DOI: http://dx.doi.org/10.14393/CEF-v35n1-2022-21
Limites das identidades e devir monstruoso queer:
uma conversa com Judith Butler
Limits of identities and queer monstrous becoming: a conversation with
Judith Butler
Igor Viana 1
Thiago César Carvalho dos Santos
2
RESUMO
Neste artigo propomos a atividade especulativa de realizar uma pergunta à
autora Judith Butler: "o que pode um corpo?". A partir dessa pergunta,
propomos tensionar o pensamento de Butler para dele fazer emergir um
devir monstruoso, terrorista e (an)árquico. Para traçar essas linhas
propostas, dividimos o artigo em duas seções que seguem à introdução. Na
primeira seção, nos dedicamos a explorar a dimensão do corpo na teoria de
Butler a partir de dois eixos operativos: as lógicas do reconhecimento e a
performatividade. Já na segunda seção, buscamos explorar a nossa aposta
queer em devires monstruosos do corpo como um método crítico de
destituição da lei, colocando o pensamento de Butler em diálogo com outros
autores como Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado e Karen
Barad. Por fim, enquanto caminhos possíveis, apontamos para as linhas
iniciais do que chamamos de um devir monstruoso queer.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria queer. Judith Butler. Reconhecimento.
Identidade. Lei.
ABSTRACT
In this article, we propose the speculative activity of asking the author
Judith Butler a question: "what can a body do?". Based on this question, we
propose to tense Butler's thought so that a monstrous, terrorist and
(an)archical becoming emerges from it. To trace these proposed lines, we
have divided the article into two sections that follow the introduction. In the
first section, we dedicated ourselves to exploring the dimension of the body
in Butler's theory based on two operative axes: the logic of recognition and
performativity. In the second section, we seek to explore our queer bet on
monstrous becomings of the body as a critical method of deposing the Law,
putting Butler's thought in dialogue with other authors as Giorgio
Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado and Karen Barad. Finally, as
possible ways, we point to the opening lines of what we call queer monstrous
becoming.
KEYWORDS: Queer theory. Judith Butler. Recognition. Identity. Law.
1
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com bolsa CAPES. Pesquisador
visitante do Law & Theory Lab na University of Westminster. Ator formado pelos cursos livres de teatro
do Galpão Cine Horto. E-mail:
[email protected]
2 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, com bolsa CAPES. Bacharel em
Direito pela PUC Minas. Pesquisador do grupo “O estado de exceção no Brasil contemporâneo: para
uma leitura crítica do argumento de emergência no cenário político-jurídico nacional”. E-mail:
[email protected]
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***
Vozes existem, vorazes pelas matérias. Vocês
pensam que minha existência não existe, mas
precisam saber que vozes existem sim e
invadem matérias. E são vorazes pelas
matérias. Por aleatoriedade, escolhi falar como
feminina, enquanto vossa espécie não decide se
fala como macho ou como fêmea. Sei também
que vocês têm dificuldade de entender o que
não é vocês mesmos. Mas vou tentar explicar.
Sou uma voz. Só isso. (Grace Passô - Vaga Carne)
Introdução: o que pode um corpo?
Este é um texto que surge da experiência dos seus autores, ao longo de
suas trajetórias de pesquisa e de vida, com o pensamento da filósofa Judith
Butler. A autora foi como um norte para nossa formação, especialmente
durante a existência do grupo de estudos e pesquisa intitulado Políticas da
Performatividade: análise da teoria política de Judith Butler, na Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo de
anos, discutimos semanalmente a obra e as potencialidades do pensamento
de Butler no campo do direito e da política. A partir desse diálogo, propomos
– e até mesmo ousamos – interpelar a autora que nos interpela e nos gera
interesse há bastante tempo. Para essa interpelação, convocamos o auxílio de
Baruch Spinoza e da pergunta que lhe foi atribuída por Gilles Deleuze: “que
pode um corpo?” (DELEUZE, 2017, p. 239). Essa indagação costuma ser
associada a um trecho 3 da terceira parte da “Ética” de Spinoza que se dedica
à reflexão sobre a origem e a natureza dos afetos. Assim, fazemos a pergunta
à Butler: o que pode um corpo? E agenciamos uma possível resposta por meio
do diálogo com sua obra. Um diálogo que, seguindo a advertência de Deleuze,
3
Cf.: “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém
ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas
corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer” (SPINOZA, 2017,
p. 175).
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saiba levar "um pouco da alegria, da força, da vida amorosa e política que ele
[autor] soube dar, inventar." (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 137).
Nessa conversa com a autora e a partir dessa pergunta, propomos
tensionar o pensamento de Butler para dele fazer emergir um devir
monstruoso, terrorista e (an)árquico (MATOS, 2015, p. 170). Não que essas
características estejam totalmente ausentes em sua obra, mas queremos fazer
com que essas perspectivas ganhem novas intensidades. Assim, interpelamos
a autora não apenas para apontar supostos limites do seu pensamento, mas
para fazer nascer possibilidades outras em diálogo com autores, como Giorgio
Agamben, Achille Mbembe, Paul Preciado e Karen Barad. E, por isso, falamos
de uma Butler que possa contribuir para uma crítica radical da lei, uma
crítica queer.
