– PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
PAZ E TERRA
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Freire, Paulo, 1921-1997
Pedagogia do oprimido [recurso eletrônico] / Paulo Freire. - 1. ed. - Rio de Janeiro
: Paz e Terra, 2013.
recurso digital
Bibliografia
Formato: ePub
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Modo de acesso: World Wide Web
Inclui índice
ISBN 978-85-7753-228-5 (recurso eletrônico)
1. Educação - Filosofia. 2. Sociologia educacional. 3. Livros eletrônicos. I. Título.
11-03203
CDD-370.1
Índices para catálogo sistemático:
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1. Freire, Paulo : Pedagogia do oprimido:
Educação 370.1
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDOSE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM.
Sumário
PREFÁCIO: APRENDER A DIZER A SUA PALAVRA
PROFESSOR ERNANI MARIA FIORI
PRIMEIRAS PALAVRAS
1 Justificativa da pedagogia do oprimido
A contradição opressores-oprimidos. Sua superação
A situação concreta de opressão e os opressores
A situação concreta de opressão e os oprimidos
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam
em comunhão
2 A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. Seus
pressupostos, sua crítica
A concepção problematizadora e libertadora da educação. Seus pressupostos
A concepção “bancária” e a contradição educador-educando
Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam
entre si, mediatizados pelo mundo
O homem como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu
permanente movimento de busca do ser mais
3 A dialogicidade: essência da educação como prática da liberdade
Educação dialógica e diálogo
O diálogo começa na busca do conteúdo programático
As relações homens-mundo, os temas geradores e o conteúdo programático
desta educação
A investigação dos temas geradores e sua metodologia
A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores. Os
vários momentos da investigação
4 A teoria da ação antidialógica
A teoria da ação antidialógica e suas características: a conquista, dividir para
manter a opressão, a manipulação e a invasão cultural
A teoria da ação dialógica e suas características: a co-laboração, a união, a
organização e a síntese cultural
Prefácio
APRENDER A DIZER A SUA PALAVRA
PAULO FREIRE É UM PENSADOR comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa
a existência. É também educador: existencia seu pensamento numa pedagogia
em que o esforço totalizador da práxis humana busca, na interioridade desta,
retotalizar-se como “prática da liberdade”. Em sociedades cuja dinâmica
estrutural conduz à dominação de consciências, “a pedagogia dominante é a
pedagogia das classes dominantes”. Os métodos da opressão não podem,
contraditoriamente, servir à libertação do oprimido. Nessas sociedades,
governadas pelos interesses de grupos, classes e nações dominantes, a “educação
como prática da liberdade” postula, necessariamente, uma “pedagogia do
oprimido”. Não pedagogia para ele, mas dele. Os caminhos da liberação são os
do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgata, é sujeito que se deve
autoconfigurar responsavelmente. A educação liberadora é incompatível com
uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de
dominação. A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa
pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e
conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica. Uma cultura
tecida com a trama da dominação, por mais generosos que sejam os propósitos
de seus educadores, é barreira cerrada às possibilidades educacionais dos que se
situam nas subculturas dos proletários e marginais. Ao contrário, uma nova
pedagogia enraizada na vida dessas subculturas, a partir delas e com elas, será um
contínuo retomar reflexivo de seus próprios caminhos de liberação; não será
simples reflexo, senão reflexiva criação e recriação, um ir adiante nesses
caminhos: “método”, “prática de liberdade” que, por ser tal, está intrinsecamente
incapacitada para o exercício da dominação. A pedagogia do oprimido é, pois,
liberadora de ambos, do oprimido e do opressor. Hegelianamente, diríamos: a
verdade do opressor reside na consciência do oprimido.
Assim apreendemos a ideia-fonte de dois livros1 em que Paulo Freire traduz,
em forma de lúcido saber sociopedagógico, sua grande e apaixonante experiência
de educador. Experiência e saber que se dialetam, densificando-se, alongando-se
e dando, com nitidez cada vez maior, o contorno e o relevo de sua profunda
intuição central: a do educador de vocação humanista que, ao inventar suas
técnicas pedagógicas, redescobre através delas o processo histórico em que e por
que se constitui a consciência humana. Ou, aproveitando uma sugestão de
Ortega, o processo em que a vida como biologia passa a ser vida como biografia.
Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a
sua vida como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se,
existenciar-se, historicizar-se. Por isto, a pedagogia de Paulo Freire, sendo
método de alfabetização, tem como ideia animadora toda a amplitude humana
da “educação como prática da liberdade”, o que, em regime de dominação, só se
pode produzir e desenvolver na dinâmica de uma “pedagogia do oprimido”.
As técnicas do referido método acabam por ser a estilização pedagógica do
processo em que o homem constitui e conquista, historicamente, sua própria
forma: a pedagogia faz-se antropologia. Esta conquista não se pode comparar
com o crescimento espontâneo dos vegetais: participa da ambiguidade da
condição humana e dialetiza-se nas contradições da aventura histórica, projetase na contínua recriação de um mundo que, ao mesmo tempo, obstaculiza e
provoca o esforço de superação liberadora da consciência humana. A
antropologia acaba por exigir e comandar uma política.
É o que pretendemos insinuar em três relances. Primeiro: o movimento
interno que unifica os elementos do método e os excede em amplitude de
humanismo pedagógico. Segundo: esse movimento reproduz e manifesta o
processo histórico em que o homem se reconhece. Terceiro: os rumos possíveis
desse processo são possíveis projetos e, por conseguinte, a conscientização não é
apenas conhecimento ou reconhecimento, mas opção, decisão, compromisso.
As técnicas do método de alfabetização de Paulo Freire, embora em si
valiosas, tomadas isoladamente não dizem nada do método. Também não se
ajuntaram ecleticamente segundo um critério de simples eficiência técnicopedagógica. Inventadas ou reinventadas numa só direção de pensamento,
resultam da unidade que transparece na linha axial do método e assinala o
sentido e o alcance de seu humanismo: alfabetizar é conscientizar.
Um mínimo de palavras, com a máxima polivalência fonêmica, é o ponto de
partida para a conquista do universo vocabular. Essas palavras, oriundas do
próprio universo vocabular do alfabetizando, uma vez transfiguradas pela crítica,
a ele retornam em ação transformadora do mundo. Como saem de seu universo
e como a ele voltam?
Uma pesquisa prévia investiga o universo das palavras faladas, no meio
cultural do alfabetizando. Daí são extraídos os vocábulos de mais ricas
possibilidades fonêmicas e de maior carga semântica — os que não só permitem
rápido domínio do universo da palavra escrita como, também, o mais eficaz
engajamento de quem a pronuncia, com a força pragmática que instaura e
transforma o mundo humano.
Estas palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação de
seus elementos básicos, propiciam a formação de outras. Como palavras do
universo vocabular do alfabetizando, são significações constituídas ou
reconstituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciais
ou, dentro delas, se configuram. Tais significações são plasticamente codificadas
em quadros, slides, filminas etc., representativos das respectivas situações, que, da
experiência vivida do alfabetizando, passam para o mundo dos objetos. O
alfabetizando ganha distância para ver sua experiência: “admirar”. Nesse
instante, começa a descodificar.
A descodificação é análise e consequente reconstituição da situação vivida:
reflexo, reflexão e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem.
Mediada pela objetivação, a imediatez da experiência lucidifica-se, interiormente,
em reflexão de si mesma e crítica animadora de novos projetos existenciais. O
que antes era fechamento, pouco a pouco se vai abrindo; a consciência passa a
escutar os apelos que a convocam sempre mais além de seus limites: faz-se
crítica.
Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencontra-se com os outros e
nos outros, companheiros de seu pequeno “círculo de cultura”. Encontram-se e
reencontram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincidência das
intenções que o objetivam, ex-surge a comunicação, o diálogo que criticiza e
promove os participantes do círculo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu
mundo: o que antes os absorvia, agora podem ver ao revés. No círculo de cultura,
a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciências”; não há
professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações
solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à
dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do
diálogo.
A “codificação” e a “descodificação” permitem ao alfabetizando integrar a
significação das respectivas palavras geradoras em seu contexto existencial — ele
a redescobre num mundo expressado em seu comportamento. Conscientiza a
palavra como significação que se constitui em sua intenção significante,
coincidente com intenções de outros que significam o mesmo mundo. Este — o
fundo — é o lugar do encontro de cada um consigo mesmo e os demais.
A essa altura do processo, a respectiva palavra geradora pode ser, ela mesma,
objetivada como combinação de fonemas suscetíveis de representação gráfica. O
alfabetizando já sabe que a língua também é cultura, que o homem é sujeito:
sente-se desafiado a desvelar os segredos de sua constituição, a partir da
construção de suas palavras — também construção de seu mundo. Para esse
efeito, como também para a descodificação das situações significadas pelas
palavras geradoras, a que nos referimos, é de particular interesse a etapa
preliminar do método, que não havíamos ainda mencionado. Nessa etapa, são
descodificadas pelo grupo várias unidades básicas, codificações simples e
sugestivas, que, dialogicamente descodificadas, vão redescobrindo o homem
como sujeito de todo o processo histórico da cultura e, obviamente, também da
cultura letrada. O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é
expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste
redescobrindo o processo que o faz e refaz.
Assim, ao objetivar uma palavra geradora — íntegra, primeiro, e depois
decomposta em seus elementos silábicos —, o alfabetizando já está motivado
para não só buscar o mecanismo de sua recomposição e da composição de novas
palavras, mas também para escrever seu pensamento. A palavra geradora, ainda
que objetivada em sua condição de simples vocábulo escrito, não pode mais
libertar-se de seu dinamismo semântico e de sua força pragmática, de que o
alfabetizando já se fizera consciente na repetida descodificação crítica.
Não se deixara, pois, aprisionar nos mecanismos de composição vocabular. E
buscará novas palavras, não para colecioná-las na memória, mas para dizer e
escrever o seu mundo, o seu pensamento, para contar sua história. Pensar o
mundo é julgá-lo; e a experiência dos círculos de cultura mostra que o
alfabetizando, ao começar a escrever livremente, não copia palavras, mas
expressa juízos. Estes, de certa maneira, tentam reproduzir o movimento de sua
própria experiência; o alfabetizando, ao dar-lhes forma escrita, vai assumindo,
gradualmente, a consciência de testemunha de uma história de que se sabe autor.
Na medida em que se apercebe como testemunha de sua história, sua consciência
se faz reflexivamente mais responsável dessa história.
O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a
desenvolver a capacidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso
abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder reexistenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida,
saber e poder dizer a sua palavra.
Eis por que, em uma cultura letrada, aprende a ler e escrever, mas a intenção
última com que o faz vai além da alfabetização. Atravessa e anima toda a empresa
educativa, que não é senão aprendizagem permanente desse esforço de
totalização — jamais acabada — através do qual o homem tenta abraçar-se
inteiramente na plenitude de sua forma. É a própria dialética em que se
existencia o homem. Mas, para isto, para assumir responsavelmente sua missão
de homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si
mesmo e a comunhão humana em que se constitui; instaura o mundo em que se
humaniza, humanizando-o.
Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o
homem assume conscientemente sua essencial condição humana. E o método
que lhe propicia essa aprendizagem comensura-se ao homem todo, e seus
princípios fundam toda pedagogia, desde a alfabetização até os mais altos níveis
do labor universitário.
A educação reproduz, assim, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o
movimento dialético do processo histórico de produção do homem. Para o
homem, produzir-se é conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia
é antropologia.
Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, num círculo de cultura,
diante de uma situação representada em quadro: “Gosto de discutir sobre isto
porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora sim, observo como
vivo.”
A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem
de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes. É a
presença que tem o poder de presentificar: não é representação, mas condição de
apresentação. É um comportar-se do homem frente ao meio que o envolve,
transformando-o em mundo humano. Absorvido pelo meio natural, responde a
estímulos; e o êxito de suas respostas mede-se por sua maior ou menor
adaptação: naturaliza-se. Despegado de seu meio vital, por virtude da
consciência, enfrenta as coisas objetivando-as, e enfrenta-se com elas, que
deixam de ser simples estímulos, para se tornarem desafios. O meio envolvente
não o fecha, limita-o — o que supõe a consciência do além-limite. Por isto,
porque se projeta intencionalmente além do limite que tenta encerrá-la, pode a
consciência desprender-se dele, liberar-se e objetivar, transubstanciando o meio
físico em mundo humano.
A “hominização” não é adaptação: o homem não se naturaliza, humaniza o
mundo. A “hominização” não é só processo biológico, mas também história.
A intencionalidade da consciência humana não morre na espessura de um
envoltório sem reverso. Ela tem dimensão sempre maior do que os horizontes
que a circundam. Perpassa além das coisas que alcança e, porque as sobrepassa,
pode enfrentá-las como objetos.
A objetividade dos objetos é constituída na intencionalidade da consciência,
mas, paradoxalmente, esta atinge, no objetivado, o que ainda não se objetivou: o
objetimável. Portanto, o objeto não é só objeto, é, ao mesmo tempo, problema: o
que está em frente, como obstáculo e interrogação. Na dialética constituinte da
consciência, em que esta se perfaz na medida em que faz o mundo, a
interrogação nunca é pergunta exclusivamente especulativa: no processo de
totalização da consciência é sempre provocação que a incita a totalizar-se. O
mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E, como a consciência se
constitui necessariamente como consciência do mundo, ela é, pois, simultânea e
implicadamente, apresentação e elaboração do mundo.
A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar
indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as
situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Liberta pela força de seu impulso
transcendentalizante, pode volver reflexivamente sobre tais situações e
momentos, para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade é
a raiz da objetivação. Se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, é
porque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde o primeiro
momento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já é
virtualmente reflexiva. É presença e distância do mundo: a distância é a condição
da presença. Ao distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade,
surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha do entendimento, reflexão e
mundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se, implicando-se
dialeticamente. A verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se na
interioridade da “práxis” constitutiva do mundo humano — é também “práxis”.
Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, “descodificandoo” criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se redescobre
como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência. Testemunhando
objetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por despertar
criticamente, para identificar-se como personagem que se ignorava e é chamada
a assumir seu papel. A consciência do mundo e a consciência de si crescem
juntas e em razão direta; uma é a luz interior da outra, uma comprometida com a
outra. Evidencia-se a intrínseca correlação entre conquistar-se, fazer-se mais si
mesmo, e conquistar o mundo, fazê-lo mais humano. Paulo Freire não inventou
o homem; apenas pensa e pratica um método pedagógico que procura dar ao
homem a oportunidade de re-descobrir-se através da retomada reflexiva do
próprio processo em que vai ele se descobrindo, manifestando e configurando —
“método de conscientização”.
Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se
constitui como consciência do mundo. Se cada consciência tivesse o seu mundo,
as consciências se desencontrariam em mundos diferentes e separados — seriam
mônadas incomunicáveis. As consciências não se encontram no vazio de si
mesmas, pois a consciência é sempre, radicalmente, consciência do mundo. Seu
lugar de encontro necessário é o mundo, que, se não for originariamente
comum, não permitirá mais a comunicação. Cada um terá seus próprios
caminhos de entrada nesse mundo comum, mas a convergência das intenções,
que o significam, é a condição de possibilidade das divergências dos que, nele, se
comunicam. A não ser assim, os caminhos seriam paralelos e intransponíveis. As
consciências não são comunicantes porque se comunicam; mas comunicam-se
porque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão originária
quanto sua mundanidade ou sua subjetividade. Radicalizando, poderíamos dizer,
em linguagem não mais fenomenológica, que a intersubjetivação das
consciências é a progressiva conscientização, no homem, do “parentesco
ontológico” dos seres no ser. É o mesmo mistério que nos invade e nos envolve,
encobrindo-se e descobrindo-se na ambiguidade do nosso corpo consciente.
Na constituição da consciência, mundo e consciência se põem como
consciência do mundo ou mundo consciente e, ao mesmo tempo, se opõem
como consciência de si e consciência do mundo. Na intersubjetivação, as
consciências também se põem como consciências de um certo mundo comum e,
nesse mundo, se opõem como consciência de si e consciência do outro.
Comunicamo-nos na oposição, que é a única via de encontro para consciências
que se constituem na mundanidade e na intersubjetividade.
O monólogo, enquanto isolamento, é a negação do homem; é fechamento da
consciência, uma vez que consciência é abertura. Na solidão, uma consciência,
que é consciência do mundo, adentra-se em si, adentrando-se mais em seu
mundo, que, reflexivamente, faz-se mais lúcida mediação da imediatez
intersubjetiva das consciências. A solidão — não o isolamento — só se mantém
enquanto renova e revigora as condições do diálogo.
O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele
é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram”
um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se e opõem-
se. Vimos que, assim, a consciência se existencia e busca perfazer-se. O diálogo
não é um produto histórico, é a própria historicização. É ele, pois, o movimento
constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence
intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca
reencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a si
mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si
mesma é comunicar-se com o outro. O isolamento não personaliza porque não
socializa. Intersubjetivando-se mais, mais densidade subjetiva ganha o sujeito.
A consciência e o mundo não se estruturam sincronicamente numa estática
consciência do mundo: visão e espetáculo. Essa estrutura funcionaliza-se
diacronicamente numa história. A consciência humana busca comensurar-se a si
mesma num movimento que transgride, continuamente, todos os seus limites.
Totalizando-se além de si mesma, nunca chega a totalizar-se inteiramente, pois
sempre se transcende a si mesma. Não é a consciência vazia do mundo que se
dinamiza, nem o mundo é simples projeção do movimento que a constitui como
consciência humana. A consciência é consciência do mundo: o mundo e a
consciência, juntos, como consciência do mundo, constituem-se dialeticamente
num mesmo movimento — numa mesma história. Em outros termos: objetivar o
mundo é historicizá-lo, humanizá-lo. Então, o mundo da consciência não é
criação, mas, sim, elaboração humana. Esse mundo não se constitui na
contemplação, mas no trabalho.
Na objetivação transparece, pois, a responsabilidade histórica do sujeito: ao
reproduzi-la criticamente, o homem se reconhece como sujeito que elabora o
mundo; nele, no mundo, efetua-se a necessária mediação do
autorreconhecimento que o personaliza e o conscientiza como autor responsável
de sua própria história. O mundo conscientiza-se como projeto humano: o
homem faz-se livre. O que pareceria ser apenas visão é, efetivamente,
“provocação”; o espetáculo, em verdade, é compromisso.
Se o mundo é o mundo das consciências intersubjetivadas, sua elaboração
forçosamente há de ser colaboração. O mundo comum mediatiza a originária
intersubjetivação das consciências: o autorreconhecimento plenifica-se no
reconhecimento do outro; no isolamento, a consciência modifica-se. A
intersubjetividade, em que as consciências se enfrentam, dialetizam-se,
promovem-se, é a tessitura última do processo histórico de humanização. Está
nas origens da “hominização” e anuncia as exigências últimas da humanização.
Reencontrar-se como sujeito, e liberar-se, é todo o sentido do compromisso
histórico. Já a antropologia sugere que a “práxis”, se humana e humanizadora, é a
“prática da liberdade”.
O círculo de cultura — no método Paulo Freire — re-vive a vida em
profundidade crítica. A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o,
problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo circular,
intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de
sua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, e em colaboração, reelaboram o mundo e, ao reconstruí-lo, apercebem-se de que, embora construído
também por eles, esse mundo não é verdadeiramente para eles. Humanizado por
eles, esse mundo não os humaniza. As mãos que o fazem não são as que o
dominam. Destinado a liberá-los como sujeitos, escraviza-os como objetos.
Reflexivamente, retomam o movimento da consciência que os constitui
sujeitos, desbordando a estreiteza das situações vividas; resumem o impulso
dialético da totalização histórica. Presentificados como objetos no mundo da
consciência dominadora, não se davam conta de que também eram presença que
presentifica um mundo que não é de ninguém, porque originariamente é de
todos. Restituída em sua amplitude, a consciência abre-se para a “prática da
liberdade”: o processo de “hominização”, desde suas obscuras profundezas, vai
adquirindo a translucidez de um projeto de humanização. Não é crescimento, é
história: áspero esforço de superação dialética das contradições que entretecem o
drama existencial da finitude humana. O método de conscientização de Paulo
Freire refaz criticamente esse processo dialético de historicização. Como todo
bom método pedagógico, não pretende ser método de ensino, mas sim de
aprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade de ser livre, mas
aprende a efetivá-la e exercê-la. A pedagogia aceita a sugestão da antropologia:
impõe-se pensar e viver “a educação como prática da liberdade”.
Não foi por acaso que esse método de conscientização originou-se como
método de alfabetização. A cultura letrada não é invenção caprichosa do espírito;
surge no momento em que a cultura, como reflexão de si mesma, consegue dizerse a si mesma, de maneira definida, clara e permanente. A cultura marca o
aparecimento do homem no largo processo da evolução cósmica. A essência
humana existencia-se, autodesvelando-se como história. Mas essa consciência
histórica, objetivando-se reflexivamente, surpreende-se a si mesma, passa a
dizer-se, torna-se consciência historiadora: o homem é levado a escrever sua
história. Alfabetizar-se é aprender a ler essa palavra escrita em que a cultura se
diz e, dizendo-se criticamente, deixa de ser repetição intemporal do que passou,
para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que é
anúncio e promessa do que há de vir. O destino, criticamente, recupera-se como
projeto.
Nesse sentido, alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, mas a dizer a
sua palavra, criadora de cultura. A cultura letrada conscientiza a cultura: a
consciência historiadora automanifesta à consciência sua condição essencial de
consciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e ditadas é uma forma de
mistificar as consciências, despersonalizando-as na repetição — é a técnica da
propaganda massificadora. Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e
também toda a antropologia.
A “hominização” opera-se no momento em que a consciência ganha a
dimensão da transcendentalidade. Nesse instante, liberada do meio envolvente,
despega-se dele, enfrenta-o, num comportamento que a constitui como
consciência do mundo. Nesse comportamento, as coisas são objetivadas, isto é,
significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo do
homem. A palavra, como comportamento humano, significante do mundo, não
designa apenas as coisas, transforma-as; não é só pensamento, é “práxis”. Assim
considerada, a semântica é existência e a palavra viva plenifica-se no trabalho.
Expressar-se, expressando o mundo, implica o comunicar-se. A partir da
intersubjetividade originária, poderíamos dizer que a palavra, mais que
instrumento, é origem da comunicação — a palavra é essencialmente diálogo. A
palavra abre a consciência para o mundo comum das consciências, em diálogo,
portanto. Nessa linha de entendimento, a expressão do mundo consubstancia-se
em elaboração do mundo e a comunicação em colaboração. E o homem só se
expressa convenientemente quando colabora com todos na construção do
mundo comum — só se humaniza no processo dialógico de humanização do
mundo. A palavra, porque lugar do encontro e do reconhecimento das
consciências, também o é do reencontro e do reconhecimento de si mesmo. A
palavra pessoal, criadora, pois a palavra repetida é monólogo das consciências
que perderam sua identidade, isoladas, imersas na multidão anônima e
submissas a um destino que lhes é imposto e que não são capazes de superar,
com a decisão de um projeto.
É verdade: nem a cultura iletrada é a negação do homem, nem a cultura
letrada chegou a ser sua plenitude. Não há homem absolutamente inculto: o
homem “hominiza-se” expressando, dizendo o seu mundo. Aí começam a
história e a cultura. Mas o primeiro instante da palavra é terrivelmente
perturbador: presentifica o mundo à consciência e, ao mesmo tempo, distanciao. O enfrentamento com o mundo é ameaça e risco. O homem substitui o
envoltório protetor do meio natural por um mundo que o provoca e desafia.
Num comportamento ambíguo, enquanto ensaia o domínio técnico desse
mundo, tenta voltar a seu seio, imergir nele, enleando-se na indistinção entre
palavra e coisa. A palavra, primitivamente, é mito. Interior ao mito e condição
sua, o logos humano vai conquistando primazia, com a inteligência das mãos que
transformam o mundo. Os primórdios dessa história ainda são mitologia: o mito
é objetivado pela palavra que o diz. A narração do mito, no entanto, objetivando
o mundo mítico e entrevendo o seu conteúdo racional, acaba por devolver à
consciência a autonomia da palavra, distinta das coisas que ela significa e
transforma. Nessa ambiguidade com que a consciência faz o seu mundo,
afastando-o de si, no distanciamento objetivante que o presentifica como mundo
consciente, a palavra adquire a autonomia que a torna disponível para ser
recriada na expressão escrita. Embora não tenha sido um produto arbitrário do
espírito inventivo do homem, a cultura letrada é um epifenômeno da cultura,
que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na palavra escrita uma
maneira mais firme e definida de dizer-se, isto é, de existenciar-se
discursivamente na práxis histórica. Podemos conceber a ultrapassagem da
cultura letrada: o que, em todo caso, ficará é o sentido profundo que ela
manifesta: escrever e não conservar e repetir a palavra dita, mas dizê-la com a
força reflexiva que sua autonomia lhe dá — a força ingênita que a faz
instauradora do mundo da consciência, criadora da cultura.
Com o método de Paulo Freire, os alfabetizandos partem de algumas poucas
palavras que lhes servem para gerar seu universo vocabular. Antes, porém,
conscientizam o poder criador dessas palavras: são elas que geram o seu mundo.
São significações que se constituem em comportamentos seus; portanto,
significações do mundo, mas suas também. Assim, ao visualizarem a palavra
escrita, em sua ambígua autonomia, já estão conscientes da dignidade de que ela
é portadora — a alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva
da cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novos
caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer a sua
palavra.
A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a
dizer a sua palavra. E a palavra humana imita a palavra divina: é criadora.
A palavra é entendida, aqui, como palavra e ação; não é o termo que assinala
arbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre separado da
existência. É significação produzida pela práxis, palavra cuja discursividade flui
da historicidade — palavra viva e dinâmica, não categoria inerte, exânime.
Palavra que diz e transforma o mundo.
A palavra viva é diálogo existencial. Expressa e elabora o mundo, em
comunicação e colaboração. O diálogo autêntico — reconhecimento do outro e
reconhecimento de si, no outro — é decisão e compromisso de colaborar na
construção do mundo comum. Não há consciências vazias; por isto os homens
não se humanizam, senão humanizando o mundo.
Em linguagem direta: os homens humanizam-se, trabalhando juntos para
fazer do mundo, sempre mais, a mediação de consciências que se coexistenciam
em liberdade. Aos que constroem juntos o mundo humano, compete assumirem
a responsabilidade de dar-lhe direção. Dizer a sua palavra equivale a assumir
conscientemente, como trabalhador, a função de sujeito de sua história, em
colaboração com os demais trabalhadores — o povo.
Ao Povo cabe dizer a palavra de comando no processo histórico-cultural. Se a
direção racional de tal processo já é política, então conscientizar é politizar. E a
cultura popular se traduz por política popular; não há cultura do Povo sem
política do Povo.
O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura
popular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mas
também não põe inimizade entre educação e política. Distingue-as, sim, mas na
unidade do mesmo movimento em que o homem se historiciza e busca
reencontrar-se, isto é, busca ser livre. Não tem a ingenuidade de supor que a
educação, só ela, decidirá dos rumos da história, mas tem, contudo, a coragem
suficiente para afirmar que a educação verdadeira conscientiza as contradições
do mundo humano, sejam estruturais, superestruturais ou interestruturais,
contradições que impelem o homem a ir adiante. As contradições
conscientizadas não lhe dão mais descanso, tornam insuportável a acomodação.
Um método pedagógico de conscientização alcança as últimas fronteiras do
humano. E como o homem sempre se excede, o método também o acompanha.
É “a educação como prática da liberdade”.
Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham
menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm
condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com
que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para
dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a
detêm e a recusam aos demais é um difícil, mas imprescindível aprendizado — é
a “pedagogia do oprimido”.
Professor Ernani Maria Fiori
Santiago, Chile,
dezembro de 1967
Nota
Paulo Freire, Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do
oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
1
PRIMEIRAS PALAVRAS
AS PÁGINAS QUE SE SEGUEM e que propomos como uma introdução à Pedagogia do
oprimido são o resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio.
Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil, nos vários setores em
que tivemos oportunidade de exercer atividades educativas.
Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que
damos e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicação
mesma de uma educação realmente libertadora, é o “medo da liberdade”, a que
faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio.
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em
que manifestam o seu “medo da liberdade”, se referem ao que chamam de
“perigo da conscientização”. “A consciência crítica (dizem) é anárquica.” Ao que
outros acrescentam: “Não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?”
Há, contudo, os que também dizem: “Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não
a temo!”
Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora,
durante longo tempo, operário, se estabeleceu uma dessas discussões em que se
afirmava a “periculosidade da consciência crítica”. No meio da discussão, disse
este homem: “Talvez seja eu, entre os senhores, o único de origem operária. Não
posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma
coisa posso afirmar: cheguei a esse curso ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo,
comecei a tornar-mecrítico. Esta descoberta, contudo, nem me faz fanático, nem
me dá a sensação de desmoronamento.” Discutia-se, na oportunidade, se a
conscientização de uma situação existencial, concreta, de injustiça não poderia
conduzir os homens dela conscientizados a um “fanatismo destrutivo” ou a uma
“sensação de desmoronamento total do mundo em que estavam esses homens”.
A dúvida, assim expressa, implicita uma afirmação nem sempre explicitada,
no que teme a liberdade: “Melhor será que a situação concreta de injustiça não se
constitua num ‘percebido’ claro para a consciência dos que a sofrem.”
Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo a
“fanatismos destrutivos”. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita
inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na
busca de sua afirmação.
“Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações
sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão.”2
O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu
portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia
na segurança vital, como diria Hegel,3 preferindo-a à liberdade arriscada.
Raro, porém, é o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua
tendência é, antes, camuflá-lo, num jogo manhoso, ainda que, às vezes,
inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer
como o que defende a liberdade e não como o que a teme.
Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade.
Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com
a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este
status quo, ameaça, então, a liberdade.
As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de
devaneios intelectuais nem, tampouco, de outro, resultam apenas de leituras, por
mais importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, como
sugerimos no início destas páginas, em situações concretas. Expressam reações
de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos
observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa
intenção é continuar com estas observações para retificar ou ratificar, em estudos
posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá
provocar, em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias.
Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas.
Uns, por considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos
homens, como uma posição idealista a mais, quando não um “blá-blá-blá”
reacionário. “Blá-blá-blá” de quem se perde falando em vocação ontológica, em
amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não
quererem ou não poderem aceitar as críticas e a denúncia que fazemos da
situação opressora, situação em que os opressores se “gratificam”, através de sua
falsa generosidade.
Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente
aproximativo, um trabalho para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda
que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua
totalidade, estes, estamos certos, poderão chegar ao fim do texto.
Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas,
“irracionais”, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste
livro.
É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A
radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta.
Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é crítica, por
isto libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens
fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de
transformação da realidade concreta, objetiva.
A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa
realidade, que, assim, não pode ser mudada.
Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos
homens. Daí que seja doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita
provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário.
Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização
em que se deixam cair, ao responder à sectarização direitista.
Não queremos, porém, com isto dizer — e o deixamos claro no ensaio
anterior4 — que o radical se torne dócil objeto da dominação.
Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não
pode ficar passivo diante da violência do dominador.
Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o
aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva
da própria ideia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual
exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se
encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o
atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética que gera um atuar e
um pensar certos na e sobre a realidade para transformá-la.
O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua
“irracionalidade” que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da
realidade, ou a percebe equivocadamente.
Até quando se pensa na dialética, a sua é uma “dialética domesticada”.
Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita, que, no nosso
ensaio anterior, chamamos de “sectário de nascença”, pretende frear o processo,
“domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também por que o
homem de esquerda, ao sectarizar-se, se equivoca totalmente na sua
interpretação “dialética” da realidade, da história, deixando-se cair em posições
fundamentalmente fatalistas.
Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o
presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente
“domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algo
preestabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis.
Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado é algo dado e imutável, para
o segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se
fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem
um e outro formas de ação negadoras da liberdade. É que o fato de um conceber
o presente “bem-comportado” e o outro, o futuro como predeterminado, não
significa que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro,
esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; o
segundo, à espera de que o futuro já “conhecido” se instale.
Pelo contrário, fechando-se em um “círculo de segurança”, do qual não
podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta
para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos
homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que
ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos
homens e não criado por eles.
A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro,
apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem igualmente proprietários,
terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele.
Enquanto o sectário de direita, fechando-se em “sua” verdade, não faz mais
do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se
encerra, é a negação do si mesmo.
Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em
torno de “sua” verdade, sentem-se abalados na sua segurança, se alguém a
discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não
seja a sua verdade. “Sofrem ambos da falta de dúvida.”5
O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender
em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais
radical quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor,
melhor poder transformá-la.
Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo.
Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o
crescente saber de ambos.6 Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens,
nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para
com eles lutar.
Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a
radicalização é o próprio do revolucionário. Daí que a pedagogia do oprimido,
que implica uma tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos
apresentar neste ensaio, e a própria leitura deste texto não possam ser realizadas
por sectários.
Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa
primeira leitora, por sua compreensão e estímulos constantes a nosso trabalho,
que também é seu. Agradecimento que estendemos a todos quantos leram os
originais deste ensaio pelas críticas que nos fizeram, o que não nos retira ou
diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas.
Paulo Freire
Santiago, Chile,
outono de 1968
Notas
2
Francisco Weffort, em prefácio a Paulo Freire, Educação como prática da liberdade.
[…] And it is solely by risking life that freedom is obtained. […] The individual, who has hot staked his life
may, no doubt, be recognized as a person; but he has not attained the truth of this recognition as an
independent self-consciousness. Georg W. F. Hegel, The Phenomenology of Mind. Nova York: Harper and
Row, 1967, p. 233.
3
4
Paulo Freire, Educação como prática da liberdade.
5
Márcio Moreira Alves, em conversa com o autor.
“Enquanto o conhecimento teórico permanecer como privilégio de uns quantos ‘acadêmicos’ dentro do
Partido, este se encontrará em grande perigo de ir ao fracasso.” Rosa Luxemburgo, “¿Reforma o
Revolución?”, in Wright Mills, Los marxistas. México: Ed. Era S.A., 1964, p. 171.
6
1
JUSTIFICATIVA DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
RECONHECEMOS A AMPLITUDE do tema que nos propomos tratar neste ensaio, com
o qual pretendemos, em certo aspecto, aprofundar alguns pontos discutidos em
nosso trabalho anterior, Educação como prática da liberdade. Daí que o
consideremos como mera introdução, como simples aproximação a assunto que
nos parece de importância fundamental.
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se
propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de
seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no
reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao se
instalarem na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem
problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a
novas perguntas.
O problema de sua humanização, apesar de sempre dever haver sido, de um
ponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje, caráter de
preocupação iniludível.7
Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a
desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade
histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa constatação que
os homens se perguntam sobre a outra viabilidade — a de sua humanização.
Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem num permanente movimento
de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real,
concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e
conscientes de sua inconclusão.
Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que
chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na
própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na
violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta
dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade
roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é
distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não
vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação
histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma
atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre,
pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para
si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização,
mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas
resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser
menos.
A CONTRADIÇÃO OPRESSORES-OPRIMIDOS. SUA SUPERAÇÃO
A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma
outra vocação — a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva
os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta
somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua
humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente
opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores
da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos
oprimidos — libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e
violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de
libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade
dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que o
poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos
oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como
jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para
que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da
permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora,
permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da
miséria.8
Daí o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, embora
tênue, à sua fonte. Não pode jamais entender esta “generosidade” que a
verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que
alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do
“demitido da vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e
trêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande
generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens
ou de povos, se estendam menos em gestos de súplica. Súplica de humildes a
poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e
transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir,
porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e
dos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de sua
humanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da
generosidade verdadeira.
Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o
significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles,
os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a
necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela
práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de
lutar por ela.
Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor,
com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até
mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida.
A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do
que nos parece constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido:
aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos,
na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o
seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se
fará e refará.
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o
opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da
pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram
“hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua
pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e
parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido,
que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta
descoberta crítica — a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos
oprimidos, como manifestações da desumanização.
Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à
pedagogia libertadora. E que, quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela,
tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu pensar se
encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial,
em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser
homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está
clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade.
Isto decorre, como analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de
que, em certo momento de sua experiência existencial, os oprimidos assumem
uma postura que chamamos de “aderência” ao opressor. Nestas circunstâncias,
não chegam a “admirá-lo”, o que os levaria a objetivá-lo, a descobri-lo fora de si.
Ao fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os oprimidos, neste
caso, não se saibam oprimidos. O seu conhecimento de si mesmos, como
oprimidos, se encontra, contudo, prejudicado pela “imersão” em que se acham
na realidade opressora. “Reconhecerem-se”, a este nível, contrários ao outro não
significa ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase aberração: um
dos polos da contradição pretendendo não a libertação, mas a identificação com
o seu contrário.
