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Arquitectura, dibujo y arqueología

2012

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA FABIANE AGUIAR SILVA SUJEITOS MASCULINOS EM CONSTRUÇÃO: SENTIDOS DE ÉTICA NAS RELAÇÕES DE GÊNERO DE TRABALHADORES DE UMA OBRA DA CONSTRUÇÃO CIVIL EM MANAUS/AMAZONAS MANAUS 2015 2 FABIANE AGUIAR SILVA SUJEITOS MASCULINOS EM CONSTRUÇÃO: SENTIDOS DE ÉTICA NAS RELAÇÕES DE GÊNERO DE TRABALHADORES DE UMA OBRA DA CONSTRUÇÃO CIVIL EM MANAUS/AMAZONAS Dissertação apresentada ao Programa de pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia, linha de processos psicossociais. ORIENTADORA: IOLETE RIBEIRO DA SILVA MANAUS 2015 Ficha Catalográfica Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). S586s Silva, Fabiane Aguiar Sujeitos masculinos em construção: sentidos de ética nas relações de gênero de trabalhadores de uma obra da construção civil em Manaus/Amazonas / Fabiane Aguiar Silva. 2015 124 f.: il.; 31 cm. Orientadora: Iolete Ribeiro da Silva Dissertação (Mestrado em Psicologia: Processos Psicossociais) Universidade Federal do Amazonas. 1. Ética. 2. Relações de gênero. 3. Masculinidades. 4. Psicologia sócio-histórica. 5. Construção Civil. I. Silva, Iolete Ribeiro da II. Universidade Federal do Amazonas III. Título 3 5 AGRADECIMENTOS Agradeço e dedico esta obra aos fenômenos que fizeram e fazem da minha vida a experiência essencial. Agradeço primeiramente ao amigo Jesus por me ensinar o amor e a coerência a partir do dom da existência. Agradeço à minha amada e guerreira Mãe Fátima que me criou e me mostrou sob seu olhar os delineios da vida. E com tanto sacrifício, educou-me com afeto e dedicação e me ensinou a importância do lutar e do seguir em frente sempre. Uma mulher humilde, inteligente e linda. A mulher que será para sempre o meu amor essencial e incondicional. Agradeço ao meu amado e inexorável Pai Benedito que me dedicou todo o seu amor à sua maneira, mesmo nos momentos em que não deu conta de seu próprio amor. Um sujeito masculino que me ensinou a pensar os sujeitos masculinos e é protagonista de minhas inquietações de gênero. Um ser irreverente e engraçado que me auxiliou a construir as mais diversas interpretações da vida e a me relacionar com as pessoas a partir da alteridade. O homem que receberá para sempre o meu amor. Agradeço aos meus amados irmãos Caio, Tany e Fernanda que incondicionalmente suportam comigo tudo de mais difícil que enfrento e que conquistam comigo tudo que sou. Agradeço ao meu grande amor, Thiago Silva. O sujeito masculino que me propõe a mais satisfatória e singela relação de gênero possível. Agradeço aos meus amados amigos que cada um à sua maneira e em seu tempo, proporcionou-me a experiência de dias felizes, dias de luta, dias de esperança. Agradeço a todas as subjetividades que me permitiram debruçar sobre seus sentidos éticos. Agradeço a todos os participantes que me possibilitaram a relação subjetiva construída nesse processo. Agradeço em memória à minha amada e admirável Mestra, a professora Kátia Neves Lenz César de Oliveira, minha orientadora. Uma feminilidade sábia com quem Deus oportunizou-me um encontro, uma pessoa que jamais deixarei de admirar e que nunca esquecerei. Agradeço a paciência com que discutiu comigo os mais diversos assuntos e referenciais teóricos, pela humildade em ensinar-me e pela espontaneidade que brilhou os meus olhos. A causa que a senhora lutava, tornou-se a causa de todos nós com quem a senhora compartilhou esperanças. 6 Agradeço à minha serena, sábia e humilde professora Iolete Ribeiro da Silva que aceitou orientar-me. Agradeço à senhora pelo apoio e pelos ensinamentos proporcionados. Agradeço sua paciência com minha ansiedade e sua consideração em assumir junto comigo o desfecho desta pesquisa e o prosseguimento da luta pela causa de gênero. Obrigada mais uma vez, professora Iolete, por toda sua dedicação e suporte, a senhora merece toda a minha admiração. Agradeço ao proprietário da obra que me permitiu executar a pesquisa em seu espaço de trabalho. Agradeço à Faculdade de Psicologia e seu corpo docente e técnico pela excelência na construção da psicologia através da dedicação aos seus alunos, ao conhecimento e à transformação social. Por fim, agradeço a todos que direta e indiretamente participaram dessa caminhada e contribuíram com suas particularidades na vivência de relações pautadas na troca e na esperança. Obrigada à minha família, aos meus amigos, ao meu noivo, à família dele, aos conhecidos, aos participantes episódicos, aos profissionais, aos anônimos, às instituições... 7 Dedico essa produção à minha eterna mestra Kátia Lenz (in memoriam), um fenômeno personificado que me trouxe luz, acendeu em meu coração e retornou ao seu plano de evolução. Para sempre serás lembrada! 8 “Porque era ela, porque era eu Eu não sabia explicar nós dois Ela mais eu Porque eu e ela Não conhecia poemas Nem muitas palavras belas Mas ela foi me levando pela mão Íamos tontos os dois Assim ao léo Ríamos, chorávamos sem razão Hoje lembrando-me dela Me vendo nos olhos dela Sei que o que tinha de ser se deu Porque era ela Porque era eu”. Chico Buarque 9 RESUMO Esta proposta se trata de uma pesquisa qualitativa sobre os sentidos de ética nas relações de gênero de trabalhadores de uma obra da construção civil em Manaus/Amazonas. O objetivo geral foi compreender os sentidos de ética nas relações de gênero produzidos por trabalhadores de uma obra da construção civil em Manaus. Os objetivos específicos foram: (1) identificar os sentidos de ser ético na relação durante as experiências de relacionamentos de gênero dos trabalhadores da construção civil em Manaus/Amazonas e (2) relacionar os sentidos éticos produzidos pelos trabalhadores à construção de suas masculinidades nas relações de gênero vividas. O referencial teórico se estruturou a partir da Psicologia sócio-histórica proposta por Vygotsky (1988) sob contribuições da perspectiva do desenvolvimento psicossocial proposta pela rede de significações. Tal arranjo teórico apresentou possibilidades de compreensões sobre o desenvolvimento humano a partir da construção de sentidos a partir das relações, sendo destacadas neste projeto as relações de gênero. A metodologia de pesquisa propôs uma construção de dados através de instrumentos como: relato de história de vida e questionário socioeconômico. Tais instrumento favorecem a expressão da subjetividade pelo participante ao oferecer liberdade ao mesmo em relatar sua versão sobre seu roteiro de vida e falar sobre o contexto socioeconômico em que vive. Os participantes da pesquisa foram 5 sujeitos masculinos que trabalhavam no ramo da construção civil na cidade de Manaus. As informações construídas na pesquisa foram analisadas via núcleos de significações (AGUIAR; OZELLA, 2006). As éticas construídas pelos participantes em suas histórias de vida e relações ressaltaram que as condutas para uma relação satisfatória necessitariam de afeto, igualdade, respeito (disfarçado ou não de desigualdade), franqueza, coerência, cordialidade, acordo intersubjetivo e diálogo. Porém, segundo a particularidade deles, cada dimensão destas possuiria entrecruzamentos, dinâmicas, sentidos e intensidades distintas e que precisariam ser acordadas com essas conjunturas que também ocorrem no outro, o que revela a complexidade deste processo. Aspectos como abstração, reflexividade, alteridade e assertividade, necessários ao desenvolvimento do diálogo, destacam-se nas dificuldades e nas potencialidades relatadas pelos participantes. A ineficiência ou a potência destes aspectos dificultam ou os ajudam a desenvolver o lidar nas relações. A pesquisa identificou a necessidade dos participantes em relacionar os sentidos que orientam suas vidas às suas atitudes em relação a si e ao outro em uma relação como o cuidado, o afeto e a conveniência. Verificou-se a necessidade de se refletir a construção ética na contemporaneidade, de forma que as políticas públicas considerassem cada vez mais as histórias de vida das pessoas e seus sentidos, de forma a favorecer discussões sobre ”como se conduzir em relação ao outro para uma vivência satisfatória a dois”. Esse trabalho conseguiu contribuir com reflexões sobre possibilidades de ser e se relacionar visto que evidenciou considerar a reflexão da construção social das identidades de gênero nas relações via processos éticos. Palavras-chave: Sentidos; Ética; Relações de gênero; Masculinidades; Psicologia sócio-histórica; Construção civil. 10 ABSTRACT This proposal is a qualitative research on the senses of ethics in gender relations of workers of a construction work in Manaus / Amazonas. The overall objective was to understand the ethical way in gender relations produced by workers in a construction work in Manaus. The specific objectives were: (1) identify the meanings of being ethical in respect for the experiences of workers' gender relationships construction in Manaus / Amazonas and (2) relate the ethical meanings produced by the workers to the construction of their masculinity in relationships of lived gender. The theoretical framework was structured from the socio-historical psychology proposed by Vygotsky (1988) in contributions from the perspective of psychosocial development proposed by the network of meanings. Such an arrangement presented theoretical insights possibilities on human development from the construction of meaning from the relationships being highlighted in this project gender relations. The research methodology proposed a building data through instruments such as: Life history report and socioeconomic questionnaire. Such instruments favor the expression of subjectivity by the participant to offer the same freedom to report his version of his script to life and talk about the socioeconomic context in which they live. Survey participants were 5 male subjects who worked in the construction industry in the city of Manaus. The information built in the survey were analyzed via meanings cores (AGUIAR; Ozella, 2006). Ethical built by participants in their life stories and highlighted relations that the pipes for a satisfying relationship would need affection, equality, respect (disguised or not inequality), openness, consistency, warmth, inter-subjective agreement and dialogue. However, according to the particularity of them, each dimension of these possess crossovers, dynamics, different directions and intensities and that would need to be agreed with these situations also occur in other, which reveals the complexity of this process. Looks like abstraction, reflexivity, otherness and assertiveness, necessary for the development of dialogue, we highlight the difficulties and potential reported by the participants. Inefficiency or the potency of these aspects hinder or help them develop dealing in relationships. The research identified the need for participants to relate the senses that guide their lives to their attitudes about themselves and each other in a relationship as the care, affection and convenience. There was the need to reflect the ethical construction in contemporary times, so that the public policies increasingly consider the life stories of people and their senses in order to facilitate discussions on "how to behave in relation to each other for a satisfactory experience for two.” This work could contribute to reflections on chances of being and relating as evidenced consider the reflection of the social construction of gender identities in relationships via ethical processes. Keywords: Senses; Ethics; psychology; Civil construction. Gender relations; Masculinities; Socio-historical 11 LISTA DE SIGLAS CEP – Comitê de ética em pesquisa DR – Discussão de relacionamento SARE – Serviço de Educação e Responsabilização do Agressor SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus SEJUS – Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania UFAM – Universidade Federal do Amazonas 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 14 REFERENCIAL TEÓRICO ........................................................................................... 24 1.1. A psicologia sócio-histórica e o ser psicossocial sob a contribuição de Foucault na compreensão de sujeito................................................................................................... 25 1.2. A inserção da Psicologia nos estudos de gênero e masculinidade: possibilidades de reflexões cada vez mais ético-relacionais .................................................................... 29 1.3. Estudo dos sentidos de Ética nas relações de gênero ............................................... 31 1.4. Do feminismo ao estudo das masculinidades – o desenvolvimento da questão de Gênero .................................................................................................................................... 36 1.5. Masculinidade (s) – múltiplas identidades masculinas na contemporaneidade .... 38 1.6. Gênero, Masculinidades e Ética nas relações – janelas para pensar a violência e as relações de gênero da contemporaneidade ................................................................... 43 METODOLOGIA ........................................................................................................... 48 2.1. Tipo de pesquisa ............................................................................................................ 48 2.2. Contexto da pesquisa .................................................................................................... 51 2.3. Os participantes ............................................................................................................. 53 2.4. Instrumentos de construção de dados ......................................................................... 58 2.5. Procedimento de abordagem dos participantes e registro dos relatos de história de vida ......................................................................................................................................... 59 2.6. Aspectos éticos .............................................................................................................. 61 2.6.1. Critérios de inclusão e exclusão dos participantes da pesquisa .................... 61 2.6.2. Pedido de autorização junto à instituição ...................................................... 62 2.7. Análise dos dados ......................................................................................................... 62 RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................................... 68 3.1. Caracterização socioeconômica dos participantes .................................................... 68 3.2. Núcleos de significações .............................................................................................. 72 3.2.1. Odair – o acordo como compromisso ético pela relação de gênero. ............. 72 3.2.2. Zé – a cristalização dos papéis de gênero como exercício ético para a relação. ................................................................................................................................. 77 3.2.3. Tim – desconstruindo o machismo como ética para uma relação satisfatória. ................................................................................................................................. 85 13 3.2.4. Milton – o diálogo como sentido de respeito e confiança que favorece o exercício ético para a manutenção satisfatória da relação de gênero. ..................... 96 3.2.5. Chico – a parceria como ética para uma possível simetrização na relação. 103 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 113 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 116 ANEXOS ...................................................................................................................... 122 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .................................. 123 INSTRUMENTO DE PESQUISA ................................................................................... 124 PARECER DE APROVAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA ............. 