ARTIGO.
COMO SER UM QUEER NÃO ENQUADRADO:
AXIALIDADES RADICAIS PARA TEMPOS OBSCURANISTAS
Estevão Rafael Fernandes1
Fabiano Gontijo2
RESUMO
Este texto parte da necessidade de se pensar um queer radical, que não apenas
desconstrua dispositivos de poder, mas também os processos coloniais, os racismos e os
enquadramentos. Assim, apresentamos o queer como um contraponto a gramática moral
normativa, como forma de se deslocar dos lugares de enunciação estáveis e
“enquadrados”. Nesse sentido, indicamos nossa noção de “enquadramento” e como
diversos autores vem trabalhando questões referentes ao aparato colonial desde o queer –
e vice-versa. Trazemos ainda uma discussão sobre axialidades, a partir das críticas twospirit para, finalmente, construir algumas considerações sobre as possibilidades de se
pensar um queer desde suas axialidades.
PALAVRAS-CHAVE: Queer, Colonialismo, Axialidades, Two-Spirit, Enquadramento
ABSTRACT
This text is based on the need to think of a radical queer, which not only deconstructs power
devices, but also colonial processes, racisms and frameworks. Thus, we present queer as a
counterpoint to normative moral grammar, as a way of moving from stable and framed
places of enunciation. In this sense, we indicate our notion of "framing" and how various
authors have been working on issues concerning the colonial apparatus since the queer and vice versa. We also draw a discussion on axialities from the two-spirit critiques to finally
bring some considerations about the possibilities of thinking a queer from its axialities.
KEYWORDS: Queer, Colonialism, Axialities, Two-Spirit, Framing
RESUMEN
Este texto se basa en la necesidad de pensar en un queer radical, que no solo deconstruye
los dispositivos de poder, sino también los procesos coloniales y los racismos. Por lo tanto,
presentamos queer como un contrapunto a la gramática moral normativa, como una forma
de moverse desde lugares estables y encuadrados de enunciación. En este sentido,
indicamos nuestra noción de "encuadre" y cómo varios autores han estado trabajando en
temas relacionados con el aparato colonial desde queer y viceversa. También sacamos una
discusión sobre las axialidades a partir de las críticas de dos espíritus para finalmente traer
algunas consideraciones sobre las posibilidades de pensar un queer desde sus axialidades.
PALABRAS CLAVE: Queer, Colonialismo, Axialidades, Dos espíritus, Encuadrar.
Doutor em Ciências Sociais (Universidade de Brasília, 2015). Professor do Mestrado em Direitos
Humanos e Desenvolvimento da Justiça da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). 9
2 Doutor em Antropologia Social (École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2000). Professor
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
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Para Denise Schaan (in memoriam)
QUEER PARA QUÊ? QUE QUEER?
Ao contrário do que nosso senso comum (douto, inclusive) pode vir a apontar, em
um primeiro momento, uma arqueologia (assim como uma sociologia, uma antropologia,
uma história, ou mesmo uma matemática, uma anatomia, uma física de partículas...) queer
é não só possível, como necessária.
O “uma”, na sentença anterior, é o grande detalhe: não se trata de “uma”, no sentido
de “artigo indefinido”, de qualquer. Não. Ao contrário. Ao afirmarmos aqui que uma
arqueologia queer é possível e necessária, nossa intenção é, abertamente, provocativa. É
assumir como fundamental em tempos de obscurantismos, perseguições, trolls, crises,
anticientificismos, bolhas (acadêmicas, inclusive). Mais do que tempos de cólera, vivemos
tempos de epidemia dunningkrugeriana, tendo sido governados por tuítes disparados por
órfãos da ditadura, guiados por astrólogos via cursos online. Nem mesmo se misturássemos
Kafka, Orwell, Saramago e Frank Miller, chegaríamos a imaginar o que temos vivido. Assim,
referimo-nos a um tipo muito específico de queer, que perpasse a desconstrução de
dispositivos de poder – afinal, o queer também pode ser isso – mas, mais além, busque
desconstruir também o sistema colonial vigente, o enquadramento do olhar, do pensar, do
vir-a-ser.
“Esse” queer, para além do queer, talvez seja o passo deste texto. Não no sentido
de pensar um conjunto já meio requentado de teóricas e ativistas d’alhures, mas de
repensar e de-pensar nossas próprias possibilidades de superar “aquele” queer posto, do
recorte e cole dos referenciais. Um queer que não leve em conta, direta ou indiretamente, o
aparato colonial não é nem pode ser visto plenamente como queer – mesmo que os
queeres sejam por princípio e a princípio descoloniais, às vezes nos deixamos colonizar
epistemicamente: de repente vemos desconstrução, performatividade e dispositivos em
tudo, porque pega bem mostrarmos que dominamos o campo e lemos os cânones, sem
percebermos as contradições nesses processos: tal qual a língua selvagem de Anzaldúa
(2009), nos deixamos domar a mente pelo fetiche de [anti-?]cânones.