O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da
superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta
opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo
homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do
homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes
possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe
oprimida.
Desta forma, por exemplo, querem a reforma agrária, não para se libertarem,
mas para passarem a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais
precisamente, patrões de novos empregados.
Raros são os camponeses que, ao serem “promovidos” a capatazes, não se
tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão
mesmo. Poder-se-á dizer — e com razão — que isto se deve ao fato de que a
situação concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. E que, nesta
hipótese, o capataz, para assegurar seu posto, tem de encarnar, com mais dureza
ainda, a dureza do patrão. Tal afirmação não nega a nossa — a de que, nestas
circunstâncias, os oprimidos têm no opressor o seu testemunho de “homem”.
Até as revoluções, que transformam a situação concreta de opressão em uma
nova, em que a libertação se instaura como processo, enfrentam esta
manifestação da consciência oprimida. Muitos dos oprimidos que, direta ou
indiretamente, participaram da revolução, marcados pelos velhos mitos da
estrutura anterior, pretendem fazer da revolução a sua revolução privada.
Perdura neles, de certo modo, a sombra testemunhal do opressor antigo. Este
continua a ser o seu testemunho de “humanidade”.
O “medo da liberdade”,9 de que se fazem objeto os oprimidos, medo da
liberdade que tanto pode conduzi-los a pretender ser opressores também, quanto
pode mantê-los atados ao status de oprimidos, é outro aspecto que merece
igualmente nossa reflexão.
Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição.
Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí o
sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no
que vimos chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora. Por
isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à
base de pautas estranhas a eles — as pautas dos opressores.
Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas
pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta
sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com
outro “conteúdo” — o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que
não seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige
uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de
quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela
precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora
dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É
condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os
homens como seres inconclusos.
Daí a necessidade que se impõe de superar a situação opressora. Isto implica
o reconhecimento crítico, a “razão” desta situação, para que, através de uma ação
transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibilite
aquela busca do ser mais.
No momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação
que nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo ser mais. E, se a
situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que
atinge os que oprimem e os oprimidos, não vai caber, como já afirmamos, aos
primeiros, que se encontram desumanizados só pelo motivo de oprimir, mas aos
segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos.
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria
engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se
sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida
em que lutar por ela significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir,
como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se
assustam com maiores repressões.
Quando descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio
somente se faz concretude na concretude de outros anseios.
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a
escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a
gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não
liberdade os mantém à comunhão criadora a que a liberdade leva, até mesmo
quando ainda somente buscada.
Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser.
Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser,
mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como
consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem
duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si. Entre se
desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem
opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de
que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz,
castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo.
Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce
deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição
opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.
A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo
não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dar-se, porém, em termos puramente idealistas. Se
se faz indispensável aos oprimidos, para a luta por sua libertação, que a realidade
concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em
que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma
situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental,
então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe,
tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora.
Vale dizer, pois, que reconhecerem-se limitados pela situação concreta de
opressão, de que o falso sujeito, o falso “ser para si”, é o opressor, não significa
ainda a sua libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a sua
verdade, como disse Hegel,10 somente superam a contradição em que se acham
quando o reconhecerem-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se.
Não basta saberem-se numa relação dialética com o opressor — seu contrário
antagônico —, descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria
(Hegel), para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se
entreguem à práxis libertadora.
O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado
individualmente, como pessoa. Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que
sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se
com estes é algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo-os
atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a
consciência de que explora e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. A
solidariedade, exigindo de quem se solidariza que “assuma” a situação de com
quem se solidarizou, é uma atitude radical.
Se o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação à
consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e transformar-se, como salienta
Hegel,11 em “consciência para outro”, a solidariedade verdadeira com eles está
em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este
“ser para outro”.
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser
um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de
amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação
abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados
na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa
vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis,
se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que os homens são pessoas e, como
pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se
objetive, é uma farsa.
Da mesma forma como é em uma situação concreta — a da opressão — que
se instaura a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só
se pode verificar objetivamente também.
Daí esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor,
quanto para os oprimidos que, reconhecendo-se contradição daquele, desvelam
o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam — a radical
exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece-nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio,
que, ao apresentarmos esta radical exigência — a da transformação objetiva da
situação opressora —, combatendo um imobilismo subjetivista que
transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de
que um dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel
da subjetividade na luta pela modificação das estruturas.
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a
outra, que não podem ser dicotomizadas.
A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da
realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da
objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga
em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde
que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo
ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a
importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair
num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal
qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo.
Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará
esta dicotomia. O que Marx criticou, e cientificamente destruiu, não foi a
subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da
ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os
produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e
os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos
homens.
Ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos que oprimem e dos
que são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertação
juntamente com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam ganhar a
consciência crítica da opressão, na práxis desta busca.
Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a
realidade opressora, ao constituir-se como um quase mecanismo de absorção dos
que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências.12
Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora.
Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre
ela. É por isso que só através da práxis autêntica que, não sendo “blá-blá-blá”,
nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo.
Hay que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la
consciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, al
pregonarla.13
Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a
consciência da opressão”, a que Marx se refere, corresponde à relação dialética
subjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo
constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.
A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para
transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressoroprimidos.
Desta forma, esta superação exige a inserção crítica dos oprimidos na
realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela.
Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o
mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (ação
já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente
porque não é reconhecimento verdadeiro.
Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que
é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista, o qual, fugindo da realidade
objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. E não é possível transformar a
realidade concreta na realidade imaginária.
É o que ocorre, igualmente, quando a modificação da realidade objetiva fere
os interesses individuais ou de classe de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, não há inserção crítica na realidade, porque esta é fictícia;
no segundo, porque a inserção contradiria os interesses de classe do
reconhecedor.
A tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe,
mas tanto ele quanto o que dele talvez resulte lhe podem ser adversos. Daí que
seja necessário, numa indiscutível “racionalização”, não propriamente negá-lo,
mas vê-lo de forma diferente. A “racionalização”, como mecanismo de defesa,
termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas
distorcer suas verdades, a “racionalização” “retira” as bases objetivas do mesmo.
O fato deixa de ser ele concretamente e passa a ser um mito criado para a defesa
da classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso. Desta forma,
mais uma vez, é impossível a “inserção crítica”, que só existe na dialeticidade
objetividade-subjetividade.
Aí está uma das razões para a proibição, para as dificuldades — como
veremos no último capítulo deste ensaio —, no sentido de que as massas
populares cheguem a “inserir-se”, criticamente, na realidade. É que o opressor
sabe muito bem que esta “inserção crítica” das massas oprimidas, na realidade
opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a
permanência delas em seu estado de “imersão” em que, de modo geral, se
encontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite”
que lhes parece intransponível.
É interessante observar a advertência que faz Lukács14 ao partido
revolucionário de que […] il doit, pour employer les mots de Marx, expliquer aux
masses leur propre action non seulement afin d’assurer la continuité des
expériences revolutionnaires du prolétariat, mais aussi d’activer consciemment le
développement ultérieur de ces expériences.
Ao afirmar esta necessidade, Lukács coloca, indiscutivelmente, a questão da
“inserção crítica” a que nos referimos.
Expliquer aux masses leur propre action é esclarecer e iluminar a ação, de um
lado, quanto à sua relação com os dados objetivos que a provocam; de outro, no
que diz respeito às finalidades da própria ação.
Quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora
sobre a qualelas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se “inserem”
nela criticamente.
Desta forma, estarão ativando consciemment le développement ultérieur de
suas experiências.
É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um
mundo como “não eu” do homem, capaz de desafiálo; como também não haveria
ação humana se o homem não fosse um “projeto”, um mais além de si, capaz de
captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la.
Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente
solidários. Mas a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é quefazer,
isto é, quando também não se dicotomiza da reflexão. Esta, necessária à ação,
está implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de sua
própria ação” — como está implícita na finalidade que ele dá a essa explicação, a
de “ativar conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência”.
Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas,
mas em dialogar com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que
Lukács reconhece ao partido revolucionário de “explicar às massas a sua ação”
coincide com a exigência que fazemos da inserção crítica das massas na sua
realidade através da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si
mesma.15
A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens
empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter nos
próprios oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente a saber-se
oprimidos, um dos seus sujeitos.
Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos,
quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um “tratamento”
humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores,
modelos para a sua “promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si
mesmos, na luta por sua redenção.
A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se
apresenta como pedagogia do Homem. Somente ela, que se anima de
generosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar este
objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos
opressores egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos
de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de
desumanização.
Esta é a razão pela qual, como já afirmamos, esta pedagogia não pode ser
elaborada nem praticada pelos opressores.
Seria uma contradição se os opressores não só defendessem, mas praticassem
uma educação libertadora.
Se, porém, a prática desta educação implica o poder político e se os oprimidos
não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução?
Esta é, sem dúvida, uma indagação da mais alta importância, cuja resposta
nos parece encontrar-se mais ou menos clara no último capítulo deste ensaio.
Ainda que não queiramos antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar que
um primeiro aspecto desta indagação se encontra na distinção entre educação
sistemática, a que só pode ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos,
que devem ser realizados com os oprimidos, no processo de sua organização.
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois
momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo
da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o
segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de
ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de
permanente libertação.
Em qualquer destes momentos, será sempre a ação profunda, através da qual
se enfrentará, culturalmente, a cultura da dominação.16 No primeiro momento,
por meio da mudança da percepção do mundo opressor por parte dos
oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na
estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura
nova que surge da transformação revolucionária.
No primeiro momento, o da pedagogia do oprimido, objeto da análise deste
capítulo, estamos em face do problema da consciência oprimida e da consciência
opressora; dos homens opressores e dos homens oprimidos, em uma situação
concreta de opressão. Em face do problema de seu comportamento, de sua visão
do mundo, de sua ética. Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais,
contraditórios, divididos, que temos de encará-los. A situação de opressão em
que se “formam”, em que “realizam” sua existência, os constitui nesta dualidade,
na qual se encontram proibidos de ser. Basta, porém, que homens estejam sendo
proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica
seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes,
adocicada pela falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica e
histórica vocação dos homens — a do ser mais.
Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que
jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos.
Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de
uma violência?
Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se
objetivamente, os constitui?
Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os
conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão.
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se
reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são
reconhecidos pelos que os oprimem como outro.
Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque
apenas se amam.
Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas
os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os
“demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos.
Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.
Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua
humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua.
Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos
fortes, mas os fortes que os debilitaram.
Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua “generosidade”, são sempre
os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme
se situem, interna ou externamente, de “essa gente” ou de “essa massa cega e
invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de “subversivos”, são sempre os
oprimidos os que desamam. São sempre eles os “violentos”, os “bárbaros”, os
“malvados”, os “ferozes”, quando reagem à violência dos opressores.
Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos
oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor.
Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre
tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos,
sim, pode inaugurar o amor.
Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de
ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de
busca do direito de ser.
Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem
igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir
e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da
opressão.
Por isto é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os
opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam.
O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para
superar a contradição em que se acham. Que esta superação seja o surgimento do
homem novo — não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertandose. Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, que
estavam sendo proibidos de ser, não o conseguirão se apenas invertem os termos
da contradição. Isto é, se apenas mudam de lugar nos polos da contradição.
Esta afirmação pode parecer ingênua. Na verdade, não o é.
Reconhecemos que, na superação da contradição opressores-oprimidos, que
somente pode ser tentada e realizada por estes, está implícito o desaparecimento
dos primeiros, enquanto classe que oprime. Os freios que os antigos oprimidos
devem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não são
opressão daqueles a estes. A opressão só existe quando se constitui em um ato
proibitivo do ser mais dos homens. Por esta razão, estes freios, que são
necessários, não significam, em si mesmos, que os oprimidos de ontem se
tenham transformado nos opressores de hoje.
Os oprimidos de ontem, que detêm os antigos opressores na sua ânsia de
oprimir, estarão gerando, com seu ato, liberdade, na medida em que, com ele,
evitam a volta do regime opressor. Um ato que proíbe a restauração deste regime
não pode ser comparado com o que o cria e o mantém; não pode ser comparado
com aquele através do qual alguns homens negam às maiorias o direito de ser.
No momento, porém, em que o novo poder se enrijece em “burocracia”17
dominadora, se perde a dimensão humanista da luta e já não se pode falar em
libertação.
Daí a afirmação anteriormente feita, de que a superação autêntica da
contradição opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem
de um polo a outro. Mais ainda: não está em que os oprimidos de hoje, em nome
de sua libertação, passem a ter novos opressores.
A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO E OS OPRESSORES
Mas o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se faça em termos
autênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de uma nova
realidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores de
ontem não se reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se como se
realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na
experiência de opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir
significa opressão a eles. Vão sentir-se, agora, na nova situação, como oprimidos
porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvir
Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, não
estudavam nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven,
qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece uma
profunda violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa que, na situação
anterior, não respeitavam nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de
fome, de dor, de tristeza, de desesperança.
É que, para eles, pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”.
Para eles, há um só direito — o seu direito de viverem em paz, ante o direito de
sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos
oprimidos. E isto ainda porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para
que eles existam e sejam “generosos”…
Esta maneira de proceder, de compreender o mundo e os homens (que
necessariamente os faz reagir à instalação de um novo poder), explica-se, como já
dissemos, na experiência em que se constituem como classe dominadora.
Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda
uma forma de ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores
e nos oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação,
refletem a opressão que os marca.
Na análise da situação concreta, existencial, de opressão, não podemos deixar
de surpreender o seu nascimento num ato de violência que é inaugurado,
repetimos, pelos que têm poder.
Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores,
que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima
cria nos opressores uma consciência fortemente possessiva. Possessiva do mundo
e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens,
os opressores não se podem entender a si mesmos. Não podem ser. Deles como
consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, perderian el contacto
con el mundo.18 Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de
seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens
mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu
comando.
Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é
possível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepção
estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas.
E o lucro, seu objetivo principal.
Por isto é que, para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à
custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e
ter como classe que tem.
Não podem perceber, na situação opressora em que estão, como
usufrutuários, que, se ter é condição para ser, esta é uma condição necessária a
todos os homens. Não podem perceber que, na busca egoísta do ter como classe
que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser.
Por isto tudo é que a sua generosidade, como salientamos, é falsa.
Por isto tudo é que a humanização é uma “coisa” que possuem como direito
exclusivo, como atributo herdado. A humanização é apenas sua. A dos outros,
dos seus contrários, se apresenta como subversão. Humanizar é, naturalmente,
segundo seu ponto de vista, subverter, e não ser mais.
Ter mais, na exclusividade, não é um privilégio desumanizante e inautêntico
dos demais e de si mesmos, mas um direito intocável. Direito que “conquistaram
com seu esforço, com sua coragem de correr risco”. Se os outros — “esses
invejosos” — não têm, é porque são incapazes e preguiçosos, a que juntam ainda
um injustificável mau agradecimento a seus “gestos generosos”. E, porque “malagradecidos e invejosos”, são sempre vistos os oprimidos como seus inimigos
potenciais a quem têm de observar e vigiar.
Não poderia deixar de ser assim. Se a humanização dos oprimidos é
subversão, sua liberdade também o é. Daí a necessidade de seu constante
controle. E, quanto mais controlam os oprimidos, mais os transformam em
“coisa”, em algo que é como se fosse inanimado.
Esta tendência dos opressores de inanimar tudo e todos, que se encontra em
sua ânsia de posse, se identifica, indiscutivelmente, com a tendência sadista. El
placer del dominio completo sobre otra persona (o sobre otra creatura animada),
diz Fromm, es la esencia misma del impulso sádico. Otra manera de formular la
misma idea es decir que el fin del sadismo es convertir un hombre en cosa, algo
animado en algo inanimado, ya que mediante el control completo y absoluto el
vivir pierde una cualidad esencial de la vida: la libertad.19
O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência
opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor
às avessas — um amor à morte e não à vida.
Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a
inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a
vida.
Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como
instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força
indiscutível de manutenção da “ordem” opressora, com a qual manipulam e
esmagam.20
Os oprimidos, como objetos, como quase “coisas”, não têm finalidades. As
suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores.
Em face de tudo isto é que se coloca a nós mais um problema de importância
inegável a ser observado no corpo destas considerações, que é o da adesão e
consequente passagem que fazem representantes do polo opressor ao polo dos
oprimidos. De sua adesão à luta destes por libertar-se.
Cabe a eles um papel fundamental, como sempre tem cabido na história desta
luta.
Acontece, porém, que, ao passarem de exploradores ou de espectadores
indiferentes ou de herdeiros da exploração — o que é uma conivência com ela —
ao polo dos explorados, quase sempre levam consigo, condicionados pela
“cultura do silêncio”,21 toda a marca de sua origem. Seus preconceitos. Suas
deformações, entre estas, a desconfiança do povo. Desconfiança de que o povo
seja capaz de pensar certo. De querer. De saber.
Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo de
generosidade, tão funesto quanto o que criticamos nos dominadores.
Se esta generosidade não se nutre, como no caso dos opressores, da ordem
injusta que precisa ser mantida para justificá-la; se querem realmente
transformá-la, na sua deformação, contudo, acreditam que devem ser os
fazedores da transformação.
Comportam-se, assim, como quem não crê no povo, ainda que nele falem. E
crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um
revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que
por mil ações sem ela.
Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável
que se revejam constantemente. Esta adesão é de tal forma radical que não
permite a quem a faz comportamentos ambíguos.
Fazer esta adesão e considerar-se proprietário do saber revolucionário, que
deve, desta maneira, ser doado ou imposto ao povo, é manter-se como era antes.
Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o
povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso
equívoco.
Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão
sua, uma espécie de susto, e pretender impor o seu status, é manter-se nostálgico
de sua origem.
Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os que
passam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já não podem atuar
como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo.
A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO E OS OPRIMIDOS
Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo-se também um deles —
somente a um nível diferente de percepção da realidade —, que poderá
compreender as formas de ser e comportar-se dos oprimidos, que refletem, em
momentos diversos, a estrutura da dominação.
Uma destas, de que já falamos rapidamente, é a dualidade existencial dos
oprimidos que, “hospedando” o opressor, cuja “sombra” eles “introjetam”, são
eles e ao mesmo tempo são o outro. Daí que, quase sempre, enquanto não
chegam a localizar o opressor concretamente, como também enquanto não
cheguem a ser “consciência para si”, assumam atitudes fatalistas em face da
situação concreta de opressão em que estão.22
Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, de
docilidade, como caráter nacional, o que é um engano. Este fatalismo, alongado
em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço
essencial da forma de ser do povo.
Quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina ou
do fado — potências irremovíveis — ou a uma distorcida visão de Deus. Dentro
do mundo mágico ou místico em que se encontra, a consciência oprimida,
sobretudo camponesa, quase imersa na natureza,23 encontra no sofrimento,
produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o
fazedor desta “desordem organizada”.
Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar,
claramente, a “ordem” que serve aos opressores que, de certa forma, “vivem”
neles. “Ordem” que, frustrando-os no seu atuar, muitas vezes os leva a exercer
um tipo de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros.24 É
possível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua dualidade. Ao
agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente,
o opressor também “hospedado” neles e nos outros. Agridem, como opressores,
o opressor nos oprimidos.
Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos
oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida.
Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação
querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica,
sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao
“homem ilustre” da chamada classe “superior”.
É interessante observar como Memmi,25 em uma excepcional análise da
“consciência colonizada”, se refere à sua repulsa de colonizado ao colonizador
mesclada, contudo, de “apaixonada” atração por ele.
A autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que
fazem eles da visão que deles têm os opressores.26
De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que
não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude
de tudo isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade”.27 Falam de si
como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar.
Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.
Não se percebem, quase sempre, conhecendo, nas relações que estabelecem
com o mundo e com os outros homens, ainda que um conhecimento ao nível da
pura doxa.
Dentro dos marcos concretos em que se fazem duais é natural que descreiam
de si mesmos.28
Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiência
educativa que, após alguns momentos de discussão viva em torno de um tema
que lhes é problemático, param de repente e dizem ao educador: “Desculpe, nós
devíamos estar calados e o senhor falando. O senhor é o que sabe; nós, os que
não sabemos.”
Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal
e, quando reconhecem alguma, é em vantagem do animal. “É mais livre do que
nós”, dizem.
É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alterações
numa situação opressora, se verifica uma transformação nesta autodesvalia.
Escutamos, certa vez, um líder camponês dizer, em reunião, numa das unidades
de produção (asentamiento) da experiência chilena de reforma agrária: “Diziam
de nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudo
mentira. Agora, que estamos sendo respeitados como homens, vamos mostrar a
todos que nunca fomos borrachos, nem preguiçosos. Éramos explorados, isto
sim”, concluiu enfático.
Enquanto se encontra nítida sua ambiguidade, os oprimidos dificilmente
lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na
invulnerabilidade do opressor.29 No seu poder de que sempre dá testemunho.
Nos campos, sobretudo, se observa a força mágica do poder do senhor.30 É
preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que,
em si, vá operando-se convicção oposta à anterior. Enquanto isto não se verifica,
continuarão abatidos, medrosos, esmagados.31
Até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de
seu estado de opressão, “aceitam” fatalistamente a sua exploração. Mais ainda,
provavelmente assumam posições passivas, alheadas, com relação à necessidade
de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação no mundo.
Nisto reside sua “convivência” com o regime opressor.
Pouco a pouco, porém, a tendência é assumir formas de ação rebelde. Num
quefazer libertador, não se pode perder de vista esta maneira de ser dos
oprimidos, nem esquecer este momento de despertar.
Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentem
como se fossem uma quase “coisa” possuída pelo opressor. Enquanto, no seu afã
de possuir, para este, como afirmamos, ser é ter à custa quase sempre dos que não
têm, para os oprimidos, num momento de sua experiência existencial, ser nem
sequer é ainda parecer com o opressor, mas é estar sob ele. É depender. Daí que
os oprimidos sejam dependentes emocionais.32
NINGUÉM LIBERTA NINGUÉM, NINGUÉM SE LIBERTA SOZINHO: OS HOMENS SE LIBERTAM
EM COMUNHÃO
É este caráter de dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar
às manifestações que Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua
ou da do outro, oprimido também.
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se
engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos,
superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta
não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece
fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério
empenho de reflexão, para que seja práxis.
O diálogo crítico e libertador, por isto mesmo que supõe a ação, tem de ser
feito com os oprimidos, qualquer que seja o grau em que esteja a luta por sua
libertação. Não um diálogo às escâncaras, que provoca a fúria e a repressão maior
do opressor.
O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do
nível de percepção da realidade que tenham os oprimidos, é o conteúdo do
diálogo. Substituí-lo pelo antidiálogo, pela sloganização, pela verticalidade, pelos
comunicados é pretender a libertação dos oprimidos com instrumentos da
“domesticação”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta
libertação é transformá-los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É
fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra.
Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecerse como homens, na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a
ação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o
conteúdo da forma histórica de ser do homem.
Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre
suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível
puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se
realmente reflexão, conduz à prática.
Por outro lado, se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o
saber dela resultante se faz objeto da reflexão crítica. É neste sentido que a práxis
constitui a razão nova da consciência oprimida e que a revolução, que inaugura o
momento histórico desta razão, não pode encontrar viabilidade fora dos níveis
da consciência oprimida.
A não ser assim, a ação é puro ativismo.
Desta forma, nem um diletante jogo de palavras vazias — quebra-cabeça
intelectual — que, por não ser reflexão verdadeira, não conduz à ação, nem ação
pela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve ser
dicotomizada.
Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos homens oprimidos. Que os
vejamos como capazes de pensar certo também.
Se esta crença nos falha, abandonamos a ideia, ou não a temos, do diálogo, da
reflexão, da comunicação e caímos nos slogans, nos comunicados, nos depósitos,
no dirigismo. Esta é uma ameaça contida nas inautênticas adesões à causa da
libertação dos homens.
A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, “ação cultural”
para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência emocional,
fruto da situação concreta de dominação em que se acham e que gera também a
sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser pelo
opressor. Este é que se serve desta dependência para criar mais dependência.
A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dos
oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação,
transformá-la em independência. Esta, porém, não é doação que uma liderança,
por mais bem-intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a
libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de “coisas”. Por isto, se
não é autolibertação — ninguém se liberta sozinho —, também não é libertação
de uns feita por outros.
Não se pode realizar com os homens pela “metade”.33 E, quando o tentamos,
realizamos a sua deformação. Mas, deformados já estando, enquanto oprimidos,
não pode a ação de sua libertação usar o mesmo procedimento empregado para
sua deformação.
O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de libertação a ser realizado
pela liderança revolucionária não é a “propaganda libertadora”. Não está no
mero ato de “depositar” a crença da liberdade nos oprimidos, pensando
conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles.
Precisamos estar convencidos de que o convencimento dos oprimidos de que
devem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderança
revolucionária, mas resultado de sua conscientização.
É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu
convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão
indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é
autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser
transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de
reflexão e de ação.
Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à
crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la.
Assim também é necessário que os oprimidos, que não se engajam na luta
sem estar convencidos e, se não se engajam, retiram as condições para ela,
cheguem, como sujeitos, e não como objetos, a este convencimento. É preciso
que também se insiram criticamente na situação em que se encontram e de que
se acham marcados. E isto a propaganda não faz. Se este convencimento, sem o
qual, repitamos, não é possível a luta, é indispensável à liderança revolucionária,
que se constitui a partir dele, o é também aos oprimidos. A não ser que se
pretenda fazer para eles a transformação, e não com eles — somente como nos
parece verdadeira esta transformação.34
Ao fazermos estas considerações, outra coisa não estamos tentando senão
defender o caráter eminentemente pedagógico da revolução.
Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do
convencimento das massas oprimidas para que aceitem a luta pela libertação — o
que de resto é óbvio —, reconhecem implicitamente o sentido pedagógico desta
luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra a
pedagogia, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na
“educação” que serve ao opressor. Negam a ação pedagógica no processo de
libertação, mas usam a propaganda para convencer…
Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação da
contradição opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que esta
luta exige deles, a partir do momento em que a aceitam, a sua responsabilidade
total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdade para
comer, mas “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se”. Tal
liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem
uma peça bem-alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam
escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o resultado
não é o amor à vida, mas o amor à morte.35 Os oprimidos que se “formam” no
amor à morte, que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta,
o caminho do amor à vida, que não está apenas no comer mais, se bem que o
implique também e dele não possa prescindir.
É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como “coisas”. É
precisamente porque reduzidos a quase “coisas”, na relação de opressão em que
estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante que
ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como
quase “coisas” para depois serem homens. É radical esta exigência. A
ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se
reconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa no
autorreconhecimento de homens destruídos.
A propaganda, o dirigismo, a manipulação, como armas da dominação, não
podem ser instrumentos para esta reconstrução.36
Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora,
em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e
continuar mantendo-os como quase “coisas”, com eles estabelece uma relação
dialógica permanente.
Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no
nosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderança
revolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso os oprimidos)
porque é já a própria consciência.
“O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma
exterior e materializada em atos, que assume a propriedade fundamental da
consciência: a sua intencionalidade. O próprio da consciência é estar com o
mundo e este procedimento é permanente e irrecusável. Portanto, a consciência
é, em sua essência, um ‘caminho para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a
circunda e que ela apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, a
consciência é, pois, método, entendido este no seu sentido de máxima
generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é a essência da consciência,
que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica.”37
Porque assim é, a educação a ser praticada pela liderança revolucionária se faz
cointencionalidade.
Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se
encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e,
assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento.
Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se
descobrem como seus refazedores permanentes.
Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que
pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento.
Notas
Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelam
peculiaridades dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupação em torno do
homem e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do que e de como estão sendo. Ao
questionarem a “civilização do consumo”; ao denunciarem as “burocracias” de todos os matizes; ao
exigirem a transformação das universidades, de que resultem, de um lado, o desaparecimento da rigidez nas
relações professor-aluno; de outro, a inserção delas na realidade; ao proporem a transformação da realidade
mesma para que as universidades possam renovar-se; ao rechaçarem velhas ordens e instituições
estabelecidas, buscando a afirmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes movimentos refletem
o sentido mais antropológico do que antropocêntrico de nossa época.
7
“Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos
suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a
carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a
minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus
companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que
vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?” São Gregório de Nissa (330-395), “Sermão contra os
usurários”.
8
Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira diferente. Nos
oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a “liberdade” de
oprimir.
9
The truth of the independent consciousness is (accordingly) the consciousness of the bondsman. Hegel, op.
cit., p. 237.
10
Referindo-se à consciência senhorial e à consciência servil, diz Hegel: the one is independent, and its
essential nature is to be for itself; the other is dependent and its essence is life or existence for another. The
former is the Master, or Lord, the latter the Bondsman. Op. cit., p. 234.
11
“A ação Libertadora implica um momento necessariamente consciente e volitivo, configurando-se como
a prolongação e a inserção continuadas deste na história. A ação dominadora, entretanto, não supõe esta
dimensão com a mesma necessariedade, pois a própria funcionalidade mecânica e inconsciente da estrutura
é mantenedora de si mesma e, portanto, da dominação.” De um trabalho de José Luiz Fiori, a quem o autor
agradece a possibilidade da citação.
12
Karl Marx e Friedrich Engels, La sagrada familia y otros escritos. México: Grijalbo, 1962, p. 6. (O grifo é
nosso.)
13
14
György Lukács, Lenine.Paris: Études et Documentation Internationales, 1965, p. 62.
La teoria materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que,
por tanto, los hombres modificados son producto de circunstancias distintas y de una educación distinta,
olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el proprio educador
15
necesita ser educado. Karl Marx, “Tercera Tesis sobre Feuerbach”, in Karl Marx e Friedrich Engels, Obras
escogidas. Moscou: Editorial Progresso, 1966, v. II, p. 404.
16
Este nos parece ser o aspecto fundamental da “revolução cultural”.
Este enrijecimento não se confunde, pois, com os freios referidos anteriormente e que têm de ser
impostos aos antigos opressores, para que não restaurem a ordem dominadora. É de outra natureza. Implica
a revolução que, estagnando-se, volta-se contra o povo, usando o mesmo aparato burocrático repressivo do
Estado, que devia ter sido radicalmente suprimido, como tantas vezes salientou Marx.
17
18
Erich Fromm, El corazón del hombre, breviario. México: Fondo de Cultura Económica, 1967, p. 41.
19
Fromm, op. cit., p. 30. (Os grifos são nossos.)
A propósito das “formas dominantes de controle social”, cf. Herbert Marcuse, L’Homme undimensionel e
Eros et Civilisation. Paris: Éditions de Minuit, 1968-1961, obras já traduzidas para o português.
20
A propósito de “cultura do silêncio”, cf. “Paulo Freire: ação cultural para libertação”, Cambridge,
Massachusetts, Center for the Study of Development and Social Change, 1970. Este ensaio apareceu
primeiramente em Harvard Educational Review, nos seus números de maio e agosto de 1970; é publicado no
Brasil em 1976, pela Paz e Terra, no livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos.
21
“O camponês, que é um dependente, começa a ter ânimo para superar sua dependência quando se dá
conta de sua dependência. Antes disto, segue o patrão e diz quase sempre: ‘Que posso fazer, se sou um
camponês?’” — Palavras de um camponês durante entrevista com o autor, no Chile.
22
Cf. Cândido Mendes, Memento dos vivos: a esquerda católica no Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1966.
23
Frantz Fanon, Los condenados de la tierra. México: Fondo de Cultura Económica, 1965: […] el colonizado
no deja de liberarse entre las nueve de la noche y las seis de la mañana. Esa agresividad sedimentada en sus
músculos va a manifestarla al colonizado primero contra los suyos. (p. 46)
24
How could the colonizer look after his workers while periodically gunning down a crowd of the colonized?
How could the colonized deny himself so cruelly yet make such excessive demands? How could he hate the
colonizers and yet admire them so passionately? (I too felt this admiration, diz Memmi, in spite of
myself).Albert Memmi, The Colonizer and the Colonized. Boston: Beacon Press, 1967, p. X. Em português,
Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
25
“O camponês se sente inferior ao patrão porque este lhe parece como o que tem o mérito de saber e
dirigir.” (Entrevista do autor com um camponês.)
26
27
Cf. a este respeito o livro citado de Albert Memmi.
“Por que o senhor (disse certa vez um camponês participante de um ‘círculo de cultura’ ao educador) não
explica primeiramente os quadros (referia-se às codificações)? Assim (concluiu) nos custará menos e não
nos dói a cabeça.”
28
29
“O camponês tem um medo quase instintivo do patrão.” (Entrevista com um camponês.)
Recentemente, num país latino-americano, segundo depoimento que nos foi dado por sociólogo amigo,
um grupo de camponeses, armados, se apoderou do latifúndio. Por motivos de ordem tática, se pensou em
manter o proprietário como refém. Nenhum camponês, contudo, conseguiu dar guarda a ele. Só sua
presença já os assustava. Possivelmente também a ação mesma de lutar contra o patrão lhes provocasse
sentimento de culpa. O patrão, na verdade, estava “dentro” deles…
30
31
Neste sentido, cf. Regis Debray, Revolução na revolução. São Paulo: Centro Ed. Latino-americano, 1967.
“O camponês é um dependente. Não pode expressar o seu querer. Antes de descobrir sua dependência,
sofre. Desabafa sua ‘pena’ em casa, onde grita com os filhos, bate, desespera-se. Reclama da mulher. Acha
tudo mal. Não desabafa sua ‘pena’ com o patrão porque considera um ser superior. Em muitos casos, o
camponês desabafa sua ‘pena’ bebendo.” (Entrevista.)
32
Referimo-nos à redução dos oprimidos à condição de meros objetos da ação libertadora que, assim, é
realizada mais sobre e para eles do que com eles, como deve ser.
33
34
No capítulo IV voltaremos detidamente a estes pontos.
35
Fromm, op. cit., pp. 54-5.
36
No Capítulo IV voltaremos pormenorizadamente a este tema.
Álvaro Vieira Pinto, Ciência e existência, 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Deixamos aqui o nosso
agradecimento ao mestre brasileiro por nos haver permitido citá-lo antes da publicação de sua obra.
Consideramos o trecho citado de grande importância para a compreensão de uma pedagogia da
problematização, que estudaremos no capítulo seguinte.
37
2
A CONCEPÇÃO “BANCÁRIA” DA EDUCAÇÃO
COMO INSTRUMENTO DA OPRESSÃO. SEUS
PRESSUPOSTOS, SUA CRÍTICA
QUANTO MAIS ANALISAMOS as relações educador-educandos, na escola, em
qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer
de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante — o de serem
relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.
Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a
fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade.
Narração ou dissertação que implica um sujeito — o narrador — e objetos
pacientes, ouvintes — os educandos.
Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação é
preponderantemente esta — narrar, sempre narrar.
Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bemcomportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à
experiência existencial dos educandos, vem sendo, realmente, a suprema
inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece
como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é
“encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são
retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em
cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da
dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em
verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim,
melhor seria não dizê-la.
Por isto mesmo é que uma das características desta educação dissertadora é a
“sonoridade” da palavra e não sua força transformadora. Quatro vezes quatro,
dezesseis; Pará, capital Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, sem
perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente
significa capital, na afirmação, Pará, capital Belém. Belém para o Pará e Pará para
o Brasil.38
A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à
memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os
transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador.
Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor
educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores
educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os
educandos são os depositários e o educador, o depositante.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os
educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem.
Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que
se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.
Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No
fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das
hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque,
fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos
se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há
criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na
reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no
mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.
Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam
sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações
instrumentais da ideologia da opressão — a absolutização da ignorância, que
constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se
encontra sempre no outro.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,
invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que
não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como
processos de busca.
O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia necessária.
Reconhece na absolutização da ignorância daqueles a razão de sua existência. Os
educandos, alienados, por sua vez, à maneira do escravo na dialética hegeliana,
reconhecem em sua ignorância a razão da existência do educador, mas não
chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se
educadores do educador.
Na verdade, como mais adiante discutiremos, a razão de ser da educação
libertadora está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de
educação implique a superação da contradição educador-educandos, de tal
maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos.
Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o
ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se
verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a
sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação”
“bancária” mantém e estimula a contradição.
Daí, então, que nela:
a.
b.
c.
d.
e.
f.
g.
h.
i.
o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;
o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;
o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;
o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam
docilmente;
o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;
o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que
seguem a prescrição;
o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na
atuação do educador;
o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos
nesta escolha, se acomodam a ele;
o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional,
que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptarse às determinações daquele;
j. o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros
objetos.
Se o educador é o que sabe, se os educandos são os que nada sabem, cabe
àquele dar, entregar, levar, transmitir o seu saber aos segundos. Saber que deixa
de ser de “experiência feito” para ser de experiência narrada ou transmitida.
Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens
sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem
os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos
desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no
mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.
Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em
lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada
nos depósitos recebidos.
Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos
ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos
interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do
mundo, a sua transformação. O seu “humanitarismo”, e não humanismo, está
em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a
manutenção de sua falsa generosidade, a que nos referimos no capítulo anterior.
Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente, contra qualquer tentativa de
uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar
pelas visões parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um
ponto a outro, ou um problema a outro.
Na verdade, o que pretendem os opressores “é transformar a mentalidade dos
oprimidos e não a situação que os oprime”,39 e isto para que, melhor adaptandoos a esta situação, melhor os dominem.
Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que
juntam toda uma ação social de caráter paternalista, em que os oprimidos
recebem o nome simpático de “assistidos”. São casos individuais, meros
“marginalizados”, que discrepam da fisionomia geral da sociedade. “Esta é boa,
organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, são patologia da
sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-lhes a
mentalidade de homens ineptos e preguiçosos.”
Como marginalizados, “seres fora de” ou “à margem de”, a solução para eles
estaria em que fossem “integrados”, “incorporados” à sociedade sadia de onde
um dia “partiram”, renunciando, como trânsfugas, a uma vida feliz.
Sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” e
assumirem a de “seres dentro de”.
Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos,
jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os
transforma em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”,
em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para
que possam fazer-se “seres para si”.
Este não pode ser, obviamente, o objetivo dos opressores. Daí que a
“educação bancária”, que a eles serve, jamais possa orientar-se no sentido da
conscientização dos educandos.
Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão “bancária”
propor aos educandos o desvelamento do mundo, mas, pelo contrário,
perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois dizer-lhes,
enfaticamente, que não, que “Ada deu o dedo à arara”.
A questão está em que pensar autenticamente é perigoso. O estranho
humanismo desta concepção “bancária” se reduz à tentativa de fazer dos homens
o seu contrário — o autômato, que é a negação de sua ontológica vocação de ser
mais.
O que não percebem os que executam a educação “bancária”,
deliberadamente ou não (porque há um sem-número de educadores de boa
vontade, que apenas não se sabem a serviço da desumanização ao praticarem o
“bancarismo”), é que nos próprios “depósitos” se encontram as contradições,
apenas revestidas por uma exterioridade que as oculta. E que, cedo ou tarde, os
próprios “depósitos” podem provocar um confronto com a realidade em devenir
e despertar os educandos, até então passivos, contra a sua “domesticação”.
A sua “domesticação” e a da realidade, da qual se lhes fala como algo estático,
pode despertá-los como contradição de si mesmos e da realidade. De si mesmos,
ao se descobrirem, por experiência existencial, em um modo de ser inconciliável
com a sua vocação de humanizar-se. Da realidade, ao perceberem-na em suas
relações com ela, como devenir constante.
A CONCEPÇÃO PROBLEMATIZADORA E LIBERTADORA DA EDUCAÇÃO. SEUS
PRESSUPOSTOS
É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é
humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a “educação
bancária” pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação.
Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar esta
possibilidade.40 Sua ação, identificando-se, desde logo, com a dos educandos,
deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e
não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da
profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador.
Isto tudo exige dele que seja um companheiro dos educandos, em suas
relações com estes.
A educação “bancária”, em cuja prática se dá a inconciliação educadoreducandos, rechaça este companheirismo. E é lógico que seja assim. No
momento em que o educador “bancário” vivesse a superação da contradição já
não seria “bancário”. Já não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já não
prescreveria. Saber com os educandos, enquanto estes soubessem com ele, seria
sua tarefa. Já não estaria a serviço da desumanização. A serviço da opressão, mas
a serviço da libertação.
A CONCEPÇÃO “BANCÁRIA” E A CONTRADIÇÃO EDUCADOR-EDUCANDO
Esta concepção “bancária” implica, além dos interesses já referidos, outros
aspectos que envolvem sua falsa visão dos homens. Aspectos ora explicitados, ora
não, em sua prática.
Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente
no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não
recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo espacializado neles
e não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se fosse
alguma seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada,
passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Uma
consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo
lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homens
fossem uma presa do mundo e este, um eterno caçador daqueles, que tivesse por
distração “enchê-los” de pedaços seus.
Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que
escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a
mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos todos que aqui estão,
exatamente como dentro deste quarto estou agora.
Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada na
consciência. A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me
cercam estão simplesmente presentes à minha consciência, e não dentro dela.
Tenho a consciência deles mas não os tenho dentro de mim.
Mas, se para a concepção “bancária” a consciência é, em sua relação com o
mundo, esta “peça” passivamente escancarada a ele, à espera de que entre nela,
coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não
o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também,
o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de
“encher” os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados”
— falso saber — que ele considera como verdadeiro saber.41
E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já
são seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda e adaptá-los ao
mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais
“educados”, porque adequados ao mundo.
Esta é uma concepção que, implicando uma prática, somente pode interessar
aos opressores, que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os
homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o
mundo estejam os homens.
Quanto mais se adaptam as grandes maiorias às finalidades que lhes sejam
prescritas pelas minorias dominadoras, de tal modo que careçam aquelas do
direito de ter finalidades próprias, mais poderão estas minorias prescrever.
A concepção e a prática da educação que vimos criticando se instauram como
eficientes instrumentos para este fim. Daí que um dos seus objetivos
fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos do que a realizam,
seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico. Nas aulas verbalistas, nos métodos de
avaliação dos “conhecimentos”, no chamado “controle de leitura”, na distância
entre o educador e os educandos, nos critérios de promoção, na indicação
bibliográfica,42 em tudo, há sempre a conotação “digestiva” e a proibição ao
pensar verdadeiro.
Entre permanecer porque desaparece, numa espécie de morrer para viver, e
desaparecer pela e na imposição de sua presença, o educador “bancário” escolhe
a segunda hipótese. Não pode entender que permanecer é buscar ser, com os
outros. É conviver, simpatizar. Nunca sobrepor-se, nem sequer justapor-se aos
educandos, dessimpatizar. Não há permanência na hipertrofia.
Mas, em nada disto pode o educador “bancário” crer. Conviver, simpatizar
implicam comunicar-se, o que a concepção que informa sua prática rechaça e
teme.
Não pode perceber que somente na comunicação tem sentido a vida humana.
Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do
pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na
intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes
nem a estes imposto. Daí que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de
marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos, de uma realidade.
E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o
mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a
superposição dos homens aos homens.
Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção
“educativa” que estamos criticando, mais uma vez a situa como prática da
dominação.
Dela, que parte de uma compreensão falsa dos homens — reduzidos a meras
coisas —, não se pode esperar que provoque o desenvolvimento do que Fromm
chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu contrário, a necrofilia.
Mientras la vida (diz Fromm) se caracteriza por el crecimiento de una manera
estructurada, funcional, el individuo necrófilo ama todo lo que no crece, todo lo
que es mecánico. La persona necrófila es movida por un deseo de convertir lo
orgánico en morgánico, do mirar la vida mecánicamente, como si todas las
personas vivientes fuezen cosas. Todos los procesos, sentimientos y pensamientos de
vida se transforman en cosas. La memoria y no la experiencia; tener y no ser es lo
que cuenta. El individuo necrófilo puede realizarse con un objeto — una flor o una
persona — únicamente si la posee; en consecuencia una amenaza a su posesión es
una amenaza a él mismo, si pierde la posesión, pierde el contacto con el mundo. E,
mais adiante: Ama el control y en el acto de controlar, mata la vida.43
A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à
morte e não do amor à vida.
A concepção “bancária”, que a ela serve, também o é. No momento mesmo
em que se funda num conceito mecânico, estático, espacializado da consciência e
em que transforma, por isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase
coisas, não pode esconder sua marca necrófila. Não se deixa mover pelo ânimo
de libertar o pensamento pela ação dos homens uns com outros na tarefa comum
de refazerem o mundo e de torná-lo mais e mais humano.
Seu ânimo é justamente o contrário — o de controlar o pensar e a ação,
levando os homens ao ajustamento ao mundo. É inibir o poder de criar, de atuar.
Mas, ao fazer isto, ao obstaculizar a atuação dos homens, como sujeitos de sua
ação, como seres de opção, frustra-os.
Quando, porém, por um motivo qualquer, os homens se sentem proibidos de
atuar, quando se descobrem incapazes de usar suas faculdades, sofrem.
Este sofrimento provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio
humano” (Fromm). Mas, o não poder atuar, que provoca o sofrimento, provoca
também nos homens o sentimento de recusa à sua impotência. Tentam, então,
“restabelecer a sua capacidade de atuar” (Fromm).
“Pode, porém, fazê-lo? E como?”, pergunta Fromm. “Um modo, responde, é
submeter-se a uma pessoa ou a um grupo que tenha poder e identificar-se com
eles. Por esta participação simbólica na vida de outra pessoa, o homem tem a
ilusão de que atua, quando, em realidade, não faz mais que submeter-se aos que
atuam e converter-se em parte deles.”44
Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nas
manifestações populistas. Sua identificação com líderes carismáticos, através de
quem se possam sentir atuantes e, portanto, no uso de sua potência, bem como a
sua rebeldia, quando de sua emersão no processo histórico, estão envolvidas por
este ímpeto de busca de atuação de sua potência.
Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu
remédio em mais dominação — na repressão feita em nome, inclusive, da
liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, no
fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores.
Por isto mesmo é que podem considerar — logicamente, do seu ponto de
vista — um absurdo the violence of a strike by workers and (can) call upon the
state in the same breath to use violence in putting down the strike.45
A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco
ideológico (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam), é indoutrinálos no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão.
Ao denunciá-la, não esperamos que as elites dominadoras renunciem à sua
prática. Seria demasiado ingênuo esperá-lo.
Nosso objetivo é chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para o fato de
que eles não podem, na busca da libertação, servir-se da concepção “bancária”,
sob pena de se contradizerem em sua busca. Assim como também não pode esta
concepção tornar-se legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária.
A sociedade revolucionária que mantenha a prática da educação “bancária”
ou se equivocou nesta manutenção, ou se deixou “morder” pela desconfiança e
pela descrença nos homens. Em qualquer das hipóteses, estará ameaçada pelo
espectro da reação.
Disto, infelizmente, parece que nem sempre estão convencidos os que se
inquietam pela causa da libertação. É que, envolvidos pelo clima gerador da
concepção “bancária” e sofrendo sua influência, não chegam a perceber o seu
significado ou a sua força desumanizadora. Paradoxalmente, então, usam o
mesmo instrumento alienador, num esforço que pretendem libertador. E há até
os que, usando o mesmo instrumento alienador, chamam aos que divergem desta
prática de ingênuos ou sonhadores, quando não de reacionários.
O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens,
não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação
autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos
homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação
e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.
Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da
consciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos
implícitos na visão “bancária” criticada, é que não podemos aceitar, também, que
a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da
propaganda dos slogans, dos “depósitos”.
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a
libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios
a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência
especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como
“corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo.
Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens
em suas relações com o mundo.
Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo à
essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os comunicados
e existencia a comunicação. Identifica-se com o próprio da consciência que é
sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos, mas
também quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers46 chama de “cisão”.
Cisão em que a consciência é consciência de consciência.
Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o
ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir
“conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da
educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em
que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um
sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado,
educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a
exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é
possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos
cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.
O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve à
dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo
exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição
educador-educandos, a segunda realiza a superação.
Para manter a contradição, a concepção “bancária” nega a dialogicidade
como essência da educação e se faz antidialógica; para realizar a superação, a
educação problematizadora — situação gnosiológica — afirma a dialogicidade e
se faz dialógica.
NINGUÉM EDUCA NINGUÉM, NINGUÉM EDUCA A SI MESMO, OS HOMENS SE EDUCAM
ENTRE SI, MEDIATIZADOS PELO MUNDO
Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os
esquemas verticais característicos da educação bancária, realizarse como prática
da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como
também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo.
É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não
mais educador do educando, não mais educando do educador, mas educadoreducando com educando-educador.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto
educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também
educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e
em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se,
funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não
contra elas.
Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si
mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.
Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são
possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.
Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois
momentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório,
exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível, enquanto se prepara
para suas aulas. O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a
respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente.
O papel que cabe a estes, como salientamos nas páginas precedentes, é apenas
o de arquivarem a narração ou os depósitos que lhes faz o educador. Desta
forma, em nome da “preservação da cultura e do conhecimento”, não há
conhecimento, nem cultura verdadeiros.
Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados a
conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizam
nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto como
incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não mediatizador da
reflexão crítica de ambos.
A prática problematizadora, pelo contrário, não distingue estes momentos no
quefazer do educador-educando.
Não é sujeito cognoscente em um, e sujeito narrador do conteúdo conhecido
em outro.
É sempre um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer quando se
encontra dialogicamente com os educandos.
O objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser,
para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos
educandos.
Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato
cognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem
recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo
com o educador, investigador crítico, também.
Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de sua
“admiração”, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, “re-ad-
mira” a “admiração” que antes fez, na “admiração” que fazem os educandos.
Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação
gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os
educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da
doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos.
Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma
espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação
problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato
de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda,
pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção
crítica na realidade.
Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o
mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais
obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria
ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um
problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como
algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente
crítica, por isto, cada vez mais desalienada.
Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vão
surgindo no processo da resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, como
compromisso. Assim é que se dá o reconhecimento que engaja.
A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da
dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do
mundo, assim como também a negação do mundo como uma realidade ausente
dos homens.
A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração
nem sobre este mundo sem homens, mas sobre os homens em suas relações com
o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não
há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.
“A consciência e o mundo”, diz Sartre, “se dão ao mesmo tempo: exterior por
essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela”.47
Por isto é que, certa vez, num dos “círculos de cultura” do trabalho que se
realiza no Chile, um camponês, a quem a concepção bancária classificaria de
“ignorante absoluto”, declarou, enquanto discutia, através de uma “codificação”,
o conceito antropológico de cultura: “Descubro agora que não há mundo sem
homem.” E quando o educador lhe disse: “Admitamos, absurdamente, que todos
os homens do mundo morressem, mas ficasse a terra, ficassem as árvores, os
pássaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, não seria tudo isto mundo?”
“Não!”, respondeu enfático, “faltaria quem dissesse Isto é mundo”. O
camponês quis dizer, exatamente, que faltaria a consciência do mundo que,
necessariamente, implica o mundo da consciência.
Na verdade, não há eu que se constitua sem um não eu. Por sua vez, o não eu
constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o
mundo constituinte da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se
intenciona. Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: “consciência e
mundo se dão ao mesmo tempo.”
Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o
mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua
“mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserl
chama de “visões de fundo”,48 não se destacavam, “não estavam postos por si”.
Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e
voltando sua reflexão sobre eles.
O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas
implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se “destaca” e
assume o caráter de problemas, portanto, de desafio.
A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração”
dos homens, e, como tal, de sua ação e de seu conhecimento.
Enquanto, na concepção “bancária” — permita-se-nos a repetição insistente
—, o educador vai “enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos
impostos, na prática problematizadora, vão os educandos desenvolvendo o seu
poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas
relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma
realidade em transformação, em processo.
A tendência, então, do educador-educando como dos educandos-educadores
é estabelecerem uma forma autêntica de pensar e atuar. Pensar-se a si mesmos e
ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação.
A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através
do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo
com que e em que se acham.
Se, de fato, não é possível entendê-los fora de suas relações dialéticas com o
mundo, se estas existem independentemente de se eles as percebem ou não, e
independentemente de como as percebem, é verdade também que a sua forma de
atuar, sendo esta ou aquela, é função, em grande parte, de como se percebam no
mundo.
Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que
estamos analisando. A “bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas
certas razões que explicam a maneira como estão sendo os homens no mundo e,
para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com a
libertação, se empenha na desmitificação. Por isto, a primeira nega o diálogo,
enquanto a segunda tem nele o selo do ato cognoscente, desvelador da realidade.
A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em
que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar
a intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a
“domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de
humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na
criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a
realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora
da busca e da transformação criadora.
O HOMEM COMO UM SER INCONCLUSO, CONSCIENTE DE SUA INCONCLUSÃO, E SEU
PERMANENTE MOVIMENTO DE BUSCA DO SER MAIS
A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por
desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora
parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto
mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados,
inconclusos em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente
inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas
inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a
consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma,
como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e
na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente.
Permanentemente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da
realidade.
Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na práxis. Para ser tem
que estar sendo.
Sua “duração” — no sentido bergsoniano do termo —, como processo, está
no jogo dos contrários permanência-mudança.
Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepção
problematizadora reforça a mudança.
Deste modo, a prática “bancária”, implicando o imobilismo a que fizemos
referência, se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora, que, não
aceitando um presente “bem-comportado”, não aceita igualmente um futuro
pré-dado, enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária.
A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade
revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa.49 Daí que
corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade.
Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos — como
“projetos” —, como seres que caminham para frente, que olham para frente;
como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás
não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor
conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique
com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como
seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu
ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos.
Mas, como não há homens sem mundo, sem realidade, o movimento parte
das relações homens-mundo. Daí que este ponto de partida esteja sempre nos
homens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que se
encontram ora imersos, ora emersos, ora insertados.
Somente a partir desta situação, que lhes determina a própria percepção que
dela estão tendo, é que podem mover-se.
E, para fazê-lo, autenticamente, é necessário, inclusive, que a situação em que
estão não lhes apareça como algo fatal e intransponível, mas como uma situação
desafiadora, que apenas os limita.
Enquanto a prática “bancária”, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta
ou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua
situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens sua
situação como problema. Propõe a eles sua situação como incidência de seu ato
cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou
ingênua que dela tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual
resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de
perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que
lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la.
Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens
se “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser
transformada por eles.
O fatalismo cede, então, seu lugar ao ímpeto de transformação e de busca, de
que os homens se sentem sujeitos.
Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres
históricos e necessariamente inseridos num movimento de busca, com outros
homens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento.
Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens
proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação
violenta. Não importam os meios usados para esta proibição. Fazê-los objetos é
aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.
Este movimento de busca, porém, só se justifica na medida em que se dirige
ao ser mais, à humanização dos homens. E esta, como afirmamos no primeiro
capítulo, é sua vocação histórica, contraditada pela desumanização que, não
sendo vocação, é viabilidade, constatável na história. E, enquanto viabilidade,
deve aparecer aos homens como desafio e não como freio ao ato de buscar.
Esta busca do ser mais, porém, não pode realizarse no isolamento, no
individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja
impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos.
Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam. Esta é
uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter
mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja
fundamental — repitamos — ter para ser. Precisamente porque é, não pode o ter
de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o
poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de
poder.
Para a prática “bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar esta
situação, mantendo, porém, as consciências imersas nela. Para a educação
problematizadora, enquanto um quefazer humanista e libertador, o importante
está em que os homens submetidos à dominação lutem por sua emancipação.
Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem
sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o
autoritarismo do educador “bancário”, supera também a falsa consciência do
mundo.
O mundo, agora, já não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o
mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação transformadora dos
homens, de que resulte a sua humanização.
Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação não pode
servir ao opressor.
Nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a
dizer: “Por quê?”
Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pela
sociedade que fez a revolução, isto não significa que a liderança revolucionária
espere a chegada ao poder para aplicá-la.
No processo revolucionário, a liderança não pode ser “bancária”, para depois
deixar de sê-lo.50
Notas
Poderá dizer-se que casos como estes já não sucedem nas escolas brasileiras. Se realmente estes não
ocorrem, continua, contudo, preponderantemente, o caráter narrador que estamos criticando.
38
Simone de Beauvoir, El pensamiento político de la derecha. Buenos Aires: Ediciones Siglo Veinte/S.R.L.,
1963, p. 34.
39
Não fazemos esta afirmação ingenuamente. Já temos afirmado que a educação reflete a estrutura do
poder, daí a dificuldade que tem um educador dialógico de atuar coerentemente numa estrutura que nega o
diálogo. Algo fundamental, porém, pode ser feito: dialogar sobre a negação do próprio diálogo.
40
A concepção do saber, da concepção “bancária”, é, no fundo, o que Sartre (El hombre y las cosas. Buenos
Aires: Losada S.A., 1965, pp. 25-6.) chamaria de concepção “digestiva” ou “alimentícia” do saber. Este é
como se fosse o “alimento” que o educador vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de
engorda…
41
Há professores que, ao indicar uma relação bibliográfica, determinam a leitura de um livro da página 10 à
página 15, e fazem isto para ajudar os alunos.
42
43
Fromm, op. cit., pp. 28-9.
44
Id., ibid., pp. 28-9.
45
Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1960, p. 130.
The reflexion of consciousness upon itself is as self-evident and marvelous as is its intentionality. I am at
myself; I am both one and twofold. I do not exist as a thing exists, but in an inner split, as my own object, and
thus in motion and inner unrest. Karl Jaspers, Philosophy, v. 1. The University of Chicago Press, 1969, p. 50.
46
47
J.-P. Sartre, op. cit., pp. 25-6.
Edmund Husserl, Ideas Pertaining to A Pure Phenomenology and to A Phenomenological Philosophy:
General Introduction to A Pure Phenomenology, 3a ed. Londres: Collier Books, 1969, pp. 103-6.
48
Em Ação cultural para a liberdade e outros escritos, discutimos mais amplamente este sentido profético e
esperançoso da educação (ou ação cultural) problematizadora. Profetismo e esperança que resultam do
caráter utópico de tal forma de ação, tomando-se a utopia como a unidade inquebrantável entre a denúncia
e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens
possam ser mais. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico.
49
No Capítulo IV analisamos detidamente este aspecto, ao discutirmos as teorias antidialógica e dialógica
da ação.
50
3
A DIALOGICIDADE: ESSÊNCIA DA EDUCAÇÃO
COMO PRÁTICA DA LIBERDADE
AO INICIAR ESTE CAPÍTULO SOBRE a dialogicidade da educação, com o qual
estaremos continuando as análises feitas nos anteriores, a propósito da educação
problematizadora, parece-nos indispensável tentar algumas considerações em
torno da essência do diálogo. Considerações com as quais aprofundemos
afirmações que fizemos a respeito do mesmo tema em Educação como prática da
liberdade.51
Quando tentamos um adentramento no diálogo como fenômeno humano, se
nos revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra.Mas, ao
encontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como algo mais que um meio
para que ele se faça, se nos impõe buscar, também, seus elementos constitutivos.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões: ação e reflexão, de
tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em
parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira
que não seja práxis.52 Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o
mundo.53
A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a
realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos
constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação,
sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria,
verbalismo, blá-blá-blá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da
qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denúncia
verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.
Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da
reflexão, a palavra se converte em ativismo. Este, que é ação pela ação, ao
minimizar a reflexão, nega também a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo.
Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir,
gera formas inautênticas de pensar, que reforçam a matriz em que se constituem.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco
pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os
homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é
modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos
sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.
Não é no silêncio54 que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão.
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar
o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos
os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira
sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a
palavra aos demais.
O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para
pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.
Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o
direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso
primeiro que os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a
palavra reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante
continue.
Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o
transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham
significação enquanto homens.
Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que
se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser
transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de
um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem
consumidas pelos permutantes.
Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram
a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a
impor a sua.
Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser
doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa
ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do
outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos,
não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens.
EDUCAÇÃO DIALÓGICA E DIÁLOGO
Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens.
Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se
não há amor que a infunda.55
Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja
essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de
dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina;
masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de
medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes,
oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de
sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico.
Como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade, não pode
ser pretexto para a manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A
não ser assim, não é amor.
Somente com a supressão da situação opressora é possível restaurar o amor
que nela estava proibido.
Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é
possível o diálogo.
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia do
mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato
arrogante.
O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se
rompe, se seus polos (ou um deles) perdem a humildade.
Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro,
nunca em mim?
Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por
herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço outros eu?
Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros,
donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são “essa gente”,
ou são “nativos inferiores”?
Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de
homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua
deterioração que devo evitar?
Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais
reconheço, e até me sinto ofendido com ela?
Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e
definho?
A autossuficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm
humildade ou a perdem não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus
companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e
saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar,
para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há
ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão,
buscam saber mais.
Não há também diálogo se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu
poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que
não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens.
A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo
de que ele se instale. O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrarse frente a frente com eles. Esta, contudo, não é uma ingênua fé. O homem
dialógico, que é crítico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é
um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta,
alienados, ter este poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de
matar no homem dialógico a sua fé nos homens, aparece a ele, pelo contrário,
como um desafio ao qual tem de responder. Está convencido de que este poder
de fazer e transformar, mesmo que negado em situações concretas, tende a
renascer. Pode renascer. Pode constituir-se. Não gratuitamente, mas na e pela
luta por sua libertação. Com a instalação do trabalho não mais escravo, mas livre,
que dá a alegria de viver.
Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das
hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista.
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma
relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequência
óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não
provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta
confiança na antidialogicidade da concepção “bancária” da educação.
Se a fé nos homens é um dado a priori do diálogo, a confiança se instaura
com ele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais
companheiros na pronúncia do mundo. Se falha esta confiança, é que falharam as
condições discutidas anteriormente. Um falso amor, uma falsa humildade, uma
debilitada fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança implica o
testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções.
Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide com os atos. Dizer
uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à
confiança.
Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em
humanismo e negar os homens é uma mentira.
Não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria
essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal
busca, como já vimos, não se faz no isolamento, mas na comunicação entre os
homens — o que é impraticável numa situação de agressão.
O desespero é uma espécie de silêncio, de recusa do mundo, de fuga. No
entanto a desumanização que resulta da “ordem” injusta não deveria ser uma
razão da perda da esperança, mas, ao contrário, uma razão de desejar ainda mais,
e de procurar sem descanso, restaurar a humanidade esmagada pela injustiça.
Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na
esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero.
Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na
desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não
pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso.
Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um
pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia
mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade.
Este é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta em
constante devenir e não como algo estático. Não se dicotomiza a si mesmo na
ação. “Banha-se” permanentemente de temporalidade cujos riscos não teme.
Opõe-se ao pensar ingênuo, que vê o “tempo histérico como um peso, como
uma estratificação das aquisições e experiências do passado”,56 de que resulta
dever ser o presente algo normalizado e bem-comportado.
Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje
normalizado. Para o crítico, a transformação permanente da realidade, para a
permanente humanização dos homens. Para o pensar crítico, diria Pierre Furter,
“a meta não será mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se ao
espaço garantido, mas temporalizar o espaço. O universo não se revela a mim
(diz ainda Furter) no espaço, impondo-me uma presença maciça a que só posso
me adaptar, mas como um campo, um domínio, que vai tomando forma na
medida de minha ação”.57
Para o pensar ingênuo, a meta é agarrar-se a este espaço garantido,
ajustando-se a ele e, negando a temporalidade, negar-se a si mesmo.
Somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerálo.
Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. A que,
operando a superação da contradição educador-educandos, se instaura como
situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o
objeto cognoscível que os mediatiza.
O DIÁLOGO COMEÇA NA BUSCA DO CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade
comece, não quando o educador-educando se encontra com os educando-
educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta
em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo
do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação.
Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta,
obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe,
mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta
pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa.
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo
programático da educação não é uma doação ou uma imposição — um conjunto
de informes a ser depositado nos educandos —, mas a devolução organizada,
sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou
de forma desestruturada.58
A educação autêntica, repitamos, não se faz de A para B ou de A sobre B, mas
de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e
a outros, originando visões ou pontos de vista sobre ele. Visões impregnadas de
anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam temas
significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da
educação. Um dos equívocos de uma concepção ingênua do humanismo está em
que, na ânsia de corporificar um modelo ideal de “bom homem”, se esquece da
situação concreta, existencial, presente, dos homens mesmos. “O humanismo
consiste (diz Furter) em permitir a tomada de consciência de nossa plena
humanidade, como condição e obrigação: como situação e projeto.”59
Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses,
estes, de modo geral, imersos num contexto colonial quase umbilicalmente
ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes que
transformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes
“conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no
programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.
Não seriam poucos os exemplos que poderiam ser citados, de planos, de
natureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seus
realizadores partiram de uma visão pessoal da realidade. Porque não levaram em
conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu
programa, a não ser com puras incidências de sua ação.
Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico, a incidência da
ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes.
Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais
à realidade que deve permanecer intocada são os dominadores.
Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação,
“conto” da concepção “bancária”, caem muitas vezes lideranças revolucionárias,
no seu empenho de obter a adesão do povo à ação revolucionária.
Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem
corresponder à sua visão do mundo, mas não necessariamente à do povo.60
Esquecem-se de que o seu objetivo fundamental é lutar com o povo pela
recuperação da humanidade roubada e não conquistar o povo. Este verbo não
deve caber na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionário cabe
libertar e libertar-se com o povo, não conquistá-lo.
As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso da
concepção “bancária” (em que a conquista é um dos instrumentos) porque, na
medida em que esta desenvolve uma ação apassivadora, coincide com o estado
de “imersão” da consciência oprimida. Aproveitando esta “imersão” da
consciência oprimida, estas elites vão transformando-a naquela “vasilha” de que
falamos e pondo nela slogans que a fazem mais temerosa ainda da liberdade.
Um trabalho verdadeiramente libertador é incompatível com esta prática.
Através dele, o que se há de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos
opressores, como problema, proporcionando-se, assim, a sua expulsão de
“dentro” dos oprimidos.
Afinal, o empenho dos humanistas não pode ser o de opor os seus slogans aos
dos opressores, tendo como intermediários os oprimidos, como se fossem
“hospedeiros” dos slogans de uns e de outros. O empenho dos humanistas, pelo
contrário, está em que os oprimidos tomem consciência de que, pelo fato mesmo
de que estão sendo “hospedeiros” dos opressores, como seres duais, não estão
podendo ser.
Esta prática implica, por isto mesmo, que o acercamento às massas populares
se faça, não para levar-lhes uma mensagem “salvadora”, em forma de conteúdo a
ser depositado, mas, para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade
em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis
de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão.
Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultados
positivos de um programa, seja educativo num sentido mais técnico ou de ação
política, se, desrespeitando a particular visão do mundo que tenha ou esteja
tendo o povo, se constitui numa espécie de “invasão cultural”, ainda que feita
com a melhor das intenções. Mas “invasão cultural” sempre.61
AS RELAÇÕES HOMENS-MUNDO, OS TEMAS GERADORES E O CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
DESTA EDUCAÇÃO
Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de
aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da
educação ou da ação política.
O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas
contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema
que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual,
mas no nível da ação.62
Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar-lhe conteúdos que pouco ou
nada tenham a ver com seus anseios, com suas dúvidas, com suas esperanças,
com seus temores. Conteúdos que, às vezes, aumentam estes temores. Temores
de consciência oprimida.
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar
impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar
convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de
sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa
e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena
de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto.
Por isto mesmo é que, muitas vezes, educadores e políticos falam e não são
entendidos. Sua linguagem não sintoniza com a situação concreta dos homens a
quem falam. E sua fala é um discurso a mais, alienado e alienante.
É que a linguagem do educador ou do político (e cada vez nos convencemos
mais de que este há de tornar-se também educador no sentido mais amplo da
expressão), tanto quanto a linguagem do povo, não existem sem um pensar e
ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos.
Desta forma, para que haja comunicação eficiente entre eles, é preciso que
educador e político sejam capazes de conhecer as condições estruturais em que o
pensar e a linguagem do povo, dialeticamente, se constituem.
Daí também que o conteúdo programático para a ação, que é de ambos, não
possa ser de exclusiva eleição daqueles, mas, deles e do povo.
É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores
e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação.
O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como
prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que
chamamos de universo temático63 do povo ou o conjunto de seus temas
geradores.
Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não pode
contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente
dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a
apreensão dos “temas geradores” e a tomada de consciência dos indivíduos em
torno dos mesmos.
Esta é a razão pela qual (em coerência ainda com a finalidade libertadora da
educação dialógica) não se trata de ter nos homens o objeto da investigação, de
que o investigador seria o sujeito.
O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem
peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os
níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se
encontram envolvidos seus “temas geradores”.
Antes de perguntar-nos o que é um “tema gerador”, cuja resposta nos
aclarará o que é o “universo mínimo temático”, nos parece indispensável
desenvolver algumas reflexões.
Em verdade, o conceito de “tema gerador” não é uma criação arbitrária, ou
uma hipótese de trabalho que deva ser comprovada. Se o “tema gerador” fosse
uma hipótese que devesse ser comprovada, a investigação, primeiramente, não
seria em torno dele, mas de sua existência ou não.
Neste caso, antes de buscar apreendê-lo em sua riqueza, em sua significação,
em sua pluralidade, em seu devenir, em sua constituição histórica, teríamos que
constatar, primeiramente, sua objetividade. Só depois, então, poderíamos tentar
sua captação.
Ainda que esta postura — a de uma dúvida crítica — seja legítima, nos parece
que a constatação do tema gerador, como uma concretização, é algo a que
chegamos através, não só da própria experiência existencial, mas também de
uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens,
implícitas nas primeiras.
Detenhamo-nos neste ponto. Mesmo que possa parecer um lugar-comum,
nunca será demasiado falar acerca dos homens como os únicos seres, entre os
“inconclusos”, capazes de ter, não apenas sua própria atividade, mas a si mesmos,
como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal, incapaz de
separar-se de sua atividade.
Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos encontrar as linhas que
demarcam os campos de uns e de outros, do ponto de vista da ação de ambos no
espaço em que se encontram.
Ao não poder separar-se de sua atividade sobre a qual não pode exercer um
ato reflexivo, o animal não consegue impregnar a transformação, que realiza no
mundo, de uma significação que vá mais além de si mesmo.
Na medida em que sua atividade é uma aderência dele, os resultados da
transformação operada através dela não o sobrepassam. Não se separam dele,
tanto quanto sua atividade. Daí que ela careça de finalidades que sejam propostas
por ele. De um lado, o animal não se separa de sua atividade, que a ele se
encontra aderida; de outro, o ponto de decisão desta se acha fora dele: na espécie
a que pertence. Pelo fato de que sua atividade seja ele e ele seja sua atividade, não
podendo dela separar-se, enquanto seu ponto de decisão se acha em sua espécie e
não nele, o animal se constitui, fundamentalmente, como um “ser fechado em
si”.
Ao não ter este ponto de decisão em si, ao não poder objetivar-se nem à sua
atividade, ao carecer de finalidades que se proponha e que proponha, ao viver
“imerso” no “mundo” a que não consegue dar sentido, ao não ter um amanhã
nem um hoje, por viver num presente esmagador, o animal é a-histórico. Sua
vida a-histórica se dá, não no mundo tomado em sentido rigoroso, pois que o
mundo não se constitui em um “não eu” para ele, que seja capaz de constituí-lo
como eu.
O mundo humano, que é histórico, se faz, para o “ser fechado em si”, mero
suporte. Seu contorno não lhe é problemático, mas estimulante. Sua vida não é
um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo. Estes, porque não são
desafios perceptíveis reflexivamente, mas puramente “notados” pelos sinais que
os apontam, não exigem respostas que impliquem ações decisórias. O animal,
por isto mesmo, não pode comprometer-se. Sua condição de a-histórico não lhe
permite assumir a vida, e, porque não a assume, não pode construí-la. E, se não
constrói, não pode transformar o seu contorno. Não pode, tampouco, saber-se
destruído em vida, pois não consegue alongar seu suporte, onde ela se dá, em um
mundo significativo e simbólico, o mundo compreensivo da cultura e da história.
Esta é a razão pela qual o animal não animaliza seu contorno para animalizar-se,
nem tampouco se desanimaliza. No bosque, como no zoológico, continua um
“ser fechado em si” — tão animal aqui, como lá.
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do
mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e se
propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com
mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora
através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem
separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do
animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.
Se a vida do animal se dá em um suporte atemporal, plano, igual, a existência
dos homens se dá no mundo que eles recriam e transformam incessantemente.
Se, na vida do animal, o aqui não é mais que um habitat ao qual ele “contata”, na
existência dos homens o aqui não é somente um espaço físico, mas também um
espaço histórico.
Para o animal, rigorosamente, não há um aqui, um agora, um ali, um
amanhã, um ontem, porque, carecendo da consciência de si, seu viver é uma
determinação total. Não é possível ao animal sobrepassar os limites impostos
pelo aqui, pelo agora ou pelo ali.
Os homens, pelo contrário, porque são consciência de si e, assim, consciência
do mundo, porque são um “corpo consciente”, vivem uma relação dialética entre
os condicionamentos e sua liberdade.
Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao separarem sua atividade de si
mesmos, ao terem o ponto de decisão de sua atividade em si, em suas relações
com o mundo e com os outros, os homens ultrapassam as “situações-limite”, que
não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis, mais além das
quais nada existisse.64 No momento mesmo em que os homens as apreendem
como freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se
transformam em “percebidos destacados” em sua “visão de fundo”. Revelam-se,
assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada
realidade. Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através
de ações que Vieira Pinto chama de “atos-limite” — aqueles que se dirigem à
superação e à negação do dado, em lugar de implicarem sua aceitação dócil e
passiva.
Esta é a razão pela qual não são as “situações-limite”, em si mesmas,
geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham
delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles
não podem ultrapassar. No momento em que a percepção crítica se instaura, na
ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os
homens a se empenharem na superação das “situações-limite”.
Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente
pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que
se dão as “situações-limite”.
Superadas estas, com a transformação da realidade, novas surgirão,
provocando outros “atos-limite” dos homens.
Desta forma, o próprio dos homens é estar, como consciência de si e do
mundo, em relação de enfrentamento com sua realidade em que, historicamente,
se dão as “situações-limite”. E este enfrentamento com a realidade para a
superação dos obstáculos só pode ser feito historicamente, como historicamente
se objetivam as “situações-limite”.
No “mundo” do animal, que não sendo rigorosamente mundo, mas suporte
em que está, não há “situações-limite”, pelo caráter a-histórico do segundo, que
se estende ao primeiro.
Não sendo o animal um “ser para si”, lhe falta o poder de exercer “atoslimite”, que implicam uma postura decisória frente ao mundo, do qual o ser se
“separa”, e, objetivando-o, o transforma com sua ação. Preso organicamente a
seu suporte, o animal não se distingue dele.
Desta forma, em lugar de “situações-limite”, que são históricas, é o suporte
mesmo, maciçamente, que o limita. O próprio do animal, portanto, não é estar
em relação com seu suporte — se estivesse, o suporte seria mundo —, mas
adaptado a ele. Daí que, como um “ser fechado” em si, ao “produzir” um ninho,
uma colmeia, um oco onde viva, não esteja realmente criando produtos que
tivessem sido o resultado de “atos-limite” — respostas transformadoras. Sua
atividade produtora está submetida à satisfação de uma necessidade física,
puramente estimulante e não desafiadora. Daí que seus produtos, fora de dúvida,
“pertençam diretamente a seus corpos físicos, enquanto o homem é livre frente a
seu produto”.65
Somente na medida em que os produtos que resultam da atividade do ser
“não pertençam a seus corpos físicos”, ainda que recebam o seu selo, darão
surgimento à dimensão significativa do contexto que, assim, se faz mundo.
Daí em diante, este ser, que desta forma atua e que, necessariamente, é um ser
consciência de si, um ser “para si”, não poderia ser, se não estivesse sendo, no
mundo com o qual está, como também este mundo não existiria, se este ser não
existisse.
A diferença entre os dois, entre o animal, de cuja atividade, porque não
constitui “atos-limite”, não resulta uma produção mais além de si, e os homens
que, através de sua ação sobre o mundo, criam o domínio da cultura e da
história, está em que somente estes são seres da práxis. Práxis que, sendo reflexão
e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento
reflexivo e criação. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem
práxis, não implica criação, a transformação exercida pelos homens a implica.
E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas
permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens
materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas
ideias, suas concepções.66
Através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os
homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico-sociais.
Porque, ao contrário do animal, os homens podem tridimensionar o tempo
(passado-presente-futuro) que, contudo, não são departamentos estaques, sua
história, em função de suas mesmas criações, vai se desenvolvendo em
permanente devenir, em que se concretizam suas unidades epocais. Estas, como
o ontem, o hoje e o amanhã, não são como se fossem pedaços estanques de
tempo que ficassem petrificados e nos quais os homens estivessem
enclausurados. Se assim fosse, desapareceria uma condição fundamental da
história: sua continuidade. As unidades epocais, pelo contrário, estão em relação
umas com as outras67 na dinâmica da continuidade histórica.
Uma unidade epocal se caracteriza pelo conjunto de ideias, de concepções,
esperanças, dúvidas, valores, desafios, em interação dialética com seus contrários,
buscando plenitude. A representação concreta de muitas destas ideias, destes
valores, destas concepções e esperanças, como também os obstáculos ao ser mais
dos homens, constituem os temas da época.
Estes, não somente implicam outros que são seus contrários, às vezes
antagônicos, mas também indicam tarefas a serem realizadas e cumpridas. Desta
forma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos,
desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus
opostos. Como também não há outro lugar para encontrá-los que não seja nas
relações homens-mundo. O conjunto dos temas em interação constitui o
“universo temático” da época.
Frente a este “universo” de temas que dialeticamente se contradizem, os
homens tomam suas posições também contraditórias, realizando tarefas em
favor, uns, da manutenção das estruturas, outros, da mudança.
Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os temas que são a
expressão da realidade, há uma tendência para a mitificação da temática e da
realidade mesma, o que, de modo geral, instaura um clima de “irracionalismo” e
de sectarismo.
Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação mais profunda, pela
possibilidade de retirar-lhes a conotação dinâmica que os caracteriza.
No momento em que uma sociedade vive uma época assim, o próprio
irracionalismo mitificador passa a constituir um de seus temas fundamentais,
que terá, como seu oposto combatente, a visão crítica e dinâmica da realidade
que, empenhando-se em favor do seu desvelamento, desmascara sua mitificação
e busca a plena realização da tarefa humana: a permanente transformação da
realidade para a libertação dos homens.
Os temas68 se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos, de
outro, envolvendo as “situações-limite”, enquanto as tarefas que eles implicam,
quando cumpridas, constituem os “atos-limite” aos quais nos referimos.
Enquanto os temas não são percebidos como tais, envolvidos e envolvendo as
“situações-limite”, as tarefas referidas a eles, que são as respostas dos homens
através de sua ação histórica, não se dão em termos autênticos ou críticos.
Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas “situações-limite”, que se
apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras,
em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se. Desta forma,
os homens não chegam a transcender as “situações-limite” e a descobrir ou a
divisar, mais além delas e em relação com elas, o inédito viável.
Em síntese, as “situações-limite” implicam a existência daqueles a quem
direta ou indiretamente “servem” e daqueles a quem “negam” e “freiam”.
No momento em que estes as percebem não mais como uma “fronteira entre
o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais ser”, se fazem cada
vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está
implícito o inédito viável como algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua
ação.
A tendência então, dos primeiros, é vislumbrar no inédito viável, ainda como
inédito viável, uma “situação-limite” ameaçadora que, por isto mesmo, precisa
não concretizar-se. Daí que atuem no sentido de manterem a “situação-limite”
que lhes é favorável.69
Desta forma, se impõe à ação libertadora, que é histórica, sobre um contexto,
também histórico, a exigência de que esteja em relação de correspondência, não
só com os temas geradores, mas com a percepção que deles estejam tendo os
homens. Esta exigência necessariamente se alonga noutra: a da investigação da
temática significativa.
Os temas geradores podem ser localizados em círculos concêntricos, que
partem do mais geral ao mais particular.
Temas de caráter universal, contidos na unidade epocal mais ampla, que
abarca toda uma gama de unidades e subunidades, continentais, regionais,
nacionais etc., diversificadas entre si. Como tema fundamental desta unidade
mais ampla, que poderemos chamar “nossa época”, se encontra, a nosso ver, o da
libertação, que indica o seu contrário, o tema da dominação. É este tema
angustiante que vem dando à nossa época o caráter antropológico a que fizemos
referência anteriormente.
Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o
desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das
“situações-limite” em que os homens se acham quase coisificados.
Em círculos menos amplos, nos deparamos com temas e “situações-limite”,
característicos de sociedades de um mesmo continente ou de continentes
distintos, que têm nestes temas e nestas “situações-limite” similitudes históricas.
A “situação-limite” do subdesenvolvimento, ao qual está ligado o problema
da dependência, é a fundamental característica do Terceiro Mundo. A tarefa de
superar tal situação, que é uma totalidade, por outra, a do desenvolvimento, é,
por sua vez, o imperativo básico do Terceiro Mundo.
Se olhamos, agora, uma sociedade determinada em sua unidade epocal,
vamos perceber que, além desta temática universal, continental ou de um mundo
específico de semelhanças históricas, ela vive seus temas próprios, suas
“situações-limite”.
Em círculo mais restrito, observaremos diversificações temáticas, dentro de
uma mesma sociedade, em áreas e subáreas em que se divide, todas, contudo, em
relação com o todo de que participam. São áreas e subáreas que constituem
subunidades epocais. Em uma unidade nacional mesma, encontramos a
contradição da “contemporaneidade do não coetâneo”.
Nas subunidades referidas, os temas de caráter nacional podem ser ou deixar
de ser captados em sua verdadeira significação, ou simplesmente podem ser
sentidos. Às vezes, nem sequer são sentidos.
O impossível, porém, é a inexistência de temas nestas subunidades epocais. O
fato de que indivíduos de uma área não captem um tema gerador, só
aparentemente oculto, ou o fato de captá-lo de forma distorcida, pode significar,
já, a existência de uma “situação-limite” de opressão em que os homens se
encontram mais imersos que emersos.
A INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES E SUA METODOLOGIA
De modo geral, a consciência dominada, não só popular, que não captou ainda a
“situação-limite” em sua globalidade, fica na apreensão de suas manifestações
periféricas, às quais empresta a forca inibidora que cabe, contudo, à “situaçãolimite”.70
Este é um fato de importância indiscutível para o investigador da temática ou
de tema gerador.
A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma
compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos
quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem
conhecê-la. E não o podem porque, para conhecê-la, seria necessário partir do
ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do
contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as
parcialidades do contexto, através de cuja cisão voltariam com mais claridade à
totalidade analisada.
Este é um esforço que cabe realizar, não apenas na metodologia da
investigação temática que advogamos, mas, também, na educação
problematizadora que defendemos. O esforço de propor aos indivíduos
dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite
reconhecer a interação de suas partes.
Desta maneira, as dimensões significativas que, por sua vez, estão
constituídas de partes em interação, ao serem analisadas, devem ser percebidas
pelos indivíduos como dimensões da totalidade. Deste modo, a análise crítica de
uma dimensão significativo-existencial possibilita aos indivíduos uma nova
postura, também crítica, em face das “situações-limite”. A captação e a
compreensão da realidade se refazem, ganhando um nível que até então não
tinham. Os homens tendem a perceber que sua compreensão e que a “razão” da
realidade não estão fora dela, como, por sua vez, ela não se encontra deles
dicotomizada, como se fosse um mundo à parte, misterioso e estranho, que os
esmagasse.
Neste sentido é que a investigação do tema gerador, que se encontra contido
no “universo temático mínimo” (os temas geradores em interação), se realizada
por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua
apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de
pensarem seu mundo.
Na medida, porém, em que, na captação do todo que se oferece à
compreensão dos homens, este se lhes apresenta como algo espesso que os
envolve e que não chegam a vislumbrar, se faz indispensável que a sua busca se
realize através da abstração. Isto não significa a redução do concreto ao abstrato,
o que seria negar a sua dialeticidade, mas tê-los como opostos que se dialetizam
no ato de pensar.
Na análise de uma situação existencial concreta, “codificada”,71 se verifica
exatamente este movimento do pensar.
A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, que
implica um partir abstratamente até o concreto; que implica uma ida das partes
ao todo e uma volta deste às partes, que implica um reconhecimento do sujeito
no objeto (a situação existencial concreta) e do objeto como situação em que está
o sujeito.72
Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto, que se dá na análise
de uma situação codificada, se bem-feita a descodificação, conduz à superação da
abstração com a percepção crítica do concreto, já agora não mais realidade
espessa e pouco vislumbrada.
Realmente, em face de uma situação existencial codificada (situação
desenhada ou fotografada que remete, por abstração, ao concreto da realidade
existencial), a tendência dos indivíduos é realizar uma espécie de “cisão” na
situação que se lhes apresenta. Esta “cisão”, na prática da descodificação,
corresponde à etapa que chamamos de “descrição da situação”. A cisão da
situação figurada possibilita descobrir a interação entre as partes do todo
cindido.
Este todo, que é a situação figurada (codificada) e que antes havia sido
apreendido difusamente, passa a ganhar significação na medida em que sofre a
“cisão” e em que o pensar volta a ele, a partir das dimensões resultantes da
“cisão”.
Como, porém, a codificação é a representação de uma situação existencial, a
tendência dos indivíduos é dar o passo da representação da situação
(codificação) à situação concreta mesma em que e com que se encontram.
Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se em
face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que deixe de ser
ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual os
homens têm que responder.
Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens exteriorizando sua
visão do mundo, sua forma de pensá-lo, sua percepção fatalista das “situaçõeslimite”, sua percepção estática ou dinâmica da realidade. E, nesta forma
expressada de pensar o mundo fatalistamente, de pensá-lo dinâmica ou
estaticamente, na maneira como realizam seu enfrentamento com o mundo, se
encontram envolvidos seus “temas geradores”.
Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar
concretamente uma temática geradora, o que pode parecer inexistência de temas
sugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático: o tema do silêncio.
Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de
“situações-limite”, em face das quais o óbvio é a adaptação.
É importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos homens
isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode
ser compreendido nas relações homens-mundo.
Investigar o tema gerador é investigar, repitamos, o pensar dos homens
referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis.
A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da
investigação, se façam ambos sujeitos da mesma — os investigadores e os
homens do povo que, aparentemente, seriam seu objeto.
Quanto mais assumam os homens uma postura ativa na investigação de sua
temática, tanto mais aprofundam a sua tomada de consciência em torno da
realidade e, explicitando sua temática significativa, se apropriam dela.
Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo, tanto quanto os
investigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa, sacrifica a
objetividade da investigação. Que os achados já não serão “puros” porque terão
sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise, daqueles que são
os maiores interessados — ou devem ser — em sua própria educação.
Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a qual os
temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens, como se
fossem coisas.
Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo,
referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa
subunidade epocal, um conjunto de temas geradores, e, noutra, não os mesmos,
necessariamente. Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que
dele tenham os homens e os temas geradores.
É através dos homens que se expressa a temática significativa e, ao expressarse, num certo momento, pode já não ser, exatamente, o que antes era, desde que
haja mudado sua percepção dos dados objetivos aos quais os temas se acham
referidos.
Do ponto de vista do investigador importa, na análise que faz no processo da
investigação, detectar o ponto de partida dos homens no seu modo de visualizar
a objetividade, verificando se, durante o processo, se observou ou não alguma
transformação no seu modo de perceber a realidade.
A realidade objetiva continua a mesma. Se a percepção dela variou no fluxo
da investigação, isto não significa prejudicar em nada sua validade. A temática
significativa aparece, de qualquer maneira, com o seu conjunto de dúvidas, de
anseios, de esperanças.
É preciso que nos convençamos de que as aspirações, os motivos, as
finalidades que se encontram implicitados na temática significativa são
aspirações, finalidades, motivos humanos. Por isto, não estão aí, num certo
espaço, como coisas putrificadas, mas estão sendo. São tão históricos quanto os
homens. Não podem ser captados fora deles, insistamos.
Captá-los e entendê-los é entender os homens que os encarnam e a realidade
a eles referida. Mas, precisamente porque não é possível entendê-los fora dos
homens, é preciso que estes também os entendam. A investigação temática se faz,
assim, um esforço comum de consciência da realidade e de autoconsciência, que
a inscreve como ponto de partida do processo educativo, ou da ação cultural de
caráter libertador.
A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA DA INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES. OS
VÁRIOS MOMENTOS DA INVESTIGAÇÃO
Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em que os supostos
investigados se descubram investigadores, e, desta forma, “corrompam” os
resultados da análise. O risco está exatamente no contrário. Em deslocar o centro
da investigação, que é a temática significativa, a ser objeto da análise, para os
homens mesmos, como se fossem coisas, fazendo-os assim objetos da
investigação. Esta, à base da qual se pretende elaborar o programa educativo, em
cuja prática educadores-educandos e educandos-educadores conjuguem sua ação
cognoscente sobre o mesmo objeto cognoscível, tem de fundar-se, igualmente, na
reciprocidade da ação. E agora, da ação mesma de investigar.
A investigação temática, que se dá no domínio do humano e não no das
coisas, não pode reduzir-se a um ato mecânico. Sendo processo de busca, de
conhecimento, por isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vão
descobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpenetração dos
problemas.
Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e
tão mais crítica quanto, deixando de perder-se nos esquemas estreitos das visões
parciais da realidade, das visões “focalistas” da realidade, se fixe na compreensão
da totalidade.
Assim é que, no processo de busca da temática significativa, já deve estar
presente a preocupação pela problematização dos próprios temas. Por suas
vinculações com outros. Por seu envolvimento histórico-cultural.
Assim como não é possível — o que salientamos no início deste capítulo —
elaborar um programa a ser doado ao povo, também não o é elaborar roteiros de
pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores
que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação.
Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve tem de ser uma
operação simpática, no sentido etimológico da expressão. Isto é, tem de
constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser
vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem-“comportada”,
mas, na complexidade de seu permanente vir a ser.
Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é a
investigação do tema gerador, são ambos sujeitos deste processo.
O investigador da temática significativa que, em nome da objetividade
científica, transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o
vivo no morto, teme a mudança. Teme a transformação. Vê nesta, que não nega,
mas que não quer, não um anúncio de vida, mas um anúncio de morte, de
deterioração. Quer conhecer a mudança, não para estimulá-la, para aprofundála, mas para freá-la.
Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, ao reduzi-la a
esquemas rígidos, ao fazer do povo objeto passivo de sua ação investigadora, ao
ver na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua marca
necrófila.
A investigação da temática, repitamos, envolve a investigação do próprio
pensar do povo. Pensar que não se dá fora dos homens, nem num homem só,
nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido à realidade.
Não posso investigar o pensar dos outros, referido ao mundo, se não penso.
Mas, não penso autenticamente se os outros também não pensam.
Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os
outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas
com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será
pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se
faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação
e na comunicação.
Sendo os homens seres em “situação”, se encontram enraizados em condições
tempo-espaciais que os marcam e a que eles igualmente marcam. Sua tendência é
refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desafiados por ela,
agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto mesmo, algo mais que estar em
situacionalidade, que é a sua posição fundamental. Os homens são porque estão
em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua
forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão.
Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a própria condição de
existir. Um pensar crítico através do qual os homens se descobrem em
“situação”. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade
espessa que os envolve, algo mais ou menos nublado em que e sob que se acham,
um beco sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivoproblemática em que estão, é que existe o engajamento. Da imersão em que se
achavam, emergem, capacitando-se para se inserirem na realidade que se vai
desvelando.
Desta maneira, a inserção é um estado maior que a emersão e resulta da
conscientização da situação. É a própria consciência histórica.
Daí que seja a conscientização o aprofundamento da tomada de consciência,
característica, por sua vez, de toda emersão.
Neste sentido é que toda investigação temática de caráter conscientizador se
faz pedagógica e toda autêntica educação se faz investigação do pensar.
Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos
juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando.
Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da
educação, se tornam momentos de um mesmo processo.
Enquanto na prática “bancária” da educação, antidialógica por essência, por
isto, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo
programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na
prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é
“depositado”, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em
que se encontram seus temas geradores.
Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando-se e
ampliando-se.
A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este
universo temático recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não
como dissertação, aos homens de quem recebeu.
Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação
busca e investiga a “palavra geradora”,73 na pós-alfabetização, busca e investiga o
tema gerador.
Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu conteúdo
programático já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo
contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus
anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do
processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade.
Daí também o imperativo de dever ser conscientizadora a metodologia desta
investigação.
Que fazermos, por exemplo, se temos a responsabilidade de coordenar um
plano de educação de adultos em uma área camponesa, que revele, inclusive,
uma alta porcentagem de analfabetismo? O plano incluirá a alfabetização e a pósalfabetização. Estaríamos, portanto, obrigados a realizar tanto a investigação das
palavras geradoras quanto a dos temas geradores, à base de que teríamos o
programa para uma e outra etapas do plano.
Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos temas geradores ou da
temática significativa.74
Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida através de fontes
secundárias, começam os investigadores a primeira etapa de investigação.
Esta, como todo começo em qualquer atividade no domínio do humano,
pode apresentar dificuldades e riscos. Riscos e dificuldades normais, até certo
ponto, ainda que nem sempre existentes, na aproximação primeira que fazem os
investigadores aos indivíduos da área.
É que, neste encontro, os investigadores necessitam obter que um número
significativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhes
falarão dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o porquê, o como e o
para quê da investigação que pretendem realizar e que não podem fazê-lo se não
se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas.
No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderirem, não só à investigação,
mas ao processo que se segue,75 devem os investigadores estimular os presentes
para que, dentre eles, apareçam os que queiram participar diretamente do
processo da investigação como seus auxiliares. Desta forma, esta se inicia com
um diálogo às claras entre todos.
Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à sua
compreensão, terá nestes voluntários os seus recolhedores. Muito mais
importante, contudo, que a coleta destes dados, é sua presença ativa na
investigação.
Ao lado deste trabalho da equipe local, os investigadores iniciam suas visitas à
área, sempre autenticamente, nunca forçadamente, como observadores
simpáticos. Por isso mesmo, com atitudes compreensivas em face do que
observam.
Se é normal que os investigadores cheguem à área da investigação movendose em um marco conceitual valorativo que estará presente na sua percepção do
observado, isto não deve significar, porém, que devem transformar a
investigação temática no meio para imporem este marco.
A única dimensão que se supõe devam ter os investigadores, neste marco no
qual se movem, que se espera se faça comum aos homens cuja temática se busca
investigar, é a da percepção crítica de sua realidade, que implica um método
correto de aproximação do concreto para desvelá-lo. E isto não se impõe.
Neste sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vai
expressando como um quefazer educativo. Como ação cultural.
Em suas visitas os investigadores vão fixando sua “mirada” crítica na área em
estudo, como se ela fosse, para eles, uma espécie de enorme e sui generis “
codificação” ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visualizando a área como
totalidade, tentarão, visita após visita, realizar a “cisão” desta, na análise das
dimensões parciais que os vão impactando.
Neste esforço de “cisão” com que, mais adiante, voltarão a adentrar-se na
totalidade, vão ampliando a sua compreensão dela, na interação de suas partes.
Na etapa desta igualmente sui generis descodificação, os investigadores ora
incidem sua visão crítica, observadora, diretamente, sobre certos momentos da
existência da área, ora o fazem através de diálogos informais com seus
habitantes.
Na medida em que realizam a “descodificação” desta “codificação” viva, seja
pela observação dos fatos, seja pela conversação informal com os habitantes da
área, irão registrando em seu caderno de notas, à maneira de Wright Mills,76 as
coisas mais aparentemente pouco importantes. A maneira de conversar dos
homens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, no
trabalho. Vão registrando as expressões do povo; sua linguagem, suas palavras,
sua sintaxe, que não é o mesmo que sua pronúncia defeituosa, mas a forma de
construir seu pensamento.77
Esta descodificação ao vivo implica, necessariamente, que os investigadores,
em sua fase, surpreendam a área em momentos distintos. É preciso que a visitem
em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de alguma associação
popular, observando o procedimento de seus participantes, a linguagem usada,
as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os
jovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus
habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas,
registrando manifestações em torno das relações marido-mulher, pais-filhos;
afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensão
primeira da área.
A propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os
investigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela
equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os achados, quer dos
investigadores profissionais, quer dos auxiliares da investigação, representantes
do povo, nestas primeiras observações que realizaram. Daí que este seminário de
avaliação deva realizar-se, se possível, na área de trabalho, para que possam estes
participar dele.
Observa-se que os pontos fixados pelos vários investigadores, só conhecidos
por todos na reunião de seminário avaliativo, de modo geral coincidem, com
exceção de um ou outro aspecto que impressionou mais singularmente a um ou a
outro investigador.
Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um segundo momento
da “descodificação” ao vivo, que os investigadores estão realizando da realidade
que se lhes apresenta como aquela “codificação” sui generis.
Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos expondo como
perceberam e sentiram este ou aquele momento que mais os impressionou, no
ensaio “descodificador”, cada exposição particular, desafiando a todos como
descodificadores da mesma realidade, vai re-presentificando-lhes a realidade
recém-presentificada à sua consciência intencionada a ela. Neste momento, “readmiram” sua admiração anterior no relato da “admiração” dos demais.
Desta forma, a “cisão” que fez cada um da realidade, no processo particular
de sua descodificação, os remete, dialogicamente, ao todo “cindido” que se
retotaliza e se oferece aos investigadores a uma nova análise, à qual se seguirá
novo seinário avaliativo e crítico, de que participarão, como membros da equipe
investigadora, os representantes populares.
Quanto mais cindem o todo e o re-totalizam na re-admiração que fazem de
sua admiração, mais vão aproximando-se dos núcleos centrais das contradições
principais e secundárias em que estão envolvidos os indivíduos da área.
Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investigação, ao se
apropriarem, através de suas observações, dos núcleos centrais daquelas
contradições, os investigadores já estariam capacitados para organizar o
conteúdo programático da ação educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação
reflete as contradições, indiscutivelmente estará constituído da temática
significativa da área.
Não tememos, inclusive, afirmar que a margem de acerto para a ação que se
desenvolvesse a partir destes dados seria muito mais provável que a dos
conteúdos resultantes das programações verticais.
Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os investigadores se
deixem seduzir.
Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção deste núcleo de
contradições, entre as quais estará incluída a principal da sociedade como uma
unidade epocal maior, é estudar em que nível de percepção delas se encontram
os indivíduos da área.
No fundo, estas contradições se encontram constituindo “situações-limite”,
envolvendo temas e apontando tarefas.
Se os indivíduos se encontram aderidos a estas “situações-limite”,
impossibilitados de “separar”-se delas, o seu tema a elas referido será
necessariamente o do fatalismo e a “tarefa” a ele associada é a de quase não terem
tarefa.
Por isto é que, embora as “situações-limite” sejam realidades objetivas e
estejam provocando necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles,
a consciência que delas tenham.
Uma “situação-limite”, como realidade concreta, pode provocar em
indivíduos de áreas diferentes, e até de subáreas de uma mesma área, temas e
tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para o seu
desvelamento.
Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se no
conhecimento do que Goldmann78 chama de “consciência real” (efetiva) e
“consciência máxima possível”.
Real consciousness is the result of the multiple obstacles and deviations that the
different factors of empirical reality put into opposition and submit for realization
by this potential consciousness. Daí que, ao nível da “consciência real”, os homens
se encontrem limitados na possibilidade de perceber mais além das “situaçõeslimite”, o que chamamos de “inédito viável”.
Por isto é que, para nós, o “inédito viável” [que não pode ser apreendido no
nível da “consciência real” ou efetiva] se concretiza na “ação editanda”, cuja
viabilidade antes não era percebida. Há uma relação entre o “inédito viável” e a
“consciência real” e entre a “ação editanda” e a “consciência máxima possível”.
A “consciência possível” (Goldmann) parece poder identificarse com o que
Nicolai79 chama de “soluções praticáveis despercebidas” (nosso “inédito viável”),
em oposição às “soluções praticáveis percebidas” e às “soluções efetivamente
realizadas”, que correspondem à “consciência real” (ou efetiva) de Goldmann.
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na primeira etapa da
investigação, terem chegado à apreensão mais ou menos aproximada do
conjunto de contradições, não os autoriza a pensar na estruturação do conteúdo
programático da ação educativa.
Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua
realidade.
A segunda fase da investigação começa precisamente quando os
investigadores, com os dados que recolheram, chegam à apreensão daquele
conjunto de contradições.
A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão algumas destas
contradições, com que serão elaboradas as codificações que vão servir à
investigação temática.
Na medida em que as codificações (pintadas ou fotografadas e, em certos
casos, preferencialmente fotografadas)80 são o objeto que, mediatizando os
sujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica, sua preparação deve
obedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção das
puras ajudas visuais.
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem
representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temática se busca, o que
as faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se
reconheçam.
Não seria possível, nem no processo da investigação, nem nas primeiras fases
do que a ele se segue, o da devolução da temática significativa como conteúdo
programático, propor representações de realidades estranhas aos indivíduos.
E que este procedimento, embora dialético, pois que os indivíduos,
analisando uma realidade estranha, comparariam com a sua, descobrindo as
limitações desta, não pode preceder a um outro, exigível pelo estado de imersão
dos indivíduos: aquele em que, analisando sua própria realidade, percebem sua
percepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidade
distorcidamente percebida.
Igualmente fundamental para a sua preparação é a condição de não poderem
ter as codificações, de um lado, seu núcleo temático demasiado explícito; de
outro, demasiado enigmático. No primeiro caso, correm o risco de transformarse em codificações propagandísticas, em face das quais os indivíduos não têm
outra descodificação a fazer, senão a que se acha implícita nelas, de forma
dirigida. No segundo, o risco de fazer-se um jogo de adivinhação ou “quebracabeça”.
Na medida em que representam situações existenciais, as codificações devem
ser simples na sua complexidade e oferecer possibilidades plurais de análises na
sua descodificação, o que evita o dirigismo massificador da codificação
propagandística. As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis,
desafios sobre que deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodificadores.81
Ao oferecerem possibilidades plurais de análises, no processo de sua
descodificação, as codificações, na organização de seus elementos constituintes,
devem ser uma espécie de “leque temático”. Desta forma, na medida em que
sobre elas os sujeitos descodificadores incidam sua reflexão crítica, irão
“abrindo-se” na direção de outros temas.
Esta abertura, que não existirá no caso de seu conteúdo temático estar
demasiado explicitado ou demasiado enigmático, é indispensável à percepção das
relações dialéticas que existem entre o que representam e seus contrários.
Para atender, igualmente, a esta exigência fundamental, é indispensável que a
codificação, refletindo uma situação existencial, constitua objetivamente uma
totalidade. Daí que seus elementos devam encontrar-se em interação, na
composição da totalidade.
No processo da descodificação os indivíduos, exteriorizando sua temática,
explicitam sua “consciência real” da objetividade.
Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como atuavam ao viverem a
situação analisada, chegam ao que chamamos antes de percepção da percepção
anterior.
Ao terem a percepção de como antes percebiam, percebem diferentemente a
realidade, e, ampliando o horizonte do perceber, mais facilmente vão
surpreendendo, na sua “visão de fundo”, as relações dialéticas entre uma
dimensão e outra da realidade.
Dimensões referidas ao núcleo da codificação sobre que incide a operação
descodificadora.
Como a descodificação é, no fundo, um ato cognoscente, realizado pelos
sujeitos descodificadores, e como este ato recai sobre a representação de uma
situação concreta, abarca igualmente o ato anterior com o qual os mesmos
indivíduos haviam apreendido a mesma realidade, agora representada na
codificação.
Promovendo a percepção da percepção anterior e o conhecimento do
conhecimento anterior, a descodificação, desta forma, promove o surgimento de
nova percepção e o desenvolvimento de novo conhecimento.
A nova percepção e o novo conhecimento, cuja formação já começa nesta
etapa da investigação, se prolongam, sistematicamente, na implantação do plano
educativo, transformando o “inédito viável” na “ação editanda”, com a superação
da “consciência real” pela “consciência máxima possível”.
Por tudo isto é que mais uma exigência se impõe na preparação das
codificações — é que elas representem contradições tanto quanto possível
“inclusivas” de outras, como adverte José Luís Fiori. Que sejam codificações com
um máximo de “inclusividade” de outras que constituem o sistema de
contradições da área em estudo. Mais ainda e por isto mesmo, preparada uma
destas codificações “inclusivas”, capaz de “abrir-se” em “leque temático” no
processo de sua descodificação, que se preparem as demais “incluídas” nela,
como suas dimensões dialetizadas. A descodificação das primeiras terá uma
iluminação explicativamente dialética na descodificação das segundas.
Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode,82 que há mais de dois anos
trabalha com o método na etapa de pós-alfabetização, trouxe uma contribuição
da mais alta importância.
Na sua experiência, observou que os camponeses somente se interessavam
pela discussão quando a codificação dizia respeito, diretamente, a aspectos
concretos de suas necessidades sentidas. Qualquer desvio na codificação, como
qualquer tentativa do educador de orientar o diálogo, na descodificação, para
outros rumos que não fossem os de suas necessidades sentidas, provocavam o
seu silêncio e o seu indiferentismo.
Por outro lado, observava que, embora a codificação se centrasse nas
necessidades sentidas (codificação, contudo, não “inclusiva”, no sentido de José
Luís Fiori), os camponeses não conseguiam, no processo de sua análise, fixar-se,
ordenadamente, na discussão, “perdendo-se”, não raras vezes, sem alcançar a
síntese. Assim também não percebiam, ou raramente percebiam, as relações
entre suas necessidades sentidas e as razões objetivas mais próximas ou menos
próximas das mesmas.
Faltava-lhes, diremos nós, a percepção do “inédito viável” mais além das
“situações-limite”, geradoras de suas necessidades.
Não lhes era possível ultrapassar a sua experiência existencial focalista,
ganhando a consciência da totalidade.
Desta forma, resolveu experimentar a projeção simultânea de situações, e a
maneira como desenvolveu seu experimento é que constitui a contribuição
indiscutivelmente importante que trouxe.
Inicialmente, projeta a codificação (muito simples na constituição de seus
elementos) de uma situação existencial. A esta codificação chama de “essencial”
— aquela que representa o núcleo básico e que, abrindo-se em leque temático
terminativo, se estenderá nas outras, que ele chama de “codificações auxiliares”.
Depois de descodificada a “essencial”, mantendo-a projetada como um
suporte referencial para as consciências a ela intencionadas, vai, sucessivamente,
projetando a seu lado as codificações “auxiliares”.
Com estas, que se encontram em relação direta com a “essencial”, consegue
manter vivo o interesse dos indivíduos, que em lugar de “perder-se” nos debates,
chegam à síntese dos mesmos.
No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está em que ele conseguiu
propor à cognoscitividade dos indivíduos, através da dialeticidade entre a
codificação “essencial” e as “auxiliares”, o sentido da totalidade. Os indivíduos
imersos na realidade, com a pura sensibilidade de suas necessidades, emergem
dela e, assim, ganham a razão das necessidades.
Desta forma, muito mais rapidamente, poderão ultrapassar o nível da
“consciência real”, atingindo o da “consciência possível”.
Se este é o objetivo da educação problematizadora que defendemos, a
investigação temática, que a ela mais que serve, porque dela é um momento, a
este objetivo não pode fugir também.
Preparadas as codificações, estudados pela equipe interdisciplinar todos os
possíveis ângulos temáticos nelas contidos, iniciam os investigadores a terceira
fase da investigação.
Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos descodificadores, nos
“círculos de investigação temática”.83
Na medida em que operacionalizam estes círculos,84 com a descodificação do
material elaborado na etapa anterior, vão sendo gravadas as discussões que serão,
na que se segue, analisadas pela equipe interdisciplinar. Nas reuniões de análise
deste material, devem estar presentes os auxiliares de investigação,
representantes do povo, e alguns participantes dos “círculos de investigação”. O
seu subsídio, além de ser um direito que lhes cabe, é indispensável à análise dos
especialistas. É que, tão sujeitos quanto os especialistas do ato do tratamento
destes dados, serão ainda, e por isto mesmo, retificadores e ratificadores da
interpretação que fazem estes dos achados da investigação.
Do ponto de vista metodológico, a investigação que, desde o seu início, se
baseia na relação simpática de que falamos, tem mais esta dimensão fundamental
para a sua segurança — a presença crítica de representantes do povo desde seu
começo até sua fase final, a da análise da temática encontrada, que se prolonga na
organização do conteúdo programático da ação educativa, como ação cultural
libertadora.
A estas reuniões de descodificação nos “círculos de investigação temática”,
além do investigador como coordenador auxiliar da descodificação, assistirão
mais dois especialistas — um psicólogo e um sociólogo — cuja tarefa é registrar
as reações mais significativas ou aparentemente pouco significativas dos sujeitos
descodificadores.
No processo da descodificação, cabe ao investigador, auxiliar desta, não
apenas ouvir os indivíduos, mas desafiá-los cada vez mais, problematizando, de
um lado, a situação existencial codificada e, de outro, as próprias respostas que
vão dando aqueles no decorrer do diálogo.
Desta forma, os participantes do “círculo de investigação temática” vão
extrojetando, pela força catártica da metodologia, uma série de sentimentos, de
opiniões, de si, do mundo e dos outros, que possivelmente não extrojetariam em
circunstâncias diferentes.
Numa das investigações realizadas em Santiago (esta infelizmente não
concluída), ao discutir um grupo de indivíduos residentes num “cortiço”
(conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que
caminhava pela rua, e, em uma esquina, três jovens que conversavam, os
participantes do círculo de investigação afirmavam que “aí apenas é produtivo e
útil à nação o borracho que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que
ganha pouco, preocupado com a família, a cujas necessidades não pode atender.
É o único trabalhador. É um trabalhador decente como nós, que também somos
borrachos”.
O interesse do investigador, o psiquiatra Patrício Lopes, a cujo trabalho
fizemos referência no nosso ensaio anterior, era estudar aspectos do alcoolismo.