125 14 INTRODUÇÃO Propus nesta pesquisa compreender os sentidos de ética nas relações de gênero produzidos por trabalhadores de uma obra da construção civil em Manaus. A construção deste trabalho foi uma proposta de pesquisa ao Programa de Pós-graduação em Psicologia, linha de pesquisa - Processos Psicossociais, Faculdade de Psicologia – Universidade Federal do Amazonas. A dissertação se fundamentou na abordagem sóciohistórica visando contribuir com a discussão de gênero pautada na construção social das masculinidades via processos ético-relacionais. E de forma a considerar as características e dinâmica destes processos, pesquisei a produção de sentidos na história de vida dos trabalhadores. A pesquisa pode contribuir com novos olhares sobre a construção ética nas relações de gênero considerando a construção social das identidades de gênero. Ou seja, os sentidos expressados pelos trabalhadores sobre a maneira como se consideram éticos, em uma relação de gênero, podem proporcionar uma análise sobre como estes se constroem como sujeitos masculinos no contrato com seus pares e o contrário também. Tais possibilidades podem providenciar novas abordagens de fenômenos como a violência contra a mulher, a dependência química, saúde e cuidado de si, relação com o trabalho, paternidade, conjugalidade, filiação, dentre outros. 15 Sob a orientação teórico-metodológica da psicologia sócio-histórica é possível abordar gênero como uma categoria analítica visto que esta abordagem se volta aos processos psicossociais que significam e são significados pelas pessoas nas relações. A psicologia sócio-histórica apresenta sua base epistemológica orientada pelo materialismo histórico-dialético que contribui com o construto teórico ao considerar o sujeito como um ser psicossocial1, portanto ativo, histórico e social. Para a psicologia sócio-histórica, o ser psíquico e sociedade contêm um ao outro sem se diluírem. O externo e o interno são mediados pela linguagem e pelos símbolos que emergem nas relações (ROSA, 2002). O ser psicossocial é multideterminado e envolvido na complexidade, sendo constituído pelas relações que estabelece com o meio e com os outros em um movimento dialético, pois faz parte da totalidade e se transforma em sua experiência (ROSA, 2002). O ser psicossocial se constitui nas relações através de subjetivações da realidade. Compreende-se a subjetividade como um processo contínuo que produz, interpreta, significa as experiências, as relações, o contexto, as instituições. Em tal processo, a subjetividade se constitui e se recria através de símbolos, normas, valores, ideias, fenômenos e demais fatores do viver. De forma a aliar as compreensões da psicologia sócio-histórica às formulações de Michel Foucault, refleti a proposição do autor ao considerar que o sujeito humano irá se definir sendo indivíduo falante, vivo, trabalhador (FOUCAULT, 2004). O filósofo discute que não há a possibilidade de fazer-se uma ideia prévia do que seria o sujeito, do que seria uma essência humana do sujeito, autor reflete que antes de mais nada, o sujeito é histórico e também produzido em sua intrínseca história relacionada à história que o contextualiza na sociedade que vive. Nos processos de subjetivação, as relações de gênero constituem as identidades masculinas e femininas ao passo que também são construídas pelas produções dessas performatividades em um contexto social e histórico específico. Utilizo na construção deste trabalho o termo “performatividade” segundo foi cunhado por Judith Butler. A autora suscita uma importante reflexão sobre a noção de identidade. Segundo a mesma, 1Em algumas obras da literatura sócio-histórica a palavra “homem” é utilizada para caracterizar de forma geral o ser humano no social. Por questões da discussão de gênero, faremos referência a este “homem” como: “ser psicossocial”, visto que a palavra homem como representação de homens e mulheres é resultante de um tempo histórico-social da produção científica universal que referenda o homem (masculinidade) como representante do social. E para se referir às identidades masculinas, utilizaremos o termo “sujeito masculino”, visto que se considera o sujeito como uma integralidade de dinâmicas entre as dimensões que o constituem, sendo uma delas, a dimensão de gênero. 16 a identidade não seria fixa, lógica e nem linear, desta feita, poderia ser muito mais uma realidade em performação, ou seja uma realidade performativa, Butler (2003). Partindo desta compreensão, considero que a ideia de identidade de gênero, que aqui abordamos a identidades masculinas, seriam construções, ou seja, estariam em contínua produção. A autora magistralmente descreve o sujeito sob a perspectiva da performatividade a partir da seguinte reflexão: “Esse sujeito não é base nem produto, mas a possibilidade permanente de um certo processo de ressignificação, que é desviado e bloqueado mediante outro mecanismo de poder, mas que é a possibilidade de retrabalhar o poder”. (BUTLER, 1998, p. 22). Na construção e organização das performatividades de gênero, a sociabilidade tem papel estruturador, visto que o ser homem ou mulher não se constitui somente dos modelos de masculinidade e feminilidade, (OLIVEIRA; VARGAS; PASQUALIN; COELHO, 2012). Os autores ressaltam que as performatividades masculinas não são apenas ancoradas em modelos culturais, mas também mediadas pelas relações entre as subjetividades que reproduzem ou reconstroem os modelos de acordo com as circunstâncias e demandas sociais. Foucault (2004) reforça esta compreensão ao propor que em cada relação que estabelece, o sujeito irá se conduzir de uma forma diferente. Assim, o sujeito se relacionará de formas diversas de acordo com os jogos de verdade ao qual se propuser. Foucault propõe tal compreensão porque defende que há diferentes histórias pelas quais os seres humanos vêm a se tornar sujeitos. Parti da concepção de processo de subjetivação para refletir a ética nas relações de gênero porque a ideia de subjetivação compreende a integralidade do ser, ou seja, dimensões de gênero como sexualidade e afetividade se desenvolvem internamente e externamente através das relações em um processo que inclui o contexto histórico e cultural do ser. A ética se baseia e é baseada por subjetivações que constroem as relações, e estas últimas são construídas pelas vivências. Esse processo constitui o sujeito num processo dialético de subjetivação da realidade para si e objetivação do subjetivo para a realidade. A discussão sobre a ética foi construída neste trabalho baseada nas formulações de Foucault em suas obras: a “história da sexualidade” I, II, III e “a ética do cuidado de si como prática da liberdade”. O autor pensou a ética como uma constelação de significados (em fluxo e estruturações) para o conviver. E estruturou a questão ética em quatro instâncias que serão explicadas mais adiante. Sob a contribuição de autores contemporâneos fundamentados em Foucault, refleti nesse trabalho a ética “como uma 17 instância crítica e propositiva sobre o dever ser das relações humanas em vista de nossa plena realização como seres humanos” (DOS ANJOS, 1996, p.12). A ética pensada por Foucault não se resume a um conjunto de normatizações que é estático, mas sim uma conduta ativa e cotidiana reflexiva em relação a si e aos outros. A ética, em sua distinção da moralidade, trata-se do estudo das implicações morais do agir humano: “sua retidão frente à ordem moral”. Orienta-se como disciplina filosófica que estuda os variados “sistemas de morais” que as pessoas produzem, de forma a tentar compreender o que fundamenta as normas, “proibições próprias a cada uma e explicar seus pressupostos, ou seja, as concepções sobre o ser humano e a existência que os sustenta” (GUILHEM; FIGUEIREDO, 2008, p.8). Concomitante à construção ética nas relações, os sujeitos produzem sentidos de relações de gênero e organizam suas identidades masculinas, ou seja, é relacionalmente que produzem suas masculinidades. A construção ética nas relações é proporcional à construção de si como sujeito masculino e vice-versa. As relações de gênero se constroem em sentidos de ética produzidos pelas identidades de gênero também em construção, isto é, as identidades masculinas constroem-se ao passo que vivenciam as relações de gênero e a ética media tal construção relacional. Desta feita, os sentidos de ética, que são constituídos na relação, bem como, que constituem as relações dos homens, revelam possibilidades para refletir as relações de gênero. A ética como orientadora e orientada pelas relações pode revelar nuances ainda não discutidas sobre o que é se relacionar e o que é compartilhar o viver. A partir da categoria gênero, busquei pensar a ética constituída e constituidora das relações sob a perspectiva dos sujeitos masculinos. A ética como uma reflexão psicossocial (social e subjetiva) que orienta a maneira de se conduzir em relação a si e ao outro é construída nas relações de gênero através dos contratos de convivência. Estudar os sentidos de ética nas relações de gênero seria buscar compreender os roteiros éticos que orientam os sujeitos nas suas relações enquanto tais relações o constroem como sujeito homem. Propus-me compreender tais processos a partir dos sentidos expressados pelos trabalhadores e para isso, orientei-me pela construção teórica sobre sentido proposta por Vygotsky. O sentido trata-se da “soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual” (VYGOTSKY, 1996, p. 125). 18 O sentido de ética nas relações de gênero foi então discutido de forma a se compreender o que o sujeito masculino considera ético em suas relações de gênero. “Educar” através do “bater” seria uma condução ética visto que por sua construção de masculinidade o mesmo aprendeu que o homem é o tutor da mulher e por isso deve educá-la? A palavra “bater” teria o mesmo sentido ético de educar para a mulher como se tem para o filho ou um amigo próximo? Por essa perspectiva, a pesquisa se baseou no discurso dos homens sobre suas histórias de vidas. Os mesmos narraram seus desenvolvimentos através dos sentidos construídos e vivenciados, que os orientam em suas relações na cultura, sociedade e tempo histórico. A pesquisa foi construída a partir do referencial da psicologia sócio-histórica evidenciando as redes de significações. De acordo com Rossetti-Ferreira; Amorim; Silva (1999), no processo interativo, o arranjo das ações e comportamentos são organizados, modificados e interpretados pelo agir do outro, bem como, por uma série de elementos abstratos, concretos, relacionais, socioeconômicos e políticos. Estes componentes se relacionam de maneira dinâmica e dialética. Esse processo tece uma rede que inclui atributos macro e micro-individuais e configura um universo semiótico, construindo a Rede de Significações. A rede permite os processos que constroem o sentido no contexto interativo, dentre tais processos, possibilita o processo de desenvolvimento. Sendo o desenvolvimento uma constelação de significações, considero gênero, sob a perspectiva da psicologia do desenvolvimento humano, como um roteiro de uma negociação social e não um atributo dos indivíduos. Dessa forma, compreendo que a identidade de gênero é construída a partir do discurso. O gênero é definido pelas práticas sociais, pelo momento histórico e pela cultura da sociedade na qual a pessoa está inserida, e não pelo sexo (CRAWFORD, 2014 apud SILVA; REZENDE, 2007). A categoria analítica a qual a psicologia sócio-histórica se debruça nessa dissertação é gênero. Os primeiros estudos de gênero ainda se baseavam numa espécie de polarização entre as identidades masculinas e femininas. Porém, com o avanço dos estudos das masculinidades e da diversidade sexual, os estudos de gênero se voltam à análise da processualidade das relações (como construções sociais das performatividades de gênero) e não somente às particularidades ou caracterizações distintas e/ou dicotômicas entre as performatividades de gênero. 19 Os estudos de gênero tomaram proporções discursivas com o avanço dos movimentos feministas que reivindicavam relações igualitárias entre homens e mulheres. O movimento feminista começou a tomar amplitude no século XIX, mais precisamente nas décadas de 60 e 70. Os estudos de gênero avançaram no final dos anos 80 a partir dos estudos feministas, proporcionando uma ampliação das discussões de gênero o que favoreceu as possibilidades discursivas sobre a masculinidade, que surgiram no final da década de 1980. Tais estudos revelaram o homem e recentemente “as masculinidades” como a vivência de diferentes identidades masculinas. Discutem-se masculinidades a partir das produções contemporâneas de gênero que abordam as relações e as construções sociais das identidades de gênero (CONNELL, 1995; HEILBORN; CARRARA, 1998; BADINTER, 1993; BENTO, 2013; WELZER-LANG, 2001; NASCIMENTO, 2001; MEDRADO, 2002, 2003, 2008). Contemporaneamente, os estudos de gênero discutem a interseção entre a construção das performatividades masculinas e femininas sob fundamentos sociais e históricos. Essa interseção (que se refere às relações em si) expressa as sociabilidades como redes munidas de mecanismos que fazem a manutenção das identidades e suas reproduções nas relações (busca-se discutir como se constroem os sujeitos masculinos entre si e em sua relação com os sujeitos femininos e vice-versa). Isto é, discutem as dinâmicas e constituições de gênero que produzem e sustentam a construção das identidades masculinas e das femininas em suas relações como performatividades construídas dialeticamente. Destaco nesse momento a instância “Masculinidades”. Heilborn e Carrara, (1998) consideram como diversas e divergentes a construção e vivência da masculinidade pelos sujeitos. A produção dos autores contribui aos estudos das vivências masculinas pelos sujeitos, quando propõe que as produções de gênero despertam para o olhar das distintas vivências de identidades masculinas, considerando que esta multiplicidade é implicada e implica relações sociais, históricas e culturais. Tal orientação instruiu essa dissertação, pois busquei aqui possibilitar a voz aos homens e seus interesses que podem estar explícitos ou nunca evidenciados pelo código éticorelacional. Compreendendo a construção social dos sujeitos masculinos como um desenvolvimento fomentado por processos sociais, culturais e históricos, defendo a pesquisa das dimensões e dinâmicas que constituem e fazem a manutenção das vivências masculinas em suas relações. Articulei a abordagem da psicologia e a 20 categoria de gênero para buscar compreender os processos de subjetivação que desenvolvem as relações e orientam a construção das identidades de gênero. Relacionando as redes de significações à construção ética nas performatividade de gênero, propus uma reflexão dos sentidos de ética produzidos pelos trabalhadores nas relações de gênero. Partindo do intento de pesquisar os sentidos de ética construídos nas relações, a pesquisa considerou a multiplicidade de identidades masculinas e concebeu que os homens se constroem e se organizam em tais relações sob implicações históricas, sociais e culturais. Deste modo, compreender os sentidos de ética, pode contribuir para a construção de conhecimentos sobre os valores, normas e simbologias utilizadas pelos participantes ao construírem e vivenciarem afetivamente as relações. Nesta pesquisa, pensando em sujeitos masculinos, elegi o grupo de trabalhadores da construção civil para ouvir suas histórias de vida. Tal iniciativa se pauta em aspectos sociais, históricos e econômicos: sociais por analisar o contexto social brasileiro que constitui o público da construção civil por pedreiros, auxiliares e pedreiros e mestre de obras com escolaridades, renda e outros aspectos em comum; históricos por considerar o desenvolvimento do setor da construção civil nas últimas décadas no país; e econômico por se basear nas estatísticas de desenvolvimento do país a partir da expansão urbana via construção civil. Elegi o cenário de um canteiro de obras devido o objetivo da pesquisa se focar em sujeitos de identidades masculinas. O canteiro de obras se caracteriza como um espaço predominantemente masculino, apesar do avanço da participação feminina neste âmbito do mercado. O campo da construção civil destaca-se como um campo de sociabilidades com predominância de homens e ressalta possibilidades para o estudo da construção das masculinidades a partir das relações. Propus discutir gênero em seu caráter ético-relacional e não meramente as distinções sexuais. Então este trabalho sustenta a possibilidade