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Limites das identidades e devir monstruoso queer

Caderno Espaço Feminino

Neste artigo propomos a atividade especulativa de realizar uma pergunta à autora Judith Butler: "o que pode um corpo?". A partir dessa pergunta, propomos tensionar o pensamento de Butler para dele fazer emergir um devir monstruoso, terrorista e (an)árquico. Para traçar essas linhas propostas, dividimos o artigo em duas seções que seguem à introdução. Na primeira seção, nos dedicamos a explorar a dimensão do corpo na teoria de Butler a partir de dois eixos operativos: as lógicas do reconhecimento e a performatividade. Já na segunda seção, buscamos explorar a nossa aposta queer em devires monstruosos do corpo como um método crítico de destituição da lei, colocando o pensamento de Butler em diálogo com outros autores como Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado e Karen Barad. Por fim, enquanto caminhos possíveis, apontamos para as linhas iniciais do que chamamos de um devir monstruoso queer.PALAVRAS-CHAVE: Teoria queer. Judith Butler. Reconhecimento. Identidade. Lei.

DOI: http://dx.doi.org/10.14393/CEF-v35n1-2022-21 Limites das identidades e devir monstruoso queer: uma conversa com Judith Butler Limits of identities and queer monstrous becoming: a conversation with Judith Butler Igor Viana 1 Thiago César Carvalho dos Santos 2 RESUMO Neste artigo propomos a atividade especulativa de realizar uma pergunta à autora Judith Butler: "o que pode um corpo?". A partir dessa pergunta, propomos tensionar o pensamento de Butler para dele fazer emergir um devir monstruoso, terrorista e (an)árquico. Para traçar essas linhas propostas, dividimos o artigo em duas seções que seguem à introdução. Na primeira seção, nos dedicamos a explorar a dimensão do corpo na teoria de Butler a partir de dois eixos operativos: as lógicas do reconhecimento e a performatividade. Já na segunda seção, buscamos explorar a nossa aposta queer em devires monstruosos do corpo como um método crítico de destituição da lei, colocando o pensamento de Butler em diálogo com outros autores como Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado e Karen Barad. Por fim, enquanto caminhos possíveis, apontamos para as linhas iniciais do que chamamos de um devir monstruoso queer. PALAVRAS-CHAVE: Teoria queer. Judith Butler. Reconhecimento. Identidade. Lei. ABSTRACT In this article, we propose the speculative activity of asking the author Judith Butler a question: "what can a body do?". Based on this question, we propose to tense Butler's thought so that a monstrous, terrorist and (an)archical becoming emerges from it. To trace these proposed lines, we have divided the article into two sections that follow the introduction. In the first section, we dedicated ourselves to exploring the dimension of the body in Butler's theory based on two operative axes: the logic of recognition and performativity. In the second section, we seek to explore our queer bet on monstrous becomings of the body as a critical method of deposing the Law, putting Butler's thought in dialogue with other authors as Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado and Karen Barad. Finally, as possible ways, we point to the opening lines of what we call queer monstrous becoming. KEYWORDS: Queer theory. Judith Butler. Recognition. Identity. Law. 1 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com bolsa CAPES. Pesquisador visitante do Law & Theory Lab na University of Westminster. Ator formado pelos cursos livres de teatro do Galpão Cine Horto. E-mail: [email protected] 2 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com bolsa CAPES. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Pesquisador do grupo “O estado de exceção no Brasil contemporâneo: para uma leitura crítica do argumento de emergência no cenário político-jurídico nacional”. E-mail: [email protected] Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 438 *** Vozes existem, vorazes pelas matérias. Vocês pensam que minha existência não existe, mas precisam saber que vozes existem sim e invadem matérias. E são vorazes pelas matérias. Por aleatoriedade, escolhi falar como feminina, enquanto vossa espécie não decide se fala como macho ou como fêmea. Sei também que vocês têm dificuldade de entender o que não é vocês mesmos. Mas vou tentar explicar. Sou uma voz. Só isso. (Grace Passô - Vaga Carne) Introdução: o que pode um corpo? Este é um texto que surge da experiência dos seus autores, ao longo de suas trajetórias de pesquisa e de vida, com o pensamento da filósofa Judith Butler. A autora foi como um norte para nossa formação, especialmente durante a existência do grupo de estudos e pesquisa intitulado Políticas da Performatividade: análise da teoria política de Judith Butler, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo de anos, discutimos semanalmente a obra e as potencialidades do pensamento de Butler no campo do direito e da política. A partir desse diálogo, propomos – e até mesmo ousamos – interpelar a autora que nos interpela e nos gera interesse há bastante tempo. Para essa interpelação, convocamos o auxílio de Baruch Spinoza e da pergunta que lhe foi atribuída por Gilles Deleuze: “que pode um corpo?” (DELEUZE, 2017, p. 239). Essa indagação costuma ser associada a um trecho 3 da terceira parte da “Ética” de Spinoza que se dedica à reflexão sobre a origem e a natureza dos afetos. Assim, fazemos a pergunta à Butler: o que pode um corpo? E agenciamos uma possível resposta por meio do diálogo com sua obra. Um diálogo que, seguindo a advertência de Deleuze, 3 Cf.: “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer” (SPINOZA, 2017, p. 175). Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 439 saiba levar "um pouco da alegria, da força, da vida amorosa e política que ele [autor] soube dar, inventar." (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 137). Nessa conversa com a autora e a partir dessa pergunta, propomos tensionar o pensamento de Butler para dele fazer emergir um devir monstruoso, terrorista e (an)árquico (MATOS, 2015, p. 170). Não que essas características estejam totalmente ausentes em sua obra, mas queremos fazer com que essas perspectivas ganhem novas intensidades. Assim, interpelamos a autora não apenas para apontar supostos limites do seu pensamento, mas para fazer nascer possibilidades outras em diálogo com autores, como Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado e Karen Barad. E, por isso, falamos de uma Butler que possa contribuir para uma crítica radical da lei, uma crítica queer. Para traçar as linhas aqui propostas, dividimos o artigo em duas seções que seguem à introdução. Na primeira seção, nos dedicamos a explorar a dimensão do corpo na teoria de Butler a partir de dois eixos operativos: as lógicas do reconhecimento e a performatividade. Já na segunda seção, buscamos dar novas intensidades ao pensamento da autora, explorando a nossa aposta queer em devires monstruosos do corpo como um método crítico de destituição da lei, colocando o pensamento de Butler em diálogo com outros autores. Por fim, na conclusão, apontamos para as linhas iniciais do que chamamos de um nomos queer. 1. O corpo em Butler: lógicas de reconhecimento e performatividade Judith Butler, um expoente notável dentro da teoria queer, tem se dedicado especialmente nos últimos anos à construção de uma teoria política da e pela diferença. A autora vem tecendo reflexões sobre o caráter produtivo de novas possibilidades de existência política por meio da exposição e do aparecimento de corpos historicamente subtraídos de direitos na esfera pública (BUTLER, 2018). A autora vai dizer então que uma política democrática radical – que ela propõe ao pensar a atuação de tais lutas sociais Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 440 por reconhecimento – não se basta apenas por estender o reconhecimento igualmente a todas as pessoas, mas, ao contrário, deve alterar a relação entre reconhecível e irreconhecível a ponto de construir um outro entendimento de igualdade e uma elaboração mais aberta da noção de povo. A autora vai assim se debruçar sobre os processos sociais de produção de reconhecimento de níveis de humanidade nos corpos, para garantia de direitos ou distribuição de precariedades na trama social. Nesse sentido, são produzidas subjetividades que atendam – ou desviem, já que o excesso é integrante da dinâmica de reprodução normativa, como explicitamos mais a frente – aos critérios de uma norma imposta para incorporação e materialização dos indivíduos. Tais critérios de reconhecimento são o que definem as possibilidades de agência política e aparecimento público das identidades. (...) O próprio corpo é dividido entre um que aparece publicamente para falar e agir e outro, sexual, pulsante, feminino, estrangeiro e mudo, que geralmente é relegado à esfera do privado e do pré-político. (...). Quando algum domínio da vida corporal opera como a condição sequestrada ou repudiada para a esfera do aparecimento, ele se torna a ausência estruturante que governa e torna possível a esfera pública. (BUTLER, 2018, p. 95-96). Butler vai pensar o reconhecimento a partir do conceito de matriz de inteligibilidade (2017b), a qual se define pelo modo pelo qual se organizam as identidades, prescrevendo critério de determinação a determinados corpos, à medida que exclui outros. Desta forma, as identidades "inteligíveis" são aquelas que mantêm uma relação de coerência, continuidade e estabilidade com os padrões sócio-político-jurídicos postos. Todas e todos que rompem, em alguma medida, com esse regime instituído, se deparam com uma condição de ininteligibilidade, e portanto de impossibilidade de existência social, estando Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 441 susceptíveis a diversos níveis de violência e reprovação. Tal matriz estipula, assim, o que podem os corpos dentro desse regime. Contudo, Butler (2017b) ressalta o caráter artificial, histórico e contingente de tal regime de inteligibilidade, preservado mediante signos corpóreos e discursos de verdade. Desenvolve, assim, sua noção de performatividade, central em sua obra e a partir da qual as lógicas de reconhecimento passam a ser pensadas. Para Butler (2017b), a maior promessa da travestilidade, por exemplo, não é a proliferação de identificações de gênero, mas a exposição da incapacidade dos regimes heterossexuais em legislar ou conter por completo seus próprios ideais. Haveria, portanto, um duplo constitutivo do discurso que é sua condição limitante de existência e ao mesmo tempo possibilidade de transformação rearticulatória da tecitura social. Tratam-se de corpos que efetivamente reivindicam o que podem. Transitar pelas normas de gênero é uma forma potente de rearticular essas próprias normas no sentido de expor sua “não imobilidade”, ou seja, sua performatividade. É justamente no trânsito e na possibilidade de transitar e transviar que conseguimos configurar novas formas de existência. Constituise, assim, uma forma complexa e paradoxal de lidar com a norma, geradora de sofrimento e lugar potencial para a politização transformadora (BUTLER, 2004, p. 220). Entretanto, como essa articulação com a norma se dá? Ou melhor, como ela se torna possível? Neste ponto, pensamos ser necessário um breve mergulho teórico na noção de performatividade e acreditamos que o esquema metodológico de apresentação dessa noção na obra da Butler, criado por Carla Rodrigues, pode nos ser bastante útil. Para Rodrigues (2019, p. 29-30), a performatividade em Butler pode ser pensada em três tempos: herança da virada linguística; performatividade de gênero; e performatividade dos corpos. Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 442 Em um primeiro tempo: herança da virada linguística, a ideia de performatividade é resgatada por Judith Butler por meio do diálogo com Jacques Derrida: O relato de Derrida tende a acentuar a relativa autonomia da operação estrutural do signo, identificando a "força" do performativo como uma característica estrutural de qualquer signo que deve romper com seus contextos anteriores, a fim de sustentar sua iterabilidade como signo. A força do performativo, portanto, não é herdada do uso anterior, mas resulta precisamente de sua ruptura com todo e qualquer uso anterior. Essa ruptura, essa força de ruptura, é a força do performativo, além de toda questão de verdade ou significado (BUTLER, 1997, p. 148, tradução nossa) 4. Em “Assinatura, acontecimento, contexto”, Derrida retoma e dialoga com a teoria dos atos de fala de John Austin (DERRIDA, 1991, p. 349-373). Para Austin existiriam os enunciados constatativos e os enunciados performativos (com força de produzir efeitos na realidade através da própria enunciação). Derrida amplia as proposições de Austin, reconhecendo o caráter performativo de todo ato de fala, além de uma necessária dependência da iterabilidade (caráter relativamente aberto dos signos, que permitiria a possibilidade da ruptura na repetição) e da citação (repetição em deslocamento de contextos): Qualquer signo, linguístico ou não-linguístico, falado ou escrito (no sentido corrente desta oposição), em pequena ou grande unidade, pode ser citado, colocado entre aspas; com isso pode romper com todo o contexto dado, engendrar infinitamente novos contextos, de forma absolutamente não 4 No original: Derrida's account tends to accentuate the relative autonomy of the structural operation of the sign, identifying the "force" of the performative as a structural feature of any sign that must break with its prior contexts in order to sustain its iterability as a sign. The force of the performative is thus not inherited from prior usage, but issues forth precisely from its break with any and all prior usage. That break, the force of rupture, is the force of the performative, beyond all question of truth or meaning. Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 443 saturável. Isso não supõe que a marca valha fora do contexto, mas, pelo contrário, que não existem contextos sem qualquer centro de referência absoluto (DERRIDA, 1991, p. 362). Segundo Derrida, a divisão dos enunciados sugerida por Austin carregaria a pressuposição de um sujeito intencional consciente da totalidade de sua fala, o que seria impossível para o pensamento derridiano de contextos de insaturáveis: Para que um contexto seja exaustivamente determinável, no sentido requerido por Austin, seria necessário pelo menos que a intenção consciente fosse totalmente presente e atualmente transparente a si própria e aos outros, na medida em que constitui um foco determinante do contexto (DERRIDA, 1991, p. 369). Na concepção derridiana, todo ato de fala depende de sua possibilidade de repetição e citação, o poder reiterativo do discurso é que produz os fenômenos que regula e contém. Seria, portanto, impossível entender os atos de fala sem o campo de atuação da cadeia citacional. Essa ideia é resgatada por Butler para afirmar que há sempre um contexto que é invocado e é simultaneamente desocupado no momento da enunciação. É esse caráter relativamente aberto (iterabilidade) da estrutura dos signos que permite o seu movimento. Dessa forma, iterabilidade e citacionalidade são ideias extremamente importantes para o pensamento de Judith Butler, o que inaugura o nosso segundo tempo: performatividade de gênero. Em Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade (2017b), importante obra para o pensamento queer e para a rearticulação do pensamento feminista, Butler nos diz que é exatamente na exigência da repetição das normas que reside a força e a fragilidade da autoridade do ato performativo. Em suas palavras, “não há identidade de gênero por trás das Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 444 expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias expressões tidas como seus resultados” (BUTLER, 2017b, p. 56). Assim, a repetição é o que garante a força da lei, mas é também o que permite o seu desvio de curso. A cadeia citacional apresenta uma abertura de fundação para novos contextos a partir dos deslocamentos com efeitos críticos de rearticulação da tecitura social e de permanente problematização da categoria de “identidade”: A estratégia mais insidiosa e eficaz, ao que parece, é a completa apropriação e deslocamento das próprias categorias de identidade, não meramente para contestar o "sexo", mas para articular a convergência de múltiplos discursos sexuais para o lugar da "identidade", a fim de problematizar permanentemente essa categoria, sob qualquer de suas formas (BUTLER, 2017b, p. 