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“Nosso” queer é não-hegemônico, não apenas desconstruindo, mas destruindoporque-construindo: é mais que devir, é redevir. “Este” queer é mais que contraponto ou
vírgula, é ponto de exclamação e reticências. Mais que pós-colonial (ou decolonial) é
desestabilizador e anti-colonial. Mais que um queer caboclo (FERNANDES, GONTIJO,
2017), um queer quilombola, um queer indígena, um queer Marielle, queer Amarildo, queer
Belo Monte, Brumadinho,... Um queer que se preocupe, justamente, em desvelar
mecanismos históricos de obscurecimento, de genocídios, de etnocídios, de racialização, de
reformas da previdência e robots nas redes sociais. O que o queer pode nos ensinar sobre
a bancada da bíblia ou do boi ou da bala, ou sobre feminicídio? Este é o queer que
buscamos.
O que traremos ao longo das próximas páginas será, justamente, essa questão: que
queer é este, que propomos, e quais suas implicações? Este queer-não-teoria, mas verbo e
descentramento: é alcançável? Nosso percurso será trabalhar as possibilidades de
queerificar o aparato colonial enquanto mecanismo de múltiplos enquadramentos. Cabe-nos
também, ao longo deste texto, recuperar, ampliar e radicalizar não apenas a proposta de
Fernandes e Gontijo (2017), mas de Gontijo e Schaan (2017, pp.65-66), ao proporem que
Juntos, arqueólogos e antropólogos (e historiadores) poderiam trabalhar no
sentido de: 1) fomentar a elaboração de modelos (fluidos) do passado (e
para o presente) mais inclusivos, em termos de gênero e sexualidade –
mas, também, em termos interseccionais, [...]; 2) questionar a rigidez e a
arbitrariedade dos modelos hegemônicos (binários) de referência usados
pelas ciências humanas para classificar as diferenças e a variabilidade
humanas; 3) interrogar a universalidade (cultural, geográfica e/ou histórica)
desse modelos hegemônicos e de alguns padrões de relações sociais,
como a família nuclear, a heterossexualidade, a submissão feminina e/ou a
dominação masculina, etc.; 4) criar mecanismos teóricos e metodológicos
(e epistemológicos) para se compreender melhor a dinâmica das relações
sociais ao longo de uma história mais ampla e, assim, contribuir para a
sensibilização da sociedade brasileira para os processos que configuraram
os contextos nos quais vivemos; 5) mostrar o quanto nossas classificações,
categorizações e taxonomias atuais são construídas socialmente e
formuladas culturalmente e representam as (histórias das) relações de
poder subjacentes ao pensamento hegemônico e à discursividade
predominante de nossa época, os interesses de determinados grupos
dominantes e até mesmo as formas de resistência que se constituem
contra-discursivamente; e, enfim, 6) promover um fazer científico mais
justo, reflexivo e colaborativo, que leve a sério, como objeto de pesquisa, a
interação entre todos os agentes envolvidos no processo de produção de
conhecimentos (arqueológicos, antropológicos e historiográficos).
Os ecos da mensagem acima dizem respeito não apenas ao tema deste Dossiê
mas, de modo geral também chamam a atenção a como uma academia compartimentada e
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ensimesmada deixa de perceber, de forma densa, crítica e epistemopoliticamente a
necessidade de se pensar uma realidade para além da técnica capitalista, do pensar liberal,
euronorcêntrico, das temporalidades, subjetividades e espacialidades próprias da
modernidade, para além do binarismo, para além do posto. Este texto é, pois, um chamado
no sentido de um entrecruzamento de paralelas e olhares para além dos enquadramentos
usuais e bem-comportados aos quais, comodamente, nos acostumamos – dentro e fora da
academia.
TO QUEER OR NOT TO QUEER?: DESENQUADRANDO-SE
De que queer, afinal, partimos? A pergunta pode parecer estranha, mas a quem tem
enfrentado o queer há algum tempo, fica cada vez mais claro o que as interpretações
queerificadas não são: um conjunto homogêneo de ideias, uma teoria no sentido tradicional
do termo, um paradigma, uma forma domesticada de acomodar nossos conceitos e
perceptos em caixinhas epistêmicas estáveis. Nesse sentido, nosso primeiro movimento
não será o de trazer uma longa bibliografia sobre a teoria queer, louvando os dotes
filosóficos ou retóricos desta ou daquela autora. Não. Por mais que respeitemos esses
caminhos – e reconheçamos sua importância do ponto de vista didático, nosso ponto de
partida será muito mais instrumental do que isso.