de refletir os sentidos éticos nas relações de gênero sob as perspectivas de sujeitos masculinos, pois alguns questionamentos necessitam ser feitos hoje: como as performatividades de gênero se constroem hoje nas relações? Como se constitui a ética nas relações de gênero na contemporaneidade? Como os homens constroem-se a si mesmos ao se constituir eticamente na relação com seu par? Devido a este modelo estar se gestando, fez-se necessário lançar-me de uma perspectiva para buscar compreender o aspecto relacional. Porém, destaca-se que 21 analisar a partir da perspectiva dos sujeitos masculinos não acarreta prejuízos para a tentativa de analisar o aspecto ético-relacional, pois compreendendo que a construção das identidades de gênero é dialética, se for possível analisar a construção social dos homens, seria possível encontrar pistas capazes de contribuir com a construção de hipóteses relacionadas à construção das feminilidades também, visto que ambas são construções sociais, e por isso, constituídas essencialmente como relações. Foi necessário tomar cuidados teórico-metodológicos para se utilizar da categoria analítica de gênero como bússola evitando erros de assunção de partes. Ao definir o recorte do problema, elegi os sujeitos masculinos como vozes fazendo alusão ao conceito de polifonia proposto por Bakhtin (2008)2, pois articulei tal dimensão à necessidade de compreender os processos que os envolvem (onde estão inclusos os trabalhadores da construção civil) nas principais demandas contemporâneas de gênero como violência, saúde e sexualidade. Diante do exposto, destaco que Gênero pode estar sendo representado, no atual momento histórico, como uma categoria que reflete acerca da interseção do que necessariamente é diverso e similar nas relações de gênero. Ética nas relações de gênero é um campo a ser estudado, pois a ética se trata de uma construção geral e específica baseada nas representações que as pessoas julgam ser necessárias para uma relação. Como se em cada relação, as pessoas desenvolvessem éticas para a manutenção desta. Por isso, pode ser ressignificada quando não dá certo ou quando falta algo. No que tange às relevâncias desse trabalho, menciono que me deparei com o tema em diversas situações do meu cotidiano e por isso propus novos olhares sobre a questão da ética nas relações de gênero sob a perspectiva dos trabalhadores. Partindo da relevância pessoal do tema, menciono a necessidade de analisar as possibilidades de relações mais igualitárias pela diversidade que favorece a vivência de homens e mulheres. Como identidade feminina, já enfrentei o preconceito cometido por sujeitos de masculinidades hegemônicas, mas ao passo que recebi esse tipo de violência, consegui vislumbrar fatores que não eram explicados apenas pela via do machismo. Convivi com homens sensíveis, críticos bem como hegemônicos e aprendi a perceber os processos histórico-sociais que permeavam a reprodução destas identidades. 2 Segundo o autor, a polifonia trata-se do elemento fundamental da enunciação. O mesmo defende que em um texto há distintas vozes que se explanam, assim todo discurso seria construído por múltiplos discursos. 22 A discussão sobre a ética nas relações de gênero sob a perspectiva dos trabalhadores é uma possibilidade de evidenciar cada vez mais as relações e as construções psicossociais que cristalizam sentidos e significam novas perspectivas do relacionar-se. Refletir a ética nas relações de gênero trata-se de uma possibilidade de se evidenciar cada vez mais as negociações entre as pessoas em suas relações, pautando-se no que é efetivo e satisfatório para ambos em um determinado tempo histórico e em determinada cultura, desprovendo-se das generalizações e das cristalizações que engessam e retrocedem o conviver. Tais possibilidades contribuem com a produção científica, pois podem ampliar suas análises sobre o fenômeno das relações de gênero, não considerando somente os problemas e culpados, mas propondo a compreensão dos processos, suas dinâmicas e seus atores. No âmbito social, a discussão sobre a ética nas relações pode contribuir com os questionamentos que fundamentam as políticas e que por sua vez, orientam os serviços voltados para as identidades de gênero. Além disso, tal discussão pode contribuir com os questionamentos éticos que fomentam a construção de um projeto de sociedade, visto que ao refletir a igualdade pela diversidade, há a possibilidade de questionar os padrões que fazem sujeitos masculinos e femininos reféns de roteiros pré-determinados de vida e relação. Esta proposta de pesquisa identificou os sentidos de ética nas relações construídos pelos homens a partir dos processos de subjetivação destes nas relações. Tal necessidade destaca-se pela tentativa de compreensão sobre como as relações de gênero vão se constituindo a partir de éticas construídas pelos sujeitos masculinos nas relações. Focou-se nas relações que os sujeitos consideraram mais significativas em suas histórias de vida. Sendo relações afetivo-conjugais, de paternidade, familiar ou de fraternidade (amigos). Busquei pesquisar a construção da masculinidade nos processos éticos das relações, pois dando voz aos sujeitos de identidade masculina e suas reflexões sobre a ética nas relações, pode-se contribuir para intervenções sociais que considerem as relações de gênero sob os sentidos. Pensar em políticas e intervenções que partam da perspectiva de gênero pode viabilizar a produção de alternativas que considerem a maneira como os homens pensam, produzem e orientam seus sentidos de ética ao lidar nas relações sociais envolvendo relacionamentos desprovidos de violência, saúde e autonomia, reprodução e planejamento familiar, lazer e socialização, projetos de vida pautados no protagonismo pela reflexão, dentre outros. 23 Para inferir sobre os sentidos de ética nas relações de gênero construídos pelos trabalhadores da construção civil, exponho os seguintes objetivos: Objetivos: -Geral: Compreender os sentidos de ética nas relações de gênero produzidos por trabalhadores de uma obra da construção civil em Manaus. -Específicos: 1. Identificar os sentidos de ser ético na relação durante as experiências de relacionamentos de gênero dos trabalhadores da construção civil em Manaus/Amazonas; 2. Relacionar os sentidos éticos produzidos pelos trabalhadores à construção de suas masculinidades nas relações de gênero vividas. O presente projeto foi estruturado em introdução, marco teórico, método e análise de dados. Na introdução, apresentei os principais aspectos que organizaram a ideia do projeto e sua proposta de pesquisa. O referencial teórico fundamentou-se pelas seguintes discussões: a psicologia sócio-histórica e o ser psicossocial sob a contribuição de Foucault na compreensão de sujeito; a inserção da Psicologia nos estudos de gênero e masculinidade – possibilidades de reflexões cada vez mais ético-relacionais; estudo dos sentidos de Ética nas relações de gênero, do feminismo ao estudo das masculinidades – o desenvolvimento da questão de Gênero; e por fim, Gênero, Masculinidades e Ética nas relações – janelas para pensar a violência e as relações de gênero da contemporaneidade. A metodologia apresentou o tipo de pesquisa, o contexto sócio-histórico da economia Manauara e seu processo urbanizatório, os participantes, os instrumentos de construção de dados, bem como os aspectos éticos. Na análise de dados apresentei o método de análise e referencial teórico que orientou a análise. Após a análise de dados, revelei os núcleos de significações como resultados e a discussão, em seguida a conclusão. Por fim, apresentei as referências e anexos. 24 REFERENCIAL TEÓRICO O estudo dos sentidos de ética nas relações de gênero foi providenciado sob a orientação da psicologia sócio-histórica proposta por Vygotsky, visto que essa abordagem apresenta uma perspectiva ativa, dialética e contínua do desenvolvimento humano. Além disso, costurei a essa compreensão as contribuições de Foucault sobre o sujeito. Para refletir o desenvolvimento humano, a psicologia sócio-histórica e a compreensão de sujeito proposta por Foucault, proporcionam problematizações que consideram a subjetivação como um processo de sujeição e insubordinação onde estão inclusos o contexto social, histórico e cultural. E compreendendo a subjetividade como um processo, a psicologia sóciohistórica ressalta a linguagem como intermediação simbólica que baseia as práticas, os afetos, a produção de normas, as ideias, os valores, os comportamentos e os demais fenômenos que constroem o sujeito. Aliei à psicologia sócio-histórica, as produções dos estudos de gênero como categoria analítica e utilizei a perspectiva da rede de significações como uma abordagem possível para se relacionar a construção social das masculinidades à constituição ética dos sujeitos nas relações, visto que a ética se trata de uma produção psicossocial. 25 1.1. A psicologia sócio-histórica e o ser psicossocial sob a contribuição de Foucault na compreensão de sujeito. A psicologia sócio-histórica trata-se uma proposta que evoca uma concepção de desenvolvimento social, histórico e cultural do ser humano que é psíquico e social. Trata-se de uma abordagem que busca compreender o ser humano como ser ativo que se desenvolve através da utilização de instrumentos como a linguagem. Esta última abarca as significações e se caracteriza como “instrumento do pensamento” (BONI apud LUCCI, 2006, p. 4). A partir de uma psicologia baseada no materialismo dialético e em seu construto teórico-metodológico, a psicologia sócio-histórica se propõe a compreender os processos cognitivos considerando que esses se constituem com implicações históricas e culturais. Assim, sob os fundamentos da teoria marxista, busca-se explicar o funcionamento intelectual humano destacando a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes no desenvolvimento das funções psicológicas, bem como considerando o contexto social que participa deste desenvolvimento (LUCCI, 2006). Além das ideias de Marx e Engels (materialismo), a psicologia sócio-histórica proposta por Vygotsky articula-se com os conhecimentos de Darwin (evolucionismo), Espinosa (filosofia), dentre outros autores. Lucci (2006) resume tais influências nas compreensões de Vygotsky mencionando que a psicologia é uma ciência do ser histórico e não do ser abstrato e universal, a origem e o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores é social. Há três classes de mediadores: signos e instrumentos; atividades individuais e relações interpessoais; o desenvolvimento de habilidades e funções específicas, bem como a origem da sociedade é resultante do surgimento do trabalho - este entendido como ação/movimento de transformação - e que é pelo trabalho que o ser psicossocial, ao mesmo tempo em que transforma a natureza para satisfazer as suas necessidades, transforma-se também. E por fim, existe uma unidade entre corpo e alma, ou seja, o ser psicossocial é um ser total. Para Vygotsky, como não há uma natureza humana, o humano se constrói em relação, uma relação do ser com a realidade. Para a psicologia sócio-histórica o ser é ativo, histórico e social, constitui-se então por sua ação e na relação com a cultura, sua história e realidade. O ser se constitui não por uma mera absorção imediata do contexto, e sim por um processo de regular subjetivação da realidade, fazendo-o singular. 26 Neste processo de subjetivação, o mundo objetivo é convertido para o subjetivo, produzindo-se um plano interno pela incorporação do externo, processo em que se configura algo novo. Ao mesmo tempo, o ser constrói a realidade através de sua atuação sobre ela e, assim, da objetivação de seu mundo singular, ou seja, de sua subjetividade. Portanto, o individual e o social contêm um ao outro sem se diluírem, o que implica dizer que não há uma relação de identidade entre indivíduo e sociedade e vice-versa (ROSA; ANDRIANI, 2002, p.7). Em contribuição a esse estudo, sob a psicologia sócio-histórica, pensei o ser humano como ser psicossocial e fiz a reflexão dos participantes da pesquisa como sujeitos de identidade masculina, ou sujeitos masculinos, no intento de destacar suas integralidades constituídas por diversas dimensões, que dentre elas, está a identidade de gênero, evitando substantivá-los ou essencializá-los em masculinidades. Foucault (2004) considera o ser como falante, vivo e trabalhador. O indivíduo passaria a se constituir como sujeito através dos “jogos de verdade” nos quais ele se assujeitaria e concomitantemente, a partir de suas frestas de liberdade, poderia também romper com tal subordinação. Esses “jogos de verdade” são propostos como um conjunto de normas que produzem a verdade, bem como transformam a produção da referida verdade. Por meio de suas práticas (relações com as instituições, consigo, com os outros), os sujeitos criariam procedimentos que estabeleceriam e desestabeleceriam a produção da verdade. A subjetividade, o ser sujeito, é o que possibilita que o ser psicossocial tenha capacidade de criar processos culturais incessantemente. Além desse contínuo produtivo, haveria também transformações no meio do processo que mudariam os modos de subjetividade, criando novos e ressignificando processos anteriores. Relacionando tal compreensão à produção de Foucault, pode-se refletir que mesmo havendo mecanismos de poder (ou seja, de assujeitamento) o sujeito dispõe também de um campo de possibilidade de diversas condutas, visto que onde há poder, há liberdade. Poder e liberdade são instâncias dialéticas, “se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade em todo lugar” (FOUCAULT, 2004, p.8). O psicossocial se constitui através da conversão do plano social em um plano psicológico. O ser faz a apropriação de significações constituídas no social e significa suas vivências. Assim, quando uma pessoa sente, opina, julga, nega, afirma, conta... Ela está produzindo material discursivo histórico e social. Este processo se faz pela mediação da linguagem que formula signos e realiza a transformação contínua do sujeito através da constituição de sua consciência. 