Para traçar as linhas aqui propostas, dividimos o artigo em duas seções
que seguem à introdução. Na primeira seção, nos dedicamos a explorar a
dimensão do corpo na teoria de Butler a partir de dois eixos operativos: as
lógicas do reconhecimento e a performatividade. Já na segunda seção,
buscamos dar novas intensidades ao pensamento da autora, explorando a
nossa aposta queer em devires monstruosos do corpo como um método crítico
de destituição da lei, colocando o pensamento de Butler em diálogo com outros
autores. Por fim, na conclusão, apontamos para as linhas iniciais do que
chamamos de um nomos queer.
1. O corpo em Butler: lógicas de reconhecimento e performatividade
Judith Butler, um expoente notável dentro da teoria queer, tem se
dedicado especialmente nos últimos anos à construção de uma teoria política
da e pela diferença. A autora vem tecendo reflexões sobre o caráter produtivo
de novas possibilidades de existência política por meio da exposição e do
aparecimento de corpos historicamente subtraídos de direitos na esfera
pública (BUTLER, 2018). A autora vai dizer então que uma política
democrática radical – que ela propõe ao pensar a atuação de tais lutas sociais
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por reconhecimento – não se basta apenas por estender o reconhecimento
igualmente a todas as pessoas, mas, ao contrário, deve alterar a relação entre
reconhecível e irreconhecível a ponto de construir um outro entendimento de
igualdade e uma elaboração mais aberta da noção de povo.
A autora vai assim se debruçar sobre os processos sociais de produção
de reconhecimento de níveis de humanidade nos corpos, para garantia de
direitos ou distribuição de precariedades na trama social. Nesse sentido, são
produzidas subjetividades que atendam – ou desviem, já que o excesso é
integrante da dinâmica de reprodução normativa, como explicitamos mais a
frente – aos critérios de uma norma imposta para incorporação e
materialização dos indivíduos. Tais critérios de reconhecimento são o que
definem as possibilidades de agência política e aparecimento público das
identidades.
(...) O próprio corpo é dividido entre um que aparece publicamente para
falar e agir e outro, sexual, pulsante, feminino, estrangeiro e mudo, que
geralmente é relegado à esfera do privado e do pré-político. (...). Quando
algum domínio da vida corporal opera como a condição sequestrada ou
repudiada para a esfera do aparecimento, ele se torna a ausência
estruturante que governa e torna possível a esfera pública. (BUTLER,
2018, p. 95-96).
Butler vai pensar o reconhecimento a partir do conceito de matriz de
inteligibilidade (2017b), a qual se define pelo modo pelo qual se organizam as
identidades, prescrevendo critério de determinação a determinados corpos, à
medida que exclui outros. Desta forma, as identidades "inteligíveis" são
aquelas que mantêm uma relação de coerência, continuidade e estabilidade
com os padrões sócio-político-jurídicos postos. Todas e todos que rompem, em
alguma medida, com esse regime instituído, se deparam com uma condição de
ininteligibilidade, e portanto de impossibilidade de existência social, estando
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susceptíveis a diversos níveis de violência e reprovação. Tal matriz estipula,
assim, o que podem os corpos dentro desse regime.
Contudo, Butler (2017b) ressalta o caráter artificial, histórico e
contingente de tal regime de inteligibilidade, preservado mediante signos
corpóreos e discursos de verdade. Desenvolve, assim, sua noção de
performatividade, central em sua obra e a partir da qual as lógicas de
reconhecimento passam a ser pensadas. Para Butler (2017b), a maior
promessa da travestilidade, por exemplo, não é a proliferação de
identificações de gênero, mas a exposição da incapacidade dos regimes
heterossexuais em legislar ou conter por completo seus próprios ideais.
Haveria, portanto, um duplo constitutivo do discurso que é sua condição
limitante de existência e ao mesmo tempo possibilidade de transformação
rearticulatória da tecitura social. Tratam-se de corpos que efetivamente
reivindicam o que podem.
Transitar pelas normas de gênero é uma forma potente de rearticular
essas próprias normas no sentido de expor sua “não imobilidade”, ou seja, sua
performatividade. É justamente no trânsito e na possibilidade de transitar e
transviar que conseguimos configurar novas formas de existência. Constituise, assim, uma forma complexa e paradoxal de lidar com a norma, geradora
de sofrimento e lugar potencial para a politização transformadora (BUTLER,
2004, p. 220).
Entretanto, como essa articulação com a norma se dá? Ou melhor, como
ela se torna possível? Neste ponto, pensamos ser necessário um breve
mergulho teórico na noção de performatividade e acreditamos que o esquema
metodológico de apresentação dessa noção na obra da Butler, criado por Carla
Rodrigues, pode nos ser bastante útil. Para Rodrigues (2019, p. 29-30), a
performatividade em Butler pode ser pensada em três tempos: herança da
virada linguística; performatividade de gênero; e performatividade dos
corpos.
