A DESCOLONIZAÇÃO DAS MENTES
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Na década de 1970, Paulo Freire assessorou vários países da África
que haviam se libertado da colonização europeia, cooperando na
implantação de seus sistemas de ensino pós-coloniais. O processo de
descolonização e reconstrução nacional tinha por base de suas
políticas o princípio da autodeterminação e a valorização da sua
cultura e da sua história.
O trabalho de Paulo Freire na África foi decisivo para a sua trajetória,
não só por reencontrar-se com sua própria história e por empreender
novos desafios no campo da alfabetização de adultos, mas,
principalmente, pelo encontro com a teoria e a prática desse
extraordinário pensador e revolucionário que foi Amílcar Cabral, por
quem Paulo Freire nutria enorme apreço. Em suas obras, ele faz
frequentes referências ao pensamento de Amílcar Cabral. A África,
berço da humanidade, foi para Paulo Freire uma grande escola.
Amílcar Cabral sustentava que a libertação nacional é um ato
cultural. A libertação política não elimina a presença do colonizador.
Ele continua na cultura imposta e introjetada no colonizado. O
trabalho educativo pós-colonial se impõe como tarefa de descolonização das mentes e dos corações. Assim como é necessária a luta
social para a descolonização política, também é necessária a luta por
uma outra educação, libertada dos traumas coloniais e que consiga
descolonizar as mentes.
Os autores deste livro mostram as convergências entre Amílcar
Cabral e Paulo Freire na luta intransigente contra todas as formas de
opressão, em defesa da autoconscientização, portanto da descolonização das mentes, e da conquista da autonomia pelos(as)
próprios(as) oprimidos(as), e os nexos mais profundos entre o legado
de ambos, especialmente no que diz respeito à Razão Revolucionária, tanto em seu sentido político quanto em seu significado
gnosiológico, epistemológico e pedagógico.
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL
A descolonização das mentes
José Eustáquio Romão
Moacir Gadotti
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AMÍLCAR CABRAL
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PAULO FREIRE E
AMÍLCAR CABRAL
A descolonização das mentes
José Eustáquio Romão
Moacir Gadotti
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EXPEDIENTE
Instituto Paulo Freire
Paulo Freire
Moacir Gadotti
Ângela Antunes
Paulo Roberto Padilha
Alexandre Munck
Francisca Pini
Anderson Alencar
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Presidente de Honra
Presidente
Vice-Presidente
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Coordenador da Unifreire
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Kollontai Diniz Identidade Visual e
Projeto Gráfico
Isis Brandão Diagramação e Arte-final
Carlos Coelho Revisor
Emília Silva Produtora Gráfico-Editorial
Cromosete Impressão
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Romão, José Eustáquio
Paulo Freire e Amílcar Cabral : a descolonização das mentes / José Eustáquio
Romão, Moacir Gadotti. — São Paulo : Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2012.
ISBN: 978-85-61910-85-3
1. Autoconscientização 2. Cabral, Amílcar, 1921-1973 3. Educação
- Filosofia 4. Freire, Paulo, 1921-1997 5. Política e cultura 6. Política
educacional 7. Sociologia educacional I. Gadotti, Moacir. II. Título.
12-05324
CDD-306.43
Índice para catálogo sistemático:
1. Cabral, Amílcar : Sociologia educacional 306.43
2. Freire, Paulo : Sociologia educacional 306.43
Creative Commons
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@editoraipf
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Sumário
Apresentação
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Primeira Parte - PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL
Razões Revolucionárias e a descolonização das mentes
José Eustáquio Romão
13
1. Razão e Revolução
16
2. Amílcar Cabral e a Revolução
23
3. Paulo Freire e a Revolução
34
4. Observações finais
48
Segunda Parte - PAULO FREIRE NA ÁFRICA
Encontro da pedagogia freiriana com a práxis política de Amílcar Cabral
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Moacir Gadotti
57
1. A África e a radicalização do pensamento de Freire
59
2. Um reencontro com sua própria história
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3. Confusão entre língua e linguagem
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4. Linguagem, cultura e poder
78
5. Amílcar Cabral: humanista, revolucionário,
pedagogo e educador da revolução
85
6. Última saída para a libertação nacional
90
7. Educação e revolução
95
8. Descolonização das mentes e dos corações
101
9. Direito à educação emancipadora hoje
107
Referências
111
Anexo
121
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Apresentação
Este pequeno livro que a Editora e
Livraria Instituto Paulo Freire (Ed,L)
entrega aos leitores em 2012 é uma
das expressões do tema proposto para
o interstício de dois encontros internacionais do Fórum Paulo Freire. Ou
seja, desde 1998, quando se realizou
o primeiro, em São Paulo, a cada dois
anos, vem se realizando esse evento
internacional, cada vez em um país
diferente: em 2000 foi em Bolonha
(Itália); em 2002, em Los Angeles
(Estados Unidos); em 2004, na cidade do Porto (Portugal); em 2006,
em Valência (Espanha); em 2008, de
novo no Brasil, na cidade de São Paulo e, finalmente, em 2010, em Praia,
capital de Cabo Verde.
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Apresentação
De cada encontro resultou uma “Carta”, firmada pelos
representantes dos diversos Institutos Paulo Freire, com uma
temática central a ser desenvolvida no intervalo do biênio.
No último Encontro Internacional do Fórum Paulo
Freire, realizado, pela primeira vez, em solo africano, o
tema da “Carta de Praia de Cabo Verde” foi o da “Descolonização das Mentes”. Este tema aparece na obra de Paulo
Freire como “Conscientização” e, na de Amílcar Cabral – o
grande líder e mártir da independência de Cabo Verde e
Guiné-Bissau –, como “Africanização dos Espíritos”.
Como é orientação costumeira do Fórum Paulo Freire,
o tema de um Encontro Internacional deve ser a preocupação axial das unidades (institutos, cátedras livres, grupos
de estudo etc.) da comunidade freiriana espalhadas pelo
mundo, durante o biênio, ou seja, ele deve estar presente
nos levantamentos, estudos, pesquisas e intervenções, até a
realização do subsequente Encontro Internacional, quando, então, é proposto outro tema. Assim, “Descolonização
das Mentes” é o mote dos freirianos de todo o mundo, até
setembro de 2012, quando deverá se realizar o VIII Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, novamente em
Los Angeles, nos Estados Unidos.
Por isso, “Descolonização das Mentes”, como foi afirmado no início deste prefácio, constitui o assunto central
desta pequena obra, composta por dois textos, escritos por
dois fundadores do Instituto Paulo Freire.
O primeiro deles, de autoria de José Eustáquio Romão,
centra-se no conceito de “Razão Revolucionária”. O autor
rastreia o conceito de Razão (racionalidade) e de Revolução
em quase todos os textos de Paulo Freire e de Amílcar Cabral, para verificar as aproximações e os distanciamentos, as
convergências e as diferenças, ou até mesmo as divergências,
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
entre o legado freiriano e o pensamento e a ação do líder da
independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau.
Um dos aspectos para o qual este texto chama a atenção
é a constatação de que ambos, Freire e Cabral, são atores da
práxis, isto é, homens comprometidos com o pensamento
crítico. Para eles, o conhecimento só pode ser legitimado,
epistemologicamente, se tiver origem na prática e, politicamente, se se tornar instrumento de intervenções mais qualificadas (mais conscientes) na mesma prática.
Além disso, para eles, a revolução é permanente, porque
a libertação definitiva não vem com a proclamação da independência política de uma nação, tampouco com sua libertação econômica; ela só se plenifica quando o povo dessa
nação pós-colonial se liberta das racionalidades que os colonizadores deixaram profundamente enraizadas no solo da
consciência dos “ex-colonizados”. É que o sistema simbólico, como demonstrou Friedrich Engels na obra Origem da
família, da propriedade privada e do Estado (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1975), é mais lento, anda mais devagar do que os sistemas produtivo e associativo e, portanto,
os fundamentos, os princípios, os valores, as projeções e
os ideais decalcados nas mentes colonizadas pelo opressor,
acabam por transformar o oprimido em hospedeiro de seu
próprio opressor. A partir daí, ele lê o mundo com os olhos
e a partir da perspectiva da visão de mundo do opressor,
ficando muito mais difícil completar-se a tarefa da libertação. Daí, o texto encaminha a conclusão de que a “Razão
Revolucionária” tem um nexo profundo com a descolonização das mentes e com o processo de conscientização, que
é sempre processo de autoconscientização.
Já o segundo texto, de autoria de Moacir Gadotti, busca
as relações mais gerais entre o pensamento e a ação de Paulo
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Apresentação
Freire com a luta e as reflexões de Amílcar Cabral. Ao rastrear
a obra do educador pernambucano, destaca sua peregrinação
concreta e reflexiva pelo continente africano, já que ele trabalhou ou manteve relações muito próximas com várias nações
daquele continente: Cabo Verde, Guiné-Bissau, Nigéria, São
Tomé e Príncipe, Tanzânia, Zâmbia etc.
Gadotti chama a atenção para um aspecto muito interessante do movimento dialético permanente do pensamento e da ação freirianas: é no momento em que trabalha para o Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra,
que seu pensamento mais se radicaliza e mais se aproxima
do materialismo dialético, levando-o a estabelecer relações
mais profundas entre processos simbólicos (alfabetização
e pós-alfabetização, por exemplo) e processos produtivos,
ratificando a determinação econômica em última instância
– princípio axial do pensamento marxista.
A colaboração de Paulo Freire para a construção de
identidades nacionais das jovens nações africanas – algumas delas, como é o caso de Cabo Verde e Guiné-Bissau,
ainda lutando por sua independência –, faria com que sua
pedagogia ganhasse uma forte conotação política, como
também enfatiza o texto de Gadotti.
Igualmente a Amílcar Cabral, como está destacado no
texto de Romão, Paulo Freire percebeu a relação entre o
processo de libertação das colônias africanas portuguesas
e a “Revolução dos Cravos”, que libertaria Portugal da ditadura salazarista em 25 de abril de 1974. Amílcar vai um
pouco mais longe, ao perceber que a luta anti-imperialista
ajudaria o povo português na sua pugna pela redemocratização – a longeva ditadura de Salazar fora implantada em
Portugal desde 1933 –, mas o contrário, obrigatoriamente, poderia não ocorrer. Segundo ele, a redemocratização
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
portuguesa não garantia a descolonização, até porque o
governo democrático no solo lusitano poderia continuar
patrocinando a empresa colonial.
Outro aspecto dialético que merece destaque na análise de Gadotti é que Paulo Freire reconheceu-se na cultura
africana, pois ao entrar em contato com aquela realidade,
registrou impressões de “estar voltando para casa”. Aprendeu com a África, enquanto deu uma dimensão mundial à
sua pedagogia do oprimido.
As reflexões que Paulo Freire e Amílcar Cabral desenvolveram sobre língua e linguagem e sua relação com a cultura,
a educação e o poder também foram sublinhadas no texto de
Gadotti que, nesse particular, destaca uma diferença significativa de interpretação entre ambos, provocando, como resultante, uma divergência, também, em relação à língua a ser
trabalhada na alfabetização. Esta questão merece ser verificada
com mais cuidado no texto deste livro.
Outros aspectos relacionais poderiam ser destacados
em ambos os textos de estudos comparados que compõem
esta obra, mas, com isso, corremos o risco de o(a) potencial
leitor(a) contentar-se com a leitura deste prefácio, abandonando a riqueza das reflexões dos textos originalmente
escritos para compô-la.
Por isso, preferimos parar por aqui, convidando a todos, independentemente de serem freirianos, à leitura deste
livro profundamente provocador e útil para todo e qualquer educador, bem como para o público em geral, porque
suas reflexões são oportunas para todos(as) os(as) que estão
comprometidos(as) com a construção de sociedades mais
humanas, mais justas e mais democráticas.
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Os autores
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Primeira parte
PAULO FREIRE E
AMÍLCAR CABRAL
Razões Revolucionárias e a descolonização das mentes
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José Eustáquio Romão1
Aparentemente, não há semelhança
entre as contribuições de Amílcar Cabral e de Paulo Freire para o processo
civilizatório, já que o primeiro foi um
educador e o segundo o líder da independência de dois países (Cabo Verde
e Guiné-Bissau). Contudo, ambos
convergiram na luta intransigente
contra todas as formas de opressão,
em defesa da autoconscientização,
portanto da descolonização das mentes, e da conquista da autonomia
pelos(as) próprios(as) oprimidos(as).
Coincidentemente, suas propostas
1
Doutor em Educação. Diretor Fundador do
Instituto Paulo Freire. Diretor do Programa
de Mestrado e Doutorado em Educação da
Universidade Nove de Julho (Uninove).
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Primeira parte
encontraram-se no solo da África, na década de 1970, durante o processo de independência dos dois mencionados
países africanos, um usando os instrumentos da guerra anticolonial e morrendo pela causa e o outro usando a força
da educação básica como instrumento de autoconscientização dos(as) ex-colonizados(as). Esta parte tenta estabelecer os nexos mais profundos entre o legado de Paulo Freire
e o de Amílcar Cabral, especialmente no que diz respeito à
Razão Revolucionária, tanto em seu sentido político quanto em seu significado gnosiológico e epistemológico.
Para os que conhecem, mesmo que superficialmente,
a vida e a obra de Paulo Freire e a de Amílcar Cabral, não
é difícil perceber as convergências que se podem estabelecer entre eles, seja por sua contribuição para o processo de libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau, seja por
suas ideias.
Nos anos anteriores ao assassinato de Amílcar Cabral,
em 20 de janeiro de 1973, ele foi o intérprete das aspirações dos povos da Guiné e das ilhas de Cabo Verde, colonizados pelos portugueses em pleno século 20. Foi, ao mesmo tempo, o verdadeiro artesão da independência dessas
populações, cujo momento culminante de luta pode ser
apontado em 19 de setembro de 1956, com a criação do
Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo
Verde (PAIGC), que acabou proclamando a República da
Guiné, em 2 de outubro de 1958, e que logrou obter a
assinatura do Acordo de Argel, em 26 de agosto de 1974,
quando Portugal reconheceu a independência de Guiné-Bissau e reafirmou o direito do povo das ilhas de Cabo
Verde à autodeterminação e à independência.
Amílcar não pôde assistir à libertação completa dos
dois países pelos quais lutara, uma vez que apenas um ano
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
depois de sua morte, Portugal finalmente reconheceu a
Guiné-Bissau como um país soberano.
Paulo Freire, mesmo que não tenha conhecido Amílcar
Cabral pessoalmente, colaborou ativamente para a
autoafirmação dos dois países nascidos da luta do PAIGC,
convencido de que a educação, embora não pudesse (não
pode mesmo) tudo, sem ela não era (não é) possível a plena
afirmação da própria soberania dos países libertados.
Neste texto, quero demonstrar uma das convergências
entre o legado do líder da independência dos dois países
africanos e a obra do educador pernambucano: a que diz
respeito a seus conceitos de revolução, não apenas no sentido da luta armada contra o colonizador para a afirmação
de uma nacionalidade autônoma e soberana, mas também
pela ideia de que nenhum povo, mesmo no período pós-colonial, consegue se livrar de seu colonizador, enquanto
não se liberta também de seus referenciais teóricos, de suas
premissas, de seus fundamentos e de seus paradigmas, enfim, de sua “Razão”2. Ambos, como demonstrarei, conseguiram enxergar a necessidade da libertação cognitiva, da
superação da racionalidade imbricada pela colonialidade3;
em suma, ambos perceberam que não existe libertação sem
a “descolonização das mentes”, como dizia Amílcar Cabral.
E, neste sentido, mais do que uma transformação das estruturas econômicas, políticas e sociais, a revolução tem de
estar presente na própria elaboração da “ontologia” (teoria
do ser), da “gnosiologia” (produção do conhecimento) e
2
3
Grafaremos com letra maiúscula por se tratar de uma específica visão
de mundo, como se poderá observar mais adiante neste texto.
Conceito desenvolvido por Aníbal Quijano (2005) e por Walter
Mignolo (2003).
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Primeira parte
da “epistemologia”4 (teoria do conhecimento), ou seja, na ciência do ser humano, nas elaborações e representações humanas a respeito dos seres, dos fenômenos e dos processos e na
que analisa as formas de produção do próprio conhecimento
humano. E isso deve ser examinado em qualquer sociedade,
estando ela tanto em processo de libertação quanto em afirmação e consolidação de sua soberania instituída.
1. Razão e Revolução
Por “Razão” entendemos racionalidade de um grupo, construída a partir de suas trajetórias históricas, de seus condicionamentos sociais. Em outros termos, Razão (a partir de
agora, sem aspas) significará, neste texto, visão de mundo,
em geral adstrita a uma classe social, como explicou Goldmann (1978, p. 29):
[...] toda a vida psíquica está estreitamente vinculada à práxis; quer ela se apresente sobre o plano individual, quer sobre o plano coletivo, sob a forma de realidades dinâmicas
orientadas para um equilíbrio coerente entre o sujeito e o
meio ambiente; isto é, sob processos de estruturação; enfim,
que no interior desses processos globais da vida psíquica, e
no interior desta, o pensamento, constituem, por seu turno,
elas também totalidades relativas, processos de estruturação
dirigidos para estado de equilíbrios significativos e coerentes.
4
As aspas em “ontologia” e em “epistemologia” se justificam porque
somente por força de expressão, ou mais precisamente por vício da
colonialidade, se pode falar em ontologia e em epistemologia. É
que tanto Paulo Freire quanto Amílcar Cabral, referenciados na Razão Dialético-Dialógica, não concebiam o ser como estrutura, mas
como processo, assim como tinham dificuldade de aceitar a “teoria
do conhecimento”, já que todos os conhecimentos são “perspectivados”, isto é, são condicionados pela perspectiva de cada enunciante.
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
No caso privilegiado de grupos orientado para uma organização global da sociedade, chamamos estas estruturações
psíquicas de visões de mundo5.
E não deixando dúvidas sobre serem as classes sociais
os únicos grupos que, ao longo da história, são capazes de
desenvolver visões de mundo, afirma:
[...] certos grupos apresentam um caráter privilegiado tanto
por sua vida consciente, quanto por sua práxis social e histórica. São aqueles cuja práxis é orientada para uma estruturação global da sociedade, isto é, para certo equilíbrio de
conjunto dos grupos constitutivos da sociedade total e entre
ela e o mundo físico.
[...]
Parece-nos também estabelecido, pelo menos no que diz respeito a um longo período da história moderna, são as classes
sociais que constituem esses grupos privilegiados. (GOLDMANN, 1978, p. 25)6.
5
6
“[...] toute vie psychique est étroitemente liée à la praxis; qu´elle se
présente ensuite sur le plan individuel comme sur le plan collectif
sous la forme de réalités dynamiques orientées vers un équilibre
cohérent entre le sujet et le milieu ambiant; c´est à dire de processus
de structuration; enfin, qu´à l´interieur de ces processus globaux la
vie psychique, et a l´interieur de celle-ci la pensée, constituent elles
aussi a leur tour des totalités relstives, des processus de structuration
dirigés vers des états d´équilibre significatifs et cohérents.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
“[...] certains groupes présentent um carctère privilégié tant par leur vie
consciente que par leur praxis sociale e historique. Ce son ceux dont la
praxis est orientée ver une structuration de globale de la société, c´està-dire ver un équilibre d´ensemble entre les groupes constitutifs de la
société totale et entre celle-ci et le monde physique.
[...]
Il nous paraît aussi établie qu´au moins en ce qui concerne une très
longue période de l´histoire moderne, ce sont les classes sociales qui ont
constitué ces groupes privilégiés.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
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Primeira parte
Somente as classes sociais desenvolvem visões de mundo, enquanto “um ponto de vista coerente e unitário sobre
o conjunto da realidade” (GOLDMANN, 1959, p. 46).
Mais especificamente, a visão de mundo não é uma entidade metafísica e abstrata, mas “um sistema de pensamento
que, em certas condições, se impõe a um grupo de homens
que se encontram em situações econômicas e sociais análogas, isto é, a certas classes sociais” (GOLDMANN, 1959,
p. 47). Este autor conclui que, por ser o número de classes
sociais não muito grande, é possível fazer uma tipologia das
visões de mundo ao longo da história do Ocidente. Ainda
que seja muito útil esta possível tipologia, a discussão de
sua formulação escapa aos limites deste texto.
Ainda que produtos de elaborações coletivas, sociais, ou
“transindividuais”, como dizia Goldmann (1978, p. 47), não
se pode esquecer que as visões de mundo são sentidas pelos
intelectuais e pelos artistas até suas últimas consequências
e, por isso, são eles que as formulam e as exprimem
individualmente, lançando mão da linguagem conceptual
ou sensível. Ou seja, a criação cultural é social e sua expressão
é o resultado de uma organização individual coerente e
oportuna: coerente com a visão de mundo da classe social
que a criou e oportuna de acordo com os interesses históricos
dessa mesma classe em contextos específicos.
Ao que Marx chamou de “consciência de classe” e Lucien Goldmann denominou “visão de mundo”, preferimos
o termo “Razão”, tanto por sua dimensão ontológico-epistemológica quanto por sua dimensão política.
Enquanto explicações globais e totalizantes para todos
os problemas postos em determinado contexto histórico-social, as consciências de classe, ou as visões de mundo,
ou Razões, constituem tanto as formas perspectivadas de
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conhecimento e de explicação da realidade (“ontologia”7)
como os fundamentos dessas formas explicativas
(“epistemologia”8). Ao mesmo tempo, elas implicam, também, projetos de intervenção, para a manutenção ou para
a transformação das estruturas vigentes, configurando sua
dimensão política. Além disso, se tomado no significado
que lhe conferiu o senso comum, como, por exemplo, na
expressão “ele tem razão”, o termo é, estratégica e taticamente, viável para designar a leitura crítica do mundo realizada pelos oprimidos e pelas oprimidas, em oposição às
formas hegemônicas de leitura e interpretação do mundo.