27 Compreendendo-se o processo de subjetivação como a dialética entre a pessoa e o social, defende-se que entre o ser e o social, há uma relação de mediação pelos sentidos. Ou seja, o externo e o interno são mediados pela linguagem e pelos símbolos que emergem nas relações (ROSA, 2002). Propus o presente projeto baseado em tal compreensão do desenvolvimento, pois considero que gênero se trata de uma categoria analítica que discute a construção das identidades de gênero como processos do desenvolvimento humano a partir do discurso. O discurso se refere à significação do social nas relações em uma dada sociedade, em um dado momento histórico. Sujeitos de identidades masculinas e femininas orientamse por papéis e roteiros sociais que fazem a manutenção das relações sociais de gênero. A partir de signos, representações e comportamentos, as performatividades se orientam e se reproduzem. E mediante a ausência de questionamentos e discussões sobre gênero, o que é caracterizado como próprio do feminino e próprio do masculino, pode se cristalizar e determinar as identidades, coibindo outras possibilidades de ser. O que Foucault (2004) coloca como “jogo de verdade” estaria estritamente relacionado ao que a psicologia sócio-histórica se coloca a analisar quando se refere à produção de sentidos e significados. O “jogo de verdades” seria um conjunto de regras de produção da verdade. “Não um jogo no sentido de imitar ou de representar... é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado” (FOUCAULT, 2004, p.12). Para o estudo das relações de gênero orientado pelo sentido de ética, elegi a abordagem dos sentidos como caminho metodológico para a busca da expressão dos processos de subjetivação que produzem e orientam as vivências nas relações. Sobre os sentidos abordados com base na psicologia sócio-histórica, propôs-se compreender os sentidos inscritos na linguagem e para isso, é importante distinguir sentido e significado. Vygotsky (1998) considera o sentido como a soma dos eventos psicológicos que a palavra evoca na consciência. É um todo fluido e dinâmico, com zonas de estabilidade variável, uma das quais, a mais estável e precisa, é o significado que é uma construção social, de origem convencional (ou sócio-histórica) e de natureza relativamente estável. Quanto ao significado, o autor expõe que o significado de uma palavra trata-se de uma generalização, ou seja, a formulação de um conceito, sendo o significado um fenômeno do pensamento (VYGOTSKY, 1989). Desta feita, o significado é o produto de um consenso de ideias, uma estabilização consensual de uma ideia feita por um 28 grupo, visto que o significado, ao unir a palavra ao pensamento, constitui uma elaboração cultural que contribui com a constituição da consciência dos envolvidos. Já o sentido de uma palavra, que é o fenômeno ao qual este projeto visou pesquisar, considerou-se que o significado é uma das zonas de sentido, visto que a palavra pode adquirir sentido no contexto em que está. Portanto, a palavra pode ter seu sentido alterado dependendo do contexto. “O significado permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido” (VYGOTSKY, 1996, p. 125). De forma a ilustrar a distinção entre sentido e significado, expõe-se a seguinte situação: o significado compartilhado socialmente da palavra “bater” pode ser “agredir”, porém, no contexto específico de uma relação conjugal violenta, a palavra “bater” pode ter o sentido pessoal de “educar” para o homem que direciona a violência à mulher, visto que ele acredita que sua companheira é um sujeito que precisa estar submetido à sua tutela, sua educação. O significado é um conceito social compartilhado, já o sentido seria uma atribuição pessoal à palavra que dependeria do contexto da relação. O sentido é muito mais amplo que o significado, pois o primeiro constitui a articulação dos eventos psicológicos que o sujeito produz frente a uma realidade. Como coloca Gonzalez Rey (2011), o sentido subverte o significado, pois ele não se submete a uma lógica racional externa. O sentido refere-se a necessidades que, muitas vezes, ainda não se realizaram, mas que mobilizam o sujeito, constituem o seu ser, geram formas de colocá-lo na atividade. O sentido deve ser entendido, pois, como um ato do ser mediado socialmente. A categoria sentido destaca a singularidade historicamente construída. (AGUIAR; OZELLA, 2006, p.226-227) O sentido, ao mesmo tempo em que se caracteriza como roteiro constituído pelas significações, revela também a incompletude e a dinamicidade das representações humanas. Elegeu-se estudar o sentido, pois a partir desse, seria possível buscar compreender a pauta particular articulada com as significações compartilhadas que orienta as formas de lidar com o outro e consigo. O sentido revela os acordos construídos relacionalmente nas vivências por roteiros de significações produzidas na intimidade, na educação, num tempo histórico e num social. 29 1.2. A inserção da Psicologia nos estudos de gênero e masculinidade: possibilidades de reflexões cada vez mais ético-relacionais Os estudos de gênero nasceram com a efervescência dos estudos feministas. Com o surgimento dos estudos masculinos no final da década de 1980, a perspectiva de gênero tem sido analisada sob implicações cada vez mais relacionais. Os estudos dos homens sob as implicações dos estudos analíticos de gênero (SCOTT, 1995) têm sido cada vez mais abordados pela Psicologia Social. Esses estudos têm suscitado inúmeros trabalhos apresentados pela psicologia social por autores como: Benedito Medrado Dantas, Kátia Lenz Cesar de Oliveira, Marcos Antônio Ferreira do Nascimento e Sócrates Alvares Nolasco. Tais produções vêm contribuindo com inúmeras discussões concernentes a notáveis transformações vivenciadas pelos sujeitos masculinos na sociedade contemporânea como conquistas políticas nos âmbitos da saúde e justiça. Os estudos dos homens, sob a abordagem da psicologia social, buscam principalmente compreender as mudanças nas identidades masculinas e seus desdobramentos frente à sociedade contemporânea (BENTO, 2013). Tais focos nos estudos masculinos destacam e refletem os movimentos masculinos na sociedade pósmoderna. Dentre os autores da psicologia social que se propuseram a lançar novos olhares sobre a questão de gênero, mencionam-se as produções da psicóloga Kátia Neves Lenz César de Oliveira. A pesquisadora realizou articulações entre a psicologia, filosofia, sociologia e antropologia para abordar as relações de gênero, as masculinidades e os conflitos conjugais. A autora contribuiu com os estudos analíticos de gênero articulando-os à abordagem da psicologia social em produções como: Discurso(s) de homens em conjugalidade violenta: uma análise sócio-antropológica sob a referência da ética da serenidade (2010), Relações conjugais violentas: suas contradições e novas configurações contemporâneas pós-feminismo (2001), Quem tiver a garganta maior vai engolir o outro: sobre violências conjugais contemporâneas (2004). Nas referidas produções, Lenz propôs a compreensão da violência nas relações de gênero sob perspectiva dos sujeitos masculinos a partir da constituição psicossocial destes e suas reflexões éticas nas vivências conjugais, bem como, nas experiências cotidianas que envolvem paternidade, trabalho e saúde. 30 A psicologia social vem contribuir com as discussões sobre a questão de gênero ao estudar o desenvolvimento das relações e das identidades de gênero contextualizando-as sócio-historicamente e analisando-as como processos relacionais. Benedito Medrado é outro autor que vem contribuindo com as discussões de gênero ao articular a psicologia social a temáticas como masculinidades, gênero, saúde e sexualidade. O autor propõe a construção de novas abordagens metodológicas para refletir gênero como uma categoria. O autor aponta a existência de três dimensões necessárias ao estudo da construção dos gêneros: a dimensão relacional compreende que o masculino e o feminino não são entidades substantivas, são relacionais, ou seja, coconstruídas dialeticamente; a dimensão histórica evidencia que as relações de gênero, para serem compreendidas, devem ser estudadas a partir de uma contextualização histórica, visto que não são algo fixo; e por fim, a dimensão contextual-situacional destaca que o estudo do gênero se vincula ao estudo de contextos culturais específicos, onde tempo e espaço tem relevância central (MEDRADO, 1996). Essas dimensões ressaltam o caráter social das relações de gênero. Assim, os estudos de gênero necessitam considerar as dimensões contraditórias, multifacetadas polissêmicas e transacionais das relações dos sujeitos consigo mesmo, com os outros e em seu contexto social, histórico e cultural. Considerando que as identidades de gênero se constroem relacionalmente nos contextos em que vivem, os estudiosos de gênero como uma categoria analítica necessitam desprender-se de construções paradigmáticas rígidas, culpabilizantes e lineares. Precisam inclinar-se aos estudos das dimensões, das dinâmicas e dos sentidos para vislumbrarem a complexidade dos processos das relações de gênero e suas matérias/abstrações até então não refletidas ou percebidas. Deste modo, optei por estudar a ética nas relações por considerar a ética um agrupamento pessoal incompleto de significados valorais compartilhados que orientam as relações e, desta maneira, desenvolvem as vivências de masculinidades e feminilidades nos sujeitos. Considera-se relevante “estudar a construção ética porque a ética pode se tratar de um roteiro que organiza e produz valores, símbolos, representações e normas em códigos de conduta para com o outro e com o outro”, (BENTO, 2013, p.198). O estudo da ética das relações evidencia a co-construção das performatividades de gênero nas diferentes relações sociais e contribui com os estudos do desenvolvimento humano, visto que compreende as relações como processos de constantes transformações que 31 constroem as pessoas (ao passo que são construídas por elas). As pessoas criam a si mesmas e suas sociedades, arranjando em sentidos próprios as significações que compartilham sobre o existir, e assim vão se constituindo como seres psicossociais. 1.3. Estudo dos sentidos de Ética nas relações de gênero A ética, portanto, é individual e social ao mesmo tempo. Ninguém é ético para si; somos éticos em relação aos outros[...]. (GUARESCHI, 2008, p.7) Partindo da compreensão de que é nas relações que as pessoas significam suas vivências e produzem os sentidos que fazem a manutenção dessas, propus nesse projeto refletir os sentidos de ética produzidos nas relações construídas pelos homens. Une-se às contribuições da psicologia sócio-histórica a produção sobre a ética de Michel Foucault. O autor discute a ética analisando-a como uma produção social em que o sujeito, em um dado contexto histórico e cultural, elabora modos de se conduzir mediante ao que é prescrito como moral em suas relações consigo e com o outro. O importante na ‘ética’ deixa de ser a regra moral ou a conduta que se pode medir em relação a ela pelo comportamento real do agente, mas sim seu modo de ‘conduzir-se’ diante da prescrição da regra e a constituição como ‘sujeito moral’ que isso demanda. Nesse sentido, a genealogia da ‘ética’ é também uma história da “ascética”, ou seja, a história da ‘maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral’ (FOUCAULT, 1984a, p. 41) pelo exame de si e pela transformação do seu modo de ser (CANDIOTTO, 2013, p.222). Empenha-se em discutir a ética, visto que ela se trata de um sentido, ou seja, um roteiro de significações construídas, compartilhadas e arranjadas durante a história de vida do sujeito. Entende-se a ética como sentidos construídos e reconstruídos pelo ser psicossocial nas relações por processos sociais como a educação, cultura, relações íntimas, espiritualidade e demais dimensões que constituem o sujeito no social. Essa ética que é ativa, dinâmica e incompleta orienta as ações concretas das pessoas perante a si e o outro num contexto de códigos morais. A ética é pessoal e social ao mesmo tempo. De acordo com Guareschi (2008), deste modo, é uma produção psicossocial, visto que orienta as ações do sujeito baseada nos recursos semióticos morais de uma dada sociedade, história e cultura, mas que também é elaborada pelo mesmo sob suas preferências valorais que avalia e julga pessoalmente. De acordo com Agosto In Jacques (2008), a ética como uma reflexão sobre a moral tece os valores, atitudes e ideias da 32 moral em um processo próprio do ser psicossocial e os arranja de forma mais pessoal e ao mesmo tempo em comum com o outro para buscar exercê-la. Em uma relação, a pessoa sabe as prescrições morais da sua sociedade, porém, ela realiza um arranjo de tal prescrição moral com os seus preceitos valorais num dado roteiro concreto. E esse arranjo orientará o proceder em relação ao outro. O arranjo é a ética. Entre os termos moral e ética há uma utilização sinonímica por se referirem ao agir do ser humano e suas intenções avaliadas por critérios de retidão no social. Porém, há uma diferença conceitual entre ética e moral. Segundo Aranha (2005), a moral é um conjunto de normas de condutas exercidas livre e conscientemente pelos sujeitos, e ela possui o objetivo de organizar as relações interpessoais sob orientações de valores morais. Já a ética, ou filosofia da moral, é uma instância mais abstrata, pois se incumbe da reflexão das noções e princípios que fundamentam a vida moral. Foucault (1995) discute em sua obra “a genealogia da ética” que a ética se constitui por quatro elementos. O primeiro é a substância ética – o sujeito realiza a escolha do que nele mesmo é priorizado para proceder atendendo à moral, é aquilo que no próprio sujeito está acessível para mudar, não é a adesão ao que é exigido moralmente, mas sim, o que o sujeito considera de recurso seu que se identifica com a exigência onde ele se propõe. Ex: quando alguém vive com sua família, ele precisa se adequar às normas acordadas moralmente no grupo, porém, perante algumas normas ele conseguirá significar como importante e a outras apenas acatará (existindo a possibilidade de subvertê-la). A norma que o ser psicossocial considera importante (por alguma razão social e subjetiva), por mais que ele ainda não tenha refletido sobre ela antes (apenas a incorporou como regra), ao necessitar cumpri-la, ele concorda que precisa mudar a si para exercê-la. Isso ele considera conduzir-se eticamente. Viver em um grupo exige que você atenda a norma de como não se apossar do que é do próximo sem a devida autorização dele, porém, se na constituição psicossocial do sujeito ao longo dos seus anos de vida, este valor não seja uma prioridade, atender essa norma poderá se tornar um sacrifício, ao passo que para outros sujeitos que significaram a importância desse valor e a concordância com ele, esta tarefa poderá ser bem mais fácil. Algumas constituições psicossociais de determinados sujeitos masculinos e femininos não significaram a alteridade como um valor, incorporaram apenas regras de que não se deve prejudicar o próximo, embora não reflita que o próximo é uma unidade 33 diferente e, portanto, não necessariamente necessita corresponder às suas expectativas ou proceder da maneira como você exige. Quando o sujeito acata apenas o que não se deve fazer, pois é proibido, pode não se identificar com a regra, embora não reflita ou atribua a essa regra significações suas. Deste modo, não a prioriza porque não se identifica com ela. Essa compreensão defende que quando as pessoas não agem de forma ética, elas não estão adotando tal postura simplesmente porque desejam ser antiéticas, mas porque elas não a significam como prioritária para si e para o outro. Por esse motivo, a reflexão ética é tão suscitada na contemporaneidade como uma necessidade para dar sentido às relações e ao proceder, visto que historicamente, com as relações de produção capitalista, a convivência com o outro passou a se caracterizar cada vez mais pelo individualismo, e aquilo que é estritamente relacional passou a ser pensado como complexo, distante e evitado. Outro elemento constitutivo da ética segundo Foucault é o modo de sujeição. O modo de sujeição se refere à maneira como o sujeito se relacionará com a regra, ou seja, o modo como ele a significa para a forma prática. Ele se submeterá a ela avaliando os fatores que serão mantenedores da submissão dele a ela. Ele refletirá a importância que a submissão àquela regra gera para ele e concluirá a maneira como se sente ao escolher cumpri-la. Ele a manterá ou não, se o cumprimento dela o classificar positivamente em seu meio social, fomentando sua autonomia por fazer as escolhas adequadas para si e para seu grupo. Em famílias onde o reconhecimento de atitudes éticas não é priorizado ou fomentado de algum modo, os componentes podem não ver sentido em sustentar tal submissão. Porém, há também a possibilidade de, se ele significar a importância da atitude ética, apesar de seu grupo não a reconhecer, poder buscar grupos que compartilhem com ele a importância de estar submetido a tal regra. Um exemplo é o fato de adolescentes autores de ato infracional manter atitudes éticas em grupos sociais que não o seu grupo familiar, mas por se sentirem reconhecidos e por significar como importante tal atitude, eles se mantêm submetidos, mesmo não incentivados por sua educação familiar (muitos saem de casa cedo por não se identificar com as regras familiares e se identificam com regras dos grupos de rua ou de projetos sociais que se envolvem, nestes outros grupos eles compartilham atitudes éticas como a proteção mútua e a cumplicidade em serem adolescentes e por isso, compreenderem as demandas uns dos outros). O mesmo acontece com homens que se sentem mais à vontade para se expressar em grupos masculinos do que no âmbito do lar. 34 O terceiro elemento é a ascética (a prática de si). A ascética se refere ao trabalho ético, trata-se do esmero que o sujeito faz para se transformar de modo que se sinta sujeito moral pelo seu protagonismo orientado pela identificação com a regra dada. Ele realiza uma transformação de si onde reflete suas condutas que o levam a ser ético, de modo a buscar entender os recursos subjetivos que o dificultam na constituição moral de si, bem como, reconhecendo seu potencial diante de suas demandas para agir de forma ética. O sujeito reflete a si e suas relações, ele não se sente estritamente obrigado a ser um sujeito moral, ele significa a necessidade disso para si e para o outro, desta feita, não precisa exercer um auto-controle, ele