagem; mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, e o sonho estava condenado
à esterilidade. A vitória já trazia em si o germe de sua derrota; mas Cortez não podia saber disso."
(p. 93-94).
A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habilidade em entender o modo de
pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov insinua que este teria sido o mais importante fator
da dominação do europeu sobre o mundo: ele seria capaz de dissimular e mentir. Em nossos termos,
ele é capaz de criar um distanciamento entre sua ação e sua intenção, de acordo com seus interesses.
Todorov chega a comparar a capacidade comunicativa de Cortez com as prescrições de Maquiavel
em O príncipe, escrito na mesma época. Nesta habilidade comunicativa, neste auto distanciamento e
neste uso puramente funcional da linguagem, estaria fundada a Modernidade. Temos, como em
relação a Rabelais, uma posição intermediária: o europeu teria uma quase total incapacidade de
entrar em contato com a alteridade, buscando dominar e assimilar o outro; por outro lado, ele parece
ter sido mais capaz que outros povos para sair de seu próprio ponto de vista e procurar compreender
o do outro, ainda que para dominá-lo. Todorov também indica que os europeus estariam
acostumados a operar um descentramento, desde que seu centro religioso, Jerusalém, era, de fato,
fora de seu continente.
Na conclusão de sua obra, Todorov apresenta-nos esta formulação paradigmática sobre a
questão do outro:
"Pois o outro deve ser descoberto. Coisa digna de espanto, já que o homem nunca está só, e
não seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que acaba de
nascer, seu mundo é o mundo, e o crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da
sociabilidade; pode-se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está contida entre dois
extremos, aquele onde o eu invade o mundo e aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na
forma de cadáver ou de cinzas. E, como a descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como
objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente
dele, com infinitas nuanças intermediárias, pode-se muito bem passar a vida toda sem nunca chegar
à descoberta plena do outro (supondo-se que ela possa ser plena). Cada um de nós deve recomeçála, por sua vez; as experiências anteriores não nos dispensam disso. Mas podem ensinar quais são os
efeitos do desconhecimento, (p. 243).
Se voltamos agora à imagem da feira e do comércio, veremos que aqui impera o convívio
com uma inédita diversidade de coisas. Essa festa, no entanto, traz o problemas, referido antes, de
atribuição de um valor justo a cada coisa. As coisas estão fora de seus contextos, onde talvez
possuíssem um valor justo, mas nesse encontro fortuito da feira já não se pode pensar em seu valor
original.
Ainda nesse sentido, pense-se na reação das pessoas diante do relato dos viajantes sobre as
coisas incríveis que viram. Uma vez mais, a credulidade das pessoas seria abalada. Como distinguir
relatos confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um tamanduá parecerá tão
absurda ou possível quanto a de um dragão do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o
Eldorado) tocarão nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e selvagens
(onde, em se plantando, tudo dá...).
PINTURA - Bosch e Arcimboldo
Referimo-nos, na parte anterior, a artistas como da Vinci e Michelangelo. Nesta, o pintor que nos
ocorre é Bosch. Ele nasceu em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas,
enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, Bosch parece sofrer mais os efeitos da
fragmentação. Seus biógrafos informam-nos que Bosch nasceu justamente diante de uma feira, mas
ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores era medieval e que, ao abrir suas
janelas, lhe parecia estar assistindo o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba
expressando melhor que seus contemporâneos a fragmentação do século. Suas pinturas mostram
corpos dilacerados, em combinações alucinadas. Com frequência, ele é tomado como um présurrealista, mas ele provavelmente acreditava ser um hiper-realista, mostrando a degradação dos
tempos, o fim do mundo da ordem.
Há outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez por ter nascido já no século XVI,
quase 80 anos depois de Bosch-sem o mesmo tom apocalíptico. Ele é Arcimboldo, com suas
composições de retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série mais conhecida é a das quatro
estações, onde constrói expressões humanas combinando elementos típicos de cada época. O efeito
é grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita para um tipo de música a
que nos referiremos na próxima parte, chamado "Las Ensaiadas".
Enfim, justamente da crise no final da Idade Média, resulta essa falta de critérios absolutos,
que gera uma crescente insegurança. Numa citação de Montaigne, um dos mais importantes
pensadores do século XVI, encontramos uma articulação do que temos dito:
"Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e
diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme."11
MÚSICA - A POLIFONIA
A polifonia é um tipo de música típica do Renascimento. Assim como o canto gregoriano
expressava bem o espírito medieval, a polifonia encarna seu tempo. O termo significa "muitas
vozes" e é justamente como se o coro em uníssono do gregoriano se tivesse estilhaçado: cada voz
canta uma melodia diferente, por vezes também uma letra diferente. Podem ser quatro ou muitas
mais vozes, gerando um efeito ruidoso, quase já não musical. No entanto, elas convivem. Através
do século XVI, vai aumentando a capacidade dos compositores de harmonizá-las.
Há uma peça de especial interesse dentro do que temos trabalhado. Ela se chama Voulez
ouyr les cris de Paris? ("Querem ouvir os gritos de Paris?"), de Clément Janequin 12. Nela, cinco
cantores perguntam-nos, por um minuto, se queremos ouvir os gritos de Paris. Suas vozes são um
pouco defasadas entre si, mas tudo é compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio è
então começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa feira, com vários
vendedores chamando a atenção para o seu produto. Eventualmente, as vozes unem-se por instantes
em torno de um tema para, em seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge e,
novamente, desagrega-se, como numa rapsódia. Tudo é muito engraçado e carnavalesco (é
inevitável pensarmos na situação da gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados
na rigidez de conservatórios grasnem, gritem e, é claro, desafinem, com a leitura rigorosa da
partitura).
O centro da produção polifônica é a Espanha que, por ter sofrido a invasão muçulmana, traz
em sua cultura muitos elementos assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando
a perda da felicidade e da ordem pelas viagens e guerras13.
Em anexo, está o começo de um dos livros mais debochados do século XVI. Nele podemos
reconhecer, desde a referência constante no Renascimento à cultura clássica grega, até o tom
irreverente e visceral do mundo menos idealizado e mais próximo da experiência imediata dos
prazeres do corpo. Trata-se de um mundo de exageros, deboche e excessos, habitado por gigantes.
TEXTO ANEXO - François Rabelais
GARGÂNTUA E PANTAGRUEL
"AO LEITOR
Antes mesmo de ler, leitor amigo,
Despojai-vos de toda má vontade.
Não escandalizeis, peço, comigo:
Aqui não há nem mal nem falsidade.
Se o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito não tive, no
entretanto,
A não ser rir, e fazer rir portanto,
Mesmo das aflições que nos consomem.
Muito mais vale o riso do que o pranto.
Ride, amigo, que rir é próprio do homem." (p. 31).
"PRÓLOGO DO AUTOR -
Bebedores ilustres e preciosíssimos bexiguentos (pois a Vós, não a outros se dedica o meu
engenho): Alcebíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvando o seu preceptor
Sócrates (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse ser ele semelhante aos
"silenos". Silenos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que hoje vemos nas vendas dos
boticários, tendo pintadas umas figuras alegres e frívolas, como harpias, sátiros, gansos ajaezados,
lebres chifradas, patos com cangalhas, bodes voadores, veados atrelados e outras figuras
semelhantes, nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como fazia Sileno, mestre do
excelente Baco. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas valiosas como o bálsamo, a âmbarcinzento, o amorno, o almíscar, jóias e outras preciosidades. Tal se dizia ser Sócrates, porque, quem
o visse por fora, e estimando apenas a aparência exterior, não lhe daria mínimo valor tanto ele era
feio de corpo e ridículo em sua aparência, com nariz pontudo, olhos de boi, cara de bobo, simples
em* seus modos, rústico em suas vestes, parco de riquezas, infeliz com as mulheres, inapto para
todos os ofícios da república, sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, sempre
brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aquela caixa, porém, lá dentro
encontraria um bálsamo celeste e inapreciável um entendimento mais que humano, virtudes
maravilhosas, coragem invencível sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita,
incrível desprendimento com relação a tudo que os humanos tanto prezam, tudo aquilo que tanto
cobiçam e em prol do quê correm, trabalham, navegam e batalham.
Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e divertidas crônicas? Eis
que, ditando-as, não pensei senão em vós, que porventura bebeis como eu bebo. Porque, na
composição deste livro senhoril, não perdi, e jamais empreguei um outro tempo, do que aquele que
gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. São estas as horas mais
adequadas para escrever sobre essas altas matérias e ciências profundas, como bem fez saber
Homero, paradigma de todos os filólogos, e Ênio, pai dos poetas latinos, assim como testemunha
Horácio, embora um grosseirão tenha dito que os seus "Odres" cheiravam mais a vinho do que a
azeite.
Coisa idêntica disse um bufão dos meus livros; mas merda para ele! O odor de vinho, ó,
como é mais saboroso, mais agradável, mais atraente que o do azeite!
E sinto-me muito mais lisonjeado, quando se diz que gasto mais vinho do que azeite, do que
ficou Demóstenes quando dele disseram que gastava mais azeite do que vinho. Para mim, só me
sinto honrado e jubiloso por ter fama de ser um bom copo e um bom companheiro: graças a isso sou
bem recebido em todos os bons grupos de pantagruelistas. (...)
E agora diverti-vos, meus queridos, e lede alegremente, para satisfação do corpo e benefício
dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e que a úlcera vos corroa: tratai de beber por mim, que eu
começarei, sem mais demora." (p. 33-36)
*
Vemos, com Rabelais, a valorização do riso e de toda forma de prazer corporal, em
confronto com a tendência nascente (e que dominará o século XVII) de só respeitar a seriedade, a
contenção e a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como Umberto Eco
deixa claro, no eixo de seu romance "O Nome da Rosa", o risco que a visão ortodoxa considerava
haver no riso, também no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso - o prazer -,
observamos o esforço em obter o auto-controle. Ao mesmo tempo, vemos a valorização
renascentista da cultura greco-romana.
Questões para discussão
1. Qual é a importância da feira de rua no universo do Renascimento?
2. Que tipo de reação foi gerada pelo confronto com outras culturas?
3. Por quê no Renascimento o homem perdeu suas certezas?
5
OS PROCEDIMENTOS DE CONTENÇÃO DO EU
Acompanhamos, nesta parte, algumas das medidas tomadas para o
restabelecimento de referências para a colocação do homem no mundo. Elas
estarão voltadas ao próprio eu, na figura do auto-controle.
A nova valorização do ser humano e a imposição de que ele construa sua existência e
descubra valores segundo os quais viver, aliada a toda a dispersão e fragmentação do mundo, que
apontamos acima, levarão à tentativa de criação de mecanismos para o domínio e formação do eu. É
na formação destes procedimentos -"modos de ser"- que poderemos começar a reconhecer os rumos
que levarão à Psicologia. Citando uma vez mais Figueiredo:
"(...) tão importantes ou até mais importantes do que a abertura de espaços de liberdade individual,
com se vê acontecendo ao longo do processo de desintegração das 'civilizações fechadas', são as
tentativas de circunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências subjetivas no sentido
moderno do termo e que vieram a se converter em objeto de um saber e de uma intervenção
psicológicos devem a sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às tentativas
de ordenação e costura, ou seja, a todas as praticas reformistas que implicavam uma subjetividade
individualizada e uma tensão sustentada entre áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou dimensões de submissão. (...) Como se vê, o 'indivíduo', ao contrário do que o termo sugere, nasce da
dispersão e traz uma cisão interior inscrita em sua natureza.
Impõe-se ao homem, a partir de agora, escolher o seu caminho. Essa escolha implica em
uma construção da identidade, e i odos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço
brutal, quase sobre-humano; o homem deve dominar a dispersão que o mundo é. O carnaval de
Rabelais será contido, o corpo e suas funções serão calados em favor da coesão e da ordem do
sujeito. Durante a Idade Média, era relativamente difícil explicar como era possível ser
responsabilizado por pecar: se a pessoa não era livre e apenas cumpria os planos de Deus, como
responsabiliza-la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma: Deus fez o
homem livre para que ele possa ser julgado; ele pode escolher um bom caminho e ser recompensado
por isso, mas pode ser desviado dele por tentações e dispersões -e o mundo renascentista as oferece
em quantidade- e, então, ser responsabilizado e punido por isso. A questão passa a ser: o que eu
devo ser? Como devo me formar? Em termos mais psicológicos, como construir uma identidade?
Há vários exemplos de modos de constituição de identidade no Renascimento. Talvez o mais
conhecido seja o de Dom Quixote de La Mancha, personagem de Cervantes, que se identifica com o
ideal do cavaleiro andante medieval e procura afirmar-se. A evocação deste exemplo já sugere que a
afirmação de uma identidade coesa pode assemelhar-se à alucinação, na medida em que ela deve
impor-se sobre o mundo, ele próprio em frangalhos.
Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento vislumbrado no século XVI para a
constituição de uma identidade coesa, que consiga não se deixar levar pela dispersão. O pensamento
religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, produzirá, sobretudo através de Santo Inácio de
Loyola, procedimentos para a afirmação da identidade sobre a dispersão do sujeito, guiando-o de
volta a Deus.
Santo Inácio converteu-se à religião já adulto. Ele havia sido militar, e uma das
características mais marcantes que impôs a seu sistema foi a disciplina. Tendo fundado a
Companhia de Jesus, imprimiu um traço distintivo dos jesuítas até hoje, sua iniciativa prática e
pregação militante. Santo Inácio parte do mundo renascentista, reconhecendo a liberdade humana,
mas constata a perdição do homem e buscará mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem.
Seu procedimento, propriamente humanista, faz escola até hoje: o homem é livre para ser o que é e
parece estar perdido; ele precisa e pode, portanto, dirigir sua livre vontade ao caminho correto para
se encontrar. O que ele precisa é de um manual de instruções, uma técnica para dirigir sua ação. Em
Os Exercícios Espirituais, são propostos uma série de procedimentos, com a duração de 28 dias,
cujo cumprimento rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais, vale a pena
reproduzir alguns trechos da obra:
TEXTO ANEXO - Santo Ignácio de Loyola
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
"I ° Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a
consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente, e outras atividades espirituais, de que
adiante falaremos. Porque; assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, também
se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de
si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na
disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa." (p. 11-2).
"5a Anotação. Muito aproveita ao exercitante entrar neles com grande ânimo e liberalidade para com
seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade, para que sua divina majestade
se sirva de sua pessoa e de tudo quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15).
"EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA O HOMEM SE VENCER A SI MESMO E ORDENAR A
PRÓPRIA VIDA, SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFEIÇÃO DESORDENADA" (p.
27).
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a
sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a
alcançar o fim para que é criado. Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a
atingir o seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornarnos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do
nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais
saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante
em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fim para que somos
criados." (p. 28).
"REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMENTE COMO SE DEVE NA IGREJA
MILITANTE
Ia regra. Renunciando a todo juízo próprio, devemos estar dispostos e prontos a obedecer em
tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, à santa Igreja hierárquica, nossa mãe." (p.
188)
"9a regra. Louvar finalmente todos os preceitos da santa Igreja, e estar disposto para procurar
razões em sua defesa, e nunca para os criticar."
"13a regra. Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que o que nos parece
branco é negro, se assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso
Senhor -o esposo- e a Igreja -sua Esposa- não ha senão um mesmo Espírito, que nos governa e
dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e mesmo Senhor, autor dos
dez mandamentos, que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe."
"15a regra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação. Mas se em alguma
ocasião se falar disso, faça-se de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro. Algumas
vezes isso acontece, quando concluem: "Seja está determinado que me vou condenar ou salvar, não
são as minhas ações boas ou más que hão de mudar esta determinação". E com este raciocínio
tornam-se negligentes e descuidam as obras que conduzem à salvação e ao proveito espiritual das
suas almas." (p. 192)
"17a regra. Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de se produzir o veneno
que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé e da graça, mediante o auxílio
15
Santo Inácio
antecipa de forma espantosa alguns dos mais importantes pensadores do século XVII: Descartes e
Hobbes. Mais perto de nós, antecipa também as Psicologias humanistas ou de auto-ajuda e ainda
alguns cultos religiosos e procedimentos de Marketing. neste sentimento de vazio e cria a demanda
por nos formarmos ■ . Mitinuamente.
Assim, a liberdade humana é reconhecida apenas para sei lhe atribuir a causa da perdição
humana. Curiosamente, a salvação implica justamente em abrir mão de forma absoluta dessa
liberdade, transferindo-a à autoridade religiosa com toda a boa-vontade e determinação. A
submissão do sujeito deve ser absoluta, esse é o preço a pagar pelo repouso numa certeza sem
conflitos. Exige-se disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra mão da própria experiência
imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos 28 dias, a iluminação não chegou, isso não se
deve a uma falha do método, mas certamente à pouca fé e à fraqueza da vontade do exercitante15.
E bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um gênero literário de bastante sucesso no
final do século XX, chamado "Psicologia de auto-ajuda". A crença na liberdade humana absoluta,
que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento de
culpa: se somos o que fazemos de nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por
nós, nós a merecemos. A premissa do título de um livro como "Só é gordo quem quer", poderia ser
derivada em "só é pobre quem quer", ou "Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação
reconhecida para nosso ser é a própria vontade; todas as determinações históricas, sociais,
genéticas, etc, são simplesmente negadas.
A cada época, a falta de sentido de nossa existência mostra-se preza fácil das "autoridades de
plantão" a nos oferecer generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que esta
produção, é a percepção de como a Modernidade parece implicar
MÚSICA - UMA POLIFONIA MAIS COMPORTADA
Uma vez mais, a música nos auxiliará na exemplificação de ii MI conceito. No final do século
XVI, a polifonia parece I i adativamente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas io
sendo harmonizadas e não se tem mais a impressão de ruído: elas simplesmente são disciplinadas,
dispostas de tal forma que ( omponham um todo equilibrado. Estamos a um passo da "fuga" (estilo
próprio ao século XVII). Mesmo as letras parecem mais t (importadas, evocando a contra-reforma.
Não será possível retornar .10 universo do canto gregoriano, mas será possível buscar ordem dentro
da diversidade, como vimos através de Santo Inácio.
Eis uma curiosa letra, composta por Mateo Flecha, El Viejo, mim gênero que tem o evocativo nome
de Las Ensaiadas:
EL FUEGO - Mateo Flecha, El Viejo
Corred, corred, pecadores!
No os tardeis a traer luego
agua al fuego, agua al fuego!
Fuego, fuego, fuego!
Este fuego que se enciende
es el maldito peccado,
que al que no halla ocupado
siempre para sí lo prende.
Qualquier que de Dios pretende
salvacíon, procure luego
agua al fuego, agua al fuego.
Fuego, fuego, fuego!
Venid presto, peccadores,
a matar aqueste fuego;
Haced penitencia luego
de todos vuestros errores.
Reclamen essas campanas
dentro en vuestros coraçones.
Dandán, dandán, dandán...
Poné en Dios Ias aficiones,
todas Ias gentes humanas.
Dandán, dandán, dandán...
Llamad essos aguadores,
luego, luego, sin tardar!
Y ayúdennos a matar este fuego.
No os tardeis en traer luego
dentro de vuestra conciencia
mil cargos de penitencia
de buen' agua,
y ansí mataréis
la fragua de vuestros maios deseos,
y los enemigos feos huyrán.
El fuego" e "La Negrina", extraídas de "Las Ensaiadas, Sony Music, 1991". Ambas são
ainda polifonias, compostas de vários fragmentos temáticos e mesmo de vários idiomas, mas pode
se notar, especialmente na segunda, o quanto as vozes já estão harmonizadas, submetidas a uma
composição rigorosa. Ouça também o início da "Missa Papae Marcelli", de Palestrina, extraída de
"Baroque. Palestrina e Monteverdi, EMI Classics, 1995".
A expressão 'salada' é especialmente própria para definir a polifonia, neste caso. Mesmo já
se tratando de uma música mais contida, não faltam misturas de temas musicais, idiomas
-aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos de canções unidos ao gosto do compositor. Já
mais ao final do século, encontramos uma música propriamente equilibrada e muito bonita, um dos
melhores frutos da religião, a música sacra.