Provavelmente, porém, não haveria conseguido estas respostas se se tivesse
dirigido àqueles indivíduos com um roteiro de pesquisa elaborado por ele
mesmo. Talvez, ao serem perguntados diretamente, negassem, até mesmo que
tomavam, vez ou outra, o seu trago. Frente, porém, à codificação de uma
situação existencial, reconhecível por eles e em que se reconheciam, em relação
dialógica entre si e com o investigador, disseram o que realmente sentiam.
Há dois aspectos importantes nas declarações destes homens. De um lado, a
relação expressa entre ganhar pouco, sentirem-se explorados, com um “salário
que nunca alcança”, e se embriagarem. Embriagarem-se como uma espécie de
fuga à realidade, como tentativa de superação da frustração do seu não atuar.
Uma solução, no fundo, autodestrutiva, necrófila. De outro, a necessidade de
valorizar o que bebe. Era o “único útil à nação, porque trabalhava, enquanto os
outros o que faziam era falar mal da vida alheia”. E, após a valorização do que
bebe, a sua identificação com ele, como trabalhadores que também bebem. E
trabalhadores decentes.
Imaginemos, agora, o insucesso de um educador do tipo que Niebuhr85
chama de “moralista”, que fosse fazer prédicas a esses homens contra o
alcoolismo, apresentando-lhes como exemplo de virtude o que, para eles, não é
manifestação de virtude.
O único caminho a seguir, neste como em outros casos, é a conscientização
da situação, a ser tentada desde a etapa da investigação temática.
Conscientização, é óbvio, que não para, estoicamente, no reconhecimento
puro, de caráter subjetivo, da situação, mas, pelo contrário, que prepara os
homens, no plano da ação, para a luta contra os obstáculos à sua humanização.
Em outra experiência, de que participamos, esta, com camponeses,
observamos que, durante toda a discussão de uma situação de trabalho no
campo, a tônica do debate era sempre a reivindicação salarial e a necessidade de
se unirem, de criarem seu sindicato para esta reivindicação, não para outra.
Discutiram três situações neste encontro e a tônica foi sempre a mesma —
reivindicação salarial e sindicato para atender a esta reivindicação.
Imaginemos, agora, um educador que organizasse o seu programa
“educativo” para estes homens e, em lugar da discussão desta temática, lhes
propusesse a leitura de textos que, certamente, chamaria de “sadios”, e nos quais
se fala, angelicalmente, de que “a asa é da ave”.
E isto é o que se faz, em termos preponderantes, na ação educativa como na
política, porque não se leva em conta que a dialogicidade da educação começa na
investigação temática.
A sua última etapa se inicia quando os investigadores, terminadas as
descodificações nos círculos, dão começo ao estudo sistemático e interdisciplinar
de seus achados.
Num primeiro instante, ouvindo gravação por gravação, todas as que foram
feitas das descodificações realizadas, e estudando as notas fixadas pelo psicólogo
e pelo sociólogo, observadores do processo descodificador, vão arrolando os
temas explícitos ou implícitos em afirmações feitas nos “círculos de
investigação”.
Estes temas devem ser classificados num quadro geral de ciências, sem que
isto signifique, contudo, que sejam vistos, na futura elaboração do programa,
como fazendo parte de departamentos estanques.
Significa, apenas, que há uma visão mais específica, central, de um tema,
conforme a sua situação num domínio qualquer das especializações.
O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que situado no domínio da
economia, não lhe é exclusivo. Receberia, assim, o enfoque da sociologia, da
antropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do câmbio
cultural, na mudança de atitudes, nos valores, que interessam, igualmente, a uma
filosofia do desenvolvimento.
Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas decisões que
envolvem o problema, o enfoque da educação etc.
Desta forma, os temas que foram captados dentro de uma totalidade jamais
serão tratados esquematicamente. Seria uma lástima se, depois de investigados na
riqueza de sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao serem
“tratados”, perdessem esta riqueza, esvaziando-se de sua força, na estreiteza dos
especialismos.
Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, dentro de seu campo,
apresentar à equipe interdisciplinar o projeto de “redução” de seu tema.
No processo de “redução” deste, o especialista busca os seus núcleos
fundamentais que, constituindo-se em unidades de aprendizagem e
estabelecendo uma sequência entre si, dão a visão geral do tema “reduzido”.
Na discussão de cada projeto específico, se vão anotando as sugestões dos
vários especialistas. Estas ora se incorporam à “redução” em elaboração, ora
constarão dos pequenos ensaios a serem escritos sobre o tema “reduzido”, ora
uma coisa e outra.
Estes pequenos ensaios, a que se juntam sugestões bibliográficas, são
subsídios valiosos para a formação dos educadores-educandos que trabalharão
nos “círculos de cultura”.
Neste esforço de “redução” da temática significativa, a equipe reconhecerá a
necessidade de colocar alguns temas fundamentais que, não obstante, não foram
sugeridos pelo povo, quando da investigação.
A introdução destes temas, de necessidade comprovada, corresponde,
inclusive, à dialogicidade da educação, de que tanto temos falado. Se a
programação educativa é dialógica, isto significa o direito que também têm os
educadores-educandos de participar dela, incluindo temas não sugeridos. A
estes, por sua função, chamamos “temas dobradiça”.
Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois temas no conjunto da
unidade programática, preenchendo um possível vazio entre ambos, ora contêm,
em si, as relações a serem percebidas entre o conteúdo geral da programação e a
visão do mundo que esteja tendo o povo. Daí que um destes temas possa
encontrar-se no “rosto” de unidades temáticas.
O conceito antropológico de cultura é um destes “temas dobradiça”, que
prendem a concepção geral do mundo que o povo esteja tendo ao resto do
programa. Esclarece, através de sua compreensão, o papel dos homens no
mundo e com o mundo, como seres da transformação e não da adaptação.86
Feita a “redução”87 da temática investigada, a etapa que se segue, segundo
vimos, é a de sua “codificação”. A da escolha do melhor canal de comunicação
para este ou aquele tema “reduzido” e sua representação. Uma “codificação”
pode ser simples ou composta. No primeiro caso, pode-se usar o canal visual,
pictórico ou gráfico, o tátil ou o canal auditivo. No segundo, multiplicidade de
canais.88
A escolha do canal visual, pictórico ou gráfico, depende não só da matéria a
codificar, mas também dos indivíduos a quem se dirige. Se têm ou não
experiência de leitura.
Elaborado o programa, com a temática já reduzida e codificada, confeccionase o material didático. Fotografias, slides, film strips, cartazes, textos de leitura etc.
Na confecção deste material pode a equipe escolher alguns temas, ou aspectos
de alguns deles e, se, quando e onde seja possível, usando gravadores, propô-los a
especialistas como assunto para uma entrevista a ser realizada com um dos
membros da equipe.
Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimento. A equipe procuraria
dois ou mais especialistas (economistas), inclusive de escolas diferentes, e lhes
falaria de seu trabalho, convidando-os a dar uma contribuição que seria a
entrevista em linguagem acessível sobre tais pontos. Se os especialistas aceitam,
faz-se a entrevista de dez a quinze minutos. Pode-se, inclusive, tirar uma
fotografia do especialista, enquanto fala. No momento em que se propusesse ao
povo o conteúdo da entrevista, se diria, antes, quem é ele. O que fez. O que faz. O
que escreveu, enquanto se poderia projetar sua fotografia em slides. Se é um
professor de universidade, ao declinar-se sua condição de professor universitário
já se poderia discutir com o povo o que lhe parecem as universidades de seu país.
Como as vê. O que delas espera.
O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevista, seria discutido o seu
conteúdo, o qual passaria a funcionar como uma codificação auditiva.
Do debate realizado, faria posteriormente a equipe um relatório ao
especialista em torno de como o povo reagiu à sua palavra. Desta maneira, se
estariam vinculando intelectuais, muitas vezes de boa vontade, mas, não raro,
alienados da realidade popular, a esta realidade. E se estaria também
proporcionando ao povo conhecer e criticar o pensamento do intelectual.
Podem ainda alguns destes temas ou alguns de seus núcleos ser apresentados
através de pequenas dramatizações, que não contenham nenhuma resposta. O
tema em si, nada mais.
Funcionaria a dramatização como codificação, como situação
problematizadora, a que se seguiria a discussão de seu conteúdo.
Outro recurso didático, dentro de uma visão problematizadora da educação e
não “bancária”, seria a leitura e a discussão de artigos de revistas, de jornais, de
capítulos de livros, começando-se por trechos. Como nas entrevistas gravadas,
aqui também, antes de iniciar a leitura de artigo ou do capítulo do livro, se falaria
de seu autor. Em seguida, se realizaria o debate em torno do conteúdo da leitura.
Na linha do emprego destes recursos, parece-nos indispensável a análise do
conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento.
Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo
fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais
ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente,
como objeto dos “comunicados” que lhes prescrevem, mas como uma
consciência que precisa libertar-se.
Preparado todo este material, a que se juntariam pré-livros sobre toda esta
temática, estará a equipe de educadores apta a devolvê-lo ao povo, sistematizada
e ampliada. Temática que, sendo dele, volta agora a ele, como problemas a serem
decifrados, jamais como conteúdos a serem depositados.
O primeiro trabalho dos educadores de base será a apresentação do programa
geral da campanha a iniciar-se. Programa em que o povo se encontrará, de que
não se sentirá estranho, pois que dele saiu.
Fundados na própria dialogicidade da educação, os educadores explicarão a
presença, no programa, dos “temas dobradiça” e de sua significação.
Como fazer, porém, no caso em que não se possa dispor dos recursos para
esta prévia investigação temática, nos termos analisados?
Com um mínimo de conhecimento da realidade, podem os educadores
escolher alguns temas básicos que funcionariam como “codificações de
investigação”. Começariam assim o plano com temas introdutórios ao mesmo
tempo em que iniciariam a investigação temática para o desdobramento do
programa, a partir destes temas.
Um deles, que nos parece, como já dissemos, um tema central, indispensável,
é o do conceito antropológico de cultura. Sejam homens camponeses ou
urbanos, em programa de alfabetização ou de pós-alfabetização, o começo de
suas discussões em busca de mais conhecer, no sentido instrumental do termo, é
o debate deste conceito.
Na proporção em que discutem o mundo da cultura, vão explicitando seu
nível de consciência da realidade, no qual estão implicitados vários temas. Vão
referindo-se a outros aspectos da realidade, que começa a ser descoberta em uma
visão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem também outros tantos
temas.
Com a experiência que hoje temos, podemos afirmar que, bem-discutido o
conceito de cultura, em todas ou em grande parte de suas dimensões, nos pode
proporcionar vários aspectos de um programa educativo. Mas, além da captação,
que diríamos quase indireta, de uma temática, na hipótese agora referida, podem
os educadores, depois de alguns dias de relações horizontais com os participantes
do “círculo de cultura”, perguntar-lhes diretamente:
“Que outros temas ou assuntos poderíamos discutir além deste?”
Na medida em que forem respondendo, logo depois de anotar a resposta, a
propõem ao grupo com um problema também.
Admitamos que um dos membros do grupo diz: “Gostaria de discutir sobre o
nacionalismo.” “Muito bem (diria o educador, após registrar a sugestão, e
acrescentaria): “Que significa nacionalismo? Por que pode interessar-nos a
discussão sobre o nacionalismo?”
É provável que, com a problematização da sugestão ao grupo, novos temas
surjam. Assim, na medida em que todos vão se manifestando o educador vai
problematizando, uma a uma, as sugestões que nascem do grupo.
Se, por exemplo, numa área em que funcionam trinta “círculos de cultura”,
na mesma noite, todos os “coordenadores” (educadores) procedem assim, terá a
equipe central um rico material temático a estudar, dentro dos princípios
descritos na primeira hipótese de investigação da temática significativa.
O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não
“bancária”, é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu
pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada
implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros.
Porque esta visão da educação parte da convicção de que não pode sequer
presentear o seu programa, mas tem de buscá-lo dialogicamente com o povo, é
que se inscreve como uma introdução à pedagogia do oprimido, de cuja
elaboração deve ele participar.
Notas
51
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967 [33a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011].
52
Palavra
Sacrifício
53
(açã)
(reflexão)
= Práxis.
da açã) palavreria, verbalismo, blá-= lá-blá-blá
(de reflexão) = ativismo
Algumas destas reflexões nos foram motivadas em nossos diálogos com o prof. Ernani Maria Fiori.
Não nos referimos, obviamente, ao silêncio das meditações profundas em que os homens, numa forma só
aparente de sair do mundo, dele “afastando-se” para “admirá-lo” em sua globalidade, com ele, por isto,
continuam. Daí que estas formas de recolhimento só sejam verdadeiras quando os homens nela se
encontrem “molhados” de realidade e não quando, significando um desprezo ao mundo, sejam maneiras de
fugir dele, numa espécie de “esquizofrenia histórica”.
54
Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na
revolução, porque um ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós, a revolução, que não se faz sem
teoria da revolução, portanto, sem ciência, não tem nesta uma inconciliação com o amor. Pelo conrário, a
revolução, que é feita pelos homens, o é em nome de sua humanização. Que leva os revolucionários a
aderirem aos oprimidos, senão a condição desumanizada em que se acham estes?
Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor no mundo capitalista que a revolução vá
deixar de ser amorosa, nem os revolucionários fazer silêncio de seu caráter biófilo. Guevara, ainda que
tivesse salientado o “risco de parecer ridículo”, não temeu afirmá-lo. Déjeme decirle (declarou dirigindo-se a
Carlos Quijano) a riesgo de parecer ridículo que el verdadero revolucionário es animado por fuertes
sentimientos de amor. Es imposible pensar un revolucionario autentico, sin esta cualidad. Ernesto Guevara,
Obra revolucionaria. México: Ediciones Era S.A., 1967, pp. 637-38.
55
56
Trecho de carta de um amigo do autor.
57
Pierre Furter, Educação e vida. Petrópolis: Vozes, 1966, pp. 26-7.
Em uma longa conversação com Malraux, declarou Mao: Vous savez que je proclame depuis longtemps:
nous devons enseigner aux masses avec précision ce que nous avons reçu d’elles avec confusion. André
Malraux, Anti-memoires. Paris: Gallimard, 1967, p. 531. Nesta afirmação de Mao está toda uma teoria
dialógica de constituição do conteúdo programático da educação, que não pode ser elaborado a partir das
finalidades do educador, do que lhe pareça ser o melhor para seus educandos.
58
59
P. Furter, op. cit., p. 165.
Pour établir une liaison avec les masses, nous devons conformer à leurs désirs. Dans tout travail pour les
masses, nous devons partir de leurs besoins, et non de nos propres désirs, si louables soient-ils. Il arrive souvent
que les masses aient objetivement besoin de telles ou telles transformations, mais que subjetivement, elles ne
soient conscients de ce besoin, qu’elles n’aient ni la volonté ni le désir de les réaliser; dans ce cas, nous devons
attendre avec patience; c’est seulement lorsque, à la suíte de notre travail, les masses seront, dans leurs
majorité conscientes de la nécessité de ces transformations, lorsqu’elles auront la volonté et le désir de les faire
aboutir qu’on pourra les realiser; sinon, l’on risque de se couper des masses. […] Deux principes doivent nous
guider: premièrement, les besoins réels des masses et non les besoins nés de notre imagination; deuxièment, le
désir librement exprimé par les masses, les resolutions qu’elles ont prises elles mêmes et non celles que nous
prenons à leur place. Mao Tsé-Tung, “Le Front uni dans le travail culturel”, in Œuvres choisies de Mao TseToung. Pequim: Ed. du Peuple, 1966.
60
61
No capítulo seguinte, analisaremos detidamente esta questão.
Neste sentido, é tão contraditório que homens verdadeiramente humanistas usem a prática “bancária”
quanto que homens de direita se empenhem num esforço de educação problematizadora. Estes são sempre
mais coerentes — jamais aceitam uma pedagogia da problematização.
62
63
Com a mesma conotação, usamos a expressão temática significativa.
O prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o problema das “situações-limite”, cujo
conceito aproveita, esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente em
Jaspers.
Para Vieira Pinto, as “situações-limite” não são “o contorno infranqueável onde terminam as possibilidades,
mas a margem real onde começam todas as possibilidades”; não são “a fronteira entre o ser e o nada, mas a
fronteira entre o ser e o ser mais” (mais ser). Álvaro Vieira Pinto, Consciência e realidade nacional. Rio de
Janeiro: ISEB, 1960, v. 2, p. 284.
64
65
Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
66
A propósito deste aspecto, cf. Karel Kosik, Dialética do concreto, 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Em torno de épocas históricas, cf. Hans Freyer, Teoría de la época actual. México: Fondo de Cultura
Económica, 1958.
67
Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza de sua compreensão, como a ação
por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez,
provocam novas tarefas que devem ser cumpridas.
68
A libertação desafia, de forma dialeticamente antagônica, oprimidos e opressores. Assim, enquanto é,
para os primeiros, seu “inédito viável”, que precisam concretizar, se constitui, para os segundos, como
“situação-limite”, que necessitam evitar.
69
Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda que
diferentemente de como se manifesta entre camponeses. Seu medo da liberdade os leva a assumir
mecanismos de defesa e, através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e
negam a realidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da “situação-
70
limite”, cuja crítica lhes é incômoda, sua tendência é ficar na periferia dos problemas, rechaçando toda
tentativa de adentramento no núcleo mesmo da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes
chama a atenção para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, aos quais estão dando
significação primordial.
A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos
constitutivos, em interação. A descodificação é a análise crítica da situação codificada.
71
O sujeito se reconhece na representação da situação existencial “codificada”, ao mesmo tempo que
reconhece nesta, objeto agora de sua reflexão, o seu contorno condicionante em e com que está, com outros
sujeitos.
72
73
Cf. Paulo Freire, Educação como prática da liberdade.
74
A propósito da investigação e do “tratamento” das palavras geradoras, cf. Id., ibid.
“Na razão mesma em que a ‘investigação temática’ (diz a socióloga Maria Edy Ferreira, num trabalho em
preparação) só se justifica enquanto devolva ao povo o que a ele pertence; enquanto seja, não o ato de
conhecê-lo, mas o de conhecer com ele a realidade que o desafia.”
75
76
Wright Mills, The Sociological Imagination. Oxford: Oxford University Press, 1963.
Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo — e genial exemplo — de como pode um escritor
captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais — a
estrutura de seu pensamento. O educador brasileiro Paulo de Tarso escreveu um ensaio, cujo valor e
interesse destacamos, sobre a obra de Guimarães Rosa, onde analisa o papel deste autor como descobridor
dos temas fundamentais do homem do sertão brasileiro.
77
78
Lucien Goldmann, The Human Sciences and Philosophy. Londres: The Chancer Press, 1969, p. 118.
79
André Nicolaj, Comportement économique et structures sociales. Paris: PUF, 1960.
80 As codificações também podem ser orais. Consistem, neste caso, na apresentação, em poucas palavras,
que fazem os investigadores, de um problema existencial e a que se segue sua “descodificação”. A equipe do
Instituto de Desarrollo Agropecuario, Chile, vem usando-os com resultados positivos em investigações
temáticas.
As codificações, de um lado, são a mediação entre o “contexto concreto ou real”, em que se dão os fatos, e
o “contexto teórico”, em que são analisadas; de outro, são o objeto cognoscível sobre o que o educadoreducando e os educandos-educadores, como sujeitos cognoscentes, incidem sua reflexão crítica. Cf. Paulo
Freire, Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976 [13a edição, São
Paulo: Paz e Terra, 2011].
81
Funcionário especializado de uma das mais sérias instituições governamentais chilenas, o Instituto de
Desarrollo Agropecuario (INDAP), em cuja direção até bem pouco esteve o economista, de formação
autenticamente humanista, Jacques Chonchol.
82
José Luís Fiori, em seu artigo já citado, retificou com esta designação, adequada à instituição em que se
processa a ação investigadora da temática significativa, a que antes lhe dávamos, realmente menos própria,
83
de “círculo de cultura”, que podia, ainda, estabelecer confusão com aquela em que se realiza a etapa que se
segue à da investigação.
Em cada “círculo de investigação” deve haver um máximo de vinte pessoas, existindo tantos círculos
quantos a soma de seus participantes atinja a da população da área ou da subárea em estudo.
84
85
R. Niebuhr, op. cit.
A propósito da importância da análise do conceito antropológico de cultura, cf. Paulo Freire, Educação
como prática da liberdade.
86
Se encaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma totalidade cuja autonomia se
encontra nas inter-relações de suas unidades que são, também, em si, totalidades, ao mesmo tempo em que
são parcialidades da totalidade maior. Os temas, sendo em si totalidades, também são parcialidades que, em
interação, constituem as unidades temáticas da totalidade programática. Na “redução” temática, que é a
operação de “cisão” dos temas enquanto totalidades, se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas
parcialidades.
Desta forma, “reduzir” um tema é cindi-lo em suas partes para, voltando-se a ele como totalidade, melhor
conhecê-lo.
Na “codificação” se procura re-totalizar o tema cindido, na representação de situações existenciais.
Na “descodificação”, os indivíduos, cindindo a codificação como totalidade, apreendem o tema ou os temas
nela implícitos ou a ela referidos. Este processo de “descodificação” que, na sua dialeticidade, não morre na
cisão, que realizam na codificação como totalidade temática, se completa na re-totalização de totalidade
cindida, com que não apenas a compreendem mais claramente, mas também vão percebendo as relações
com outras situações codificadas, todas elas representações de situações existenciais.
87
88
CODIFICAÇÃO
a) Simples
b) Composta
{
{
canal visual
canal tátil
canal auditivo
simultaneidade
de canais
{
pictórico
gráfico
criador
4
A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA
NESTE CAPÍTULO, EM QUE PRETENDEMOS analisar as teorias da ação cultural que se
desenvolvem a partir da matriz antidialógica e da dialógica, voltaremos, não
raras vezes, a afirmações feitas no corpo deste ensaio.
Serão repetições ou voltas a pontos já referidos, ora com a intenção de
aprofundá-los, ora porque se façam necessários ao esclarecimento de novas
afirmações.
Desta maneira, começaremos reafirmando que os homens são seres da práxis.
São seres do quefazer, diferentes, por isto mesmo, dos animais, seres do puro
fazer. Os animais não “admiram” o mundo. Imergem nele. Os homens, pelo
contrário, como seres do quefazer “emergem” dele e, objetivando-o, podem
conhecê-lo e transformá-lo com seu trabalho.
Os animais, que não trabalham, vivem no seu “suporte” particular, a que não
transcendem. Daí que cada espécie animal viva no “suporte” que lhe corresponde
e que estes “suportes” sejam incomunicáveis entre si, enquanto que franqueáveis
aos homens.
Mas, se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação
e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o
quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que
necessariamente o ilumine. O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação. Não
pode reduzir-se, como salientamos no capítulo anterior, ao tratarmos a palavra,
nem ao verbalismo, nem ao ativismo.
A tão conhecida afirmação de Lênin:89 “Sem teoria revolucionária não pode
haver movimento revolucionário” significa precisamente que não há revolução
com verbalismos, nem tampouco com ativismo, mas com práxis, portanto, com
reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas.
O esforço revolucionário de transformação radical destas estruturas não pode
ter, na liderança, homens do quefazer e, nas massas oprimidas, homens
reduzidos ao puro fazer.
Este é um ponto que deveria estar exigindo de todos quantos realmente se
comprometem com os oprimidos, com a causa de sua libertação, uma
permanente e corajosa reflexão.
Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando a transformação da
realidade em que se acham oprimidos, reclama uma teoria da ação
transformadora, esta não pode deixar de reconhecer-lhes um papel fundamental
no processo da transformação.
Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou
executores de suas determinações; como meros ativistas a quem negue a reflexão
sobre o seu próprio fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atuação
da liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por sua própria
natureza, não pode fazê-lo.
Por isto, na medida em que a liderança nega a práxis verdadeira aos
oprimidos, se esvazia, consequentemente, na sua.
Tende, desta forma, a impor sua palavra a eles, tornando-a, assim, uma
palavra falsa, de caráter dominador.
Instala, com este proceder, uma contradição entre seu modo de atuar e os
objetivos que pretende, ao não entender que, sem o diálogo com os oprimidos,
não é possível práxis autêntica, nem para estes nem para ela.
O seu quefazer, ação e reflexão, não pode dar-se sem a ação e a reflexão dos
outros, se seu compromisso é o da libertação.
A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elites
dominadoras. E é natural que assim seja, pois são quefazeres antagônicos.
O que não se pode realizar, na práxis revolucionária, é a divisão absurda entre
a práxis da liderança e a das massas oprimidas, de forma que a destas fosse a de
apenas seguir as determinações da liderança.
Esta dicotomia existe, como condição necessária, na situação de dominação,
em que a elite dominadora prescreve e os dominados seguem as prescrições.
Na práxis revolucionária há uma unidade, em que a liderança — sem que isto
signifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certos
momentos, diretora — não pode ter nas massas oprimidas o objeto de sua posse.
Daí que não sejam possíveis a manipulação, a sloganização, o “depósito”, a
condução, a prescrição, como constituintes da práxis revolucionária.
Precisamente porque o são da dominadora.
Para dominar, o dominador não tem outro caminho senão negar às massas
populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de dizer sua palavra, de
pensar certo.
As massas populares não têm que, autenticamente, “admirar” o mundo,
denunciá-lo, questioná-lo, transformá-lo para a sua humanização, mas adaptarse à realidade que serve ao dominador. O quefazer deste não pode, por isto
mesmo, ser dialógico. Não pode ser um quefazer problematizante dos homensmundo ou dos homens em suas relações com o mundo e com os homens. No
momento em que se fizesse dialógico, problematizante, ou o dominador se
haveria convertido aos dominados e já não seria dominador, ou se haveria
equivocado. E se, equivocando-se, desenvolvesse um tal quefazer, pagaria caro
por seu equívoco.
Do mesmo modo, uma liderança revolucionária, que não seja dialógica com
as massas, ou mantém a “sombra” do dominador “dentro” de si e não é
revolucionária, ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização
indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária.
Pode ser até que chegue ao poder, mas temos nossas dúvidas em torno da
revolução mesma que resulta deste quefazer antidialógico.
Impõe-se, pelo contrário, a dialogicidade entre a liderança revolucionária e as
massas oprimidas, para que, em todo o processo de busca de sua libertação,
reconheçam na revolução o caminho da superação verdadeira da contradição em
que se encontram, como um dos polos da situação concreta de opressão. Vale
dizer que devem se engajar no processo com a consciência cada vez mais crítica
de seu papel de sujeitos da transformação.
Se são levadas ao processo como seres ambíguos,90 metade elas mesmas,
metade o opressor “hospedado” nelas, e se chegam ao poder vivendo esta
ambiguidade que a situação de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver,
simplesmente, a impressão de que chegaram ao poder.
A sua dualidade existencial pode, inclusive, proporcionar o surgimento de
um clima sectário — ou ajudá-lo — que conduz facilmente à constituição de
“burocracias” que corroem a revolução. Ao não conscientizarem, no decorrer do
processo, esta ambiguidade, podem açoitar sua “participação” nele com um
espírito mais revanchista91 que revolucionário.
Podem aspirar à revolução como um meio de dominação também e não
como um caminho de libertação. Podem visualizar a revolução como a sua
revolução privada, o que mais uma vez revela uma das características dos
oprimidos, sobre que falamos no primeiro capítulo deste ensaio.
Se uma liderança revolucionária, encarnando, desta forma, uma visão
humanista — de um humanismo concreto e não abstrato —, pode ter
dificuldades e problemas, muito maiores dificuldades e problemas terá ao tentar,
por mais bem-intencionada que seja, fazer a revolução para as massas oprimidas.
Isto é, fazer uma revolução em que o com as massas é substituído pelo sem elas,
porque trazidas ao processo através dos mesmos métodos e procedimentos
usados para oprimi-las.
Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma
exigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Dos
golpes, seria uma ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas
oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se ou a força
que reprime.
A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso
com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo, na
mentira.92 Não pode temer as massas, a sua expressividade, a sua participação
efetiva no poder. Não pode negá-las. Não pode deixar de prestar-lhes conta. De
falar de seus acertos, de seus erros, de seus equívocos, de suas dificuldades.
A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais
revolução será.
Este diálogo, como exigência radical da revolução, responde a outra exigência
radical — a dos homens como seres que não podem ser fora da comunicação,
pois que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá-los em
quase “coisa” e isto é tarefa e objetivo dos opressores, não dos revolucionários.
É preciso que fique claro que, por isto mesmo que estamos defendendo a
práxis, a teoria do fazer, não estamos propondo nenhuma dicotomia de que
resultasse que este fazer se dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distante,
de ação. Ação e reflexão se dão simultaneamente.
O que pode ocorrer, ao exercer-se uma análise crítico-reflexiva sobre a
realidade, sobre suas contradições, é que se perceba a impossibilidade imediata
de uma forma determinada de ação ou a sua inadequacidade ao momento.
Desde o instante, porém, em que a reflexão demonstra a inviabilidade ou a
inoportunidade de uma forma tal ou qual de ação, que deve ser adiada ou
substituída por outra, não se pode negar a ação nos que fazem esta reflexão. É
que esta se está dando no ato mesmo de atuar — é também ação.
Se, na educação como situação gnosiológica, o ato cognoscente do sujeito
educador (também educando) sobre o objeto cognoscível não morre, ou nele se
esgota, porque, dialogicamente, se estende a outros sujeitos cognoscentes, de tal
maneira que o objeto cognoscível se faz mediador da cognoscitividade dos dois,
na teoria da ação revolucionária se dá o mesmo. Isto é, a liderança tem, nos
oprimidos, sujeitos também da ação libertadora e, na realidade, a mediação da
ação transformadora de ambos. Nesta teoria da ação, exatamente porque é
revolucionária, não é possível falar nem em ator, no singular, nem apenas em
atores, no plural, mas em atores em intersubjetividade, em intercomunicação.
Negá-la, no processo revolucionário, evitando, por isto mesmo, o diálogo
com o povo em nome da necessidade de “organizá-lo”, de fortalecer o poder
revolucionário, de assegurar uma frente coesa é, no fundo, temer a liberdade. É
temer o próprio povo ou não crer nele. Mas, ao se descrer do povo, ao temê-lo, a
revolução perde sua razão de ser. É que ela nem pode ser feita para o povo pela
liderança, nem por ele, para ela, mas por ambos, numa solidariedade que não
pode ser quebrada. E esta solidariedade somente nasce no testemunho que a
liderança dá a ele, no encontro humilde, amoroso e corajoso com ele.
Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos no
desencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos. E, ao assim
procedermos, nos tornamos necrófilos, em lugar de biófilos. Matamos a vida, em
lugar de alimentarmos a vida. Em lugar de buscá-la, corremos dela.
Matar a vida, freá-la, com a redução dos homens a puras coisas, aliená-los,
mistificá-los, violentá-los são o próprio dos opressores.
Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens no
mundo para transformá-lo, que é o diálogo,93 estejamos caindo numa ingênua
atitude, num idealismo subjetivista.
Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e
com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e
classes oprimidas.
O que pretende a revolução autêntica é transformar a realidade que propicia
este estado de coisas, desumanizante dos homens.
Afirma-se, o que é uma verdade, que esta transformação não pode ser feita
pelos que vivem de tal realidade, mas pelos esmagados, com uma lúcida
liderança.
Que seja esta, pois, uma afirmação radicalmente consequente, isto é, que se
torne existenciada pela liderança na sua comunhão com o povo. Comunhão em
que crescerão juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmente
autonomear-se, se instaura ou se autentica na sua práxis com a do povo, nunca
no desencontro ou no dirigismo.
Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não percebendo esta
obviedade, a de que a situação concreta em que estão os homens condiciona a
sua consciência do mundo e esta as suas atitudes e o seu enfrentamento, pensam
que a transformação da realidade se pode fazer em termos mecânicos.94 Isto é,
sem a problematização desta falsa consciência do mundo ou sem o
aprofundamento de uma já menos falsa consciência dos oprimidos, na ação
revolucionária.
Não há realidade histórica — mais outra obviedade — que não seja humana.
Não há história sem homens, como não há uma história para os homens, mas
uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx.
E é precisamente, quando — às grandes maiorias — se proíbe o direito de
participarem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas e
alienadas. O intento de ultrapassagem do estado de objetos para o de sujeitos —
objetivo da verdadeira revolução — não pode prescindir nem da ação das massas,
incidente na realidade a ser transformada, nem de sua reflexão.
Idealistas seríamos se, dicotomizando a ação da reflexão, entendêssemos ou
afirmássemos que a simples reflexão sobre a realidade opressora, que levasse os
homens ao descobrimento de seu estado de objetos, já significasse serem eles
sujeitos. Não há dúvida, porém, de que, se este reconhecimento ainda não
significa que sejam sujeitos, concretamente, “significa, disse um aluno nosso,
serem sujeitos em esperança”.95 E esta esperança os leva à busca de sua
concretude.
Falsamente realistas seremos se acreditarmos que o ativismo, que não é ação
verdadeira, é o caminho para a revolução.
Críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da práxis. Isto é, se
nossa ação involucra uma crítica reflexão que, organizando cada vez o pensar,
nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Este
precisa alcançar um nível superior, com que os homens cheguem à razão da
realidade. Mas isto exige um pensar constante, que não pode ser negado às
massas populares, se o objetivo visado é a libertação.
Se a liderança revolucionária lhes negar este pensar se encontrará preterida
de pensar também, pelo menos de pensar certo. É que a liderança não pode
pensar sem as massas, nem para elas, mas com elas.
Quem pode pensar sem as massas, sem que se possa dar ao luxo de não
pensar em torno delas, são as elites dominadoras, para que, assim pensando,
melhor as conheçam e, melhor conhecendo-as, melhor as dominem. Daí que o
que poderia parecer um diálogo destas com as massas, uma comunicação com
elas, sejam meros “comunicados”, meros “depósitos” de conteúdos
domesticadores. A sua teoria da ação se contradiria a si mesma se, em lugar da
prescrição, implicasse a comunicação, a dialogicidade.
Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pensarem com as massas?
Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua “razão”, na
afirmação de Hegel, já citada. Pensar com elas seria a superação de sua
contradição. Pensar com elas significaria já não dominar.
Por isto é que a única forma de pensar certo do ponto de vista da dominação
é não deixar que as massas pensem, o que vale dizer: é não pensar com elas.
Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim — jamais
permitiram às massas que pensassem certo.
“Um tal Mr. Giddy”, diz Niebuhr, que foi posteriormente presidente da
sociedade real, fez objeções (refere-se ao projeto de lei que se apresentou ao
Parlamento britânico em 1807, criando escolas subvencionadas) que se podiam
ter apresentado em qualquer outro país: “Por especial que pudesse ser em teoria
o projeto de dar educação às classes trabalhadoras dos pobres, seria prejudicial
para sua moral e sua felicidade; ensinaria a desprezar sua missão na vida, em
lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e outros empregos; em lugar
de ensinar-lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs em
evidência nos condados manufatureiros, habilitá-los-ia a ler folhetos sediciosos,
livros perversos e publicações contra a cristandade; torná-los-ia insolentes para
com seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir
contra eles o braço forte do poder.”96
No fundo, o que o tal Mr. Giddy, citado por Niebuhr, queria, tanto quanto os
de hoje, que não falam tão cínica e abertamente contra a educação popular, é que
as massas não pensassem. Os Mr. Giddy de todas as épocas, enquanto classe
opressora, ao não poderem pensar com as massas oprimidas, não podem deixar
que elas pensem.
Desta forma, dialeticamente, se explica por quê, não pensando com, mas
apenas em torno das massas, as elites opressoras não fenecem.
Não é o mesmo o que ocorre com a liderança revolucionária. Esta, ao não
pensar com as massas, fenece. As massas são a sua matriz constituinte, não a
incidência passiva de seu pensar. Ainda que tenha também de pensar em torno
das massas para compreendê-las melhor, distingue-se este pensar do pensar
anterior. E distingue-se porque, não sendo um pensar para dominar e sim para
libertar, pensando em torno das massas, a liderança se dá ao pensar delas.
Enquanto o outro é um pensar de senhor, este é um pensar de companheiro.
E só assim pode ser. É que, enquanto a dominação, por sua mesma natureza,
exige apenas um polo dominador e um polo dominado, que se contradizem
antagonicamente, a libertação revolucionária, que busca a superação desta
contradição, implica a existência desses polos e, mais, uma liderança que emerge
no processo desta busca. Esta liderança, que emerge, ou se identifica com as
massas populares, como oprimida também, ou não é revolucionária.
Assim é que, não pensar com elas para, imitando os dominadores, pensar
simplesmente em torno delas, não se dando a seu pensar, é uma forma de
desaparecer como liderança revolucionária.