Ora, como cada explicação global e totalizante da realidade é uma razão a partir de uma perspectiva histórico-social, o mais correto seria falar de Razões, no plural,
ainda que as perspectivas hegemônicas prefiram sempre o
definido e o singular: “a Razão”. Neste sentido, o que está
em crise não é a Razão, mas um determinado tipo de consciência, uma específica visão de mundo: a Razão Burguesa.
Inspirado em Paulo Freire, tenho desenvolvido a ideia
de que, ao ler o mundo criticamente, os grupos sociais
oprimidos – e somente eles podem ler o mundo criticamente – desenvolvem sua própria consciência. Por isso,
somente os oprimidos e as oprimidas podem desenvolver a
7
8
Aqui, com aspas porque somente de uma forma imprópria se pode
falar em ontologia sob uma perspectiva dialético-dialógica. Os materialistas dialéticos, especialmente Lukács (2010), falam de uma “ontologia
do ser social”, para escaparem das armadilhas metafísicas.
Idem. Cabe acrescentar apenas que, além de sua dimensão metafísica, “epistemologia” implica certa arrogância gnosiológica, no
sentido da possibilidade de uma teoria do conhecimento. Ela seria
arrefecida se, pelo menos, a Razão Estrutural admitisse usar o termo
no plural. No entanto, sob esta forma, ele carregaria uma contradição in limine.
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Primeira parte
Razão Revolucionária. Corroborando esta afirmação e estabelecendo uma distinção muito importante entre a consciência crítica das camadas dominadas e a dos segmentos
intelectuais, não é de todo dispensável lembrar Darcy Ribeiro (1978, p. 165):
Entretanto, ao contrário da consciência crítica das camadas
subalternas e oprimidas, que encontra em sua experiência
existencial meios de controlar a própria alienação, a
consciência crítica da intelectualidade mais avançada está
sempre sujeita a alienar-se.
[...] A consciência crítica no plano intelectual, carecendo
de amarras com a realidade palpável, leva, frequentemente, a atitudes de puro desespero. É o caso dos intelectuais
damnés9, em luta contra tudo que seja simbólico da ordem
tradicional; dos ultra-radicais [sic] que se realizam através de
polêmicas e do desvario voluntarista, ou dos céticos e arrivistas que se afundam no cinismo e na frivolidade.
O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro concluiu com
a ideia de que o nível de consciência crítica necessário à
revolução só pode ser alcançado mediante a combinação
de esforço teórico e militância transformadora, pois é esta
combinação que permite estabelecer nexos profundos entre
a “consciência arcaica” (RIBEIRO, 1978) das classes subalternizadas e a formulação científica da Revolução.
Em uma escola da sociedade burguesa, ao fazerem a
leitura da palavra, por exemplo, os filhos dos grupos oprimidos são informados de que estão fazendo “ciência”,
quando, na verdade, fazem leitura da leitura (burguesa) de
mundo, portanto, leitura de uma determinada perspectiva,
de uma determinada visão de mundo, de uma determinada
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Em francês, no original: condenados, desesperados, malditos.
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
Razão. Em suma, desenvolvem (cons)ciência, como dizia
Paulo Freire, que é uma leitura de mundo de segundo grau
e, por isso mesmo, uma leitura alienada da realidade.
Então, o que seria uma Razão Revolucionária? É o que
irei demonstrar a partir das reflexões e propostas de Amílcar Cabral e de Paulo Freire, no contexto específico do processo de libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau, e que
representam expressões individuais originais de uma visão
de mundo, de uma Razão de classes sociais oprimidas.
Mesmo explicitado o conceito de Razão, falta ainda explicar, nem que seja sumariamente, o sentido que será dado
ao termo “Revolução”10 e seus derivados, neste trabalho.
Por Revolução, entendemos a transformação estrutural
de uma determinada realidade ou concepção, apresentando algumas características específicas, sem as quais ela se
confunde com a reforma, com mudanças episódicas ou
conjunturais, sem alterar, ou melhor, sem substituir os fundamentos de uma determinada sociedade ou pensamento
que sobre ela foi elaborado e instituído.
Platão entendia o termo como um eterno retorno às
origens, gerando uma espécie de círculo infinito de acontecimentos sucessivos, mas que sempre retornavam ao início.
Derivava-a de “re-evolução”, ou seja, evolução que retorna
ao ponto de partida. Não é tampouco neste sentido que
se toma o termo aqui. A Revolução é profunda, de longa
duração, como dizia Braudel (1972), e substitui todos os
componentes de uma determinada formação social, em todos os seus níveis.
10 Aqui também grafada com maiúsculas, por se tratar de um movimento
específico e raro na história da humanidade, porque somente os oprimidos e as oprimidas, em situações muito específicas, conseguem pensar e agir revolucionariamente.
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Primeira parte
No campo político, portanto, ontologicamente – naquele sentido social que lhe conferiu Lukács – uma práxis
se torna revolucionária quando ela não pode abandonar
a imperatividade de criar, coletivamente, transindividualmente, uma nova ordem econômica, política, social e cultural, mas sempre a partir da ordem social instituída, com
a qual estabelece uma relação dialética (de superação), em
que as “situações limites” se tornam “inéditos viáveis”11.
No campo teórico, uma concepção, uma Razão se torna Revolucionária quando busca o reconhecimento dos
diversos lugares de enunciação do conhecimento, não o
consenso, seja de suas próprias proposições, seja as de outrem, em geral resultantes de elaborações das classes hegemônicas que “hospedou”12 em seu campo gnosiológico.
11 Paulo Freire desenvolveu o conceito de “inédito viável” em quase
todas as suas obras, tomando-o de empréstimo de um dos mais
importantes filósofos brasileiros, conforme explica em Pedagogia
do oprimido: “O Prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante
lucidez, o problema das ‘situações-limites’, cujo conceito aproveita,
esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente em Karl Jaspers. Para Vieira Pinto, as ‘situações-limites’
não são ‘o contorno infranqueável onde terminam as possibilidades,
mas a margem real onde começam todas as possibilidades’; não são
‘a fronteira entre o ser e o nada, mas a fronteira entre o ser e o ser
mais” (mais ser) (FREIRE, 1978c, p. 106, nota de rodapé).
12 Paulo Freire criou a imagem do “hospedeiro” em Pedagogia do oprimido para exprimir a dominação das mentes, a alienação que só
pode ser superada pelo(a) próprio(a) oprimido(a): “O grande problema está em como poderão os oprimidos, que ‘hospedam’ o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos,
da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram ‘hospedeiros’ do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade
na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível
fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
Ou seja, uma Razão se torna Revolucionária quando ela
assume um compromisso incondicional com a democracia cognitiva, não apenas no sentido da socialização dos
conhecimentos elaborados e acumulados pela humanidade, mas, também, no do reconhecimento de todos os conhecimentos desenvolvidos por todas as formações e por
todos os grupos sociais, principalmente, pelas formações e
pelos grupos oprimidos.
Considerando a prolífera produção de Amílcar Cabral
e de Paulo Freire, bem como os limites deste trabalho, destacaremos apenas alguns exemplos de sua práxis e de sua
Razão revolucionárias.
2. Amílcar Cabral e a Revolução
Ao examinar-se a obra escrita por Amílcar Cabral, depara-se, imediatamente, com algo inusitado: um homem prático, ativo, guerrilheiro, que escreve sobre poesia. É que,
na vasta obra escrita que deixou, ele desenvolveu reflexões
sobre temas que tratam desde a luta pela independência
até os que falam sobre a poesia produzida em Cabo Verde.
Se não se tiver em conta o conceito de Razão enquanto
projeto totalizante de uma nova sociedade, ao qual nenhum
tema humano é indiferente, pouco se compreenderia sobre
a dedicação de Amílcar Cabral à literatura, especialmente à
poesia. Contudo, são exatamente suas considerações sobre
a poesia cabo-verdiana que abrem o volume 1 de L´arme de
la théorie. Mesmo em se tratando de uma forma tão pessoal
de expressão cultural, a poesia constitui para ele o produto
opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a
dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos,
como manifestações da desumanização.” (FREIRE, 1978c, p. 32).
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Primeira parte
de uma criação coletiva, transindividual:
A poesia, como toda manifestação artística e malgrado todo
seu caráter individual, próprio à personalidade do poeta, é
necessariamente um produto do meio em que ela toma sua
expressão. Em outras palavras, por maior que seja a própria
influência do indivíduo sobre a obra que ele produz, esta é
sempre, em última análise, um produto do complexo social onde
ela foi engendrada (CABRAL, 1975b, p. 26, grifo nosso).
Outra característica inerente à consciência revolucionária é a admissão do princípio do sujeito transindividual
da criação econômica, política, social, científica, artística,
religiosa etc. Somente o sujeito coletivo é capaz de transformações profundas, revolucionárias. E mesmo em criações
idiossincráticas por excelência, como é o caso da poesia,
o sujeito individual pode ter um peso específico, mas os
traços individuais expressos na obra jamais são suficientes
para explicar o significado profundo da produção poética. É isto que Cabral demonstra, no mesmo texto, explicitando como a poesia cabo-verdiana deixou de ser uma
expressão colonizada, para se tornar um instrumento da
independência do país e que, a partir da publicação da revista Claridade, transformou-se em uma manifestação do
próprio nacionalismo resistente à colonização. Amílcar Cabral viu no título do periódico literário a expressão de uma
intencionalidade de ruptura com a obscuridade anônima e
alienada da poesia colonizada.
Na mesma obra, Amílcar Cabral fez uma lúcida análise do
colonialismo português, considerando-o como um subproduto do imperialismo – etapa monopolista do Capitalismo:
[...] como foi possível a Portugal, país subdesenvolvido e atra24
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sado, manter suas colônias, malgrado a partilha de que o mundo foi objeto [pelas grandes potências]?
O colonialismo português sobreviveu malgrado a divisão da
África realizada pelas potências imperialistas no final do século
XIX, porque a Grã-Bretanha sustentou as ambições de Portugal que, sobretudo após o Tratado de Metwen (1703), tornou-se uma semi-colônia britânica. (CABRAL, 1975b, p. 94)13.
Aqui cabe um parêntese historiográfico: abordagem
semelhante pode ser dada à independência do Brasil.
Durante muito tempo, os historiadores de esquerda não
conseguiam explicar a independência do Brasil a partir da
“teoria da crise” na perspectiva do materialismo histórico.
Segundo esta concepção, a crise se dá por choques (dialéticos) entre os elementos internos de uma mesma totalidade
relativa. No caso específico da história das sociedades, o
avanço das forças produtivas no interior de uma formação
social acaba por provocar um distanciamento entre a infraestrutura econômica e a superestrutura jurídico-política.
Ou seja, as forças produtivas com seu avanço acabam por
se distanciar das relações de produção da situação anterior
ao avanço – quando tudo estava em equilíbrio –, desequilibrando a formação social. Assim, como explicar o processo
de independência do Brasil, se Portugal não esgotou as possibilidades do impulso capitalista inicial, perdendo terreno
e sendo dominada pela formação social inglesa que, esta
13 “[...] comment il a été possible au Portugal, pays sous-développé et
arriéré, de maintenir ses colonies malgré le partage dont çe monde
fut l´objet. Le colonialisme portugais est arrivé a survivre malgré
le partage de l´Afrique réalisé par les puissances impérialistes à la
fin du XIXe siècle, parce que la Grande-Bretagne avit soutenu les
ambitions du Portugal qui, sutout aprés le traité de Metwen (1703)
est devenu une semi-colonie britannique.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
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Primeira parte
sim, fez as pressões que culminariam na separação da Colônia do Império Português? Não cairia por terra a teoria
da crise marxista, uma vez que o motor do processo de ruptura do “pacto colonial”14 teriam sido elementos externos à
formação social portuguesa na sua relação com a formação
colonizada brasileira? É bom lembrar que com a dominação da Inglaterra sobre Portugal e, consequentemente, sobre sua colônia brasileira, este universo triangular de uma
formação social hegemônica (Inglaterra), uma formação
social dominante (Portugal) e uma formação social dominada (Brasil) tornaram-se partes constitutivas internas de
uma mesma totalidade relativa, agora mundializada pela
dominação da acumulação capitalista propriamente dita.
A análise lúcida de Cabral esclarece que a luta contra o
colonialismo português é mais ampla, é um verdadeiro embate contra o imperialismo como um todo. Esclarece ainda
que a derrota dos colonialismos das potências europeias e
o isolamento do “governo fascista de Portugal” (CABRAL,
1975b, p. 95) favoreciam a luta interna pela independência
de Cabo Verde e Guiné-Bissau.
As relações dialéticas entre o colonialismo português e
14 E, ao meu juízo, havia mesmo um pacto colonial, em que os segmentos das classes dominantes metropolitanas e coloniais exerciam
papéis específicos que os beneficiavam na relação de dominação
com as classes subalternas, especialmente com os escravos. Aqui
cabe recordar a tese de Décio Saes (1985) que afirma ter se desequilibrado o pacto a partir da transmigração da família real portuguesa
para o Brasil em 1808, porque alguns segmentos de classe protagonistas do pacto não conseguiram mais cumprir os papéis que
exerciam na época anterior, em benefício das classes dominantes.
A nobreza portuguesa, por exemplo, não tinha mais como cumprir
suas funções arrecadadoras e repressoras que favoreciam a extração
dual do excedente econômico dos escravos.
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o imperialismo capitalista em geral foram analisadas criticamente por Amílcar Cabral, que aprofundava uma formulação personalíssima da Razão Revolucionária, com um
raciocínio que vale a pena transcrever:
Nossos povos, que fazem a distinção entre o governo colonial
fascista e o povo de Portugal, não lutam nem querem lutar
contra o povo português. Lutamos e lutaremos até a vitória
final contra os colonialistas portugueses.
No entanto, a situação objetiva das grandes massas populares
de Portugal, oprimidas e exploradas pelas classes dirigentes
de seu país deve lhes fazer compreender as grandes vantagens
que, para elas, decorrerão da vitória dos povos africanos sobre
o colonialismo português. (CABRAL, 1975b, p. 96)15.
Mesmo vivendo e lutando em um contexto de guerra
anticolonial, Amílcar Cabral não cai na tentação da oposição entre duas ou mais formações sociais: Portugal versus
colônias. Mantém a clarividência a respeito da luta de classes, seja na metrópole, seja nas colônias. É esta clarividência
que o leva a concluir que a luta dos africanos, ainda que
eles fossem contra toda e qualquer forma de ditadura, não
era uma luta contra o fascismo português, mas contra o
colonialismo e, por via de consequência, contra o imperialismo capitalista. Completava o líder da independência dos
dois países africanos:
A destruição do fascismo em Portugal deverá ser a obra do
povo português; a destruição do colonialismo português
deve ser a obra de nossos próprios povos.
15 “Nos peuples, qui font la distinction entre le gouvernment colonial fasciste et le peuple du Portugal, ni luttent ni veule lutter contre le peuple
portugais. Nous luttons et luteterons jusqu´à la victoire finale contre les
colonialistes portugais.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
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Primeira parte
Estamos conscientes das relações íntimas entre o colonialismo e o fascismo português. Os colonialistas e a exploração
colonial estão, certamente, na base do fascismo português e
de seu fortalecimento.
Se a queda do fascismo em Portugal pode não conduzir ao
fim do colonialismo português – esta é a hipótese de alguns
líderes da oposição portuguesa – estamos convictos de que a
liquidação do colonialismo português provocará a destruição
do fascismo em Portugal. (CABRAL, 1975b, p. 96-97)16.
Amílcar Cabral percebe que a independência das colônias
africanas contribuiria para a liquidação do fascismo em Portugal, não valendo, obrigatoriamente, o contrário: a liquidação
do fascismo em Portugal, pelo próprio povo português, não
significaria, obrigatoriamente, a independência das colônias.
E por que não há uma correspondência obrigatória mútua
entre as duas lutas? Exatamente porque o colonialismo, enquanto movimento do processo de acumulação capitalista e
enquanto expressão histórica do imperialismo, é abalado por
qualquer vitória de colônias contra suas metrópoles. Ou seja,
a descolonização é uma luta contra o capitalismo e, portanto, contra uma de suas expressões políticas, que é o fascismo.
No entanto, a vitória das lideranças de oposição ao fascismo
português não significa a derrocada do imperialismo, porque
pode haver outras expressões (não fascistas) da acumulação
capitalista e, portanto, do imperialismo. De qualquer forma,
16 “La destruction du fascisme au Portugal devra être l´oeuvre du peuple
portugais; la destruction du colonialisme portugais doit être l´oeuvre
de nos propres peuples. La chute du fascisme au Portugal peut ne pas
conduire à la fin du colonialisme portugais – cette hypothèse étant
d´ailleurs énoncée par qulqu´uns des leaders de l´opposition portugaise – nous sommes sûrs que la liquidation du colonialisme portugais
entraînera la destruction du fascisme au Portugal.” (Tradução de José
Eustáquio Romão).
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ele não deixa de vislumbrar a possibilidade, pelas lutas específicas, da “criação das bases de uma amizade e colaboração
futura, a serviço dos interesses de nossos povos e do povo
português” (CABRAL, 1975b, p. 97).
Várias são as contribuições de Amílcar Cabral para a
reflexão e a práxis revolucionária, em seu país e fora dele.
Não são poucos os políticos e os teóricos que reconhecem
sua lendária contribuição, por exemplo, para o movimento
do pan-africanismo. No entanto, quando se entra no campo da teoria, há, também, o reconhecimento de uma lacuna, não de Cabral, mas do conhecimento sobre sua obra:
A contribuição de Cabral tem sido reconhecida de diferentes
maneiras. Entretanto, o mais importante reconhecimento
ainda está faltando: um estudo sobre sua singular contribuição à filosofia africana. Esta possibilidade está nascendo
agora em um bom número de universidades (LOPES in CABRAL, 2008, p. IX)17.
A análise desta contribuição não pode ser descolada da
intervenção na prática, uma vez que Cabral estava convencido de que “o valor da cultura como um elemento de resistência à dominação estrangeira se baseia no fato de que
a cultura é a vigorosa manifestação no plano ideológico ou
idealista da realidade física e histórica de uma sociedade
dominada” (CABRAL, 1973, p. 42)18.
17 “Cabral’s contribution has been recognized in different ways. However the most important recognition is still missing: a study of
his singular contribution to African philosophy. This prospect is
now taking root in a number of universities.” (Tradução de José
Eustáquio Romão).
18 “[...] the value of culture as an element of resistance to foreign domination lies in the fact that culture is the vigorous manifestation
on ideological or idealist plane of the physical and historical reality
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Primeira parte
Além de a cultura – entendida em seu sentido restrito
de superestrutura ideológica e idealista – ser um importante instrumento de intervenção na realidade (no caso,
uma realidade colonizada em processo de libertação), ela
só ganha legitimidade no interior de uma prática concreta,
como também dirá Paulo Freire.
Cabral considerava que, ao mesmo tempo em que é
produto da realidade, a cultura só se legitima ao retornar
à realidade, garantindo intervenções mais qualificadas de
seus sujeitos, como se pode observar em duas passagens de
sua elaboração teórica:
Cultura é, talvez, o produto dessa história, como a flor é o
produto da planta. Como história, ou porque ela é história, a
cultura tem como sua base material o nível das forças produtivas e do modo de produção. A cultura mergulha suas raízes
na realidade física do húmus ambiental em que se desenvolve
e reflete a natureza orgânica da sociedade, que pode ser mais
ou menos influenciada por fatores externos. A história nos
permite conhecer a natureza e a extensão dos equilíbrios e
conflitos (econômicos, políticos e sociais) que caracterizam a
evolução de uma sociedade; a cultura permite-nos conhecer a
síntese dinâmica que tem se desenvolvido e estabelecido, pela
consciência social, para resolver estes conflitos [econômicos,
políticos e sociais] no estágio de sua evolução. (CABRAL,
1973, p. 42)19.
of the society that is dominated or to be dominated.” (Tradução de
José Eustáquio Romão).
19 “Culture is, perhaps, the product of this history just as the flower is
the product of a plant. Like history, or because it is history, culture has
as its material base the level of the productive forces and the mode of
production. Culture plunges its roots into the physical reality of the
environmental humus in which it develops, and it reflects the organic nature of the society, which may be more or less influenced by
external factors. History allows us to know the nature and the extent
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Mesmo sob o domínio colonial, em que as elaborações
da visão colonizadora se tornam hegemônicas, as culturas oprimidas são indestrutíveis, segundo Amílcar Cabral
(1973, p. 61): “reprimidos, perseguidos, humilhados, traídos por determinados grupos que assumem compromisso
com o poder estrangeiro, sua cultura refugia-se nos vilarejos, nas florestas e nos espíritos das vítimas da dominação”20.
Outra aproximação possível entre Amílcar Cabral e Paulo Freire pode ser buscada na ação educacional de ambos.
Como educador, Cabral foi “supremo”, nas palavras de
Basil Davidson (2008, p. 14), que prefaciou a primeira edição de Unity and struggle: speeches and writings, completando que “não precisamos esperar o julgamento da história
para nos contar isso”, uma vez que “a evidência está disponível” nos textos que compõem essa obra. Nos seminários que
desenvolvia para os militantes do PAIGC, dava destaque especial aos estudos da realidade, alertando os companheiros
de luta para o fato de que as ideias, por melhores que sejam,
são inúteis, se não emergem da realidade em que se vive.