222). Esses deslocamentos são analisados inicialmente por Butler nas performances de drag queens que deslocam os quadros de inteligibilidade do gênero ao exporem sua dimensão performativa que não guarda relação alguma com a suposta metafísica da substância dita anterior ao corpo e suas práticas. É justamente em função da performatividade que Butler pensa a relação do sujeito com a norma de forma dialética, assim como nos diz Carla Rodrigues, existe uma tensão permanente entre manutenção e subversão da norma (RODRIGUES, 2019, p. 34). É importante ressaltar que Butler não nos parece negar completamente a identidade. Em A vida psíquica do poder (2017a), a autora vai apresentar a formação do sujeito como um processo paradoxal necessário. A partir da investigação sobre os efeitos do poder sobre o sujeito, chega a concluir que é a partir da introjeção do poder que o sujeito se forma, e tornase subordinado/dependente dessa relação. Nesse sentido, é possível dizer que Butler não visualiza qualquer possibilidade de existência política fora dessa Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 445 dinâmica que agencia subjetividades e, na mesma medida, gera seu assujeitamento. Em Corpos que importam (2019), Butler vai dizer que "se trata de um erro necessário a generalização temporal realizada por categorias identitárias." Desta forma, se a identidade é um erro necessário, o nosso trabalho deve ser de construir um posicionamento crítico perante tais ficções identitárias, de maneira a tensioná-las e/ou subvertê-las a partir de suas contradições constitutivas, ao passo que não seria possível abandoná-las completamente. Essa tensão entre manutenção e subversão da norma na produção das identidades e dos limites dos corpos está presente no próprio campo político, o que nos permite entrar no que seria o terceiro tempo: performatividade dos corpos. Para Butler, os gestos corporais são performativos e constitutivos do político. Os corpos reunidos no espaço público de alguma forma “exercem o poder performativo de reivindicar o público de uma maneira que ainda não foi codificada em lei e que nunca poderá ser completamente codificada em lei” (BUTLER, 2018, p. 134). Quando corpos, precarizados em suas condições de vida, saem às ruas para se afirmarem enquanto sujeitos políticos que se fazem existentes, eles já estão exercendo um ato político por excelência. Antes de qualquer formulação de demandas políticas, esses sujeitos se reconhecem como “precarizados”, seus corpos já carregam uma história e um sentido antes de qualquer ato de fala linguístico (BUTLER, 2018, p. 147-148). Esses corpos performam uma forma de igualdade frente à intensa desigualdade da realidade ao se reunirem em assembleia sob bases igualitárias. Ela propõe que o próprio ato de aparecimento e (re)existência no espaço público dessas identidades marginais é, em si, um ato performativamente subversivo da norma hegemônica, a qual produz e distribui precariedades (BUTLER, 2018). O modo de atuação dessa norma é sempre apagar, invisibilizar, "obscenizar", marginalizar tais corpos. Nesse sentido, trazer à Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 446 luz pública tais existências materiais compõe um ato desestabilizador das normas de reconhecimento e do sistema político e legal. Para aqueles apagados ou rebaixados pela norma que se espera que incorporem, a luta se torna uma batalha corpórea por condição de reconhecimento, uma insistência pública em existir e ter importância. Assim, é apenas por meio de uma abordagem crítica das normas de reconhecimento que podemos começar a desconstruir esses modos mais perversos de lógica que sustentam formas de racismo e antropocentrismo. (BUTLER, 2018, p. 44). Para Butler, o corpo não mais pode ser entendido enquanto mero instrumento da ação política (BUTLER, 2018, p. 152-153). Ele é uma precondição de qualquer ato de protesto político. Corpos performam sentidos políticos pelo espaço em uma luta concreta pelo estabelecimento de condições de vida digna e mais sustentáveis frente a sua crescente precarização; reivindicam para si o que podem, no aqui e agora. Assim, a partir do exemplo das lutas contemporâneas pelo reconhecimento jurídico e político de identidades precarizadas, a autora propõe uma política radicalmente democrática pautada no alargamento das medidas de reconhecimento. Explica que esse processo precisa ser contínuo, eis que toda vez que a forma de reconhecimento é estendida, permanece uma premissa ativa de que existe uma vasta região do irreconhecível – ainda que agora também ampliada. Então, o signo queer como uma aliança pela autora (BUTLER, 2018), ao invés de uma identidade, a qual representa esse indefinido não identificável que atravessa todas as formas de vida acostadas às margens e sujeitas às precariedades produzidas socialmente. Diz a autora: "O termo queer não designa identidade, mas aliança, e é um bom termo para ser invocado quando fazemos alianças difíceis e imprevisíveis na luta por justiça social, política e econômica" (BUTLER, 2018, p. 79). Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 447 Nesse sentido, nos parece que a proposta de Butler na obra em questão é uma política permanente de alargamento das identidades reconhecíveis e da garantia de condições materiais de existência e (sobre)vivência social dessas subjetividades. Afinal, é isso que o corpo poderia? Tornar-se reconhecido e convertido em identidade. Parece que essa seria a resposta da autora: corpos investidos no processo contínuo de produção de novas subjetividades marginais, cada vez que os critérios de inteligibilidade são performativamente atualizados, e reconhecidos no plano jurídico e político. 