As abordagens queer nos interessam enquanto desconstroem os processos de
categorização sexual: em que medida a heteronormatividade permeia relações de poder
nos corpos, afetos, conhecimentos e desejos? Indo além, em que medida as redes e
relações de poder em jogo dependem dessa interseção no tocante a códigos raciais,
sexuais e de gênero? (GAMSON, 2006). Aqui, entendemos heteronormatividade como um
conjunto de procedimentos de naturalização e imposição da heterossexualidade enquanto
norma, nos termos expostos por Miskolci:
A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as
obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade
como natural e, portanto, fundamento da sociedade. [...] a
heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta
processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se
relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas
aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação
contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia
seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas
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vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e "natural" da
heterossexualidade. (MISKOLCI, 2009, pp. 156-157)
Evidenciando os termos usados, a partir da síntese oferecida por Miskolci em outro
texto:
Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou deveriam ser,
heterossexuais. Um exemplo de heterossexualismo está nos materiais
didáticos que mostram apenas casais formados por um homem e uma
mulher. A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo
dessas relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela
se expressa, frequentemente, de forma indireta, por exemplo, por meio da
disseminação escolar, mas também midiática, apenas de imagens de
casais heterossexuais. Isso relega à invisibilidade os casais formados por
dois homens ou duas mulheres. A heteronormatividade é a ordem sexual
do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela
se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas
principalmente a quem rompe normas de gênero (MISKOLCI, 2012, pp. 4647).
Note-se o que escreve o autor nas passagens acima: “processos de regulação e
controle”, “dispositivo histórico da sexualidade”, “organização da vida conforme um modelo
supostamente superior”, “ordem social do presente”, “imposição de violências”, etc. Não é
preciso muito esforço para reconhecer esses processos e dispositivos históricos em nossa
vida cotidiana. Queer tem a ver com poder, com como normas se tornam padrão, por via de
quais dispositivos elas se imiscuem em nossas práticas cotidianas.
Nosso agir e pensar são disciplinados, normados e seguem a lógica do cidadão de
bem comum: branco, hetero, cristão, classe média consumidor, paneleiro de plantão...
Nosso dever-ser é, pela norma, um meme da “Barbie fascista”, que acredita em racismo
reverso, que direitos humanos são para humanos direitos, e que “a ditadura só matou
bandido”. Qualquer coisa fora dessa lógica limpinha e coxinha, higiênica e perfumada,
torna-se abjeta (KRISTEVA, 1982): o cidadão de bem no espelho, oposto e simétrico, é o
queer – inclusive em suas inseguranças e fragilidades.
Trata-se de uma gramática moral, sendo o queer uma forma de se deslocar dos
lugares de enunciação fixos, centrados, estáveis, desde os quais essa gramática é o lugar
de referência privilegiado: aliás, “o” único lugar.
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Algo ao qual vale a pena chamar a atenção, preliminarmente, é para a forma como
essa gramática moral não se restringe tão-somente à esfera da sexualidade - não apenas
com as fronteiras entre gênero e sexualidade, mas também corporalidades, afetos, desejos:
sexualidade certamente não diz respeito apenas à sexualidade, e incluirmos esses
fenômenos no campo das subjetividades ou da esfera privada certamente obscurecem
dispositivos estruturais sobre os quais tais temas se assentam. De certa maneira, tomar tais
categorias como isoladas é reificar processos pelas quais nosso saber-fazer foi
gradualmente enquadrado.
Importante notar como “enquadramento” é uma categoria sociológica das mais
relevantes, ainda que não tenha sido plenamente esgotada na literatura sociológica
brasileira, como veremos – e, certamente, não pelos pensamentos queer, em que pese
suas claras contribuições para suas interpretações. Mendonça e Simões (2012), por
exemplo, trazem uma profunda análise do conceito de “enquadramento” a partir dos textos
de Gregory Bateson e Erving Goffman: um pelo olhar da metacomunicação, outro, como
princípios de organização (p. 189). Contudo, esses autores privilegiam a ideia de frame, não
sendo essa, exatamente, a perspectiva que busco privilegiar aqui com a ideia de enquadrar.
Outro artigo que segue o mesmo caminho é o texto de Silva et al (2017), ainda que se trate
de um diálogo mais próximo com Goffman, buscando recuperar sua noção de
enquadramento enquanto “molduras interpretativas” – mas em larga medida com fortes
paralelos com o texto de Mendonça e Simões, citado anteriormente. Nesse sentido, a noção
de enquadramentos/frame desde os olhares de Bateson e Goffman traz, como os autores
desses artigos mesmo deixam evidente, claras contribuições aos estudos no campo da
psicologia social e da sociologia da comunicação. Nossa noção de enquadramento,
contudo, é muito mais intuitiva.
Nosso uso, aqui, da expressão “enquadramento” parte de um triplo sentido. Em
primeiro lugar, no sentido de “Olhar”. É o movimento que fazemos (ao menos nós, dos
tempos de máquinas fotográficas com filmes...) antes de tirar uma foto, ou fazer uma
filmagem, pondo polegar e indicador em angulação a fim de vislumbrar como será a
fotografia antes de tirá-la – é, de certa forma, uma tradução literal de frame. É uma forma
não apenas de adiantar o resultado visual final, mas de isolar o que queremos que apareça
do que julgamos dispensável. Enquadrar/Olhar é a “photoshopagem”, os filtros e recortes a
partir dos quais entre o olhar e o produto final chega-se ao simulacro. Enquadrar/Olhar é
domesticar o olhar, é restringir o ponto de vista, é não apenas focar o que se busca
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privilegiar no enxergar, mas optar-se por não ver um contexto mais amplo. É abrir mão,
muitas vezes, do plano aberto, da perspectiva. O segundo sentido de enquadrar, aqui,
significa “tornar quadrado”, em uma possível tradução de straightening: tornar reto, direito,
adequado, incluir, mas também tornar hetero. O terceiro sentido do enquadramento vai ao
encontro disso: trata-se de tornar disciplinado, punir: como na expressão “fulano merece ser
enquadrado”, por exemplo. Assim, pode-se dizer que o queer que propomos aqui é a
antítese do enquadrar, sendo ambos conceitos relativos e relacionais, em sua polissemia.