Dizia ele, na conferência na Primeira Conferência da Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina, que
ocorreu em Havana, de 3 a 12 de janeiro de 1966: “Estamos convencidos que qualquer revolução nacional ou social
que não esteja fundamentada no adequado conhecimento
of the imbalances and conflicts (economic, political and social) which
characterized the evolution of a society; culture allows us to know the
dynamic synthesis which have been developed and established by social
conscience to resolve these conflicts at each stage of its evolution, in the
search for survival and progress.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
20 “[...] repressed, pursued and humiliated and betrayed by some
groups that assume commitment with foreign power, their culture
refuges in the villages, in the forests and in the spirits of victims of
domination.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
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Primeira parte
de sua realidade, corre graves riscos de pobres resultados ou
de ser condenada ao fracasso” (CABRAL, 2008, p. 153)21.
Dois aspectos devem ser ressaltados desta preocupação enfática:
a) As teorias, mesmo que formuladas pelos intelectuais
mais respeitados, por mais elaboradas que sejam,
não têm validade nem legitimidade se não derivarem
da análise da realidade.
b) Por via de consequência, a realidade cotidiana que é,
aparentemente, simples, rotineira, prosaica, banal é,
na verdade, a fonte de toda grande teoria, desde que
examinada em seus nexos mais profundos, para além
da superfície flutuante dos fatos.
Aqui, há duas fortes convergências entre Cabral e
Freire: a precedência da prática sobre a teoria; a importância da leitura da realidade cotidiana, como forma de apreensão do conhecimento válido e legítimo.
Mas, a validade e a legitimidade de qualquer conhecimento
têm o caráter de uma “história local”, não de um projeto global. Por isso, ainda que favoráveis à revolução internacional,
até o fim do imperialismo no mundo, Cabral e Paulo Freire são dois teóricos-ativistas – “praxistas”, poderia ser dito, se
considerarmos a práxis como a interação entre teoria e ação –,
são “localistas”, no sentido de que cada transformação é genuína. Cabral exprimiu-o, de modo bastante explícito:
21 “We are convinced that any national or social revolution which is
not founded on adequate knowledge of this reality runs grave risks
of poor results or of being doomed to failure.” (Tradução de José
Eustáquio Romão).
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
Sabemos, de fato, que o desenvolvimento de um fenômeno
em movimento, qualquer que seja seu condicionamento externo, depende principalmente de suas características internas. Também sabemos que no nível político – por mais perfeita e atrativa que seja a realidade de outros – somente podemos
transformar verdadeiramente nossa própria realidade com
base em um detalhado conhecimento sobre ela e em nossos
próprios esforços e sacrifícios. (CABRAL, 2008, p. 154)22.
A afirmação é extremamente corajosa, se nos lembrarmos de que ela constou de um discurso de Cabral pronunciado em Cuba, cuja “exportação revolucionária” sempre
esteve na pauta de suas relações com colônias em processo
de libertação e com países amigos. É, também, uma proclamação curiosa, partindo de um líder que lutava pela independência de duas nações: Cabo Verde e Guiné-Bissau.
E ouvindo as frases subsequentes de seu pronunciamento,
certamente houve algum desconforto entre os presentes
no evento trilateral, muito mais para os próprios anfitriões
cubanos: “apesar da grande similitude entre nossos casos e
apesar de nossos inimigos serem idênticos, infelizmente ou
felizmente, a libertação nacional e a revolução social não
são mercadorias exportáveis” (CABRAL, 2008, p. 34)23.
22 “We know in fact that the unfolding behaviour (sic) (development)
of a phenomenon-in-motion, whatever its external conditioning,
depends on its internal characteristics. We also know that on the
political level – however fine and attractive the reality of others may
be – we can only truly transform our own reality, on the basis of a
detailed knowledge of it and our own efforts and sacrifices” (Tradução de José Eustáquio Romão.
23 “[...] however great the similarity between our cases and however
identical our enemies, unfortunately or fortunately, national liberation and social revolution are not exportable commodities.” (Tradução de José Eustáquio Romão).
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Primeira parte
3. Paulo Freire e a Revolução
Gostaria de iniciar estas sumárias observações sobre as possíveis relações entre Paulo Freire e a Revolução.
Primeiramente, vasculhei as principais obras24 de Paulo
Freire à procura do termo e dos significados a ele atribuídos.
Começo pela última obra, Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (1977). Aí, aparece a
palavra “revolução” sete vezes, sendo cinco em citações de
Amílcar Cabral e duas em apenas um parágrafo, que prefiro recuperar, para ter as próprias palavras de Paulo Freire
(1978a, p. 39)25:
O que me parece fundamental – e sem pretender idealizar
a revolução guineense, pois que ela vem sendo feita por homens e mulheres e não por anjos – é que valores que se vieram encarnando na dureza da luta, em que o PAIGC se forjou como vanguarda revolucionária do povo, continuam de
pé. E quanto mais consciente esteja esta vanguarda em torno
da necessidade de preservar sua comunhão com o povo, em
cujo seio selou a sua própria condição de vanguarda, tanto
mais a revolução será defendida das ameaças de distorção.
(FREIRE, 1978a, p. 39).
Aqui, dois aspectos merecem ser ressaltados: primeiramente que Paulo Freire vê a revolução como um fato
histórico e não algo transcendental, conduzido por super-homens, mas por sujeitos humanos, com seus limites e
suas potencialidades. Em segundo lugar, a clarividência de
24 Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido
(1973), Pedagogia da esperança (1992), Pedagogia da autonomia
(1997) e, evidentemente, Cartas à Guiné-Bissau (1978).
25 Em todas as citações das obras de Freire, foi mantida a ortografia em
que o texto original foi escrito.
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
que a revolução só é possível com a aliança das vanguardas
e das bases. Contudo, o mais interessante é que há uma
relação dialética entre as bases, que geram as vanguardas,
e entre as vanguardas e a iniciativa da relação permanente
com as bases que as geraram.
Em várias outras oportunidades, Paulo Freire desenvolveu a discussão entre estes dois sujeitos revolucionários –
bases (povo) e vanguardas (lideranças) –, demonstrando os
vícios do “basismo” e do “vanguardismo”, como faces da
mesma moeda antirrevolucionária.
É ainda em Cartas à Guiné-Bissau que Paulo Freire faz uma
diferenciação interessante entre os tipos de analfabetismo:
Um povo que, apresentando um alto índice de analfabetismo,
90%, do ponto de vista linguístico, é altamente “letrado” do
ponto de vista político, ao contrário de certas “comunidades”
sofisticadamente letradas, mas grosseiramente “analfabetas”
do ponto de vista político. (FREIRE, 1978a, p. 17).
É claro que Paulo Freire, ao parecer valorizar mais o
“letramento político” que o linguístico, não está desvalorizando o último, mas dando a ele uma nova orientação
ontológico-metodológica, porque o considera importante
na medida em que ele se coloca a serviço do primeiro:
Daí que jamais nos tenhamos detido no estudo de métodos
e técnicas de alfabetização de adultos em si mesmos, mas no
estudo deles e delas enquanto a serviço de, e em coerência
com uma certa teoria do conhecimento posta em prática, a
qual, por sua vez, deve ser fiel a uma certa opção política.
Neste sentido, se a opção do educador é revolucionária e se
sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando, um
dos sujeitos deste ato. (FREIRE, 1978a, p. 17).
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Primeira parte
Em suma, para o educador pernambucano, a ação educacional é somente revolucionária quando é posta a serviço
de intervenções na prática, por sujeitos educadores comprometidos com transformação dos educandos em sujeitos
do seu conhecimento e da transformação social.
Em Educação como prática da liberdade, a palavra “revolução” aparece 10 vezes, sendo seis no texto do prefaciador
e a maioria delas relacionadas ao golpe de 1930 que ocorreu
no Brasil e que pôs fim à Primeira República (1989-1930).
As outras cinco ocorrências do termo já são do texto do
próprio Paulo Freire. Uma delas aparece em uma nota de
rodapé, numa referência a uma citação de Celso Furtado e,
ainda assim, como termo de uma palavra composta, “pré-revolução”. As demais ocorrências estão no corpo do livro.
Analiso, a partir de agora, cada uma das três ocorrências
do termo nos textos de Paulo Freire.
A primeira está relacionada a uma diferença muito cara
a Paulo Freire entre o radical e o sectário:
Na redução do povo à massa. O povo não conta nem pesa
para o sectário, a não ser como suporte para seus fins. Deve
comparecer ao processo ativistamente. Será um comandado
pela propaganda intoxicadora de que não se adverte. Não
pensa. Pensam por ele e é na condição de protegido, de menor de idade, que é visto pelo sectário, que jamais fará uma
revolução verdadeiramente libertadora, precisamente porque
também não é livre. Para o radical, que não pode ser um
centrista ou um direitista, não se detém nem se antecipa a
História, sem que se corra o risco de uma punição. Não é
mero espectador do processo, mas cada vez mais sujeito, na
medida em que, crítico, capta suas contradições. Não é também seu proprietário. Reconhece, porém, que, se não pode
deter nem antecipar, pode e deve, como sujeito, com outros
sujeitos, ajudar e acelerar as transformações, na medida em
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que conhece para poder interferir. (FREIRE, 1994, p. 60).
Aí, a revolução aparece enquanto possibilidade não pré-programada, se a vanguarda, enquanto um dos sujeitos
da História, dela não se apropriar, como é comum entre
os inscritos no universo do sectarismo. A concepção aqui
desenvolvida repete e aprofunda, sob outro ângulo, a questão da relação entre vanguarda e base, adicionando um elemento a mais: a diferença entre o sectário e o radical. Vale a
pena resgatar os outros aspectos desta análise comparativa
freiriana. Dizia ele, em outra passagem da mesma obra:
O sectário nada cria, porque não ama. Não respeita a opção
dos outros. Pretende a todos impor a sua, que não é opção,
mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que
é ação sem vigilância da reflexão. Daí o seu gosto pela sloganização, que dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos e,
por isso mesmo, morrendo nas meias verdades, nutre-se do
“puramente relativo a que atribui valor absoluto”.
O radical, pelo contrário, rejeita o ativismo e submete sempre
sua ação à reflexão. O sectário seja de direita ou de esquerda
se põe diante da história como seu único fazedor. (FREIRE,
1994, p. 59-60).
A revolução só é possível com o povo se tornando
sujeito consciente da transformação; portanto, ele deve
“comparecer” à história como ator (no sentido da ação)
pensante e livre. Para tanto, a educação libertadora é um
instrumento importante para que possam emergir sujeitos
com estas faculdades. Desnecessário ressaltar as aproximações e as convergências de Paulo Freire e Amílcar Cabral
a este respeito.
A segunda ocorrência da palavra “revolução” no texto de
Freire em Educação como prática da liberdade é a referência
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Primeira parte
a um trabalho de Anísio Teixeira (apud FREIRE, 1994, p.
95), Revolução e educação, publicado na Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos. Na última vez que o termo “revolução” aparece no livro Educação como prática da liberdade,
ela emerge exatamente entre aspas, como a antítese da verdadeira revolução, porque Paulo Freire está se referindo à
quartelada que interrompeu a incipiente democracia brasileira e implantou um regime de exceção, que passou a considerar como “subversivos” os projetores de slides importados da Polônia por preços mais módicos, para serem usados
nos Círculos de Cultura que Paulo Freire então organizava
no Brasil, a pedido do Ministério da Educação do governo
nacional-populista, derrubado pelo golpe militar em 1964.
Em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (1982),
a palavra “revolução” aparece 32 vezes. Vou examinar cada
uma delas.
Primeiramente, vejamos, ipsis litteris, o que diz Paulo
Freire na primeira ocorrência do termo:
Na medida, porém, em que a introjeção dos valores dos dominadores não é um fenômeno individual [sic] mas social
e cultural, sua extrojeção, demandando a tranformação [sic]
revolucionária das bases materiais da sociedade, que fazem
possível tal fenômeno, implica também numa certa forma
de ação cultural. Ação cultural através da qual se enfrenta,
culturalmente, a cultura dominante. Os oprimidos precisam
expulsar os opressores não apenas enquanto presenças físicas,
mas também enquanto sombras míticas, introjetadas neles. A
ação cultural e a revolução cultural, em diferentes momentos
do processo de libertação, que é permanente, facilitam esta
extrojeção. (FREIRE, 1982, p. 54).
Nesta passagem, surge um dos problemas mais complexos
das concepções freirianas, ou melhor, de qualquer concepção
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
que enxerga os dominados como sujeitos da revolução. De
fato, como os oprimidos e as oprimidas podem ser o motor
da transformação social, se hospedam em si os opressores?
Não haveria aí uma contradição in limine? Freire destaca
claramente, no texto, que são necessárias as transformações
na base material da sociedade para que isso seja possível,
uma vez que as ideias, as concepções e os valores, enfim,
a superestrutura ideológica dominante, está “hospedada”
nos corações e nas mentes dos dominados e das dominadas
por um processo de reprodução homóloga26 da infraestrutura na superestrutura. Da mesma forma, somente com a
transformação da base material da sociedade, lograr-se-á a
transformação dos traços ideológicos. Ou seja, somente com
a superação de uma formação social classista, verticalmente
hierarquizada, conseguir-se-á a superação das ideias, conceitos e valores alienantes introjetados pelos dominantes nos(as)
dominados(as). No entanto, esta “extrojeção” (expulsão das
ideias, projeções e ideais hospedados) somente terá lugar no
momento pós-revolucionário se continuar ocorrendo uma
“revolução cultural”, ou seja, se o processo de “descolonização das mentes” mantiver seu curso. É desnecessário chamar
26 O conceito de “homologia”, em lugar do de “analogia”, foi desenvolvido por Lucien Goldmann em várias de suas obras, especialmente em Sociologia do romance (1967). Segundo ele, os processos
de estruturação que ocorrem na infraestrutura se reproduzem nas
estruturas significativas das obras da superestrutura. Em geral estas
últimas contêm estruturas, enquanto, na realidade concreta, não
existem estruturas, mas processos de estruturação. Significa dizer
que, embora ocorram analogias (reflexos dos acontecimentos nas
obras), elas não explicam, em profundidade, estas mesmas obras.
Somente a homologia (reprodução dos processos de estruturação
material nas estruturas da cultura superestrutural) consegue explicar o significado mais profundo de qualquer visão de mundo.
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Primeira parte
a atenção, aqui, para a profunda convergência entre as ideias
de Paulo Freire e as de Amílcar Cabral.
A segunda ocorrência do termo “revolução”, nesta obra,
é, de novo, seu sentido contrário. E Paulo Freire trata-o
ironicamente:
O golpe militar brasileiro que, pitorescamente, se vem chamando a si mesmo de revolução, e que derrubou o governo
Goulart em 1964, tem seguido uma política coerente: submissão à metrópole, associada a uma violenta repressão e imposição de silêncio às massas populares (FREIRE, 1982, p. 72).
Nas duas ocorrências subsequentes, Paulo Freire (1982,
p. 77) refere-se ao termo no sentido de possibilidade antagônica ao golpe de Estado que se aplicou no Brasil na
década de 1960.
Nas duas próximas ocorrências, seguindo a tradição
marxista, Freire (1982, p. 78 e 80) considera a revolução
como a necessária superação da “classe em si” pela “classe
para si”, portanto, da superação da consciência transitivo-ingênua pela consciente crítica, por meio de uma ação cultural que já se superou como revolução cultural.
Na ocorrência subsequente da palavra “revolução” em
Ação cultural para a liberdade, Paulo Freire (1982, p. 80)
retoma a ideia de processo crítico, relembrando que, para
isso é necessária a permanente união entre as lideranças e os
liderados, entre as vanguardas e as massas.
Nas duas ocorrências seguintes, Paulo Freire (1982, p.
82) refere-se, novamente à revolução cultural, como resultado da superação da ação cultural.
Às vezes, alguns materialistas mecanicistas ortodoxos
têm nos acusado de idealismo, na medida em que Paulo
Freire e os freirianos tenham sublinhado a importância da
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revolução cultural. É evidente que, mesmo na perspectiva
do materialismo dialético, se trata de uma crítica equivocada, porque não negamos a determinação econômica em
última instância. O que esses críticos não percebem é que,
embora os elementos constitutivos dos processos simbólicos sejam determinados por interesses econômicos, em
última instância, eles acabam adquirindo uma relativa autonomia nos fenômenos da consciência, mantendo-se na
alienação de ex-colonizados mesmo após os processos de
independência política, como mecanismo de outro tipo
de colonização que preserva a dominação econômica do
colonizador. Dada a maior lentidão dos processos simbólicos em relação aos produtivos e associativos, ou seja, dado
que a transformação dos sistemas de representação (ciência, arte, religião, magia, valores etc.) é mais lenta, numa
verdadeira “disritmia histórica”, o último território colonizado de um povo é sua consciência, porque enquanto ele
não se liberta dos referenciais teóricos de seu colonizador,
enquanto não se lhe retiram todos os resquícios da Razão
Colonial, não emerge a sua própria Razão Oprimida que,
na maioria das vezes, tem vantagens gnosiológicas e epistemológicas evidentes. (ROMÃO, 2008, p. 63-90).
Paulo Freire e Amílcar Cabral tiveram a lucidez, cada
um a seu modo, de insistir na importância da libertação das
mentes como integralização do processo de emancipação.
Explicitamente no texto em que a palavra “revolução”
aparece novamente, Freire (1982, p. 84) não esconde suas
preferências socialistas, chegando a dizer que a sociedade
socialista repetirá a capitalista, se o processo revolucionário
não superar determinados mitos, como o do consumismo
que, por sua vez, alimenta o da tecnologia mitificada.
Em seguida, usando o termo dez vezes na mesma página
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Primeira parte
e na subsequente, Paulo Freire (1982, p. 84-85) se propõe a
fazer a distinção entre “ação cultural” e “revolução cultural”
como dois momentos distintos do processo revolucionário.
Primeiramente ele afirma que, enquanto a ação cultural se
realiza em oposição às classes dominantes, a revolução cultural já se dá com a revolução no poder. Ou seja, enquanto a
ação cultural para a libertação conta com a desvantagem da
existência de uma cultura dominante concreta, a revolução
cultural já se apresenta em um contexto mais favorável, no
qual o combate que se trava é com a cultura dominante
introjetada na visão de mundo das classes antes oprimidas.
Ao concluir suas reflexões sobre as relações entre ação
cultural e revolução cultural nesta parte da obra, Paulo Freire acrescenta uma ideia extremamente importante
para o processo de libertação das pessoas, das classes sociais e dos povos: o caráter tão permanente do processo de
conscientização quanto o da revolução. E, neste sentido,
poder-se-ia até mesmo acrescentar que a revolução deixa
de ser permanente, quando o processo de conscientização
se é proclamado como concluído. Vejamos o que o próprio
Paulo afirma a este respeito:
Neste sentido, é um processo [de conscientização] tão permanente quanto a revolução, que só para mentalidades mecanicistas cessa com a chegada ao poder. E é precisamente
neste momento que muitos de seus mais sérios problemas
começam e que algumas ameaças a espreitam, entre elas, a
burocracia esclerosante. (FREIRE, 1982, p. 85).
E se na ação cultural já se inicia a união entre lideranças
e liderados, na revolução cultural, esta união se torna mais
íntima, de tal modo que vanguardas e massas se tornam
um só corpo ideológico. Vale a pena citar, textualmente,
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um dos parágrafos de Freire (1982, p. 85), nesta relação
dialética entre ação e revolução cultural para a libertação:
Em dois pontos, porém, não há diferença entre a ação cultural para a libertação e a revolução cultural. Ambas têm na
“dialética da sobredeterminação” a sua explicação necessária
e são ambas conscientizadoras. Ser consciente, numa como
na outra, não é um “slogan” nem expressão de idealismo, mas
a forma radical de ser dos seres humanos.
Não tenho dúvidas de que esta “dialética da sobredeterminação” ajuda a esclarecer alguns pontos muitos importantes da dialética materialista, chegando mesmo a
superá-la por aquilo que temos denominado como “dialética-dialógica freiriana”. Primeiramente, a ação e o pensamento dos seres humanos são determinados, em última
instância, pelas relações de produção. No entanto, são
os seres humanos que pensam e produzem as relações de
produção, porque elas não têm consciência em si mesmas.
Assim, neste “diálogo” mútuo de ser determinado e de determinar é que se configura a dialética-dialógica. Leiamos
o próprio Paulo Freire (1982, p. 85):
Se estes fossem corpos inconscientes, incapazes de perceber,
de conhecer que conhecem, de recriar; se fossem inconscientes de si mesmos e do mundo, ideia de conscientização não
teria sentido, mas, neste caso, tampouco teria sentido a ideia
de revolução. A realidade material que condiciona a consciência não é a fazedora de si mesma, “las circunstancias se
hacen cambiar precisamente por los hombres”, disse Marx.
Desde, porém, que a consciência é condicionada pela realidade, a conscientização é um esforço através do qual, ao analisar a prática que realizamos, percebemos em termos críticos o
próprio condicionamento a que estamos submetidos.
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Primeira parte
Como vimos na menção subsequente ao vocábulo “revolução”, Paulo Freire enfatiza seu caráter permanente,
como permanente deve ser o processo de conscientização,
pois é por meio dele que se faz a apreensão crítica dos próprios condicionamentos.
Na menção imediatamente seguinte (FREIRE, 1982, p.
92), ele alerta que a educação necessária à revolução não pode
ser desenvolvida pelas classes dominantes e que, lamentavelmente, ela somente ocorre em um processo revolucionário.