Enquanto, no processo opressor, as elites vivem da “morte em vida” dos
oprimidos e só na relação vertical entre elas e eles se autenticam, no processo
revolucionário só há um caminho para a autenticidade da liderança que emerge:
“morrer” para reviver através dos oprimidos e com eles.
Na verdade, enquanto no primeiro é lícito dizer que alguém oprime alguém,
no segundo, já não se pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se
liberta sozinho, mas os homens se libertam em comunhão. Com isto, não
queremos diminuir o valor e a importância da liderança revolucionária. Pelo
contrário, estamos enfatizando esta importância e este valor. E haverá
importância maior que conviver com os oprimidos, com os esfarrapados do
mundo, com os “condenados da terra”?
Nisto, a liderança revolucionária deve encontrar não só a sua razão de ser,
mas a razão de uma sã alegria. Por sua natureza, ela pode fazer o que a outro, por
sua natureza, se proíbe de fazer, em termos verdadeiros.
Daí que toda aproximação que aos oprimidos façam os opressores, enquanto
classe, os situa inexoravelmente na falsa generosidade a que nos referimos no
primeiro capítulo deste trabalho. Isto não pode fazer a liderança revolucionária:
ser falsamente generosa. Nem tampouco dirigista.
Se as elites opressoras se fecundam, necrofilamente, no esmagamento dos
oprimidos, a liderança revolucionária somente na comunhão com eles pode
fecundar-se.
Esta é a razão pela qual o quefazer opressor não pode ser humanista,
enquanto o revolucionário necessariamente o é. Tanto quanto o desumanismo
dos opressores, o humanismo revolucionário implica a ciência. Naquele, esta se
encontra a serviço da “reificação”; nesta, a serviço da humanização. Mas, se no
uso da ciência e da tecnologia para “reificar”, o sine qua desta ação é fazer dos
oprimidos sua pura incidência, já não é o mesmo o que se impõe no uso da
ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui os oprimidos, ou se tornam
sujeitos, também, do processo, ou continuam “reificados”.
E o mundo não é um laboratório de anatomia nem os homens são cadáveres
que devam ser estudados passivamente.
O humanista científico revolucionário não pode, em nome da revolução, ter
nos oprimidos objetos passivos de sua análise, da qual decorram prescrições que
eles devam seguir.
Isto significa deixar-se cair num dos mitos da ideologia opressora, o da
absolutização da ignorância, que implica a existência de alguém que a decreta a
alguém.
No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como
absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que
sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se tem nos outros o seu
oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra
“verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os
oprimidos, roubados de sua palavra.
Desenvolve-se no que rouba a palavra dos outros uma profunda descrença
neles, considerados como incapazes. Quanto mais diz a palavra sem a palavra
daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder e o gosto de
mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não tem alguém a quem
dirija sua palavra de ordem.
Desta forma, é impossível o diálogo. Isto é próprio das elites opressoras que,
entre seus mitos, têm de vitalizar mais este, com o qual dominam mais.
A liderança revolucionária, pelo contrário, científico-humanista, não pode
absolutizar a ignorância das massas. Não pode crer neste mito. Não tem sequer o
direito de duvidar, por um momento, de que isto é mito.
Não pode admitir, como liderança, que só ela sabe e que só ela pode saber —
o que seria descrer das massas populares. Ainda quando seja legítimo
reconhecer-se em um nível de saber revolucionário, em função de sua mesma
consciência revolucionária, diferente do nível de conhecimento ingênuo das
massas, não pode sobrepor-se a este, com o seu saber.
Por isto mesmo é que não pode sloganizar as massas, mas dialogar com elas
para que o seu conhecimento experiencial em torno da realidade, fecundado pelo
conhecimento crítico da liderança, se vá transformando em razão da realidade.
Assim como seria ingênuo esperar das elites opressoras a denúncia deste mito
da absolutização da ignorância das massas, é uma contradição que a liderança
revolucionária não o faça e, maior contradição ainda, que atue em função dele.
O que tem de fazer a liderança revolucionária é problematizar aos oprimidos,
não só este, mas todos os mitos de que se servem as elites opressoras para
oprimir. Se assim não se comporta, insistindo em imitar os opressores em seus
métodos dominadores, provavelmente duas respostas possam dar as massas
populares. Em determinadas circunstâncias históricas, se deixarem “domesticar”
por um novo conteúdo nelas depositado. Noutras, se assustarem diante de uma
“palavra” que ameaça o opressor “hospedado” nelas.97
Em qualquer dos casos, não se fazem revolucionários. No primeiro, a
revolução é um engano; no segundo, uma impossibilidade.
Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, “que
sendo demorado o processo dialógico98 — o que não é verdade — se deve fazer a
revolução sem comunicação, através dos comunicados” e, depois de feita, então,
se desenvolverá um amplo esforço educativo. Mesmo porque, continuam, não é
possível fazer educação antes da chegada ao poder. Educação libertadora”.
Há alguns pontos fundamentais a analisar nas afirmações dos que assim
pensam.
Acreditam (não todos) na necessidade do diálogo com as massas, mas não
creem na sua viabilidade antes da chegada ao poder. Ao admitirem que não é
possível uma forma de comportamento educativo-crítica antes da chegada ao
poder por parte da liderança, negam o caráter pedagógico da revolução, como
revolução cultural. Por outro lado, confundem o sentido pedagógico da
revolução com a nova educação a ser instalada com a chegada ao poder.
A nossa posição, já afirmada e que se vem afirmando em todas as páginas
deste ensaio, é que seria realmente ingenuidade esperar das elites opressoras uma
educação de caráter libertário. Mas, porque a revolução tem, indubitavelmente,
um caráter pedagógico que não pode ser esquecido, na razão em que é
libertadora ou não é revolução, a chegada ao poder é apenas um momento, por
mais decisivo que seja. Enquanto processo, o “antes” da revolução está na
sociedade opressora e é apenas aparente.
A revolução se gera nela como ser social e, por isto, na medida em que é ação
cultural, não pode deixar de corresponder às potencialidades do ser social em
que se gera.
É que todo ser se desenvolve (ou se transforma) dentro de si mesmo, no jogo
de suas contradições.
Os condicionamentos externos, ainda que necessários, só são eficientes se
coincidem com aquelas potencialidades.99
O novo da revolução nasce da sociedade velha, opressora, que foi superada.
Daí que a chegada ao poder, que continua processo, seja apenas, como antes
dissemos, um momento decisivo deste.
Por isto é que, numa visão dinâmica e não estática da revolução, ela não tem
um antes e um depois absolutos, de que a chegada ao poder seria o ponto de
divisão.
Gerando-se nas condições objetivas, o que busca é a superação da situação
opressora com a instauração de uma sociedade de homens em processo de
permanente libertação.
O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz “revolução cultural”
também, tem de acompanhá-la em todas as suas fases.
É ele ainda um dos eficientes meios de evitar que o poder revolucionário se
institucionalize, estratificando-se em “burocracia” contrarrevolucionária, pois
que a contrarrevolução também é dos revolucionários que se tornam
reacionários.100
E, se não é possível o diálogo com as massas populares antes da chegada ao
poder, porque falta a elas experiência do diálogo, também não lhes é possível
chegar ao poder, porque lhes falta igualmente experiência dele. Precisamente
porque defendemos uma dinâmica permanente no processo revolucionário,
entendemos que é nesta dinâmica, na práxis das massas com a liderança
revolucionária, que elas e seus líderes mais representativos aprenderão tanto o
diálogo quanto o poder. Isto nos parece tão óbvio quanto dizer que um homem
não aprende a nadar numa biblioteca, mas na água.
O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos
uma tática a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como
encontro dos homens para a “pronúncia” do mundo, é uma condição
fundamental para a sua real humanização.
Se “uma ação livre somente o é na medida em que o homem transforma seu
mundo e a si mesmo, se uma condição positiva para a liberdade é o despertar das
possibilidades criadoras humanas, se a luta por uma sociedade livre não o é a
menos que, através dela, seja criado um sempre maior grau de liberdade
individual”,101 se há de reconhecer ao processo revolucionário o seu caráter
eminentemente pedagógico. De uma pedagogia problematizante e não de uma
“pedagogia” dos “depósitos”, “bancária”. Por isto é que o caminho da revolução é
o da abertura às massas populares, não o do fechamento a elas. É o da
convivência com elas, não o da desconfiança delas. E, quanto mais a revolução
exija a sua teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar com as
massas, para que possa estar contra o poder opressor.
A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL
Destas considerações gerais, partamos, agora, para uma análise mais detida a
propósito das teorias da ação antidialógica e dialógica.
A primeira, opressora; a segunda, revolucionário-libertadora.
Conquista
O primeiro caráter que nos parece poder ser surpreendido na ação antidialógica
é a necessidade da conquista.
O antidialógico, dominador, nas suas relações com o seu contrário, o que
pretende é conquistá-lo, cada vez mais, através de mil formas. Das mais duras às
mais sutis. Das mais repressivas às mais adocicadas, como o paternalismo.
Todo ato de conquista implica um sujeito que conquista e um objeto
conquistado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto
conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador.
Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz
um ser ambíguo. Um ser, como dissemos já, “hospedeiro” do outro.
Desde logo, a ação conquistadora, ao “reificar” os homens, é necrófila.
Assim como a ação antidialógica, de que o ato de conquistar é essencial, é um
simultâneo da situação real, concreta, de opressão, a ação dialógica é
indispensável à superação revolucionária da situação concreta de opressão.
Não se é antidialógico ou dialógico no “ar”, mas no mundo. Não se é
antidialógico primeiro e opressor depois, mas simultaneamente. O antidialógico
se impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista,
oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao
oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura.
Instaurada a situação opressora, antidialógica em si, o antidialógico se torna
indispensável para mantê-la.
A conquista crescente do oprimido pelo opressor aparece, pois, como um
traço marcante da ação antidialógica. Por isto é que, sendo a ação libertadora
dialógica em si, não pode ser o diálogo um a posteriori seu, mas um
concomitante dela. Mas, como os homens estarão sempre libertando-se, o
diálogo102 se torna um permanente da ação libertadora.
O desejo de conquista, talvez mais que o desejo, a necessidade da conquista,
acompanha a ação antidialógica em todos os seus momentos.
Através dela e para todos os fins implícitos na opressão, os opressores se
esforçam por matar nos homens a sua condição de “ad-miradores” do mundo.
Como não podem consegui-lo, em termos totais, é preciso, então, mitificar o
mundo.
Daí que os opressores desenvolvam uma série de recursos através dos quais
propõem à “ad-miração” das massas conquistadas e oprimidas um falso mundo.
Um mundo de engodos que, alienando-as mais ainda, as mantenha passivas em
face dele. Daí que, na ação da conquista, não seja possível apresentar o mundo
como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que
os homens se devem ajustar.
A falsa “ad-miração” não pode conduzir à verdadeira práxis, pois que é a pura
espectação das massas, que, pela conquista, os opressores buscam obter por
todos os meios. Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas,
gregarizadas. Por tudo isto, massas alienadas.
É preciso, contudo, chegar até elas para, pela conquista, mantê-las alienadas.
Este chegar até elas, na ação da conquista, não pode transformar-se num ficar
com elas. Esta “aproximação”, que não pode ser feita pela comunicação, se faz
pelos “comunicados”, pelos “depósitos” dos mitos indispensáveis à manutenção
do status quo.
O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade.
De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão,
podem então deixá-lo e procurar outro emprego. O mito de que esta “ordem”
respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O
mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser
empresários — mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas,
gritando: “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma
grande fábrica. O mito do direito de todos à educação, quando o número de
brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o dos que nelas conseguem
permanecer é chocantemente irrisório. O mito da igualdade de classe, quando o
“sabe com quem está falando?” é ainda uma pergunta dos nossos dias. O mito do
heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a
“civilização ocidental e cristã”, que elas defendem da “barbárie materialista”. O
mito de sua caridade, de sua generosidade, quando o que fazem, enquanto classe,
é assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no plano das
nações, mereceu segura advertência de João XXIII.103 O mito de que as elites
dominadoras, “no reconhecimento de seus deveres”, são as promotoras do povo,
devendo este, num gesto de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar-se com
ela. O mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da
propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana,
desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da
operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O
mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade daqueles.104
Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja
introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são
levados a elas pela propaganda bem-organizada, pelos slogans, cujos veículos são
sempre os chamados “meios de comunicação com as massas”.105 Como se o
depósito deste conteúdo alienante nelas fosse realmente comunicação.
Em verdade, finalmente, não há realidade opressora que não seja
necessariamente antidialógica, como não há antidialogicidade em que o polo dos
opressores não se empenhe, incansavelmente, na permanente conquista dos
oprimidos.
Já as elites dominadoras da velha Roma falavam na necessidade de dar “pão e
circo” às massas para conquistá-las, amaciando-as, com a intenção de assegurar a
sua paz. As elites dominadoras de hoje, como as de todos os tempos, continuam
precisando da conquista como uma espécie de “pecado original”, com “pão e
circo” ou sem eles. Os conteúdos e os métodos da conquista variam
historicamente, o que não varia, enquanto houver elite dominadora, é esta ânsia
necrófila de oprimir.
Dividir para manter a opressão
Esta é outra dimensão fundamental da teoria da ação opressora, tão velha quanto
a opressão mesma.
Na medida em que as minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as
oprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à
continuidade de seu poder.
Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares,
que significaria, indiscutivelmente, uma séria ameaça à sua hegemonia.
Daí que toda ação que possa, mesmo incipientemente, proporcionar às
classes oprimidas o despertar para que se unam é imediatamente freada pelos
opressores através de métodos, inclusive, fisicamente violentos.
Conceitos, como os de união, de organização, de luta, são timbrados, sem
demora, como perigosos. E realmente o são, mas para os opressores. É que a
praticização destes conceitos é indispensável à ação libertadora.
O que interessa ao poder opressor é enfraquecer os oprimidos mais do que já
estão, ilhando-os, criando e aprofundando cisões entre eles, através de uma gama
variada de métodos e processos.
Desde os métodos repressivos da burocratização estatal, à sua disposição, até
as formas de ação cultural por meio das quais manejam as massas populares,
dando-lhes a impressão de que as ajudam.
Uma das características destas formas de ação, quase nunca percebidas por
profissionais sérios, mas ingênuos, que se deixam envolver, é a ênfase na visão
localista dos problemas e não na visão deles como dimensão de uma totalidade.
Quanto mais se pulverize a totalidade de uma área em “comunidades locais”,
nos trabalhos de “desenvolvimento de comunidade”, sem que estas comunidades
sejam estudadas como totalidades em si, que são parcialidades de outra
totalidade (área, região etc.) que, por sua vez, é parcialidade de uma totalidade
maior (o país, como parcialidade da totalidade continental), tanto mais se
intensifica a alienação. E, quanto mais alienados, mais fácil dividi-los e mantê-los
divididos.
Estas formas focalistas de ação, intensificando o modo focalista de existência
das massas oprimidas, sobretudo rurais, dificultam sua percepção crítica da
realidade e as mantêm ilhadas da problemática dos homens oprimidos de outras
áreas em relação dialética com a sua.106
O mesmo se verifica nos chamados “treinamentos de líderes” que, embora
quando realizados sem esta intenção por muitos dos que os praticam, servem, no
fundo, à alienação.
O básico pressuposto desta ação já é, em si, ingênuo. Fundamenta-se na
pretensão de “promover” a comunidade por meio da capacitação dos líderes,
como se fossem as partes que promovem o todo e não este que, promovido,
promove as partes.
Na verdade, os que são considerados em nível de liderança nas comunidades,
para que assim sejam tomados, necessariamente, refletem e expressam as
aspirações dos indivíduos da sua comunidade.
Estão em correspondência com a forma de ser e de pensar a realidade de seus
companheiros, mesmo que revelando habilidades especiais que lhes dão o status
de líderes.
No momento em que, depois de retirados da comunidade, a ela voltam, com
um instrumental que antes não tinham, ou usam este para melhor conduzir as
consciências dominadas e imersas, ou se tornam estranhos à comunidade,
ameaçando, assim, sua liderança.
Sua tendência provavelmente será, para não perderem a liderança, continuar,
agora, com mais eficiência, no manejo da comunidade.
Isto não ocorre quando a ação cultural, como processo totalizado e
totalizador, abarca a comunidade e não seus líderes apenas. Quando se faz
através dos indivíduos como sujeitos do processo.
Neste tipo de ação se verifica o contrário. A liderança anterior ou cresce
também ao nível do crescimento do todo ou é substituída pelos novos líderes que
emergem, à altura da nova percepção social que se constitui.
Daí, também, que aos opressores não interesse esta forma de ação, mas a
primeira, enquanto ela, mantendo a alienação, obstaculiza a emersão das
consciências e a sua inserção crítica na realidade dos oprimidos como classe.
Este é outro conceito que aos opressores faz mal, ainda que, a si mesmos, se
considerem como classe, não opressora, obviamente, mas “produtora”.
Não podendo negar, mesmo que o tentem, a existência das classes sociais, em
relação dialética umas com as outras, em seus conflitos, falam na necessidade de
compreensão, de harmonia, entre os que compram e os que são obrigados a
vender o seu trabalho.107
Harmonia, no fundo, impossível pelo antagonismo indisfarçável que há entre
uma classe e outra.108
Pregam a harmonia de classes como se estas fossem aglomerados fortuitos de
indivíduos que olhassem, curiosos, uma vitrina numa tarde de domingo.
A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opressores entre si. Estes,
mesmo divergentes e, até em certas ocasiões, em luta por interesses de grupos, se
unificam, imediatamente, ante uma ameaça à classe.
Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possível entre seus
membros na busca de sua libertação. Só em casos excepcionais, não só é possível,
mas até necessária, a harmonia de ambos para, passada a emergência que os
uniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais desapareceu na
emergência desta união.
A necessidade de dividir para facilitar a manutenção do estado opressor se
manifesta em todas as ações da classe dominadora. Sua interferência nos
sindicatos, favorecendo certos “representantes” da classe dominada que, no
fundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a “promoção” de
indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam significar ameaça e
que, “promovidos”, se tornam “amaciados”; a distribuição de benesses para uns e
de dureza para outros, tudo são formas de dividir para manter a “ordem” que
lhes interessa.
Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, sobre um dos pontos
débeis dos oprimidos: a sua insegurança vital que, por sua vez, já é fruto da
realidade opressora em que se constituem.
Inseguros na sua dualidade de seres “hospedeiros” do opressor, de um lado,
rechaçando-o; de outro, atraídos por ele, em certo momento da confrontação
entre ambos, é fácil àquele poder obter resultados positivos de sua ação divisória.
Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o quanto lhes custa
aceitarem o “convite” que recebem para evitar que se unam entre si. A perda do
emprego e o seu nome numa “lista negra”, que significa portas que se fecham a
eles para novos empregos, são o mínimo que lhes pode suceder.
A sua insegurança vital, por isto mesmo, se encontra diretamente ligada à
escravização de sua pessoa, como sublinhou o bispo Split, anteriormente citado.
E que, somente na medida em que os homens criam o seu mundo, que é
mundo humano, e o criam com seu trabalho transformador, eles se realizam. A
realização dos homens, enquanto homens, está, pois, na realização deste mundo.
Desta maneira, se seu estar no mundo do trabalho é um estar em dependência
total, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhe
pertence, não podem realizar-se. O trabalho não livre deixa de ser um quefazer
realizador de sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua “reificação”.
Toda união dos oprimidos entre si, que já sendo ação, aponta outras ações,
implica, cedo ou tarde, que percebendo eles o seu estado de despersonalização,
descubram que, divididos, serão sempre presas fáceis do dirigismo e da
dominação.
Unificados e organizados,109 porém, farão de sua debilidade força
transformadora, com que poderão recriar o mundo, tornando-o mais humano.
O mundo mais humano de suas justas aspirações, contudo, é a contradição
antagônica do “mundo humano” dos opressores — mundo que possuem com
direito exclusivo — e em que pretendem a impossível harmonia entre eles, que
“coisificam”, e os oprimidos, que são “coisificados”.
Como antagônicos, o que serve a uns necessariamente desserve aos outros.
Dividir para manter o status quo se impõe, pois, como fundamental objetivo
da teoria da ação dominadora, antidialógica.
Como auxiliar desta ação divisória, encontramos nela uma certa conotação
messiânica, através da qual os dominadores pretendem aparecer como salvadores
dos homens a quem desumanizam.
No fundo, porém, o messianismo contido na sua ação não pode esconder o
seu intento. O que eles querem é salvar-se a si mesmos. E salvar sua riqueza, seu
poder, seu estilo de vida, com que esmagam aos demais.
O seu equívoco está em que ninguém se salva sozinho nem como indivíduo,
nem como classe opressora, mas com os oprimidos, pois estar contra eles é o
próprio da opressão.
Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no que
chamamos, no primeiro capítulo, de falsa generosidade do opressor, uma das
dimensões de seu sentimento de culpa. Com esta generosidade falsa, além de
estar pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estará
querendo “comprar” a sua paz. Acontece que paz não se compra, se vive no ato
realmente solidário, amoroso, e este não pode ser assumido, encarnado, na
opressão.
Por isto mesmo é que este messianismo existente na ação antidialógica vai
reforçar a primeira característica desta ação — o sentido da conquista.
Na medida em que a divisão das massas oprimidas é necessária à manutenção
do status quo, portanto, à preservação do poder dos dominadores, urge que os
oprimidos não percebam claramente este jogo.
Neste sentido, mais uma vez é imperiosa a conquista para que os oprimidos
realmente se convençam de que estão sendo defendidos. Defendidos contra a
ação demoníaca de “marginais desordeiros”, “inimigos de Deus”, pois que assim
são chamados os homens que viveram e vivem, arriscadamente, a busca valente
da libertação dos homens.
Desta maneira, para dividir, os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e
aos biófilos, de necrófilos. A história, contudo, se encarrega sempre de refazer
estas “nomeações”.
Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chamando o Tiradentes de
inconfidente e ao movimento libertador que encarnou, de Inconfidência, o herói
nacional não é o que o chamou de bandido e o mandou enforcar e esquartejar, e
espalhar pedaços de seu corpo sangrando pelas vilas assustadas, como exemplo.
O herói é ele. A história rasgou o “título” que lhe deram e reconheceu o seu
gesto.
Os heróis são exatamente os que ontem buscavam a união para a libertação e
não os que, com o seu poder, pretendiam dividir para reinar.
Manipulação
Outra característica da teoria da ação antidialógica é a manipulação das massas
oprimidas. Como a anterior, a manipulação é instrumento da conquista, em
torno de que todas as dimensões da teoria da ação antidialógica vão girando.
Através da manipulação, as elites dominadoras vão tentando conformar as
massas populares a seus objetivos. E, quanto mais imaturas, politicamente,
estejam elas (rurais ou urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipular
pelas elites dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder.
A manipulação se faz por toda a série de mitos a que nos referimos. Entre
eles, mais este: o modelo que a burguesia se faz de si mesma às massas com
possibilidade de sua ascensão. Para isto, porém, é preciso que as massas aceitem
sua palavra.
Muitas vezes esta manipulação, dentro de certas condições históricas
especiais, se verifica através de pactos entre as classes dominantes e as massas
dominadas. Pactos que poderiam dar a impressão, numa apreciação ingênua, de
um diálogo entre elas.
Na verdade, estes pactos não são diálogo porque, na profundidade de seu
objetivo, está inscrito o interesse inequívoco da elite dominadora. Os pactos, em
última análise, são meios de que se servem os dominadores para realizar suas
finalidades.110
O apoio das massas populares à chamada “burguesia nacional” para a defesa
do duvidoso capital nacional foi um destes pactos, de que sempre resulta, cedo
ou tarde, o esmagamento das massas.
E os pactos somente se dão quando estas, mesmo ingênuas, emergem no
processo histórico e, com sua emersão, ameaçam as elites dominantes.
Basta a sua presença no processo, não mais como puras espectadoras, mas
com os primeiros sinais de sua agressividade, para que as elites dominadoras,
assustadas com essa presença incômoda, dupliquem as táticas de manejo.
A manipulação se impõe nestas fases como instrumento fundamental para a
manutenção da dominação.
Antes da emersão das massas, não há propriamente manipulação, mas o
esmagamento total dos dominados. Na sua imersão quase absoluta, não se faz
necessária a manipulação.
Esta, na teoria antidialógica da ação, é uma resposta que o opressor tem de
dar às novas condições concretas do processo histórico.
A manipulação aparece como uma necessidade imperiosa das elites
dominadoras, com o fim de, através dela, conseguir um tipo inautêntico de
“organização”, com que evite o seu contrário, que é a verdadeira organização das
massas populares emersas e emergindo.111
Estas, inquietas ao emergir, têm duas possibilidades: ou são manipuladas
pelas elites para manter a dominação ou se organizam verdadeiramente para sua
libertação. É óbvio, então, que a verdadeira organização não possa ser estimulada
pelos dominadores. Isto é tarefa da liderança revolucionária.
Acontece, porém, que grandes frações destas massas populares, já agora
constituindo um proletariado urbano, sobretudo nos centros mais
industrializados do país, ainda que revelando uma ou outra inquietação
ameaçadora, carentes, contudo, de uma consciência revolucionária, se veem a si
mesmas como privilegiadas.
A manipulação, com toda a sua série de engodos e promessas, encontra aí,
quase sempre, um bom terreno para vingar.
O antídoto a esta manipulação está na organização criticamente consciente,
cujo ponto de partida, por isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo
revolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Na
problematização da realidade nacional e da própria manipulação.
Bem razão tem Weffort112 quando diz: “Toda política de esquerda se apoia
nas massas populares e depende de sua consciência. Se vier a confundi-la,
perderá as raízes, pairará no ar à espera da queda inevitável, ainda quando possa
ter, como no caso brasileiro, a ilusão de fazer a revolução pelo simples giro à
volta do poder” e, esquecendo-se dos seus encontros com as massas para o
esforço de organização, perdem-se num “diálogo” impossível com as elites
dominadoras. Daí que também terminem manipuladas por estas elites de que
resulta cair, não raramente, num jogo puramente de cúpula, que chamam de
realismo.
A manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que
serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem.
Se as massas associam à sua emersão, à sua presença no processo, sobre sua
realidade, então sua ameaça se concretiza na revolução.
Chame-se a este pensar certo de “consciência revolucionária” ou de
“consciência de classe”, é indispensável à revolução, que não se faz sem ele.
As elites dominadoras sabem tão bem disto que, em certos níveis seus, até
instintivamente, usam todos os meios, mesmo a violência física, para proibir que
as massas pensem.
Têm uma profunda intuição da força criticizante do diálogo. Enquanto que,
para alguns representantes da liderança revolucionária, o diálogo com as massas
lhes dá a impressão de ser um quefazer “burguês e reacionário”, para os
burgueses, o diálogo entre as massas e a liderança revolucionária é uma real
ameaça, que há de ser evitada.
Insistindo as elites dominadoras na manipulação, vão inoculando nos
indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal.
Esta manipulação se faz ora diretamente por estas elites, ora indiretamente,
através dos líderes populistas. Estes líderes, como salienta Weffort, medeiam as
relações entre as elites oligárquicas e as massas populares.
Daí que o populismo se constitua, como estilo de ação política, exatamente
quando se instala o processo de emersão das massas em que elas passam a
reivindicar sua participação, mesmo que ingenuamente.
O líder populista, que emerge neste processo, é também um ser ambíguo.
Precisamente porque fica entre as massas e as oligarquias dominantes, ele é como
se fosse um ser anfíbio. Vive na “terra” e na “água”. Seu estar entre oligarquias
dominadoras e massas lhe deixa marcas das duas.
Enquanto populista, porém, na medida em que simplesmente manipula em
lugar de lutar pela verdadeira organização popular, este tipo de líder em pouco
ou quase nada serve à revolução.
Somente quando o líder populista supera o seu caráter ambíguo e a natureza
dual de sua ação e opta decididamente pelas massas, deixando assim de ser
populista, renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolucionário de
organização. Neste momento, em lugar de mediador entre massas e elites, é
contradição destas, o que leva as elites a arregimentar-se para freá-lo tão
rapidamente quanto possam.
É interessante observar a dramaticidade com que Vargas falou às massas
obreiras, num primeiro de maio de sua última etapa de governo, conclamando-as
a unir-se.
“Quero dizer-vos, todavia (afirmou Vargas no célebre discurso), que a obra
gigantesca de renovação, que o meu governo está começando a empreender, não
pode ser levada a bom termo sem o apoio dos trabalhadores e a sua cooperação
cotidiana e decidida.” Após referir-se aos primeiros noventa dias de seu governo,
ao que chamava “de um balanço das dificuldades e dos obstáculos que, daqui e
dali, se estão levando contra a ação governamental”, dizia em linguagem
diretíssima ao povo o quanto lhe calavam “na alma o desamparo, a miséria, a
carestia de vida, os salários baixos… os desesperos dos desvalidos da fortuna e as
reivindicações do povo que vive na esperança de melhores dias”.
Em seguida, seu apelo se vai fazendo mais dramático e objetivo: “Venho dizer
que, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementos
concretos de ação imediata para a defesa da economia do povo. É preciso, pois,
que o povo se organize, não só para defender seus próprios interesses, mas
também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à realização dos
seus propósitos.” E prossegue: “Preciso de vossa união, preciso de que vos
organizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e
coeso ao lado do governo para que este possa dispor de toda a força de que
necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso de vossa união para
que possa lutar contra os sabotadores, para que não fique prisioneiro dos
interesses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses do
povo”. E, com a mesma ênfase: “Chegou, por isto mesmo, a hora do governo
apelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos,
como forças livres e organizadas. Na hora presente nenhum governo poderá
subsistir ou dispor de força suficiente para as suas realizações se não contar com o
apoio das organizações operárias.”113
Ao apelar veementemente às massas para que se organizassem, para que se
unissem na reivindicação de seus direitos e ao dizer-lhes, com a autoridade de
chefe de Estado, dos obstáculos, dos freios, das dificuldades inúmeras para
realizar um governo com elas, foi indo, daí em diante, o seu governo, aos trancos
e barrancos até o desfecho trágico de agosto de 1954.
Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de governo, uma
inclinação tão ostensiva à organização das massas populares, consequentemente
ligada a uma série de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses
nacionais, possivelmente as elites reacionárias não tivessem chegado ao extremo
a que chegaram.
Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, ainda que
discretamente, das massas populares, não mais como exclusivo mediador das
oligarquias, se estas dispõem de força para freá-lo.
Enquanto a ação do líder se mantém no domínio das forças paternalistas e
sua extensão assistencialista, pode haver divergências acidentais entre ele e
grupos oligárquicos feridos em seus interesses, dificilmente, porém, diferenças
profundas.
É que estas formas assistencialistas, como instrumento da manipulação,
servem à conquista. Funcionam como anestésico. Distraem as massas populares
quanto às causas verdadeiras de seus problemas, bem como quanto à solução
concreta destes problemas. Fracionam as massas populares em grupos de
indivíduos com a esperança de receber mais.
Há, contudo, em toda esta assistencialização manipuladora, um momento de
positividade.
É que os grupos assistidos vão sempre querendo indefinidamente mais e os
indivíduos não assistidos, vendo o exemplo dos que o são, passam a inquietar-se
por serem assistidos também.
E, como não podem as elites dominadoras assistencializar a todos, terminam
por aumentar a inquietação das massas.
A liderança revolucionária deveria aproveitar a contradição da manipulação,
problematizando-a às massas populares, com o objetivo de sua organização.
Invasão cultural
Finalmente, surpreendemos na teoria da ação antidialógica uma outra
característica fundamental — a invasão cultural que, como as duas anteriores,
serve à conquista.
Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão cultural
é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos,
impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao
inibirem sua expansão.
Neste sentido, a invasão cultural, indiscutivelmente alienante, realizada
maciamente ou não, é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, que
perde sua originalidade ou se vê ameaçado de perdê-la.
Por isto é que, na invasão cultural, como de resto em todas as modalidades da
ação antidialógica, os invasores são os autores e os atores do processo, seu
sujeito; os invadidos, seus objetos. Os invasores modelam; os invadidos são
modelados. Os invasores optam; os invadidos seguem sua opção. Pelo menos é
esta a expectativa daqueles. Os invasores atuam; os invadidos têm a ilusão de que
atuam, na atuação dos invasores.
A invasão cultural tem uma dupla face. De um lado, é já dominação; de outro,
é tática de dominação.
Na verdade, toda dominação implica uma invasão, não apenas física, visível,
mas às vezes camuflada, em que o invasor se apresenta como se fosse o amigo
que ajuda. No fundo, invasão é uma forma de dominar econômica e
culturalmente o invadido.
Invasão realizada por uma sociedade matriz, metropolitana, numa sociedade
dependente, ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra,
numa mesma sociedade.
Como manifestação da conquista, a invasão cultural conduz à
inautenticidade do ser dos invadidos. O seu programa responde ao quadro
valorativo de seus atores, a seus padrões, a suas finalidades.
Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica e
ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da realidade e dos
próprios conteúdos programáticos dos invadidos.
Aos invasores, na sua ânsia de dominar, de amoldar os invadidos a seus
padrões, a seus modos de vida, só interessa saber como pensam os invadidos seu
próprio mundo para dominá-los mais.114
É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam a sua realidade
com a ótica dos invasores e não com a sua. Quanto mais mimetizados fiquem os
invadidos, melhor para a estabilidade dos invasores.
Uma condição básica ao êxito da invasão cultural é o conhecimento por parte
dos invadidos de sua inferioridade intrínseca.
Como não há nada que não tenha seu contrário, na medida em que os
invadidos vão reconhecendo-se “inferiores” necessariamente irão reconhecendo
a “superioridade” dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dos
invadidos. Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser
dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles,
vestir à sua maneira, falar a seu modo.
O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se constitui nas relações
socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura
invadida.
É esta dualidade, já várias vezes referida, que explica os invadidos e
dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu
quase “aderido” ao tu opressor.
É preciso que o eu oprimido rompa esta quase “aderência” ao tu opressor,
dele “afastando-se”, para objetivá-lo, somente quando se reconhece criticamente
em contradição com aquele.
Esta mudança qualitativa da percepção do mundo, que não se realiza fora da
práxis, não pode jamais ser estimulada pelos opressores, como um objetivo de
sua teoria da ação.
Pelo contrário, a manutenção do status quo é o que lhes interessa, na medida
em que a mudança na percepção do mundo, que implica, neste caso, a inserção
crítica na realidade, os ameaça. Daí a invasão cultural como característica da ação
antidialógica.
Há, contudo, um aspecto que nos parece importante salientar na análise que
estamos fazendo da ação antidialógica. É que esta, enquanto modalidade de ação
cultural de caráter dominador, nem sempre é exercida deliberadamente. Em
verdade, muitas vezes os seus agentes são igualmente homens dominados,
“sobredeterminados” pela própria cultura da opressão.115
Com efeito, na medida em que uma estrutura social se denota como estrutura
rígida, de feição dominadora, as instituições formadoras que nela se constituem
estarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos e
orientando sua ação no estilo próprio da estrutura.
Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no
ar, mas no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições
objetivas estruturais. Funcionam, em grande medida, nas estruturas
dominadoras, como agências formadoras de futuros “invasores”.
As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições
objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições
autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram os lares, que incrementam o clima
da opressão.116
Quanto mais se desenvolvem estas relações de feição autoritária entre pais e
filhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridade
paterna.
Discutindo, com a clareza que o caracteriza, o problema da necrofilia e da
biofilia, Fromm analisa as condições objetivas que geram uma e outra, quer nos
lares, nas relações pais-filhos, no clima desamoroso e opressor, como amoroso e
livre, quer no contexto sociocultural.
Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, frustradas na sua
potência, como diria Fromm, se não conseguem, na juventude, endereçar-se no
sentido da rebelião autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seu
querer, alienados à autoridade e aos mitos de que lança mão esta autoridade para
formá-las, ou poderão vir a assumir formas de ação destrutiva.
Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela, os educandos
cedo descobrem que, como no lar, para conquistar alguma satisfação, têm de
adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não
pensar.
Introjetando a autoridade paterna através de um tipo rígido de relações, que a
escola enfatiza, sua tendência, quando se fazem profissionais, pelo próprio medo
da liberdade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos em que se
deformaram.
Isto, associado à sua posição classista, talvez explique a adesão de grande
número de profissionais a uma ação antidialógica.117
Qualquer que seja a especialidade que tenham e que os ponha em relação
com o povo, sua convicção quase inabalável é a de que lhes cabe “transferir”,
“levar”, ou “entregar” ao povo os seus conhecimentos, as suas técnicas.
Veem-se, a si mesmos, como os promotores do povo. Os programas da sua
ação, como qualquer bom teórico da ação opressora indicaria, involucram as
suas finalidades, as suas convicções, os seus anseios.
Não há que ouvir o povo para nada, pois que, “incapaz e inculto, precisa ser
educado por eles para sair da indolência que provoca o subdesenvolvimento”.