Temos aí como recuperar o ponto onde chegamos, parágrafos atrás: sexualidades,
afetos e desejos não são eixos distintos, mas merecem ser entrecortados não apenas entre
si, mas com outras categorias com às quais, em nosso afã de buscar pontos de fuga
teóricos, tornam-se pontos cegos.
Trata-se deixar evidente a necessidade de uma renovação epistêmica não apenas
para renovar o campo, mas para lançar alguma luz sobre nossos “não-objetos”. Críticas e
contribuições para além dos círculos acadêmicos e editoriais hegemônicos podem ser
compreendidos como queer e constituem-se ferramentas poderosas de crítica ao aparato
de poder que lhes obscurecem e invisibilizam.
Propusemos
anteriormente
um
queer
como
olhar
radical,
desde
uma
epistemopolítica contra-reprodutiva e subversiva (FERNANDES, GONTIJO, 2017), ao qual,
talvez, mesmo o conceito de interseccionalidade não dê conta. O risco de um olhar
interseccional implementado acriticamente é o de reforçar categorias coloniais e transformar
lugares de enunciação em arquétipos estanques. Nossa proposta aqui é o movimento
inverso, ou seja: não mais objetivar nossas subjetividades desde o banho cáustico das
lógicas hegemônicas, mas, sobretudo, reinventá-las desde um giro de perspectivas:
queerificar o olhar.
Várias tem sido as iniciativas nesse sentido e podemos, já, indicar como esse queerpotência tem operado como uma crítica colonial poderosa aos campos bem constituídos
dos saberes-poderes. Rea e Amâncio (2018) demonstraram como críticas queer de cor
circulam no contexto brasileiro e no sul global, implicando (e complicando) novas práticas
em relação a questões como imigração e racismos, por exemplo. Pelúcio (2012),
desenvolve outra excelente abordagem, em diálogo direto com autoras e autores da
periferia do sistema-mundo acadêmico. Sim, há algo que estudos feministas e queer podem
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aprender com Bhabha, Fanon e Quijano, por exemplo. Pereira (2015), por seu turno,
também escreve sobre as implicações decoloniais do queer – e vice-versa. Gomes (2018)
também desenvolve sua argumentação nesse sentido, recuperando pensadoras africanas e
decoloniais, pensando as implicações de se pensar o gênero “perspectivas como a
decolonialidade nos mostraram que o gênero pode ser uma forma de colonialidade e pode
produzir discursos que escondem a multiplicidade da vivência das relações fora do sistemamundo da colonial modernidade”, pensando suas consequências também para pensarmos
a noção de raça.
De um modo geral, o que tais textos apontam – e como buscaremos demonstrar a
seguir – é para as possibilidades de pensarmos esses queer desde outros eixos e voltandose para perspectivas a partir das quais tais questões não mais operam separadamente, mas
se interpenetram. A ver.
OUTRAS AXIALIDADES: QUEERIFICANDO-SE/DESCOLONIZANDOSE
Páginas atrás escrevíamos que a gramática moral à qual nos referimos não se
restringe à esfera da sexualidade. As autoras e autores mencionados anteriormente nos
permitem entender como, desde os queeres, temas como raça, imigração, colonialismo e
sexualidade se entrecortam.
É preciso compreender, preliminarmente, que o conceito de “civilização”, como
objetivo (racial, político, subjetivo, etc.) do empreendimento colonial, significa[va] o “projeto
ideológico do imperialismo” (YOUNG, 1998, p. 60) dentro do qual se inserem o racismo
moderno e a ciência. Em sua origem, as teorias de superioridade racial serviam para
justificar, moralmente, a expansão colonial tendo inclusive se tornado “o princípio comum do
saber acadêmico do século XIX” (idem, p. 113). Pode-se sugerir que o caráter
heteronormativo das políticas aplicadas aos povos colonizados fossem permeados dessa
perspectiva racial, operando como princípio ordenador da sociedade e da relação entre
Estado e indivíduos. Traçando um paralelo com a noção de colonialidade, o racismo viria a
unificar os diversos níveis da matriz colonial do poder (no controle da economia, da
autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e sexualidade, e da
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subjetividade e do conhecimento). O racismo surge, assim, como termo instrumental para
privar os seres humanos de sua humanidade, suprimindo também seu ser e seus saberes:
lhes são anuladas quaisquer condições de existência, dentro de seus próprios termos.