Tomemos agora outro exemplo bem mais cruel e naturalista de procedimento de afirmação
do sujeito: O Príncipe, obra de Maquiavel do começo do século XVI. Trata-se de uma série de
prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto poderia se traduzir assim: que tipo
de sujeito um príncipe deve ser? Como deverá ser seu "eu"?.
Seu princípio é o de que o mundo (figurado pela figura do povo é volúvel -voltando-se para
aquilo que representar seu interesse mais imediato-, sem memória, egoísta e, enfim, mau. A grande
preocupação de Maquiavel é a fragmentação da Itália e a sua invasão por bárbaros. É necessária a
imposição de um sujeito forte. O (•overnante não tem outra opção que se afirmar à força, criar
alianças mais pelo temor do que pelo amor, como única forma de estabelecer uma unidade à
dispersão. O valor primeiro de tudo será a obtenção e manutenção do poder centralizado. Para tanto,
não há que se ter vergonha por fazer qualquer coisa neste sentido, mesmo matar a quem quer que
represente uma ameaça ao"poder. O princípio ético é II da afirmação do poder.
Maquiavel foi tomado como imoral e desumano (de seu nome deriva o adjetivo
'maquiavélico', que atualmente significa ardiloso, maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de
Machiavel nesse mtexto de crise da fé em um poder transcendente e entendemos o medo da
dissolução, talvez torne-se mais compreensível a radicalidade e a urgência de seus preceitos.
Abaixo, seguem-se trechos de O príncipe.
TEXTO ANEXO - Nicoló Machiavelli
O PRÍNCIPE
"(...) é que os homens, com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com
que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela própria
experiência, percebem mais tarde ter piorado a situação." (p. 11)
"E quem conquista, querendo conservá-los [o poder e o domínio] deve adotar duas medidas:
a primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar
nem as suas leis nem os impostos; por tal forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o território
conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado antigo." (P-13)
"E que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas, senão a
destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere
ser destruído por ela, porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da
liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por
benefícios recebidos. Por quanto se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os
habitantes, eles não esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada incidente, a eles
recorrem como fez Pisa cem anos após estar submetida aos florentinos." (p. 30).
"Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer
outra coisa por fazer senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que
compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que nasceram
príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao
contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o
seu Estado." (p. 85)
"Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder de um príncipe para com os súditos
e os amigos e, porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado
presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à
orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para
quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e
não à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou
conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como
se deveria viver, que aquele que abandone o que faz por aquilo que se deveria fazer aprenderá antes
o caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as
suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons. Donde é
necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da
bondade, segundo a necessidade." (p. 89-90)
"Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde que por ela mantenha seus
súditos unidos e leais (...)." (P-95) "Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o
contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las,
em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos
homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo,
ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os
bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta
se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras,
encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por
dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e,
no momento oportuno; não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em
ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por
um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a
eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona." (p. 96)
"Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça depois de tanto
tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas
províncias que tem sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com que
obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe
negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos
repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele
ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas (...)" (p. 146)
Sem dúvida, por mais que possa parecer estranho, há uma -crie de pontos em comum entre
este procedimento e o prescrito por Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro
o retorno a Deus, ambos crêem na necessidade da afirmação do sujeito .ilravés de procedimentos
radicais e estreitos. Mas com Maquiavel, i stamos diante de um mundo sem ideal, no qual a
imposição do sujeito se faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do homem: não há
apenas o elogio do homem como no Renascimento. É disso que trataremos na próxima parte.
Acrescento ainda uma diferença essencial entre os dois: Santo Inácio pensa que seu
procedimento é acessível a todos, enquanto que Maquiavel, ao menos nessa obra, refere-se a
afirmação de um único sujeito, em detrimento dos demais. Ele trata da constituição do Estado,
como Hobbes, no século seguinte, a quem antecipa.
Questões para discussão
1. Como se relaciona a crença na liberdade do homem e a tentativa de submetêlo a uma ordem disciplinar rígida no século XVI?
2. Quais são as semelhanças entre Santo Inácio de Loyola e Maquiavel?
3. Quais poderiam ser as relações entre os 'Exercícios Espirituais' e as atuais
terapias de auto-ajuda?
6
A POSIÇÃO DE CRÍTICA À APARÊNCIA
Nesta parte, procuramos mostrar que a tendência à glorificação do eu não é
absoluta. Alguns pensadores já começam a denunciar como ilusórias suas
pretensões cada vez maiores. A Modernidade contém tanto procedimentos para a
construção do eu quanto para a sua desconstrução.
Ainda no século XVI -que possui uma riqueza aparentemente infinita-, podemos identificar
ainda outra postura quanto ao valor do ser humano. Há uma série de autores que criticam a
pretensão do homem em ser tão ideal e que apontam, como já o íizera Maquiavel, para uma
eventual maldade e vaidade humanas. Esta posição possui relações complexas com o humanismo.
Em um certo sentido, afirma-o, em outro, arrasa-o.
À primeira vista, pode parecer que esta vertente estaria excluída da Modernidade, mas
veremos que esta última precisa de lais procedimentos. Ao menos alguns pesquisadores, como
Harold Bloom, reconhecem justamente em alguns destes autores -sobretudo Shakespeare- os
fundamentos mais expressivos da Modernidade.
Dentre os temas que temos trabalhado, podemos retomar dois. Em primeiro lugar, o que
acabamos de tratar acima, a formação do "eu". Montaigne, a quem já citamos acima, diante da
instabilidade e insegurança de tudo, acaba por fazer renascer um outro dos movimentos do
pensamento grego: o ceticismo. Não podendo confiar ou acreditar em nada, Montaigne se retira da
vida social, isola-se e passa a escrever durante anos, e até o fim de sua vida, sua famosa obra
Ensaios. Não se trata apenas de um livro, mas da própria Formação do sujeito Montaigne. Ele
descreve a si e às suas experiências, copia e cita textos de seus autores favoritos e afirma que
escreveu o livro apenas para si e para os amigos. A escrita será um momento de interiorização, de
digestão de experiências.
O ceticismo toma ao menos dois aspectos no período. Um deles é chamado de "fideísmo".
Ele implica em numa crítica ao valor crescente atribuído ao homem, mostrando sua insignificância;
mas esta diminuição do homem teria o sentido de fazê-lo voltar novamente a Deus. Assim, de um
lado, o homem é insignificante diante de Deus e, de outro, segundo alguns dos fideístas, a razão
humana é inferior à fé. Mas também, há propriamente um ceticismo que não se contenta em mudar
o centro de lugar (do Homem de volta para Deus) -qualquer possibilidade de crença em alguma
referência absoluta parecerá insustentável. Embora Montaigne se declare católico, sua obra leva-nos
a crer que ele se filia ao segundo grupo. O eu não é para ele uma referência a priori, como o será
para Descartes, mas sim algo inconstante e sempre inacabado. Ele se forma continuamente num
processo reflexivo.
Trata-se da introspecção, daquela conversa proveitosa consigo mesmo, que Bloom
reconhece como o cânone ocidental (aquilo que caracterizaria a Modernidade ocidental). É como se,
a partir de então, Montaigne já não fizesse mais parte do mundo; ele se torna -ou pensa como se
fosse- um ponto de vista alheio, do qual é possível realizar a crítica do mundo, nele não se incluindo
propriamente. Em um certo sentido, este é um dos pontos mais altos de autonomia a que poderia
aspirar o "eu" 11. Montaigne vive a diversidade e busca afirmar-se enquanto ser particular, como se
pode ver na citação abaixo:
"Não cometo esse erro tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o que
está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir
como ajo e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que ocorre em
geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as semelhanças. Não imponho a
outrem nem meu modo de vida nem meus princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer
comparações. (...) pela imaginação ponho-me muito bem em sua pele e os estimo e honro tanto
mais quanto divergem de mim. Aspiro particularmente a que julguem cada qual como é, sem
estabelecer paralelos com modelos tirados do comum. Minha fraqueza não altera absolutamente o
apreço em que deva ter quem possui força e vigor. "Há pessoas que só aconselhariam aquilo que
imaginam poder imitar". Embora me arraste ao nível do solo, não deixo de perceber nas nuvens,
por mais alto que se elevem, certas almas que se distinguem pelo heroísmo. Já é muito para mim
ter o julgamento justo, ainda que não o acompanhem minhas ações, e manter ao menos assim
incorruptível essa qualidade. Já é muito ter boa vontade, mesmo quando as pernas fraquejam."
Desse ponto, teria surgido propriamente o que chamamos hoje de mundo interno ou
privacidade; o universo de nossos pensamentos, fantasias, projetos, 'encanações' e auto-tormentos.
O segundo ponto que retomamos é aquele de que no Renascimento há um elogio ao ser
humano. Neste segundo aspecto, estamos agora longe do humanismo; elogiam-se outras coisas.
Esta vertente crítica a qual Montaigne pertence, quase sempre é marcada por procedimentos que nos
são muito caros, o que faz com que a leitura de alguns deles nos pareça altamente atual. As obras
são marcadas quase sempre pela melancolia e pelo humor irônico, altamente crítico.
Um dos mais deliciosos textos do período é O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam.
Nele, o autor, que é ligado à Igreja, tinha a intenção de fazer um apelo por reformas na
burocratização e hipocrisia da Igreja. Mas o que ele atinge é muito mais. O texto acaba por arrasar
qualquer idealismo sobre a bondade humana e seu amor pelos demais. Se não conhecêssemos o
autor, nós o imaginaríamos como o primeiro ateu confesso. Em anexo, i rechos de Erasmo.
TEXTO ANEXO - Erasmo de Rotterdam
ELOGIO DA LOUCURA
"Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu
nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura
que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. A prova incontestável do que
afirmo está em que não sei que súbita e desusada alegria brilhou no rosto de todos ao aparecer eu
diante deste numerosíssimo auditório." (p. 7).
"Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes, como costumam fazer
em geral os filósofos, refletisse bem nos incômodos que acompanham essa condição? Qual é a
mulher que se submeteria ao dever conjugai, se todas conhecessem ou tivessem em mente as
perigosas dores do parto e as penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao matrimônio e o
matrimônio à Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me deveis. Alem disso,
uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do insolúvel laço, e que anseia por tornar a
passar por eles, nãó o fará, talvez em virtude da assistência da ninfa Esquecimento, minha cara
companheira?" (p. 16).
"Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao
ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da
loucura? Beijar, num transporte, uma verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e
pretender um pai que o filho zarolho tenha dois olhos de Vênus, não será isso uma verdadeira
loucura? Bradem, pois, quanto quiserem, ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é
a única que cria e conserva a amizade." (p. 29).
"O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do matrimônio.
Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser dissolvido pela morte.
Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se
a união do homem com a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulação, pelas
carícias, pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e
auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vida
e os segredos de sua futura cara-metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da
simplicidade! Ainda menos numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por
interesse, por complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas.
Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo
querido da mulher, e a mulher, do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família.
Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo
atencioso, fica a consolar a cara metade, e enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da
mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho,
pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil? Afinal de
contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida, sem a minha
intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa
a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro
o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc, se não se enganassem reciprocamente, não se
adulassem, não fossem prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura."
(p. 30-31).
"Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma
alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas) todas
as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente
comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o
nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a
juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramo sejam a
pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos,
as fraudes, etc? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão
grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível
vale de misérias." (p. 47).
"As vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se ambos mutuamente. Também
não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele. Mas na minha opinião o
homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que
não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia dizer se haverá, em
todo o gênero humano, um indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade.
Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A
razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas quando um
marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça
crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente o seu
destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia -ninguém acha que se trate de
loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais natural deste mundo." (p.63).
Através do humor, Erasmo opera uma implacável desconstrução de todo um sistema de
valores tomados como óbvios. Trata-se do desvelamento e desnaturalização de costumes tomados
como naturais. Este tipo de discurso produz uma espécie de ruído de fundo constante à tentativa de
afirmação de qualquer idéia de verdade.
Já que falamos de Erasmo, além de O elogio da Loucura -uma das obras mais arrasadoras de
valores e desveladora de hipocrisias sociais e que garante ao autor um lugar de destaque na vertente
crítica-, é oportuno dizer que ele também pertence a outra tradição literária: a dos autores de
manuais de boas maneiras. Estes manuais dizem respeito justamente à questão do controle do corpo.
Em O processo civilizador, de Elias, e na História da vida privada, de Aries & Duby,
encontramos análises de A civilidade pueril e de outras obras de Erasmo que, a um só tempo, nos
mostram como o corpo passa a ser progressivamente alvo de auto-controle e observação, e revelam
o quanto este processo foi longe e nos compreende. É impossível não rirmos diante das
recomendações sobre como lidar com nossa glutonice e eventual necessidade de arrotar, urinar ou
soltar gazes (em casos urgentes, estes últimos devem ser encobertos com uma tosse -boa dica...).
Estamos de volta ao grotesco e nos parece inimaginável hoje que os próprios termos sejam
incluídos num manual. Já no século XVIII, estas expressões desapareceram. Nosso riso à leitura
destes velhos manuais nos mostram o quanto o princípio que os rege foi eficaz e age em nós; as
normas que nos indicam que as funções corporais devem ser ocultas são absolutamente
automatizadas e, por que não dizer, inconscientes.
Creio que será interessante agora evocar como Elias trabalha o conceito de 'civilização'. A
civilização expressa-se em um conjunto extenso de formas de expressão com as quais o homem
ocidental se identifica: a tecnologia, a religião, as condutas e punições no caso de desvios, os modos
de viver em conjunto, etc. Ela representaria tudo aquilo que a nossa sociedade considera ter de
superior às demais culturas. O processo civilizador se teria dado, como já indicamos nas partes
anteriores, às custas de um rigoroso sistema de controle social que inibe a expressão das funções
corporais e de grande parte dos impulsos. Trata-se da modelagem de determinados modos de ser
transmitidos sobretudo pelos pais. Entre os séculos XVI e XVII, se teria processado intensamente a
produção de códigos de inserção social e seu não cumprimento sempre seria acompanhado pelas
acusações de "doença", "crime" ou alguma forma de desagrado que leva à exclusão do convívio.
Elias observa que, na medida em que a expressão dos desejos e emoções intensas em geral
vai sendo constrangida, os olhos passam a adquirir um papel essencial como forma de contato. Vale
a pena inserir aqui uma passagem relativamente longa:
"Reconhecidamente, essas emoções de fato têm, em forma "refinada", racionalizada, seu
lugar legítimo e precisamente definido na vida cotidiana da sociedade civilizada. E isto é muito
característico do tipo de transformação através do qualse civilizam as emoções. Para dar um
exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão socialmente permitida aos jogos
esportivos. E elas se manifestam especialmente em participar como "espectador" (como por
exemplo, em lutas de boxe), na identificação imaginária com um pequeno número de combatentes,
a quem uma liberdade moderada e precisamente regulamentada é concedida para liberação dessas
emoções. E este viver de emoções assistindo ou mesmo apenas escutando (como, por exemplo, a
um comentário no rádio) é um aspecto particularmente característico da sociedade civilizada. Esse
aspecto determina em parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia
decisivamente o papel do cinema em nosso mundo. Essa transformação do que, inicialmente, se
exprimia em uma manifestação ativa e freqüentemente agressiva, no prazer passivo e mais
controlado de assistir (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de
condicionamento dos jovens. (...)
E altamente característico do homem civilizado que seja proibido por autocontrole
socialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a
modelação de seus gestos -pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações
ocidentais no tocante a detalhes- é decisivamente influenciada por essa necessidade."19 (p. 200)
Desde o Renascimento, afirmou-se a auto-percepção de um 'eu' individual fechado, separado
e em oposição a um 'mundo externo', aí compreendidos os objetos e as outras pessoas. A observação
de Elias sobre a imposição de um contato indireto, intermediado pelo olhar, com os objetos com a
proibição do toque, parece bastante expressivo diante da presença intensa da televisão, do
computador e dos experimentos em realidade virtual.
No limite do século XVI ao XVII, exatamente em 1600, surge uma das obras mais
importantes jamais escritas, Hamlet, de Shakespeare. Ainda que boa parte dos elementos da obra já
esteja insinuada no texto de Erasmo e Maquiavel, certamente vale a pena apresentar trechos
também dessa obra, que sintetiza e encerra este período, lançando-nos já no século XVII.
TEXTO ANEXO - William Shakespeare
HAMLET
"HAMLET -Ser ou não ser-eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e
flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias. E, combatendo-o, dar-lhe
fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono -dizem-extinguir dores do coração e as mil mazelas
naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer -dormir-,
dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte quando
tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura
uma vida tão longa. Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, A afronta do opressor, o
desdém do orgulhoso, As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, A prepotência do
mando, e o achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis podendo, ele próprio, encontrar
seu repouso com um simples punhal? Quem agüentaria fardos, gemendo e suando numa vida
servil, Senão porque o terror de alguma coisa após a morte -o país não descoberto, de cujos
confins jamais voltou nenhum viajante- nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar os
males que já temos, a fugirmos para outros que desconhecemos? E assim a reflexão faz todos nós
covardes, E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentio pálido do pensamento. E
empreitadas de vigor e coragem, refletidas demais, saem de seu caminho perdem o nome de ação.
(...)" (p. 88-89).
No trecho acima, vemos Hamlet monologar. São muitos e extensos seus monólogos que
expressam uma característica essencial da Modernidade: a interioridade. A reflexão, o
desdobramento sobre si, cria a possibilidade de um diálogo construtivo, mas Shakespeare já
expressa pela voz de seu herói o quanto este mergulho para dentro se dá às custas da ação. A
consciência de si traz ao homem a consciência de sua vaidade e um distanciamento melancólico da
experiência imediata. No trecho abaixo, podemos ver este homem interiorizado recusando-se a ser
tomado como um objeto de manipulação. Quase podemos pensar em uma crítica ao que virá a ser o
projeto científico.
"(Hamlet insiste para que Guildenstern toque uma flauta; este recusa-se, afirmando não
dominar a técnica do instrumento) HAMLET -Pois veja só que coisa mais insignificante você me
considera! Em mim você quer tocar; pretende conhecer demais os meus registros; pensa poder
dedilhar o coração do meu mistério. Se acha capaz de me fazer soar, da nota mais baixa ao topo da
escala. Há muita música, uma voz excelente, neste pequeno instrumento, e você é incapaz de fazêlo falar. Pelo sangue de Cristo!, acha que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Pode me
chamar do instrumento que quiser -pode me dedilhar quanto quiser, que não vai me arrancar o
menor som... (p. 111)".
"HAMLET -Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar. E o crápula o atira aí pelo
chão, como se fosse a queixada de Caim, o que cometeu o primeiro assassinato. Pode ser a cachola
de um politiqueiro, isso que esse cretino chuta agora; ou até o crânio de alguém que acreditou ser
mais que Deus (...) Pode ser. E agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o quengo
martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução, se tivéssemos capacidade de entendê-la. A
educação desses ossos terá custado tão pouco que só sirvam agora para jogar a bocha? Os meus
doem, só de pensar nisso. (...)"
"-Mais um! Talvez o crânio de um advogado! Onde foram parar seus sofismas, suas
cavilações, seus mandatos e chicanas? Por que permite agora que um patife estúpido lhe arrebente
a caveira com essa pá imunda e não o denuncia por lesões corporais? Hum! No seu tempo, esse
sujeito talvez tenha sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, fianças, termos,
hipotecas, retomadas de posse. Será isso a retomada final de nossas posses? O termo de nossos
termos, será termos a caveira nesses termos? Os fiadores continuarão avalizando só com a
garantia desse par de identificações? As escrituras de suas terras dificilmente caberiam nessa
cova; o herdeiro delas não mereceria um pouco mais?" (p. 168-169). "HAMLET -Deixa eu ver.