avalia suas intenções e as ressignifica de maneira autônoma e ao mesmo tempo relacional e sensível. Candiotto (2013) afirma que a ênfase na proposição de Foucault (1984, p. 42) ocorre sobre os “exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como objeto a conhecer e as práticas que permitem transformar seu próprio modo de ser”. Menciona-se como exemplo do trabalho ético a renúncia de uma identidade masculina à sua vida social (a exigência da vida social está inclusa no normatizador patriarcal), quando é demandado a administrar junto com seu parceiro ou parceira a proteção e educação de um filho. Trata-se de uma regra moral o fato dos pais serem responsáveis por prover o filho, mas para alguns pais, isso não se trata de uma obrigação e sim uma necessidade autônoma do sujeito, essa transformação de si por muito tempo foi majoritariamente desenvolvida por mulheres e contemporaneamente, tal exercício moral vêm se estendendo cada vez mais ao trabalho de si masculino. Esse processo é transpassado pela transformação ocasionada por movimentos feministas e da diversidade sexual que reconhecem que a educação dos filhos é de responsabilidade dos pais e não papel de apenas um componente do casal, visto que uma criança necessita do trabalho de si de ambos. Por fim, o quarto elemento é a teleologia do sujeito moral. A teleologia do sujeito moral se refere ao objetivo a ser alcançado pelo trabalho de si, a categoria de sujeito moral. O objetivo de se chegar à condição de sujeito moral seria alcançar o discernimento, a parcimônia, a evolução da alma ou pureza (hermenêutica cristã), a vivência desprovida das angústias causadas pelos impulsos desmedidos e não refletidos que causam os conflitos. As longas relações de cumplicidade entre casais idosos, tão questionadas pelas pessoas, podem ilustrar a teleologia do sujeito moral. Muitos casais de idosos que vivem cerca de 40 ou 50 anos juntos afirmam que o que os mantém por tanto tempo juntos é o 35 fato de um ser companheiro do outro e escolherem viver a relação ao invés de dividi-la com os desejos infindos propostos pelo mundo contemporâneo. Muitos deles afirmam que viver assim é simples e gratificante para ambos. Pelas condutas negociadas como éticas entre eles, o casal se transforma para si e para o outro, renunciando ao tão necessário para si e se gratificando com a relação. Essa não seria uma fórmula para relacionamentos duradouros, mas uma possibilidade para tentar compreender as possibilidades dos sentidos de ética nas relações. Se aquilo que o sujeito considera ético não é negociado com o outro, o trabalho de si em ambos pode destoar do objetivo relacional e a teleologia do sujeito moral de cada um não funcionar para o casal. Candiotto (2013) cita Foucault (1984, p. 42) para argumentar que um dos desafios da ética por Foucault trata-se do sujeito “fazer da própria vida e pensamento obras de arte e objetos de elaboração cuidadosa”. Candiotto (2013) afirma também que o trabalho de si coincide com a solicitação fundamental filosófica da contemporaneidade indicada por Foucault (1994, p. 571) a “crítica permanente de nosso ser histórico”. Esse projeto lançou a possibilidade de reflexão do projeto moral da sociedade contemporânea de forma a pensar o que é considerado ético em cada relação. Necessita-se discutir as éticas utilizadas pelas pessoas para se alcançar a condição de sujeito moral, de forma a pensar que o sujeito pode ter condutas éticas diferentes do padrão social para alcançar um status moral. No processo para a condição de sujeito moral, há a necessidade de transformar a si por condutas éticas que tenham a ver com o próprio sujeito e suas intenções para o social. O sujeito moral é construído psicossocialmente, então considerar apenas as regras sem levar em consideração os aspectos subjetivos pode ser uma tarefa vã e incompleta para a compreensão de problemas como a violência e o cuidado de si. O sujeito é construído socialmente, mas também num concomitante trabalho de si. Assim, ele é formado socialmente ao passo que transforma a si. Ele é criado, mas também cria a si. Propus refletir a ética nas relações sob a perspectiva dos sujeitos masculinos porque acredito que para buscar compreender os principais problemas que envolvem os homens e suas relações (consigo e com o outro), necessita-se realizar abordagens mais analíticas de gênero que incluam nesse procedimento o estudo da dimensão ética que oriente as relações enquanto estas se constroem. Tal abordagem contribuiria para a reflexão sobre como as relações vão se construindo sob as negociações dos envolvidos, de modo que ambos precisem realizar “o artesanato do cotidiano do pensamento como 36 tarefa indispensável diante das identidades forjadas pelos padrões comportamentais já estabelecidos” (CANDIOTTO, 2013, p.232). Podem existir fatores bem mais complexos e desconhecidos na construção das relações masculinas que ainda não são acessados pelos estudos contemporâneos de gênero e seus paradigmas, por esse motivo vêm se avançando os estudos de gênero como categoria analítica cada vez mais relacional. Em vista disso, Nolasco (1995) já aponta alguns caminhos ao afirmar que é prejudicial acreditar que o machismo é apenas uma ideologia machista3, visto que as relações sociais também são perpassadas pela ideologia da classe dominante. Ou seja, apontar o machismo como argumento exclusivo para explicar as problemáticas de gênero como a violência é extirpar da discussão dimensões múltiplas intrínsecas ao processo como economia, política e códigos culturais. 1.4. Do feminismo ao estudo das masculinidades – o desenvolvimento da questão de Gênero Os estudos de gênero iniciaram no final dos anos 80 a partir do avanço dos movimentos feministas que reivindicavam a igualdade de direitos entre homens e mulheres. O movimento feminista se destacou no século XIX, mais precisamente nas décadas de 60 e 70 e foi classificado em gerações do feminismo. De acordo com Machado (1992), a primeira geração lutou pela igualdade de direitos entre homens e mulheres (com ênfase na diferença entre ambos), a segunda reivindicou as diferenças, inclusive, entre os próprios homens e entre as mulheres e a terceira, classificada pela autora como a “virada epistemológica”, que cunhou o conceito de gênero. Pedro (2011) reflete a classificação das reflexões feministas em ondas incluindo dimensões históricas, culturais e sociais que se implicaram no desenvolvimento dos estudos feministas até o cunho do termo “relações de gênero”: O machismo “pode ser definido como um conjunto de crenças, atitudes e condutas que repousam sobre duas idéias básicas: por um lado, a polarização dos sexos, isto é, uma contraposição do masculino e do feminino segundo a qual são não apenas diferentes, mas mutuamente excludentes; por outro, a superioridade do masculino nas áreas que os homens consideram importantes. Assim, o machismo engloba uma série de definições sobre o que significa ser homem e ser mulher, bem como toda uma forma de vida baseada nele” (CASTAÑEDA, 2006, p. 18). 3 37 Nas narrativas do feminismo existe a noção de que essas ideias têm formado várias ondas. Na Primeira Onda (final do século XIX e início do XX), as mulheres reivindicavam direitos políticos, sociais e econômicos; na Segunda Onda (a partir da metade dos anos 1960), elas passaram a exigir direito ao corpo, ao prazer, e lutavam contra o patriarcado. Assim, nos anos 1970, a categoria seria a de “mulher”, pensada como a que identificaria a unidade, a irmandade, e ligada ao feminismo radical. Os anos 1980 seriam aqueles identificados com a emergência da categoria “mulheres”, resultado da crítica das feministas negras e do Terceiro Mundo. O feminismo dos 1990 seria o da categoria “relações de gênero”, resultado da virada linguística e, portanto, ligada ao pós-estruturalismo e, por fim, à própria crítica a essa categoria, encabeçada por Judith Butler. (PEDRO, 2011, p. 271) Perante tal processo histórico-social das produções que buscam iluminar as relações de gênero, vêm-se destacando o surgimento dos estudos das masculinidades desde os anos 90 – os chamados Men`s Studies. Os estudos feministas mobilizaram os estudos de gênero e ambos desvelaram possibilidades de pensar também as masculinidades. Esse processo vem ressaltando cada vez mais a possibilidade de refletir gênero não só em suas polarizações do feminino e masculino, mas na dialética que confere à questão de gênero o seu caráter relacional. As conquistas femininas – a partir do avanço de suas participações nas esferas social, política e econômica – mobilizaram questionamentos quanto aos atributos que diferenciam ou legitimam as performatividades de gênero. Tal processo gerou crises quanto à significação do que é ser masculino. Estas reflexões vêm impulsionando os estudos de gênero e mais recentemente o estudo das masculinidades. No Brasil, a partir dos anos 90, vem se ampliando a inclinação aos estudos sobre masculinidades. A masculinidade por muito tempo, representada por características universais e cristalizadas. Esta apontava principalmente o masculino como dotado do poder, da força, da rigidez e da insensibilidade. Porém, com o avanço dos estudos das masculinidades, passou a ser discutida e diversificada. Quanto ao que seria a masculinidade, os estudos vêm ampliando cada vez mais os estudos de gênero ao apontar o sentido polissêmico do termo masculinidade. Nesse contemporâneo processo de construção epistemológica dos estudos de gênero, a abordagem de caráter analítico questiona o caráter essencialista dos estudos tradicionais e defende perspectivas que priorizem o estudo da construção social das identidades de gênero considerando os contextos sociais e históricos que distinguem as vivências das identidades de gênero. Porém, de acordo com Medrado (2002), o estudo das masculinidades ainda passa por processos de sistematização, visto que ainda estrutura sua discussão teórica, epistemológica, política e ética sobre o assunto. De maneira a produzir uma 38 sistematização dos estudos, Robert (Rayween) Connell, Jeff Hearn e Michael Kimmel publicaram, em 2005, o Handbook of Studies on Men and Masculinities. A obra apresentou o chamado "desenvolvimento do campo de pesquisas sobre masculinidades". De acordo com os autores, o campo é fundamentado através de produções com objetos diferenciados: 1. a organização social das masculinidades; 2. a compreensão da maneira como os homens pensam e expressam "identidades de gênero"; 3. as masculinidades como produtos de interações sociais entre os próprios homens e entre eles e as mulheres, a partir de uma dimensão relacional de gênero; 4. o modo como as masculinidades se constroem nas relações. Foi exposta tal leitura histórica e apresentou-se tal construção epistemológica dos estudos das masculinidades para ressaltar o processo histórico-social que mobilizou as discussões de gênero a partir da perspectiva feminista e que, de maneira dialética, ressaltou as reflexões do masculino e contribuiu com a reflexão das relações de gênero. Contemporaneamente é possível discutir sobre as masculinidades pensando-as, sob a contribuição de Connell (1995), como a construção social das performances masculinas nas relações de gênero. Tal orientação permite utilizar nessa proposta de pesquisa o termo “sujeitos masculinos” para se referir a homens e identidades masculinas ao passo que os sujeitos masculinos se assentam em identidades que, para se caracterizarem masculinas, independem da dotação de um pênis. 1.5. Masculinidade (s) – múltiplas identidades masculinas na contemporaneidade O estudo das masculinidades propôs-se a evidenciar as identidades masculinas, suas maneiras de significar e agir nas relações e reivindicar compreensões mais analíticas e menos generalistas quanto às representações do masculino nas relações de gênero. Esses estudos têm revelado que os sujeitos masculinos podem ser mais do que o código de poder do machismo e podem se representar como vivências diversas e (por que não?) contraditórias. Heilborn (1994) argumenta que os estudos de gênero avançaram e apresentaram o termo: “Masculinidades”, ou seja, distintos e co-conviventes identidades masculinas. Tal conclusão revela que as Masculinidades se constituem em aspectos históricos, culturais e sociais que realizam arranjos relacionais que distinguem as vivências masculinas e abrem possibilidades para a diversificação do que se considera masculino. 39 Concebendo-se as masculinidades como processos de construção social das identidades masculinas, é possível compreender que a identidade masculina não é algo fixo e cristalizado. Desta feita, o argumento hegemônico para se descrever os sujeitos masculinos se faz incompleto se, por si só, procura caracterizar o que é ser masculino. A masculinidade “não é algo que se adquire para sempre, ela tem que ser conquistada e re-conquistada” (CARMO, 2010, p.7). Dotar-se de um pênis não é o atestado da identidade masculina, o masculino é construído e permanece em processo de legitimação sempre. Por tal motivo, os meninos, rapazes e senhores necessitam sustentar suas identidades a cada ato, a cada escolha e para isso se exige deles que atendam e cumpram a expectativas e papeis pré-determinadas para então serem considerados como identidades masculinas. Além disso, a identidade masculina é uma atribuição psicossocial que a pessoa faz a si, desta feita, pessoas de ambos os sexos têm o direito de considerarem-se como identidades masculinas independentemente de serem dotadas do órgão genital atribuído biologicamente (e tradicionalmente) ao sexo e consequentemente de maneira generalizante, ao gênero. Contudo, com o avanço das conquistas femininas e das distinções entre as vivências masculinas, a assunção de identidades masculinas hegemônicas torna-se um alto custo aos homens. Como as performatividades masculinas foram elaboradas a partir de uma construção social, histórica e cultural, elas podem se cristalizar com o passar dos anos e se defrontarem com novos acontecimentos que exigem das sociedades e dos sujeitos, novas relações. Assim, sustentar um conceito de masculinidade tradicional e hegemônica em tempos de feminismo e capitalismo trata-se de uma tarefa árdua, dolorosa e incessante. Desta feita, propus a partir deste projeto lançar outros olhares sobre os homens, que vêm sendo discutidos pelos atuais estudos de gênero e por estudos de seu próprio objeto. Busca-se unir tais estudos objetivando uma abordagem mais analítica e relacional da questão. Carmo (2010), se referindo às ideias de Badinter (1993), contribui explanando que o feminismo não se trata do único desencadeador da famigerada “crise da masculinidade”. Esta “crise” vem se desenvolvendo nos anos 80 e se delineia a partir de dois fatores: o feminismo (e o questionamento feminino por direitos iguais) e o capitalismo (e seus mecanismos exclusórios da economia de mercado). O movimento feminista empoderou as mulheres pela luta por seus direitos e questionou a hegemonia masculina, já o capitalismo e suas consequências de produção como o desemprego (causado principalmente pelo exército de reserva e pela distribuição deficitária de 40 renda) assolam os sujeitos masculinos por subtraírem deles um dos recursos centrais da construção de suas masculinidades, o trabalho. Como ser agora o detentor da palavra de ordem? Como ser agora o provedor? Além dos fatores mencionados, reflete-se também a questão da sexualidade como outro recurso central na construção da masculinidade e na manutenção das relações de gênero. Dentre as possibilidades de conceituar a sexualidade, Louro (2001) afirma que a sexualidade é uma inscrição cultural e plural, não se trata de algo natural, a sexualidade é o que confere historicidade e sentido ao corpo visto que atribui identidades a ele. Desta feita, os corpos recebem sentidos socialmente. A própria construção das identidades de gênero é cultural e histórica, visto que se dá em um contexto e em uma cultura, sendo representação desta. A sexualidade é uma das dimensões que orienta a construção das relações de gênero, e assim também a constituição das identidades de gênero. A sexualidade é significada nas relações pelas experiências num dado contexto social e histórico. As experiências masculinas e as femininas constituem-se como identidades que dão sentido ao prazer e configuram as regras e processos