Como vimos, a ideia de “raça” para Quijano (2005) é central, posto ser esse o conceito
norteador e ordenador das lutas de poder e dos produtos delas derivadas: sexo, trabalho,
autoridade coletiva e a subjetividade/intersubjetividade.
Como indica Fernandes (2015), classe, raça e sexualidade não são esferas
separadas, mas partes e contrapartes de um complexo de relações construídas social,
cultural e historicamente, ratificadas por um sistema de poder que as perpassa: os
processos de heterossexualização compulsória, racialização e “civilização” interpenetram-se
e [re]constroem-se mutuamente. Nesse sentido também aponta Stoler (1995, pp. 7-12), ao
analisar a articulação, em Foucault, entre raça e sexualidade. Segundo ela, os discursos
sobre a moral sexual relacionam-se com as fronteiras raciais, marcando direitos de
propriedade, cidadania e reconhecimento: a ordem burguesa e o manejo colonial da
sexualidade se conectam. Assim, sexualidade (e raça) funcionam como mecanismos
classificatórios e ordenadores da relação entre características visíveis e propriedades
invisíveis (ou entre formas exteriores e essências internas) que compartilham sua
emergência concomitante à ordem burguesa. O que propomos aqui, ao sugerirmos
queerificar essas posições é buscá-las para além das relações de poder que permeiam, não
apenas economia, identidade, política, trabalho, mas também as esferas do saber, do
conhecimento e das subjetividades. Trata-se de “aprender a desaprender”, recuperando
uma perspectiva com paralelos claros com o que Walter Mignolo chama de desobediência
epistêmica:
A opção decolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos
fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de
conhecimento. Por desvinculamento epistêmico não quero dizer abandono
ou ignorância do que já foi institucionalizado por todo o planeta (por
exemplo, veja o que acontece agora nas universidades chinesas e na
institucionalização do conhecimento). Pretendo substituir a geo-política e a
política de Estado de conhecimento de seu fundamento na história imperial
do Ocidente dos últimos cinco séculos, pela geo-política e a política de
Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos,
subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua óbvia humanidade
foi negada). Dessa maneira, por “Ocidente” eu não quero me referir à
geografia por si só, mas à geopolítica do conhecimento.
Consequentemente, a opção decolonial significa, entre outras coisas,
aprender a desaprender (como tem sido claramente articulado no projeto
de aprendizagem Amawtay Wasi, voltarei a isso), já que nossos (um vasto
número de pessoas ao redor do planeta) cérebros tinham sido
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programados pela razão imperial/colonial. Assim, por conhecimento
ocidental e razão imperial/ colonial compreendo o conhecimento que foi
construído nos fundamentos das línguas grega e latina e das seis línguas
imperiais europeias (também chamadas de vernáculas) e não o árabe, o
mandarim, o aymara ou bengali, por exemplo. (MIGNOLO, 2008, p. 290).
(Grifamos).
Nesse sentido, esse desprendimento implica em uma rotação de perspectivas, a
partir da qual os queeres não são mais pontos de partida ou chegada, mas correm em
paralelo com reflexões para além do modelo de conhecimento estabelecido na estrutura de
saberes vistos como legítimos na ordem colonial burguesa moderna euronorcêntrica:
objetiva, externa, onisciente e sem parte com o sujeito. Como isso opera, na prática? Um
exemplo pode ser nossa experiência com o movimento two-spirit norte-americano3, junto ao
qual temos desenvolvido pesquisas e reflexões conjuntas ao longo dos últimos anos.
As ponderações do ativista cherokee, Qwo-Li Driskill vão no sentido acima:
O que os estudos queer nos dizem sobre imigração, cidadania, prisões,
bem-estar, luto e os direitos humanos?" Embora esses movimentos em
estudos queer estejam criando teorias produtivas, eles não têm tratado das
complicadas realidades coloniais dos povos indígenas nos Estados Unidos
e Canadá. Em uma tentativa de responder às perguntas acima
postuladas em contextos especificamente nativos, as críticas twospirit apontam para a incumbência de os estudos queer examinarem o
colonialismo em curso, o genocídio, a sobrevivência e a resistência
das nações e povos indígenas. Além disso, eles desafiam os estudos
queer para confundir as noções de nação e de diáspora, prestando
atenção às circunstâncias específicas das nações indígenas nos
fundamentos territoriais dentro dos quais Estados Unidos e Canadá
colonizam. Para levar as perguntas acima mais adiante, eu gostaria de
perguntar o que as críticas two-spirit podem nos dizer sobre essas
mesmas questões. Além disso, o que essas críticas podem nos dizer
sobre nação, diáspora, colonização e descolonização? O que elas têm
a dizer sobre os nacionalismos nativos, dos tratados de direitos, cidadania
e não-cidadania? [...] Como elas podem instruir a nossa compreensão dos
papéis de misoginia, a homofobia, a transfobia, e heterossexismo na
colonização? O que eles têm a dizer sobre a restauração do idioma nativo,
o conhecimento tradicional e sustentabilidade? O que as críticas two-spirit
podem nos ensinar sobre a resistência, sobrevivência e continuidade?