(pega o crânio) Olá, pobre Yorick! Eu o conheci, Horácio. Um rapaz de infinita graça, de
espantosa fantasia. Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! me
revoltas o estômago! daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde
andam agora as tuas piadas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir
em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de
espírito! Olha, vai até o quarto da minha Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos
de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! (...)" (p. 172-173). "HAMLET -Dá-me teu
perdão, senhor. Eu te ofendi. Mas me perdoarás, como um cavalheiro os presentes sabem, e tu
mesmo deves ter ouvido, que fui atacado por cruel insânia. O que eu fiz, que tenha agredido tua
natureza, teu temperamento, honra ou consciência -proclamo aqui que é loucura. Foi Hamlet que
ofendeu Laertes? Hamlet, jamais: Se Hamlet foi posto fora de si, e com Hamlet fora de si ofendeu a
Laertes, não é Hamlet quem ofende, e Hamlet o nega. Quem ofende, então? Sua loucura. E se é
assim, Hamlet está na parte ofendida. A loucura também é sua inimiga. Senhor, diante desta
audiência, que minha negativa de qualquer má intenção tire do seu generosíssimo espírito a idéia
de que atirei minha flecha sobre a casa e feri meu irmão." (p. 188).
Com Hamlet, temos a denúncia melancólica -em um misto de lucidez e loucura- das
ilusórias pretensões do eu, que se acostuma a esquecer de sua dimensão mortal. Hamlet coloca-se
numa posição alheia ao coletivo, ao que se espera de um príncipe. Ele se recusa a ocupar o papel
que lhe é reservado, prefere ser autor de si mesmo. Temos aqui ao mesmo tempo crítica e
construção do homem da Modernidade.
Questões para discussão
1. Quais são as relações entre a origem da valorização do indivíduo e o ceticismo?
2. Quais foram as principais críticas dirigidas ao "eu" já no século XVI?
3. Quais são as relações entre a civilização e o auto-controle?
7
O DISCURSO DO MÉTODO
Acompanharemos, nesta parte, através do exemplo modelar de Descartes,
como o eu chega a seu ponto de máxima afirmação no século XVII. Ao eu
será atribuída uma posição transcendente ao mundo material; com isto,
nascerá o projeto da produção de um conhecimento objetivo, neutro,
independente da subjetividade: a ciência.
O título desta parte refere-se a uma das obras mais importantes da história da filosofia,
escrita por Descartes, no século XVII. Ela será nossa principal referência aqui. Em mais uma das
caricaturas que temos feito nesse percurso, poderíamos dizer que o século XVII tentou organizar
racionalmente a desordem do século anterior. Boa parte dos filósofos mais conhecidos hoje são
daquele século e, embora seus sistemas sejam profundamente diferentes, há algumas características
próprias do século. Quase que invariavelmente, suas obras procuram criar um método para a
compreensão do mundo em sua totalidade. Para isso, o mundo será dividido, analisado,
hierarquizado metodicamente. É comum que o primeiro capítulo de uma dessas obras trate daquilo
que o autor pensa ser a coisa mais importante do mundo (a causa de todas as demais coisas): em
geral, este lugar é ocupado por Deus. O segundo capítulo trataria da segunda coisa mais importante
do mundo: a alma, por exemplo. E assim por diante, até que todos os seres do mundo tivessem
ganho seu lugar.
Trata-se daquele mesmo esforço que já apontamos, em capítulos anteriores, para controlar a
desordem. Dada a insegurança do ceticismo, é necessário encontrar algum ponto de referência i
onfiável sobre o qual edificar a existência. A razão humana buscará encontrar a ordem das coisas
para dominá-las e, sobretudo, dominar a si mesma. O discurso do método, aliás, foi o primeiro livro
de filosofia a ser escrito não em latim, mas na língua francesa do autor, o que mostra que a
racionalidade estava no caminho de se tornar mais difundida e integrada à vida comum.
Assim como Santo Inácio, Descartes acredita que o caminho para a verdade é acessível a
qualquer um, desde que todos são livres para dirigir sua vontade ao caminho correto. A diferença é
que, em Santo Inácio, a verdade é Deus e o caminho e a meditação, enquanto que Descartes opera
um deslocamento e refere-se à verdade enquanto tal e o caminho encontra-se no correto uso das leis
matemáticas e geométricas.
Descartes é reconhecido como o filósofo mais expressivo desse movimento e um dos
fundadores da Modernidade: seu pensamento associa-se à origem do Iluminismo e, posteriormente,
da ciência. Por outro lado, não faltam aqueles que o tomam como o criador de um racionalismo
exagerado, distante da experiência. Ele seria o maior representante, juntamente com Platão, da
filosofia da representação, que exclui o corpo e seus impulsos, pretendendo que o mundo seja
totalmente racionalizável, submetido a séries de causa e efeito. Tentemos, como já fizemos com
Maquiavel, compreendê-lo em seu contexto.
Descartes nasceu em 1596, mergulhado na efervescência que já descrevemos. Com dez
anos, ingressou em um colégio de jesuítas, ou seja, sob a orientação do pensamento de Santo Inácio.
Quando lemos O Discurso do Método, publicado em 1637, encontramos exatamente o depoimento
de alguém que passou boa parte da vida em busca de uma referência confiável e não a encontrou:
cada filósofo dizia uma coisa, sem nunca entrar em acordo com outros; cada livro informava
diferentemente; cada cultura tinha suas leis próprias e algo que fosse considerado certo aqui poderia
ser considerado errado numa cidade vizinha. Enfim, para onde quer que olhasse, tudo o que via era
desordem e dúvida. É uma percepção de mundo que em nada difere da de Montaigne, por exemplo.
A solução encontrada por Descartes foi iniciar um processo de dúvida metódica, ou seja, ele
se propôs a refletir sobre cada coisa que há no mundo, procurando saber se ela lhe poderia fornecer
uma verdade segura. O método será o mais semelhante possível com o da matemática e da
geometria. Uma vez firmado um ponto de referência, tudo mais deverá vir por dedução.
A busca é por idéias claras e distintas. Para não correr riscos e ajudar a distinguir com
clareza idéias que fossem totalmente verdadeiras, ele tomou o seguinte princípio: àquilo que fosse
falso, ele consideraria falso; àquilo que fosse incerto, seria tomado igualmente como falso. Apenas
algo realmente seguro poderia passar por seu crivo.
Penso que podemos associar este procedimento com duas características da pintura barroca
do século XVII: a busca de realizar retratos altamente realistas e detalhados, e a técnica do
claro/escuro. Nas pinturas há uma alta definição de luz sobre seu objeto tema, enquanto o fundo, em
geral, é escuro. Quase não se pode duvidar de nada, não há meios tons. Vejam-se, sobretudo, as
obras de Caravaggio ou Vermeer: em todos eles, há a representação fotográfica do tema; sobre ele,
recai um foco bem definido de luz, enquanto que o fundo é indefinido e deixado na escuridão.
No procedimento de Descartes, uma a uma, as coisas iam se mostrando enganadoras. Ele
procedeu seu exame de dentro para fora e, assim, em primeiro lugar, percebeu que as opiniões das
pessoas comuns e de "especialistas" eram duvidosas; depois percebeu a variabilidade das leis e
regras morais. Já não podendo contar com certezas externas, passa a interrogar a si mesmo
(reencontra-se aqui o movimento que identificamos na passagem da Idade Média ao Renascimento).
Em primeiro lugar, averiguou se seus órgãos do sentido lhe proporcionavam informações seguras, e
chegou à conclusão de que não. Interrogou, então, seus sentimentos e viu que o que eles lhe
transmitiam não era nada objetivo. E então se perguntou se a sua sensação de ter certeza sobre algo
garantia a verdade correspondente e, ainda uma vez, concluiu que não. Este movimento de recuo
metódico, em que parece que Descartes vai ficando cada vez mais acuado, aparentemente chegaria
ao ceticismo absoluto de Montaigne. Mas então Descartes dá seu "pulo do gato".
Depois de duvidar de todas as coisas, Descartes diz que, realmente, tudo o que tomou como
objeto de seu pensamento era incerto, mas que algo lhe parecia indubitável: enquanto duvidava,
seguramente existia ao menos a atividade de duvidar e se havia esta ação, ela deveria ter um
sujeito, um "eu pensante". Esta é a conclusão de Descartes: diante de toda a dúvida do mundo, o
único ponto de segurança e referência que temos é o de um "eu", não enquanto corpo, pois sua
existência também foi colocada em dúvida, mas um eu puramente pensante, uma alma racional
capaz de produzir representações corretas do mundo. Daí a famosa frase "Je pense, donc je suis" (eu
penso, logo existo).
Teríamos, com isso, o ponto máximo do humanismo enquanto valor do homem no mundo e
sua posição enquanto centro. O homem já era reconhecido como centro do mundo; agora, ele
mesmo tem um centro, sua razão, sua autoconsciência. A partir do "eu", Descartes deduzirá a
existência do corpo e dos demais "eus". Mas, em primeiro lugar, deduzirá a própria existência de
Deus. Deus é deduzido como uma causa necessária para a existência do homem, mas, se sua
existência tem que ser deduzida do eu, qual dos dois será mais importante?
Assim, se de início os caminhos de Descartes e de Montaigne se assemelham, eles acabam
de formas radicalmente distintas: em Montaigne temos a incerteza sem fim e a necessidade de
construir continuamente um eu; em Descartes, a dúvida é superada pela suposição da existência
prévia de um eu absoluto, um sujeito que subjaz (a origem dos termos é a mesma) a tudo.
Retomemos a referência que fizemos a Santo Agostinho no primeiro capítulo. Dentre os
diversos pontos de contato entre ele e Descartes, vale dizer que ele também teria antecipado de certa
forma o debate de Descartes contra os céticos e mesmo a solução dada por este último, em uma
formulação que Taylor denomina 'proto-cogito'. Agostinho sente que precisa defender-se dos
céticos, pois as crenças cristãs seriam arrasadas se eles conseguissem provar que de fato não
sabemos nada. Daí surge a argumentação que costumamos atribuir como originária de Descartes e
ponto chave de sua argumentação em favor do cogito: mesmo o cético não pode duvidar de sua
própria existência, caso contrário não seria possível sequer que ele se enganasse. O ponto máximo
da dúvida metódica (a chamada dúvida hiperbólica) cartesiana consistia justamente na hipótese de
um Deus enganador que pudesse insuflar falsidade em nossas representações. Sto Agostinho parece
antever este ponto limite da dúvida e fornecer a mesma resposta que Descartes: tomar a certeza da
primeira pessoa como fundamento indubitável contra os céticos. O conhecedor e o conhecido são
idênticos, trata-se da evidência da auto-presença.
A semelhança com as Meditações metafísicas de Descartes vão além: a afirmação daquela
verdade inquestionável ainda não garante a verdade das coisas e de Deus. A garantia para estas
verdades é dada pela concepção de que, sendo imperfeitos, devemos ter sido originados de um ser
perfeito, em muito superior a nós. O mergulho que o homem dá dentro de si o eleva a uma verdade
acima dele. A conclusão de Taylor é a de que no universo agostiniano, a seguinte equação deve ser
feita: "Deus = a verdade existe".
É justamente neste último ponto que se pode começar a diferenciar Descartes de Agostinho,
já que, até agora, podíamos incluir o primeiro quase que totalmente na tradição do segundo. Em
Descartes, a fonte da moral -vale dizer, a verdade- é definitivamente interna. Descartes também
deduz Deus, como Agostinho, de nossa imperfeição, mas Deus já não é o fim do caminho, para
onde tudo tende, mas ele seria um passo em meu caminho, uma garantia para as idéias evidentes
que tenho em mim. E no eu que tudo se encerra.
Desde Descartes, só será considerado verdadeiro aquilo que passar pelo crivo (observação ou
experimentação) da razão humana. O lugar da verdade é o eu e não mais textos ou representantes do
sagrado. A Modernidade se ergue diante da descrença progressiva da possibilidade de acesso
imediato a qualquer transcendência.
TEXTO ANEXO - René Descartes
O DISCURSO DO MÉTODO
"O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem
provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não
costumam desejar tê-lo mais do que o tem. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito;
mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os
homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais
racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não
considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo
bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que
só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se distanciam." (p.29)
"E bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais
sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão,
como soem proceder os que nada viram. Mas quando empregamos demasiado tempo em viajar,
acabamo-nos tornados estrangeiros em nossa terra; e quando somos demasiados curiosos das
coisas que se praticavam nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que
se praticam no presente." (p. 31)
"Comprazia-me sobretudo com as matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas
razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego e, pensando que serviam apenas às artes
mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse
edificado sobre eles nada de mais elevado. (...)"
"Da Filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos, que
viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a
qual não se dispute e, por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer
presunção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas opiniões diversas,
sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria, sem que jamais possa
existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase porção de coisas que, embora nos
pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser freqüentemente acolhidas e aprovadas
por outros grandes povos, aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora
inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que
podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois que
empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo e em procurar adquirir alguma
experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as
forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais
resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros." (p. 33)
"Achava-me, então, na Alemanha, para onde fora atraído pela ocorrência das guerras, que
ainda não findaram, e, quando retornava da coroação do imperador para o exército, o início do
inverno deteve-me num quartel, onde, não encontrando nenhuma frequentação que me distraísse, e
não tendo, além disso, por felicidade, quaisquer solicitudes ou paixões que me perturbassem,
permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar
para me entreter com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de
considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela
mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou." (p. 34)
"O primeiro [princípio] era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção,
e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu
espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida." (p. 37)
"E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, derrubá-la,
ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na arquitetura, nem além disso,
ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer
onde a gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, a fim
de não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus
juízos, e de não deixar de viver desde então o mais felizmente possível, formei para mim mesmo
uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos
participar."
"A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo contentemente a
religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em
tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem
freqüentemente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver."
"E, entre várias opiniões igualmente aceites, escolhia apenas as mais moderadas: tanto
porque são sempre as mais cômodas para a prática e verossimilmente as melhores, pois todo
excesso costuma ser mau, como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho, caso
eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos extremos, fosse o outro o que deveria ter seguido. E,
particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a
própria liberdade." (p. 42)
"Não sei se devo falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão
pouco comuns que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa
julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a
falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir
opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito
acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era
necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que
pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que
fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor
que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que
se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem
aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estavam sujeitas a falhar como qualquer outra
todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os
mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos,
sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas
que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus
sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade:
eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o
primeiro princípio da Filosofia que procurava." (p. 46)
"(...) compreendi por aí que [eu] era uma substância cuja essência ou natureza consiste
apenas no pensar e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa
material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele e, ainda que este nada fosse, ela não
deixaria de ser tudo o que é." (p. 47)
A evidência do eu como única referência estável dará origem a todo o projeto científico. O
homem passa a ter segurança quanto à sua possibilidade de alcançar um conhecimento objetivo do
mundo. A verdade já não será procurada nas escrituras sagradas ou em iluminações místicas. Só
poderá ser considerado verdadeiro algo que tenha passado pelo crivo da observação e
racionalidade humanas.
MÚSICA - Bach: o barroco e a fuga
Com o passar do tempo, a música vai-se tornando mais complexa e, por isso, faremos
apenas referências breves ao estilo. No século XVII, surge a música barroca, altamente
intelectualizada e estilizada. Nela, a tendência à construção de composições mais equilibradas
afirma-se. A música sacra e a ópera, recém-criada, serão suas maiores expressões.
Mas somos obrigados, neste caso, a ser menos fiéis à cronologia. A música que parece
melhor se relacionar com o movimento que descrevemos em Descartes é a de um compositor
nascido já em 1685 e que criou propriamente no século XVIII: Johann Sebastian Bach. Sem dúvida
um dos maiores compositores que já existiu, Bach possui uma espantosa quantidade e qualidade de
obras, em vários estilos. De certa forma, assim como Descartes, ele representa o início da
Modernidade, por ter sistematizado os tons musicais, tais como os conhecemos e usamos hoje.
Dentro da riqueza de sua música, destaca-se a produção de fugas. As fugas são um estilo no
qual as vozes são rígida e matematicamente dispostas. Em geral, há uma primeira Unha melódica,
chamada ponto, a qual se segue uma segunda voz em contraponto, ou seja, em imitação em outro
instrumento ou escala ou invertida, mas sempre em uma relação direta de equivalência com a
primeira. É comum que, no início da obra, seja apresentado um tema fechado; a partir daí, o restante
da composição realizará um desenvolvimento lógico das possibilidades do tema. Não aparecerá
nenhum tema que não estivesse contido enquanto possibilidade no início. Ao final, é reapresentado
o tema. Trabalha-se com tensão e distensão de forma totalmente controlada e o ouvinte jamais será
abandonado sem referências; o centro sempre reaparece20.
Bach ainda possui outro interesse, para nossas finalidades. Ele é completamente diferente do
mito romântico que temos do artista, não possuindo nada de atormentado ou louco. Ele era um
burocrata da música, um funcionário da Igreja sem afetações -o que não o impediu de criar uma
obra grandiosa, plena da retórica protestante. Se não se acredita em Deus ouvindo Bach, não se
acreditará de outra maneira21.
Questões para discussão
1. Como Descartes escapa ao ceticismo?
2. Quais são as relações entre o "eu", tal como definido por Descartes, e o
corpo?
3. Quais são as relações entre o método cartesiano e o de Santo Inácio de
Loyola?
20
Procure ouvir dois exemplos importantes de Barroco. Um é o trecho inicial de "Vespro delia
Beata Vergine" de Monteverdi, extraída do CD "Baroque. Palestrina e Monteverdi, EMI Classics,
1995". Mas ouça também o "Prelúdio e fuga em dó-menor", extraídas do CD "O cravo bem
Temperado (livro 1), J.S.Bach,ECM, 1988."
21
Um bom exemplo é a "Introdução" da Paixão Segundo São Mateus. "Mathãus-Passion, Deutsche
Grammophon, 1973".
8
O EU E O NÃO EU
A afirmação do eu dá-se às custas de uma sombra
projetada. Surge uma zona de exclusão representável
pela loucura ou pela natureza animal do homem.
Como forma de destacar a importância que passa a ter a afirmação do eu como único ponto
de referência para a existência humana desde o século XVII, vale a pena fazermos uma breve
referência à loucura. A referência chave nesse tema é a obra fundamental de Michel Foucault, dos
anos 60 de nosso século: A historia da loucura.
De forma muito simplificada, poderíamos dizer que foi apenas no século XVH que surgiu
nossa forma atual de relação com a loucura; num certo sentido, a loucura surgiu nesse século. Isso
não quer dizer que, antes disso, não houvessem pessoas que alucinavam ou que fossem
descontroladamente violentas, etc. A questão é que antes do século XVII ou em culturas não
ocidentais, a forma de se compreender o que se passava com essas pessoas era diferente. Não havia
o medo que temos hoje do louco, a idéia de que isso fosse uma doença e, sobretudo, não existia a
idéia de que ele devesse ser afastado do convívio social e isolado num hospício. Em determinadas
culturas, o louco pode ter sido tomado como um visionário: como aquele que transcende a
experiência imediata, entra em contato com outra dimensão da verdade que, ao regressar, a
comunica aos demais. Ele pode ainda ter sido tomado como um possesso pelo demônio ou
simplesmente como um bobo. O principal é observar que, até o século XVH, a perda da razão por
um homem não produzia o efeito de medo que passou então a gerar. Por que surgiu o medo da
loucura?
A idéia parece ser a seguinte: no mundo medieval, a garantia sobre a ordem do mundo e
todas as suas certezas era dada por algo externo ao próprio homem, ou seja, por Deus. Se um
homem perdia a razão, via coisas que ninguém mais via ou pensava o que ninguém mais pensava;
isso era um problema dele que não afetava aos demais. Ele deveria estar tomado pelo demônio. As
pessoas podiam até ter medo de serem tomadas também, mas a loucura não ameaçava a crença em
Deus e, assim, as verdades aceitas. Depois do processo que descrevemos, desde o fim da Idade
Média e sobretudo depois de Descartes, a situação mudou totalmente. Desde então, a única garantia
e ponto de referência do homem é a sua crença em um eu pensante" objetivo e consciente. A partir
desse momento, qualquer coisa que pudesse pôr em questão a lucidez e a estabilidade do eu, seria
tomada como altamente ameaçadora. Agora é toda a estabilidade do mundo que está em jogo na
identidade do eu. E preciso criar mecanismos para afirmá-lo e defendê-lo.