2. Limite dos corpos e corpos dos limites: produção (i)material da subjetividade e da vida A partir do debate teórico apresentado anteriormente, parece-nos ser importante e urgente pensar o agir político revolucionário a partir do reconhecimento contínuo das identidades "irreconheciveis". Entretanto, aqui propomos um avanço nos debates retomados, com vias a alcançar uma análise da possível expansão do reconhecimento como parte integrante de uma lógica de perpetuação da violência pela política contemporânea, algo que nos parece ausente na perspectiva de Butler. Para tal, faz-se necessário traçar um percurso que já tem sido anunciado nos conceitos teóricos de vida nua de Giorgio Agamben (2010), de devir negro de Achille Mbembe (2018), ou mesmo do que Paul B. Preciado (2018) vai chamar de corpos potencialmente penetráveis (cyber-putas), para, então, pensarmos a partir da noção de performatividade intramatéria de Karen Barad (2017). Um dos primeiros autores que trazemos para conversar com a Butler, de maneira a complexificar a dinâmica de alargamento do (ir)reconhecimento das identidades é Giorgio Agamben. O conceito de vida nua, desenvolvido pelo autor e também criticado diversas vezes por Butler 5 é apresentado por 5 Butler dedica várias páginas do livro “Corpos em aliança e a política das ruas [...]” (2018) para ressaltar que aqueles excluídos da esfera pública não têm sua vida reduzida à mera existência, a “vida nua”, eis que não perdem sua capacidade de se unir e de resistir, não perdem aparência ou “realidade” em termos políticos. Assim, não se encontram excluídos da esfera da ação, estando, com frequência, Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 448 Agamben (2010) como o paradigma da produção subjetiva da contemporaneidade. Trata-se do limiar de indiscernibilidade entre vida politicamente qualificada e vida biológica, constituído pelo regime biopolítico o qual se insere sob os corpos a partir do argumento de manutenção e proteção vital para determinar os modos de vida e existência dos sujeitos. O autor apresenta como figura arquetípica da vida nua o homo sacer. Este instituto concebido no direito romano arcaico aduz que, como forma de sanção pelo cometimento de um delito, o homem passa a ser dotado de sacralidade, portanto destinado aos deuses. Nesse sentido, a sacralidade implica em impune occidi (morte não punível) e a exclusão do sacrifício. Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem considerado malvado ou impuro costuma ser chamado sacro. (AGAMBEN, 2010, p. 74). Desta forma, o homo sacer se situa no limiar entre a matabilidade e a insacrificabilidade, entre o ius divinum (direito divino) e o ius humanum (direito humano), é uma vida sacra, no entanto matável. Trata-se de um reconhecimento dado como que pelo seu inverso: designa-se uma condição ao indivíduo (a sacralidade) a qual remove absolutamente o reconhecimento daquela vida como "digna de ser vivida", e portanto que pode ser ceifada a qualquer momento. Contudo, e esse ponto que mais nos interessa, Agamben (2010) vai explicar que a dinâmica “insacrificabilidade/matabilidade” da vida se mostra insuficiente para decifrar a violência que está em questão na biopolítica enraivecidos, indignados, revoltados e opondo resistência. Contudo, não nos parece que a possibilidade de resistência esteja dissipada na obra de Agamben. Pelo contrário, seria justamente no ponto em que o poder é exercido de maneira mais extrema sobre a vida nua que se encontra a resistência. É no extremo da vida nua que se descobre “uma vida”; no extremo da manipulação e decomposição do corpo que esse se encontra como virtualidade, imanência, pura potência. Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 449 moderna, uma vez que a vida está exposta a violências sem precedentes, as mais profanas e banais. Sendo assim, a vida insacrificável tornou-se unicamente matável, vez que a sacralidade foi inserida em zonas cada vez mais vastas e obscuras pela política contemporânea, até coincidir com a própria vida biológica dos cidadãos. Trata-se de um processo constante de avanço dos limiares de reconhecimento das vidas dignas de serem vividas, ao mesmo passo que empurra essas mesmas vidas para o abismo do não reconhecimento, possibilitando que qualquer um possa ter seu título de humanidade retirado a qualquer momento, de acordo com os interesses do poder soberano. É então que o autor diz que todos somos virtualmente homines sacri. (AGAMBEN, 2010, p. 113). A sacralidade da vida, que se desejaria fazer hoje contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida ao poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2010, p. 85). Ao se inserir sobre todos os corpos a partir da vida biológica, o poder constitui como capturáveis, e consequentemente matáveis, todas as vidas – humanas ou não. Assim, “a vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente” (AGAMBEN, 2010, p. 135). Não se trata, portanto, de uma mera questão de "violência de Estado", mas de uma lógica operativa e constitutiva da própria modernidade, o que nos parece escapar à análise de Butler. Paul B. Preciado, por sua vez, vai apresentar uma análise nessa mesma direção em Testo Junkie (2018), ao explicar o processo de extração constante de energia de excitação e de trabalho sexual dos corpos subalternos pelo o império farmacopornográfico se alimenta da força de trabalho