Nas quatro menções subsequentes, na mesma obra,
Paulo Freire (1982, p. 93) retorna ao caráter necessariamente permanente da revolução, exemplificando com os
casos da Revolução Cultural Chinesa (p. 93 e 111) e da
Revolução Cubana. Acrescenta (p. 120) que os países latino-americanos, exceto Cuba, não vêm conseguindo seu
desenvolvimento, mas sua mera modernização na dependência, certamente porque ainda não desencadearam seus
processos revolucionários.
Na menção subsequente, Paulo Freire faz uma de suas
análises mais socialistas, da qual podem ser extraídas várias
categorias epistemológicas e políticas. Façamos a citação
mais longa para dela extrair as mencionadas categorias:
[...] não tenho outra maneira de superar a quotidianeidade alienante senão através da minha práxis histórica em si
mesma social, e não individual. Somente na medida em que
assumo totalmente minha responsabilidade no jogo desta
tensão dramática é que me faço uma presença consciente no
mundo. [...] Assim, então, a dramática tensão entre passado
e futuro, entre a morte e a vida, entre a esperança e o desespero, entre ser e não ser, já não existe como um beco sem
saída, mas é percebida como realmente ela é: um permanente
desafio ao qual devo responder. E a resposta não pode ser
outra senão o compromisso com as classes oprimidas, através
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
da transformação revolucionária da sociedade.
A revolução, contudo, não esgota a dramática tensão da
nossa existência. Ela resolve as contradições antagônicas que
fazem a tensão mais dramática. Mas, precisamente porque
participa da tensão, ela é tão permanente quanto aquela.
(FREIRE, 1982, p. 114).
Em primeiro lugar, emerge da citação a categoria da superação, em lugar da ideia de evolução. É na relação dialética dos contrários (“práxis histórica”) que o ser social (não
individual, como o está explícito na citação) vai superando o instituído e, ao mesmo tempo, vai superando-se, na
medida em que se encaram as dificuldades como desafios,
como possibilidades de “inéditos viáveis”, e não como obstáculos intransponíveis.
Em segundo lugar, uma ação só ganha legitimidade política se se colocar em função da libertação dos oprimidos.
Ou seja, por um lado, a revolução não se configura se não
tiver esta dimensão teleológica e, dialeticamente, por outro, é somente por meio de um processo revolucionário
que é possível promover essa libertação.
Por último, cabe destacar, nesta citação, a retomada de
uma reflexão que lhe é muito cara, na qual Paulo Freire
fala da existência humana enquanto tensão, portanto, enquanto processo e estruturação, enquanto um “sendo” – e
não, como quer a ontologia clássica, uma estrutura, um ser
–, conferindo um fundamento ontológico à revolução, do
qual deriva seu caráter permanente. A tensão é permanente
na existência humana enquanto processo de potencialização da superação do “ser” pelo querer “ser mais”. E é esta
tensão permanente que confere a necessidade do caráter
permanente do processo revolucionário.
Na antepenúltima referência à revolução, Freire (1982,
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Primeira parte
p. 124) sublinha que somente a revolução pode libertar as
classes subalternizadas, alertando, na penúltima menção da
obra à palavra revolução (FREIRE, 1982, p. 125), que se
a revolução não tiver o caráter profético, utópico e esperançoso, deixará de ser permanente e, por isso, perde seu
caráter revolucionário.
A última referência à revolução do livro Ação cultural para
a liberdade e outros escritos merece ser citada literalmente:
Finalmente, parece-me necessário afirmar que, ao analisar o
papel que pode ter o contexto teórico no aprofundamento
crítico da tomada de consciência que se verifica no contexto concreto, não quero dizer que o partido revolucionário
deva criar, em qualquer situação histórica, contextos teóricos, como se fossem “escolas revolucionárias” para depois
fazer a revolução. De fato, jamais fiz tal afirmação. O que
tenho dito e agora repito é que o partido revolucionário que
se recusa a aprender com as massas populares, rompendo
assim a unidade dialética entre ensinar e aprender, já não é
revolucionário, mas elitista. Esquece uma fundamental advertência de Marx em sua Terceira Tese sobre Feuerbach: “O
educador também precisa ser educado”. (FREIRE, 1982, p.
138, grifo do autor).
Não há possibilidade de se fazer a revolução educacional com qualquer concepção “bancária”, mas apenas
com concepções emancipadoras ou libertadoras, como
propunha Paulo Freire. Em suma, não há possibilidade da
própria revolução como um todo, sem a Razão Revolucionária, isto é, uma concepção educacional que leve em
conta a revolução cultural que, certamente, nos seus limites, significa a superação da própria ideia de ciência e de
teoria da ciência.
Esta Razão estará em transformação permanente, levan46
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do em consideração todos os enunciados e todos os enunciantes, desenvolvendo, ao invés de uma teoria dos conhecimentos, uma sociologia-histórica dos conhecimentos.
4. Observações finais
Para Paulo Freire e para Amílcar Cabral – mais explicitamente para o primeiro –, o mundo não é, “está sendo”. Portanto, tudo que existe (o “ser”) não é uma estrutura, mas
um processo, e, no caso do “ser” humano, o processo é mais
claro, na medida em que homens e mulheres constituem
uma permanente tensão entre o “ser” e o querer “ser mais”.
Paulo Freire menciona Amílcar Cabral em Cartas à Guiné-Bissau mais de sessenta vezes, indo desde a dedicatória
do livro ao líder africano até ao coração de suas principais
ideias e obras, dentre as quais, merecem destaque:
a) a luta armada como fato cultural ou como fator
de cultura;
b) a “reafricanização” das mentalidades;
c) o papel revolucionário da pequena burguesia;
d) a associação de denúncia e anúncio, a partir do
contexto;
e) o papel revolucionário da educação;
f) as “debilidades da cultura”;
g) a presença da tensão permanente.
Portanto, as convergências entre os dois protagonistas
centrais deste trabalho são mais evidentes do que as divergências ou diferenças de análises e de proposições. E, no
caso específico do conceito de revolução, fica clara sua inserção no universo do materialismo dialético, evidentemente
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Primeira parte
reinventado por Amílcar Cabral, no contexto da libertação de dois países africanos, Cabo Verde e Guiné-Bissau; e
por Paulo Freire, no contexto dos profundos processos de
dominação neocolonial que ocorriam na América Latina,
mormente no Brasil.
Mas vejamos as duas primeiras destas mais evidentes
convergências.
a) Paulo Freire não chegou a propor a luta armada em
seus textos, mas colaborou, ainda, nos resquícios da luta
armada, com a montagem do subsistema de educação de
adultos de Cabo Verde e Guiné-Bissau.
Na obra Cartas à Guiné-Bissau, Paulo Freire (1977, p.
22 e 65) faz duas menções à luta armada: na primeira, apenas refere-se ao tempo que os jovens deviam se dedicar, nos
países rebelados, à preparação militar; e, na segunda, para
discutir a tensão necessária entre a paciência e a impaciência que, segundo ele, na luta armada pela independência,
Amílcar Cabral jamais rompeu. Esta verdadeira relação
dialética entre uma “paciência impaciente” e uma “impaciência paciente” é uma das estratégias revolucionárias
propostas por Paulo que, na radicalidade da luta armada,
torna-se uma pedagogia fundamental.
Em Pedagogia da esperança, a expressão “luta armada” aparece uma vez e, nela, Paulo Freire (1992, p. 149)
manifesta a satisfação em ser convidado, como educador, para dialogar com líderes que estavam em campo
de batalha:
Esta foi uma satisfação – a de, sendo um pensador da prática
educativa, ter sido compreendido e convidado por militantes
em luta, ao diálogo em torno de sua própria luta, armada
ou não, que me acompanhou por toda a década de 70 e se
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prolonga até hoje, com minha visita a El Salvador de que falo
no fim deste livro.
b) A “reafricanização” das mentalidades tem eco no conceito de “conscientização” de Paulo Freire. Aqui cabe uma
consideração um pouco mais longa sobre este importante
conceito freiriano.
Há cerca de quase uma década, por época do IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, na cidade
do Porto (setembro de 2004), a professora Luíza Cortesão
propôs-me uma questão que, à primeira vista, causou-me
relativa estranheza. Respondi apressadamente, para não
dizer displicentemente, o que pensava, porque não atinara com a importância da indagação. Posteriormente, com
base na convicção de que esta amiga tão competente e tão
rigorosa com a investigação em educação jamais levantaria
problemas em vão, mormente os relacionados ao pensamento de Paulo Freire, com o qual ela assumira um compromisso de rigorosidade, desde que se tornara fundadora
e, depois, coordenadora do Instituto Paulo Freire de Portugal, resolvi investigar a questão proposta com a atenção
que ela merecia.
Mas, afinal, qual era a questão? Luíza indagara-me se
Paulo Freire, a partir da década de 80 do século passado,
abandonara o conceito de conscientização e quais seriam as
razões do abandono. Não sei se ela formulara a mesma questão a outros estudiosos do pensamento freiriano, mas, de
qualquer modo, o endereçamento a mim era uma deferência
– a que eu não correspondera com a devida atenção – na
medida em que me qualificava como “entendedor da obra
de Paulo Freire”. Se a lisonja foi a causa de forte sentimento
de vergonha e de culpa, teve o mérito de me mobilizar para
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Primeira parte
uma investigação mais séria e minuciosa da questão.
Segundo o próprio Paulo Freire, o conceito designado
pelo “estranho vocábulo” conscientização foi criado pelos membros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), na primeira metade do século 20, mais precisamente nas proximidades do ano de 1964. Ainda segundo
ele, foi o arcebispo de Recife, D. Helder Câmara, quem
traduziu o termo para o inglês e o francês, difundindo-o
pelo mundo. Vale a pena dar a palavra ao próprio Freire
para se perceber a importância que ele conferia ao termo e
ao conceito por ele designado:
Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque
estou absolutamente convencido de que a educação, como
prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma apropriação crítica da realidade. (FREIRE, 1979a, p. 25).
Para Freire, a “tomada de consciência” não pode ser
confundida com conscientização, porque a expressão corresponderia ao primeiro momento de aproximação dos
seres humanos à realidade objetivada, mas não analisada
criticamente. Esta aproximação inicial da realidade permite
ao ser humano apenas experimentá-la superficialmente. É
uma aproximação espontânea que o conduz a uma apreensão ingênua da realidade.
Esta tomada de consciência não é ainda conscientização, porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de
consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual o homem assume uma posição epistemológica.
(FREIRE, 1979a, p. 26).
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A conscientização, além de ser um posicionamento crítico diante da realidade, no qual “a realidade se dá como
objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição
epistemológica” (FREIRE, 1979a, p. 26), ela só se concretiza na práxis que, segundo Paulo Freire, é a realização do
“ato ação-reflexão [...] unidade dialética [que] constitui, de
maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o
mundo que caracteriza os homens” (FREIRE, 1979a, p.
26). Poder-se-ia acrescentar que a conscientização é o conhecimento legítimo, porque sua legitimidade científica é
dada pela origem na realidade e sua legitimidade política é
construída no retorno mais qualificado às intervenções na
realidade para transformá-la de maneira mais lúcida (por
isso, eficaz), mais oportuna (historicamente) e mais justa.
Certamente a indagação da Professora Luiza Cortesão
tinha fundamentos: algum tempo depois, lendo a obra
Paulo Freire on higher education: a dialogue at the National University of Mexico (ESCOBAR; FERNÁNDEZ;
GUEVARA-NIEBLA, 1994), deparei-me com a seguinte
afirmação do próprio Paulo Freire, respondendo a uma indagação de Elías Margolis27, a propósito da domesticação e
manipulação de seu pensamento no México:
Nos anos 70 fiquei intensamente preocupado com esses problemas. Isso estava intimamente associado à palavra conscientização e era algo incrível: aonde quer que eu ia, encontrava
palavra relacionada com meu projeto e que era, em grande
parte, objetivamente reacionária, apesar de, às vezes, ser apenas
subjetivamente ingênua, às vezes, lúcida. [...] Então, naquela
27 No seminário organizado por Miguel Escobar Guerrero, Alfredo L.
Fernández e Gilberto Guevara-Niebla, que ocorreu na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), no primeiro semestre
de 1994.
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Primeira parte
época eu disse a mim mesmo que havia apenas duas maneiras
de encarar isso: a primeira é perguntar qual é a utilidade de
usar a palavra conscientização? (E depois de 1987, você não encontrará a palavra conscientização: participei de um seminário
com Ivan Illich em Genebra, durante o qual ele, novamente,
usou o conceito de desescolarização e eu o conceito de conscientização. Foi aí que usei a palavra pela última vez. Naturalmente, nunca abandonei a compreensão do processo que havia
chamado conscientização, mas eu desisti da palavra).
A segunda coisa que tive de fazer, e penso que o fiz em textos
e entrevistas, foi a de tentar esclarecer e definir os mais ingênuos e obscuros conceitos de meus trabalhos anteriores que
os emprestavam para a utilização objetivamente reacionária
de minhas ideias. (FREIRE apud ESCOBAR; FERNÁNDEZ; GUEVARA-NIEBLA, 1994, p. 46).
Estamos diante de uma confissão explícita e tácita do próprio Paulo Freire sobre o abandono da palavra “conscientização”, mas, evidentemente, também diante de uma reiteração
da continuidade do uso do conceito a que a palavra remetia.
Mesmo assim, Paulo Freire não conseguiu cumprir a promessa, porque só em Pedagogia da esperança, publicado, pela
primeira vez, em 1992, a palavra conscientização aparece 13
vezes28 (p. 77, 90, 103 – cinco vezes, 105 – 5 vezes); em Pedagogia da autonomia, obra de 1997, aparece 4 vezes (p. 60);
em Pedagogia da indignação, publicada em 200029, aparece
2 vezes (p. 95 e 124). Embora apareça em outras obras, vou
28 Consideramos apenas 12 vezes, porque a 13ª é uma citação da organizadora da notas (nota 7, p. 213).
29 É bom lembrar que Pedagogia da indignação é uma obra póstuma e
foi organizada a partir da reunião de vários trabalhos, alguns, inclusive, publicados anteriormente. No entanto, as duas vezes em que
a palavra aparece, ela emerge em textos escritos depois de 1987, ou
seja, após a data a que Paulo Freire se refere como o marco a partir
do qual não mais a usaria.
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analisar apenas as ocorrências nestas três, porque elas me parecem mais do que suficientes para a demonstração de que
Freire não abandonou o conceito – fundamental para suas
concepções – nem o termo conscientização.
Nos dois momentos em que se debruça mais exaustivamente sobre o tema, Paulo Freire defende o conceito e
o termo, chamando a atenção para o uso indevido deste e
de outros vocábulos e conceitos que elaborou. Contudo, é
importante considerar a autocrítica feita por ele a respeito
do uso inadequado do conceito por ele mesmo:
Se não há conscientização sem desvelamento da realidade objetiva, enquanto objeto de conhecimento dos sujeitos envolvidos
em seu processo, tal desvelamento, mesmo que dela decorra uma
nova percepção da realidade desnudando-se, não basta ainda
para autenticar a conscientização. [...]
Creio que algumas observações podem e devem ser feitas a partir destas reflexões. Uma delas é a crítica que a mim mesmo me
faço de, em Educação como prática da liberdade, ao considerar o
processo de conscientização, ter tomado o momento do desvelamento da realidade social como se fosse uma espécie de motivador psicológico de sua transformação. O meu equívoco não
estava obviamente em reconhecer a fundamental importância
do conhecimento da realidade no processo de transformação.
O meu equívoco consistiu em não ter tomado estes pólos – conhecimento da realidade e transformação da realidade – em sua
dialeticidade. Era como se desvelar a realidade significasse a sua
transformação. (FREIRE, 1994, p. 103).
Parece que o texto dispensa qualquer argumentação
quanto à importância que Paulo Freire dava ao termo e
ao conceito de conscientização, revisando, inclusive, obras
anteriores quanto à sua melhor compreensão epistemológica e política.
O termo aparece ainda em Política e educação (1993), em A
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Primeira parte
educação na cidade (1991) e no livro A África ensinando a gente
(2003), organizado por Sérgio Guimarães. Nesta última obra,
em entrevista concedida ao organizador do livro, Paulo Freire
reitera sua promessa de abandono do termo “conscientização”,
por causa de seu uso indevido, agora, pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral):
É por essa razão, por exemplo, que há 5 ou 6 anos, não uso,
nem oralmente nem escrevendo, a palavra conscientização.
Deixei de usar. Eu não renuncio ao processo ao qual a palavra
dá nome, mas renuncio a usar essa palavra, porque foi de tal
maneira recuperada que era preciso parar com o uso dela.
(FREIRE, 2003, p. 36).
No VII Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire
– o primeiro realizado no continente africano –, ficou estabelecido, na Carta da Praia de Cabo Verde, que, nos dois anos
do interstício entre este evento e o subsequente, que será realizado nos Estados Unidos, os freirianos de todo o mundo
esforçar-se-iam para estudar, pesquisar e disseminar o tema
da Descolonização das Mentes, ou seja, da “reafricanização”,
da “americalatinização”, da “indianização” etc. dos espíritos
e mentes e da conscientização. É uma tarefa hercúlea, considerando os mais de quinhentos anos de “europeização” e dos
quase cem de “ianquização” dos corações e das mentes.
No entanto, como mudar é difícil, mas é sempre possível, o novo milênio começa carregado, prenhe de potencialidades transformadoras, no sentido da libertação dos
povos até agora colonizados.
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Segunda parte
PAULO FREIRE NA ÁFRICA
Encontro da pedagogia freiriana com a práxis
política de Amílcar Cabral
Moacir Gadotti 30
“A Amílcar Cabral, educador-educando
de seu povo”.
Dedicatória do livro Cartas à Guiné-Bissau.
Na década de 1970, Paulo Freire
(1921-1997) assessorou vários países da África, recém-libertada da
colonização europeia, cooperando
na implantação de seus sistemas de
ensino pós-coloniais. A sua primeira
visita à África foi no final de 1971,
como membro do Departamento de
Educação do Conselho Mundial de
Igrejas, com sede em Genebra, onde
30 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, Doutor Honoris Causa
pela Universidade Rural do Rio de Janeiro,
Livre Docente pela Universidade Estadual de
Campinas, Professor Titular da Universidade
de São Paulo, Fundador e atual Presidente de
Honra do Instituto Paulo Freire.
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Segunda parte
ele morava exilado. Ele foi para Zâmbia e Tanzânia onde
teve contato com vários grupos engajados em movimentos
de libertação e colaborou na Campanha de Alfabetização
da Tanzânia, onde conheceu o presidente Julius Nyerere
(1922-1999), conhecido como “professor”. Nyerere foi
o primeiro tanzaniano a estudar numa universidade britânica. Fundou, em 1954, o partido Tanganyika African
National Union (TANU), que levou o seu país à independência da Grã-Bretanha em 1962.
Esses e outros países, em processo de descolonização e
reconstrução nacional, tinham por base de suas políticas o
princípio da autodeterminação, uma filosofia política baseada no resgate da autoconfiança (self-reliance) e na valorização da sua cultura e da sua história. Sobre uma dessas
experiências, a de Guiné-Bissau, Paulo Freire escreveu uma
das suas obras mais importantes: Cartas à Guiné-Bissau
(FREIRE, 1977). Na busca de um novo aprendizado, ele
procurou entender a cultura africana pelo contato direto
com o seu povo e com seus intelectuais. Mais tarde, esse
aprendizado foi por ele reconhecido e relatado na obra que
escreveu em parceria com Antonio Faundez, um educador
chileno exilado na Suíça: Por uma pedagogia da pergunta
(FREIRE; FAUNDEZ, 1985).
A experiência de Paulo Freire na zona rural e nas
periferias urbanas destes países serviu de fonte de
inspiração para um novo desenvolvimento de sua teoria
emancipadora da educação, entendida como ato
político, ato produtivo e ato de conhecimento. Com base
em sua nova experiência em campanhas de alfabetização,
ele sublinhou a importância da associação entre o processo
de alfabetização e o processo produtivo (FREIRE, 1995),
bem como o papel da “pós-alfabetização” como forma de
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
dar continuidade ao processo de alfabetização. Sustentava
que a pós-alfabetização era importante para a consolidação
dos conhecimentos adquiridos na fase anterior, com o
domínio da escrita, da leitura e do cálculo matemático, e
para o desenvolvimento da capacidade de análise crítica da
realidade (FREIRE, 1980b, p. 177). Como diz Antonio
Faundez (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 156),
[...] nossa experiência na África nos ensinara que a pós-alfabetização deveria ser considerada como momento superior
da alfabetização, considerada esta como um processo no qual
a pós-alfabetização lhe dava sentido, ou seja, sem considerar
a alfabetização como um processo de educação permanente,
os primeiros passos não dariam os resultados almejados.
O trabalho de Paulo Freire na África foi decisivo para a
sua trajetória, não só por reencontrar-se com sua própria
história e por empreender novos desafios no campo da alfabetização de adultos, mas, principalmente, pelo encontro
com a teoria e a prática desse extraordinário pensador e
revolucionário que foi Amílcar Cabral (1924-1973), por
quem Paulo Freire nutria enorme apreço. Em suas obras,
ele faz frequentes referências ao pensamento de Amílcar
Cabral. A África, berço da humanidade, foi para Paulo
Freire uma grande escola.
1. A África e a radicalização do
pensamento de Freire
Alguns autores vão ainda mais longe em relação à importância que a experiência africana de libertação teve na
vida e na obra de Paulo Freire. Segundo Afonso Celso Scocuglia, um dos mais importantes estudiosos da obra de Paulo
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Segunda parte
Freire no Brasil, o trabalho de Freire na África impactou sua
obra a ponto de “determinar uma ruptura significativa no seu
pensamento político-pedagógico” (SCOCUGLIA, 2008, p.