O afastamento do louco do convívio social parece servir mais aos outros do que a ele. No
século XVII, não há qualquer perspectiva de tratamento, trata-se simplesmente de um isolamento
por medo do contágio. Foucault mostra-nos que os primeiros hospícios foram os antigos leprosários
remanescentes da Idade Média, o que acaba sendo altamente expressivo da associação feita com
aquele mal terrível e contagioso. O louco será tratado como um animal, como alguém que perdeu a
alma, pois esta identifica-se com o eu e sua racionalidade. Não se pode pensar em um eu louco; se
há loucura, o eu submergiu. Lembremo-nos do último trecho de Hamlet no texto anexo, em que ele
antecipa esta noção: se ele fez algo estando louco, é o próprio eu que foi ofendido e não pode ser
responsabilizado. Desenha-se novamente aquela referência à pintura barroca com o estilo do claro/
escuro: não há razão relativa, ou se é são e dono de seu eu, ou se e louco e alienado absolutamente.
Pelo lugar de exclusão que assume, não há música que represente a loucura no século XVII. Como
ja dissemos, ela é dominada pela racionalidade matemática.
Concluindo, o nascimento de nossa representação moderna da loucura é contemporâneo e
correlato ao momento de maior afirmação do eu, enquanto sujeito consciente e livre para conhecer a
verdade.
TEXTO ANEXO - Thomas Hobbes
Outra referência essencial sobre o que habita o espaço excluído ao eu é a obra do filósofo
inglês Thomas Hobbes. Num certo sentido, ele tem um projeto semelhante ao de Descartes: em sua
obra mais importante, Leviathan (1651), tentou sistematizar idéias a respeito da natureza humana e
do Estado. Assim, como Descartes, ele acredita que o homem deve seguir o caminho da
racionalidade. O eu social justamente impõe-se sobre a natureza humana, que deve ser dominada
totalmente. Mas o que caracteriza e diferencia Hobbes de seus contemporâneos é a visão
"naturalista" e assustadora que ele nos dá da natureza humana. A seguir, apresento algumas das
principais idéias de Hobbes, referindo-me a outro de seus livros, chamado Do cidadão {"De eive"):
"(...) Pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas, acima
de tudo, do maior entre os males naturais, que é a morte e isso ele faz por um certo impulso da
natureza, com tanta certeza como uma pedra cai." (p. 10)
Hobbes traça, ao longo de Do cidadão, um perfil do que seria o homem fora da sociedade,
em um virtual estado de natureza. Em um estado de natureza, ou seja, na ausência de um poder
constituído ou de compromissos entre os homens que determinassem o que pertence a quem, todo
homem teria o direito de fazer e ter tudo o que quisesse, pois a natureza "deu a cada um o direito a
tudo". E o que o homem naturalmente buscaria? Como vimos na citação acima, o homem procura o
que é bom para ele, evitando o que é mau.
A idéia chave aqui é a da busca de um bem para si. O que está em jogo é o seguinte: desde
sempre, se disse que o homem busca o bem ou a felicidade, não há nenhuma novidade nisso. A
questão é que, como temos visto, a idéia de uma referência externa que servia como padrão e
definição do bem está desaparecendo. A busca do bem já não toma a forma de busca de um bem
comum. Sem essa referência externa e com a progressiva importância atribuída ao eu, a busca agora
é a do bem para si. Em Hobbes, o homem é visto como um ser egoísta, movido pela busca do prazer
e pela fuga dos perigos de morte. Isto freqüentemente o levará a ser violento e a entrar em guerra,
impondo-se sobre os demais. Hobbes é ainda mais específico na seguinte passagem:
"(...) Assim cheguei a duas máximas da natureza humana - uma que provém de sua parte
concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas coisas nas quais todos os outros têm comum
interesse -outra, procedendo da parte racional, que ensina todo homem a fugir de uma dissolução
antinatural, como sendo este o maior dano que possa ocorrer à natureza." (p.6)
Alguns homens se contentariam em ter apenas o que lhes fosse necessário, permitindo aos
outros o mesmo. Outros, porém, movidos pela vangloria, procurariam sobrepor-se aos demais,
surgindo assim inevitavelmente o conflito e a vontade de ferir. O homem teria uma eterna
inclinação para ampliar seu poder: no primeiro homem, esta inclinação serviria à sua auto-defesa, à
qual tem todo o direito; no segundo, ela serviria à sua vangloria.
Hobbes conclui que, desse estado de coisas, resultaria uma eterna guerra de todos contra
todos. Nenhum homem poderia se sentir seguro em poder manter seu bem maior; sua vida. Há,
assim, um paradoxo fundamental entre as duas máximas da natureza humana; sobreviver e o desejo
de apropriar-se de tudo por vangloria.
Referi-me acima ao estado de natureza como "virtual", pois Hobbes não se refere e,
aparentemente, não pensa que um tal estado tenha existido ou possa existir, trata-se de uma natureza
vislumbrada a partir de seus contemporâneos. Lemos em Do cidadão uma série de referências ao
homem vulgar que é imprudente, procura sempre tirar proveito dos outros, admira sistemas
filosóficos apenas pelo prazer que extrai de suas retoriquices, etc. Enfim, Hobbes convida-nos (de
fato, convida-nos: há um apelo feito ao leitor) a encarar de frente os motivos que levam os homens
ao convívio social. A primeira conclusão fundamental é que a sociabilidade não faz parte da
natureza humana:
"Pois aqueles que perserutarem com maior precisão as causas pelas quais os homens se
reúnem e se deleitam uns na companhia dos outros facilmente hão de notar que isto não acontece
porque naturalmente não poderia suceder de outro modo, mas por acidente. Isto porque, se um
homem devesse amar outro por natureza -isto é, enquanto homem-, não poderíamos encontrar
razão para que todo homem não ame igualmente todo homem, por ser tão homem quanto qualquer
outro, ou para que freqüente mais aqueles cuja companhia lhe confere honra e proveito." (p. 3)
Em seguida, investigando com grande ironia o que os homens fazem quando se reúnem,
Hobbes nos apresenta quais acredita serem os fundamentos desta união:
"Assim esclarece a experiência a todos aqueles que tenham considerado com alguma
precisão maior que a usual os negócios humanos, que toda reunião, por mais livre que seja, deriva
quer da miséria recíproca, quer da vã gloria, de modo que as partes reunidas se empenham em
conseguir algum benefício, ou aquele mesmo eudokimein que alguns estimam e honram junto
àqueles com quem conviveram." (p. 5)
E, mais adiante:
"(...) Devemos portanto concluir que a origem de todas as grandes e duradouras sociedades
não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do
medo recíproco que uns tinham dos outros, (p. 6)
Antes de prosseguirmos na exposição de como Hobbes entende a construção da sociedade,
gostaria de acrescentar algo ainda sobre a natureza do homem. No Capitulo 5 de Do cidadão,
Hobbes discute os motivos pelos quais os governos de certos animais, considerados políticos por
Aristóteles, são bem fundados numa concórdia ausente no governo humano. As conclusões são as
seguintes: nos homens, há disputa por honra e precedência, vale dizer vangloria, gerando ódio e
inveja; nos animais, o bem-comum não se diferencia do particular, enquanto no homem alguma
proeminência é condição para seu gozo; o uso da razão leva alguns homens a querer inovar,
trazendo a discórdia; os homens possuem a arte da palavra, condição para os movimentos da mente,
que, contudo, pode levar os homens à guerra em seus maus usos; os animais não sabem distinguir
dano ou injúria, não censurando assim aos seus semelhantes; e, por fim, o pacto entre os homens
não é natural como entre os animais. Esta análise de Hobbes é surpreendente, pois não só nos leva à
conclusão de que o homem distingue-se fundamentalmente dos demais uni mais políticos, não tendo
contato com as leis naturais como aqueles, < omo sugere que aquilo que caracteriza a natureza
humana -sua razão, sua fala e sua ânsia por glória- é justamente o que o torna inapto para a vida
social. Uma paz duradoura só poderia ser i nnquistada por um esforço metódico da reta razão
-vencendo as l >aixões- para apreender as leis naturais e a constituição de um poder i cntralizado e
coercitivo que subjugasse as inclinações individuais, i omo veremos a seguir.
Retornando à linha que desenvolvíamos, o estado de natureza ícarreta a guerra de todos
contra todos, pondo em perigo a obrevivencia. Hobbes conclui então que é racional -e é, por isso, a
Iuimeira lei fundamental da natureza: procurarmos a paz, se ela for possível. Caso contrário,
devemos nos preparar para a guerra.
A lei seguinte é clara: é preciso que os homens renunciem i >u transfiram seu direito a todas
as coisas para que se possa chegar a paz. Mesmo que não haja um Estado constituído, é possível a
realização de acordos entre indivíduos. Transferir significa declarar a outro que não se vai mais
resistir a ele naquilo de que se trate. Aqui surge a idéia, essencial em Hobbes, de contrato:
"O ato de dois, ou mais, que mutuamente se transferem direitos chama-se contrato." (Cap.
2, p. 7)
Um contrato nestes moldes pode estabelecer a paz entre algumas pessoas, mas certamente é
insuficiente para a garantia de uma paz generalizada. Para tanto, será necessária a constituição de
um estado civil. É importante dizer também que esta transferência e contrato tem um limite; todo
homem preserva o direito à sua sobrevivência e proteção de seu corpo. Esta idéia é essencial, pois
deixa claro que não se trata de pensar que o homem pode deixar de ser egoísta, mas de reafirmar
que, se ele cede seu direito a tudo, isso se deve à sua preocupação, ainda egoísta, em sobreviver. Se
ocorrer qualquer ameaça neste sentido ele terá o direito (ou a obrigação?) de quebrar o contrato,
retornando ao estado de guerra.
Ainda sobre o contrato, Hobbes diz:
"(...) Mas em primeiro lugar, é evidente que o consentimento de dois ou três não pode tornar
suficiente uma tal segurança; porquebastará somar do outro lado um único ou alguns poucos, para
se alcançar uma garantia indubitável de vitória, o que animará o inimigo a nos atacar. Por isso é
necessário, a fim de que se possa obter a segurança almejada, que o número daqueles que
cooperam em assistência mútua seja tão grande que o acréscimo de uns poucos do lado do inimigo
não venha a constituir tópico suficiente para assegurar-lhe a vitória." (Cap. 5, p. 2)
Assim, para que haja a instituição do Estado, é necessário que uma significativa maioria ou
mesmo que todos os homens transfiram I seu direito natural a tudo a um soberano ou a uma
assembléia, a quem caberá a função de juiz e legislador, de definir o que é bom e o que é mau e o
que cabe a cada homem. Note-se que este soberano está de certa forma excluído do contrato social,
pois ele não abre mão de nada e, a rigor, como j á tinha direito a tudo, também não ganha nada.
Aqueles que realizaram a transferência, por sua vez, submetem-se igual e irrestritamente a este
poder centralizado. Ao comentar a extensão do poder do soberano, Hobbes nos assinala:
"É muito evidente, por tudo que já dissemos, que em toda cidade perfeita (isto é naquela em
que nenhum cidadão tem o direito de utilizar suas faculdades, a seu arbítrio, para sua própria
conservação -ou seja, onde está abolido o direito ao gládio privado) reside um poder supremo em
alguém, o maior que os homens tenham direito a conferir: tão grande que nenhum mortal pode ter
sobre si mesmo um maior. Este é o que chamamos de absoluto, o maior que homens possam
transferir a um homem. (Cap. 6, p. 10)
Com a instituição deste poder, todas as inclinações individuais estão canalizadas e
direcionadas. Numa definição de lei, que Hobbes dá em Leviathan, podemos compreender a idéia
que ele faz da função do Estado:
"Pois o uso das leis (que não são senão regras autorizadas), não é atar a pessoas de todas as
ações voluntárias; mas dirigi-las e mantê-las em tal movimento, em que elas não se machuquem por
seus próprios desejos impetuosos ou indiscrições, assim como balizas são colocadas não para deter
os viajantes, mas para mantê-los em seu caminho." (Leviathan, p. 388)
Numa síntese: o homem, para Hobbes, é um ser de certa forma (lesconectado com as leis
naturais, aquilo que mais o caracteriza. Sua razão, fala e desejo de poder é o que mais o afasta desta
natureza, em especial quando há um mau uso, um excesso no exercício destas faculdades. Este
excesso é expresso de forma privilegiada pela busca da vangloria, sempre definida como um abuso,
como um excesso referente à busca de glória. Trata-se de uma falta de medida na busca de algo a
princípio legítimo, um prazer supérfluo e nocivo. Este ser, assim, claramente inapto para o convívio
social (pois viveria em eterno estado de guerra), é compelido, acima de tudo pelo medo de ser
morto a unir-se a outros homens. Para isto, abre mão de suas aspirações de sobrepor-se aos demais
com a condição de que estes façam o mesmo, submetendo-se a um poder central que regulará suas
ações. Em um Estado assim constituído, não há lugar para vontades (no sentido em que Hobbes usa
o termo, quase sinônimo de ações) particulares. O Estado contém as vontades como as margens de
um rio contém suas águas, evitando que elas se dispersem.
O eu será, assim, o dique construído para conter a natureza humana, que busca a afirmação
de algo que escapa ao próprio eu: uma busca de prazer sem firr^. Assim, embora Hobbes tenha
pontos em comum com Descartes, sobretudo a crença na possibilidade de um autodomínio
completo pela razão, seu princípio é justamente não desprezar a animalidade do homem.22
Questões para discussão
1. Em que sentido Foucault diz que a loucura foi criada no século XVII?
2. Qual é a função do medo no interesse do homem em viver em comunidade,
segundo Hobbes?
3. Com qual forma de governo o Estado, tal como Hobbes o define, mais se
parece: a democracia, o socialismo ou uma ditadura? Por quê?
22
Essa 'animalidade' foi representada musicalmente. Procure ouvir "Intermédepour 'Le mariage
force"', de Charpentier, extraída de "Grands Compositeurs Baroques: Charpentier. Harmonia
Mundi, France". Destaque-se, sobretudo, o humor, a dissonância e distorção que antecede a imitação dos animais. Nem tudo no século XVII é ordem; algo lembra ainda a polifonia e a fragmentação
da experiência.
9
OS MORALISTAS DO SÉCULO XVII
A valorização do eu livre e indeterminado impõe a tarefa de sua
formação. Sua educação implicará no aprendizado e adaptação a
determinadas normas de conduta. O comportamento humano passa a
ser alvo de uma observação rigorosa.
O termo 'moralista' tem um sentido próprio em nosso contexto. Na medida em que a
referência moral gradativamente vai deixando de ser a Igreja e a própria concepção de auto-controle
refere-se cada vez menos a Deus, é na própria sociedade que se produzirão normas e mecanismos
de vigia sobre seu cumprimento. Os moralistas são, neste contexto, pessoas dedicadas à observação
do comportamento humano è, no que diz respeito ao controle do comportamento, que mantêm
alguma relação com os procedimentos de controle a que nos referimos através de Santo Inácio e aos
manuais de boas maneiras nascidos no século XVI. Talvez os moralistas sejam os primeiros a
merecerem o título de "psicólogos", não pelo procedimento científico, mas pela observação acurada
sobre os costumes e motivos humanos .
Trata-se, também, de uma série de autores que procuraram codificar as regras de conduta do
ser humano. O termo ainda se aplica a autores que denunciam as hipocrisias e farsas na ação de
muitos homens. Dois desses moralistas, para tomarmos dois caminhos de certa forma opostos, são
La Fontaine (aquele das fábulas) e La Rochefoucauld.
La Fontaine tem uma obra conhecidíssima como fabulista mas, erroneamente, hoje sua obra
é associada exclusivamente à literatura infantil. É certo que ele pretendia atingir adultos também,
com o seu humor eventual e a referência a determinadas figuras ociais o atestam. Suas fábulas
costumam conter uma 'moral da história', de conteúdo edificante. Ele procura mostrar como
comportamentos considerados bons moralmente (hoje diríamos, politicamente corretos) são
recompensados, enquanto que os maus são punidos. Há, assim, por trás de sua obra uma
determinada concepção de certo e errado que ele procura impor. E nesse sentido ele formação moral
que ele passou a ser lido para crianças.
A utilização freqüente de animais como personagens serve para disfarçar um pouco a crítica
a determinados grupos ou pessoas que, por vezes, expõe ao ridículo. Êm algumas passagens, temos
a impressão de que ele estaria, de fato, atacando as instituições e a natureza humana, mas no
conjunto, parece que o que ele realmente pretendia era uma reforma ou formação moral do eu, no
sentido que temos trabalhado. Tomemos algumas fábulas.
TEXTO ANEXO - La Fontaine
OS ANIMAIS ENFERMOS DA PESTE - (Fábulas)
"Um mal que semeia o terror, um mal que o céu, em seu furor, inventou para punir os
pecados da terra: a Peste (o nome dela eu quase não dizia), capaz de recobrir o Aqueronte num dia,
aos animais declarou guerra. Os que não pereceram, perderam vigor, vivendo em mórbido langor.
Nem mesmo de buscar o seu próprio sustento sentiam o menor alento. Raposas e lobos, parados,
não se animavam a caçar. Onde os pombos enamorados? Foram amar noutro lugar. Devido à
melancólica situação, tomou a palavra o leão:
'Nossos pecados, nossos vícios, são responsáveis por tudo isto. Para aplacar a cólera dos
céus, insisto que serão necessários alguns sacrifícios, ou pelo menos um: que morra o mais culpado,
pois a história nos tem mostrado que assim deve ser feito. Nada de indulgência: examinemos a
consciência, Eu, por exemplo, me acuso de ser mesquinho: devorei muito carneirinho que nunca me
fez ofensa. Antes fosse isso só... Já provei o sabor do pastor! Sou pecador, eu sei, mas isto não
dispensa cada qual de acusar-se, a fim de sabermos quem tem a menor culpa, para desta sorte saber
quem merece a morte.'
'Bondoso rei, não sacrificaremos' -disse a raposa-'alguém tão nobre e tão gentil! Devorar um
carneiro, animal imbecil, será pecado? Ó não! Antes, presente régio, um verdadeiro privilégio.
Quanto ao pastor, fizestes bem, pois para nós, os animais, tais indivíduos são mui prejudiciais.
Agistes, pois, como convém' Aplausos coroaram o sábio discurso. Vieram em seguida um urso, um
tigre e outras terríveis feras assassinas; porém, seus crimes e chacinas, suas ações infames, seus atos
malvados, não eram tidos nem como veniais pecados...
Por fim, chegou a vez do burro, que falou:
'Passando um dia junto ao prado de um mosteiro, o demônio a fome me aumentou. Senti-me
deveras tentado. E como resistir, naquela circunstância? Quando vi, eu já havia dado uma bocada...'
'Oh, que pecado!', grita a assembléia indignada. Um lobo falastrão recrimina a arrogância, a
estupidez daquele maldito animal, um sarnento, de quem provinha todo o mal. Seu pecadilho foi
julgado imperdoável. Comer erva sagrada! Crime abominável! Que morra esse ser detestável! O
veredicto foi de aceitação geral.
Segundo o teu estado, rico ou miserável, branco ou preto, serás perante o tribunal." (Vol. 2,
p. 23-26)
A GARÇA - (Fábulas)
"Embora já fosse hora de pensar no almoço, a garça mal voltava seu longo pescoço, para o
rio, ao longo do qual, com suas longas pernas e seu longo bico, passeava, displicente. O pesqueiro
era rico: carpas e lúcios. Afinal, por que não lhe importavam tão finos petiscos? É que ela,
planejando opíparo jantar, esperava a fome aumentar.
Vendo que não haviam riscos, os peixes se entretinham em mil brincadeiras, até que se
cansaram, desaparecendo.
A fome, então, veio correndo. Onde as carpas e os lúcios? E as percas ligeiras? Nenhum
peixe que vê lhe serve de manjar: este não tem bom paladar; aquele é por demais pequeno; e a carne
deste aqui? verdadeiro veneno! "Fosse eu ave qualquer, não haveria mal em comer esses peixes de
gosto trivial. Acontece que sou uma garça-real e, portanto, exigente, altiva e refinada." Muito tempo
ficou a esperar, e ao final, constatando a ausência total de peixes bons ou maus, acabou obrigada, na
falta de algo especial, a procurar um caracol...