sexual. O império explora os corpos tanto pelo eixo farmacológico (por meio de moléculas Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 450 consumíveis e absorvíveis pelo corpo com o objetivo de promover prazer ejaculatório), a partir da representação pornográfica (segundo signos semiótico-técnicos convertido em dado numérico ou transferido pelas mídias) ou mesmo pelo serviço sexual direto (o trabalho sexual colocado diretamente a serviço do consumidor por determinado tempo). Assim, o capitalismo farmacopornográfico transforma todos os corpos, proletariados globais do sexo biotecnologicamente conectados à rede de exploração ejaculatória, em corpos potencialmente penetráveis ou penetrantes, capazes de dar ou receber o fluxo da força orgásmica. Cada trabalhador entra na fábrica farmacopornô na condição de “penetrável-penetrante”, facilitador de secreção ou secretor, fornecedor de alguma coisa pra injetar, ou corpo viciado, como uma plataforma toxicológica produtiva ou dependente. Ou ambos. Tais segmentações não dependem de um tipo de predisposição biológica, inata ou adquirida; são para todos os corpos que possuem ânus, boca ou qualquer orifício otorrino potencialmente penetrável. Todos os corpos que possuem língua, dedos ou braços são potencialmenente penetrante ou podem servir como porto de inserção protética (dildônica ou cibernética). Todo corpo é capaz de produzir excitação sensorial de algum tipo (de linguagem, de imagem, de cheiro, de toque), todo corpo pode chupar e ser chupado. Todo corpo é ao mesmo tempo tóxico e viciado, “normal” e deficiente, orgânico e tecnologicamente suplementado. (PRECIADO, 2018, p. 316-317). Preciado (2018, p. 317) então conclui que a “divisão do trabalho sexual não depende de uma condição natural, mas de uma especialização técnica do corpo, de uma programação somatopolítica”. Quando se trata de ser uma fonte de energia de excitação, qualquer corpo pode se tornar uma tecno-puta multimídia para satisfação do mecanismo global ejaculatório. Essa indiscernibilidade da condição de penetrável-penetrante coincide igualmente com o mecanismo exceptivo desenvolvido por Giorgio Agamben a partir do conceito de “vida nua”. Mais uma vez, trata-se de uma lógica operacional do Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 451 próprio capitalismo farmacopornográfico que inclui – necessariamente – a partir de seus sistemas de funcionamento e exploração da força do trabalho sexual. Processo semelhante é igualmente observado por Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra (2018) acerca do que ele nomeia um "devir-negro do mundo", que abarca desempregados, descartáveis, favelados, imigrantes. O autor vai explicar o processo pelo qual o Negro tem se tornado um processo de subjetivação, dentro da mecânica neoliberal, de constante submissão das subjetividades à exploração material e simbólica em favor do capital. Nesse sentido, Mbembe vai dizer que toda a humanidade corre o risco e caminha para tornar-se negra, eis que a expansão dos mecanismos de subalternização e submissão passam a atingir virtualmente a todos. O sujeito negro, essa ficção racial criada para manter o sistema de exportação de mão de obra da África e garantir a escravização desses corpos sem qualquer estatuto jurídico para alimentar a máquina colonial europeia, se universaliza: Pela primeira vez na história humana, o nome negro não remete mais somente à condição imposta às pessoas de origem africana na época do primeiro capitalismo. É essa fungibilidade nova, essa solubilidade, sua institucionalização enquanto nova norma de existência e sua generalização ao conjunto do planeta que nós designamos de devir-negro do mundo. (MBEMBE, 2018). Trata-se, assim, de um forçar constantemente as subjetividades aos limites pela máquina biopolítica contemporânea. Esse mecanismo possibilita que, qualquer um, potencialmente ou virtualmente, seja exposto às condições de precariedade e violência constitutivas da margem do sistema, sendo isso o que garante a contínua extração dos fluxos da produção que alimentam o capital. Ou seja, para manter a estrutura de dominação e exploração e que os indivíduos continuem produzindo e consumindo de acordo com a métrica Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 452 imposta, é necessário que todos estejam constantemente sendo empurrados para o abismo terrível que é a vida nas margens. Nesse sentido, e aqui chegamos ao nosso argumento central, nos parece que, ao mesmo passo que a proposta de contínua expansão dos limites de reconhecimento, em atenção a Butler, seja uma estratégia garantidora de condições materiais de vida para diversas identidades; essa mesma expansão dos limites faz parte do processo integral do próprio sistema de dominação, exploração e descartabilidade da máquina capitalista. Talvez seja isso o que Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) nomeiam de contínua desterritorialização constitutiva da mecânica capitalista. E por isso insistimos que um corpo deve poder mais do que simplesmente expandir os seus limites de reconhecimento. Assim, talvez apenas atuar nos limites, de maneira a tensioná-los e expandir a gramática de reconhecimento, nada mais faz do que reinserir no sistema novas identidades e novos corpos de extração de produção, e tão logo serem descartados como corpos inúteis. Nos parece que é justamente diante desse processo que o capital continua se apropriando das pautas identitárias. Qual seria, então, a saída para esse constante processo de reinserção e refluxo das identidades