29). Para ele, a partir das experiências de Freire na África, seu
pensamento “incorporou as categorias analíticas marxistas socioeconômicas”, assumindo que “as reinvenções da sociedade
e da educação passam, necessariamente, pela transformação
do processo produtivo e de todas as relações implicadas neste processo” (SCOCUGLIA, 2008, p. 29). A incorporação
dessas categorias, como o papel da estrutura na formação da
consciência, não minimizou o papel do sujeito na história em
seu pensamento. Afonso Celso Scocuglia (2008, p. 30) conclui afirmando que “a experiência africana de libertação pela
via socialista radicaliza o pensamento de Freire”.
Nas primeiras experiências de Paulo Freire no Brasil e
no Chile, ele centrava mais a sua atenção na alfabetização
como processo de politização, em busca de uma educação
“conscientizadora” (BEISIEGEL, 2008, p. 125). Após a
experiência africana e de seu retorno ao Brasil, em 1980,
ele sublinhou também a importância do associativo e do
produtivo no processo de alfabetização de adultos. A alfabetização era associada ao aprendizado de novas formas
e novas técnicas de produção, como as cooperativas agrícolas, por exemplo, não dissociando o trabalho intelectual
do trabalho manual. Foi por meio da experiência que teve
em Moçambique, em 1976, que Paulo Freire (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985, p. 143) sublinhou a importância da
relação entre o produtivo e o pedagógico:
[...] discutimos isso juntos e depois com os companheiros
de São Tomé. Eles viviam mais ou menos essa mesma experiência, e se determinou que era importante refletir sobre o que
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é a produção, sobre o ciclo produtivo como uma totalidade, e
não ver a produção unicamente como o ato de produzir [...].
De modo que era necessário, a partir dos problemas concretos
da população, ir mostrando, ir abrindo o espaço, desafiando
a população, para que reflita sobre eles e se eduque; é preciso
propor conceitos desafiadores para que se faça uma reflexão e se
tome consciência de que o ato de produzir deve ser entendido
como um processo e não simplesmente como um resultado.
O contexto africano, resultante das lutas de independência, era diferente do que ele havia vivido no Brasil e
no Chile. Carlos Alberto Torres (1975, 1977), o primeiro
grande crítico e estudioso da obra de Paulo Freire, afirma
que “a experiência na Tanzânia ofereceu a Freire a oportunidade de trabalhar dentro do experimento socialista, com
plano centralizado, com um partido socialista revolucionário e um substantivo interesse em educação de adultos
como uma real alternativa metodológica para o sistema formal de instrução” (TORRES, 1996, p. 134-135). Antonio
Faundez (1994) aponta que a visão democrática de Paulo
Freire sofreu resistência de alguns dirigentes tanzanianos,
mostrando as contradições vividas no próprio socialismo
tanzaniano, no que se refere à política de alfabetização.
Assim como Paulo Freire aprendeu muito na sua atuação na África, também pôde contribuir no seu processo de
libertação. Na biblioteca de Paulo Freire, que se encontra
hoje no Instituto Paulo Freire, em São Paulo, há um livro
de Dulce Almada Duarte (1983), Os fundamentos culturais
da unidade, no qual, na página de rosto, se encontra uma
dedicatória do então embaixador cabo-verdiano no Brasil,
Raul Barbosa, que reconhece a contribuição de Paulo Freire à libertação africana: “Ao Camarada Paulo Freire, um
modesto reconhecimento pela militante contribuição dada
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Segunda parte
à nossa Revolução. Brasília, 8 de novembro de 1985”.
As campanhas de alfabetização na África tinham forte
motivação política. Elas eram consideradas como ferramentas básicas da criação da identidade nacional. A questão
central que se colocava não era realizar campanhas de alfabetização de adultos por elas mesmas, mas de pô-las a serviço “da reconstrução nacional” (FREIRE, 1977, p. 33). Era
uma educação comprometida com a transformação social,
mesmo sabendo que, em si e por si, não se constituísse em
instrumento de transformação da realidade.
Os movimentos de libertação estavam dando nascimento
a uma nova realidade educativa, colocando em questão o sistema educacional do colonizador. O sistema educativo herdado do colonialismo levava à “formação de uma pequena elite,
não só com uma mentalidade individualista, como também
extremamente mal preparada, do ponto de vista técnico e profissional, para enfrentar os problemas e as necessidades reais
do país” (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1982, p. 87). O novo
sistema impulsionava o estudo ligado ao trabalho produtivo,
à participação política e à gestão democrática na escola.
As experiências de Paulo Freire na África remodelaram
sua pedagogia. Inserido em processos de reconstrução nacional, realizou a simbiose entre educação e forças produtivas, incorporando o trabalho como princípio educativo.
Ele deve essa evolução no seu pensamento ao seu encontro
com a África e que foi muito importante nas obras escritas
posteriormente. Paulo Freire, sim, radicalizou, na África,
o seu pensamento. Sua pedagogia continuou humanista,
mas agora entendendo melhor, na prática, como o sistema
econômico era desumanizador.
Carlos Alberto Torres (1998, p. 89) afirma que as campanhas de alfabetização se constituíam em “etapa essencial
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para o processo nacional de reconstrução depois da guerra
de libertação”. Um pequeno texto de um dos Cadernos de
Cultura Popular utilizados em São Tomé e Príncipe na alfabetização e na pós-alfabetização, logo depois da independência que se deu em 1975, ilustra bem esse fato. Depois
de apresentar os quatro partidos que lutaram pela libertação nacional – Movimento de Libertação de São Tomé e
Príncipe (MLSTP), Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Movimento para a
Libertação de Angola (MPLA) e Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo) – o texto segue dizendo:
[...] a independência de todos nós, Povo de São Tomé e Príncipe, guineenses, caboverdianos, angolanos e moçambicanos,
não foi presente dos colonialistas. A nossa independência
resultou da luta dura e difícil. Luta da qual todos nós participamos, como Povos oprimidos, buscando a libertação. Cada
um desses Povos travou a luta que pôde lutar, e a soma das
suas lutas derrotou os colonialistas. [E continua:] [...] a nossa
luta na África foi decisiva para a vitória do Povo português
contra a ditadura que o dominava. Sem a nossa luta, não
teria havido o 25 de abril em Portugal. Mas a nossa luta não
foi feita contra nenhuma raça nem contra o Povo português.
Lutamos contra o sistema de exploração colonialista, contra
o imperialismo, contra todas as formas de exploração. A reconstrução nacional é a continuação desta luta, para a criação
de uma sociedade justa. (FREIRE, 1995, p. 66-67).
Era preciso ressaltar, por meio da educação, que o sistema colonial era a principal causa do atraso econômico da
África, que impedia o desenvolvimento das forças produtivas nacionais daquele continente. A África não deveria
ser considerada como um continente atrasado ou subdesenvolvido, como proclamava o colonizador, mas um
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Segunda parte
continente explorado e roubado pelos colonizadores, o que
travava seu próprio desenvolvimento.
Essa passagem dos Cadernos de Cultura Popular – elaborados com a assessoria de Paulo Freire e de sua equipe – contém conceitos importantes sobre a história e a filosofia da
luta pela libertação nacional. Em primeiro lugar, o fato reconhecido por Paulo Freire e muitos outros historiadores de
que a resistência africana ao domínio português teve uma influência decisiva na luta do povo português contra a ditadura
de Salazar: “sem a nossa luta, não teria havido o 25 de Abril
em Portugal”. Por outro lado, o texto mostra claramente o
caráter das lutas de libertação: lutar contra um sistema de
opressão e não contra o povo português. Em São Tomé e
Príncipe, Paulo Freire contou com uma excelente equipe de
colaboradores, entre eles, Patrícia e Arturo Ornelas, Hilda
Varela e Miguel Escobar, e sua própria esposa Elza Freire.
A participação de jovens e adultos na luta pela libertação se constituía numa motivação a mais para participar
de programas de alfabetização como os de Paulo Freire.
Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – a primeira organização de libertação das colônias portuguesas, fundada
em 1956 –, insistia na importância de todo revolucionário
estudar. Dizia ele: “devemos, portanto, diante das perspectivas favoráveis da nossa luta, estudar cada problema em
profundidade e encontrar para ele a melhor solução. Pensar
para agir e agir para pensar melhor” (CABRAL, 1974b, p.
15). Era o político motivando o pedagógico.
Os textos de formação escolhidos, tanto para os Cadernos de Cultura Popular de São Tomé e Príncipe quanto de
outros países, revelam, além de sua consistência teórica e
histórica, muita clareza política. Esse cuidado encontra-se
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também na escolha do nome do partido, como no caso
do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC). Nele podemos destacar dois elementos
fundamentais dessa preocupação ideológica. Em primeiro
lugar, como sustenta Basil Davidson (1975, p. 27), “a palavra Africano está ali para sublinhar que não estavam nada
interessados em proclamar uma independência apenas para
assimilados e colonos, mas sim para todo o povo da Guiné”. Em segundo lugar, deve-se destacar a tentativa de unidade política entre Guiné e Cabo Verde, também sugerida
no próprio nome do partido, mas que “foi rompida a partir
de novembro de 1980 com as alterações políticas que se
verificavam na Guiné-Bissau” (FREIRE, 1995, p. 66).
Sobre a fundamentação do princípio da unidade política entre Cabo Verde e Guiné-Bissau, Dulce Almada Duarte (1983, p. 3 e 16), em seu livro Os fundamentos culturais
da unidade, sustenta que Amílcar Cabral refere-se
[...] essencialmente a razões de natureza histórica, étnica e política. Porém, e a despeito da ligação destas com a
cultura, não nos lembramos de ter enxergado, através da
obra escrita de Cabral, qualquer referência direta, precisa,
à identidade dos laços culturais existentes entre os povos
de Cabo Verde e da Guiné [...]. De qualquer maneira, e
apesar da interrupção do processo unitário com a Guiné-Bissau, não temos dúvidas de que as transformações de
natureza cultural operadas em Cabo Verde são irreversíveis.
O povo cabo-verdiano poderá levar mais ou menos tempo
a impregnar-se da verdadeira essência da sua africanidade.
Mas ele não está disposto a perder as conquistas alcançadas
no sentido de uma maior afirmação da sua identidade, de
uma mais vasta dimensão da sua cultura. Esta é, certamente, uma das maiores contribuições que terá dado Amílcar
Cabral para a libertação do homem africano.
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Segunda parte
O fundamento histórico para a unidade entre Cabo Verde
e Guiné-Bissau também é realçado, entre outros, por Aristides Pereira (2002) e por António Tomás (2007, p. 130):
[...] o povo cabo-verdiano resultara do tráfico de africanos
arrancados à costa do continente, majoritariamente da região
da Guiné-Bissau. A unidade parecia-lhe (a Amílcar Cabral)
de tal forma evidente que nunca empreendeu um esforço
sistemático para a justificar, ou para a teorizar, o que não
deixa de ser interessante se comparado, por exemplo, com o
esforço que Cabral despendeu para explicar outras questões,
como o problema de classes, a relação entre a cultura e a luta
de libertação nacional, entre outros.
Amílcar Cabral pode ser considerado como o verdadeiro fundador da nacionalidade guineense e cabo-verdiana.
2. Um reencontro com sua
própria história
O trabalho de Paulo Freire na África ampliou a sua “visão
de libertação” (STRECK, 2001, p. 33). Num diálogo com
Sérgio Guimarães, Paulo Freire (FREIRE; GUIMARÃES,
2003, p. 48) afirma que foi absolutamente importante,
fundamental o aprendizado que a África lhe ofereceu. Desde o início ele criou enorme empatia com a cultura africana. Para Paulo Freire, o encontro com a África era, na
verdade, um reencontro com sua própria história, um reencontro consigo mesmo, como se voltasse para seu passado.
Ele dizia que ao pisar o chão africano estava se sentindo
em casa, “como quem voltava e não como quem chegava”
(FREIRE, 1977, p. 14):
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Na verdade, na medida em que, deixando o aeroporto de
Dar es Salaam (Tanzânia), há cinco anos passados, em direção ao “campus” da universidade, atravessava a cidade, ela
ia se desdobrando ante mim como algo que eu revia e em
que me reencontrava. Daquele momento em diante, as mais
mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a
mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o
cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem amada
banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando
nas ruas, seu sorriso disponível à vida; os tambores soando
no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-la, “desenhando o mundo”, a presença, entre as massas populares,
da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo,
tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais
africano do que pensava.
É notável a sensibilidade de Paulo Freire em relação ao
espaço físico, à natureza, à terra. Bem antes do movimento
ecológico, ele associava natureza e cultura em seus procedimentos metodológicos, mas essa associação não fazia parte
apenas de sua metodologia. Fazia parte de uma maneira
de viver, de sua relação profunda com a terra. Gostava de
percorrer longas distâncias de carro para poder observar a
natureza. Muitas vezes tive oportunidade de participar dessas viagens por terra e ele, frequentemente, nessas viagens,
assobiava e cantava olhando para fora do carro.
Paulo Freire era um educador sempre aberto a novas
aprendizagens. Isso fazia parte não só de sua prática, mas
também de sua teoria do conhecimento. Ele falava da necessidade de aprender com a prática e da necessidade de
coerência entre teoria e prática: “uma das marcas mais vi-
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Segunda parte
síveis de minha trajetória profissional”, dizia ele, “é o empenho a que me entrego de procurar sempre a unidade entre a
prática e a teoria. É neste sentido que meus livros, bem ou
mal, são relatórios teóricos de quefazeres com que me envolvi” (FREIRE, 1993, p. 87). Antes de escrever a palavra,
ele lia o mundo, coerente com a sua teoria. No livro Medo
e ousadia: o cotidiano do professor, Paulo Freire (FREIRE;
SHOR, 2003, p. 43) refere-se a seus aprendizados no exílio:
[...] o exílio permitiu-me repensar a realidade do Brasil. Por
outro lado, meu confronto com a política e a história de
outros lugares, no Chile, América Latina, Estados Unidos,
África, Caribe, Genebra, me expôs a muitas coisas que me levaram a reaprender o que eu sabia. É impossível que alguém
esteja exposto a tantas culturas e países diferentes, numa vida
de exílio, sem que aprenda coisas novas e reaprenda velhas
coisas. O distanciamento do meu passado no Brasil e o meu
presente em contextos diferentes, estimulou minha reflexão.
Essa andarilhagem pelo mundo e, em consequência, seu
enorme aprendizado, foi possibilitado pela opção que fez
de trabalhar, durante toda a década de 1970, no Conselho
Mundial de Igrejas, em Genebra. O Conselho, como organização internacional, lhe possibilitou divulgar sua pedagogia do oprimido em diferentes países. Paulo Freire (1992,
p. 121) afirma que aprendeu muito também porque viveu
“numa fase histórica cheia de intensa inquietação [onde
destacava] os movimentos de libertação na África, a independência das ex-colônias portuguesas, a luta na Namíbia,
Amílcar Cabral, Julius Nyerere, sua liderança na África e
sua repercussão fora da África”. Segundo Freire (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985, p. 22),
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[...] foi palmilhando este contexto enorme que o Conselho
Mundial me oferecia que me fui tornando um andarilho do
óbvio. E foi andarilhando pelo mundo [...], foi caminhando
por esses pedaços de mundo, como exilado, que pude compreender melhor o meu próprio país. Foi vendo-o de longe,
foi tomando distância dele que eu entendi melhor a mim
mesmo. Foi me confrontando com o diferente de mim que
descobri mais facilmente a minha própria identidade.
A África fez com que ele redescobrisse seu próprio país,
mas não só: foi importante para “descobrir sua identidade”
e também para consolidar sua obra intelectual. Como sustentou Antonio Faundez (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p.
90), “se temos maior consciência da necessidade de respeitar a cultura-outra na América Latina, é porque o aprendemos na África”.
Seus encontros com educadores de diferentes países da
África e seus dirigentes, com lideranças da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), dialogando “com militantes experimentados na luta” (FREIRE, 1992, p. 148),
com o Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC), dialogando em torno de sua própria
luta, marcaram não só sua trajetória pessoal, mas também
a sua pedagogia. Sua passagem pelas ex-colônias portuguesas, pela Tanzânia e outros países africanos, foi decisiva na
sua trajetória pessoal e intelectual. Curiosamente, dizia que
o seu livro Pedagogia do oprimido quase sempre chegava antes “a esses cantos do mundo, preparando, de certa maneira, minha chegada a eles” (FREIRE, 1992, p. 149).
Paulo Freire era contrário ao uso da expressão “África
Portuguesa”, como também não aceitava a denominação de África inglesa, francesa. “O que temos”, dizia ele,
“é uma África sobre a qual pairou, dominantemente,
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Segunda parte
colonialmente, a expressão portuguesa, a expressão francesa, a expressão inglesa. Isso é outra coisa”. Dizia que essas
expressões lembravam uma certa “nostalgia do colonizado”
(FREIRE, 1992, p. 178). Ele defendia uma ruptura radical
com o passado colonial e a sua superação por meio de uma
nova educação, radicalmente democrática e comprometida
com a emancipação social.
3. Confusão entre língua e linguagem
Em Guiné-Bissau, Paulo Freire trabalhou com a equipe
de um centro de pesquisa e intervenção, criado em Genebra, em 1970, do qual fazia parte, chamado Instituto de
Ação Cultural (Idac) em duas campanhas de alfabetização
(FAUNDEZ, 2000, p. 52-53). Dele faziam parte conhecidos educadores como Claudius Ceccon, Rosiska Darcy de
Oliveira e Miguel Darcy de Oliveira, eles também exilados,
como Paulo Freire. Naquele país, a campanha de alfabetização, assessorada por Paulo Freire e pelo Idac, a partir de
1974, se constituía numa etapa essencial do processo de
reconstrução política depois da guerra de libertação.
A escolha da língua de ensino-aprendizagem foi um
ponto central do debate em Guiné-Bissau: usar o português ou as línguas locais? Amílcar Cabral (1974b, p. 214)
defendia com entusiasmo o português como língua da
unidade nacional, mesmo sabendo que aproximadamente
80% da população da Guiné-Bissau não falava português.
O crioulo – uma língua não escrita – era falado por aproximadamente 45% da população. Era uma língua de grande
potencial, como sustenta Basil Davidson (1975, p. 50): “o
crioulo falado na Guiné é algo de semelhante a um equivalente português do velho trade English falado no delta do
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Níger, uma língua com uma base africana e uma grande infusão de palavras portuguesas. Dizem-me que é uma língua
capaz e muito flexível”.
Paulo Freire não pensava como Amílcar. Para ele, a
escolha do crioulo como língua oficial e nacional representaria a possibilidade de criar uma sociedade nova. Ademais, como sublinha Donaldo Macedo (2000, p. 84), o
uso da língua dos alunos “deve ser utilizada nos programas
de alfabetização se se quiser que a alfabetização seja parte
importante de uma pedagogia emancipadora”. Para Paulo
Freire, não era possível reafricanizar o povo, utilizando o
meio que os desafricanizou; ele entendia que o uso da língua portuguesa não era neutro, pois a língua reproduzia
valores colonialistas. Entre as anotações que o leitor Paulo
Freire fez nos livros de Amílcar Cabral, uma me chamou
particularmente a atenção: foi justamente aquela na qual
Amílcar Cabral defende o uso do português como língua
nacional. Escreve Amílcar Cabral no livro PAIGC: unidade
e luta (CABRAL, 1974b, p. 214), sublinhada por Paulo
Freire: “o português (língua) é uma das melhores coisas que
os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada
mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros: é um instrumento, um meio para
falar para exprimir as realidades da vida e do mundo” (CABRAL, 1974b, p. 214). Freire anota no pé desta página
do livro: “indiscutível equívoco de Amílcar”. No parágrafo
seguinte, Amílcar escreve: “se repararmos, por exemplo, na
gente que vive perto do mar, a sua língua tem muita coisa
relacionada com o mar; quem vive no mato, a sua língua
tem muita coisa relacionada com as florestas”. Paulo Freire anota: “confusão entre língua e linguagem”. Ainda bem
que Amílcar Cabral (1974b, p. 58), no mesmo livro, elogia
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Segunda parte
a quem tem a coragem de fazer a crítica, afirmando que
[...] criticar não é dizer mal nem fazer intrigas. Criticar é, e
deve ser, o ato de exprimir uma opinião franca, aberta, diante
dos interessados, com base nos fatos e com espírito de justiça, para apreciar o pensamento e a ação dos outros, com o
objetivo de melhorar esse pensamento e essa ação. Criticar é
construir, ajudar a construir, fazer prova de interesse sincero
pelo trabalho dos outros, pela melhoria desse trabalho.
Na verdade, tudo o que Paulo Freire queria, ao questionar
as afirmações de Amílcar Cabral, era avançar e ser coerente
com sua visão do processo de alfabetização libertadora.
Mais tarde, numa nota de rodapé do livro Por uma pedagogia da pergunta, Paulo Freire (FREIRE; FAUNDEZ,
1985, p. 126) sustenta que
[...] ao afirmar que “a língua não é prova de mais nada, senão
um instrumento para os homens se relacionarem uns com
os outros”, Amílcar Cabral deixava de perceber lamentavelmente a natureza ideológica da linguagem, que não é algo
neutro, como lhe pareceu no texto citado. Esta é uma das
raras afirmações da obra de Cabral que jamais pude aceitar.
Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira se perguntavam
mais tarde: “Haveria sentido em ensinar a um camponês,
habituado a uma cultura oral, a ler e escrever numa língua
que está de fato ausente de sua prática social cotidiana?”
(OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1982, p. 96).