Para eles, a “incultura do povo é tal ‘que lhes’ parece um absurdo falar da
necessidade de respeitar a ‘Visão do mundo’ que ele esteja tendo. Visão do
mundo têm apenas os profissionais”…
Da mesma forma, absurda lhes parece a afirmação de que é indispensável
ouvir o povo para a organização do conteúdo programático da ação educativa. É
que, para eles, “a ignorância absoluta” do povo não lhe permite outra coisa senão
receber os seus ensinamentos.
Quando, porém, os invadidos, em certo momento de sua experiência
existencial, começam, desta ou daquela forma, a recusar a invasão a que, em
outro momento, se poderiam haver adaptado, para justificar o seu fracasso,
falam na “inferioridade” dos invadidos, porque “preguiçosos”, porque “doentes”,
porque “mal-agradecidos” e às vezes, também, porque “mestiços”.
Os bem-intencionados, isto é, aqueles que usam a “invasão” não como
ideologia, mas pelas deformações a que nos referimos páginas atrás, terminam
por descobrir, em suas experiências, que certos fracassos de sua ação não se
devem a uma inferioridade natural dos homens simples do povo, mas à violência
de seu ato invasor.
Este, de modo geral, é um momento difícil por que passam alguns dos que
fazem tal descoberta.
Sentem a necessidade de renunciar à ação invasora, mas os padrões
dominadores estão de tal forma metidos “dentro” deles, que esta renúncia é uma
espécie de morrer um pouco.
Renunciar ao ato invasor significa, de certa maneira, superar a dualidade em
que se encontram — dominados por um lado; dominadores, por outro.
Significa renunciar a todos os mitos de que se nutre a ação invasora e
existenciar uma ação dialógica. Significa, por isto mesmo, deixar de estar sobre
ou “dentro”, como “estrangeiros”, para estar com, como companheiros.
O “medo da liberdade”, então, neles se instala. Durante todo esse processo
traumático, sua tendência é, naturalmente, racionalizar o medo, com uma série
de evasivas.
Este “medo da liberdade”, em técnicos que não chegaram sequer a fazer a
descoberta de sua ação invasora, é maior ainda, quando se lhes fala do sentido
desumanizante desta ação.
Não são raras as vezes, nos cursos de capacitação, sobretudo no momento da
“descodificação” de situações concretas feita pelos participantes, em que,
irritados, perguntam ao coordenador da discussão: “Aonde, afinal, o senhor quer
nos levar?” Na verdade, o coordenador não está querendo conduzi-los. Ocorre
simplesmente que, ao problematizar-lhes uma situação concreta, eles começam a
perceber que, se a análise desta situação se vai aprofundando, terão de desnudarse de seus mitos, ou afirmá-los.
Desnudar-se de seus mitos e renunciar a eles, no momento, são uma
“violência” contra si mesmos, praticada por eles próprios. Afirmá-los é revelarse. A única saída, como mecanismo de defesa também, é transferir ao
coordenador o que é a prática normal: conduzir, conquistar, invadir,118 como
manifestação de sua antidialogicidade.
Esta mesma fuga acontece, ainda que em escala menor, entre homens do
povo, na proporção em que a situação concreta de opressão os esmaga e sua
“assistencialização” os domestica.
Uma das educadoras do Full Circle, de Nova York, instituição que realiza um
trabalho educativo de real valor, nos relatou o seguinte caso: ao problematizar
uma situação codificada a um dos grupos das áreas pobres de Nova York que
mostrava, na esquina de uma rua — a rua mesma em que se fazia a reunião —,
uma grande quantidade de lixo, disse imediatamente um dos participantes: “Vejo
uma rua da África ou da América Latina”.
“E por que não de Nova York?”, perguntou a educadora.
“Porque, afirmou, somos os Estados Unidos e aqui não pode haver isto.”
Indubitavelmente, este homem e alguns de seus companheiros, que com ele
concordavam, com uma indiscutível “manha da consciência”, fugiam a uma
realidade que os ofendia e cujo reconhecimento até os ameaçava.
Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucesso
pessoal, reconhecer-se numa situação objetiva desfavorável para uma consciência
alienada é frear a própria possibilidade do êxito.
Quer neste, quer no caso dos profissionais, se encontra patente a força
“sobredeterminante” da cultura em que se desenvolvem os mitos que os homens
introjetam.
Em ambos os casos, é a cultura da classe dominante obstaculizando a
afirmação dos homens como seres da decisão.
No fundo, nem os profissionais a que nos referimos, nem os participantes da
discussão citada num bairro pobre de Nova York estão falando e atuando por si
mesmos, como atores do processo histórico.
Nem uns nem outros são teóricos ou ideólogos da dominação. Pelo contrário,
são efeitos que se fazem também causa da dominação.
Este é um dos sérios problemas que a revolução tem de enfrentar na etapa em
que chega ao poder.
Etapa que, exigindo de sua liderança um máximo de sabedoria política, de
decisão e de coragem, exige, por tudo isto, o equilíbrio suficiente para não se
deixar cair em posições irracionalmente sectárias.
É que, indiscutivelmente, os profissionais, de formação universitária ou não,
de quaisquer especialidades, são homens que estiveram sob a
“sobredeterminação” de uma cultura de dominação, que os constituiu como
seres duais. Poderiam, inclusive, ter vindo das classes populares, e a deformação,
no fundo, seria a mesma, se não pior. Estes profissionais, contudo, são
necessários à reorganização da nova sociedade. E, como grande número entre
eles, mesmo tocados do “medo da liberdade” e relutando em aderir a uma ação
libertadora, em verdade são mais equivocados que outra coisa, nos parece que
não só poderiam, mas deveriam ser reeducados pela revolução.
Isto exige da revolução no poder que, prolongando o que antes foi ação
cultural dialógica, instaure a “revolução cultural”. Desta maneira, o poder
revolucionário, conscientizado e conscientizador, não apenas é um poder, mas
um novo poder; um poder que não é só freio necessário aos que pretendiam
continuar negando os homens, mas também um convite valente a todos os que
queiram participar da reconstrução da sociedade.
Neste sentido é que a “revolução cultural” é a continuação necessária da ação
cultural dialógica que deve ser realizada no processo anterior à chegada ao poder.
A “revolução cultural” toma a sociedade em reconstrução em sua totalidade,
nos múltiplos quefazeres dos homens, como campo de sua ação formadora.
A reconstrução da sociedade, que não se pode fazer mecanicistamente, tem,
na cultura que culturalmente se refaz, por meio desta revolução, o seu
instrumento fundamental.
Como a entendemos, a “revolução cultural” é o máximo de esforço de
conscientização possível que deve desenvolver o poder revolucionário, com o
qual atinja a todos, não importa qual seja a sua tarefa a cumprir.
Por isto mesmo é que este esforço não se pode contentar com a formação
tecnicista dos técnicos, nem cientificista dos cientistas, necessários à nova
sociedade. Esta não pode distinguir-se, qualitativamente, da outra (o que não se
faz repentinamente, como pensam os mecanicistas em sua ingenuidade), de
forma parcial.
Não é possível à sociedade revolucionária atribuir à tecnologia as mesmas
finalidades que lhe eram atribuídas pela sociedade anterior. Consequentemente,
nelas varia, igualmente, a formação dos homens.
Neste sentido, a formação técnico-científica não é antagônica à formação
humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade
revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua
humanização.
Desde esse ponto de vista, a formação dos homens, para qualquer quefazer,
uma vez que nenhum deles se pode dar a não ser no tempo e no espaço, está a
exigir a compreensão: a) da cultura como superestrutura e, não obstante, capaz
de manter na infraestrutura, revolucionariamente transformando-se,
“Sobrevivências” do passado;119 e b) do quefazer mesmo, como instrumento da
transformação da cultura.
Na medida em que a conscientização, na e pela “revolução cultural”, se vai
aprofundando na práxis criadora da sociedade nova, os homens vão desvelando
as razões do permanecer das “sobrevivências” míticas, no fundo, realidades,
forjadas na velha sociedade.
Mais rapidamente, então, poderão libertar-se destes espectros que são sempre
um sério problema a toda revolução, enquanto obstaculizam a edificação da nova
sociedade.
Através destas “sobrevivências” a sociedade opressora continua “invadindo”
e, agora, “invadindo” a própria sociedade revolucionária.
Esta é, porém, uma terrível “invasão”, porque não é feita diretamente pela
velha elite dominadora que se reorganizasse para tal, mas pelos homens que,
inclusive, tomaram parte na revolução.
“Hospedeiros” do opressor, resistem como se fossem este a medidas básicas
que devem ser tomadas pelo poder revolucionário.
Como seres duais, porém, aceitam também, ainda em função das
“sobrevivências”, o poder que se burocratiza e violentamente os reprime.
Este poder burocrático, violentamente repressivo, por sua vez, pode ser
explicado através do que Althusser120 chama de “reativação de elementos
antigos”, toda vez que circunstâncias especiais o favoreçam, na nova sociedade.
Por tudo isto é que defendemos o processo revolucionário como ação cultural
dialógica que se prolongue em “revolução cultural” com a chegada ao poder. E,
em ambas, o esforço sério e profundo da conscientização, com que os homens,
através de uma práxis verdadeira, superam o estado de objetos, como dominados,
e assumem o de sujeito da História.
Na revolução cultural, finalmente, a revolução, desenvolvendo a prática do
diálogo permanente entre liderança e povo, consolida a participação deste no
poder.
Desta forma, na medida em que ambos — liderança e povo — se vão
criticizando, vai a revolução defendendo-se mais facilmente dos riscos dos
burocratismos que implicam novas formas de opressão e de “invasão”, que são
sempre as mesmas. Seja o invasor um agrônomo extensionista — numa
sociedade burguesa ou numa sociedade revolucionária —, um investigador
social, um economista, um sanitarista, um religioso, um educador popular, um
assistente social ou um revolucionário, que assim se contradiz.
A invasão cultural, que serve à conquista e à manutenção da opressão,
implica sempre a visão focal da realidade, a percepção desta como estática, a
superposição de uma visão do mundo na outra. A “superioridade” do invasor. A
“inferioridade” do invadido. A imposição de critérios. A posse do invadido. O
medo de perdê-lo.
A invasão cultural implica ainda, por tudo isto, que o ponto de decisão da
ação dos invadidos está fora deles e nos dominadores invasores. E, enquanto a
decisão não está em quem deve decidir, mas fora dele, este apenas tem a ilusão de
que decide.
Esta é a razão por que não pode haver desenvolvimento socioeconômico em
nenhuma sociedade dual, reflexa, invadida.
É que, para haver desenvolvimento, é necessário: 1) que haja um movimento
de busca, de criatividade, que tenha, no ser mesmo que o faz, o seu ponto de
decisão; 2) que esse movimento se dê não só no espaço, mas no tempo próprio
do ser, do qual tenha consciência.
Daí que, se todo desenvolvimento é transformação, nem toda transformação
é desenvolvimento.
A transformação que se processa no ser de uma semente que, em condições
favoráveis, germina e nasce, não é desenvolvimento.
Do mesmo modo, a transformação do ser de um animal não é
desenvolvimento. Ambos se transformam determinados pela espécie a que
pertencem e num tempo que não lhes pertence, pois que é tempo dos homens.
Estes, entre os seres inconclusos, são os únicos que se desenvolvem. Como
seres históricos, como “seres para si”, autobiográficos, sua transformação, que é
desenvolvimento, se dá no tempo que é seu, nunca fora dele.
Esta é a razão pela qual, submetidos a condições concretas de opressão em
que se alienam, transformados em “seres para outro” do falso “ser para si” de
quem dependem, os homens também já não se desenvolvem autenticamente. É
que, assim roubados na sua decisão, que se encontra no ser dominador, seguem
suas prescrições.
Os oprimidos só começam a desenvolver-se quando, superando a
contradição em que se acham, se fazem “seres para si”.
Se, agora, analisamos uma sociedade também como ser, parece-nos
concludente que, somente como sociedade “ser para si”, sociedade livre, poderá
desenvolver-se.
Não é possível o desenvolvimento de sociedades duais, reflexas, invadidas,
dependentes da sociedade metropolitana, pois que são sociedades alienadas, cujo
ponto de decisão política, econômica e cultural se encontra fora delas — na
sociedade metropolitana. Esta é que decide dos destinos, em última análise,
daquelas, que apenas se transformam.
Como “seres para outro”, a sua transformação interessa precisamente à
metrópole.
Por tudo isto, é preciso não confundir desenvolvimento com modernização.
Esta, sempre realizada induzidamente, ainda que alcance certas faixas da
população da “sociedade satélite”, no fundo interessa à sociedade metropolitana.
A sociedade simplesmente modernizada, mas não desenvolvida, continua
dependente do centro externo, mesmo que assuma, por mera delegação, algumas
áreas mínimas de decisão. Isto é o que ocorre e ocorrerá com qualquer sociedade
dependente, enquanto dependente.
Estamos convencidos de que, para aferirmos se uma sociedade se desenvolve
ou não, devemos ultrapassar os critérios que se fixam na análise de seus índices
per capita de ingresso que, “estatisticados”, não chegam sequer a expressar a
verdade, bem como os que se centram no estudo de sua renda bruta. Parece-nos
que o critério básico, primordial, está em sabermos se a sociedade é ou não um
“ser para si”. Se não é, todos estes critérios indicarão sua modernização, mas não
seu desenvolvimento.
A contradição principal das sociedades duais é, realmente, esta — a das
relações de dependência que se estabelecem entre elas e a sociedade
metropolitana. Enquanto não superam esta contradição, não são “seres para si” e,
não o sendo, não se desenvolvem.
Superada a contradição, o que antes era mera transformação
“assistencializadora” em benefício, sobretudo, da matriz, se torna
desenvolvimento verdadeiro, em benefício do “ser para si”.
Por tudo isto é que as soluções puramente reformistas que estas sociedades
tentam, algumas delas chegando a assustar e até mesmo a apavorar a faixas mais
reacionárias de suas elites, não chegam a resolver suas contradições.
Quase sempre, senão sempre, estas soluções reformistas são induzidas pela
própria metrópole, como uma resposta nova que o processo histórico lhe impõe,
no sentido de manter sua hegemonia.
É como se a metrópole dissesse e não precisa dizer: “façamos as reformas,
antes que as sociedades dependentes façam a revolução”.
E, para lográ-lo, a sociedade metropolitana não tem outros caminhos senão a
conquista, a manipulação, a invasão econômica e cultural (às vezes, militar) da
sociedade dependente.
Invasão econômica e cultural em que as elites dirigentes da sociedade
dominada são, em grande medida, puras metástases das elites dirigentes da
sociedade metropolitana.
Após estas análises em torno da teoria da ação antidialógica, a que damos
caráter puramente aproximativo, repitamos o que vimos afirmando em todo o
corpo deste ensaio: a impossibilidade de a liderança revolucionária usar os
mesmos procedimentos antidialógicos de que se servem os opressores para
oprimir. Pelo contrário, o caminho desta liderança há de ser o dialógico, o da
comunicação, cuja teoria logo mais analisaremos.
Antes, porém, de fazê-lo, discutamos um ponto que nos parece de real
importância para um maior esclarecimento de nossas posições.
Queremos referir-nos ao momento de constituição da liderança
revolucionária e algumas de suas consequências básicas, de caráter histórico e
sociológico, para o processo revolucionário.
Desde logo, de modo geral, esta liderança é encarnada por homens que, desta
ou daquela forma, participavam dos estratos sociais dos dominadores.
Em um dado momento de sua experiência existencial, em certas condições
históricas, estes, num ato de verdadeira solidariedade (pelo menos assim se deve
esperar), renunciam à classe à qual pertencem e aderem aos oprimidos.
Seja esta adesão o resultado de uma análise científica da realidade ou não, ela
implicita, quando verdadeira, um ato de amor, de real compromisso.121
Esta adesão aos oprimidos importa uma caminhada até eles. Uma
comunicação com eles.
As massas populares precisam descobrir-se na liderança emersa e esta nas
massas.
No momento em que a liderança emerge como tal, necessariamente se
constitui como contradição das elites dominadoras.
Contradição objetiva destas elites são também as massas oprimidas, que
“comunicam” esta contradição à liderança emersa.
Isto não significa, porém, que já tenham as massas alcançado um grau tal de
percepção em torno de sua opressão, de que resultasse saber-se criticamente em
antagonismo com aquelas.122
Podem estar naquela postura anteriormente referida de “aderência” ao
opressor.
É possível, também, em função de certas condições históricas objetivas, que já
tenham chegado, senão à visualização clara de sua opressão, a uma quase
“claridade” desta.
Se, no primeiro caso, a sua “aderência” ou “quase aderência” ao opressor não
lhes possibilita localizá-lo fora delas,123 no segundo, localizando-o, se
reconhecem, em nível crítico, em antagonismo com ele.
No primeiro, com o opressor “hospedado” nelas, a sua ambiguidade as faz
mais temerosas da liberdade. Apelam para explicações mágicas ou para uma
visão falsa de Deus (estimulada pelos opressores), a quem fatalisticamente
transferem a responsabilidade de seu estado de oprimidos.124
Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperançadas, estas massas
dificilmente buscam a sua libertação, em cujo ato de rebeldia podem ver,
inclusive, uma ruptura desobediente com a vontade de Deus — uma espécie de
enfrentamento indevido com o destino. Daí a necessidade, que tanto
enfatizamos, de problematizá-las em torno dos mitos de que a opressão as nutre.
No segundo caso, isto é, quando já ganharam a “clareza” ou uma quase
“clareza” da opressão, o que as leva a localizar o opressor fora delas, aceitam a
luta para superar a contradição em que estão. Neste momento, superam a
distância que medeia as objetivas “necessidades de classe” da “consciência de
classe”.
Na primeira hipótese, a liderança revolucionária se faz, dolorosamente, sem o
querer, contradição das massas também.
Na segunda, ao emergir a liderança, recebe a adesão quase instantânea e
simpática das massas, que tende a crescer durante o processo da ação
revolucionária.
O caminho, então, que a liderança faz até elas é espontaneamente dialógico.
Há uma empatia quase imediata entre as massas e a liderança revolucionária. O
compromisso entre elas se sela quase repentinamente. Sentem-se ambas, porque
coirmanadas na mesma representatividade, contradição das elites dominadoras.
Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificilmente se rompe.
Continua com a chegada ao poder, em que as massas realmente se sentem e
sabem que estão.
Isto não diminui em nada o espírito de luta, a coragem, a capacidade de amar,
o arrojo da liderança revolucionária.
A liderança de Fidel Castro e de seus companheiros, na época chamados de
“aventureiros irresponsáveis” por muita gente, liderança eminentemente
dialógica, se identificou com as massas submetidas a uma brutal violência, a da
ditadura de Batista.
Com isto não queremos afirmar que esta adesão se deu tão facilmente. Exigiu
o testemunho corajoso, a valentia de amar o povo e por ele sacrificarse. Exigiu o
testemunho da esperança nunca desfeita de recomeçar após cada desastre,
animados pela vitória que, forjada por eles com o povo, não seria apenas deles,
mas deles e do povo, ou deles enquanto povo.
Fidel polarizou pouco a pouco a adesão das massas que, além da objetiva
situação de opressão em que estavam, já haviam, de certa maneira, começado,
em função da experiência histórica, a romper sua “aderência” com o opressor.
O seu “afastamento” do opressor estava levando-as a “objetivá-lo”,
reconhecendo-se, assim, como sua contradição antagônica. Daí que Fidel jamais
se haja feito contradição delas. Uma ou outra deserção, uma ou outra traição
registradas por Guevara no seu Relatos de la Guerra Revolucionária, em que se
refere às muitas adesões também, eram de ser esperadas.
Desta maneira, a caminhada que faz a liderança revolucionária até as massas,
em função de certas condições históricas, ou se realiza horizontalmente,
constituindo-se ambas em um só corpo contraditório do opressor ou, fazendo-se
triangularmente, leva a liderança revolucionária a “habitar” o vértice do
triângulo, contradizendo também as massas populares.
Esta condição, como já vimos, lhe é imposta pelo fato de as massas populares
não terem chegado, ainda, à criticidade ou à quase criticidade da realidade
opressora.
Quase nunca, porém, a liderança revolucionária percebe que está sendo
contradição das massas.
Realmente, é dolorosa esta percepção e, talvez por um mecanismo de defesa,
ela resista em percebê-lo.
Afinal, não é fácil à liderança, que emerge por um gesto de adesão às massas
oprimidas, reconhecer-se como contradição exatamente de com quem aderiu.
Parece-nos este um dado importante para analisar certas formas de
comportamento da liderança revolucionária que, mesmo sem o querer, se
constitui como contradição das massas populares, embora não antagônica, como
já o afirmamos.
A liderança revolucionária precisa, indubitavelmente, da adesão das massas
populares para a revolução.
Na hipótese em que as contradiz, ao buscar esta adesão e ao surpreender
nelas um certo alheamento, uma certa desconfiança, pode tomar esta
desconfiança e aquele alheamento como se fossem índices de uma natural
incapacidade delas. Reduz, então, o que é um momento histórico da consciência
popular ao que seria deficiência intrínseca das massas. E, como precisa de sua
adesão à luta para que possa haver revolução, mas desconfia das massas
desconfiadas, se deixa tentar pelos mesmos procedimentos que a elite
dominadora usa para oprimir.
Racionalizando a sua desconfiança, fala na impossibilidade do diálogo com as
massas populares antes da chegada ao poder, inscrevendo-se, desta maneira, na
teoria antidialógica da ação. Daí que, muitas vezes, tal qual a elite dominadora,
tente a conquista das massas, se faça messiânica, use a manipulação e realize a
invasão cultural. E, por estes caminhos, caminhos de opressão, ou não faz a
revolução ou, se a faz, não é verdadeira.
O papel da liderança revolucionária, em qualquer circunstância, mais ainda
nesta, está em estudar seriamente, enquanto atua, as razões desta ou daquela
atitude de desconfiança das massas e buscar os verdadeiros caminhos pelos quais
possa chegar à comunhão com elas. Comunhão no sentido de ajudá-las a que se
ajudem na visualização da realidade opressora que as faz oprimidas.
A consciência dominada existe, dual, ambígua, com seus temores e suas
desconfianças.125
Em seu diário sobre a luta na Bolívia, o comandante Guevara se refere várias
vezes à falta de participação camponesa, afirmando textualmente: La
mobilización campesina es inexistente, salvo en las tareas de información que
molestan algo, pero no son muy rápidos ni eficientes; los podremos anular. E em
outro momento: Falta completa de incorporación campesina aunque nos van
perdiendo el miedo y se logra la admiración de les campesinos. Es una tarea lenta y
paciente.126
Explicando este medo e esta pouca eficiência dos camponeses, vamos
encontrar neles, como consciências dominadas, o seu opressor introjetado.
As próprias formas comportamentais dos oprimidos, a sua maneira de
estarem sendo, resultante da opressão e que levam o opressor, para mais oprimir,
à prática da ação cultural que acabamos de analisar, estão a exigir do
revolucionário uma outra teoria da ação.
O que distingue a liderança revolucionária da elite dominadora não são
apenas seus objetivos, mas o seu modo de atuar distinto. Se atuam igualmente os
objetivos se identificam.
Por esta razão é que afirmamos antes ser tão paradoxal que a elite
dominadora problematize as relações homens-mundo aos oprimidos, quanto o é
que a liderança revolucionária não o faça.
Entremos, agora, na análise da teoria da ação cultural dialógica, tentando,
como no caso anterior, surpreender seus elementos constitutivos.
A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: A COLABORAÇÃO, A UNIÃO,
A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE CULTURAL
Colaboração
Enquanto na teoria da ação antidialógica a conquista, como sua primeira
característica, implica um sujeito que, conquistando o outro, o transforma em
quase “coisa”, na teoria dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a
transformação do mundo em colaboração.
O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado,
num mero “isto”.127
O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui.
Sabe também que, constituído por um tu — um não eu —, esse tu que o constitui
se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o
tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem
dois eu.
Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela
conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram
para a pronúncia do mundo, para a sua transformação.
Se as massas populares dominadas, por todas as considerações já feitas, se
acham incapazes, num certo momento histórico, de atender à sua vocação de ser
sujeito, será pela problematização de sua própria opressão, que implica sempre
uma forma qualquer de ação, que elas poderão fazê-lo.
Isto não significa que, no quefazer dialógico, não haja lugar para a liderança
revolucionária.
Significa, apenas, que a liderança não é proprietária das massas populares,
por mais que a ela se tenha de reconhecer um papel importante, fundamental,
indispensável.
A importância de seu papel, contudo, não lhe dá o direito de comandar as
massas populares, cegamente, para a sua libertação. Se assim fosse, esta liderança
repetiria o messianismo salvador das elites dominadoras, ainda que, no seu caso,
estivessem tentando a “salvação” das massas populares.
Mas, nesta hipótese, a libertação ou a “salvação” das massas populares estaria
sendo um presente, uma doação a elas, o que romperia o vínculo dialógico entre
a liderança e elas, convertendo-as de coautoras da ação da libertação, em
incidência desta ação.
A colaboração, como característica da ação dialógica, que não pode dar-se a
não ser entre sujeitos, ainda que tenham níveis distintos de função, portanto, de
responsabilidade, somente pode realizar-se na comunicação.
O diálogo, que é sempre comunicação, funda a colaboração. Na teoria da
ação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideais
revolucionários, mas para a sua adesão.
O diálogo não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza.
Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Como
também não significa deixar de ter o dialógico uma consciência clara do que
quer, dos objetivos com os quais se comprometeu.
A liderança revolucionária, comprometida com as massas oprimidas, tem um
compromisso com a liberdade. E, precisamente porque o seu compromisso é
com as massas oprimidas, para que se libertem, não pode pretender conquistálas, mas conseguir sua adesão para a libertação.
Adesão conquistada não é adesão porque é aderência do conquistado ao
conquistador através da prescrição deste àquele.
A adesão verdadeira é a coincidência livre de opções. Não pode verificar-se a
não ser na intercomunicação dos homens, mediatizados pela realidade.
Daí que, ao contrário do que ocorre com a conquista, na teoria antidialógica
da ação, que mitifica a realidade para manter a dominação, na colaboração,
exigida pela teoria dialógica da ação, os sujeitos dialógicos se voltam sobre a
realidade mediatizadora que, problematizada, os desafia. A resposta aos desafios
da realidade problematizada é já a ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, para
transformá-la.
Problematizar, porém, não é sloganizar, é exercer uma análise crítica sobre a
realidade problema.
Enquanto na teoria antidialógica as massas são objetos sobre que incide a
ação da conquista, na teoria da ação dialógica são sujeitos também a quem cabe
conquistar o mundo. Se, no primeiro caso, cada vez mais se alienam, no segundo,
transformam o mundo para a liberdade dos homens.
Enquanto na teoria da ação antidialógica a elite dominadora mitifica o
mundo para melhor dominar, a teoria dialógica exige o desvelamento do mundo.
Se, na mitificação do mundo e dos homens, há um sujeito que mitifica e objetos
que são mitificados, já não se dá o mesmo no desvelamento do mundo, que é a
sua desmitificação.
Aqui, propriamente, ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um
sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se tornem
sujeitos do ato de desvelar.
O desvelamento do mundo e de si mesmas, na práxis autêntica, possibilita às
massas populares a sua adesão.
Esta adesão coincide com a confiança que as massas populares começam a ter
em si mesmas e na liderança revolucionária, quando percebem a sua dedicação, a
sua autenticidade na defesa da libertação dos homens.
A confiança das massas na liderança implica a confiança que esta tenha nelas.
Esta confiança nas massas populares oprimidas, porém, não pode ser uma
confiança ingênua.
A liderança há de confiar nas potencialidades das massas a quem não pode
tratar como objetos de sua ação. Há de confiar em que elas são capazes de se
empenhar na busca de sua libertação, mas há de desconfiar, sempre desconfiar,
da ambiguidade dos homens oprimidos.
Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar deles
enquanto homens, mas desconfiar do opressor “hospedado” neles.
Desta maneira, quando Guevara128 chama a atenção ao revolucionário para a
“necessidade de desconfiar sempre — desconfiar do camponês que adere, do guia
que indica os caminhos, desconfiar até de sua sombra”, não está rompendo a
condição fundamental da teoria da ação dialógica. Está sendo, apenas, realista.
É que a confiança, ainda que básica ao diálogo, não é um a priori deste, mas
uma resultante do encontro em que os homens se tornam sujeitos da denúncia
do mundo, para a sua transformação.
Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor “dentro” deles que
eles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá-los à denúncia, não da
realidade opressora, mas da liderança revolucionária.
Por isto mesmo, esta liderança, não podendo ser ingênua, tem de estar atenta
quanto a estas possibilidades.
No relato já citado que faz Guevara da luta em Sierra Maestra, relato em que a
humildade é uma nota constante, se comprovam estas possibilidades, não apenas
em deserções da luta, mas na traição mesma à causa.
Algumas vezes, no seu relato, ao reconhecer a necessidade da punição ao que
desertou para manter a coesão e a disciplina do grupo, reconhece também certas
razões explicativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a mais
importante, é a ambiguidade do ser do desertor.
É impressionante, do ponto de vista que defendemos, um trecho do relato em
que Guevara se refere à sua presença, não apenas como guerrilheiro, mas como
médico, numa comunidade camponesa de Sierra Maestra. “Ali (diz ele) começou
a fazer-se carne em nós a consciência da necessidade de uma mudança definitiva
na vida do povo. A ideia da reforma agrária se fez nítida e a comunhão com o
povo deixou de ser teoria para converter-se em parte definitiva de nosso ser. A
guerrilha e o campesinato, continua, se iam fundindo numa só massa, sem que
ninguém possa dizer em que momento se fez intimamente verídico o
proclamado e fomos partes do campesinato. Só sei (diz ainda Guevara), no que a
mim me respeita, que aquelas consultas aos camponeses da Sierra converteram a
decisão espontânea e algo lírica em uma força de distinto valor e mais serena.
Nunca suspeitaram (conclui com humildade) aqueles sofridos e leais
povoadores da Sierra Maestra o papel que desempenharam como forjadores de
nossa ideologia revolucionária”.129
Observe-se como Guevara enfatiza a comunhão com o povo como o
momento decisivo para a transformação do que era uma “decisão espontânea e
algo lírica, em uma força de distinto valor e mais serena”. E explicita que, a partir
daquela comunhão, os camponeses, ainda que não o percebessem, se fizeram
“forjadores” de sua “ideologia revolucionária”.
Foi assim, no seu diálogo com as massas camponesas, que sua práxis
revolucionária tomou um sentido definitivo. Mas, o que não expressou Guevara,
talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta humildade e a sua
capacidade de amar que possibilitaram a sua “comunhão” com o povo. E esta
comunhão, indubitavelmente dialógica, se fez colaboração.
Veja-se como um líder como Guevara, que não subiu a Sierra com Fidel e
seus companheiros à maneira de um jovem frustrado em busca de aventuras,
reconhece que a sua “comunhão com o povo deixou de ser teoria para converterse em parte definitiva de seu ser” (no texto: nosso ser).
Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos da sua e da
experiência dos seus companheiros, de falar de seus encontros com os
camponeses “leais e humildes”, numa linguagem às vezes quase evangélica, este
homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e comunicar-se.
Daí a força de seu testemunho tão ardente quanto o deste outro amoroso — “o
sacerdote guerrilheiro” —, Camilo Torres.
Sem aquela comunhão, que gera a verdadeira colaboração, o povo teria sido
objeto do fazer revolucionário dos homens da Sierra.
E, como objeto, a adesão a que ele também se refere não poderia dar-se. No
máximo, haveria “aderência” e, com esta, não se faz revolução, mas dominação.
O que exige a teoria da ação dialógica é que, qualquer que seja o momento da
ação revolucionária, ela não pode prescindir desta comunhão com as massas
populares.
A comunhão provoca a colaboração que leva liderança e massas àquela fusão a
que se refere o grande líder recentemente desaparecido. Fusão que só existe se a
ação revolucionária é realmente humana,130 por isto, simpática, amorosa,
comunicante, humilde, para ser libertadora.
A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada
a deter vidas que proíbem a vida.
Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma
“morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida.
Acreditamos não ser necessário sequer usar dados estatísticos para mostrar
quantos, no Brasil e na América Latina em geral, são “mortos em vida”, são
“sombras” de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados e
submetidos131 a uma permanente “guerra invisível” em que o pouco de vida que
lhes resta vai sendo devorado pela tuberculose, pela esquistossomose, pela
diarreia infantil, por mil enfermidades da miséria, muitas das quais a alienação
chama de “doenças tropicais”…
Em face de situações como estas, diz o padre Chenu, “[…] muitos, tanto entre
os padres conciliares como entre laicos informados, temem que, na consideração
das necessidades e misérias do mundo, nos atenhamos a uma abjuração
comovedora para paliar a miséria e a injustiça em suas manifestações e seus
sintomas, sem que se chegue à análise das causas, até à denúncia do regime que
segrega esta injustiça e engendra esta miséria”.132
O que defende a teoria dialógica da ação é que a denúncia do “regime que
segrega esta injustiça e engendra esta miséria” seja feita com suas vítimas a fim de
buscar a libertação dos homens em colaboração com eles.
Unir para a libertação
Se, na teoria antidialógica da ação, se impõe aos dominadores, necessariamente, a
divisão dos oprimidos com que, mais facilmente, se mantém a opressão, na teoria
dialógica, pelo contrário, a liderança se obriga ao esforço incansável da união dos
oprimidos entre si, e deles com ela, para a libertação.
O problema central que se tem nesta, como em qualquer das categorias da
ação dialógica, é que nenhuma delas se dá fora da práxis.
Se, para a elite dominadora, lhe é fácil, ou pelo menos não tão difícil, a práxis
opressora, já não é o mesmo o que se verifica com a liderança revolucionária, ao
tentar a práxis libertadora.
Enquanto a primeira conta com os instrumentos do poder, a segunda se
encontra sob a força deste poder.
A primeira se organiza a si mesma livremente e, mesmo quando tenha as suas
divisões acidentais e momentâneas, se unifica rapidamente em face de qualquer
ameaça a seus interesses fundamentais. A segunda, que não existe sem as massas
populares, na medida em que é contradição antagônica da primeira, tem, nesta
mesma condição, o primeiro óbice à sua própria organização.
Seria uma inconsequência da elite dominadora se consentisse na organização
das massas populares oprimidas, pois que não existe aquela sem a união destas
entre si e destas com a liderança. Enquanto que, para a elite dominadora, a sua
unidade interna, que lhe reforça e organiza o poder, implica a divisão das massas
populares, para a liderança revolucionária, a sua unidade só existe na unidade
das massas entre si e com ela.
A primeira existe na medida de seu antagonismo com as massas; a segunda,
na razão de sua comunhão com elas, que, por isto mesmo, têm de estar unidas e
não divididas.
A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao
fazê-lo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso da liberdade, facilita a ação
divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação
unificadora indispensável à prática libertadora.
Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si mesma, uma situação
divisória. Começa por dividir o eu oprimido na medida em que, mantendo-o
numa posição de “aderência” à realidade, que se lhe afigura como algo todopoderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, explicadoras deste poder.
Parte de seu eu se encontra na realidade a que se acha “aderido”, parte fora,
na ou nas entidades estranhas, às quais responsabiliza pela força da realidade
objetiva, frente à qual nada lhe é possível fazer. Daí que seja este, igualmente, um
eu dividido entre o passado e o presente iguais e o futuro sem esperança que, no
fundo, não existe. Um eu que não se reconhece sendo, por isto que não pode ter,
no que ainda vem, a futuridade que deve construir na união com outros.
Na medida em que seja capaz de romper a “aderência”, objetivando em
termos críticos a realidade de que assim emerge, se vai unificando como eu,
como sujeito, em face do objeto. É que, neste momento, rompendo igualmente a
falsa unidade do seu ser dividido, se individua verdadeiramente.
Desta maneira, se, para dividir, é necessário manter o eu dominado “aderido”
à realidade opressora, mitificando-a, para o esforço de união, o primeiro passo é
a desmitificação da realidade.
Se, para manter divididos os oprimidos se faz indispensável uma ideologia da
opressão, para a sua união é imprescindível uma forma de ação cultural através
da qual conheçam o porquê e o como de sua “aderência” à realidade que lhes dá
um conhecimento falso de si mesmos e dela. É necessário desideologizar.
Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos não pode ser um
trabalho de pura sloganização ideológica. É que este, distorcendo a relação
autêntica entre o sujeito e a realidade objetiva, divide também o cognoscitivo do
afetivo e do ativo que, no fiando, são uma totalidade não dicotomizável.
O fundamental, realmente, na ação dialógico-libertadora, não é “desaderir”
os oprimidos de uma realidade mitificada em que se acham divididos, para
“aderi-los” a outra.