para dentro da estrutura hierárquica de exploração? Talvez a aposta queer deva ser tomada em toda sua potencialidade performativa de afirmação da vida. Efetivamente explorar as potencialidades dos corpos ("o que pode um corpo?"), não como resultado da inserção ou relação com o poder, mas como produção material de realidade em si. Para isso, seria preciso avançar nas próprias dinâmicas de subjetivação e reconhecimento descritas por Butler, admitindo algo de ativo, desde sempre, na própria constituição do corpo ou da matéria. Assim, apesar de extremamente instigante e importante, a concepção da performatividade corpórea de Butler pode ser ainda mais radicalizada em uma direção queer ou intramaterial, como apontam os estudos dos novos materialismos (GAMBLE; HANAN; NAIL, 2021, p. 200). O novo materialismo performativo, a partir da ciência de vivermos no antropoceno, reivindica uma Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 453 compreensão radicalmente materializada dos processos constitutivos do mundo. Para essa compreensão existe uma performatividade intramatéria que não é tão evidente na teoria da Butler e que é justamente o que nos permite entender a relação radical entre corpos, sejam humanos ou não. Para Christopher N. Gamble, Joshua S. Hanan e Thomas Nail: [...] a teoria da matéria de Butler ainda é fundamentalmente definida e impulsionada por uma falha – ou seja, pelo fracasso perpétuo e contínuo do discurso humano na tentativa de sempre capturar total ou completamente a matéria. Embora a localização específica da linha divisória entre a matéria e o discurso esteja sempre mudando, Butler continua a presumir que essa mesma linha divisória deve continuamente ser traçada em algum lugar. Em outras palavras, Butler continua a presumir que realmente existe uma divisão ontológica pré-existente e imutável entre o discurso humano e a matéria, como domínios. Como Vicki Kirby coloca, a matéria como tal “é tornada indizível e impensável no relato de Butler, pois a única coisa que pode ser conhecida sobre ela é que excede a representação”. E assim, na interpretação de Butler, a matéria é “constitutiva” ou “ativa” apenas em virtude de sua recalcitrância, isto é, apenas na medida em que resiste passivamente a ser capturada por aquilo que essencialmente não é matéria (isto é, discurso humano). GAMBLE; HANAN; NAIL, 2021, p. 200). Karen Barad em seu texto Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria (2017, p. 14), atribui essa limitação da teoria butleriana para tratar de uma pura atividade da matéria à herança foucaultiana de compreensão da relação discurso-matéria. Para se entender os mecanismos do poder seria fundamental um entendimento da natureza do poder na sua total materialidade. A produtividade do poder não se restringe ao domínio do “social” e a matéria não é meramente um produto final das relações de poder, portanto: Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 454 Faz-se necessária uma robusta conta da materialização de todos os corpos — “humanos” e “não humanos” — e das práticas material-discursivas através das quais suas constituições diferenciais são marcadas. Isso requisitará uma compreensão da natureza da relação entre práticas discursivas e fenômenos materiais, uma consideração das formas de agência “não humanas” em como “humanas”, e um entendimento da precisa natureza causal das práticas produtivas que leve em conta de modo integral a implicação da matéria em sua própria e contínua historicidade. Minha contribuição para o desenvolvimento de tal compreensão se baseia num juízo filosófico que tenho chamado de “realismo agencial” (BARAD, 2017, p. 16). Para essa compreensão de um realismo agencial, a “matéria não se refere a uma substância fixa; matéria é substância em seu devir intra-ativo – não uma coisa, mas um fazer, um espessamento da agência” (BARAD, 2017, p. 26). A matéria não é uma propriedade, mas seria antes de tudo um processo, um devir, estabilizante e desestabilizante da intra-atividade. Dessa forma, a matéria não seria simplesmente uma espécie de citacionalidade ou do “efeito de superfície de corpos humanos, ou o produto final de atos linguísticos ou discursivos” (BARAD, 2017, p. 26). A intra-atividade implica a matéria no fenômeno de sua própria materialização, dimensão que na visão de Barad não estaria presente em toda sua intensidade na teoria de Butler: Em sua crítica ao construtivismo dentro da teoria feminista, Judith Butler apresenta uma noção de materialização que procura reconhecer estes pontos importantes. Reelaborar a noção de matéria como um processo de materialização traz à tona a importância de reconhecer a matéria em sua historicidade, e desafia diretamente a interpretação representacionista da matéria como um espaço em branco passivo esperando a inscrição ativa da cultura e, também, a localização representacionista da relação entre materialidade e discurso como de absoluta exterioridade. Infelizmente, entretanto, a teoria de Butler no final das contas reinscreve a matéria mais Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 455 como um produto passivo das práticas discursivas do que como um agente ativo participante mesmo no processo de materialização. Esta deficiência é sintomática de uma avaliação incompleta de fatores causais importantes, e de uma reelaboração incompleta da “causalidade” no entendimento da natureza das práticas discursivas (e dos fenômenos materiais) em sua produtividade. Ademais, a teoria da materialidade de Butler limita-se a uma abordagem da materialização