Em 1985, numa conferência realizada na Universidade
de Brasília, a pedido do professor Venício Arthur Lima,
Paulo Freire explica que a viúva de Amílcar Cabral disse
a ele que era o contexto histórico e social que teria levado
Amílcar Cabral a defender aquela posição. Diz ele:
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[...] na época em que Cabral fez essa afirmação cabia essa
análise, e estava havendo um risco, na luta, de uma certa
sectarização, que colocava os caboverdianos e os guineenses a
ser contra qualquer português, contra a cultura portuguesa,
contra a linguagem portuguesa, contra tudo que fosse português. E Cabral precisava cortar o risco de engrossamento
dessa perspectiva, que para ele, e eu concordo, enfraqueceria
a própria luta. (FREIRE, 2004, p. 111-112).
Esse “eu concordo” não seria, finalmente, o reconhecimento de que estrategicamente Amílcar Cabral estaria certo,
apesar do leitor Paulo Freire haver escrito, dez anos antes, no
livro de Amílcar Cabral, que se tratava de um “equívoco”?
Apesar de todas as análises, os debates e explicações
dadas, esse foi um ponto controvertido na experiência de
Paulo Freire em Guiné-Bissau. Sabe-se, contudo, que, além
da questão da língua, as condições materiais, geográficas (vilas dispersas e isoladas) e políticas do período pós-guerra
revolucionária de libertação na Guiné-Bissau, dificultaram
muito o sucesso no processo de alfabetização. As diferenças
culturais, linguísticas, tribais, étnicas e econômicas – além
da ineficiência do aparato estatal e da falta de quadros – se
constituíam no maior desafio de um processo de alfabetização que visava à construção da unidade política nacional
e de transição para o socialismo.
Em carta endereçada a Paulo Freire, dia 10 de junho de
1985, pelo então Ministro do Comércio, Pescas e Artesanato Mário Cabral – ele era Ministro da Educação quando
convidara Paulo Freire em 1974 – explica as razões do aparente “fracasso” da campanha de alfabetização de Guiné-Bissau (CABRAL apud GADOTTI, 1996, p. 136):
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Segunda parte
Não fora a inexistência da codificação do dialeto português
na África e o desconhecimento absoluto do português no
meio rural, estou certo, teríamos tido um grande sucesso,
tal era a disponibilidade política e a receptividade popular.
Anos volvidos continuo a pensar que as análises que então
fizemos constituem a base de qualquer empreendimento no
domínio da alfabetização. Se o crioulo começa a dispor dos
elementos necessários a seu uso no ensino, resta o problema
de que o português continua a ser a língua oficial e de ensino.
Mário Cabral, Ministério do Comércio, Pescas e Artesanato.
Bissau, 10/06/85.
Existia uma dose exagerada de idealismo na proposta
de alfabetização de Guiné-Bissau, aliada a um aprendizado mecânico, baseado na memorização, ao qual Freire se
opunha (TORRES, 1998, p. 92). De um total de 26 mil
alfabetizandos, na primeira Campanha de Alfabetização,
muito poucos realmente conseguiram aprender a ler e escrever em português, após seis meses de trabalho. Isso é
reconhecido por Freire em dois livros: um escrito em 1985,
em parceria com Antonio Faundez – Por uma pedagogia
da pergunta –, e outro escrito em 1990, em parceria com
Donaldo Macedo – Alfabetização: leitura do mundo, leitura
da palavra – sustentando sempre que a questão da escolha
da língua portuguesa – língua dos colonizadores – foi decisiva e resultou no “fracasso” da campanha de alfabetização.
Como assessor estrangeiro, ele não poderia impor seu ponto de vista, e deixou claro que não admitia que o programa
de alfabetização de adultos tivesse sido totalmente um “fracasso”. Diz Freire: “essa experiência eu acho que foi muito
boa, na medida em que ela ensinou o óbvio, quer dizer:
que não era possível fazer o ensino de língua portuguesa
nas zonas rurais do país” (FREIRE; GUIMARÃES, 2003,
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p. 33). O PAIGC havia mudado a decisão inicial de Paulo
Freire e ele não tinha como não aceitar essa decisão (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 124), mesmo não sendo sua
opção metodológica. Paulo Freire conclui que não foi seu
método que falhou em Guiné-Bissau. Naquele contexto,
qualquer método teria falhado.
Paulo Freire e a equipe do Idac (FREIRE et al., 1982)
tinham clareza do papel da assessoria: os assessores não deviam “fazer por”, não deveriam substituir a própria população e nem seus dirigentes. A ajuda verdadeira, dizia ele, “é
aquela em que os que nela se envolvem se engajam mutuamente, crescendo juntos no esforço comum de conhecer
a realidade que buscam transformar” (FREIRE, 1977, p.
16). Em relação ao que estava acontecendo em Guiné-Bissau, dizia que havia um esforço enorme da equipe, mas que
o importante era que a população pudesse sentir o projeto
como seu: “o ponto de partida do projeto é a mobilização
da população, o que implica na sua organização” (FREIRE, 1977, p. 162).
Anos mais tarde, em conversa com Sérgio Guimarães,
em março de 2002, Mário Cabral, irmão de Amílcar, relembra a experiência de Paulo Freire e afirma que havia na
Guiné-Bissau em torno de 30 línguas faladas (não escritas),
num país de pouco mais de um milhão de habitantes. Qual
poderia ser o critério para a escolha da língua oficial?
Ora, se o critério é escolher a alfabetização na língua materna,
ou seja, reconhecer a cada criança o direito de alfabetizar-se
na sua própria língua o que fazer então com as crianças pertencentes às minorias linguísticas? A própria escolha de algumas das línguas nacionais e a não-escolha de outras, provavelmente com base em estatísticas, criaria um problema sério
do ponto de vista do direito da criança, na medida em que o
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Segunda parte
princípio da não-discriminação estaria em causa (CABRAL
apud FREIRE; GUIMARÃES, 2003, p. 177).
E havia também outro problema, “um país que tem
dificuldades para formar professores já numa determinada língua, imagine agora esse país tendo que formar professores em x línguas” (CABRAL apud Freire; Guimarães,
2003, p. 177). Também ele sustentava que a campanha de
alfabetização não devia ser considerada como um fracasso
na medida em que “a experiência que tivemos com Paulo
Freire e com a sua equipe, ajudou não só a alfabetização,
mas todo o processo de instauração do sistema educativo
no país” (CABRAL apud Freire; Guimarães, 2003, p. 169).
Creio que a questão do método é secundária na análise das campanhas de alfabetização de Guiné-Bissau.
Talvez o equívoco maior não tenha sido a questão da
língua ou do método, mas a percepção ingênua de que a
população rural teria algum interesse numa “alfabetização política” como se toda ela tivesse se engajado como
militante na luta pela libertação nacional. Aqui não se
trata de uma questão de método. Como observa Amílcar
Cabral (1974b, p. 46),
[...] o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça
dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela
luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em
paz e melhor, para ver a sua vida progredir e para garantir o
futuro dos seus filhos.
O insucesso das campanhas de alfabetização da Guiné-Bissau deveu-se a múltiplos fatores, entre eles, à falta de
apoio técnico, à falta de pessoal qualificado, à falta de material didático básico como papel e lápis, à falta de mobiliário
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apropriado como carteiras e quadro-negro, à falta de livros,
à falta de formação dos professores e monitores. Nessas
condições, qualquer metodologia não daria os resultados
previstos. A causa principal do fracasso não está no método. O mesmo método de Paulo Freire, em outro contexto
e em outras condições, foi aplicado em São Tomé e Príncipe, com excelentes resultados, mesmo reconhecendo que
“não foi possível chegar a uma transformação radical do
modo de produção dominante herdado do colonialismo”
(FREIRE apud GUERRERO, 2010, p. 34). A diferença
em São Tomé e Príncipe era que lá, num pequeno país com
pouco mais de 100 mil habitantes, a maioria da população
vivia em centros urbanos e em melhores condições sociais
e econômicas do que na Guiné-Bissau. E havia um fator
ainda mais determinante do sucesso dos programas de alfabetização de São Tomé e Príncipe: “uma língua falada por
todos, que já tinha uma representação gráfica, o português”
(FAUNDEZ, 1994, p. 100).
4. Linguagem, cultura e poder
Por diversas vezes Paulo Freire referiu-se à questão da língua da campanha de alfabetização de Guiné-Bissau, mas
não tão explicitamente quanto no livro em que dialoga
com Antonio Faundez (FREIRE; FAUNDEZ, 1985). Ele
argumenta que nem ele e nem a equipe do Idac poderiam
ter feito “o milagre, não importa com que método, de alfabetizar um povo numa língua que lhe era estranha” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 124). Ele sabia que o tema era
delicado e que a questão não era negar a importância da
língua portuguesa. Mas, diz ele,
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Segunda parte
[...] no momento em que uma sociedade pede à língua do
colonizador que assuma o papel de mediadora da formação
de seu povo […], tem de estar advertida de que, ao fazê-la, estará, querendo ou não, aprofundando as diferenças
entre as classes sociais em lugar de resolvê-las. (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985, p. 127).
A teoria do conhecimento e o método de Freire estão
ancorados na tese de que a alfabetização de adultos deve
partir da prática social das pessoas a serem alfabetizadas,
e a língua portuguesa não fazia parte da prática da maioria
da população. Daí a oposição de Freire à opção do partido.
Num capítulo sobre a “resistência cultural”, em seu livro
PAIGC: unidade e luta, Amílcar Cabral (1974b, p. 187217) afirma que “o primeiro ato de cultura que devemos
fazer na nossa terra é o seguinte: unidade do nosso povo,
necessidade de lutar e desenvolver em cada um de nós uma
ideia nova que é o patriotismo, o amor pela nossa terra,
como uma coisa só”. Nesse sentido, a escolha do português
significava a escolha pelo princípio da unidade nacional.
Essa escolha era coerente com a doutrina do PAIGC. O
PAIGC havia definido como seus dois pilares básicos, o
princípio da “unidade” e o princípio da “luta”. No livro
PAIGC: unidade e luta, Cabral (1974b, p. 7) afirma que “o
significado da nossa luta, não é só em relação ao colonialismo, é também em relação a nós mesmos. Unidade e luta.
Unidade para lutarmos contra o colonialista e luta para realizarmos a nossa unidade, para construirmos a nossa terra
como deve ser”.
A escolha do português era acertada do ponto de vista
estratégico, na medida em que o uso do português evitava
o confronto entre as línguas tradicionais se uma delas fosse
escolhida como língua nacional, já que elas eram ligadas a
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regiões particulares. A soberania linguística de uma região
sobre outras acabaria por criar mais conflitos internos. Era
preciso garantir a unidade nacional. Havia ainda o argumento de que a escolha de uma língua africana poderia
isolar ainda mais o país do resto do mundo.
Por outro lado, como diz Antonio Faundez (1989, p.
60), que substituiu Paulo Freire no Conselho Mundial de
Igrejas, em 1980,
[...] a língua – e sua expressão concreta cotidiana, a linguagem – é uma das manifestações culturais mais ricas e complexas. Ela é parte importante da cultura, mas, por sua vez,
veículo de cultura, na medida em que se manifestam através
dela outras expressões culturais que só podem alcançar sua
concretização e seu desenvolvimento pela mediação privilegiada da palavra.
A língua portuguesa como língua do colonizador estava
impregnada dos valores culturais dos colonizadores. A independência política não podia prescindir da independência cultural. Paulo Freire pretendia, com a campanha de
alfabetização, revalorizar as expressões culturais autóctones,
o que era sistematicamente recusado pelos colonizadores.
Quando um país possui diversas línguas, diversas culturas, deve-se valorizá-las em seu conjunto ao promover
uma unidade cultural nacional. A diversidade cultural é
uma grande riqueza. Não uma deficiência. O processo de
alfabetização deverá considerar a necessidade de criação
de materiais e conteúdos diferenciados, que levem em
conta tanto a diversidade cultural quanto a unidade
cultural. A maioria das sociedades africanas foi estruturada em torno da cultura oral e, como sustenta Antonio
Faundez (1989, p. 74),
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Segunda parte
[...] numa cultura essencialmente de expressão oral, a educação deve levar em consideração os conteúdos, os meios
de transmissão da cultura. Não convém, pois, privilegiar a
expressão cultural escrita em detrimento da expressão oral.
É indispensável comparar e permitir o enriquecimento recíproco das duas expressões.
E Faundez (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 91) conclui em outro momento:
[...] o desafio pedagógico e político das nações que possuem
riqueza, diversidade cultural está não só em criar uma nova
política, uma nova concepção de poder, mas também em criar,
como dizíamos, uma nova concepção da própria pedagogia.
E ainda:
Desde há muito tempo, os povos de cultura oral elaboraram
sobre as práticas do oral seus próprios modelos de expressão,
seus sistemas de intercâmbio e de equilíbrio, como também
sua memória. Consciente ou inconscientemente, esses povos resistem à cultura escrita, que modelaria suas sociedades
de uma maneira diferente. Comete-se grave erro quando se
pensa que basta transcrever uma língua oral para entrar no
mundo da escrita. Uma língua escrita não é uma língua oral
transcrita. Ela constitui um fenômeno linguístico e cultural
novo. Esse erro também se comete ao considerar, no processo
de alfabetização, que a língua escrita é a transcrição da língua falada, sem compreender que a passagem de uma para
outra é uma ruptura epistemológica. A língua escrita é um
novo conhecimento que, sem dúvida, tem suas relações com
o oral, porém mais como ruptura do que como transcrição,
uma vez que possui sua própria lógica, suas próprias regras,
que diferem das regras da linguagem falada […]. A passagem da cultura oral para a cultura escrita requer um período
extenso, de anos, que exige dois processos paralelos: um, de
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educação permanente, e outro, de utilização quotidiana da
escrita. (FAUNDEZ, 1994, p. 117-118).
A linguagem tem tudo a ver com o poder. Não basta
conhecer apenas uma modalidade de língua. É importante
conhecer a língua popular, captando-lhe a espontaneidade,
a expressividade e sua enorme criatividade. Com isso não
quero negar a importância do conhecimento da língua culta ou oficial, a forma linguística que cada povo estabelece
como norma geral, para assegurar a unidade da sua língua
nacional. Mas, como a linguagem sempre representa um
poder, ela pode ter e tem força política. Quando um dominador, um colonizador chega a um país, a primeira coisa
que faz é impor aos nativos a sua língua.
O Brasil é um exemplo notável de que a linguagem
é poder. Em 2005, em Porto Alegre, no Fórum Social
Mundial, ouvi um testemunho chocante da relação entre
linguagem e poder: um índio, do Amazonas, relatou que
missionários cristãos obrigavam crianças indígenas a esquecer a sua língua materna e impingiam castigos quando não
aprendessem o português, língua do colonizador. Quando
uma criança não conseguia pedir comida na língua portuguesa, ela não recebia comida. Era uma forma violenta de
impor a língua e a cultura do dominador. Como diz Donaldo Macedo (2000, p. 94), “não usamos a língua apenas
para organizar e expressar ideias e experiências. A língua é
uma das práticas sociais mais importantes, mediante a qual
somos levados a nos sentir como sujeitos”.
Como vimos, Paulo Freire estava sempre muito atento a
essa questão. Seu método de alfabetização buscava valorizar
a fala (poder) do alfabetizando. O professor Ernani Maria
Fiori, que foi um dos primeiros leitores dos manuscritos do
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Segunda parte
livro Pedagogia do oprimido, captou muito bem o sentido
da pedagogia freiriana no prefácio que escreveu para esse
livro, com um sugestivo título: “Aprenda a dizer sua palavra”. Em vez de proibir a fala e impor a cultura do silêncio,
a pedagogia do oprimido ensina a dizer a sua palavra, na
sua língua, na língua que se conhece.
Paulo Freire valorizava a linguagem como meio de comunicação e expressão da cultura de um povo, bem como
meio de construção da identidade de cada ser humano. Ele
não aceitava a imposição do silêncio àqueles e àquelas que
não dominam a norma culta; não aceitava a discriminação
e a humilhação daqueles e daquelas que não têm familiaridade com o nível linguístico reconhecido socialmente. Ele
questionava a hierarquia que, muitas vezes, se estabelece
entre os níveis linguísticos, valorizando a forma de expressão de cada um. Não negava o direito de “dizer a sua palavra” (FREIRE, 1995, p. 36) do seu jeito, e também não
negava a importância de todos terem acesso aos diferentes
níveis linguísticos. Como afirma Donaldo Macedo (2000,
p. 93), “a voz dos alunos jamais deve ser sacrificada, uma
vez que ela é o único meio pelo qual eles dão sentido à
própria experiência no mundo”.
Paulo Freire afirma que o uso gramatical esconde o mecanismo ideológico de afirmação das elites. É por isso, e
não por outra razão, que elas se recusam a aceitar a “boniteza” da linguagem popular. Não é que a linguagem popular
esteja isenta de regras e estruturas, só que elas organizam
a linguagem em confronto com os valores sustentados pelas elites. Segundo Freire (FREIRE; SHOR, 2003, p. 91),
“organizar esse conhecimento e torná-lo claro para o povo
seria contestar a dominação imposta pelas elites e, portanto, da própria elite”.
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Além das razões metodológicas, políticas e ideológicas
para usar a “língua do povo”, Paulo Freire tinha também
uma razão epistemológica, aquilo que mais tarde José Eustáquio Romão (2008, p. 81), um de seus maiores estudiosos, chamaria de “razão oprimida”:
[...] ao propor a escuta, nos Círculos de Cultura, a todas as
expressões, inclusive, às dos oprimidos, na verdade Paulo
Freire sintetizou não somente a possibilidade do resgate das
racionalidades silenciadas, como também o das epistemologias contemporâneas que tentam a construção de uma nova
geopolítica do conhecimento fora do âmbito das epistemologias hegemônicas.
Segundo Romão, Paulo Freire teria desenvolvido uma
“síntese” que estaria abrindo espaço para abrigar todas as
“epistemologias alternativas”, em oposição às “epistemologias hegemônicas”.
Cada vez mais, em todo o mundo, as línguas locais vêm
sendo valorizadas. Durante a realização da sexta Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea VI),
realizada em Belém (Brasil), de 1 a 4 de dezembro de 2009,
delegados africanos destacaram como positivo, nos seus países, o uso das línguas locais no processo de alfabetização;
entretanto, reconheceram também que ainda existe pouco
apoio a iniciativas desse dito. O Pronunciamento Africano
sobre o Poder da Educação de Jovens e Adultos para o Desenvolvimento da África, resultado final da Conferência Preparatória à Confintea VI, realizada em Nairobi, de 5 a 7 de
novembro de 2008, destaca que,
[...] nos países africanos, o papel das línguas maternas como
meios eficientes de comunicação, administração e aprendizagem não são bem explorados e são frequentemente
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Segunda parte
negligenciados. Poucos países têm promovido as línguas
maternas por meio de políticas ou pela oferta de recursos educacionais, tais como materiais de leitura e escrita
(incluindo linguagem de sinais e Braile) que constituem
fator essencial em alfabetização sustentável, numeração e
cultura de aprendizagem ao longo da vida. Há um esforço
limitado para usar todos os sistemas escritos disponíveis
para as comunidades. Torna-se muito difícil promover
uma cultura de leitura e escrita sem ambientes letrados.
(UNESCO, 2008, p. 4).
Como se vê, a questão da língua continua muito atual e
tem preocupado muito a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a qual
tem publicado diversos documentos sobre o tema (UNESCO, 2003). Segundo a Unesco (2009, p. 57-58),
[...] há um consenso que a alfabetização se dê na primeira
língua ou na língua que o aluno conhece melhor. Também é
consenso que isso propicia maior possibilidade à posterior alfabetização em outras línguas [...]. O pluralismo linguístico é
a norma em várias partes do mundo, o que requer abordagens
multilíngues bem desenhadas para a alfabetização. Contudo, os
processos que envolvem aprender uma língua e ser alfabetizado
são diferentes. O primeiro passo é a alfabetização na língua do
aluno, e depois o ensino da língua adicional que os participantes do programa querem aprender, utilizando-se métodos de
aprendizagem apropriados para esses processos diferentes.
5. Amílcar Cabral: humanista,
revolucionário, pedagogo e educador
da revolução
Paulo Freire tinha uma grande admiração por Amílcar Cabral. Disse ele, numa conversa que teve na Universidade
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Nacional Autônoma do México, em 1984, com Miguel
Escobar, Alfredo Fernández e Gilberto Guevara, posteriormente transformada em livro:
[...] sugiro aqueles e aquelas que não leram ainda as obras de
Amílcar Cabral, sobre a luta de Guiné-Bissau, que o façam.
Eu fiquei muito impressionado com essas obras tanto quanto
as de Che Guevara. Ambos compartilhavam o respeito um
pelo outro. Os dois se encontraram pela primeira vez em
Guiné-Bissau. Os dois ficaram em silêncio olhando um para
o outro. Eu chamo isso de amor revolucionário. Depois se
abraçaram, embora Amílcar fosse baixinho e Guevara bem
alto. Eles compartilharam o mesmo amor pela revolução. E
o que é mais interessante: eles disseram coisas muito semelhantes, como eminentes pedagogos e grandes educadores da
revolução. (FREIRE apud ESCOBAR, 1994, p. 81).
Paulo Freire não chegou a conhecer pessoalmente a
Amílcar Cabral, mas foi um grande estudioso de sua
obra. Em vários momentos ele nos confidenciou o desejo de escrever uma biografia sobre o grande revolucionário africano. Na biblioteca de Paulo – hoje aberta ao
público no Instituto Paulo Freire, em São Paulo – há
um grande número de obras de Amílcar Cabral e sobre
ele, com anotações de Paulo Freire. Ele costumava destacar os pensamentos que mais chamaram a sua atenção.