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Em um primeiro tempo: herança da virada linguística, a ideia de
performatividade é resgatada por Judith Butler por meio do diálogo com
Jacques Derrida:
O relato de Derrida tende a acentuar a relativa autonomia da operação
estrutural do signo, identificando a "força" do performativo como uma
característica estrutural de qualquer signo que deve romper com seus
contextos anteriores, a fim de sustentar sua iterabilidade como signo. A
força do performativo, portanto, não é herdada do uso anterior, mas resulta
precisamente de sua ruptura com todo e qualquer uso anterior. Essa
ruptura, essa força de ruptura, é a força do performativo, além de toda
questão de verdade ou significado (BUTLER, 1997, p. 148, tradução
nossa) 4.
Em “Assinatura, acontecimento, contexto”, Derrida retoma e dialoga
com a teoria dos atos de fala de John Austin (DERRIDA, 1991, p. 349-373).
Para Austin existiriam os enunciados constatativos e os enunciados
performativos (com força de produzir efeitos na realidade através da própria
enunciação). Derrida amplia as proposições de Austin, reconhecendo o caráter
performativo de todo ato de fala, além de uma necessária dependência da
iterabilidade (caráter relativamente aberto dos signos, que permitiria a
possibilidade da ruptura na repetição) e da citação (repetição em
deslocamento de contextos):
Qualquer signo, linguístico ou não-linguístico, falado ou escrito (no sentido
corrente desta oposição), em pequena ou grande unidade, pode ser citado,
colocado entre aspas; com isso pode romper com todo o contexto dado,
engendrar infinitamente novos contextos, de forma absolutamente não
4 No original: Derrida's account tends to accentuate the relative autonomy of the structural operation
of the sign, identifying the "force" of the performative as a structural feature of any sign that must
break with its prior contexts in order to sustain its iterability as a sign. The force of the performative
is thus not inherited from prior usage, but issues forth precisely from its break with any and all prior
usage. That break, the force of rupture, is the force of the performative, beyond all question of truth or
meaning.
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saturável. Isso não supõe que a marca valha fora do contexto, mas, pelo
contrário, que não existem contextos sem qualquer centro de referência
absoluto (DERRIDA, 1991, p. 362).
Segundo Derrida, a divisão dos enunciados sugerida por Austin
carregaria a pressuposição de um sujeito intencional consciente da totalidade
de sua fala, o que seria impossível para o pensamento derridiano de contextos
de insaturáveis:
Para que um contexto seja exaustivamente determinável, no sentido
requerido por Austin, seria necessário pelo menos que a intenção
consciente fosse totalmente presente e atualmente transparente a si
própria e aos outros, na medida em que constitui um foco determinante do
contexto (DERRIDA, 1991, p. 369).
Na concepção derridiana, todo ato de fala depende de sua possibilidade
de repetição e citação, o poder reiterativo do discurso é que produz os
fenômenos que regula e contém. Seria, portanto, impossível entender os atos
de fala sem o campo de atuação da cadeia citacional. Essa ideia é resgatada
por Butler para afirmar que há sempre um contexto que é invocado e é
simultaneamente desocupado no momento da enunciação. É esse caráter
relativamente aberto (iterabilidade) da estrutura dos signos que permite o
seu movimento.
Dessa forma, iterabilidade e citacionalidade são ideias extremamente
importantes para o pensamento de Judith Butler, o que inaugura o nosso
segundo tempo: performatividade de gênero.
Em Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade
(2017b), importante obra para o pensamento queer e para a rearticulação do
pensamento feminista, Butler nos diz que é exatamente na exigência da
repetição das normas que reside a força e a fragilidade da autoridade do ato
performativo. Em suas palavras, “não há identidade de gênero por trás das
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expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas
próprias expressões tidas como seus resultados” (BUTLER, 2017b, p. 56).
Assim, a repetição é o que garante a força da lei, mas é também o que
permite o seu desvio de curso. A cadeia citacional apresenta uma abertura de
fundação para novos contextos a partir dos deslocamentos com efeitos críticos
de rearticulação da tecitura social e de permanente problematização da
categoria de “identidade”:
A estratégia mais insidiosa e eficaz, ao que parece, é a completa
apropriação e deslocamento das próprias categorias de identidade, não
meramente para contestar o "sexo", mas para articular a convergência de
múltiplos discursos sexuais para o lugar da "identidade", a fim de
problematizar permanentemente essa categoria, sob qualquer de suas
formas (BUTLER, 2017b, p. 222).
Esses deslocamentos são analisados inicialmente por Butler nas
performances de drag queens que deslocam os quadros de inteligibilidade do
gênero ao exporem sua dimensão performativa que não guarda relação
alguma com a suposta metafísica da substância dita anterior ao corpo e suas
práticas. É justamente em função da performatividade que Butler pensa a
relação do sujeito com a norma de forma dialética, assim como nos diz Carla
Rodrigues, existe uma tensão permanente entre manutenção e subversão da
norma (RODRIGUES, 2019, p. 34).
É
importante
ressaltar
que
Butler
não
nos
parece
negar
completamente a identidade. Em A vida psíquica do poder (2017a), a autora
vai apresentar a formação do sujeito como um processo paradoxal necessário.