(DRISKILL, 2010, pp. 86-87 (tradução livre nossa) (destacamos).
A trajetória do movimento two-spirit é longa e complexa e uma síntese à altura nos desviaria demais
da discussão, de modo que fica como sugestão Fernandes (2015), já citado aqui. Contudo, fica como
ideia preliminar ser o two-spirit uma das faces das críticas queer indígenas nos EUA e Canadá,
voltada sobretudo para a crítica aos processos coloniais desde uma perspectiva cosmopolítica.
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O que parece claro, aqui, é que a atualização dessa identidade não pode ser
compreendida fora do contexto pós-colonial4. Assim, para compreendermos a emergência,
ou não, de movimentos indígenas homossexuais, faz-se necessário buscar entendê-los não
apenas enquanto demandas de gênero ou sobre o corpo, mas, sobretudo, como fenômenos
políticos relacionados a forma como sua relação com o Estado, com os próprios indígenas e
com a sociedade envolvente se mantém.
Outras obras, como aquela organizada por Driskill et al (2011) trabalham essas
questões, unindo “two-spirit critiques” e “queer indigenous critiques” (p. 22), por entenderem
que ambas se complementem: o queer na crítica à heteronormatividade, o two-spirit
enquanto crítica ao projeto colonial. A opção por trazer aos estudos two-spirit à teoria queer
contém, em si mesma, uma crítica aos usos acadêmicos do termo two-spirit. Vários
estudiosos do assunto acabaram colocando o uso do termo two-spirit em xeque, sem
perceber que isso ia diretamente de encontro às demandas dos ativistas two-spirit que
buscavam, justamente, um termo que agregasse uma identidade pan-indígena, mais do que
– como queriam os antropólogos – acentuasse especificidades locais e/ou culturais. Dessa
forma, à medida que o ativismo two-spirit se distanciava da academia, se aproximava da
literatura e das teorias queer, justamente pelo fato de que, como temos buscado apontar
aqui,
“Queer” pode funcionar como substantivo, adjetivo ou verbo, mas em
qualquer caso se define contra o “normal” ou normalizador. A teoria queer
não é um quadro de referência singular, conceitual ou sistemático, mas sim
uma coleção de compromissos intelectuais com as relações entre sexo,
gênero e desejo sexual. Se a teoria queer é uma escola de pensamento,
então ela é uma escola com uma visão bastante heterodoxa de disciplina.
O termo descreve um leque bastante diverso de práticas e prioridades
críticas: leituras da representação do desejo pelo mesmo sexo em textos
literários, filmes, música e imagens; análise das relações de poder sociais e
políticas da sexualidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudos de
identificação transexual e transgênero, de sadomasoquismo e de desejos
transgressivos. (SPARGO, 2006, pp. 8-9)
Assim, a opção pela teoria queer no lugar da Antropologia reflete um desejo – e
possivelmente a necessidade – de se obter maior visibilidade da (e na) própria produção
two-spirit, inclusive artística. Nesse sentido, o que chama a atenção nos estudos queer é
sua possibilidade de demonstrar o caráter de invenção da própria matriz de gênero,
O termo vem sendo utilizado aqui não enquanto marcador das relações entre as antigas colônias
americanas e suas metrópoles europeias, mas pela forma como este contexto é percebido a partir
das relações interétnicas e na literatura correspondente.
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verificando “os conflitos, as brechas, os interstícios, as fissuras e as disjunções que
possibilitam que os sujeitos subvertam as normas de gênero” (PEREIRA, 2006, p. 470).
Nesse sentido, sintetizando o argumento de Miskolci em seu texto (2009), não são
os sujeitos que criam experiências, mas as experiências que criam sujeitos, sujeitos esses
marcados por processos sociais que precisam ser reconstituídos, explicitados e analisados
pelo
autor,
incluindo
“a
necessidade
de
reconstituir
historicamente
e
analisar
sociologicamente os processos normalizadores que produzem esses outros, sem os quais o
hegemônico também não se constituiria nem manteria seu poder” (p. 174). Prossegue o
autor mais a frente:
a teoria queer mostra que identidades são inscritas através de experiências
culturalmente construídas em relações sociais, e o êxito de investigações
que busquem articular estas esferas dependerá do desenvolvimento de
metodologias que não apenas permitam estudar cada um dos componentes
do processo social de constituição das identidades, mas, sobretudo,
analisem as interdependências entre categorias, de forma que não resultem
na soma de opressões (p. 176).
Seguindo com nosso exemplo a partir da experiência two-spirit, talvez não se trate
mais de nos questionarmos se os povos indígenas são heteronormativos, homofóbicos, se
possuem heterossexualidade compulsória... se a teoria trata, como escreve Miskolci da
“desconstrução da ontologia social”, mais do que dicotomias homo/hetero cabe-nos ter em
mente questionar os vários processos e espaços de poder que situam as diferentes
perspectivas e práticas discursivas desses sujeitos que não são, mas estão.