Quem se acomoda bem, acha um lugar ao sol, e quem almeja além, pode tudo perder. Se o
melhor não se pode ter, o jeito é contentar-se com o menos ruim. Não é só para as garças a lição que
lestes, mas se aplica igualmente aos humanos." (Vol. 2, p. 32-33)
É bastante visível o tom de crítica irônica presente nas fábulas, mas La Fontaine é
cuidadoso, não denuncia frontalmente ninguém. Essa é uma de suas diferenças com La
Rochefoucauld, a quem passamos a nos referir, que leva sua crítica ao ponto crucial.
Sua forma de expressão foi a 'máxima', um texto pequeno, em geral de um único parágrafo
que funciona como um provérbio. La Rochefoucauld escreve centenas delas, mas suas idéias
acabam todas retornando ao mesmo tempo: o principal motor da vida humana é sua vaidade, ou seja
o amor a seu próprio eu. Ele se encontra naquela mesma linha de Erasmo e Shakespeare, como
alguém que denuncia com humor irônico o quanto o eu é pretensioso e iludido sobre si. Consta,
inclusive, que seu principal livro, Máximas e reflexões diversas, era uma das leituras favoritas de
Nietzsche, o que o alinha em uma série de autores não humanistas de muito peso.
Vale a pena divertirmo-nos um pouco (num certo sentido, rindo de nós mesmos) com a denúncia
arrasadora de La Rochefoucauld.
TEXTO ANEXO - La Rochefoucauld
SELEÇÃO DE MÁXIMAS E REFLEXÕES
"Nossas virtudes são, o mais freqüentemente, apenas vícios disfarçados.
3 Por mais descobertas que se façam no país do amor-próprio, restam ainda terras desconhecidas. 8
As paixões são os únicos oradores que persuadem sempre. Elas são como uma arte da natureza
cujas regras são infalíveis e o homem mais simples que tem paixão persuade melhor que o mais
eloqüente que não a tem.
10 Todos nós temos força suficiente para suportar os males do outro.
31 Se nós não tivéssemos faltas, não teríamos tanto prazer em observá-las nos outros.
35 O orgulho é igual em todos os homens, há apenas diferenças quanto aos meios e à maneira de
expressá-lo.
42 Nós não temos força suficiente para seguir toda a nossa razão.
43 O homem crê freqüentemente se conduzir embora seja conduzido; e enquanto que por seu
espírito ele tende a um fim, seu coração o entranha insensivelmente a um outro.
49 Não se é nunca tão feliz nem tão infeliz quanto se imagina. 72 Se o amor é julgado pela maior
parte de seus efeitos, ele se parece mais com o ódio do que com a amizade. 110 Não se dá nada tão
liberalmente quanto seus conselhos. 133 As únicas boas cópias são aquelas que nos fazem ver o
ridículo dos maus originais.
135 Algumas vezes se é tão diferente de si-mesmo quanto dos outros.
194 As faltas da alma são como as feridas do corpo: por mais cuidado que se tome em curá-las, a
cicatriz aparece sempre, e elas estão sempre em perigo de reabrir.
195 O que nos impede freqüentemente de nos abandonarmos a um só vício, é que temos muitos
deles.
200 A virtude não iria tão longe se a vaidade não a acompanhasse.
207 A loucura nos segue por todo o tempo da vida. Se alguém
parece sábio, é apenas porque suas loucuras são
proporcionais à sua idade e à sua fortuna.
218 A hipocrisia é uma homenagem que o vício rende à virtude.
228 O orgulho não quer dever, e o amor-próprio não quer
pagar.
230 Nada é tão contagioso quanto o exemplo, e nós não fazemos nunca grandes bens nem grandes
males que não produzam semelhantes. Nós imitamos as boas ações por emulação, e as más pela
malignidade de nossa natureza que a vergonha retinha prisioneira, e que o exemplo põe em
liberdade.
237 Ninguém merece ser louvado pela bondade se não tiver
Pedro Luis Ribeiro de Santi
força para ser mau: toda outra bondade é apenas uma preguiça ou impotência da vontade.
308 A moderação foi tomada uma virtude para limitar a ambição dos grandes homens, e para
consolar as pessoas medíocres de sua pouca fortuna e de seu pouco mérito. 311 Se há homens cujo
ridículo jamais apareceu, é porque não se procurou bem.
3610 ciúme nasce sempre com o amor, mas nem sempre morre com ele.
368 A maior parte das mulheres honestas são tesouros escondidos, que estão em segurança apenas
porque não são procuradas.
377 A maior falta de penetração não é não chegar até o fim, mas ultrapassá-lo.
389 O que torna a vaidade dos outros insuportável, é que ela fere a nossa.
457 Nós ganharíamos mais em nos deixar ver tais como somos, que em tentar parecer o que não
somos.
458 Nossos inimigos se aproximam mais da verdade, nos julgamentos que fazem de nós, do que nós
mesmos.
459 Há vários remédios que curam o amor, mas nenhum é infalível.
496 As discussões não durariam tanto se o erro estivesse de um lado só.
[Máximas suprimidas depois da primeira edição]
Algumas vezes é agradável a um marido ter uma mulher
ciumenta: ele ouve sempre falar do que mais ama.
18 Na adversidade de nossos melhores amigos, encontramos
sempre alguma coisa que não nos desagrada.
47 A confiança que se tem em si faz nascer a maior parte da
que se tem nos outros.
60 Quando não se encontra seu repouso em si-mesmo, é inútil procurá-lo em outro lugar.
A idéia é basicamente a mesma. O reconhecimento de que teve um prosseguimento nos
séculos seguintes.
Em conclusão, penso que podemos considerar o século XV como o primeiro e aquele em
que mais é apresentado como tema afirmação e construção do eu, quer para levá-lo a seu ponto ma
alto, quer para denunciar esse novo soberano. Nos séculos seguintes, o eu tomará aspectos mais
refinados e complexos e, gradativamente, sua soberania será posta em cheque.
Questões para discussão
1. Quais seriam as condições que talvez tenham facilitado o surgimento no século XVII de filósofos
que se tornaram conhecidos como "moralistas"?
2. Como o discurso crítico põe em risco o projeto de Descartes?
3. Por quê as 'Máximas' de La Rochefoucauld nos fazem rir?
10
O PÚBLICO E O PRIVADO
O eu, entendido como totalidade, passa a ser visto
como uma exterioridade. O que fora excluído, emerge
como mundo íntimo.
A partir da disposição do "eu" como centro do mundo no século XVII, com freqüência
considerado como o século da inauguração da Modernidade, derivaram-se diversos caminhos da
formação de nossa experiência atual. Acompanhar todos estes caminhos ao longo dos séculos
seguintes é quase impossível, de forma que só poderemos apontar algumas das tendências que
conduziram à Psicologia. Quase qualquer opção por autores parecerá incompleta e mesmo
arbitrária, seguindo as preferências pessoais do autor. Procuremos de todo o modo desenvolver
alguns destes fios.
Talvez seja prudente partirmos de um dos temas mais clássicos na história do século XVIII:
o da relação entre as esferas pública e privada. Como vimos nos capítulos anteriores, no século
XVII, o eu passou a ser tomado como centro do mundo: a própria essência do homem foi
identificada à sua racionalidade e consciência. O eu pôde acreditar-se como sendo a totalidade da
experiência humana; tudo que não se identificasse a ele seria tomado como loucura. Não era
admissível a referência a algo que habitasse um espaço fora do eu, assim como na pintura barroca a
figura impunha-se na técnica do "claro/escuro", restando um vazio representativo no fundo.
No século XVIII, as mais diversas fontes nos sugerem que este espaço excluído ao eu
passou a ser gradativamente iluminado. O eu deixará de ser tomado como totalidade e, cada vez
mais, tomará o aspecto de uma apresentação social, uma auto-imagem cultivada e civilizada que
encobre, no entanto, algo mais que habita e constitui as pessoas e que elas procuram manter em
segredo.
Este será o espaço da privacidade, que só foi tornado possível desde que a crença em um
Deus onipresente e onisciente deixou de dominar a experiência do homem ocidental. A privacidade
abarcará todo um universo de desejos e pensamentos anti-sociais, que devem ser ocultos pela
etiqueta e pelas boas maneiras.
A Modernidade assiste a uma dessacralização do mundo e à imposição de valores cada vez
mais pragmáticos e fundados no homem. Hobbes já abrira este espaço para a privacidade no século
anterior, ao afirmar que o que interessa ao Estado é manter o controle sobre as ações dos homens;
seu pensamento pode permanecer em total liberdade.
Daí derivam várias imagens caricaturais sobre o este século. Ao mesmo tempo em que ele é
considerado o século das luzes, com os desdobramentos do racionalismo cartesiano, ele é também o
século do artifício. Por exemplo, as roupas da corte são altamente rebuscadas, cheias de adereços e
armações, de forma que dificilmente pode-se saber como seria o aspecto real do corpo que o veste.
Floresce também no período cada vez mais a etiqueta e a multiplicação das regras de conduta que,
em geral, servem para que se estabeleça uma hierarquia e uma precedência entre as pessoas.
Na História da vida privada (Vol. 3), há um série de exemplos hilariantes de como, em
todos os níveis sociais passa-se a distinguir estas esferas e o preço que se paga pelo desrespeito a
esta delimitação. Conta-se, por exemplo, sobre a asouade, uma espécie de festa popular de
execração pública destinada a punição daqueles que deixam vazar sua privacidade: um certo
homem que estava bebendo com amigos é repreendido em público e levado para casa aos tapas por
sua mulher; no dia seguinte, ele é retirado de casa à força, é montado num asno com vários enfeites
degradantes e desfila pela cidade como alvo da humilhação da comunidade -se ele tivesse se
limitado a apanhar da mulher na privacidade de seu lar, não haveria problema... E preciso saber
manter em segredo determinados prazeres.
O romance As ligações Perigosas, de Chauderlos de Laclos (que ganhou uma versão
cinematográfica brilhante em 1987), talvez represente ao máximo o distanciamento entre, de um
lado, a construção e a manutenção de uma imagem social e, de outro, o universo perverso oculto
sob as máscaras. Seu formato é o de uma troca de cartas, o que é um artifício comum na época
-assim como o do diário íntimo-, dando ao leitor a impressão prazerosa de estar invadindo um
território privado e, assim, proibido. O autor afirma que as cartas publicadas são verídicas e que sua
publicação destina-se a uma "finalidade didática": mostrar como acabam as pessoas más. Tudo isso
soa como um disfarce do autor para amenizar a ironia com que descreve os jogos de poder e
vaidade -únicos valores presentes na corte.
TEXTO ANEXO - Donatien-Alphonse-François Sade
A referência a este romance nos leva a evocar outro autor do século, Donatien-AlphonseFrançois Sade, cuja obra revela o fim da possibilidade de buscar uma fundamentação para a moral
apoiando-se na fé ou na crença em um Deus transcendente. Com isto, desmascaram-se também
alguns aspectos da natureza humana.
Detenhamo-nos por algum tempo em uma observação sobre o pensamento de Sade.
"De sua sexualidade ele fez uma ética, esta ética ele manifestou em uma obra literária; é por
este movimento refletido de sua vida adulta que Sade conquistou sua verdadeira originalidade"23
O século XVIII é conhecido como o século das luzes, o século em que a razão, livre de
qualquer coerção moral ou religiosa, estendeu-se sobre todo e qualquer objeto, inclusive sobre si
mesma, interrogando-se sobre seus limites enquanto pertencente, como outro fenômeno qualquer, à
grande referência do século: a natureza. Neste quadro, Sade aparece como um homem do seu tempo
-a não ser que se considere que ele tenha levado os princípios iluministas a um tal ponto, ter
"esticado a corda" em tal medida em seus questionamentos à moral, que ele tenha rompido com este
quadro de referênciasprojetando-se nos séculos seguintes como um pensador ainda original.
De início, é importante esclarecer que esta análise da obra de Sade é extremamente limitada,
e que tomaremos apenas duas de suas obras: La philosophie dans le boudoir (A filosofia na alcova)
e Les infortunes de la vertu (Os infortúnios da virtude).
La philosophie dans le boudoir é uma obra pedagógica. Trata-se de educar uma jovem,
certamente bem dotada e disposta, a percorrer os melhores caminhos para a obtenção de prazer. Nas
primeiras lições, os instrutores deparam-se com uma certa resistência da aluna que antepõe sua
educação anterior, os princípios morais que lhe foram transmitidos por seus pais (note-se que o pai
de Eugénie, nossa heroína, concordou com sua reeducação, num bom exemplo da hipocrisia que
Sade sempre denuncia). Cada princípio moral apresentado por Eugénie é imediatamente
desmontado por Dolmancé, seu principal mestre. Assim, no decorrer do texto, as idéias de que
assassinato, incesto, estupro, assalto ou qualquer forma de satisfação sexual devam ser evitados em
nome da moral acabam por se desmanchar diante de uma argumentação implacável que caminha
sempre no mesmo sentido. Em um certo ponto de sua doutrinação, Eugénie pergunta se, então, não
haveria diferença entre o bem e o mal. A resposta de Dolmancé é definitiva:
"Ah, não duvide disso, Eugénie, estas palavras de vício e virtude nos dão apenas idéias
puramente locais. Não há nenhuma ação, por mais singular que você possa supô-la, que seja
verdadeiramente criminosa, nenhuma que se possa realmente chamar virtuosa. Tudo está em razão
de nossos costumes e do clima que habitamos, o que é crime aqui freqüentemente é virtude a umas
cem léguas de distância, e as virtudes de um outro hemisfério poderiam bem ser crimes para nós."
(p. 79)
Assim, para Sade, todo princípio moral universal é uma quimera. Não existe um juiz
transcendente que sustente uma conduta necessária. Se a virtude se apoia na religião, ela não se
apoia em nada, desde que Sade sustenta que Deus não existe. A única instância a que se pode apelar
é a natureza, à qual o homem pertence, como qualquer outro animal, e a quem mesmo a morte não
importa, pois ria não passa de uma transmutação que não cessa de se operar.
A felicidade já não pode ser buscada em uma referência I
K
icrna, mas nos "caprichos da
imaginação", contra os quais nenhum limite possui legitimidade para impor-se. Em conclusão à sua
umentação, Dolmancé diz:
"Fôda, Eugénie, Fôda pois, meu caro anjo; teu corpo pertence só a você; não ninguém além
de você no mundo que tenha o direito de gozar dele e o fazer gozar como bem te pareça." (p. 84)
Antes de abordarmos com um pouco mais de calma a questão da imaginação, gostaríamos
de levantar uma questão que põe em dúvida a interpretação que demos à abordagem da moral por
Sade. ("oncomitantemente a esta crítica de Sade a qualquer moral, surge um "elogio ao crime",
como no seguinte trecho:
"Esses princípios e seus gostos são levados por mim até o fanatismo, e o fanatismo é a obra
das perseguições de meus tiranos (...) O crime é a alma da lubricidade. Que seria um gozo que não
fosse acompanhado pelo crime? Não é a idéia do objeto da libertinagem que nos move, é a idéia do
mal".24
É um tanto desconcertante nos depararmos com a idéia de crime depois de o próprio Sade ter
demonstrado a ausência de critérios para pensarmos em vício ou virtude. Haveria, ao contrário do
que viemos desenvolvendo até aqui, no "Fazer o mal" um preceito moral de Sade? Não parece ser
possível, neste momento, responder de modo mais definitivo, mas gostaríamos de apontar duas
linhas de idéias que poderiam nos conduzir a uma solução para esta questão:
1. A primeira possibilidade está na própria citação acima: na idéia de que o fanatismo de
Sade seria fruto da perseguição de seus tiranos, poderíamos pensar que o elogio ao crime se
inscreve não como princípio moral transcendente, mas como resistência a uma determinada
configuração social: "Em uma sociedade criminosa, é preciso ser criminoso." (p. 58)
2. Uma outra possibilidade leva à idéia de que para Sade toda a sexualidade seria, em si,
crime, desvio, ou, como diz Simone de Beauvoir:
"Sade é o único a descobrir a sexualidade como egoísmo, tirania, crueldade; em um instinto
natural, ele apreende o convite ao crime." (p. 101)
Apenas para concluir este ponto, gostaríamos de lembrar que em "Les infortunes de la
verta", Sophie (Justine), ao ouvir os conselhos de La Dubois -outra de suas 'mestras'- para que
abandonasse sua virtude inflexível, argumenta que isto não poderia ser cobrado dela na medida em
que esta é sua natureza. La Dubois não consegue contra-argumentar...
Retomando à linha que seguíamos, gostaríamos de nos voltar agora para a questão da
imaginação e da fantasia em Sade. Cremos poder dizer que Sade acredita que o homem só pode ser
feliz seguindo sua imaginação e que ele realiza uma separação clara entre fantasia (que tomaremos
como sinônimo de imaginação) e o objeto em que ela se realiza. Num dado momento, ao discutir o
amor, Dolmancé recrimina-o como uma prisão e afirma que não há amor que resista a uma boa
reflexão. Além disso, insiste em que o objeto de amor pode ser substituído indefinidamente, por
vezes com vantagem, mostrando assim um certo desprezo por este. Já a fantasia ocupa um lugar
privilegiado na obtenção de prazer. Por exemplo, quando Madame de Saint-Ange relata a forma de
prazer que mais agradava a seu idoso marido, Eugénie espanta-se, qualificando-a de "fantasia
extraordinária", ao que Dolmancé responde:
"Nenhuma pode ser qualidade assim, minha cara, todas estão na natureza; ela se satisfez
criando formas, diferenciando seus gostos. Como suas figuras, e nós não devemos mais nos
espantar da diversidade que ela colocou em nossos afetos (...) A imaginação é o aguilhão dos
prazeres; naqueles destas espécies, ela regula tudo, ela é o que move tudo; ora, não é através dela
que se goza?" (p. 101)
É na fantasia que a particularidade dos apetites se apresenta, ela é a "natureza" de cada um.
E a fantasia tomada ato que produz o gozo. Depois deste quadro desilusor pintado por Sade,
poderíamos pensar que ele pregasse uma revolução nos costumes, já que não haveria mais qualquer
fundamento legítimo para a moral.lVIas não é isto que acontece. Sade diz que, se saíssemos por aí
mostrando nossos desejos pelo mundo, seríamos presos ou mortos, o que seria estúpido. Ele prega
então uma hipocrisia social: quando em público, devemos jogar o jogo social, pagar impostos,
cumprir com nossas obrigações civis e mantermos um comportamento adequado a nossa cultura;
porém, quando retirados à vida privada, não haveria qualquer motivo para que abríssemos mão de
qualquer um de nossos desejos. A alcova é o lugar preservado para o crime. O pensamento de Sade
é amoral por desqualificar toda tentativa de fundamentar um critério absoluto de moral; depois dele,
a moral passou a ser fundamentada em valores propriamente ligados à convivência humana.
Luis Roberto Monzani, a partir de seu interesse pela obra de Sade -autor que certamente faz
parte da vertente crítica- busca retirar o estigma de aberração que pesa sobre sua obra e considera-a
como a expressão máxima de outra corrente da Modernidade, que não a cartesiana. Segundo
Monzani, "o homem da Modernidade é dominado por seu desejo". O homem sempre buscou o bem
para si: na Idade Média, o bem era identificado com os ideais religiosos, únicos para todos. Com a
perda destes valores (a que já nos referimos várias vezes no decorrer deste trabalho) a busca do bem
perde seu objeto absoluto e passa a ser a procura de um bem para si e ela toma a forma de busca
pelo prazer.