da vivência da sexualidade. Assim, os sentimentos, valores e normas acordados na sexualidade orientam e são orientados pelas relações de gênero. De acordo com Carmo (2010) a sexualidade trata-se de “uma elaboração social”, uma elaboração que inclui os campos de poder e que revela o contexto sócio-político de seu tempo. A cristalização dos papéis de gênero submete sujeitos masculinos e femininos a papeis que não os caracterizam em seus contextos histórico-sociais, tornam-se meras reproduções hegemônicas e com sentidos antagônicos. Refletindo a construção social das performatividade de gênero é possível pensar em vivências masculinas e femininas mais libertárias e dialéticas em suas possibilidades e não apenas em suas limitações. Os papéis de macho e fêmea tornam-se fardos dolorosos e insustentáveis ao passo que se tornam prejudiciais a uma vivência satisfatória de gênero, tanto para sujeitos masculinos quanto para femininos. Para ilustrar tal situação, explana-se a masculinidade hegemônica. As novas socializações têm se construído por encadeamentos de uma globalização política, econômica e cultural, tais processos suscitam mudanças nos papeis de gênero e na cultura, visto que exigem das identidades de gênero, novas formas de se relacionar. Porém, nem todas as performatividades se implicam nestas mudanças. A rapidez e a multiplicação intensa da construção de sentidos de identidade de gênero 41 envolvem os sujeitos masculinos e femininos em processos de constantes reflexões de seus pensamentos, atitudes e seus desejos, porém nem todas as identidades de gênero se identificam com isso e se dispõem a viver a velocidade e características desse processo. As mudanças nas vivências da identidade de gênero são significadas de maneira negativas, inferiorizadas ou não são significadas por homens que idealizam determinada vivência de masculinidade e posicionam-se a favor do conceito tradicional e hegemônica do que é “ser homem”. Esse caráter rígido de significar a vivência da masculinidade constrói um perfil de masculinidade com lógicas relacionais baseadas na heterossexualidade, comportamentos de evitação a traços que se assemelhem ao feminino ou a homoafetividade e interpretações excludentes daqueles sujeitos que performam masculinidades que não se enquadram na masculinidade hegemônica cunhada por Connell (1987). Ressalta-se que é preciso compreender as significações que mobilizam o sujeito a sustentar essas performances hegemônica, visto que na contemporaneidade essas vivências de masculinidade continuamente experimentam embates com as novas sociabilidades e com os novos contratos afetivos. As mulheres mudaram, o mundo mudou, as vivências de sexualidade mudaram e os homens também, assim, as identidades masculinas hegemônicas sofrem um alto preço para sustentar tal vivência. Em vista disso, advoga-se que é necessário buscar compreender o que há mais por detrás dos processos masculinos que buscam custosamente sustentar a hegemonia de suas identidades, pois acreditar que eles meramente lutam por um status de “macho imponente” trata-se de uma opção paradigmática rasteira, sendo que os processos que envolvem a masculinidade hegemônica tem se demonstrado como sérios desafios ao pensamento contemporâneo no que tange à proposição de políticas públicas (Saúde do Homem e Enfrentamento da violência contra a mulher) e produção de gênero (nas mais diversas áreas). Além da masculinidade hegemônica, mencionam-se outras vivências do masculino. Bento (2013) discute a construção da masculinidade e explana sobre como os estudos dos homens vêm se preocupando em delinear os processos sociais de construção da masculinidade relacionando tais processos a contextos sociais específicos. Ao se referir aos entrevistados por sua pesquisa, a autora os define como 42 “Masculinidades Críticas” 4 , caracterizando-os como homens que apresentam uma reflexividade na construção de suas masculinidades. De maneira não generalizante, a autora define a masculinidade crítica na tentativa de agregar a multiplicidade às conceituações de masculinidade. Welzer-Lang (2001) afirma que o contexto social dos homens se transformou e que algumas masculinidades classificadas como “progressistas ou igualitaristas” assumem a necessidade de mudanças nas relações de gênero e por isso, reformam suas identidades masculinas de maneira a alcançar relações mais satisfatórias e libertadoras para ambas as partes. Assim, esses sujeitos masculinos: [...] se encarregam totalmente ou em parte do trabalho doméstico, particularmente quando eles vivem sozinhos. Aqueles que lutam com as mulheres pela paridade na política, aqueles que confrontados ao duplo standart assimétrico do limpo e do sujo ou do amor tentam negociar, a qualquer preço, um entendimento igualitário com as mulheres. Há também aqueles que foram criados na mixidade e se confrontaram muito cedo com a necessidade de encontrar uma forma comum com suas amigas mulheres, algumas centenas de homens pró-feministas... (WELZER-LANG, 2001, p. 469) O autor afirma que a caracterização “pró-feminista” foi eleita pelos homens e mulheres que participavam do colóquio do GREMF no Québec em 1996. O evento tinha o objetivo de agrupar homens anti-sexistas e masculinistas e propunha a solidariedade dos homens com as análises feministas, destacando que era de exclusividade delas a classificação “feminista”. Os sujeitos pró-feministas, que também receberem influências do pró-feminismo europeu, problematizam a opressão das mulheres e a alienação dos homens. Explanou-se sobre diferentes performatividades masculinas no intuito de lançar perspectivas mais analíticas e ao mesmo tempo mais abrangentes sobre o que se trata ser a vivência masculina e o reflexo disso nas relações de gênero. “É necessário repensar e reinventar as concepções vigentes de masculinidade e das relações de gênero… Não há o que legitime o que é ser masculino, há uma identidade masculina construída” (NOLASCO,1995, p. 28). As mudanças sociais, históricas e culturais que vêm se refletindo na construção das identidades masculinas são processos dialéticos à construção das identidades 4“Crítica no sentido de que há uma reflexividade tanto no modelo inculcado na socialização primária, identificado como tradicional e hierárquico, como uma negação e até uma repulsa, por parte dos entrevistados, dos homens que atualmente performatizam esse modelo”, Bento (2013, p.88). 43 femininas. Assim, realizar estudos das masculinidades sob abordagens apenas de dimensões do “mundo” masculino, trata-se de uma estratégia superficial e limitada frente às possibilidades de refletir as masculinidades em co-construção com as feminilidades em um determinado tempo histórico e em uma dada sociedade. Deste modo, nesta pesquisa propus estudar os sentidos de ética nas relações sob a perspectiva dos homens, pois se acredita que as relações não se limitam às performatividades de gênero (masculinas ou femininas), e sim se estendem à dança das negociações de sentidos que envolvem todas as demais relações significativas na história de vida do sujeito como: relações auto-reflexivas, de paternidade e filiação, familiares, de trabalho, de amizade, com o sobrenatural, com a sociedade em geral e sua cultura. As transformações nas performatividades de gênero perpassam “pela construção de um projeto no qual estará sendo repensado o próprio modelo de funcionamento político e social em que estão inseridos homens e mulheres” (NOLASCO,1995, p.181). 1.6. Gênero, Masculinidades e Ética nas relações – janelas para pensar a violência e as relações de gênero da contemporaneidade Nessa pesquisa foram analisadas as relações que os sujeitos masculinos apontaram como significativas para eles como as relações familiares, conjugais, de amizade, paternidade, de trabalho, dentre outras. Por questões metodológicas de exposição da discussão ética nesse projeto, toma-se neste momento a relação conjugal como cunho de análise para refletir sobre possibilidades de relacionar gêneromasculinidade-ética nas relações. As relações de gêneros se baseiam na construção dialética das identidades de gênero masculinas e femininas. Praun (2001) contribui afirmando que o conceito de gênero implica um conceito de relação, uma vez que o universo dos sujeitos femininos está inserido no universo dos homens e vice-versa. Dessa forma, o gênero acontece apenas nas relações. O que o feminismo reivindica e o que o machismo resiste apontam para uma desconstrução dos significados de relações baseados em sentidos de gênero cristalizados. As reproduções de tais sentidos cristalizados engessam as possibilidades de ser do feminino e do masculino. E os estudos de gênero que se utilizam de generalizações para descrever as identidades impedem a atualização e a discussão contemporânea sobre as relações e os fenômenos de gênero. 44 O argumento de que o machismo é a causa central da violência de gênero não está dando conta de compreender a complexidade das relações de gênero e os contemporâneos processos sociais, históricos e culturais implicados nas relações. O mundo mudou, as relações mudaram, mas os argumentos resistem em mudar e abrir frestas para análises que podem mostrar os jogos bem mais complexos, multifatoriais e abstratos que a violência de gênero pode articular. Desta feita, se analisarmos a dialética da construção social das identidades masculinas e femininas, podemos refletir que a violência conjugal, por exemplo, baseiase em relações desiguais, mas também se perpetra por complexas articulações afetivas feitas entre as pessoas que de alguma forma, não reúnem e articulam recursos suficientes para desenvolver a dimensão ético-relacional que favoreceria a convivência ou pelo menos a negociação (as discussões de relacionamento). O machismo e o levante do feminismo foram construídos na história, sociedade e cultura, desta feita, uma discussão ética necessita ser priorizada para refletirem-se as sociedades que as pessoas desejam viver. As discussões éticas dos relacionamentos amorosos, por exemplo, são fenômenos mais recentes incluídos nas relações de gênero por homens e mulheres contemporâneos que não querem viver majoritariamente entre tapas e beijos. Os casais podem viver na modernidade um conceito de relacionamento que não é aquele de implicações estritamente judaico-cristãs, pode ser para, além disso, o que Giddens denominou de “relacionamento puro”, onde a pessoa: Entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem. (GIDDENS, 1993, p. 68-69). Muitos deles priorizam aquela que chega a ser ridicularizada e rejeitada por outros casais, a “DR” – discussão de relacionamento. No “relacionamento puro” há uma democratização da vida pessoal, onde a relação se desenvolve pela cooperação e pela responsabilidade mútua. Os componentes do casal são ativos e tem a liberdade de transformar seus comportamentos e realizar mudanças no âmbito social. As relações de poder que cristalizam e generalizam as vivências de gênero não são as únicas causas de dificuldades das políticas em intervir nas problemáticas de gênero. Na contemporaneidade há outros fenômenos expressados pelas relações que são produzidos pelas atuais configurações das sociedades. Mencionam-se dois fenômenos. 45 O primeiro é o fato de que as pessoas hoje se utilizam cada vez mais da justiça para se resguardarem e se apoiam em seus direitos para punir o parceiro pelos mecanismos legais (exemplo: justiça que coibi a violência contra a mulher). O segundo é o discurso igualitário que deixa margem para a generalização e cristalização dos papéis de gênero e que extingue a possibilidade de discutir vivências de identidade de gênero possíveis e desta feita, complexas. Ilustram-se tais fenômenos nos seguintes casos. 1º caso: O casal vive uma conjugalidade violenta e ambos só conseguem chegar a uma solução para seus problemas de casal na delegacia quando o delegado pune o marido e libera a esposa para voltar a sua casa. Muitos casais hoje têm o mecanismo legal como único recurso para sanar seus problemas de relacionamento, porém este recurso tem um custo de liberdade para um e a solidão para o outro. Os delegados já até caracterizam as mulheres que desejam tirar a queixa de seus maridos para resgatarem a liberdade dele como “mulher de bandido” ou “mulher que gosta de apanhar”. Neste caso, um casal que não formula recursos simbólicos suficientes por ausência de discussões éticas nas relações do cotidiano, só encontra na justiça a única alternativa para a “solução” de suas brigas. O problema é que a justiça hoje tem o papel imediato de punir e o que seria uma solução para o casal, vira outro problema maior. Eles querem deixar de brigar sem apenas se separarem, mas como concederam à justiça a responsabilidade de resolver o problema por eles, acabam ficando com o prejuízo. A justiça chama para si hoje o dever de resolver os problemas e escassamente investe em estratégias para incentivar a discussão ética das relações em todas as suas possibilidades no próprio âmbito do lar, e isso não deveria ser um papel só da justiça, mas de um projeto de sociedade proposto por todas as políticas públicas em articulação no país. 2º caso: as campanhas afirmam que o homem não pode bater na mulher por ela ser “frágil” (argumento das campanhas de conscientização da lei Maria da Penha que por vezes usam rosas ou objetos delicados para representar uma mulher), quando na verdade, o que necessita ser refletido é o que sustenta uma relação de violência no casal. O homem não pode bater na mulher não só porque ela é frágil, mas porque ambos têm direitos humanos iguais. A própria campanha já representa a mulher como algo inferior, o que não é verdade. Precisa-se questionar também o porquê de necessariamente a mulher ser só o lado frágil (sendo ela bem mais que essa generalizante representação), quando em determinados casos, a mulher é quem consegue trabalhar bastante o dia inteiro para sustentar a família e apanhou por motivos de ciúme do marido que se sente 46 impotente em casa por seu desemprego e por sua escassa participação na providência alimentícia dos filhos. O machismo como relação de poder hegemônica é a explicação central deste caso quando não se atenta para as atuais configurações familiares e para o sistema de produção capitalista que orienta a economia do país e suas estatísticas de desigualdade de renda. Tal sistema de produção influi no desemprego e no déficit do desenvolvimento educacional dos cidadãos. Nas escolas, os cidadãos aprendem matérias que não os servem e não chegam a discutir assuntos como a ética por ser filosófico demais para um aluno no ensino médio. É mais proveitoso ao sistema educacional (orientado pelo capitalismo) que os estudantes estudem para um vestibular, desta feita, não necessitem atentar para as relações que vivem ou que viverão em sociedade, as relações não são priorizadas, o mercado e a economia sim. Por estes arranjos de fatores, a justiça por vezes não dá conta de entender o porquê de muitas mulheres não conseguirem desapegar-se do afeto e da cumplicidade com o agressor, por exemplo. Ao invés de apenas fecharem-se portas, haja a necessidade de abrirem-se janelas para entender a violência de gênero e suas nuances. Além disso, o extremismo das discussões de gênero pode não favorecer a desconstrução dialógica da masculinidade hegemônica e do feminismo radical. As mulheres podem querer viver suas feminilidades pela emancipação sexual e financeira sozinhas, ou mesmo com um parceiro. Aquelas emancipadas com parceiro podem não deixar de ser emancipadas por que tem um relacionamento. Os casais podem viver reflexões éticas suficientes para negociarem seus projetos a dois a partir de seus contratos individuais para o relacionamento e para seus objetivos próprios. Mediante a necessidade de tais reflexões, neste projeto abordei os sentidos de ética nas relações de gênero construídas por sujeitos masculinos que trabalham em uma construtora. Tal iniciativa pautou-se em aspectos sociais, históricos e econômicos. Sociais por analisar o contexto social brasileiro que constitui a massa da construção civil por pedreiros, auxiliares de pedreiros e mestre de obras com escolaridades, renda e outros aspectos em comum. Históricos por considerar as transformações históricas ocorridas no país que ocasionaram o desenvolvimento do setor da construção civil nas últimas décadas. E econômico por se basear nas estatísticas de desenvolvimento do país a partir da expansão urbana via construção civil. Elegi o cenário de um canteiro de obras devido o objetivo da pesquisa ter se focado em participantes de identidades masculinas. O canteiro de obras se caracteriza 47 como um espaço predominantemente masculino, apesar do avanço da participação feminina neste âmbito do mercado. 