A partir da investigação sobre os efeitos do poder sobre o sujeito, chega a
concluir que é a partir da introjeção do poder que o sujeito se forma, e tornase subordinado/dependente dessa relação. Nesse sentido, é possível dizer que
Butler não visualiza qualquer possibilidade de existência política fora dessa
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dinâmica que agencia subjetividades e, na mesma medida, gera seu
assujeitamento.
Em Corpos que importam (2019), Butler vai dizer que "se trata de um
erro
necessário
a
generalização
temporal
realizada
por
categorias
identitárias." Desta forma, se a identidade é um erro necessário, o nosso
trabalho deve ser de construir um posicionamento crítico perante tais ficções
identitárias, de maneira a tensioná-las e/ou subvertê-las a partir de suas
contradições constitutivas, ao passo que não seria possível abandoná-las
completamente.
Essa tensão entre manutenção e subversão da norma na produção das
identidades e dos limites dos corpos está presente no próprio campo político,
o que nos permite entrar no que seria o terceiro tempo: performatividade dos
corpos. Para Butler, os gestos corporais são performativos e constitutivos do
político. Os corpos reunidos no espaço público de alguma forma “exercem o
poder performativo de reivindicar o público de uma maneira que ainda não
foi codificada em lei e que nunca poderá ser completamente codificada em lei”
(BUTLER, 2018, p. 134).
Quando corpos, precarizados em suas condições de vida, saem às ruas
para se afirmarem enquanto sujeitos políticos que se fazem existentes, eles já
estão exercendo um ato político por excelência. Antes de qualquer formulação
de demandas políticas, esses sujeitos se reconhecem como “precarizados”, seus
corpos já carregam uma história e um sentido antes de qualquer ato de fala
linguístico (BUTLER, 2018, p. 147-148). Esses corpos performam uma forma
de igualdade frente à intensa desigualdade da realidade ao se reunirem em
assembleia sob bases igualitárias.
Ela propõe que o próprio ato de aparecimento e (re)existência no espaço
público dessas identidades marginais é, em si, um ato performativamente
subversivo da norma hegemônica, a qual produz e distribui precariedades
(BUTLER, 2018). O modo de atuação dessa norma é sempre apagar,
invisibilizar, "obscenizar", marginalizar tais corpos. Nesse sentido, trazer à
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luz pública tais existências materiais compõe um ato desestabilizador das
normas de reconhecimento e do sistema político e legal.
Para aqueles apagados ou rebaixados pela norma que se espera que
incorporem, a luta se torna uma batalha corpórea por condição de
reconhecimento, uma insistência pública em existir e ter importância.
Assim, é apenas por meio de uma abordagem crítica das normas de
reconhecimento que podemos começar a desconstruir esses modos mais
perversos de lógica que sustentam formas de racismo e antropocentrismo.
(BUTLER, 2018, p. 44).
Para Butler, o corpo não mais pode ser entendido enquanto mero
instrumento da ação política (BUTLER, 2018, p. 152-153). Ele é uma
precondição de qualquer ato de protesto político. Corpos performam sentidos
políticos pelo espaço em uma luta concreta pelo estabelecimento de condições
de vida digna e mais sustentáveis frente a sua crescente precarização;
reivindicam para si o que podem, no aqui e agora.
Assim, a partir do exemplo das lutas contemporâneas pelo
reconhecimento jurídico e político de identidades precarizadas, a autora
propõe uma política radicalmente democrática pautada no alargamento das
medidas de reconhecimento. Explica que esse processo precisa ser contínuo,
eis que toda vez que a forma de reconhecimento é estendida, permanece uma
premissa ativa de que existe uma vasta região do irreconhecível – ainda que
agora também ampliada.
Então, o signo queer como uma aliança pela autora (BUTLER, 2018),
ao invés de uma identidade, a qual representa esse indefinido não
identificável que atravessa todas as formas de vida acostadas às margens e
sujeitas às precariedades produzidas socialmente. Diz a autora: "O termo
queer não designa identidade, mas aliança, e é um bom termo para ser
invocado quando fazemos alianças difíceis e imprevisíveis na luta por justiça
social, política e econômica" (BUTLER, 2018, p. 79).
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Nesse sentido, nos parece que a proposta de Butler na obra em questão
é uma política permanente de alargamento das identidades reconhecíveis e
da garantia de condições materiais de existência e (sobre)vivência social
dessas subjetividades. Afinal, é isso que o corpo poderia? Tornar-se
reconhecido e convertido em identidade. Parece que essa seria a resposta da
autora: corpos investidos no processo contínuo de produção de novas
subjetividades marginais, cada vez que os critérios de inteligibilidade são
performativamente atualizados, e reconhecidos no plano jurídico e político.
2. Limite dos corpos e corpos dos limites: produção (i)material da
subjetividade e da vida
A partir do debate teórico apresentado anteriormente, parece-nos ser
importante e urgente pensar o agir político revolucionário a partir do
reconhecimento contínuo das identidades "irreconheciveis". Entretanto, aqui
propomos um avanço nos debates retomados, com vias a alcançar uma análise
da possível expansão do reconhecimento como parte integrante de uma lógica
de perpetuação da violência pela política contemporânea, algo que nos parece
ausente na perspectiva de Butler. Para tal, faz-se necessário traçar um
percurso que já tem sido anunciado nos conceitos teóricos de vida nua de
Giorgio Agamben (2010), de devir negro de Achille Mbembe (2018), ou mesmo
do que Paul B. Preciado (2018) vai chamar de corpos potencialmente
penetráveis (cyber-putas), para, então, pensarmos a partir da noção de
performatividade intramatéria de Karen Barad (2017).