Esta seria uma outra via para entender o nascimento do individualismo e da valorização
absoluta do 'eu'. Mas, além disso, por esta via afirma-se a presença de uma constante inquietude no
homem, que o impele a buscar satisfação nos objetos mais variados indefinidamente. Starobinski
toma este movimento de busca pelo prazer como uma celebração da liberdade humana (no século
XVIII). Monzani, no entanto, recorrendo de Hobbes a Sade, mostra-nos que o homem não é dono
deste desejo, sendo pelo contrário atravessado por peste. Daria-se, então, na Modernidade, o embate
entre estas ordens de dissolução e as constantes tentativas de apropriação pe MÚSICA –
Mozart
Penso que esta oposição entre mundo público e mundo privado pode ser ilustrada pela obra
de Mozart. Como se sabe, sua obra é extremamente ampla e variada, sobretudo se considerarmos
que ele morreu com pouco mais do que 30 anos. Sua biografia já é marcada desde a infância pelo
caráter artificioso: desde os cinco anos de idade, compunha e se apresentava por toda a Europa
como um prodígio, capaz de tocar mesmo de olhos vendados.
Mozart trabalhou para a corte e devia fazer uma música que a agradasse. Boa parte de sua
obra é composta de peças leves, gostosas, relativamente fáceis de serem memorizadas e
reproduzidas. Até hoje, ele é um dos músicos clássicos com temas mais conhecidos. Esta música
deve ser acessível ao gosto do leigo (dizem que a música de Mozart pode desfrutada em diversos
níveis de profundidade, do leigo ao especializado). Cito, como exemplo, talvez a peça mais
conhecida de todo o repertório clássico, a Pequena serenata noturna, cujo tema inicial, oscilando
entre a tônica e a dominante, produz um impacto imediato, sendo sempre utilizada em concertos de
divulgação para um público não especializado.25
Por outro lado (e Mozart tem vários), sua obra possui também momentos de inspiração
profunda e densa, quase romântica. Estas peças já exigem uma concentração maior do público e não
se prestam tão bem a concertos em parques. Nelas, transpira a vida mais íntima de Mozart.26
Questões para discussão
1. Qual é o papel da distinção entre mundos público e privado na formação da subjetividade
moderna?
2. Sade é imoral (vai contra a moral dominante) ou amoral (não possui nenhum critério
moral)?
3. A partir de Sade, que idéia pode ser feita sobre a natureza humana?
25
Ouça o Primeiro Movimento da "Pequena serenata noturna", no CD "Eine kleine Nachtmusik,
Deutsche Grammophon, 1983"
26
Como exemplo, pode-se ouvir a cena da ceia com o fantasma do Comendador, na ópera "Don
Giovanni" (no CD "Don Giovanni, Berliner Philarmoniken, Deutsche Grammophon, 1986"). Nessa
cena, temos três cantores em uma ária cheia de dramaticidade, onde Don Giovanni enfrenta o
comendador que o assassinara no início da ópera, tendo vindo para levá-lo para o inferno.
11
TEMPESTADE E ÍMPETO: O ROMANTISMO
O iluminismo, que reconhecia na razão a essência do homem e na
cultura sua maior realização, recebe a crítica do romantismo: a
essência humana seria sua natureza pulsional, surgindo a ânsia pelo
retorno ao mundo natural.
Apontamos, no início da parte anterior, por que meios o século XVIII passou a iluminar o
espaço excluído ao eu. Ao longo do século, surgiram tendências de pensamento que chegaram
mesmo a inverter a relação de importância existente, privilegiando justamente o que estava
excluído.
Uma das imagens mais recorrentes desse século foi a de que o real é encoberto por um véu.
Impõe-se a necessidade de desvelá-lo ou revelá-lo. O eu passa cada vez mais a ser tomado como
uma máscara que encobre a verdade. A vida social -urbana e civilizada- será acusada de afastar o
homem de sua verdadeira natureza. Este último termo, aliás, é essencial na compreensão do
Romantismo: ele representa uma espécie de saudosismo de um estado natural perdido pelo homem,
que seria preciso reencontrar.
A natureza a que se refere, é preciso dizer, é altamente idealizada. Quando vemos pinturas
clássicas do período, sempre podemos contemplar uma natureza amena e acolhedora: os passeios
pelo campo parecem se passar sempre num clima ideal, ensolarado e sem insetos. A referência
óbvia, ainda que implícita, é a da natureza entendida como o jardim do Éden.
Neste sentido, o Romantismo nasce como um movimento de crítica à Modernidade, ou ao
menos como uma crítica ao Iluminismo, com seu exacerbado racionalismo. Recusando o princípio
cartesiano segundo o qual o homem se caracteriza como um ser pensante, o romantismo fez
ressaltar que a essência humana está em sua natureza passional. Esse movimento, que estende do
final do século XVIII a meados do XIX, apresentará uma idéia de natureza já não tão amistosa: da
literatura de Goethe à pintura de Tumer, podemos assistir a uma natureza violenta, que ultrapassa
em muito a potência da vontade consciente. O eu é invadido por aquilo que procurava excluir.
A separação entre as esferas pública e privada levava à concepção de que aquilo que
mostramos socialmente é o que temos de "bom", do ponto de vista do convívio social, enquanto que
o privado envolvia a idéia do que era excluído à expressão pública, algo potencialmente anti-social.
O universo "criminoso" de Sade não deixa dúvidas a este respeito. Mas há uma contrapartida; não é
difícil perceber que, neste mesmo sentido, aquilo que mostramos socialmente possa ser considerado
"falso", por oposição àquilo que escondemos e que representaria nossa verdadeira natureza. O que é
excluído do eu pode afigurar-se como o mais legítimo e puro em nós.
O Romantismo acabará por realizar de fato uma forte crítica à racionalidade, sem escapar ao
campo da Modernidade, no entanto. A figura de um eu profundo, interior, puro, aquém da corrupção
da influência do meio; a crença ainda em uma individualidade absoluta, irredutível a qualquer
explicação e controle, acaba por se mostrar um modo a mais de afirmar um sujeito como
fundamento.
O título deste Capítulo é uma referência a um movimento cultural e artístico do final do
século XVIII, do qual Goethe fez parte, o Sturm und Drang ("tempestade e ímpeto"). Quando
pensamos hoje em romantismo, em geral vem-nos à mente imagens de delicadeza e suavidade
amorosa; o título do movimento alerta-nos que o romantismo27 está muito longe disso.
Para passarmos uma idéia de como se apresentou o romantismo, faremos uma longa referência a
uma das primeiras novelas de Goethe, Werther.
27
O romantismo tem as mais diversas formas, sendo, na realidade, um título que se refere a
expressões bastante distintas. Certamente, ao longo do século XIX, um de seus formatos será este
delicado, de seu sentido mais usual. Pedro Luis Ribeiro de Santi
TEXTO ANEXO - Johann Wolfgang Goethe
Johann Wolfgang Goethe nasceu em 1749 e morreu em 1832. Ele é considerado o maior
escritor da língua alemã e sua obra é muito extensa, sendo dividida em vários períodos. Werther
pertence às suas obras de juventude -foi escrito em 1774- e possui um forte componente
autobiográfico. Seu formato também é o de troca de cartas. Em alguns trechos, trata-se de um diário
íntimo, causando no leitor, uma vez mais, a impressão de cumplicidade. Através desse texto,
poderemos ter contato com a sensibilidade romântica e perceber como muito do que nós pensamos
hoje sobre a relação amorosa tem como modelo o romantismo.
A situação inicial é a de um jovem culto da cidade que se cansa de sua vida urbana e busca
refúgio na natureza. Já se trata de uma disposição romântica. Ele se refugia na fazenda de um
amigo, que o recebe de bom grado. Ao longo de toda a história ele se corresponde com um amigo
da cidade, Wilhelm, ao qual confidencia suas idéias.
WERTHER
"Maio, 22
A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa
impressão também acompanha-me por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham
encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas
a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar
nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranqüilidade
quanto a certos pontos nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um
presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as parede da sua
célula... tudo isso, Wilhelm, faz-me emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim
mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens
nítidas e forças. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo
na minha viagem através do mundo." (p. 19)
Poderíamos nos lembrar, aqui, de Hamlet, com seu desencanto com relação ao mundo e o
desenvolvimento de um sentido profundo de interioridade. Este elemento alinha o romantismo
como crítica ao humanismo e sua crença no valor e na liberdade do homem. Pouco tempo depois,
Werther escreve, comovido:
"Junho, 16
A razão por que eu não lhe tenho escrito? E é você que mo pergunta, você que se inclui entre
os sábios? Pode bem adivinhar que sou feliz, e mesmo... Em duas palavras, conheci alguém que
tocou o meu coração. Eu... eu não sei o que diga... E um anjo! . . . Bolas! Já sei que todos dizem
isso da sua amada, não é verdade? Entretanto, é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita;
nem por que é tão perfeita. Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser. (...) Tudo quanto acabo
de dizer não passa de pobres abstrações que não dão a menor idéia da sua individualidade." (p. 2627)
Quando seu amigo propôs a visita a uma fazenda vizinha, já havia avisado a Werther que ele
não se devia apaixonar, pois a moça já era noiva, o que então lhe deixara indiferente.
Como já seria de se esperar, a impossibilidade impõe uma predisposição a uma atração irresistível:
"Achei original tudo quanto ela disse, vendo em cada palavra novos encantos, novos raios de
inteligência iluminar sua fisionomia, que transbordava de contentamento à medida que ela se sentia
compreendida por mim." (p. 30)
Tendo a oportunidade de dirigir-se a ela em uma dança de salão, ele procura conferir a
situação do noivado. Ela responde com clareza estar noiva de um rapaz chamado Alberto. Embora
ele já tivesse sido avisado sobre isto, acaba por enrolar-se nos passos da dança momentaneamente,
recuperando então o controle.
A partir daqui, gradativamente Werther vai perdendo o controle sobre si. A princípio,
procura manter-se próximo a Carlota, mesmo sabendo que seu sentimento não é correspondido. Ela,
por sua vez, parece gostar de ter um rapaz tão interessante -e que, sobretudo, jamais se torna
inconveniente-; a lhe fazer companhia durante as ausências do noivo.
Como era de se esperar, ele começa a alimentar fantasias de reciprocidade e nos dá uma
verdadeira aula sobre a idealização do objeto amoroso e sobre a construção do eu:
"Não, eu não me engano! Li nos seus olhos negros um verdadeiro interesse por mim e pela
minha sorte. Sim, eu sinto que meu coração pode crer que ela... Ousarei, poderei pronunciar estas
palavras que resumem o paraíso?... Eu sinto que ela me ama! Ela me ama! E quanto eu me valorizo
a meus próprios olhos, quanto... eu posso dizer isto a você, que saberá compreender-me., .quanto eu
me adoro a mim mesmo, depois que ela me ama! (...) E, no entanto, quando ela, com tanto calor e
afeto, fala do seu noivo...é como se eu fosse um homem despojado de todas as honradas e
dignidades, e ao qual arrebatassem a própria espada. (...)
Ela me é sagrada. Todo desejo emudece em sua presença. Não sei o que sinto quando estou
junto dela; é como se toda a minha alma estivesse subvertida." (p. 48-9)
Numa conversa com Alberto, que ele reconhece ser um rapaz razoável, apresenta um
verdadeiro manifesto romântico:
"-Oh! essa gente razoável! -exclamei eu, sorrindo. -Paixão! Embriaguez! Loucura! E vocês
se conservam tão calmos, tão indiferentes, vocês, os homens da moral! Esmurram o bêbado;
repelem o louco, cheios de asco; e passam adiante, como o sacrificador, agradecendo a Deus, como
o fariseu, por não haver feito vocês iguais a um desses desgraçados!... Tenho-me embriagado mais
de uma vez, as minhas paixões roçaram sempre pela loucura, e disso não me arrependo, porque só
assim cheguei a compreender, em uma certa medida, a razão por que, em todos os tempos, sempre
foram tratados como ébrios e como loucos os homens extraordinários que realizaram grandes
coisas; as coisas que pareciam impossíveis...Mas, ainda na vida ordinária, nada mais intolerável do
que a todo momento ouvir gritar, sempre que um homem pratica uma ação intrépida; nobre e
imprevista: "Esse homem está bêbado! É um louco! Que vergonha, ó todos vocês que vivem em
jejum! Que vergonha, ó homens sensatos!" (p. 59)
Mergulhado em sua paixão, Werther percebe a fragilidade do eu "Que é o homem, esse
semideus tão louvado? Não lhe faltam as forças precisamente quando lhe são mais necessárias?
Quando ele toma alento na alegria, ou se abisma na dor, não se imobiliza em um ou em outro
sentido e retoma a banal e fria consciência de si mesmo, no momento exato em que aspira a perderse na plenitude do infinito?" (p. 119)
Se, inicialmente, Werther se sentia feliz pelo simples fato de sentir sua paixão, na medida em
que o tempo passa e este sentimento não encontra expressão, ele passa quase que a intoxicá-lo e
nasce um sentimento progressivo de amargura. Agora Werther sofre intensamente e procura fugir
deste sofrimento distanciando-se de Carlota. Como era previsível, ele não agüenta a distância por
muito tempo, mas quando volta, eleja perdeu a possibilidade de se controlar e passa a dar alguns
vexames públicos na presença de Carlota, chorando ou levantando e partindo bruscamente de algum
encontro social.
Em um último encontro crucial com ela, ao declarar-lhe pela primeira vez claramente seu
amor, ouve a seguinte "interpretação" -bastante aguda, por sinal- que lhe deixa absolutamente
ofendido:
"-Apenas um momento de sangue-frio, Werther! Você não sente que é tudo por sua culpa,
que você- se perde voluntariamente? Por que hei de ser eu, Werther, eu, que pertenço a outro,
precisamente eu? Temo, temo muitíssimo que seja apenas a impossibilidade de me possuir que faça
você desejar-me com tanto ardor!" (p. 136)
A partir deste momento, ambos concordam em que não mais se devem ver. Werther,
percebendo que não possui mais controle sobre si, decide tomar a última atitude que ainda parece
ter sob controle: suicidar-se. Ele planeja incluir Carlota no suicídio, sohcitando as pistolas de caça
de sua família e, afinal, de fato se suicida. Algumas cartas são deixadas para amigos e, é claro^ para
Carlota:
"É a última vez! É a última vez que abro os olhos. Ai de mim, eles não verão mais o sol, que
se esconde agora nas nuvens de um céu sombrio... Tomai luto, ó natureza, porque o vosso filho, o
vosso amigo, o vosso amante aproxima-se do fim. Ó Carlota, só às impressões confusas de um
sonho é comparável, talvez, o sentimento que se experimenta ao dizer: "Eis a minha derradeira
manhã!" A derradeira! Carlota, esta palavra derradeira, não a entendo. Não estou aqui em todo o
meu vigor? E amanhã, ver-me-ão estendido sobre a terra. Morrer! Que é isto? Veja, é como se
sonhássemos quando falamos da morte. Vi morrer muita gente, mas a humanidade é tão limitada
que se mostra incapaz de conceber o começo e o fim da sua existência. Neste momento, ainda me
pertenço! Pertenço-lhe, também, ó minha bem amada. E, bastará um instante...separados, perdidos
um para o outro... para sempre, talvez... Não, Carlota, não!.. Como poderei ser aniquilado? Como
poderá você ser aniquilada? (...)
Não estou sonhando, não estou delirando. Ao aproximar-me do túmulo, meus olhos vêem
mais claro. Nós subsistiremos! Nós nos tomaremos a ver! Verei sua mãe; sim, eu verei, eu a
encontrarei, abrirei meu coração diante dela! Sua mãe! Aquela de quem você é a perfeita imagem."
(p. 152-4)
Assim, após a dissolução do eu, surge a fantasia de despersonalização em um reencontro
místico em um plano superior e mais puro. Trata-se de um reencontro com a origem, figurada na
referência à mãe de Carlota.
O homem romântico crê-se único, suas experiências mais profundas parecem-lhe
incomunicáveis e radicalmente individuais. Desta concepção de experiência humana, nasce a idéia
de 'gênio', entendido como um sujeito especialmente dotado de alguma característica; esta não pode
ser aprendida ou transmitida, mas pertence à essência mesma deste indivíduo. Trata-se de um dom,
um presente (em inglês, o termo gift, traduz os dois sentidos). Este homem não tem opção a não ser
viver para a realização de seu destino.
Talvez possamos exemplificar a idéia de gênio recorrendo a um dos primeiros músicos
românticos: Beethoven.
MÚSICA - Beethoven
A música e a biografia de Beethoven trazem-nos fortes elementos românticos. Consta que
foi ele que criou o mito do maestro atormentado, autoritário e totalmente mergulhado na música
diante da orquestra. Ainda em Mozart, as luzes do teatro permaneciam acesas durante a execução da
música e mesmo algumas manifestações mais ruidosas da audiência eram admissíveis. A partir de
Beethoven, as luzes são apagadas e exige-se o mais absoluto silêncio.
O fato de que Beethoven, um dos maiores compositores existentes, tenha perdido
gradativamente sua audição chega a uma tragicidade patética. Esta tragicidade é acentuada pelo fato
de que ele tenha continuado a compor e de forma ainda mais intensa. Sua música parece expressar
de forma direta o tormento ou entusiasmo em que se encontrava no momento da composição. As
peças freqüentemente mudam bruscamente de andamento, revezando temas perturbados com
melodias suaves. A sensibilidade romântica, com sua nostalgia por um universo perdido, produz
com Beethoven peças de uma profunda melancolia28.
Beethoven não se revelou um gênio desde cedo. Foi apenas quando já adulto, no início do
século XIX, que sua obra floresceu. Mas, uma vez revelado seu talento, a realização de sua obra
passou a ser o centro de sua existência. Sua correspondência no fim da vida o revela triste e
desencantado; a idéia de suicídio lhe ocorre, mas é afastada com a justificativa de que ele tinha uma
obra a realizar. O sofrimento do eu é menos importante do que a realização desse dom maior que se
lhe perpassa.
Questões para discussão
1. Qual é a crítica do Romantismo ao Iluminismo?
2. Qual é a diferença entre a definição de Romatismo do fim do século XVIII e a forma
como o definimos hoje, no sentido comum?
3. Como a noção de "gênio" contribuiu para o desenvolvimento do individualismo?
12
A AUTO-CRÍTICA DA RAZÃO
No interior do próprio iluminismo, surge um
movimento de auto-crítica às possibilidades da razão
alcançar o conhecimento pleno.
Quando dizemos que, no século XVIII, se inicia um processo de crise da noção de
subjetividade afirmada até o século anterior, não nos referimos apenas a ataques externos ou à
valorização daquilo que escapa ao eu. No interior da própria racionalidade iluminista, a razão será
tomada como objeto de investigação e suas pretensões quanto à possibilidade de alcançar a verdade
plena será posta em cheque..
Descartes havia debruçado sua razão sobre os objetos do mundo e tinha chegado à conclusão
de que todos eram incertos, restando como único ponto fixo e absoluto o próprio eu, enquanto ser
pensante. Com Immanuel Kant, um dos autores mais da história da filosofia, o próprio pensamento
será tomado como objeto de investigação. Neste movimento reflexivo (a razão pensa sobre si
própria), trata-se de investigar as possibilidades, os limites da razão, impostos por sua própria
constituição.
Sua principal obra a este respeito é a Crítica da razão pura, à qual faremos apenas uma
referência extremamente simplificada. Kant chega à conclusão de que o pensar é organizado por
categorias, estruturas que organizam tudo o que nos chega do mundo. Por exemplo, a categoria da
relação "causa e efeito", leva o pensamento a crer que, quando um evento segue-se a outro, o
primeiro é causa do segundo, mesmo que eles sejam independentes.
Neste sentido, todo o nosso conhecimento sobre o mundo seria condicionado e "formatado"
por nossas estruturas cognitivas, Assim, chega-se à conclusão de que nunca temos acesso a coisas
em si, mas apenas à fenômenos. Ou seja, ao mundo tal como somos capazes de apreendê-lo, como
se dá para nós. Kant não duvida da existência das coisas em si exteriores ao homem, mas o eu
pensante jamais poderia ter acesso a elas.
Isto não significa que a razão é inútil ou que devesse deixar de procurar compreender o
mundo. Ela deve aprender a manter-se em seus limites, dentro dos quais poderá produzir um
conhecimento confiável. A razão deve abster-se de questões transcendentais, que ultrapassam em
muito seu alcance, tais como a existência de Deus, da alma ou da liberdade. Sobre tais assuntos,
podemos discutir interminavelmente acumulando razões a favor e contra cada uma sem nunca
chegarmos a uma conclusão.