Na conferência que fez na Universidade de Brasília, em
1985, acima mencionada, afirma:
[...] eu cheguei realmente até ter um projeto de fazer um
estudo, assim uma espécie de biografia da práxis de Amílcar e
era um grande sonho; em certo sentido eu me sinto frustrado
até hoje, porque não pude fazer isso […]. Eu cheguei até a ter
o nome do livro que eu quis escrever, que não pude escrever,
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Segunda parte
que se chamava “Amílcar Cabral, pedagogo da revolução”.
(FREIRE, 2004, p. 94-95).
Amílcar Cabral seria, ao mesmo tempo, um revolucionário e um pedagogo da revolução. Ele era um pedagogo
da revolução, não era só um pedagogo revolucionário. Em
sua fala, Paulo Freire destaca uma frase de Amílcar: “Eu
gostaria de dizer aos camaradas que o que nos defende da
bala do inimigo é saber ou não saber brigar” (FREIRE,
2004, p. 102), mostrando a necessidade do estudo, a “arma
da teoria” (CABRAL, 1976a).
Como Antonio Gramsci, Amílcar Cabral valorizava a
cultura, o papel da teoria, dos intelectuais e da sociedade
civil, na transformação social. A cultura, como elemento
essencial da história de um povo, fundamenta o movimento de libertação, que nada mais é do que a expressão política organizada da cultura. Segundo Carlos Lopes (2004, p.
3), a experiência de Antonio Gramsci
[...] pode ter tido influência marcante para Cabral. A visão
de Gramsci sobre organização do Partido e a definição do
que deve ser o seu conteúdo revolucionário ou reformador,
encontram-se presentes na obra de Cabral. A premissa gramsciana do otimismo da vontade contra o pessimismo da realidade está mesmo refletida na palavra de ordem de Cabral,
“esperar o melhor mas preparar-se para o pior”. Amílcar Cabral entendia bem a proposta de Gramsci sobre o intelectual
orgânico e o papel da sociedade civil.
Essa aproximação entre Gramsci e Cabral também foi
feita por Paulo Freire. Diz ele:
Para mim, o caminho gramsciano é fascinante. É nessa
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perspectiva que me coloco. No fundo tudo isso tem a ver
com o papel do chamado intelectual, que Gramsci estuda tão
bem e tão amplamente. Para mim, se a classe trabalhadora não
teoriza a sua prática é porque a burguesia a impede de fazê-lo. Não porque ela seja naturalmente incompetente para tal.
Por outro lado, o papel do intelectual revolucionário não é o
de depositar na classe trabalhadora, que também é intelectual,
os conteúdos da teoria revolucionária, mas o de, aprendendo
com ela, ensinar a ela. Neste ponto voltamos ao que já disse a
respeito da diferença do método do educador reacionário e do
revolucionário. Este, ao se tornar um pedagogo da revolução, e
foi isso que Amílcar Cabral fez, faz o possível para que a classe
trabalhadora apreenda o método dialético de interpretação do
real (FREIRE; GADOTTI, 1985, p. 68).
Mas, foi certamente o contexto vivido tanto em Portugal
quanto em seu país que gestou o intelectual comprometido
e o militante Amílcar Cabral. Mário de Andrade (1980, p.
67), um dos primeiros companheiros de Amílcar Cabral na
luta de libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde, afirma que
[...] a formação do pensamento político de Amílcar Cabral nos
aparece claramente quando se considera o contexto histórico
de seu tempo, as instituições que enfrenta e a ação que ele empreende […]. Amílcar Cabral teceu, no país que o viu nascer, a
dupla tarefa de militante: apreender, por meio de seu saber técnico, as realidades concretas do povo da Guiné e fundar as bases
organizacionais da luta política contra a dominação colonial.
Paulo Freire (1980a, p. 16-17), numa entrevista concedida à revista Psicologia Atual, descreve Amílcar como um
revolucionário que viveu a relação paciência-impaciência
“no coração da tensão existencial” que é “a mesma dialética
prática-teoria”:
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Amílcar Cabral foi o grande líder da libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Era um eminente agrônomo, formado
pela Universidade de Lisboa. Natural de Guiné-Bissau, muito
ligado ao Cabo Verde. Fez a escola primária e secundária de
Cabo Verde e depois foi para Lisboa. Era um sujeito genial.
Africano negro de uma província de ultramar, chegou a ser diretor do Departamento de Ministérios de Ultramar. Para mim,
Amílcar Cabral foi um dos revolucionários que melhor viveu a
dialética entre paciência e impaciência. Que no fundo é a mesma dialética prática-teoria. Ou, numa outra visão, como a relação ficar-partir, viver-morrer. Eu poderia dizer que a relação
paciência-impaciência está no coração da tensão existencial.
Paulo Freire (1980a, p. 17) continua explicitando o que
entende por “relação paciência-impaciência”:
Toda existência é perigosa, não há existência sem tensão. Se
você rompe essa polarização em favor da paciência, você cai
no “vamos deixar como está para ver como fica”. Então você
ajuda o status quo. Se você rompe em favor da impaciência,
então você cai no ativismo, no voluntarismo, na manipulação. Ambas as formas de ruptura implicam, no meu entender,
numa falsa visão da história. Numa incompreensão do histórico enquanto processo. Não posso deixar as coisas como estão para ver como ficam porque a história não é nenhuma potência que paira sobre nós: nós nos fazemos e nos refazemos.
E a ruptura em favor da impaciência nos leva ao voluntarismo
que enfatiza a subjetividade na relação. Esse voluntarismo é
idealista, metafísico, não histórico, não dialético.
E conclui essa parte da entrevista afirmando que Amílcar Cabral viveu sabiamente a tensão paciência-impaciência. Segundo Paulo Freire (1980a, p. 17), Amílcar Cabral
[...] como que tomou distância de sua própria tensão e a entendeu. Era também um grande humanista. Humanista não
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no sentido de leitor de clássicos, mas no sentido de não ter
vergonha de dizer que era homem. E de buscar uma sociedade mais aberta. Ele coloca no lugar exato o elemento cultural
na luta pela libertação. Há uma frase dele que daria, ela só,
um seminário: “a luta de libertação é um fato cultural e um
fator de cultura”. Mais adiante, diz: “a luta pela libertação é
um ato eminentemente político com momentos armados”. É
a colocação inversa daquela que muita gente faz.
Como Antonio Gramsci, Amílcar Cabral sublinhou o
papel da educação e da cultura na transformação social e
política, a importância da dimensão pedagógica da ação política e a dimensão política da ação pedagógica, numa época
em que o chamado “campo progressista” e até boa parte dos
movimentos revolucionários socialistas, atribuíam pouco
valor à educação no processo revolucionário. Transpondo
essa temática para os dias de hoje, podemos dizer que,
mesmo entre os intelectuais progressistas, ainda, muitas
vezes, não se tem valorizado o papel da educação na transformação social, reservando-lhe apenas um “papel subalterno”. Como diz Pablo Gentili (2009, p. 9), “na luta
contra o neoliberalismo, o campo educacional sempre
teve uma importância bem mais relevante do que costumam reconhecer as análises e as crônicas sobre os processos de mobilização e as resistências populares das últimas
duas décadas”. Com certeza, o Fórum Social Mundial
não teria surgido com toda a sua força transformadora
por “um outro mundo possível”, na América Latina, se,
nos últimos 50 anos, não tivesse existido o movimento de
Educação Popular.
O pensamento de Antonio Gramsci, Amílcar Cabral
e Paulo Freire, no que se refere ao papel da educação e
da cultura na transformação social, não tem sido ainda
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devidamente reconhecido na práxis política de muitos governos progressistas de hoje.
6. Última saída para a
libertação nacional
Karl Marx, em O Capital, faz uma clara distinção entre os
teóricos do capitalismo e o capitalismo. De alguma forma,
ele nutria um grande respeito pela pessoa dos intelectuais
que defendiam ideias que ele criticava. Ao criticá-los, ele os
reconhecia como dignos da sua crítica, pelo valor teórico
de seu legado. Assim aconteceu, por exemplo, com Aristóteles, que ele chamava de “corifeu da filosofia clássica” e
com o economista Adam Smith. Ele criticava severamente
a sua concepção capitalista da economia, mas o respeitava
como grande intelectual.
Encontramos o mesmo comportamento também em
Amílcar Cabral. Ele fazia uma distinção entre colonos e
colonialismo. Em sua Mensagem aos colonos portugueses da
Guiné e Cabo Verde, de outubro de 1960, ele diz: “nós fazemos distinção entre colonialismo português e colonos portugueses, assim como fazemos distinção entre um carro e
as suas rodas. Um carro sem rodas não anda. O colonialismo sem colonos não funciona. Vós sois as rodas do velho
e odiento carro do colonialismo português que pretende
continuar a andar contra todas as realidades da história, à
custa da exploração dos nossos povos. Mas os colonialistas
portugueses estão enganados. E vós não deveis ser simples
peças de um mecanismo anacrônico e condenado a desaparecer: vós sois homens” (CABRAL, 1977, p. 20).
Em seu último escrito – um relatório preparado para a reunião do Conselho de Ministros da Organização da Unidade
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Africana (OUA), que deveria reunir-se no dia 5 de fevereiro
de 1973, concluído algumas horas antes de seu assassinato
– Amílcar Cabral, analisando a situação da luta do PAIGC,
em janeiro de 1973, reafirmava o que sustentou em 1960:
[...] nunca confundimos colonialismo português e povo de
Portugal; o povo de Portugal é nosso aliado; o povo de Portugal está hoje consciente do fato de que a guerra colonial é
um crime, não só contra o nosso povo, mas contra ele mesmo, e fazemos tudo, através desta luta, para reforçar a nossa
solidariedade com este povo, que já decidiu utilizar meios
violentos contra a máquina de guerra colonial portuguesa.
Somos pelo diálogo. Mas, até agora, o Governo de Portugal
só quis dialogar por meio das armas. Contudo, seja em que
momento for, estamos prontos a negociar, em vista de obter
a plena soberania do nosso povo, no âmbito de uma nação
africana, livre e independente. (CABRAL, 1977, p. 20).
Personalidade complexa esta, a de Amílcar Cabral: intelectual, guerrilheiro, político, poeta... que conseguiu realizar uma guerra de libertação sem gerar ódios.
Paulo Freire dizia que a luta armada, esse “instrumento
doloroso”, “desencadeada como resposta à agressão do opressor colonialista” (CABRAL, 1976a, p. 231), foi a “última
saída” para a libertação nacional que restava a Amílcar Cabral. Segundo António Tomás (2007, p. 123), ele “deixava
bem claro que preferia uma solução pacífica para a resolução
da situação colonial”. A “solução pacífica” era a sua primeira
opção, como ele próprio afirma no Memorandum do Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)
ao Governo Português, de 15 de novembro de 1960:
[...] acreditamos no interesse e na possibilidade real duma
solução pacífica do conflito que opõe os nossos povos ao
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Governo português e estamos conscientes da justiça da nossa
posição e da invencibilidade das nossas forças nesse conflito.
Acreditamos ainda que, por uma simples questão de bom
senso, esse Governo não chegará por certo a cometer o erro
de empurrar o povo de Portugal para o sacrifício inglório e
vão duma guerra colonial na Guiné e Cabo Verde. (Cabral,
1977, p. 29-30).
No prefácio que Amílcar Cabral escreveu para o livro
de Basil Davidson (1975, p. 3 e 9) – A libertação da Guiné:
aspectos de uma revolução africana –, ele explica por que
não tinha outra opção: primeiro, diz ele, pela “parede de
silêncio” criado pelo governo português e, segundo, porque
o agressor tentava “praticar o genocídio”:
[...] talvez seja ainda cedo para escrever a história da libertação
das colônias portuguesas. Mas os que um dia a escreverem não
poderão esquecer um fato que influenciou decisivamente o desenvolvimento dessas lutas, quer na sua dinâmica interna, quer
nas suas relações com o mundo exterior: a parede de silêncio
erguida à volta dos nossos povos pelo colonialismo português
[...]. Sim, nós sabemos: existe uma Carta das Nações Unidas,
o direito de todos os povos à autodeterminação, a obrigação
por parte da “potência administrativa” de nos conceder a independência. Mas para nós a tal potência administrativa existe ao
abrigo dos seus campos fortificados, e apenas administra a sua
guerra colonial. Esta potência tornou-se o agressor, o terrorista,
o criminoso que tenta praticar o genocídio.
Se, para Amílcar Cabral, a cultura tinha tamanha importância na luta de libertação, era também porque a própria luta de libertação mexia com as entranhas da cultura
de um povo. No fundo era essa a mensagem final que ele
deixou no texto que escreveu e, na ausência dele, foi lido na
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Reunião de peritos sobre noções de raça, identidade e dignidade, promovida pela Unesco, em Paris, de 3 a 7 de julho de
1972, um ano antes de sua morte:
[...] a luta de libertação, que é a mais complexa expressão
do vigor cultural do povo, da sua identidade e da sua dignidade, enriquece a cultura e abre-lhe novas perspectivas de
desenvolvimento. As manifestações culturais adquirem um
novo conteúdo e novas formas de expressão, tornando-se
assim um poderoso instrumento de informação e formação política, não apenas na luta pela independência como
também na primordial batalha do progresso (CABRAL,
1976a, p. 247).
Para Amílcar Cabral, a luta armada de libertação nacional tinha um significado profundo
[...] tanto para a África como para o mundo […]. Devemos
estar conscientes, nós, os movimentos de libertação nacional
integrados na Conferência das Organizações Nacionalistas
das Colônias Portuguesas (CONCP), de que a nossa luta
armada é apenas um aspecto da luta geral dos povos oprimidos contra o imperialismo, da luta do homem pela sua
dignidade, pela liberdade e pelo progresso. É neste âmbito
que devemos ser capazes de integrar a nossa luta. Devemos
considerar-nos como soldados, muitas vezes anônimos, mas
soldados da humanidade nesta vasta frente de luta que é a
África dos nossos dias. (CABRAL, 1977, p. 166-167).
O sonho de Amílcar Cabral (1969, p. 29) era muito
maior:
[...] a luta de Guiné pela libertação nacional é parte e parcela
da luta dos povos da África pela total abolição da dominação
estrangeira na África – pela final e irrevogável abolição do
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sistema colonial – que é um dos traços característicos da história contemporânea.
O objetivo da luta revolucionária não se limitava à conquista do poder e à libertação política do colonizador. Amílcar Cabral ansiava pela construção de uma nova África, formada segundo seus próprios valores. Como humanista, ele
pensava numa África unida, para todos, na qual todas as
pessoas pudessem viver em harmonia. Paulo Freire (FREIRE; GADOTTI, 1985, p. 66-67) dizia que não acreditava
na conversão da burguesia como um todo, mas, comentando a expressão de Amílcar Cabral “suicídio de classe”, ele
afirma que a questão que se coloca hoje à revolução, “não é
só o da tomada do poder da burguesia, mas o da reinvenção
do poder”. O poder não poderia ser exercido da mesma forma que os colonizadores o exerciam, da mesma forma que
a burguesia o exercia, isolando-se do povo. Era preciso uma
outra forma de exercício do poder, com todos, onde o povo
fosse “soberano” (TAMARIT, 1996).
7. Educação e revolução
O período no qual Paulo Freire trabalhou na África era um
tempo em que havia um grande esforço de “reafricanização”,
associado à luta pela descolonização. O debate em torno de
uma outra educação, que superasse a educação do colonizador, tornava ainda mais importante a presença dele nos debates sobre os novos sistemas de ensino das ex-colônias portuguesas. Essa questão foi analisada por Vanilda Paiva (1979,
p. 5), afirmando que o tema da educação do colonizador e
do colonizado começou a se impor, na época, a partir das
obras de Albert Memmi (1967) e de Frantz Fanon (1968),
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publicados na mesma época em que Paulo Freire terminava
a sua obra principal Pedagogia do oprimido. Com base nesses
autores, Vanilda Paiva (1979, p. 5-6) afirma que
[...] o intelectual colonizado faz sua a cultura do opressor; o
colonizador penetra no colonizado. Mas não penetra apenas
entre seus aliados e prepostos, penetra também nas massas,
na medida em que, destruindo as bases da sua cultura, atingindo suas tradições e seus modos de vida, propaga o mito
da sua superioridade, buscando legitimar a dominação que
exerce. Negando as qualidades da população local, o colonizador desumaniza o colonizado, mutila-o psicologicamente,
fazendo-o aceitar como naturais as condições de exploração.
Em suas obras, Paulo Freire se referia constantemente
a esses livros de Fanon e Memmi, reconhecendo não só a
sua importância teórica e histórica, mas dizendo que esses
autores haviam influenciado seu pensamento, particularmente o livro Pedagogia do oprimido. Não é por nada que
foi esse livro que serviu de base para cimentar a relação
entre educação e revolução, não só naquele momento histórico por que passava a África, mas também em outros
momentos e em outros países que passaram pelo mesmo
processo revolucionário.
Nesse contexto, parece clara a tarefa da educação libertadora, tanto no processo revolucionário quanto após
a derrubada do regime colonial. Paulo Freire soube, como
poucos, ler esse contexto e sistematizar uma concepção de
educação que respondia a uma necessidade sentida por militantes e educadores revolucionários. Ele escreveu sua Pedagogia do oprimido no contexto das lutas revolucionárias
e dos fortes movimentos emancipatórios daquela época,
movimentos de camponeses, negros, mulheres, estudantes,
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trabalhadores, movimentos sociais e populares, entre outros.
De uma forma ou de outra, Pedagogia do oprimido era uma
obra esperada por muitos. Daí a sua imensa repercussão.
Amílcar Cabral e o PAIGC conheciam bem os desafios
que tinham pela frente: de um lado, lutar contra o colonizador e, de outro, reconstruir o país e criar uma nova nação no
contexto maior da unidade africana. Esses desafios seriam
ainda maiores por conta de uma conjuntura particular do
continente africano, perdido em suas divisões internas e sem
uma ideologia que os “cimentasse” (GRAMSCI, 1968), o
que é reconhecido também por Frantz Fanon (apud DAVIDSON, 1975, p. 85), quando afirma: “pelo meu lado,
quanto mais fundo penetro nas culturas e nos círculos políticos de África, maior é a minha certeza de que o grande
perigo que ameaça a África é a ausência de ideologia”.
Contudo, não se tratava de uma ideologia no sentido
de uma doutrina que deveria ser seguida sectariamente
como a doutrina marxista-leninista. Muito pelo contrário. Amílcar Cabral deu demonstração clara de que estava
reinventando o marxismo como ideologia, realçando o
papel da educação, da cultura e da ideologia na formação
da consciência crítica e no processo de libertação nacional. Como diz Carlos Lopes (2004, p. 3), Amílcar Cabral
conhecia a fundo o marxismo, “mas mostrava também
a capacidade de não se prender a ideologias que tinham
pouca relevância quando falava didaticamente com os seus
guerrilheiros”. O objetivo principal de Amílcar era a unidade nacional e sabia que qualquer ideologia fechada dificultaria essa unidade, princípio fundamental da luta pela
libertação, de acordo com o Programa Básico do PAIGC,
de janeiro de 1962:
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[...] os direitos e os deveres serão iguais: haverá uma forte união
e cooperação fraterna entre os cidadãos, quer de um ponto de
vista individual, quer do ponto de vista do sistema social ou
da estrutura étnica, de forma a controlar e destroçar todas as
tentativas para dividir os homens uns dos outros. Haverá unidade econômica, política, social e cultural. (CABRAL apud
Davidson, 1975, p. 159).
Essa unidade só poderia ser construída por meio de um
eficiente programa educacional.
A luta pela unidade interna e pan-africana se constituía
também em objetivo de outros partidos e de outras lideranças africanas como Nelson Mandela. No discurso que fez
em sua defesa na abertura do seu processo de julgamento
perante o Supremo Tribunal de Pretoria, no dia 20 de abril
de 1964, Mandela (1994, p. 354) afirmou:
[...] durante toda a minha vida dedique-me a esta luta do povo
africano. Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Acarinhei sempre o ideal de uma sociedade livre
e democrática em que todas as pessoas possam viver juntas em
harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual tenho esperança de viver e realizar. Mas, é um ideal pelo qual estou
disposto a morrer.
Os trabalhos de Paulo Freire e de sua equipe na África não eram estritamente de alfabetização de adultos, não
beneficiavam apenas os alfabetizandos e não se limitavam
ao estritamente pedagógico. Eles eram mais abrangentes e
incidiam sobre uma boa parte da sociedade, envolvendo o
governo como um todo e não só o Ministério da Educação. A criação dos chamados “Comitês Interministeriais”
em Guiné-Bissau e São Tome e Príncipe é uma prova disso. Paulo Freire procurava envolver o maior número de
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pessoas possível. De fato, seus projetos, na África, eram
acompanhados tanto pela população quanto pelo governo. Ele sabia que seu trabalho “pós-colonial” deveria dar
continuidade à luta de libertação iniciada com a resistência à dominação colonial.
Paulo Freire (1977, p. 23) chamava a atenção para a
“clareza política” de Amílcar Cabral e a “coerência entre sua
opção e sua prática”. A clareza política que ele reconhecia
em Amílcar Cabral era a mesma que ele próprio tinha em
relação à situação das ex-colônias na África. Ele dizia que,
para Amílcar Cabral, “a luta da libertação é uma luta política, com um momento armado, e não o contrário. Ele
jamais disse: a luta de libertação é uma guerra com algumas pitadas de política” (FREIRE, 2004, p. 113). Segundo
Paulo Freire (1977, p. 24), Cabral sabia que “os canhões
sozinhos não faziam a guerra e que esta se resolve quando,
em seu processo, a debilidade dos oprimidos se faz força,
capaz de transformar a força dos opressores em fraqueza”.