Um dos primeiros autores que trazemos para conversar com a Butler,
de maneira a complexificar a dinâmica de alargamento do (ir)reconhecimento
das identidades é Giorgio Agamben. O conceito de vida nua, desenvolvido pelo
autor e também criticado diversas vezes por Butler 5 é apresentado por
5 Butler dedica várias páginas do livro “Corpos em aliança e a política das ruas [...]” (2018) para
ressaltar que aqueles excluídos da esfera pública não têm sua vida reduzida à mera existência, a “vida
nua”, eis que não perdem sua capacidade de se unir e de resistir, não perdem aparência ou “realidade”
em termos políticos. Assim, não se encontram excluídos da esfera da ação, estando, com frequência,
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Agamben
(2010)
como
o
paradigma
da
produção
subjetiva
da
contemporaneidade. Trata-se do limiar de indiscernibilidade entre vida
politicamente qualificada e vida biológica, constituído pelo regime biopolítico
o qual se insere sob os corpos a partir do argumento de manutenção e proteção
vital para determinar os modos de vida e existência dos sujeitos.
O autor apresenta como figura arquetípica da vida nua o homo sacer.
Este instituto concebido no direito romano arcaico aduz que, como forma de
sanção pelo cometimento de um delito, o homem passa a ser dotado de
sacralidade, portanto destinado aos deuses. Nesse sentido, a sacralidade
implica em impune occidi (morte não punível) e a exclusão do sacrifício.
Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é
lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na
verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele
que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém
que um homem considerado malvado ou impuro costuma ser chamado
sacro. (AGAMBEN, 2010, p. 74).
Desta forma, o homo sacer se situa no limiar entre a matabilidade e a
insacrificabilidade, entre o ius divinum (direito divino) e o ius humanum
(direito humano), é uma vida sacra, no entanto matável. Trata-se de um
reconhecimento dado como que pelo seu inverso: designa-se uma condição ao
indivíduo (a sacralidade) a qual remove absolutamente o reconhecimento
daquela vida como "digna de ser vivida", e portanto que pode ser ceifada a
qualquer momento.
Contudo, e esse ponto que mais nos interessa, Agamben (2010) vai
explicar que a dinâmica “insacrificabilidade/matabilidade” da vida se mostra
insuficiente para decifrar a violência que está em questão na biopolítica
enraivecidos, indignados, revoltados e opondo resistência. Contudo, não nos parece que a possibilidade
de resistência esteja dissipada na obra de Agamben. Pelo contrário, seria justamente no ponto em que
o poder é exercido de maneira mais extrema sobre a vida nua que se encontra a resistência. É no extremo
da vida nua que se descobre “uma vida”; no extremo da manipulação e decomposição do corpo que esse
se encontra como virtualidade, imanência, pura potência.
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moderna, uma vez que a vida está exposta a violências sem precedentes, as
mais profanas e banais. Sendo assim, a vida insacrificável tornou-se
unicamente matável, vez que a sacralidade foi inserida em zonas cada vez
mais vastas e obscuras pela política contemporânea, até coincidir com a
própria vida biológica dos cidadãos.
Trata-se de um processo constante de avanço dos limiares de
reconhecimento das vidas dignas de serem vividas, ao mesmo passo que
empurra essas mesmas vidas para o abismo do não reconhecimento,
possibilitando que qualquer um possa ter seu título de humanidade retirado
a qualquer momento, de acordo com os interesses do poder soberano. É então
que o autor diz que todos somos virtualmente homines sacri. (AGAMBEN,
2010, p. 113).
A sacralidade da vida, que se desejaria fazer hoje contra o poder soberano
como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao
contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida ao poder de morte,
a sua irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2010, p.
85).
Ao se inserir sobre todos os corpos a partir da vida biológica, o poder
constitui como capturáveis, e consequentemente matáveis, todas as vidas –
humanas ou não. Assim, “a vida nua não está mais confinada a um lugar
particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada
ser vivente” (AGAMBEN, 2010, p. 135). Não se trata, portanto, de uma mera
questão de "violência de Estado", mas de uma lógica operativa e constitutiva
da própria modernidade, o que nos parece escapar à análise de Butler.
Paul B. Preciado, por sua vez, vai apresentar uma análise nessa mesma
direção em Testo Junkie (2018), ao explicar o processo de extração constante
de energia de excitação e de trabalho sexual dos corpos subalternos pelo o
império farmacopornográfico se alimenta da força de trabalho sexual. O
império explora os corpos tanto pelo eixo farmacológico (por meio de moléculas
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consumíveis e absorvíveis pelo corpo com o objetivo de promover prazer
ejaculatório), a partir da representação pornográfica (segundo signos
semiótico-técnicos convertido em dado numérico ou transferido pelas mídias)
ou mesmo pelo serviço sexual direto (o trabalho sexual colocado diretamente
a serviço do consumidor por determinado tempo).