Sua área de ação deverá manter-se no limite dos fenômenos, àquilo de que temos uma
apreensão direta. Sua tarefa já será mais humilde, ao invés de chegar à verdade absoluta, ela deve
procurar produzir hipóteses, modelos teóricos através dos quais seja possível organizar e dar sentido
aos fenômenos. Toda teoria, assim, é necessariamente uma criação humana provisória, que a
qualquer momento pode ser superada por outra que a abarque e dê conta de um maior número de
fenômenos; este movimento é infinito. Não a qualquer perspectiva de que se chegue a uma teoria
que coincida com o mundo.
O pensamento de Kant, na seqüência das idéias de Descartes, será uma das principais
influências no modo de se produzir ciência no século XIX. Vejamos como um autor do século XX,
Cassirer, descreve o procedimento da razão no século XVIII:
"Ele consiste em partir de fatos solidamente estabelecidos pela observação, mas não basta
que os fatos estejam 'ao lado' uns dos outros, é preciso que eles se encaixem uns 'nos' outros, que a
simples convivência se revele, bem considerada, como dependência, que da forma de agregado se
passe à forma de sistema. Esta forma sistemática não pode evidentemente ser imposta o exterior aos
fatos; é preciso que ela sobressaia. Os 'princípios' que nós precisamos procurar em toda parte, e sem
os quais nenhum domínio de um conhecimento seguro é possível, não são tais ou tais ponto de
partida escolhidos arbitrariamente pelo pensamento e aplicados a força à experiência concreta para
modelar".29
Ainda segundo Cassirer, o trabalho do pensamento deve seguir do particular para o
universal, supondo-se que o primeiro está já submetido a um princípio universal. Os princípios a
que se chega não possuem, no entanto, o caráter de absolutos. Eles são relativos, ou melhor,
provisórios, e apontam para um limite circunstancial da razão, que poderão ser abandonados e
ultrapassados. Eles são de fato "princípios" para novos avanços da razão em seu progresso
incessante.
O eu encontra-se aqui com uma visão positiva de suas possibilidades, mas já não onipotente.
Questões para discussão
1. Quais são os limites que Kant vê no projeto de conhecimento de Descartes?
2. O que significa o trabalho de produzir teorias no pensamento de Kant?
3. Segundo Kant, é possível obtermos um conhecimento objetivo do mundo?
» Cassirer, p. 62. Este tipo de colocação é freqüentemente encontrado em Freud, por exemplo.
13
O POSITIVISMO
No inicio do século XIX, nasce o modelo científico para a
produção de conhecimento com bases seguras.
A partir da crítica de Kant, se irá desenhar no século XIX um modelo para a produção de
conhecimento a um só tempo racional e empírico. O senso comum ainda hoje o toma como
sinônimo de verdade: a ciência nos moldes positivistas. Dizer que algo é científico significa dizer
que é reconhecido pelas autoridades no assunto como certo e indubitável. Não se trata de opinião ou
crença, mas de algo provado.
O que hoje chamamos com freqüência de ciência teve seu modelo formulado por Auguste
Comte, filósofo francês. Assim como Kant, Comte acredita na possibilidade de a razão conhecer o
mundo e, como ele, pensa que isto será possível desde que o homem se mantenha dentro do
universo dos objetos tais como lhe são acessíveis. Comte não fala em termos de fenômenos, mas de
algo semelhante, os objetos positivos. Por positivo, devemos entender aqueles que se apresentam
diretamente aos nossos órgãos do sentido.
Quando Comte denomina seu pensamento com o nome de positivismo, ele quer com isto
enfatizar seu caráter de concreto, verdadeiro ou útil, por oposição às abstrações metafísicas da
tradição filosófica. Com o positivismo, afirma-se a concepção de que cada ciência deve
inicialmente definir seu objeto, que deve ser necessariamente positivo, localizado no tempo e
espaço, observável, em última instância. Uma vez definido o objeto, toda ciência tem os mesmos
métodos: a observação e a experimentação. Inspirado pela tradição humanista de que os coisas do
mundo deveriam ser pensadas em termos de sua utilidade para o homem, assim com pelo
distanciamento entre o sujeito do conhecimento e o objeto, prescrito por Descartes, a ciência
positivista visa sempre a previsão e o controle sobre seu objeto. A ciência deve gerar tecnologia.
É curioso observar que, segundo este modelo, seria impossível a realização de uma
Psicologia científica, na medida em que a mente não se apresenta como um objeto positivo. A
alternativa, e mesmo isto pode ser questionado, seria a própria experiência da mente para cada
pessoa. Comte descartava a Psicologia e concebia como projetos viáveis a sociologia e a fisiologia.
Sem dúvida, muitos dos problemas da Psicologia, sobretudo em sua origem, vinculam-se
justamente a esta questão da impossibilidade de apreender a mente. Comte soa profético neste
aspecto. Diversas linhas da Psicologia tentarão arduamente satisfazer aos critérios positivistas,
enquanto outras decididamente não poderão fazê-lo. Sobre estas últimas, sempre recairá a crítica de
serem pouco científicas e a isto se seguirá a tentativa de desautorizá-las.
Para Comte, a possibilidade de o homem fazer ciência no século XIX deve-se à sua
evolução. Ele vê na história das tentativas do homem de compreender o mundo um
desenvolvimento que teria atingido seu ponto culminante com a ciência. Nos primórdios da
civiüzação, o homem teria tentado compreender a natureza recorrendo à mitologia, à religião.
Fenômenos naturais tinham sua causa atribuída a seres e intenções sobrenaturais. Este seria um
modo de pensamento mágico e infantil. Com o passar do tempo, o homem teria passado a entender
o mundo de forma filosófica ou metafísica, procurando identificar essências transcendentais para
explicar o mundo. Um passo já teria sido dado com relação à religião, uma vez que estas essências
possuíam uma racionalidade e não se recorria mais à idéia de intencionalidade, mas ainda se
mantinha a explicação de algo natural por algo invisível.
Finalmente, o homem teria podido passar a compreender fenômenos naturais, buscando sua
causa tão somente na própria natureza e em suas leis. Esta seria a função da ciência: procurar
conhecer as leis que regem a natureza, inclusive o homem.
A frase estampada na bandeira brasileira -"Ordem e progresso"- é de inspiração direta do
positivismo. Ele teve grande influência nos fundadores de nossa república. Comte crê que há ordem
na natureza e, embora não possamos ter um conhecimento direto dela, podemos inferi-la através dos
fenômenos.
Estas idéias de Comte podem ser confrontadas, com interesse ao nosso tema, com a posição
de Nietzsche que é radicalmente oposta. Para este último, o nascimento da racionalidade, que toma
o lugar do mito -movimento simbolizado por Sócrates-, teria sido um momento de grande perda e
afastamento da verdade. Voltaremos a tratar do pensamento de Nietzsche adiante.
Tomemos algumas passagens expressivas de Comte:
TEXTO ANEXO - Auguste Comte
CURSO DE FILOSOFIA POSITIVA
"II - Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia
positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito
humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida
por sua história.
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a
natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, em uma
palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação
direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária
explica todas as anomalias aparentes do universo.
No universo metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do
primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades
(abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de
engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em
determinar, para cada um, uma entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter
noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas
íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado
do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de
similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, resume-se de agora em diante
na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número
o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.
Vemos, pelo que precede, que o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os
fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao
menor número possível consumem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como
absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam
primeiras, sejam finais. É inútil insistir muito sobre um princípio, hoje tão familiar a todos aqueles
que fizeram um estudo um pouco aprofundado das ciências de observação. Cada um sabe que, em
nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de
expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a
dificuldades. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e
vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude.
Seria fácil multiplicar exemplos, inúmeros durante o andamento deste curso, porquanto este
é o espírito que agora dirige exclusivamente as grandes combinações intelectuais. Para citar apenas
neste momento um único dentre os trabalhos contemporâneos, escolherei a bela série de pesquisas
do Sr. Fourier sobre a teoria do calor. Oferece-nos a verificação muito sensível das observações
gerais precedentes. Neste trabalho, cujo caráter filosófico é tão eminentemente positivo, as leis mais
importantes e precisas dos fenômenos termológicos encontram-se desvendadas, sem que o autor
tenha inquirido uma única vez sobre a natureza íntima do calor, sem que tenha mencionado, a não
ser para indicar sua vacuidade, a tão agitada controvérsia entre os partidários da matéria calórica e
aqueles que fazem consistir o calor em vibrações dum éter universal. No entanto, trata-se nessa obra
das mais altas
MÚSICA - Paganini e Liszt
Com relação à música, penso que seja possível dizer que "o positivismo não dá samba". Não
tenho nenhuma referência de um estilo, autor ou peça musical que possa expressá-lo. A presença do
positivismo nesta área refere-se à técnica; quer de produção de instrumentos, quer da execução das
peças. O século XIX guarda o registro de fantásticos virtuoses em seus instrumentos como Liszt ou
Paganini, mas que musicalmente eram românticos. Na virada para o século XX, nascerá uma
música propriamente experimental: o dodecaionismo. Seu fundador, Arnold Shõmberg, era um
austríaco contemporâneo de um movimento forte na cidade chamado "neopositivismo".
Questões para discussão
1. Que condições deve cumprir um forma de produção de conhecimento para que seja considerada
científica pelo positivismo?
2. Por quê, segundo Comte, seria impossível realizar uma psicologia científica?
3. Como compreender a frase da bandeira brasileira -"Ordem e Progresso"- do ponto de vista
positivista?
14
OS DIVERSOS CAMINHOS PARA A PSICOLOGIA
Nesta parte, é apresentado um conjunto de referências que serviriam como
instrumentos para a compreensão da multiplicidade de sistemas da
Psicologia.
Como já dissemos, desde a colocação do eu no centro do mundo por Descartes, diversos
caminhos Se desenvolveram na história do pensamento e dos costumes; estes caminhos
freqüentemente cruzam-se, misturam-se e voltam a distanciar-se.
A partir dos pontos de vista principais que apresentamos nas partes anteriores sobre a
questão da subjetividade, poderíamos derivar alguns modos de ser do eu:
-Da questão dos costumes, poderíamos derivar um eu moral, atento ao auto-controle em
função de exigências sociais. Por este viés, a noção do eu é dada pelo reconhecimento externo, ele
busca auto-afirmar-se e, para tal, investe na aparência e obediência a regras de conduta pregadas por
aqueles que toma como autoridades, moldando-se aos ideais que tem em tomo de si: um eu social,
digamos. Este eu é um grande consumidor de moda, de livros de auto-ajuda e de biografias de
personagens públicos de sucesso (com o perdão da ironia). Ele busca sempre algo ou alguém (um
horóscopo ou uma tipologia psicológica) que lhe diga quem ele é. Aqui o eu é tomado como objeto,
ele deve sujeitar-se a padrões.
-Tendo sua expressão máxima no romantismo, veríamos o eu interiorizado, que
representaria em grande medida a questão do individualismo e da profundidade. Ele realizaria uma
certa ruptura com os valores externos e um movimento de reflexão, no sentido da construção de si.
Ele partiria de um desencanto com as aparências e descobriria (ou criaria?) níveis de profundidade
no homem. O eu romântico corresponde ao sentimento de possuirmos algo absolutamente único
que, por mais que se tente, não se deixa conhecer ou controlar totalmente.
-Finalmente, do Iluminismo, ainda que crítico, derivaríamos o eu epistêmico. Trata-se do
sujeito do conhecimento; o cientista, enquanto sujeito dessubjetivado, ou seja, capaz de despir-se de
todos os seus desejos e particularidades e ser objetivo em suas observações e experimentos com os
fenômenos naturais. Ele acredita poder ser neutro, não interferir naquilo sobre que se debruça. O
desengajamento do eu, característico da Modernidade, a que se refere Charles Taylor evidencia-se
aqui com mais clareza
Do eu epistêmico, resultaria um modo de ser absolutamente presente para nós: trata-se do
"vestir a camisa da empresa", que costumamos remeter à cópia do modelo de produção oriental dos
chamados "tigres asiáticos", mas que retoma de forma atualizada a experiência medieval: a de que
cada um possui o seu lugar dentro de uma ordem maior e não há lugar para a determinação
individual. Este 'eu' se anula enquanto determinante de sua ação. Ele se identifica com a instituição
a que está ligado e "já não tem nem fim-de-semana"; sua vida é absorvida e qualquer recusa a uma
solicitação é tomada como traição. Se a religião, a família, e as organizações políticas representam
ainda instituições que se alimentam e exercem para este modo de ser, não há dúvida de que, do
início da industrialização no século passado à produção em escala atual, o trabalho tem exigido um
tipo de engajamento semelhante. Este tipo refere-se ainda ao movimento cartesiano de tomar o
próprio 'eu' como sujeito capaz de tomar a natureza como objeto de conhecimento e uso; e aqui
surge o desdobramento, o próprio eu acaba por se tornar objeto de uma técnica. Nisto, evidencia-se
uma semelhança com o eu moral.
Retomemos por um momento a tese de Luis Cláudio Figueiredo que temos como referência.
Em A invenção do psicológico, o autor propõe um triângulo cujos vértices seriam formados pelo
Romantismo, o Liberalismo, e a Disciplina (regime disciplinar), em uma concepção muito próxima
à exposta aqui. Penso que a definição de três modos de colocação do eu que fizemos acima pode ser
sobreposto ao triângulo da figura adiante.
Na tese de Figueiredo, os diversos projetos de Psicologia poderiam ser compreendidos como
herdeiros dessas três tendências básicas que, aliás, quase sempre apresentam elementos de mais de
uma delas combinados. Poderíamos "perguntar" a cada linha da Psicologia como ela se posicionaria
neste triângulo, se em algum vértice ou lado. Isso forneceria uma perspectiva de compreensão sobre
sua origem e algumas das diferenças mais ou menos radicais entre elas.
Não se trata aqui de criar uma "tipologia", o que muito agradaria ao eu moral em nós.
Dificilmente, insistimos, pode-se achar um "tipo puro" de qualquer uma destas tendências, mas
procuremos acompanhar algumas possibilidades de desdobramento e presença simultânea de
algumas das tendências deste esquema ao longo do século XIX. Nesse século, a crítica ao
humanismo chegará a seu ponto culminante, ao mesmo tempo em que a idéia de individualidade se
aprofunda. Deste duplo movimento surgirá a demanda por um profissional da "crise de identidade".
15
FIGURAS DO ROMANTISMO NO SÉCULO XIX
O romantismo assume diversos aspectos, todos parecendo
criticar os projetos da Modernidade -como a própria ciênciae remeter a algo maior e anterior ao eu.
Como já mencionamos, o romantismo refere-se a manifestações bastante diversas. No século
XIX, ele assumirá aspectos diferentes. Muitos deles são anti-humanistas, no sentido em que o eu
aparece reduzido diante de um elemento maior, como a paixão, uma causa, uma nação, etc. Por
outro lado, o romantismo é essencial no desenvolvimento do sentido de interioridade e
profundidade da alma humana, constituindo-se em uma das bases do que poderíamos chamar de
individualismo. Vejamos alguns desenvolvimentos da questão do anti-humanismo.
A concepção de paixão, nascida no romantismo já do século XVIII, tomará uma forma
filosófica clássica com Arthur Schopenhauer. Em sua obra mais conhecida, O mundo como vontade
e representação, ele nos apresenta a idéia de que o mundo é constituído por estes dois elementos
-vontade e representação. A primeira seria uma essência universal, uma energia que subjaz a tudo; a
segunda é assimilável à "idéia" em Platão. Cada coisa existente é, em última instância, uma
manifestação da vontade, inclusive o homem. A vontade seria a coisa em si, que Kant postulara
como inacessível.
Aqui se introduz o elemento anti-humanista. O homem, que acreditava ser a obra prima da
criação, centro do universo e dono de uma vontade consciente, livre para se tornar o que bem
quisesse, vê mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a
mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá
também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista
em nós, não devemos preocupar-nos pela nossa existência nem mesmo diante da morte. Bem vemos
o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; não existe senão pelo
conhecimento submetido ao princípio de razão, que é o princípio de individuação: nesta ordem de
idéias, certamente o indivíduo recebe a vida como um dom: oriundo do nada e despojado do seu
dom pela morte, ao nada retorna. Mas para quem, como nós, contempla a vida do ponto de vista
filosófico, isto é, das Idéias, nem a vontade ou a coisa em si de todos os fenômenos, nem o sujeito
dos conhecimentos, espectador dos fenômenos, são de qualquer forma tocados pelo nascimento ou
pela morte. Nascer e morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade, e aparecem nas
criaturas individuais, manifestando fugitivamente, e no tempo, aquilo que em si não conhece tempo
e deve exatamente manifestar-se sob esta forma com o fim de poder objetivar a sua verdadeira
natureza. (...)
(...) mas a vontade de viver de que o indivíduo não constitui por assim dizer, mais que um
exemplar ou uma parcela . singular de manifestação, não é perturbada com a morte do ser
individual, tanto quanto não o é o conjunto da natureza. Pois que não é pelo indivíduo, mas
unicamente pela espécie que a natureza se interessa e é dela unicamente que estuda seriamente a
conservação, circundando-a de grande luxo de preocupações e por meio da super-abundância
ilimitada dos germes e do poder imenso do instinto de reprodução. (...) A natureza está sempre
pronta a abandonar p indivíduo que somente está exposto 9 perecer de mil modos e pelas causas
mais insignificantes, como também é, desde o princípio, destinado a uma perda certa, para a qual é
arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão que tem de conservar a espécie. Com
isto a natureza exprime ingenuamente esta grande verdade, que são as Idéias e não os indivíduos
que têm uma verdadeira realidade, isto é, são a objetividade perfeita da vontade." (p. 30-4)
PINTURA - Turner e Friedrich
Vale a pena fazermos também uma rápida referência à pintura romântica do século XIX.
Nela, manifesta-se também esta colocação em perspectiva da importância do homem. Um dos
principais pintores românticos é o inglês Turner, cuja obra representa freqüentemente a
grandiosidade das forças da natureza diante da impotência humana. Um de seus temas mais comuns
é o de tempestades, sobretudo no mar.
Olhando a pintura de longe, parece que nada está sendo
representado e que estamos diante de um borrão azul, marrom ou cinza. Ao nos aproximarmos, no
entanto, passamos a distinguir uma tempestade no mar com sua agitação e neblina. Na tempestade,
podemos por vezes divisar um barco, totalmente à mercê das forças que o dominam. Não é preciso
fantasiar muito para estabelecermos uma relação entre esta representação e a da fragilidade da razão
humana diante da fúria da natureza.
No pintor alemão Friedrich, podemos identificar outro tipo de imagem interessante. Em sua
pintura, em geral, temos também paisagens, mas estas são tranqüilas. O que chama a atenção é que
a presença está sempre deslocada do centro da pintura. A visão perde-se na imensidão da paisagem
e o homem agora é que ocupa uma posição marginal, quase que de fundo.
Alguns outros aspectos significativos do romantismo podem ser acompanhados por seus
músicos.
MÚSICA - Wagner e Chopin
Da música romântica do início do século XIX, gostaria de destacar duas Unhas de
expressão. De um lado, persistem os elementos do amor romântico e, de outro, surge a expressão do
nacionalismo. Sabemos que a primeira metade do século foi marcada pela luta de diversas nações
por sua unificação ou independência
Com Richard Wagner, podemos acompanhar como a música pôde ser utilizada como forma
de ação política. Em sua busca de mobilizar o povo alemão, ele não lançou mão do discurso político
ou filosófico, mas sim da música ou, para ser mais preciso, de um espetáculo denominado por ele
mesmo como uma 'obra de arte total': a ópera. Nela, unem-se recursos literários, musicais,
dramáticos e
74mitológicos para produzir um efeito de envolvimento e sedução por todos os sentidos pela
mensagem veiculada. As óperas de Wagner recorrem quase sempre a temas mitológicos
germânicos, buscando no fundo da alma de cada homem o apelo do originário.