A questão parece ser muito menos sobre os usos que os indígenas façam de seus
corpos (ou o próprio conceito de corporalidade, em si), ou as perspectivas étnicas, êmicas ou
heurísticas sobre sexualidades mas, sobretudo, o que os processos de poder que permeiam
as relações às quais esses sujeitos se vinculam. As formas como essas subjetividades
emergem e as eventuais implicações disso em termos de interpretação, necessariamente,
deverão levar em conta esse contexto mais amplo e relacional de poderes, tomando-o não
apenas como forma de resistência a um saber colonial quanto uma forma de expressão do
protagonismo desses sujeitos.
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ALGUMAS PROVOCAÇÕES INCONCLUSIVAS
Recuperando, indiretamente, algumas das questões postas ao longo deste artigo,
parece interessante apontarmos certas direções (não necessariamente as direções certas,
entenda) e ideias.
Pensar em outras axialidades não necessariamente implica em dispensar as várias e
evidentes contribuições já instituídas, histórica e sociologicamente, aos estudos do gênero
da sexualidade. Ao contrário, trata-se de chamar a atenção para como uma genealogia
linear e teleológica da institucionalização do campo no país - sobretudo confundindo o
campo com nomes com maior ou menor evidência a partir do mercado editorial ou com a
expansão de programas de Pós-Graduação - pode não ser, necessariamente, a melhor
estratégia de enfrentamento dessas questões. Isso porque pensar o desenvolvimento do
campo no país a partir da academia e de saberes institucionalizados fecha as portas para
possibilidades outras de pensar para além das possibilidades conceituais postas. De certa
forma, por iniciativas quase sempre localizadas às margens quase sempre não enxergamos
esses queeres para além do Queer pois buscamos enxergá-los justamente pelos filtros
epistemologicamente instituídos, e não por suas possibilidades epistemopolíticas. Tratamse de desprendimentos epistêmicos em potência, deslocados em suas práticas dos
mecanismos heteronormativos ainda que, nem sempre, partam diretamente de noções
como “interseccionalidade” ou “pós-modernismo”. Dessa forma, pensar em outras
axialidades pressupõe, justamente, se abrir para outras possibilidades ontológicas,
subjetivas e epistêmicas, compreendidas aqui como lugares de enunciação políticas de e
para as margens. Ou seja: não se trata repito, como foi dito aqui, de “jogar o bebê junto com
a água da bacia”, mas, justamente, de compreender que a bacia não é a única forma de se
dar banho em um bebê.
Os queeres no Brasil e na América Latina sempre existiram, com outros nomes e
formas e cabe a nós acessá-los. Como autores localizados na Amazônia não podemos
deixar de pensar, por exemplo, que a própria resistência das amazonas – mítica ou não,
que importa?... – descrita por Gaspar de Carvajal em meados do século XVI já era, de certa
maneira, queer. Quem sabe? Nada mais queer do que mulheres com sexualidades não
normadas enfrentando – e vencendo – o colonizador e rechaçando veementemente sua
gramática moral, normativa e [en]quadrada.
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Com isso queremos dizer, claramente, que possibilidades como o queerdel,
terreiros, beiras de rio, aldeias, favelas, nos oferecem um potencial de contraposição
epistêmica que transcende e ultrapassa limitações desde as quais e com as quais, várias
vezes nos deparamos ao trabalhar essas questões. E, às vezes, esvaziamos esse potencial
buscando limitar esse universo de possibilidades em nossas caixas conceituais, em nossos
percursos institucionais, em nossos – novamente – enquadramentos.
Isso implica, evidentemente, fazermos uma autocrítica à retórica pretensamente
neutra, mas sobretudo normalizadora das Ciências Humanas. O pressuposto da
neutralidade axiológica é base do saber moderno e ocidental, colonizado e, para
compreender essas práticas faz-se necessário ultrapassá-la. Tirá-los da condição de
objetos para tratá-los como realmente são: possibilidades epistemopolíticas.
Dito isso, lançamos aqui, de sobrevoo, algumas hipóteses:
1. Outras axialidades dizem respeito, repetimos, não à negação de contribuições
teóricas. Trata-se de oferecer uma chave interpretativa que ofereça um espaço
de contestação, partindo de uma relação crítica às várias formas de dominação;
2. A necessidade de romper com o pressuposto de que o periférico, seja lá o que
isso significa, seja uma nota de rodapé de sua própria história: trata-se de
construir e consolidar um espaço de resistência ontológica e necessária para
além das visões etno e euronorcêntricas, colonizadas, racializadas, ...
3. Novamente: trata-se de se propor uma reação crítica às hierarquias que buscam
internalizar no colonizado um complexo de hierarquias.... esse deslocamento é
uma possibilidade contestatória: olhar desde e para além de margens, fronteiras,
não mais pensadas como um sub-lugar, mas como uma noção outras
possibilidades;
4. Finalmente, nos referimos aqui às margens como um feixe de posições mutáveis
a serem adotadas na compreensão das outras formas de ser/estar no mundo.