Assim, o capitalismo farmacopornográfico transforma todos os corpos,
proletariados globais do sexo biotecnologicamente conectados à rede de
exploração
ejaculatória,
em
corpos
potencialmente
penetráveis
ou
penetrantes, capazes de dar ou receber o fluxo da força orgásmica.
Cada trabalhador entra na fábrica farmacopornô na condição de
“penetrável-penetrante”, facilitador de secreção ou secretor, fornecedor de
alguma coisa pra injetar, ou corpo viciado, como uma plataforma
toxicológica produtiva ou dependente. Ou ambos. Tais segmentações não
dependem de um tipo de predisposição biológica, inata ou adquirida; são
para todos os corpos que possuem ânus, boca ou qualquer orifício otorrino
potencialmente penetrável. Todos os corpos que possuem língua, dedos ou
braços são potencialmenente penetrante ou podem servir como porto de
inserção protética (dildônica ou cibernética). Todo corpo é capaz de
produzir excitação sensorial de algum tipo (de linguagem, de imagem, de
cheiro, de toque), todo corpo pode chupar e ser chupado. Todo corpo é ao
mesmo tempo tóxico e viciado, “normal” e deficiente, orgânico e
tecnologicamente suplementado. (PRECIADO, 2018, p. 316-317).
Preciado (2018, p. 317) então conclui que a “divisão do trabalho sexual
não depende de uma condição natural, mas de uma especialização técnica do
corpo, de uma programação somatopolítica”. Quando se trata de ser uma fonte
de energia de excitação, qualquer corpo pode se tornar uma tecno-puta
multimídia para satisfação do mecanismo global ejaculatório. Essa
indiscernibilidade da condição de penetrável-penetrante coincide igualmente
com o mecanismo exceptivo desenvolvido por Giorgio Agamben a partir do
conceito de “vida nua”. Mais uma vez, trata-se de uma lógica operacional do
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próprio capitalismo farmacopornográfico que inclui – necessariamente – a
partir de seus sistemas de funcionamento e exploração da força do trabalho
sexual.
Processo semelhante é igualmente observado por Achille Mbembe em
Crítica da Razão Negra (2018) acerca do que ele nomeia um "devir-negro do
mundo", que abarca desempregados, descartáveis, favelados, imigrantes. O
autor vai explicar o processo pelo qual o Negro tem se tornado um processo de
subjetivação, dentro da mecânica neoliberal, de constante submissão das
subjetividades à exploração material e simbólica em favor do capital.
Nesse sentido, Mbembe vai dizer que toda a humanidade corre o risco
e caminha para tornar-se negra, eis que a expansão dos mecanismos de
subalternização e submissão passam a atingir virtualmente a todos. O sujeito
negro, essa ficção racial criada para manter o sistema de exportação de mão
de obra da África e garantir a escravização desses corpos sem qualquer
estatuto jurídico para alimentar a máquina colonial europeia, se universaliza:
Pela primeira vez na história humana, o nome negro não remete mais
somente à condição imposta às pessoas de origem africana na época do
primeiro capitalismo. É essa fungibilidade nova, essa solubilidade, sua
institucionalização enquanto nova norma de existência e sua generalização
ao conjunto do planeta que nós designamos de devir-negro do mundo.
(MBEMBE, 2018).
Trata-se, assim, de um forçar constantemente as subjetividades aos
limites pela máquina biopolítica contemporânea. Esse mecanismo possibilita
que, qualquer um, potencialmente ou virtualmente, seja exposto às condições
de precariedade e violência constitutivas da margem do sistema, sendo isso o
que garante a contínua extração dos fluxos da produção que alimentam o
capital. Ou seja, para manter a estrutura de dominação e exploração e que os
indivíduos continuem produzindo e consumindo de acordo com a métrica
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imposta, é necessário que todos estejam constantemente sendo empurrados
para o abismo terrível que é a vida nas margens.
Nesse sentido, e aqui chegamos ao nosso argumento central, nos parece
que, ao mesmo passo que a proposta de contínua expansão dos limites de
reconhecimento, em atenção a Butler, seja uma estratégia garantidora de
condições materiais de vida para diversas identidades; essa mesma expansão
dos limites faz parte do processo integral do próprio sistema de dominação,
exploração e descartabilidade da máquina capitalista. Talvez seja isso o que
Gilles
Deleuze
e
Félix
Guattari
(2010)
nomeiam
de
contínua
desterritorialização constitutiva da mecânica capitalista. E por isso
insistimos que um corpo deve poder mais do que simplesmente expandir os
seus limites de reconhecimento.
Assim, talvez apenas atuar nos limites, de maneira a tensioná-los e
expandir a gramática de reconhecimento, nada mais faz do que reinserir no
sistema novas identidades e novos corpos de extração de produção, e tão logo
serem descartados como corpos inúteis. Nos parece que é justamente diante
desse processo que o capital continua se apropriando das pautas identitárias.
Qual seria, então, a saída para esse constante processo de reinserção e refluxo
das identidades para dentro da estrutura hierárquica de exploração?