Sua música remete-nos à pintura romântica. Temos a impressão de estarmos diante de algo
informe, envolvente, com poucas figuras melódicas definidas onde nos possamos ancorar. Não é
uma música a ser compreendida ou captada por nossa atenção, mas ela pretende justamente distraíla e pegar-nos desprevenidos. Quando ouvimos, por exemplo, a abertura da ópera Tristão e Isolda30,
podemos ter a impressão, inicialmente, de que não há melodia e que o volume é baixo demais;
pouco depois, vemo-nos envolvidos em uma intensidade sonora que nos arrasta irresistivelmente. A
letra da ária chamada "Morte de Isolda" sintetiza a experiência de Goethe e Schopenhauer.
Morte de Isolda - Richard Wagner
"Como é doce e delicado o seu sorriso, como abre os olhos gentis -vêem, amigos? Não
vêem? Como ele brilha, sempre mais luminoso, como se ergue alto, cercado de estrelas? Não vêem?
Como o seu coração orgulhosamente se expande e, pleno e sublime, lhe pulsa no peito? Como dos
seus lábios, em um encanto suave, um doce alento escapa delicadamente -Amigos! Olhem! Não
sentem, não vêem? Serei a única a escutar esta melodia, que maravilhosa e suave, suspirante de
alegria, inteiramente reveladora, doce e conciliadora dele se escapa e em mim penetra, cheia de
ímpeto, ecoando sublime ao meu redor? Ressoando mais claras, para envolver-me toda, são talvez
as ondas de brisas suaves? Talvez as nuvens de encantadoras fragrâncias? Como se enfunam e
fremem ao meu redor, deverei respirar, deverei escutar? Deverei saborear, afogar-me contente?
Exalar docemente nesta fragrância? Na vaga ondejante, na rima sonora, no cosmo inflante da
respiração universal -mergulhar, submergir- privada dos sentidos -volúpia suprema!"
31
Ouça, por exemplo, "Polonaise a heróica" ou "Noturno em mi-bemol".
Pedro Luis Ribeiro de Santi
Outro compositor a expressar o nacionalismo e o amor em sua música foi o polonês Chopin,
com suas polonaises e noturnos. Nele, encontramos ainda o paradigma do romantismo como
delicadeza, por sua própria fragilidade pessoal31.
Como última referência ao romantismo, gostaria de citar um de seus desenvolvimentos, que
terá repercussões mais imediatas e próximas à Psicologia: o da idéia de níveis de profundidade da
alma humana. Com Edgar Alan Poe, autor americano nascido em 1910, o gênio mergulha na
alucinação e, de lá, trás a fonte de sua inspiração. Como é quase típico do artista romântico, ele
morre antes dos quarenta anos. Todo o século XIX foi fortemente marcado pelo conto de terror e
pela invasão do lado escuro da alma humana -como em Dr. Jeckill e Mr. Hide, Frankenstein ou
Drácula, por exemplo. Uma famosa frase do pintor Goya define isto muito bem: "O sono da razão
produz monstros". Poe, no entanto, parece ter sido um dos primeiros e mais influentes. Tomemos
trechos de seu poema mais conhecido: O corvo.
TEXTO ANEXO - Edgar Alan Poe O CORVO
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita" eu me disse, "está batendo a meus umbrais
É só isto, e nada mais".
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras
desiguais. Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros dada, Para esquecer (em vão!) a
amada, hoje entre hostes celestiais-Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
30
Ouça, de Richard Wagner, "Tannhãuser -Siegfried -Idyll -Tristan und Isolde. Deutsche
Grammophon, 1988." Mas sem nome aqui jamais! (...)
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais;
Que mal ouvi... "E abri largos, franqueando-os, meus umbrais,
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de aisEu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais.
Isto só e nada mais. (...)
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos
ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento Mas com ar sereno e lento
pousou sobre os meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais. Foi,
pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e
ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais.
Com o nome "Nunca mais". (...)
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
A ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela; entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais! (...)
"Profeta", disse eu, "profeta -ou demônio ou ave preta! Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a
meus umbrais, A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
Pedro Luis Ribeiro de Santi
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta
alma a quem atrais!" Disse o corvo, "Nunca mais". (...)
"Que esse grito nos aparte ave ou diabo", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais:
E a minh'alma dessa sombra que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
[Tradução de Fernando Pessoa]
■
O poema de Poe é marcado por uma profunda melancolia. A perda parece remeter a um
tempo mítico de plenitude perdida. O corvo é a presença persistente da lembrança que paralisa e
assusta. Ele talvez seja a voz da consciência que martiriza, que lembra e afirma a perda, mas não
deixa a lembrança ir embora.
Questões para discussão
1. Em que sentido Schopenhauer é anti-humanista?
2. Relacione a pintura de Turner e a música de Wagner.
3. Como os contos de terror do século XIX podem ser relacionados com o
nascimento da Psicologia?
16
ALGUNS DESDOBRAMENTOS QUE LEVARAM À PSICOLOGIA
Nesta parte, apresentamos algumas idéias que levaram mais
diretamente à Psicologia. Veremos como, na maior parte dos
casos, há uma combinação das referências românticas,
disciplinares e liberais.
Podemos identificar, desde o século XVIII, alguns movimentos da história da medicina que
contêm elementos românticos que desembocarão na Psicologia profunda. É importante dizer que o
interesse destes movimentos é curar e lançar a luz da razão sobre a doença, assim, eles não podem
ser considerados exclusivamente tributários do romantismo, mas também do movimento científico.
Anton Mesmer talvez seja o pai desta tendência, que se irá desenvolver durante o século XIX com a
investigação sobre a hipnose e a ocorrência (espantosamente freqüente) de casos de dupla ou
múltipla personalidade.
O nome de Mesmer tornou-se conhecido em meados do século XVIII, ao participar de um
processo para julgar se um exorcista chamado Gassner seria um charlatão. Mesmer atesta a boa
vontade e os efeitos curativos de Gassner, mas explica que seus sucessos não se deviam a forças
sobrenaturais, mas ao uso inconsciente de um magnetismo animal, que circularia do exorcista ao
exorcizado.
Sua tese de conclusão do curso de medicina havia sido sobre a influência dos astros sobre
nós. Não se trataria de uma influência mística, mas de magnetismo. Em sua prática, ele observara
que a aproximação de imãs sobre órgãos doentes produzia uma melhora no quadro.
Gradativamente, percebe que a simples presença do médico já produzia tal efeito, mesmo sem imã.
A partir de então, passou a postular que todo corpo possuía tal energia e que a doença deveria ser
uma perturbação ou rebaixamento dela. Assim, a cura deveria consistir na transmissão de energia
saudável do médico ao paciente. Isto devia ser feito através de manipulações ou do contato
intermediado por objetos "bons condutores" de energia.
A inspiração de Mesmer é iluminista; ele crê tratar de algo como a eletricidade, mas sua
prática acaba por descambar para um aspecto de espetáculo. Ele cria todo um clima em torno de
seus atendimentos, solicitando que seus vários pacientes "nervosos" esperassem longamente por ele
numa sala de espera. Como era de se esperar, depois de algum tempo um deles tinha um ataque: era
isto que ele esperava. Ele levava este paciente a uma sala fechada e escura, com um fundo musical
envolvente, e manipulava-o, conduzindo-o a uma crise. O paciente melhorava depois da descarga e
certamente saía com a impressão de ter assistido a um milagre ou a uma mágica. Tomou-se célebre
também o recurso que criou para atender um maior número de pacientes quando a demanda cresceu
demais em Paris: ele mandou construir uma tina (baquet), em tomo da qual dispunha até 130
pacientes, que seguravam uma haste de metal cuja outra ponta estava mergulhada nela. Então
aproximava-se e mergulhava suas mãos na água, contando que a energia seria conduzida até todos.
Compreensivelmente, passou-se a considerá-lo um charlatão e ele acabou sofrendo um
processo semelhante àquele através do qual tornara-se conhecido. Tendo sido desacreditado, retirouse para uma cidade pequena e aderiu a uma prática médica comum até morrer. Um de seus
seguidores, Puiseguir, desenvolveu seu método até à hipnose.
Desta síntese entre romantismo e ciência, nascerá o espiritismo, que parte da observação de
fenômenos paranormais, como a telecinese (a capacidade de mover objetos à distância), recorrendo
a explicações místicas. Sabemos também que, já no fim do século, este movimento desembocará em
Charcot, um dos mestres
Podemos ainda indicar, no caminho em direção à Psicologia, uma corrente que pode ser
identificada como uma articulação entre o liberalismo e a disciplina -na linguagem que propusemos,
entre o eu epistêmico e o eu moral. Recorrendo uma vez mais à História da vida privada, podemos
observar que, no final do século XIX, a medicina ocupa o lugar da religião como referência moral.
A ciência vai-se prestar a justificar os mais primários preconceitos morais.
Como já havíamos visto, desde o século XVIII, não é mais possível fundamentar a moral na
fé. Desde lá, a moral passou a buscar fundamento no simples convívio entre os homens, como é
possível constatar na Crítica da razão prática, de Kant, na declaração universal dos direitos do
homem e, enfim, na difusão da democracia ao longo do século XIX. Mas a busca de um
fundamento para os critérios morais encontra um apoio supostamente seguro no estudo da biologia,
derivando daí uma concepção de natureza humana.
Em termos simples, a proibição de determinado ato, com a justificativa de que ele seria um
pecado, parece não surtir mais efeitos gerais e eficientes. Ao invés disso, se tal ato for considerado
prejudicial à saúde pela ciência, provavelmente irá se generalizar a idéia de que tal ato é errado. O
que está em jogo aqui é este deslocamento aparentemente válido entre o saudável e o bom, contra o
não saudável e o mau.
Se esta idéia parece óbvia, basta conferirmos a que ela serviu para percebermos o nível de
manipulação ideológica a que se pode chegar com ela. Tomemos como exemplo a questão da
sexualidade. Curiosamente, as prescrições médicas a esse respeito no século XIX coincidem
totalmente com as da Igreja. Assim, sobre a identificação inquestionável sobre a função biológica
dos órgãos genitais, afirma-se uma idéia de normalidade e anormalidade. A vida sexual serve à
reprodução e qualquer uso dela em outro sentido deve ser tomado como uma degeneração
(etimologicamente, 'um desvio com relação à origem'), uma perversão (um desvio com relação ao
bom caminho). Todas as denominações que possuímos hoje neste campo datam desta época e
trazem sua marca: heterossexualidade, homossexualidade, sadismo, masoquismo, etc. Surge, assim,
toda uma sombra moral sobre a definição sexual de cada pessoa; que estabelece o medo de ser
errado e anti-natural, e, portanto, excluído socialmente.
Os ramos desse ponto de vista ainda estão muito presentes. Em 1981, em um congresso
médico sobre a sexualidade, foi colocado a um palestrante a questão do sentido do prazer na relação
sexual-Depois de alguns momentos, em um silêncio embaraçoso, ele arriscou a seguinte hipótese: é
que o ato sexual seria uma coisa tão nojenta e aversiva, que o prazer serviria como uma espécie de
compensação.•• Um episódio clássico, neste sentido, é relatado com detalhes em História da vida
privada: as prescrições contra a masturbação. A masturbação seria considerada, no limite, uma
perversão; e a este mal uso da sexualidade, são atribuídos pelos médicos os mais diversos
malefícios: a degeneração mental e moral, a impotência, o vício. Com base neste diagnóstico
científico, conta-se de pais zelosos e desesperados por seus filhos recorrerem a métodos drásticos,
como o uso de lençóis semelhantes a camisas de força, cauterizações da glande ou do clitóris e, no
limite, a extirpação destes órgãos tentadores.
Questões para discussão
1. Em que sentido Mesmer é cientista?
2. Como a Medicina, no século XIX, passa a ocupar o lugar da Igreja como
referência moral?
17
CONSUMAÇÃO DA CRISE DA SUBJETIVIDADE
A Medicina continua ocupando esse lugar hoje? Justifique. no mundo, eles buscaram
transformar sua mediocridade em mérito. A moral procura criar um homem estável, confiável, capaz
de fazer promessas, impondo um estancamento no fluxo das forças.
Estes seriam homens do ressentimento, intoxicados com seus próprios impulsos que não
podem expressar. Neste sentido, mesmo a inteligência e a interioridade seriam apenas sinais de
fraqueza:
"Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro -isto é o que
chamo de interiorização do homem. E assim que no homem cresce o que depois se denomina sua
'alma', (p. 90)"32
Assim, nasce a má-consciência, que inibe a ação e se desdobra em mais má-consciência.
Somos, por isto, "homens do desconhecimento", por não nos termos nunca procurado e por nos
alienarmos em uma estabilidade falsificadora.
Em Para além do bem e do mal, Nietzsche prossegue com a exposição de nossa hipocrisia e
o hábito de mentir, que nos caracterizam como artistas. Mas, além disso, a crítica à moral e ao 'eu'
mais aparente é aprofundada através da crítica à concepção de um 'eu' transcendente (como já
desenvolvemos nas partes anteriores) e, afinal, com a crítica à coisa em si. Nietzsche descrê de toda
e qualquer existência em si e toda a experiência humana é colocada em termos de interpretação
dentro de uma dada perspectiva. Não resta nada sólido. A isto a tradição filosófica denomina de
niilismo.
Segundo Heidegger, filósofo alemão do século XX, o termo niilismo remete
etimologicamente ao "nada"; em termos filosóficos, remeteria à descrença definitiva em qualquer
ser supra-sensível, "tudo seria nada". Enquanto o pensamento metafísico liga-se à crença de que há
um determinado alvo a ser atingido pela existência, o niilismo depara-se com que não há tal alvo.
Nietzsche refere-se freqüentemente ao termo niilismo, muitas vezes referindo-se a um certo
pessimismo e uma atitude negativa perante a vida -como em Schopenhauer. Mas o niilismo de
Schopenhauer ainda é fraco; sua negatividade mostra que seus válbres ainda estão ligados ao
universo perdido. Nietzsche propõe, em contrapartida, um niilismo radical, no qual a revelação da
ausência de sentido último das coisas levasse a um lançar-se à vida. Citemos Heidegger:
"Nietzsche serve-se do termo 'niilismo' para designar o movimento histórico cujo reino ele
foi o primeiro a reconhecer, pelos séculos precedentes, próprio a determinar os séculos posteriores e
cuja interpretação ele definiu brevemente por estas palavras: 'Deus está morto'. O que quer dizer: o
'Deus cristão' perdeu seu poder sobre o ente e sobre a destinação do homem. O 'Deus cristão' é
designação própria para designar o 'supra-sensível' em geral e suas diferentes interpretações, os
'ideais' e as 'normas', os 'princípios' e as 'regras', as 'finalidades' e os 'valores', erigidos sob o ente
para dar à totalidade do ente um fim, uma ordem e como se diz simplesmente-para lhe 'dar um
sentido'", (p. 32)33
Segundo Heidegger, ainda que Nietzsche leve a Modernidade aos estertores, ele ainda se
encaixaria nela e seria sua expressão limite. A vontade de potência, vazia de conteúdo ou valor
moral, seria a última forma da procura por algo que subjaz à ação. Ao considerar que a 'verdade'
seria aquilo que fosse tomado pelo sujeito enquanto tal, Nietzsche estranhamente estaria alcançando
o último degrau em uma série iniciada por Protágoras -"O homem é a medida de todas as coisas"-,
passando por Descartes -o homem enquanto "sujeito" da objetividade.
Teríamos, no entanto, com Nietzsche, um retorno ao corpo. Cito Heidegger:
"Para Descartes, o homem é sujeito no sentido da ego-idade (égo-tté) representatriz. Para Nietzsche,
o homem é sujeito no sentido dos impulsos e dos afetos dados, enquanto que "último factum", ou
seja, para dizê-lo brevemente, do corpo. É nesta regressão ao corpo enquanto linha de conduta
metafísica que se realiza toda interpretação do mundo."34
Eis como Nietzsche expressa a radicalidade de sua crítica:
"A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez
nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele
promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é
afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais
indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o
mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver-que
renunciar aos juízos falsos eqüivale a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como
condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos
de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo coloca-se, apenas por isso, além do bem e do mal.
(p. 11-12)"35
Viveríamos, assim em um registro de ficções necessárias, e a ética da existência se deslocaria da
busca pela verdade para a do bem viver e conviver. Talvez aqui estejamos tocando uma experiência
não moderna.
Para voltarmos à nossa discussão original, tomemos um trecho de uma obra de Nietzsche onde se
explicita o despojamento das pretensões do eu.
TEXTO ANEXO - Friedrich Wilhelm Nietzsche
SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL
"Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de
sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento.
Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da "história universal": mas também foi somente um
minuto. Passados poucos fôlegos da natureza, congelou-se o astro e os animais inteligentes tiveram
de morrer. Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente
quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto
humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que não estava; quando de novo ele tiver
passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta que
conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o
toma tão pateticamente como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entendernos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o
centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um
pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo
transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo,
pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.
É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como
meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na
existência (...)" (p. 31)36
*
MÚSICA - Bizet e Satie
Em uma última referência à música, gostaria de destacar dois caminhos, tomados na segunda
metade do século XIX.
De um lado, parece que, a partir de Wagner, houve uma espécie de esgotamento das
possibilidades do universo musical desenhado por Bach. O esquema das tonalidades e compassos
parecia não ter mais desenvolvimentos possíveis. Um dos caminhos tomados pela música desde
então foi a tentativa de beber em fontes populares, ou nacionais. Neste sentido, vale a pena
mencionar a sensualidade.
De outro lado, no final do século surge uma música extremamente
melancólica e dissonante, já quase atonal, que sugere o quão quebrado e sem referências
encontrava-se o eu. Citamos aqui, como exemplo, Erik Satie. Parte de sua obra tem um tom
humorístico marcado, com músicas para bordéis e experimentos, "científicos", com a série chamada
"embriões dissecados". De oura parte, ele possui peças de uma melancolia profunda, mas sem a
tragicidade romântica, trata-se de um sentimento de desengate37.
Questões para discussão
1. Por quê identificamos em Nietzsche o ponto máximo da crise do "eu"?
2. Qual é o significado de niilismo?
3. Qual é a função do "eu" para Nietzsche?
37
Um exemplo seria a "Gymnopedie n° 7, de Satie".
CONCLUSÃO
Traçamos, em linhas gerais, alguns modos de se pensar o sujeito que foram condições para o
surgimento da Psicologia. Como dissemos na introdução, não nos ocupamos de uma história das
práticas médicas ou terapias prévias a ela. Nosso interesse foi o de ressaltar a implicação da
Psicologia na Modernidade ocidental. A Psicologia Ocidental tem como fundamento a
subjetividade.
As Psicologias procuraram responder de diversas formas às demandas surgidas da crise da
subjetividade moderna. Realmente, não é à toa que suas linhas principais tenham tido início no fim
do século XLX. Em alguns casos, as teorias alinham-se a uma ou algumas destas tendências, quer
para afirmar a subjetividade, em alguma de suas acepções, quer para, de fato, pô-la em questão.
Ao lermos alguma teoria psicológica poderíamos ter em mente, como um instrumento de
reflexão, algumas perguntas relativas à posição dessa teoria no contexto histórico. Qual a concepção
de homem ou mente é envolvida em dada teoria? Ela acredita na liberdade? O eu é o objeto
privilegiado de estudo? Ela se pretende científica nos termos positivistas? Qual é sua perspectiva
ética? A resposta a este tipo de pergunta pode-nos ajudar a nos situarmos diante deste campo
inevitavelmente tão disperso, como o da Psicologia. Além disso, poderemos passar a ver que uma
determinada teoria pode ter nascido depois de outras e se apresentar como "última palavra", "novo
paradigma" etc, e ainda assim ser tributária de concepções nem tão novas, ou ser altamente
comprometidas com crenças que talvez até mesmo desconheça.
BIBLIOGRAFIA
ARIES, P. & DUBY, G. (orgs.). História da vida privada (5 volumes).
São Paulo, Companhia das Letras, 1992. BEAUVOIR, S. Faufil brüler Sade? Paris, Gallimard, 1955.
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