48 METODOLOGIA 2.1. Tipo de pesquisa A pesquisa em Psicologia, orientada em seu papel social, desenvolve-se de tal modo que teoria, métodos e técnicas devem estar em comum acordo com os fenômenos psicossociais, priorizando a subjetividade. Isso fortalece a construção do conhecimento de modo ético e coerente com as demandas da sociedade e com as perspectivas críticas da área. A psicologia como promotora da cidadania e dos direitos humanos deve fazerse pela pesquisa como uma voz da denúncia das demandas do social, bem como, defensora das dimensões do processo coletivo. Seu papel social é o de levantar proposições para a reflexão das políticas públicas e do projeto de sociedade brasileiro. Para tal, a psicologia vem articulando-se com diversas áreas e abordagens do conhecimento para lançar alguns diferentes olhares a problemas frequentemente refletidos pelos mesmos argumentos. Nesse projeto propus refletir dimensões que constituem as subjetividades nas relações como a história, a cultura e o social. Tal abordagem suscitou a necessidade de abrir possibilidades de articulação de conhecimentos com epistemologias e métodos distintos e complementares, preocupados com demandas semelhantes, mas com abordagens diferentes. Menciona-se que se utilizou de contribuições da antropologia, sociologia, filosofia e história para buscar compreender processos sociais imbricados nas relações 49 de gênero e no desenvolvimento ético destas relações. Isso exige que a própria psicologia reinvente sua epistemologia e seus métodos com contribuições das demais ciências. Tal iniciativa pode revelar à construção do conhecimento novas possibilidades de compreender os processos psicossociais e as principais demandas coletivas, que também são subjetivas, marcadas num tempo e num contexto. O resgate do individual e da dimensão construtiva do conhecimento adquire significação essencial no caso da psicologia. O desenvolvimento de uma epistemologia para os processos envolvidos na construção teórica das formas mais complexas que hoje se integram à representação do objeto da psicologia, entre elas a subjetividade, exige identificar e satisfazer as necessidades epistemológicas subjacentes a essa construção, o que implica uma referência epistemológica no desenvolvimento de alternativas metodológicas que, de forma integral, respondam a uma maneira diferente de fazer ciência. (GONZALEZ REY, 2011, p.26). Dentro dessa perspectiva, a qualidade científica pode não se restringir ao tipo de amostra ou da natureza dos dados, mas na maneira como a mesma se articula de maneira coerente nos aspectos teóricos e metodológicos, adaptando as técnicas e amostragens de pesquisa ao objeto e objetivos propostos. A pesquisa deve atender ao social, não somente compactá-lo em dados por técnicas e métodos, é um fazer implicado. A pesquisa deve dizer sobre o social e não meramente generalizá-lo. Desta feita, pensei em orientar esse estudo pela pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa não corresponde a uma definição instrumental, é epistemológica e teórica, e apoia-se em processos diferentes de construção do conhecimento, voltados para o estudo de um objeto da pesquisa quantitativa tradicional em psicologia. A pesquisa qualitativa se debruça sobre o conhecimento de um objeto complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que se expressa o sujeito concreto. A história e o contexto que caracterizam o desenvolvimento do sujeito marcam sua singularidade, que é a expressão da riqueza e plasticidade do fenômeno subjetivo. (GONZALEZ REY, 2011, p.50-51). Considerando a história e o contexto, une-se à orientação da pesquisa qualitativa, a abordagem sócio-histórica do desenvolvimento humano que compreende tal processo como dinâmico e multifacetado. Propus uma pesquisa que considerou a dialética e a história das relações sociais e que atribuiu aos processos de subjetivação pelas significações a reflexão necessária. Considera-se então que a pesquisa não se caracterizou como uma coleta de dados, e sim como uma construção de dados, visto que os dados são um retrato provisório da vivência das pessoas (ROSA, 2002). A articulação entre a psicologia sócio-histórica e a pesquisa qualitativa pode possibilitar um tratamento de dados que mais se aproxime da dimensão psicossocial do 50 participante. A perspectiva qualitativa pode ser utilizada como uma via de acesso à maneira como se processa mentalidades singulares e sociais. Segundo Fernando Luiz Gonzales Rey apud Silva (2004), o estudo de ocorrências singulares é uma possibilidade importante para a construção teórica de processos sociais, visto que em cada sujeito, a construção social da mente se faz de maneira única na processualidade de si, e essa é contínua através das ações dos sujeitos que são concretos e constituem-se em diferentes espaços também concretos. Na pesquisa qualitativa, as problematizações não são apenas questões que serão verificadas como verdadeiras ou não na construção dos resultados. São questões que emergem e que podem ir se transformando no decorrer da pesquisa, isso porque nesse tipo de pesquisa se está em constantemente processo de transformação e elaboração. Neste processo de mudança/transformações estão inclusos o pesquisador, os sujeitos pesquisados e o objeto de estudo escolhido. Paralelamente à eleição do objeto, é imprescindível compreender que o objeto da pesquisa social é histórico e de natureza qualitativa. É importante também sempre contextualizá-lo, visto que possui subjetividade e não está fora do contexto do pesquisador (SEVERINO, 2002). Quanto à modalidade de pesquisa, essa se enquadrou na modalidade de pesquisa de cunho exploratório. Tal modalidade se trata de uma investigação de caráter empírico que objetiva desenvolver o conhecimento sobre um determinado fenômeno para fomentar discussões importantes sobre questões que envolvam o fenômeno. De acordo com Marconi e Lakatos (2003, p.188), “as pesquisas exploratórias são compreendidas como investigações de pesquisa empírica cujo objetivo é a formulação de questões ou de um problema, com tripla finalidade: desenvolver hipóteses, aumentar a familiaridade do pesquisador com um ambiente, fato ou fenômeno para a realização de uma pesquisa futura mais precisa ou modificar e clarificar conceitos”. Considera-se que outros olhares sejam necessários ser lançados sobre a questão de gênero, principalmente no que se concerne à ética nas relações, desta feita, propus nesta pesquisa, abordar a construção ética nas relações de gênero de forma a tentar desvelar nuances até então não incluídas nas discussões de gênero que abordam, por exemplo, a conjugalidade e as masculinidades. 51 2.2. Contexto da pesquisa O estado do Amazonas passa por um desenvolvimento urbano acelerado desde a instalação do Polo Industrial de Manaus, a Zona Franca de Manaus. A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi criada pela Lei Nº 3.173 de 06 de junho de 1957, como Porto Livre. A ZFM - A zona franca de Manaus é considerada empreendimento coordenado com o Plano de Valorização Econômica da Amazônia com o objetivo de desenvolver o norte do país através da instalação de um polo industrial com incentivos fiscais direcionados a grandes indústrias nacionais e internacionais que possuíssem o interesse de instalarem suas produções em uma zona franca, usufruindo de isenções fiscais e outros incentivos. Dez anos depois, o Governo Federal, por meio do Decreto-Lei Nº 288, de 28 de fevereiro de 1967, ampliou essa legislação e reformulou o modelo, estabelecendo incentivos fiscais por 30 anos para implantação de um polo industrial, comercial e agropecuário na Amazônia. Foi instituído, assim, o atual modelo de desenvolvimento, que engloba uma área física de 10 mil km², tendo como centro a cidade de Manaus, e está assentado em Incentivos Fiscais e Extrafiscais, instituídos com objetivo de reduzir desvantagens locacionais e propiciar condições de alavancagem do processo de desenvolvimento da área incentivada (SUFRAMA, 2014). A partir de tal processo urbano, o desenvolvimento da cidade de Manaus foi o maior da região Norte. Manaus é hoje o 12º maior centro urbano do país (estimativa IBGE, 2005). A cidade vem se desenvolvendo aceleradamente. A taxa de crescimento da cidade tem sido maior que a taxa nacional. A cidade recebeu nos últimos 20 anos inúmeros migrantes de outros estados e a zona urbana da cidade passa por um “inchaço populacional”. Tal processo tem abarrotado a cidade que cada vez mais amplia suas zonas periféricas através de uma ocupação desordenada, acelerada e agressiva (NOGUEIRA, SANSON, PESSOA, 2007). Este processo histórico trouxe a Manaus um aparato de indústrias e mobilizou o mercado com empregabilidade e circulação financeira. Não se busca discutir a efetividade deste “desenvolvimento” trazido por essa estratégia governamental, apenas se menciona tal processo histórico e econômico para contextualizar as implicações do desenvolvimento econômico e, consequentemente urbano da cidade de Manaus. Inicialmente, a infraestrutura da cidade necessitou ser modificada para receber as indústrias e estas passaram a empregar manauaras e demais habitantes do interior em funções fabris de operações. A circulação financeira em Manaus atraiu migrantes de 52 outras regiões do país trazidas pelo distrito para trabalharem em funções de gestão das empresas, bem como, pessoas do interior do Amazonas e demais estados do norte para as funções de operadores do distrito industrial. Tal processo favoreceu o aceleramento da urbanização da cidade e intensa ampliação demográfica na cidade de Manaus. Com o acelerado aumento demográfico e econômico, a cidade passou a potencializar o ramo da construção civil e o mercado ampliou-se principalmente para as funções de pedreiros, mestre de obras, profissionais de engenharias, arquitetura, etc. O desenvolvimento econômico favoreceu o emprego de profissionais de baixa escolaridade que possuíssem experiência com construção. A formação profissional de pedreiros e mestre de obras se faz recente em Manaus através de cursos profissionalizantes. Em sua maioria, durante muitos anos, tais profissionais aprendiam o ofício de pedreiro e mestre de obras de forma transgeracional ou por “bicos” para obter dinheiro na adolescência. Além disso, os incentivos provenientes de políticas habitacionais vêm desenvolvendo o setor da construção civil, principalmente depois do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC em janeiro de 2007. O PAC se trata de um conjunto de políticas econômicas com o objetivo de acelerar o crescimento econômico do país. Tais incentivos destacaram o programa Minha Casa Minha Vida, cujo objetivo era dar moradia para as famílias, renda aos trabalhadores e desenvolvimento para o Brasil (SANTOS E DUARTE, 2010). Tais políticas de desenvolvimento e urbanização alavancaram a economia e o mercado de trabalho em Manaus/Amazonas. A construção civil avançou e empregou jovens e veteranos pedreiros que constituíram a massa da construção civil na cidade. Segundo o relatório “Juventude e Trabalho Inserção Produtiva dos Jovens no Mercado de Trabalho de Manaus” publicado pela Secretaria Municipal do Trabalho e Desenvolvimento Social – Prefeitura de Manaus (2014), dentre as demais áreas que se desenvolveram em Manaus, a Construção civil, que respondia por pouco mais de 2 mil empregos jovens em 2000, e que representava 2,7% do total de empregos jovens, cresceu em números absolutos e de participação, alcançando 7.386 empregos e 4,4% dos postos de trabalho ocupados por trabalhadores jovens. Em Manaus, dentre as obras existentes na cidade, elegi como campo de pesquisa a obra localizada na Rua do Bombeamento, nº 385, Bairro da Compensa. A construção possuía engenheiros, mestres de obras, serventes, eletricistas e demais trabalhadores 53 pertencentes à construção civil. Nessa construção, foi possível ter contatos com um significativo número de trabalhadores. A obra possuiu 80 trabalhadores entre mestres de obra, eletricistas e serventes, oferecendo acesso a subjetividades diversificadas. Desta feita, houve a possibilidade de se abarcar faixas etárias e vivências diversas de forma a contribuir com o que busca os objetivos metodológicos da pesquisa. A obra construiu um empreendimento de quatro torres com apartamentos de 69 a 82 m². O empreendimento dispõe de um espaço físico dividido em quatro ambientes: escritório, refeitório, área de convivência e espaço de construção. A construtora forneceu autorização formal à pesquisadora para utilização de seu espaço bem como apresentou ciência do cunho da pesquisa. 2.3. Os participantes O pedreiro é um profissional do âmbito da construção civil que realiza a construção de fundações, paredes e acabamentos. Para tal, o pedreiro deve dominar o conhecimento sobre a utilização de matéria-prima, de equipamentos e uma série de ferramentas e técnicas de construção. No Brasil, segundo estudo realizado pelo DIEESE (2001), a construção civil é um setor que apresenta certas particularidades dentro do universo produtivo da economia brasileira, desempenhando um papel fundamental no seu desenvolvimento. Os dados do IBGE, relativos aos anos de 1998/99, demonstram que o setor responde, sozinho, por 10,3% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e por 6,6% das ocupações no mercado de trabalho, sem contar os efeitos positivos da atividade na geração de empregos ao longo de toda sua cadeia produtiva. Duarte (2002) em seu relato de pesquisa no mundo da construção civil revela: Analisar aspectos da economia informal significa compreender o ‘mundo do trabalho’, onde estão inseridos a maioria dos jovens e adultos pertencentes às classes sociais subordinadas de nossa sociedade. Significa compreender uma ‘cotidianidade’ permeada, muitas vezes, por relações de exploração e de submissão. Segundo meus entrevistados, a maioria deles iniciou seus trabalhos nos canteiros de obra ainda muito cedo, em torno dos dez anos, encaminhados geralmente pelo pai ou algum parente próximo. Construir a própria casa ou acompanhar alguém de mais idade para ajudar no serviço, havia sido a ‘escola’ que todos frequentaram. (DUARTE,2002, p.199) 54 Os trabalhadores da construção civil são a base da urbanização brasileira, e esta emprega um grande contingente dos trabalhadores mais pobres. A construção civil é composta, quase que totalmente, por trabalhadores do sexo masculino, com média de idade superior a dos demais setores da economia, Duarte (2002). Além disso, há uma baixa taxa de escolarização entre os trabalhadores desse ramo e ela emprega, também, uma grande quantidade de migrantes e jovens que estão aprendendo um ofício. 55 Quanto à construção social da masculinidade, os homens que trabalham em obras convivem com riscos e procedimentos cotidianos que os expõem a necessidades de sentirem-se mais resistentes do que realmente são (masculinidade hegemônica). Muitos são envolvidos com o consumo de álcool, bem como, na violência urbana, o que envolve também a violência domiciliar (incluindo a violência contra a mulher e filhos). Por outro lado, hoje há o desenvolvimento dos relatos de homens sobre o envolvimento deles em processos como pais que criam seus filhos sozinhos, que aprenderam atividades consideradas “femininas”. Apesar de muitos disfarçarem ou negarem as novas dimensões de suas vivências masculinas, outros reivindicam o reconhecimento de novas masculinidades e o fim da representação hegemônica do que é ser masculino e do que é ser feminino. Ser pedreiro ou trabalhar com reparos, trata-se da profissão mais acessível ao público dos sujeitos masculinos de baixa renda e baixa escolaridade que querem obter recursos financeiros para se sustentar e sustentar sua família. Vincula-se tal processo à deficitária distribuição de renda no país, à baixa qualidade na educação pública, ao escasso acesso dos serviços assistenciais ao público masculino e demais dificuldades das políticas públicas que ainda são desafios dos governos federal, estadual e municipal quanto a implicações de gênero na construção e proposição destas. Em trabalhos realizados com homens autores de violência em Manaus, compartilho alguns dados. Mediante a necessidade de cumprimento das prerrogativas da Lei Maria da Penha (Lei 11.340) que prevê a criação de programas de atendimentos a homens ou mulheres lésbicas autores de violência conjugal contra a mulher, a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em parceria com a Secretaria de Estado de Justiça (SEJUS), executou em 2012 uma estratégia de intervenção psicossocial a partir do projeto “Educação e Atenção Psicossocial a Homens Autores de Violência Conjugal”. O projeto era voltado a atendimentos a grupos de homens autores de violência conjugal contra a mulher, que foram denunciados e cumpriam processos judiciais. O projeto implementou-se por meio de intervenções junto ao Serviço de Educação e Responsabilização do Agressor (SARE), desenvolvido pelo Departamento de Direitos Humanos da Secretaria de Estado Justiça, Direitos Humanos do Amazonas – SEJUS. Entre os 5 participantes, 4 trabalhavam em serviços informais como pedreiros. Não se trata de uma estatística fatalista, trata-se de um dado que despertou a atenção da equipe de trabalho. 