Talvez a aposta queer deva ser tomada em toda sua potencialidade
performativa de afirmação da vida. Efetivamente explorar as potencialidades
dos corpos ("o que pode um corpo?"), não como resultado da inserção ou relação
com o poder, mas como produção material de realidade em si. Para isso, seria
preciso avançar nas próprias dinâmicas de subjetivação e reconhecimento
descritas por Butler, admitindo algo de ativo, desde sempre, na própria
constituição do corpo ou da matéria.
Assim, apesar de extremamente instigante e importante, a concepção
da performatividade corpórea de Butler pode ser ainda mais radicalizada em
uma direção queer ou intramaterial, como apontam os estudos dos novos
materialismos (GAMBLE; HANAN; NAIL, 2021, p. 200). O novo materialismo
performativo, a partir da ciência de vivermos no antropoceno, reivindica uma
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compreensão radicalmente materializada dos processos constitutivos do
mundo. Para essa compreensão existe uma performatividade intramatéria
que não é tão evidente na teoria da Butler e que é justamente o que nos
permite entender a relação radical entre corpos, sejam humanos ou não. Para
Christopher N. Gamble, Joshua S. Hanan e Thomas Nail:
[...] a teoria da matéria de Butler ainda é fundamentalmente definida e
impulsionada por uma falha – ou seja, pelo fracasso perpétuo e contínuo do
discurso humano na tentativa de sempre capturar total ou completamente
a matéria. Embora a localização específica da linha divisória entre a
matéria e o discurso esteja sempre mudando, Butler continua a presumir
que essa mesma linha divisória deve continuamente ser traçada em algum
lugar. Em outras palavras, Butler continua a presumir que realmente
existe uma divisão ontológica pré-existente e imutável entre o discurso
humano e a matéria, como domínios. Como Vicki Kirby coloca, a matéria
como tal “é tornada indizível e impensável no relato de Butler, pois a única
coisa que pode ser conhecida sobre ela é que excede a representação”. E
assim, na interpretação de Butler, a matéria é “constitutiva” ou “ativa”
apenas em virtude de sua recalcitrância, isto é, apenas na medida em que
resiste passivamente a ser capturada por aquilo que essencialmente não é
matéria (isto é, discurso humano). GAMBLE; HANAN; NAIL, 2021, p.
200).
Karen Barad em seu texto Performatividade pós-humanista: para
entender como a matéria chega à matéria (2017, p. 14), atribui essa limitação
da teoria butleriana para tratar de uma pura atividade da matéria à herança
foucaultiana de compreensão da relação discurso-matéria. Para se entender
os mecanismos do poder seria fundamental um entendimento da natureza do
poder na sua total materialidade. A produtividade do poder não se restringe
ao domínio do “social” e a matéria não é meramente um produto final das
relações de poder, portanto:
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Faz-se necessária uma robusta conta da materialização de todos os corpos
— “humanos” e “não humanos” — e das práticas material-discursivas
através das quais suas constituições diferenciais são marcadas. Isso
requisitará uma compreensão da natureza da relação entre práticas
discursivas e fenômenos materiais, uma consideração das formas de
agência “não humanas” em como “humanas”, e um entendimento da
precisa natureza causal das práticas produtivas que leve em conta de modo
integral a implicação da matéria em sua própria e contínua historicidade.
Minha contribuição para o desenvolvimento de tal compreensão se baseia
num juízo filosófico que tenho chamado de “realismo agencial” (BARAD,
2017, p. 16).
Para essa compreensão de um realismo agencial, a “matéria não se
refere a uma substância fixa; matéria é substância em seu devir intra-ativo –
não uma coisa, mas um fazer, um espessamento da agência” (BARAD, 2017,
p. 26). A matéria não é uma propriedade, mas seria antes de tudo um
processo, um devir, estabilizante e desestabilizante da intra-atividade. Dessa
forma, a matéria não seria simplesmente uma espécie de citacionalidade ou
do “efeito de superfície de corpos humanos, ou o produto final de atos
linguísticos ou discursivos” (BARAD, 2017, p. 26). A intra-atividade implica a
matéria no fenômeno de sua própria materialização, dimensão que na visão
de Barad não estaria presente em toda sua intensidade na teoria de Butler:
Em sua crítica ao construtivismo dentro da teoria feminista, Judith Butler
apresenta uma noção de materialização que procura reconhecer estes
pontos importantes. Reelaborar a noção de matéria como um processo de
materialização traz à tona a importância de reconhecer a matéria em sua
historicidade, e desafia diretamente a interpretação representacionista da
matéria como um espaço em branco passivo esperando a inscrição ativa da
cultura e, também, a localização representacionista da relação entre
materialidade e discurso como de absoluta exterioridade. Infelizmente,
entretanto, a teoria de Butler no final das contas reinscreve a matéria mais
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como um produto passivo das práticas discursivas do que como um agente
ativo participante mesmo no processo de materialização. Esta deficiência é
sintomática de uma avaliação incompleta de fatores causais importantes,
e de uma reelaboração incompleta da “causalidade” no entendimento da
natureza das práticas discursivas (e dos fenômenos materiais) em sua
produtividade. Ademais, a teoria da materialidade de Butler limita-se a
uma abordagem da materialização dos corpos humanos ou, mais
precisamente, a uma construção dos contornos do corpo humano. A
ontologia relacional do realismo agencial possibilita uma reelaboração da
noção de materialização que reconheça a existência de importantes
ligações entre práticas discursivas e fenômenos materiais sem as
limitações antropocêntricas da teoria de Butler (BARAD, 2017, p. 26).