Daí a necessidade e a importância da formação política e
ideológica. Para Paulo Freire, a conscientização – a formação
da consciência crítica que se dá na práxis individual e social
– é uma condição necessária da revolução, para que os sujeitos assumam a aventura de reinventar a sociedade. Como
sustentam Janifer Crawford e Peter McLaren (2008, p. 367),
[...] uma revolução freiriana para a libertação de povos oprimidos é possível quando as pessoas têm a consciência de que
são oprimidas e se engajam na práxis com a capacidade crítica de denunciar a injustiça, imaginando e trabalhando para
um mundo melhor. O processo de aprendizagem é político
e, quando feito criticamente através de modelos problematizadores de educação, pode ser revolucionário.
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Como Amílcar Cabral, Paulo Freire (1977, p. 37) sabia distinguir a violência dos opressores da violência dos
oprimidos: “a daqueles é exercida para preservar a violência, implícita na exploração, na dominação. A dos últimos,
para suprimir a violência, através da transformação revolucionária da realidade que a possibilita”. Por isso, ambos
tinham o amor e a esperança como guia da violência dos
oprimidos e atribuíam à educação e à cultura um papel
fundamental no processo revolucionário e humanizador.
O sociólogo e educador argentino Carlos Alberto Torres, um dos cinco fundadores do Instituto Paulo Freire,
escreveu um livro chamado Pedagogia da luta (TORRES,
1997) em que analisa o legado de Paulo Freire. Em Paulo
Freire, luta e esperança se completam: não há esperança
sem luta, sem engajamento, sem lutar por ela. Dizia que
pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo: “é
pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que
se pode melhorar a próxima prática” (FREIRE, 1997, p.
44). A luta é uma escola, mas ela também precisa da reflexão crítica, portanto, da teoria.
A luta dos trabalhadores e dos militantes, ontem como
hoje, é uma escola de formação política. A luta é pedagógica. É na luta, e na reflexão crítica sobre ela, que
aprendem os movimentos de libertação, populares, sindicais, transformadores: “o contato com os problemas das
pessoas, a identificação com suas tristezas e sofrimentos é
a escola mais valorosa dos revolucionários” (BALTODANO, 2007, p. 31). Os movimentos sociais têm uma rica
cultura fundada na experiência. Esse saber e essa cultura
nem sempre foram valorizados pelas academias, pelas Universidades, que têm muito a aprender com os movimentos sociais. O saber que vem das lutas. Esse é um grande
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espaço de aprendizado. As lideranças populares formam-se na luta, no trabalho, e aí produzem conhecimento,
conhecimento transformador, saberes emancipadores. A
escola da luta não exclui a escola da teoria: são escolas
complementares. Como diz uma liderança do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Adelar João Pizetta
(2007, p. 94), “a classe aprende na luta, fazendo a luta,
mas é na teoria que se sistematiza o aprendizado, que acumula as lições e aprendizagens. É a teoria que sistematiza
o conhecimento. Por isso, é necessário sempre vincular os
dois aspectos: teóricos e práticos”.
8. Descolonização das mentes
e dos corações
O discurso do colonizador apresenta a cultura do colonizado como inferior, inculcando a ideia de que o colonizado
precisa da proteção política e da cultura “superior” do colonizador. O colonizador traz a ideia da superioridade racial
e cultural e coisifica o colonizado. Frantz Fanon chama a
prática da colonização de “psicopatia”, uma prática na qual
ambos – colonizador e colonizado – são vitimizados. Por
isso, é preciso libertar a ambos e não apenas ao colonizado.
O colonizado, na sua luta pela libertação, liberta também
o colonizador, fazendo com que este recupere a sua “humanidade”. Esse sentido “humanizador” da luta de libertação
está presente na obra de Amílcar Cabral.
Daí a necessidade de uma educação política que conscientize e desfetichize a cultura do colonizador. Um dos
textos de leitura dos Cadernos de Cultura Popular utilizados
em São Tomé e Príncipe, preparado pela equipe de Paulo,
refere-se a essa pretensa superioridade do colonizador:
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[...] os colonialistas diziam que somente eles tinham cultura.
Diziam que antes da sua chegada à África nós não tínhamos
História. Que a nossa História começou com a sua vinda. Estas
afirmações são falsas, são mentirosas. Eram afirmações necessárias à prática espoliadora que exerciam sobre nós. Para prolongar ao máximo a nossa exploração econômica, eles precisavam
tentar a destruição da nossa identidade cultural, negando a
nossa cultura, a nossa História. Todos os Povos têm cultura,
porque trabalham, porque transformam o mundo e, ao transformá-lo, se transformam. (apud FREIRE, 1995, p. 75).
Como Antonio Gramsci (1968), Amílcar Cabral
(1976a, p. 231) sublinhava o importante papel da cultura
e da ideologia no processo revolucionário: “a cultura é a
verdadeira base do movimento de libertação […]; as únicas sociedades que podem mobilizar-se, organizar-se e lutar
contra o domínio estrangeiro são as que preservam a sua
cultura”. Ele sustenta que “a libertação nacional é um ato
de cultura” (CABRAL, 1976a, p. 223). Paulo Freire (2004,
p. 113) afirma que não sabia se Amílcar Cabral havia estudado Gramsci, pois ele “não faz nenhuma referência a Gramsci”, mas diz que ambos tinham a mesma compreensão
do papel da cultura na luta de libertação. Para ambos, havia
uma relação de reciprocidade e interdependência entre o
fato cultural, o fato econômico e o fato político. Com efeito,
diz Amílcar Cabral (1976a, p. 223):
[...] em cada momento da vida de uma sociedade (aberta ou fechada), a cultura é a resultante mais ou menos consciencializada
das atividades econômicas e políticas, a expressão mais ou menos dinâmica do tipo de relações que prevalecem no seio dessa
sociedade, por um lado, entre o homem (considerado individual
ou coletivamente) e a natureza, e, por outro, entre os indivíduos,
os grupos de indivíduos, as camadas sociais ou as classes.
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Segunda parte
Em vários momentos, ele deixa claro que a libertação
nacional é um ato cultural, particularmente no livro A
arma da teoria (CABRAL, 1976a, p. 224-225), onde afirma que a cultura,
[...] sejam quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações [...] [é um] elemento essencial
da história de um povo [...]. [E conclui na página seguinte:]
se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é, necessariamente, um ato de cultura.
Sua análise da relação entre cultura e dominação, observada, vivida e refletida por ele, precede, historicamente,
muitas análises posteriores feitas por outros autores. Ele
mostra com clareza que o domínio colonial, para tentar
perpetuar a exploração, precisava reprimir as manifestações
autóctones da vida cultural do povo colonizado. E como a
dominação cultural do colonizador desenvolve a alienação
cultural da população, por meio da aculturação aos valores
do colonizador, tornava-se
[...] indispensável uma reconversão dos espíritos – das mentalidades – para a sua verdadeira integração no movimento
de libertação. Essa reconversão – reafricanização, no nosso
caso – pode verificar-se antes da luta, mas só se completa no
decurso desta, no contato quotidiano com as massas populares e na comunhão de sacrifícios que a luta exige. (CABRAL,
1976a, p. 226).
Daí a necessidade, constantemente reafirmada por
ele, de o movimento de libertação basear sua ação no conhecimento profundo da cultura do povo. Ao respeitar e
valorizar essa cultura, Amílcar Cabral oferecia os meios
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para o povo assumir sua própria identidade e a possibilidade de desenvolver suas potencialidades. Como Paulo
Freire, à invasão cultural, ele também contrapunha a revolução cultural.
A libertação política não elimina a presença do colonizador. Ele continua na cultura imposta e introjetada no
colonizado. O trabalho educativo pós-colonial se impõe
como tarefa de descolonização das mentes e dos corações.
Nesses termos, a pedagogia freiriana na libertação da África
deve ser entendida como um trabalho educativo pós-colonial de superação da ideologia colonial que continua viva
na cultura do ex-colonizado. Assim como é necessária a
luta social para a descolonização política, também é necessária a luta por uma outra educação, libertada dos traumas
coloniais e que consiga descolonizar as mentes.
A colonização na África visava à “desafricanizar” por
meio da educação colonial elitista, em apoio ao projeto dos
colonizadores. Nesse contexto, só restava aos intelectuais
burgueses comprometidos com a libertação nacional traírem sua classe ou, como dizia Amílcar Cabral (1976a, p.
213), serem “suicidas de classe”:
[...] para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na
luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente
identificado com as aspirações mais profundas do povo a
que pertence.
A expressão “suicídio de classe” é uma poderosa metáfora que significa que os homens e as mulheres que querem
participar na construção de uma sociedade revolucionária
– que, apesar de serem provenientes das classes dominantes,
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Segunda parte
se engajam na luta pela libertação dos oprimidos – devem
matar em si seus desejos de serem exploradores. Na verdade, foi isso que o próprio Amílcar fez como pequeno
burguês, renascendo como trabalhador revolucionário, re-africanizando-se.
Amílcar Cabral tinha legitimidade ao falar de “suicídio de
classe”. Ele mesmo, como um “trânsfuga de classe” – na expressão de Marx – havia dado exemplo concreto do que dizia.
Nele havia coerência entre o que dizia e o que fazia. Como
diz Paulo Freire (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 87),
[...] foi exatamente engajado na luta contra esta perpetuação
do colonialismo que Amílcar Cabral não apenas afirmou
mas viveu o que chamou de “suicídio de classe”. Suicídio
de classe visto e compreendido por ele como sendo a única
maneira que intelectuais de uma pequena burguesia africana – submetidos ao esforço de “assimilação” pela cultura e
pelo poder das classes dominantes metropolitanas – teriam
com que contribuir de forma efetiva para a luta de libertação de seus países.
Eis como Paulo Freire vê o processo de libertação, pela
emancipação, pela conquista da autonomia do colonizado,
tornando-se sujeito de sua história. Destaco, na concepção
freiriana, dois conceitos-chave desse processo: autonomia
e diálogo, conceitos esses desenvolvidos em seu livro Pedagogia do oprimido. O professor Ernani Maria Fiori, no
prefácio do livro Pedagogia do oprimido, resume a noção de
autonomia do sujeito e de sua construção, em Paulo Freire,
a partir de cinco afirmações:
1a. “Com a palavra o homem se faz homem” (FREIRE,
1970, p. 5): Fiori destaca que o limiar entre os seres humanos e outros seres é a palavra; para assumir a condição
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humana o ser humano precisava “tomar a palavra”.
2a. “Ninguém se conscientiza sozinho” (FREIRE, 1970,
p. 8): o educando precisa de um educador; a educação não
é só aprendizagem: é ensino e aprendizagem.
3a. “O mundo se faz pelo trabalho”, pelo trabalho cooperativo, juntos; daí a necessidade dos círculos de cultura
ou “círculos de investigação temática”, como ele (FREIRE,
1970, p. 10) os chamou inicialmente.
4a. “A palavra verdadeira se faz ação transformadora do
mundo”, se faz “palavração”, diria Paulo Freire (1970, p.
14) mais tarde. Paulo Freire (1970, p. 91) afirma que “não
há palavra verdadeira que não seja práxis”.
5a. “Aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra”
(FREIRE, 1970, p. 14): ninguém liberta ninguém; todos
nos libertamos juntos, em comunhão.
Para entender o conceito de autonomia em Freire é preciso saber o que é diálogo. Sua concepção de diálogo foi
particularmente desenvolvida no capítulo terceiro de sua
Pedagogia do oprimido. Aí ele estabelece cinco condições
para o diálogo:
1a. O amor: “se não amo o mundo, se não amo a vida, se
não amo os homens, não me é possível o diálogo” (FREIRE, 1970, p. 80).
2a. A humildade: “auto-suficiência é incompatível com o
diálogo” (FREIRE, 1970, p. 81).
3a. A fé nos homens: “fé na sua vocação de ser mais
[...] sem a fé nos homens o diálogo é um farsa” (FREIRE,
1970, p. 81).
4a. A esperança: “a esperança está na própria essência da
imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca”
(FREIRE, 1970, p. 82).
5a. O pensar crítico. Para Paulo Freire (1970, p. 83), o
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Segunda parte
pensar ingênuo é “acomodação”: “somente o diálogo, que
implica um pensar crítico, é capaz, também de gerá-lo; sem ele
não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação”.
Para Paulo Freire, o diálogo se identifica com a própria
educação.
Autonomia e diálogo, como vimos, também são categorias fundamentais do pensamento e da práxis de Amílcar Cabral. Em seu livro Cartas à Guiné-Bissau, Paulo
Freire (1977, p. 135) afirma que, “como todo verdadeiro
revolucionário, Cabral foi sempre um educador-educando de seu povo, de quem era, ao mesmo tempo, por isso
mesmo, um aprendiz constante”. Cabral aprendeu com
seu povo, na luta, e mostrou que o partido também tem
um papel formador. Como Paulo Freire, Amílcar Cabral,
pensador da emancipação africana, defendeu a autonomia
política, social e da inteligência ao sustentar que devemos
pensar com nossas próprias cabeças a partir das nossas
próprias experiências.
9. Direito à educação emancipadora hoje
Emancipar significa “tirar as mãos de”; emancipar-se significa libertar-se. Há várias concepções de educação. Ela pode
ser tanto domesticadora quando emancipadora. O que defendemos como concepção da educação é uma concepção
emancipadora do ser humano. Todos os seres humanos têm
direito a desenvolver plenamente todas as suas capacidades.
Todos têm direito a uma educação emancipadora.
Essa é uma das lições que podemos tirar desse memorável encontro entre a pedagogia freiriana e a práxis política
de Amílcar Cabral, sejam quais forem os novos contextos.
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permanente. Não importa o lugar. A emancipação é um
direito e prossegue ao longo da vida.
Quando falamos de educação já não discutimos se ela
é ou não necessária. Parece óbvio, para todos e todas, que
ela é necessária para a conquista da liberdade de cada um
e o exercício da cidadania, para o trabalho, para tornar as
pessoas mais autônomas e mais felizes. A educação é necessária para a sobrevivência do ser humano. Para que ele não
precise inventar tudo de novo, ele necessita apropriar-se
da cultura, do que a humanidade já produziu. Se isso era
importante no passado, hoje é ainda mais decisivo, numa
sociedade baseada no conhecimento.
O direito à educação é reconhecido no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 como direito de todos ao “desenvolvimento pleno da personalidade
humana” e como uma necessidade para fortalecer o “respeito aos direitos e liberdades fundamentais”. A conquista deste direito depende do acesso generalizado à educação básica,
mas o direito à educação não se esgota com o acesso, a permanência e a conclusão desse nível de ensino: ele pressupõe
as condições para continuar os estudos em outros níveis.
O direito à educação não se limita às crianças e jovens.
A partir desse conceito, devemos sublinhar também o direito à educação permanente, em condições de equidade e igualdade para todos e todas, em qualquer sociedade.
Como tal, deve ser intercultural, garantindo a integralidade e a intersetorialidade. Esse direito deve ser garantido
pelo Estado, estabelecendo prioridade à atenção dos grupos sociais mais vulneráveis. Para o exercício desse direito,
o Estado precisa aproveitar o potencial da sociedade civil
na formulação de políticas públicas de educação e promover o desenvolvimento de sistemas solidários de educação,
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centrados na cooperação e na inclusão. Como afirma István Mészáros (2005, p. 65),
[...] o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração
de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança
consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de
uma ordem social metabólica radicalmente diferente.
Hoje, o neoliberalismo concebe a educação como uma
mercadoria, reduzindo nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão
humanista da educação. O núcleo central dessa concepção é a negação do sonho e da utopia, não só a negação
ao direito à educação integral. Por isso, devemos entender
esse direito como direito à educação emancipadora. O
direito à educação não pode ser desvinculado dos direitos
sociais. Os direitos humanos são todos interdependentes.
Não podemos defender o direito à educação sem associá-lo
aos outros direitos.
E devemos começar hoje por atender aos que mais necessitam da educação, os grupos sociais mais vulneráveis;
entre eles, as pessoas analfabetas e também as pessoas privadas de liberdade, como vem defendendo o Instituto Paulo Freire (YAMAMOTO et al., 2010). Hoje, existem no
mundo em torno de 900 milhões de analfabetos. O analfabetismo representa a negação de um direito fundamental. Não atender ao adulto analfabeto é negar duas vezes o
direito à educação: primeiro, na chamada idade própria;
depois, na idade adulta. Não há justificativa ética e nem
jurídica para excluir os analfabetos do direito de ter acesso
à educação básica, a uma educação libertadora.
O direito à educação supõe reconhecer que todos somos
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sujeitos de direitos. A educação como direito humano deve
começar pelo primeiro nível que é o da alfabetização, seja
de crianças seja de adultos, pois a alfabetização é a base para
a aprendizagem ao longo da vida. Nenhuma educação é
possível sem a habilidade da leitura e da escrita.
Reconhecer que a educação emancipadora é um direito humano implica também reconhecer a necessidade de
educar para os direitos humanos. O que nos leva a concluir que é fundamental que os conteúdos, os materiais e
as metodologias utilizadas levem em conta esses direitos, e
os programas propiciem um ambiente capaz de vivenciá-los. Isso significa, essencialmente, colocar em questão os
paradigmas educacionais fundamentados no pressuposto
de que a educação é uma mercadoria que está disponível
apenas aos que podem pagar.
Considerar a educação emancipadora como um direito
humano nos obriga a rever nossos sistemas educacionais
e nossos currículos em função de uma outra educação
possível, uma educação para o desenvolvimento humano
pleno e integral, uma educação para a cidadania e a justiça social, uma educação para outro mundo possível (GADOTTI, 2007). Mais solidária e menos competitiva. As
pessoas não precisam competir para progredir, como nos
videogames, onde quem mata mais, mais avança, ganha
mais bônus. Precisamos de uma educação cidadã, emancipadora, que é o oposto da educação do colonizador, que
promove o individualismo. Precisamos cooperar para progredir e nos emancipar. Eis alguns ensinamentos que podemos tirar desse rico encontro entre a pedagogia freiriana e
a práxis política de Amílcar Cabral.
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Anexo
CARTA DA PRAIA DE
CABO VERDE
Os representantes do Conselho Mundial dos Institutos Paulo Freire originários de todos os continentes, reunidos
em Praia, Cabo Verde, nos dias 12 a 19
de setembro de 2010, no VII Encontro
Internacional do Fórum Paulo Freire,
cujo tema central foi “Paulo Freire e
Amílcar Cabral: por uma releitura da
Educação e da Cidadania Planetária”,
considerando que:
a) o colonialismo e o neo-colonialismo, além da secular dominação econômica, política e social, estabeleceram e
estabelecem processos de alienação que
permitem aos grupos dominantes, também, a dominação cultural;
b) as pautas do pensamento hegemônico apresentam-se de tal maneira
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Anexo
discriminatórias que podem ser qualificadas de “brancas”,
“masculinas”, “judaico-cristãs”, “arianas” e “elitistas”, de
gênero, etnias, religiosas e sociais, dentre outras;
c) a emergência recente de vários estudos e pesquisas apontam para a possibilidade do resgate de racionalidades amordaçadas e silenciadas ao longo da história da humanidade;
d) o surgimento de perspectivas analíticas e práticas
contra-hegemônicas (movimentos feministas, movimentos
das “minorias” étnicas, movimentos em defesa de diferentes orientações afetivo-sexuais, entre outras) têm superado
as pautas do racionalismo hegemônico.
e) a pretensão das racionalidades libertadoras não é a
de substituir as hegemônicas, mas a de contribuir para
estabelecer um movimento mundial pela paz entre todas as perspectivas culturais, ou seja, eliminar os projetos
globais de opressão e defender o direito à afirmação das
histórias locais;
f ) só é possível a construção de uma cidadania planetária, ou seja, só é possível a universalização de todos os direitos econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais,
no sentido da radicalização da democracia em todo o Planeta, com a descolonização completa, incluindo a cultural;
g) os legados de Paulo Freire e de Amílcar Cabral representam uma verdadeira síntese das racionalidades
oprimidas, do passado e do presente, na medida em que
apresentam avanços políticos e de conhecimentos dos
“esfarrapados(as) do mundo”.
Considerando, finalmente, a articulação dos Institutos
Paulo Freire, existentes e os de Praia de Cabo Verde e de
Inglaterra, criados neste Encontro, com a comunidade
freiriana internacional, bem como o apoio do governo de
Cabo Verde, especialmente o de sua Universidade,
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PAULO FREIRE E AMÍLCAR CABRAL - A descolonização das mentes
Comprometem-se, no biênio 2011-2012, a denunciar
e combater toda sorte de permanência da colonialidade
e da discriminação.
Comprometem-se, também, no mesmo período, a uma
luta incessante contra toda e qualquer forma de colonização das mentes, que é a maneira mais eficaz de dominação
estrutural de povos inteiros.
Comprometem-se, finalmente, referenciados nos legados de Paulo Freire e Amílcar Cabral, a uma permanente
busca de construção de referenciais próprios e de perspectivas teórico-políticas originárias de seus lugares específicos
de enunciação, no sentido da concretização de uma nova
geopolítica do conhecimento e de uma politologia que respeitem as visões de mundo, na perspectiva da cidadania
planetária, apontando para o sonho e para a utopia de um
mundo que abrigue a unidade na diversidade cultural e que
seja mais democrático e mais justo.
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Praia, Cabo Verde,
12 a 19 de setembro de 2010.
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