dos corpos humanos ou, mais precisamente, a uma construção dos contornos do corpo humano. A ontologia relacional do realismo agencial possibilita uma reelaboração da noção de materialização que reconheça a existência de importantes ligações entre práticas discursivas e fenômenos materiais sem as limitações antropocêntricas da teoria de Butler (BARAD, 2017, p. 26). Por mais que essa crítica possa ser amenizada pelas obras mais recentes de Judith Butler como The force of nonviolence: an ethical political bind (2020) e na radical afirmação de uma ontologia da interdependência social entre seres vivos e não vivos, essa fronteira ainda está muito bem delineada em sua obra (BUTLER, 2020, p. 120-121). Afinal, não dá mais para pensarmos a matéria como um produto passivo das práticas discursivas. Apostamos que uma matéria e um corpo podem muito mais do que serem somente uma identidade. Esta seria apenas um momento de uma efetuação que não cessa de acontecer nos processos da vida. Há algo de queer no próprio funcionamento e produção da matéria. Assim, centralizar a nossa análise na identidade é também ser conivente com as próprias dinâmicas axiomáticas do capital que dependem de processos de subjetivação identitários para se perpetuarem. 3. Caminhos possíveis: devires monstruosos do corpo e a aposta no queer Judith Butler apresenta importantes análises e propostas para a luta contra o sistema de distribuição das precariedades de maneira desigual e Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 456 violenta no contexto global capitalista. A autora, ao denunciar a artificialidade das separações identitárias e consequente falseamento ideológico para exploração de determinados corpos, propõe uma atitude de tomada das rédeas políticas apostando justamente nas identidades marginalizadas e precarizadas. Ela propõe, assim, uma política radicalmente democrática e pautada no alargamento das medidas de reconhecimento e de garantia do direito a ter direitos. Entretanto, conforme apontamos acima, para Butler, as identidades são inescapáveis e o que nos resta seria articular com elas, denunciando e jogando com as suas incongruências. Sendo que tais identidades são formadas justamente pelo esquema de poder que as sujeita, em alguma medida, a dimensão de subalternização política sempre estará presente. Não nos damos por satisfeitos por essa constatação, de modo que, a partir das contribuições que apresentamos nesse texto, nos parece urgente pensar uma política que, ainda que não se encante pelas identidades, também possa se afastar radicalmente delas. É necessário pensar uma política para além das identidades, e não apenas pelas e como identidades. É evidente que o processo de afastamento da norma, e consequente desconstituição dessa – mesmo que brevemente – implica em um processo de produção de algo novo. Entretanto, nos parece que esse novo, produzido pela fuga radical dos espaços normativos, não contribui para a reinserção do produto nos esquemas de dominação capitalista. Tratam-se de registros absolutamente outros, igualmente abertos a serem novamente destruídos para surgir algo diferente. É nesse sentido que trazemos o devir monstruoso queer como essa aposta não só anti-normativa mas potencialmente produtiva. Propomos ultrapassar as compreensões do queer como um signo guarda-chuva das alianças entre as identidades [sexuais, de gênero e outras] subalternizadas e marginalizadas, para entendê-lo como uma postura performativa (intramatéria) – que se dá tanto na ordem da teoria quanto da prática – radicalmente crítica do sistema de exploração dos corpos. Nesse sentido, o que Caderno Espaço Feminino | Uberlândia, MG | v.35 | n.1 | seer.ufu.br/index.php/neguem | jan./jun. 2022 | ISSN 1981-3082 457 importa aqui não é primordialmente a expansão dos códigos de reconhecimento e garantia de direitos, mas efetivamente colocar em xeque tais códigos e tais direitos, eis que esses são justamente a base dessa estrutura de dominação imposta. O queer precisa implodir esses esquemas de legibilidade, antes de articular com eles. Assim, o queer se contrapõe à dimensão do direito como meramente logos, sua forma reduzida que o pensamento moderno da lei encarna. Ou seja, se contrapõe ao modelo kantiano de uma lei que se funda na própria forma de lei, que é transcendente e que se pretende conhecida antes mesmo daquilo a que se vai aplicar. Uma lei que fixa identidades e uniformiza o socius. Contra essa dimensão da lei, propomos um pensamento em potência, um certo devir queer do nomos. E por nomos entendemos tudo aquilo que escapa à forma logofalocêntrica da lei, o riso que foge à norma, a dimensão inventiva, transformadora e criadora de novas realidades. Trata-se de experimentar o nomos no devir aberrante dos corpos queers. Apostar em um nomos queer em contraposição a um direito logos. Constituir a existência a partir da experiência e não de um juízo transcendente e anterior. Ao perceber a produção da identidade pelo aparato normativo e jurídico, bem como a sua artificialidade, o queer se assume como possibilidade de eterno afastamento das determinações subjetivantes. É preciso um caminhar não para as margens, mas efetivamente abandonar esse esquema de produção de identidades fixas e fixadas, e ativar a potência performativa de materialização dos corpos. O corpo deve reacender toda sua potência, outrora esquecida e ocultada, para emergir-se a partir dessa pergunta sempre aberta: o que pode?. Referências AGAMBEN, Giorgio. 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