Por mais que essa crítica possa ser amenizada pelas obras mais
recentes de Judith Butler como The force of nonviolence: an ethical political
bind (2020) e na radical afirmação de uma ontologia da interdependência
social entre seres vivos e não vivos, essa fronteira ainda está muito bem
delineada em sua obra (BUTLER, 2020, p. 120-121). Afinal, não dá mais para
pensarmos a matéria como um produto passivo das práticas discursivas.
Apostamos que uma matéria e um corpo podem muito mais do que serem
somente uma identidade. Esta seria apenas um momento de uma efetuação
que não cessa de acontecer nos processos da vida. Há algo de queer no próprio
funcionamento e produção da matéria. Assim, centralizar a nossa análise na
identidade é também ser conivente com as próprias dinâmicas axiomáticas do
capital que dependem de processos de subjetivação identitários para se
perpetuarem.
3. Caminhos possíveis: devires monstruosos do corpo e a aposta no
queer
Judith Butler apresenta importantes análises e propostas para a luta
contra o sistema de distribuição das precariedades de maneira desigual e
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violenta no contexto global capitalista. A autora, ao denunciar a
artificialidade das separações identitárias e consequente falseamento
ideológico para exploração de determinados corpos, propõe uma atitude de
tomada das rédeas políticas apostando justamente nas identidades
marginalizadas e precarizadas. Ela propõe, assim, uma política radicalmente
democrática e pautada no alargamento das medidas de reconhecimento e de
garantia do direito a ter direitos.
Entretanto, conforme apontamos acima, para Butler, as identidades
são inescapáveis e o que nos resta seria articular com elas, denunciando e
jogando com as suas incongruências. Sendo que tais identidades são formadas
justamente pelo esquema de poder que as sujeita, em alguma medida, a
dimensão de subalternização política sempre estará presente.
Não nos damos por satisfeitos por essa constatação, de modo que, a
partir das contribuições que apresentamos nesse texto, nos parece urgente
pensar uma política que, ainda que não se encante pelas identidades, também
possa se afastar radicalmente delas. É necessário pensar uma política para
além das identidades, e não apenas pelas e como identidades.
É evidente que o processo de afastamento da norma, e consequente
desconstituição dessa – mesmo que brevemente – implica em um processo de
produção de algo novo. Entretanto, nos parece que esse novo, produzido pela
fuga radical dos espaços normativos, não contribui para a reinserção do
produto nos esquemas de dominação capitalista. Tratam-se de registros
absolutamente outros, igualmente abertos a serem novamente destruídos
para surgir algo diferente.
É nesse sentido que trazemos o devir monstruoso queer como essa
aposta não só anti-normativa mas potencialmente produtiva. Propomos
ultrapassar as compreensões do queer como um signo guarda-chuva das
alianças entre as identidades [sexuais, de gênero e outras] subalternizadas e
marginalizadas,
para
entendê-lo
como
uma
postura
performativa
(intramatéria) – que se dá tanto na ordem da teoria quanto da prática –
radicalmente crítica do sistema de exploração dos corpos. Nesse sentido, o que
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importa aqui não
é primordialmente a expansão dos códigos de
reconhecimento e garantia de direitos, mas efetivamente colocar em xeque
tais códigos e tais direitos, eis que esses são justamente a base dessa estrutura
de dominação imposta. O queer precisa implodir esses esquemas de
legibilidade, antes de articular com eles.
Assim, o queer se contrapõe à dimensão do direito como meramente
logos, sua forma reduzida que o pensamento moderno da lei encarna. Ou seja,
se contrapõe ao modelo kantiano de uma lei que se funda na própria forma de
lei, que é transcendente e que se pretende conhecida antes mesmo daquilo a
que se vai aplicar. Uma lei que fixa identidades e uniformiza o socius.
Contra essa dimensão da lei, propomos um pensamento em potência,
um certo devir queer do nomos. E por nomos entendemos tudo aquilo que
escapa à forma logofalocêntrica da lei, o riso que foge à norma, a dimensão
inventiva, transformadora e criadora de novas realidades. Trata-se de
experimentar o nomos no devir aberrante dos corpos queers. Apostar em um
nomos queer em contraposição a um direito logos. Constituir a existência a
partir da experiência e não de um juízo transcendente e anterior.
Ao perceber a produção da identidade pelo aparato normativo e
jurídico, bem como a sua artificialidade, o queer se assume como possibilidade
de eterno afastamento das determinações subjetivantes. É preciso um
caminhar não para as margens, mas efetivamente abandonar esse esquema
de produção de identidades fixas e fixadas, e ativar a potência performativa
de materialização dos corpos. O corpo deve reacender toda sua potência,
outrora esquecida e ocultada, para emergir-se a partir dessa pergunta sempre
aberta: o que pode?.
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