Esse deslocamento implica, por si só, em uma atitude política no sentido de
desvelar os processos a partir dos quais essas epistemes-outras foram
obscurecidas por relações de colonialidade e colonialismo epistêmico.
5. Tais perspectivas foram e são subalternizadas à medida que esses sujeitos
foram coisificados. A senzala, o quilombo, o aldeamento, a beira do rio, a favela,
a aldeia, a fila do hospital, o baile funk, o campo de futebol, a periferia,...: são
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lugares de enunciação e de epistemes-outras que, dificilmente, podem ser
compreendidas
se
encapsuladas
nas
categorias
de
conhecimento
pretensamente neutras, universais, euronorcêntricas, modernas e, acrescentese: tediosas e sem potencial imaginativo aos quais, várias vezes, recorremos.
Vale, nesse sentido, um relato pessoal, a partir das nossas próprias pesquisas sobre
afetividades indígenas e aparato colonial... temos tido sérias dificuldades em demonstrar
que as críticas desses indígenas provêm de fraturas resultantes não apenas das ações
normalizadoras às quais esses sujeitos tem sido, desde o início da colonização – que
persiste até hoje – mas também violentados por nós, epistemologicamente...
Nesse caso específico, não se trata apenas de chamar a atenção aos processos de
poder e dominação, mas toma-los como lugares de fala: trata-se de tomar as fronteiras (no
sentido dado por Gloria Anzaldúa), as beiradas, as franjas, o não lugar, o in-between, a
zona de não ser da qual nos fala Fanon, o relacional, o reativo, o estar-siendo de Rodolfo
Kusch... o Queer, ao menos o nosso queer, caboclizado, é notadamente um movimento de
anti/pós/de/contra-colonial, dado que processos de heteronormatização, virifocalidade e
normalização são partes intrínsecas de um processo de incorporação de sujeitos à máquina
colonial... Seria possível, inclusive, queerificar Darcy Ribeiro, quando esse fala do moinho
de moer gente: no fim das contas, é essa a imagem contra a qual lutamos.
O momento pelo qual passamos, com a intensificação e radicalização de discursos
de ódio e intolerância nos obriga a uma episteme igualmente radical, oferecendo um
contraponto teórico, filosófico, político e existencial à altura. Um giro epistemopolítico radical
e radicalizador, fora do muro, fora do armário, fora e dentro da sala de aula. Transgressão,
subversão e problematizador de categorias e narrativas estáveis e unilineares.
Racismo e homofobia surgem lado a lado se constituindo, ao longo do processo de
colonização do continente, força motriz de inúmeras tentativas de normalização desses
sujeitos, seja pelas justificativas religiosas para sua dominação, até os discursos científicos
de que seriam eles risco ao modelo de nação que se buscava implementar em nuestra
américa, inclusive na terra brasilis... Ao olhar para grandes eventos, como o julgamento de
Valladolid, ou para a exposição antropológica brasileira de 1882, perdemos o foco.
Deixamos de perceber que essas estratégicas de normalização e normalização compulsória
ocorrem diariamente, sendo empregadas, localmente, por agentes coloniais muito mais
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próximas das próprias necessidades cotidianas, fora das grandes discussões filosóficas ou
existenciais.
Do mesmo modo, temos que compreender como esses processos operam em
piadas racistas, memes, no assédio às mulheres em transporte coletivo, etc., tais ações
somente são viáveis porque possuem um aparato ideológico no qual se sustentam.
Novamente, não nos referimos a nenhuma grande escola filosófica, mas a vídeos no
youtube, grupos de whatsapp, textões no facebook, e a personalidades e figuras
inomináveis encontradas nessas blogosferas. Ideias como a luta por direitos humanos se
tornou “Mimimi politicamente correto”. Falas como “nos tempos da ditadura era melhor”, ou
“ideologia de gênero é coisa do capeta” são socialmente mobilizadas em jantares de família,
conversas de boteco, intervalos de aula e reforçam posições sociais e de classe
culturalmente estabelecidas como hegemônicas e legítimas...
Nunca é o sujeito branco, cis, hétero, de classe média urbana do centro sul do país o
alvo da piada, ao contrário: ele é “o” lugar de enunciação tomado como padrão,
hierarquicamente superior e historicamente constituído...
Não é à toa que este momento é justamente aquele em que movimentos que
procuram contrapor essa lógica assimétrica de distribuição de poder – feminismos,
movimentos negros, LGBT, favelados, quilombolas, indígenas, etc. – são, justamente, os
mais ferozmente atacados. E é disso que se trata essa axialidade: um giro que contraponha
essa narrativa de renovação das relações colonialmente constituídas.
É possível, por exemplo, um queer que pense, por exemplo, o desenvolvimento da
Amazônia, o desmatamento, movimentos de mulheres quebradeiras de coco, garimpos?
Talvez os próximos passos sejam a caboclização do queer, a indigenização do queer, a
cordelização do queer. Urge retomar e transcender epistemes mais radicais. Uma teoria
social que não enxergue suas próprias contradições e repercussões apenas reforça tais
obscurecimentos.
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