O objetivo da ação dialógica está, pelo contrário, em proporcionar que os
oprimidos, reconhecendo o porquê e o como de sua “aderência”, exerçam um ato
de adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta.
Significando a união dos oprimidos, a relação solidária entre eles não
importam os níveis reais em que se encontrem como oprimidos, implica
também, indiscutivelmente, consciência de classe.
A “aderência” à realidade, contudo, em que se encontram, sobretudo os
oprimidos que constituem as grandes massas camponesas da América Latina,
está a exigir que a consciência de classe oprimida passe, senão antes, pelo menos
concomitantemente, pela consciência de homem oprimido.
Propor a um camponês europeu, como um problema, a sua condição de
homem, lhe parecerá, possivelmente, algo estranho.
Já não é o mesmo fazê-lo a camponeses latino-americanos, cujo mundo, de
modo geral, se “acaba” nas fronteiras do latifúndio, cujos gestos repetem, de
certa maneira, os animais e as árvores e que, “imersos” no tempo, não raro se
consideram iguais àqueles.
Estamos convencidos de que, para homens de tal forma “aderidos” à natureza
e à figura do opressor, é indispensável que se percebam como homens proibidos
de estar sendo.
A “cultura do silêncio”, que se gera na estrutura opressora, dentro da qual e
sob cuja força condicionante vêm realizando sua experiência de “quase-coisas”,
necessariamente os constitui desta forma.
Descobrirem-se, portanto, através de uma modalidade de ação cultural,
adialógica, problematizadora de si mesmos em seu enfrentamento com o mundo,
significa, num primeiro momento, que se descubram como Pedro, Antônio, com
Josefa, com toda a significação profunda que tem esta descoberta. No fundo, ela
implica uma percepção distinta da significação dos signos. Mundo, homens,
cultura, árvore, trabalho, animal, vão assumindo a significação verdadeira que
não tinham.
Reconhecem-se, agora, como seres transformadores da realidade, para eles
antes algo misterioso, e transformadores por meio de seu trabalho criador.
Descobrem que, como homens, já não podem continuar sendo “quase-coisas”
possuídas e, da consciência de si como homens oprimidos, vão à consciência de
classe oprimida.
Quando a tentativa de união dos camponeses se faz à base de práticas
ativistas, que giram em torno de slogans e não penetram estes aspectos
fundamentais, o que se pode observar é a justaposição dos indivíduos, que dá à
sua ação um caráter puramente mecanicista.
A união dos oprimidos é um quefazer que se dá no domínio do humano e
não no das coisas. Verifica-se, por isto mesmo, na realidade, que só estará sendo
autenticamente compreendida quando captada na dialeticidade entre a infra e
superestrutura.
Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordão
umbilical, de caráter mágico e mítico, através do qual se encontram ligados ao
mundo da opressão.
A união entre eles não pode ter a mesma natureza das suas relações com esse
mundo.
Esta é a razão por que, realmente indispensável ao processo revolucionário, a
união dos oprimidos exige deste processo que ele seja, desde seu começo, o que
deve ser: ação cultural.
Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos oprimidos vai
depender da experiência histórica e existencial que eles estejam tendo, nesta ou
naquela estrutura.
Enquanto os camponeses se acham em uma realidade “fechada”, cujo centro
decisório da opressão é “singular” e compacto, os oprimidos urbanos se
encontram num contexto “abrindo-se”, em que o centro de comando opressor se
faz plural e complexo.
No primeiro caso, os dominados se acham sob a decisão da figura
dominadora que encarna, em sua pessoa, o sistema opressor mesmo; no
segundo, se encontram submetidos a uma espécie de “impessoalidade
opressora”.
Em ambos os casos há uma certa “invisibilidade” do poder opressor. No
primeiro, pela sua proximidade aos oprimidos; no segundo, pela sua diluição.
As formas de ação cultural, em situações distintas como estas, têm, contudo,
o mesmo objetivo: aclarar aos oprimidos a situação objetiva em que estão, que é
mediatizadora entre eles e os opressores, visível ou não.
Somente estas formas de ação que se opõem, de um lado, aos discursos
verbalistas e aos bla-bla-blás inoperantes e, de outro, ao ativismo mecanicista,
podem opor-se, também, à ação divisória das elites dominadoras e dirigir-se no
sentido da unidade dos oprimidos.
Organização
Enquanto, na teoria da ação antidialógica, a manipulação, que serve à conquista,
se impõe como condição indispensável ao ato dominador, na teoria dialógica da
ação, vamos encontrar, como seu oposto antagônico, a organização das massas
populares.
A organização não apenas está diretamente ligada à sua unidade, mas é um
desdobramento natural desta unidade das massas populares.
Desta forma, ao buscar a unidade, a liderança já busca, igualmente, a
organização das massas populares, o que implica o testemunho que deve dar a
elas de que o esforço de libertação é uma tarefa comum a ambas.
Este testemunho constante, humilde e corajoso do exercício de uma tarefa
comum — a da libertação dos homens — evita o risco dos dirigismos
antidialógicos.
O que pode variar, em função das condições históricas de uma dada
sociedade, é o modo como testemunhar. O testemunho em si, porém, é um
constituinte da ação revolucionária.
Por isto mesmo é que se impõe a necessidade de um conhecimento tanto
quanto possível cada vez mais crítico do momento histórico em que se dá a ação,
da visão do mundo que tenham ou estejam tendo as massas populares, da
percepção clara de qual seja a contradição principal e o principal aspecto da
contradição que vive a sociedade, para se determinar o que e o como do
testemunho.
Sendo históricas estas dimensões do testemunho, o dialógico, que é dialético,
não pode importá-las simplesmente de outros contextos sem uma prévia análise
do seu. A não ser assim, absolutiza o relativo e, mitificando-o, não pode escapar a
alienação.
O testemunho, na teoria dialógica da ação, é uma das conotações principais
do caráter cultural e pedagógico da revolução.
Entre os elementos constitutivos do testemunho, que não variam
historicamente, estão a coerência entre a palavra e o ato de quem testemunha, a
ousadia do que testemunha, que o leva a enfrentar a existência como um risco
permanente, a radicalização, nunca a sectarização, na opção feita, que leva não só
o que testemunha, mas aqueles a quem dá o testemunho, cada vez mais à ação. A
valentia de amar que, segundo pensamos, já ficou claro não significar a
acomodação ao mundo injusto mas a transformação deste mundo para a
crescente libertação dos homens. A crença nas massas populares, uma vez que é a
elas que o testemunho se dá, ainda que o testemunho a elas, dentro da totalidade
em que estão, em relação dialética com as elites dominadoras, afete também a
estas, que a ele respondem dentro do quadro normal de sua forma de aturar.
Todo testemunho autêntico, por isto crítico, implica ousadia de correr riscos
— um deles, o de nem sempre a liderança conseguir de imediato, das massas
populares, a adesão esperada.
Um testemunho que, em certo momento e em certas condições, não
frutificou, não está impossibilitado de, amanhã, vir a frutificar. É que, na medida
em que o testemunho não é um gesto no ar, mas uma ação, um enfrentamento,
com o mundo e com os homens, não é estático. É algo dinâmico, que passa a
fazer parte da totalidade do contexto da sociedade em que se deu. E, daí em
diante, já não para.133
Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, “anestesiando” as massas
populares, facilita sua dominação, na ação dialógica, a manipulação cede seu
lugar à verdadeira organização. Assim como, na ação antidialógica, a
manipulação serve à conquista, na dialógica, o testemunho, ousado e amoroso,
serve à organização. Esta, por sua vez, não apenas está ligada à união das massas
populares como é um desdobramento natural desta união.
Por isto é que afirmamos: ao buscar a união, a liderança já busca, igualmente,
a organização das massas populares.
É importante, porém, salientar que, na teoria dialógica da ação, a organização
jamais será a justaposição de indivíduos que, gregarizados, se relacionem
mecanicistamente.
Este é um risco de que deve estar sempre advertido o verdadeiro dialógico.
Se, para a elite dominadora, a organização é a de si mesma, para a liderança
revolucionária, a organização é a dela com as massas populares.
No primeiro caso, organizando-se, a elite dominadora estrutura cada vez
mais o seu poder com que melhor domina e coisifica; no segundo, a organização
só corresponde à sua natureza e a seu objetivo se é, em si, prática da liberdade.
Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina indispensável à
organização com a condução pura das massas.
É verdade que, sem liderança, sem disciplina, sem ordem, sem decisão, sem
objetivos, sem tarefas a cumprir e contas a prestar, não há organização e, sem
esta, se dilui a ação revolucionária. Nada disso, contudo, justifica o manejo das
massas populares, a sua “coisificação”.
O objetivo da organização, que é libertador, é negado pela “coisificação” das
massas populares, se a liderança revolucionária as manipula. “Coisificadas” já
estão elas pela opressão.
Não é como “coisas”, já dissemos, e é bom que mais uma vez digamos, que os
oprimidos se libertam, mas como homens.
A organização das massas populares em classe é o processo no qual a
liderança revolucionária, tão proibida quanto estas, de dizer sua palavra,134
instaura o aprendizado da pronúncia do mundo, aprendizado verdadeiro, por
isto, dialógico.
Daí que não possa a liderança dizer sua palavra sozinha, mas com o povo. A
liderança que assim não proceda, que insista em impor sua palavra de ordem,
não organiza, manipula o povo. Não liberta, nem se liberta, oprime.
O fato, contudo, de na teoria dialógica, no processo de organização, não ter a
liderança o direito de impor arbitrariamente sua palavra, não significa dever
assumir uma posição liberalista, que levaria as massas oprimidas — habituadas à
opressão — a licenciosidades.
A teoria dialógica da ação nega o autoritarismo como nega a licenciosidade.
E, ao fazê-lo, afirma a autoridade e a liberdade.
Reconhece que, se não há liberdade sem autoridade, não há também esta sem
aquela.
A fonte geradora, constituinte da autoridade autêntica, está na liberdade que,
em certo momento se faz autoridade. Toda liberdade contém em si a
possibilidade de vir a ser, em circunstâncias especiais (e em níveis existenciais
diferentes), autoridade. Não podemos olhá-las isoladamente, mas em suas
relações, não necessariamente antagônicas.135
É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma como tal na pura
transferência, mas na delegação ou na adesão simpática. Se se gera num ato de
transferência, ou de imposição “anti-pática” sobre as maiorias, se degenera em
autoritarismo que esmaga as liberdades.
Somente ao existenciar-se como liberdade que foi constituída em autoridade,
pode evitar seu antagonismo com as liberdades.
Toda hipertrofia de uma provoca a atrofia da outra. Assim como não há
autoridade sem liberdade e esta sem aquela, não há autoritarismo sem negação
das liberdades e licenciosidade sem negação da autoridade.
Na teoria da ação dialógica, portanto, a organização, implicando autoridade,
não pode ser autoritária; implicando liberdade, não pode ser licenciosa.
Pelo contrário, é o momento altamente pedagógico, em que a liderança e o
povo fazem juntos o aprendizado da autoridade e da liberdade verdadeiras que
ambos, como um só corpo, buscam instaurar, com a transformação da realidade
que os mediatiza.
Síntese cultural
Era todo o corpo deste capítulo se encontra firmado, ora implícita, ora
explicitamente, que toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada e
deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la
como está ou mais ou menos como está, ora no de transformá-la.
Por isto, como forma de ação deliberada e sistemática, toda ação cultural,
segundo vimos, tem sua teoria, que, determinando seus fins, delimita seus
métodos.
A ação cultural ou está a serviço da dominação — consciente ou
inconscientemente por parte de seus agentes — ou está a serviço da libertação
dos homens.
Ambas, dialeticamente antagônicas, se processam, como afirmamos, na e
sobre a estrutura social, que se constitui na dialeticidade permanência-mudança.
Isto é o que explica que a estrutura social, para ser; tenha de estar sendo ou,
em outras palavras: estar sendo é o modo que tem a estrutura social de durar, na
acepção bergsoniana do termo.136
O que pretende a ação cultural dialógica, cujas características estamos
acabando de analisar, não pode ser o desaparecimento da dialeticidade
permanência-mudança (o que seria impossível, pois que tal desaparecimento
implicaria o desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no dos
homens), mas superar as contradições antagônicas de que resulte a libertação dos
homens.
Por outro lado, a ação cultural antidialógica pretende mitificar o mundo
destas contradições para, assim, evitar ou obstaculizar, tanto quanto possível, a
transformação radical da realidade.
No fundo, o que se acha explícita ou implicitamente na ação antidialógica é a
intenção de fazer permanecer, na “estrutura” social, as situações que favorecem
seus agentes.
Daí que estes, não aceitando jamais a transformação da estrutura, que supere
as contradições antagônicas, aceitem as reformas que não atinjam seu poder de
decisão, de que decorre a sua força de prescrever suas finalidades às massas
dominadas.
Este é o motivo por que esta modalidade de ação implica a conquista das
massas populares, a sua divisão, a sua manipulação e a invasão cultural. E é
também por isto que é sempre, como um todo, uma ação induzida, jamais
podendo superar este caráter, que lhe é fundamental.
Pelo contrário, o que caracteriza, essencialmente, a ação cultural dialógica,
como um todo também, é a superação de qualquer aspecto induzido.
No objetivo dominador da ação cultural antidialógica se encontra a
impossibilidade de superação de seu caráter de ação induzida, assim como, no
objetivo libertador da ação cultural dialógica, se acha a condição para superar a
indução.
Enquanto na invasão cultural, como já salientamos, os atores retiram de seu
marco valorativo e ideológico, necessariamente, o conteúdo temático para sua
ação, partindo, assim, de seu mundo, do qual entram no dos invadidos, na
síntese cultural, os atores, desde o momento mesmo em que chegam ao mundo
popular, não o fazem como invasores.
E não o fazem como tais porque, ainda que cheguem de “outro mundo”,
chegam para conhecê-lo com o povo e não para “ensinar”, ou transmitir, ou
entregar nada ao povo.
Enquanto, na invasão cultural, os atores — que nem sequer necessitam de,
pessoalmente, ir ao mundo invadido, sua ação é mediatizada cada vez mais pelos
instrumentos tecnológicos — são sempre atores que se superpõem, com sua
ação, aos espectadores, seus objetos, na síntese cultural, os atores se integram
com os homens do povo, atores, também, da ação que ambos exercem sobre o
mundo.
Na invasão cultural, os espectadores e a realidade, que deve ser mantida como
está, são a incidência da ação dos atores. Na síntese cultural, onde não há
espectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é a
incidência da ação dos atores.
Isto implica que a síntese cultural é a modalidade de ação com que,
culturalmente, se fará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora
das estruturas em que se forma.
Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se apresenta
como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante.
Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também
revolução cultural.
A investigação dos temas geradores ou da temática significativa do povo,
tendo como objetivo fundamental a captação dos seus temas básicos, só a partir
de cujo conhecimento é possível a organização do conteúdo programático para
qualquer ação com ele, se instaura como ponto de partida do processo da ação,
como síntese cultural.
Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos deste processo: o da
investigação temática e o da ação como síntese cultural.
Esta dicotomia implicaria que o primeiro seria todo ele um momento em que
o povo estaria sendo estudado, analisado, investigado, como objeto passivo dos
investigadores, o que é próprio da ação antidialógica. Deste modo, esta separação
ingênua significaria que a ação, como síntese, partiria da ação como invasão.
Precisamente porque, na teoria dialógica, esta divisão não se pode dar, a
investigação temática tem como sujeitos de seu processo não apenas os
investigadores profissionais, mas também os homens do povo, cujo universo
temático se busca.
Neste momento primeiro da ação, como síntese cultural, que é a investigação,
se vai constituindo o clima da criatividade, que já não se deterá, e que tende a
desenvolver-se nas etapas seguintes da ação.
Este clima inexiste na invasão cultural que, alienante, amortece o ânimo
criador dos invadidos e os deixa, enquanto não lutam contra ela,
desesperançados e temerosos de correr o risco de aventurar-se, sem o que não há
criatividade autêntica.
Por isto é que os invadidos, qualquer que seja o seu nível, dificilmente
ultrapassam os modelos que lhes prescrevem os invasores.
Como, na síntese cultural, não há invasores, não há modelos impostos, os
atores, fazendo da realidade objeto de sua análise crítica, jamais dicotomizada da
ação, se vão inserindo no processo histórico, como sujeitos.
Em lugar de esquemas prescritos, liderança e povo, identificados, criam
juntos as pautas para sua ação. Uma e outro, na síntese, de certa forma renascem
num saber e numa ação novos, que não são apenas o saber e a ação da liderança,
mas dela e do povo. Saber da cultura alienada que, implicando a ação
transformadora, dará lugar à cultura que se desaliena.
O saber mais apurado da liderança se refaz no conhecimento empírico que o
povo tem, enquanto o deste ganha mais sentido no daquela.
Isto tudo implica que, na síntese cultural, se resolve — e somente nela — a
contradição entre a visão do mundo da liderança e a do povo, com o
enriquecimento de ambos.
A síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelo
contrário, se funda nelas. O que ela nega é a invasão de uma pela outra. O que ela
afirma é o indiscutível subsídio que uma dá à outra.
A liderança revolucionária não pode constituir-se fora do povo,
deliberadamente o que a conduz à invasão cultural inevitável.
Por isto mesmo é que, ainda quando a liderança, na hipótese referida neste
capítulo, por certas condições históricas, aparece como contradição do povo, seu
papel é resolver esta contradição acidental. Jamais poderá fazê-lo através da
“invasão”, que aumentaria a contradição. Não há outro caminho senão a síntese
cultural.
Muitos erros e equívocos comete a liderança ao não levar em conta esta coisa
tão real, que é a visão do mundo que o povo tenha ou esteja tendo. Visão do
mundo em que se vão encontrar explícitos e implícitos os seus anseios, as suas
dúvidas, a sua esperança, a sua forma de ver a liderança, a sua percepção de si
mesmo e do opressor, as suas crenças religiosas, quase sempre sincréticas, o seu
fatalismo, a sua reação rebelde. E tudo isto, como já afirmamos, não pode ser
encarado separadamente, porque, em interação, se encontra compondo uma
totalidade.
Para o opressor, o conhecimento desta totalidade só lhe interessa como ajuda
à sua ação invasora, para dominar ou manter a dominação. Para a liderança
revolucionária, o conhecimento desta totalidade lhe é indispensável à sua ação,
como síntese cultural.
Esta, na teoria dialógica da ação, por isto mesmo que é síntese, não implica
que devem ficar os objetivos da ação revolucionária amarrados às aspirações
contidas na visão do mundo do povo.
Ao ser assim, em nome do respeito à visão popular do mundo, respeito que
realmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquela
visão.
Nem invasão da liderança na visão popular do mundo, nem adaptação da
liderança às aspirações, muitas vezes ingênuas, do povo.
Concretizemos. Se, em um dado momento histórico, a aspiração básica do
povo não ultrapassa a reivindicação salarial, a nosso ver, a liderança pode
cometer dois erros. Restringir sua ação ao estímulo exclusivo desta reivindicação,
ou sobrepor-se a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. Algo que
não chegou a ser ainda para o povo um “destacado em si”.
No primeiro caso, incorreria a liderança revolucionária no que chamamos de
adaptação ou docilidade à aspiração popular. No segundo, desrespeitando a
aspiração do povo, cairia na invasão cultural.
A solução está na síntese. De um lado, incorporar-se ao povo na aspiração
reivindicativa. De outro, problematizar o significado da própria reivindicação.
Ao fazê-lo, estará problematizando a situação histórica real, concreta, que, em
sua totalidade, tem, na reivindicação salarial, uma dimensão.
Deste modo, ficará claro que a reivindicação salarial, sozinha, não encarna a
solução definitiva. Que esta se encontra, como afirmou o bispo Split, no
documento já citado dos bispos do Terceiro Mundo, em que “se os trabalhadores
não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu trabalho, todas as
reformas estruturais serão ineficazes”.
O fundamental, por isto, insiste o bispo, é que eles devem chegar a ser
“proprietários e não vendedores de seu trabalho”, porque “toda compra ou venda
do trabalho é uma espécie de escravidão”.
Ter a consciência crítica de que é preciso ser o proprietário de seu trabalho e
de que “este constitui uma parte da pessoa humana” e que a “pessoa humana não
pode ser vendida nem vender-se” é dar um passo mais além das soluções
paliativas e enganosas. É inscrever-se numa ação de verdadeira transformação da
realidade para, humanizando-a, humanizar os homens.
Finalmente, a invasão cultural, na teoria antidialógica da ação, serve à
manipulação que, por sua vez, serve à conquista e esta à dominação, enquanto a
síntese serve à organização e esta à libertação.
Todo o nosso esforço neste ensaio foi falar desta coisa óbvia: assim como o
opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos,
para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação.
O opressor elabora a teoria de sua ação necessariamente sem o povo, pois que
é contra ele.
O povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, introjetando o
opressor, não pode, sozinho, constituir a teoria de sua ação libertadora. Somente
no encontro dele com a liderança revolucionária, na comunhão de ambos, na
práxis de ambos, é que esta teoria se faz e se re-faz.
A colocação que, em termos aproximativos, meramente introdutórios,
tentamos fazer da questão da pedagogia do oprimido nos trouxe à análise,
também aproximativa e introdutória, da teoria da ação antidialógica, que serve à
opressão, e da teoria dialógica da ação, que serve à libertação.
Desta maneira, nos daremos por satisfeitos se, dos possíveis leitores deste
ensaio, surgirem críticas capazes de retificar erros e equívocos, de aprofundar
afirmações e de apontar o que não vimos.
É possível que algumas destas críticas se façam pretendendo retirar de nós o
direito de falar sobre matéria — a tratada neste capítulo — em torno de que nos
falta uma experiência participante. Parece-nos, contudo, que o fato de não
termos tido uma experiência no campo revolucionário não nos retira a
possibilidade de uma reflexão sobre o tema.
Mesmo porque, na relativa experiência que temos tido com massas
populares, como educador, com uma educação dialógica e problematizante,
vimos acumulando um material relativamente rico, que foi capaz de nos desafiar
a correr o risco das afirmações que fizemos.
Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça:
nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em
que seja menos difícil amar.
Notas
Vladimir Lenin, “What is to be Done?”, in Henry M. Christman (org.), Essencial Works of Lenin. Nova
York: Bantam Books, 1966, p. 69.
89
90 Mais uma razão por que a liderança revolucionária não pode repetir os procedimentos da elite opressora.
Os opressores, “penetrando” os oprimidos, neles se “hospedam”; os revolucionários, na práxis com os
oprimidos, não podem tentar “hospedar-se” neles. Pelo contrário, ao buscarem, com estes, o “despejo”
daqueles, devem fazê-lo para conviver, para com eles estar e não para neles viver.
Mesmo que haja — e explicavelmente — por parte dos oprimidos, que sempre estiveram submetidos a
um regime de espoliação, na luta revolucionária, uma dimensão revanchista, isto não significa que a
revolução deva esgotar-se nela.
91
92 “Se algum benefício se pudesse obter da dúvida (disse Fidel Castro ao falar ao povo cubano, confirmando
a morte de Guevara), nunca foram armas da revolução a mentira, o medo da verdade, a cumplicidade com
qualquer ilusão falsa, a cumplicidade com mentira.” Fidel Castro, Gramma, 17/10/1967. (Os grifos são
nossos.)
93
Sublinhemos mais uma vez que este encontro dialógico não se pode verificar entre antagônicos.
The epochs during which the dominant classes are stable, epochs in which the worker’s movement must
defend itself against a powerful adversary, which is occasionally threatening and is in every case solely seated
in power, produce naturally a socialist literature which emphasizes the “material” element of reality, the
obstacles to be overcome, and the scant efficacy of human awareness and action. L. Goldmann, op. cit., pp. 801.
94
95
Fernando Garcia, hondurenho, aluno nosso, num curso para latino-americanos em Santiago, Chile, 1967.
96
R. Niebuhr, op. cit., pp. 118-9.
Às vezes, nem sequer esta palavra é dita. Basta a presença de alguém (não necessariamente pertencente a
um grupo revolucionário) que possa ameaçar ao opressor “hospedado” nas massas, para que elas,
assustadas, assumam posturas destrutivas. Contou-nos um aluno nosso, de um país latino-americano, que,
em certa comunidade camponesa indígena de seu país, bastou que um sacerdote fanático denunciasse a
presença de dois “comunistas” na comunidade, “pondo em risco a fé católica”, para que, na noite deste
mesmo dia, os camponeses, unânimes, queimassem vivos os dois simples professores primários que
exerciam seu trabalho de educadores infantis.
Talvez esse sacerdote tivesse visto, na casa daqueles infelizes maestros rurales, algum livro em cuja capa
houvesse a cara de um homem barbado…
97
Salientamos, mais uma vez, que não estabelecemos nenhuma dicotomia entre o diálogo e a ação
revolucionária, como se houvesse um tempo de diálogo, e outro, diferente, de revolução. Afirmamos, pelo
contrário, que o diálogo é a “essência” da ação revolucionária. Daí que na teoria desta ação, seus atores,
intersubjetivamente, incidam sua ação sobre o objeto, que é a realidade que os mediatiza, tendo, como
objetivo, através da transformação daquela, a humanização dos homens. Isto não ocorre na teoria da ação
98
opressora, cuja “essência” é antidialógica. Nesta, o esquema se simplifica. Os atores têm, como objetos de sua
ação, a realidade e os oprimidos simultaneamente e, como objetivo, a manutenção da opressão, através da
manutenção da realidade opressora.
No livro já citado, Ação cultural para a liberdade e outros escritos, discutimos mais detidamente as
relações entre ação cultural e revolução cultural.
99
100 Cf. Mao Tsé-Tung, “On Contradictions”, in Four Essays on Philosophy. Pequim: Foreign Languages
Press Edition, 1968.
A free action (diz Gajo Petrovic) can only be one by which a man changes his world and himself. […] A
positive condition of freedom is the knowledge of the limits of necessity, the awareness of human creative
possibilites. […] The struggle for a free society is not a struggle for a free society unless through it an ever
greater degree of individual freedom is created. Gajo Petrovic, “Man and Freedom”, in Erich Fromm (org.),
Socialism Humanism. Nova York: Anchor Books, 1966, pp. 274-6. Do mesmo autor, é importante a leitura
de Marx in the Mid-Twenteth Century. Nova York: Anchor Books, 1967.
101
Isto não significa, de maneira alguma, segundo salientamos no capítulo anterior, que, instaurado o
poder popular revolucionário, a revolução contradiga o seu caráter dialógico, pelo fato de o novo poder ter o
dever ético, inclusive, de reprimir toda tentativa de restauração do antigo poder opressor.
102
103
Mater et magistra.
By his acusation (diz Memmi, referindo-se ao perfil que o colonizador faz do colonizado), the colonizer
establishes the colonized as being lazy. He decides that laziness is constitutional in the very nature of the
colonized. Op. cit., p. 81.
104
105
Não criticamos os meios em si mesmos, mas o uso que se lhes dá.
É desnecessário dizer que esta crítica não atinge os esforços neste setor que, numa perspectiva dialética,
orientam no sentido da ação que se funda na compreensão da comunidade local como totalidade em si e
parcialidade de uma totalidade maior. Atinge aqueles que não levam em conta que o desenvolvimento da
comunidade local não se pode dar a não ser dentro do contexto total de que faz parte, em interação com
outras parcialidades, o que implica a consciência da unidade na diversificação, da organização que canalize
as forças dispersas e a consciência clara da necessidade de transformação da realidade. Tudo isto é que
assusta, razoavelmente, os opressores. Daí que estimulem todo tipo de ação em que, além da visão focalista,
os homens sejam “assistencializados”.
106
“Se os operários não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu trabalho (diz o bispo Franic
Split), todas as reformas nas estruturas serão ineficazes. Inclusive, se os operários às vezes recebem um
salário mais alto em algum sistema econômico, não se contentam com estes aumentos. Querem ser
proprietários e não vendedores de seu trabalho. Atualmente (continua Dom Franic), os trabalhadores estão
cada vez mais conscientes de que o trabalho constitui uma parte da pessoa humana. A pessoa humana,
porém, não pode ser vendida nem vender-se. Toda compra ou venda do trabalho é uma espécie de
escravidão. A evolução da sociedade progride neste sentido e, com segurança, dentro deste sistema do qual
se afirma não ser tão sensível quanto nós à dignidade da pessoa humana, isto é, o marxismo.” “15 obispos
hablan en prol del Tercer Mundo”, CIDOC Informa, México, Doc. 67/35, 1967, pp. 1-11.
107
A propósito das classes sociais e da luta entre elas, de que tanto se acusa Marx como uma espécie de
“inventor” desta luta, cf. a carta que escreve a J. Weydemeyer, a 1º do março de 1852, em que declara não lhe
caber “o mérito de haver descoberto a existência das classes na sociedade moderna nem a luta entre elas.
Muito antes que eu (comenta Marx) alguns historiadores burgueses haviam já exposto o desenvolvimento
histórico desta luta de classes e alguns economistas burgueses, a sua anatomia econômica. O que acrescentei
(diz ele) foi demonstrar: 1) que a existência das classes vai unida a determinadas fases históricas de
desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma
ditadura não é, por si, mais que o trânsito até a abolição de todas as classes, para uma sociedade sem
classes.” Marx-Engels, Obras escogidas.
108
Aos camponeses, por isto mesmo, é indispensável mantê-los ilhados dos operários urbanos, como estes
e aqueles dos estudantes que, não chegando a constituir, sociologicamente, uma classe, se fazem, ao
aderirem ao povo, um perigo pelo seu testemunho de rebeldia. É preciso, então, fazer ver às classes
populares que os estudantes são irresponsáveis e perturbadores da “ordem”. Que o seu testemunho é falso,
pelo fato mesmo de que, como estudantes, deviam estudar, como cabe aos operários das fábricas e aos
camponeses trabalhar para o “progresso da nação”.
109
110 Os pactos só são válidos para as classes populares — e neste caso já não são pactos — quando as
finalidades da ação a ser desenvolvida ou que já se realiza estão na órbita de sua decisão.
Na “organização” que resulta do ato manipulador, as massas populares, meros objetos dirigidos, se
acomodam às finalidades dos manipuladores, enquanto na organização verdadeira, em que os indivíduos
são sujeitos do ato de organizar-se, as finalidades não são impostas por uma elite. No primeiro caso, a
“organização” é meio de massificação; no segundo, de libertação.
111
Francisco Weffort, “Política de massas”, in Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965, p. 187.
112
Getúlio Vargas, em discurso pronunciado no Estádio C.R. Vasco da Gama em 1º de maio de 1951, in O
governo trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, pp. 322-4. (Os grifos são
nossos.)
113
114 Para este fim, os invasores se servem, cada vez mais, das ciências sociais e da tecnologia, como já agora
das ciências naturais.
É que a invasão, na medida em que é ação cultural, cujo caráter induzido permanece como sua conotação
essencial, não pode prescindir do auxílio das ciências e da tecnologia com que os invasores melhor atuam.
Para eles se faz indispensável o conhecimento do passado e do presente dos invadidos, através do qual
possam determinar as alternativas de seu futuro e, assim, tentar a sua condução no sentido de seus
interesses.
115
A propósito de dialética da sobredeterminação, cf. Louis Althusser, Pour Marx. Paris: Maspero, 1967.
O autoritarismo dos pais e dos mestres se desvela cada vez mais aos jovens como antagonismo à sua
liberdade. Cada vez mais, por isto mesmo, a juventude vem se opondo às formas de ação que minimizam
sua expressividade e obstaculizam sua afirmação. Esta, que é uma das manifestações positivas que
observamos hoje, não existe por acaso. No fundo, é um sintoma daquele clima histórico ao qual fizemos
referência no primeiro capítulo deste ensaio, como caracterizador de nossa época, como uma época
antropológica. Por isto é que a reação da juventude não pode ser vista a não ser interessadamente, como
simples indício das divergências geracionais que em todas as épocas houve e há. Na verdade, há algo mais
116
profundo. Na sua rebelião, o que a juventude denuncia e condena é o modelo injusto da sociedade
dominadora. Esta rebelião, contudo, com o caráter que tem, é muito recente. O caráter autoritário perdura.
Talvez explique também a antidialogicidade daqueles que, embora convencidos de sua opção
revolucionária, continuam, contudo, descrentes do povo, temendo a comunhão com ele. E que, sem o
perceber, ainda mantêm dentro de si o opressor. Na verdade, temem a liberdade, na medida em que
hospedam o “senhor”.
117
Cf. Paulo Freire, ¿Extensión o comunicación? ICIRA, Santiago do Chile, 1969 [Extensão ou
comunicação?, trad. Rosiska Darcy de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971].
118
119
Cf. L. Althusser, op. cit.
Considerando esta questão, diz Althusser: Cette réactivation serait proprement inconcevable dans une
dialectique dépourvue de surdétermination. Op. cit., p. 116.
120
No capítulo anterior citamos a opinião de Guevara a este propósito. De Camilo Torres, disse Germano
Guzman: “Jogou-se inteiro porque entregou tudo. A cada hora manteve com o povo uma atitude vital de
compromisso, como sacerdote, como cristão e como revolucionário.” Germano Guzman, Camilo, el cura
guerrillero. Bogotá: Servicios Especiales de Prensa, 1967, p. 5.
121
Uma coisa são as necessidades de classe; outra, a “consciência de classe”. A propósito de “consciência de
classe”, cf. G. Lukács, Histoire et conscience de classe.Paris: Les Éditions de Minuit, 1960.
122
123
Cf. F. Fanon, op. cit.
Em conversa com um sacerdote chileno, de alta responsabilidade intelectual e moral, que esteve no
Recife em 1966, ouvimos dele que “ao visitar, com um colega pernambucano, várias famílias residentes em
Mocambos, de condições de miséria indiscutível, e ao perguntar-lhes como suportavam viver assim,
escutava sempre a mesma resposta: ‘Que posso fazer? Deus quer assim, só me resta conformar-me.’”
124
Importante a leitura de Erich Fromm, “The Application of Humanist Psychoanalysis to Marxist
Theory”, in Socialist Humanism. Anchor Books, 1996; e Reuben Osborn, Marxismo y psicoanálisis.
Barcelona: Ediciones Península, 1967.
125
126
El diário de Che en Bolívia. México: Siglo XXI, pp. 131-52.
127
Cf. Martin Buber, Yo y tú. Buenos Aires: Nueva Visión, 1969.
128
Ernesto Guevara, Relatos de la guerra revolucionaria. Buenos Aires: Editora Nueve 64, 1965.
129
Id., ibid., p. 81. (Os grifos são nossos.)
A propósito da defesa do homem frente a “sua morte”, “depois da morte de Deus”, no pensamento
atual, cf. Mikael Dufrenne, Pour L’homme. Paris: Éditions du Seuil, 1968.
130
“A maioria deles, diz Gerassi, referindo-se aos camponeses, se vende ou vende membros de sua família
para trabalharem como escravos, a fim de escapar à morte. Um jornal de Belo Horizonte descobriu nada
menos de 50 mil vítimas (vendidas a Cr$ 1.500,00), e o repórter, continua Gerassi, para comprová-lo,
comprou um homem a sua mulher por 30 dólares. ‘Vi muita gente morrer de fome’, explicou o escravo, ‘e
131
por isto não me importo de ser vendido’. Quando um traficante de homens foi preso em São Paulo, em
1959, confessou seus contatos com fazendeiros de São Paulo, donos de cafezais e construtores de edifícios,
interessados em sua mercadoria — exceto, porém, as adolescentes, que eram vendidas a bordéis.” John
Gerassi, A invasão da América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 120.
O.P. Chenu, Temoignage chrétien, abril de 1964. Apud André Maine, Cristianos y marxistas después del
concilio. Buenos Aires: Editorial Arandu, 1965, p. 167.
132
133 Enquanto processo, o testemunho verdadeiro que, ao ser dado, não frutificou, não tem, neste momento
negativo, a absolutização de seu fracasso. Conhecidos são os casos de líderes revolucionários cujo
testemunho não morreu ao serem mortos pela repressão dos opressores.
Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, diretor da Faculdade de Medicina
de uma universidade cubana, disse: “A revolução implica três ‘P’ — Palavra, Povo e Pólvora. A explosão da
Pólvora, continuou, aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em busca, na ação, de sua
libertação.”
Pareceu-nos interessante observar, durante a conversação, como este médico revolucionário insistia na
palavra, no sentido em que a tomamos neste ensaio. Isto é, palavra como ação e reflexão — palavra como
práxis.
134
135
O antagonismo entre ambas se dá na situação objetiva de opressão ou de licenciosidade.
Na verdade, o que faz que a estrutura seja estrutura social, portanto, histórico-cultural, não é a
permanência nem a mudança, tomadas absolutamente, mas a dialetização de ambas. Em última análise, o
que permanece na estrutura social nem é a permanência nem a mudança, mas a duração da dialeticidade
permanência-mudança.
136
COORDENAÇÃO EDITORIAL
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