56 Silva (2014) desenvolveu uma pesquisa com homens usuários de serviços de saúde e entrevistou homens que traziam em seus discursos dificuldades em relação aos cuidados de si. Dos 6 usuários, 4 trabalhavam em funções relacionadas à construção civil. Nessa pesquisa que investigou sentidos de saúde e modos de cuidar de si de homens usuários de UBS, uma das conclusões do projeto foi que a maioria dos homens entrevistados se queixavam de problemas de saúde e eram homens de profissões relacionadas com construção e reparos. Os jornais também noticiam diariamente ocorrências de adolescentes que cometem ato infracional, homens acusados de violência contra a mulher e, principalmente, vítimas de homicídios urbanos são em sua maioria identidades masculinas, classificados nas profissões de ajudante de obra, pedreiro e ocupações a fins. Tais dados não objetivam associar uma profissão à vivência de vulnerabilidades pelo gênero masculino, mas sim destacar a relação que aspectos econômicos e sociais como renda, escolaridade e ocupação, são fatores que caracterizam os processos de vulnerabilização a qual as identidades masculinas estão suscetíveis em função da cristalização e generalização das vivências de gênero. Além dos aspectos de gênero, destaca-se também o papel do capitalismo no processo de precarização do trabalho na construção civil, tal qual como ocorre nos canaviais. Nesses novos tempos, ao refletir sobre a sociedade capitalista na contemporaneidade, E. Dias (2006) diz que: ‘hoje, passado o susto e eliminada a aparentemente a tendência antagonista internacional, ela pode revelar sua face real: para os subalternos, a possibilidade de acesso, real e efetivo, no mundo da política e do bem estar social é quase nula, reduzindoos, abertamente, à pura sobrevivência’ (p. 43). E, é nessa condição de luta pela sobrevivência que ainda está submerso um número expressivo de trabalhadores da construção civil, mesmo que isto exija pôr-se em risco permanente, de sofrer acidentes fatais ou incapacitantes ou mesmo desenvolver agravos que afetem a sua saúde. Por fim, nos marcos do capitalismo contemporâneo, continua a ocorrer um desperdício da vida como apontava Karl Marx ao analisar os primórdios do capitalismo moderno e, consequentemente, da saúde do trabalhador. (SILVA; MENEZES, 2013). Escolhi o público da construção civil como participantes para esse trabalho, pois o campo da construção civil trata-se de uma área de ocupações que são majoritariamente apontadas como profissões de sujeitos masculinos que são protagonistas de estatísticas brasileiras negativas. A pesquisa foi aplicada na construção civil devido essa ser composta amplamente por trabalhadores com identidades masculinas, por ser evidenciada pelo processo capitalista que orienta a atual economia brasileira e por representar a massa operária caracterizada nas estatísticas 57 governamentais pela desigualdade social através de dados de exclusão na distribuição de renda e cidadania. A pesquisa abordou os participantes em número de três (3) a seis (6) homens adultos trabalhadores da construção civil. Utilizei o termo identidades masculinas devido à pesquisa partir da orientação de que as identidades masculinas não, necessariamente, são homens. A pesquisa considera a identidade de gênero e não parte de classificações sexuais baseadas em se dotar ou não um pênis. Utilizei critério de saturação empírica e teórica para definir o número de participantes abordados. A saturação empírica realiza-se quando o pesquisador verifica que já possui as informações concernentes aos seus objetivos de pesquisa, já a saturação teórica ocorre quando a relação entre o campo e o pesquisador não produz mais as informações necessárias para o construto da teorização objetivada (FONTANELLA, 2011). O quantitativo de participantes foi definido como um número suficiente para o acesso a diferentes singularidades, mas ao mesmo tempo suficiente para oferecer escuta a história de vida de cada um, aos casos de vida destes. Desta feita, o número de participantes não se caracteriza como amostra estatística, e sim a possibilidade de estudar casos de vida. Tal posicionamento se baseia na orientação da pesquisa qualitativa que aborda os significados e as vivências dos sujeitos em todas as suas dimensões, contextos e relações. O número ideal de pessoas a ser considerado na pesquisa qualitativa deixa, dessa forma, de ser um critério quantitativo, passando a se definir pelas próprias demandas qualitativas do processo de construção de informação intrínseco à pesquisa em curso; isso dá uma dimensão teórica a essa questão que tem sido totalmente ignorada nos marcos da pesquisa positivista (GONZALEZ REY, 2010, p.112-113). Partindo de tais compreensões, propus estudar os sentidos produzidos pelos sujeitos masculinos acerca da ética nas relações de gênero. O estudo dos sentidos como construções das singularidades inscritas em um social revela possibilidades de compreenderem-se os processos que constituem as relações e orientam as significações psicossociais. A dimensão do sentido dos processos psíquicos possibilita chegar ao geral pelo singular, pois o estudo das singularidades “permite acompanhar um modelo de valor heurístico para chegar a conclusões que estão além do singular e que são 58 inexequíveis sem o estudo das diferenças que os caracterizam” (GONZALEZ REY, 2010, p.113). 2.4. Instrumentos de construção de dados Considerando que o instrumento é uma “ferramenta interativa”, Gonzalez Rey (2011) propõe construir os dados da pesquisa junto com os participantes através da eleição de instrumentos abertos pautados numa vinculação efetiva entre pesquisador e participante. Compreende-se que o instrumento pode ser um facilitador para a construção de dados, e não um descritor direto do conteúdo subjetivo dos participantes, visto que a relação na pesquisa é considerada como protagonista da construção dos dados. Desta feita, elegi dois instrumentos de forma a aproximar-se da realidade do sujeito pela tentativa de conhecer sua situação sócio-econômica e história de vida. Os instrumentos foram um questionário sócio-econômico e o instrumento aberto chamado relato de história de vida. O primeiro busca conhecer aspectos da vida pessoal e social do sujeito a partir de questionamentos sobre sua renda, bairro, estado civil, filhos, dentre outros, já o segundo objetiva conhecer o sujeito por sua própria história, pelo que ele tem a dizer, sua história de vida. Esse segundo instrumento pode ser considerado aberto e bastante interativo por se tratar de uma atividade de relato e recordações. Acredita-se que a utilização de instrumentos abertos possibilita a “expressão do sujeito em toda a sua complexidade e aceita o desafio que implica a construção de ideias e conceitos sobre a informação diferenciada que expressam os sujeitos estudados” (GONZALEZ REY, 2011, p.81-82). Elegi o instrumento de história de vida em função de sua possibilidade de auxiliar na compreensão do sujeito por suas relações como uma dança ininterrupta, de passos contínuos e ao mesmo tempo de bruscas transformações de ritmos. O que confere riqueza ao estudo das relações de gênero como acordos (construções éticas) em encontros e desencontros de pares (são dois sustentados e constituídos por muitos outros). A partir do instrumento história de vida, serão explorados temas focais como a constituição e vivência das relações em geral, sejam amorosas, fraternais, parentais, dentre outras. Através da história de vida pode-se conhecer a construção do subjetivo/social através das recordações articuladas às representações e sentimentos presentes. 59 Recontar trata-se de uma atividade de recordar, reviver e refletir baseado na constituição presente, o que integra a este, possibilidades de significar o passado em contribuição reflexiva ao hoje e em prospecções para adiante. “Somente a posteriori podem-se imputar, aos retalhos caóticos de vivência, as conexões de sentido que os convertem em ‘experiência’” (SOARES apud PAULILO, 2013). A partir das histórias de vida perpassadas pelas informações sócio-econômicas do sujeito, pode ser possível conhecer, pelo que o sujeito deseja expressar, o sentido de ética nas relações de gênero através dos fatos que considera importante, das pessoas que fizeram parte de seu desenvolvimento e das relações significativas que constituíram a orientação do que considera como relações hoje. Buscou-se compreender o que o sujeito considera como ética em uma relação de gênero, o que constitui esse caráter ético, qual o sentido ético que mantém, encerra ou mantém e encerra suas relações de gênero. Objetivei compreender através dos relatos do sujeito as vivências que constituem a ética que vive nas relações, os fatos, crenças, pessoas e processos que o auxiliam na orientação sobre como proceder com o outro, como se relacionar com o outro, relacionando-se consigo. Devido ao aspecto interacional do relato de história de vida, tal técnica necessitou de reflexões práticas para que a mesma resultasse no que a pesquisa buscou, cumprindo os preceitos éticos e construindo-a atendendo às relevâncias acadêmicas e sociais (para a própria comunidade a ser pesquisada). 2.5. Procedimento de abordagem dos participantes e registro dos relatos de história de vida O procedimento de abordagem dos sujeitos masculinos e realização do registro das histórias de vida seguiram as seguintes etapas: 1. Acreditando-se que “toda pesquisa qualitativa deve implicar o desenvolvimento de um diálogo progressivo e organicamente constituído, como uma das fontes principais da produção de informação” (GONZALEZ REY, 2011, p.56), durante o expediente, interagi com os homens de forma a conhecer suas dinâmicas, suas rotinas e assuntos gerais, esse procedimento ocorreu durante 4 semanas para construir vínculos com estes. “O clima da pesquisa é um elemento significativo para a implicação dos sujeitos nela” (GONZALEZ REY, 2011, p.56). Além 60 disso, expliquei o motivo de minha aproximação em tais momentos. A pesquisadora percorreu em diferentes dias da semana (incluindo os finais de semana) todos os andares da obra, todas as unidades em cada andar e todos os espaços de construção, onde conheceu pedreiros, azulegistas, carpinteiros, vidraceiros, entre outros profissionais; 2. Em seguida, compreendendo que o sujeito “é ativo no curso da pesquisa, ele não é simplesmente um reservatório de respostas, prontas a expressar-se” (GONZALEZ REY, 2011, p.55), abordei alguns sujeitos masculinos, expliquei os objetivos da pesquisa, os procedimentos dessa e realizei os convites para participação dos deles na pesquisa. Abordei aqueles que já possuíam o interesse pelo assunto abordado e aqueles que não demonstraram maiores interesses, mas que haviam contado partes de suas histórias à pesquisadora; 3. Após os homens terem aceitado o convite, junto comigo, agendaram um dia, horário e local para a realização da atividade de pesquisa no espaço da obra. Nenhuma das entrevistas foi remarcada, todas ocorreram nos dias combinados, a dificuldade encontrada foi obter a atenção dos trabalhadores em meio a muito trabalho, permaneci horas e horas aguardando um momento de folga ou um momento menos atarefado de alguns trabalhadores; 4. A atividade de relato de história de vida ocorreu em espaços distintos. O espaço oferecido pela administração da construtora foi a sala da qualidade, porém, somente o primeiro relato de história de vida ocorreu na referida sala, pois percebi que durante a participação do primeiro homem, este não se demonstrou suficientemente à vontade para falar, chegando a sussurrar em determinados momentos, foi então que avaliei que a sala não oferecia privacidade necessária ao participante, pois esta ficava ao lado da sala da administração. Apesar de eu ter sugerido a troca de sala, o primeiro participante preferiu permanecer onde estava; 5. Após o ocorrido com o primeiro participante, consegui outra sala, a sala da segurança no trabalho, foi nesta que os demais participantes conseguiram relatar suas histórias com maior privacidade. 61 2.6. Aspectos éticos A construção de dados se respaldou nos procedimentos éticos e recomendações do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas, bem como, na resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde que orienta pesquisas realizadas com seres humanos. Os riscos que podem ocorrer em relação ao participante durante a pesquisa são a mobilização de conflitos psicológicos negativos causados pela mobilização emocional durante o relato de história de vida. Se isso acontecer, encaminharia o participante à Faculdade de Psicologia que oferece o serviço de atendimento psicológico gratuito no Centro de Serviço de Psicologia Aplicada - CSPA (clinica-escola do curso de psicologia da UFAM). Quanto aos benefícios, a escuta de sua história de vida possibilitou ao participante a recordação, o reviver e o refletir de sua história e relações de forma que ele pôde mobilizar novas atitudes e percepções para com suas principais dificuldades e potenciais de vida. 2.6.1. Critérios de inclusão e exclusão dos participantes da pesquisa Os sujeitos masculinos foram abordados e, de acordo com seus interesses em participar da pesquisa, fizeram a adesão de suas participações nos procedimentos através de suas ciências via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. Os critérios de inclusão dos participantes na pesquisa foram: possuírem idades a partir de 18 anos e terem vínculo empregatício na obra como pedreiros, auxiliares de pedreiros e mestre de obras. Além de, essencialmente, interessarem-se na proposta de pesquisa e concordarem em participar. Os critérios de inclusão foram eleitos a título metodológico de forma a perceberem dados construídos na realidade, desta feita, configuraram-se com necessidades de ponto de partida e limites instrumentais, mas também conferiram possibilidades de exploração de uma realidade específica e orientam o foco da pesquisa sobre o que o pesquisador se propôs estudar. Em seguida, alinhados aos critérios de inclusão, mencionam-se os critérios de exclusão. Os critérios de exclusão abrangeram aspectos autônomos, legais, institucionais e logísticos. O não interesse do sujeito masculino pelo assunto e em participar da pesquisa foi um critério de exclusão autônomo. O critério legal de exclusão foi o homem não possuir 18 anos ou mais e não assinar a TCLE. O critério de exclusão institucional foi o 62 sujeito masculino não fazer parte do quadro de trabalhadores da obra. A pesquisadora da obra o termo de autorização para a pesquisa, o que garante a ciência social e o suporte institucional ao homem. E por fim, o critério logístico de inclusão foi o sujeito masculino estar impossibilitado de participar da pesquisa no dia da realização da atividade agendada com ele. 2.6.2. Pedido de autorização junto à instituição A autorização de utilização do espaço e participação nas atividades cotidianas da obra foi providenciada via liberação formal da gestão da obra. Mediante termo de autorização emitido pela construtora, a pesquisadora teve acesso ao espaço da obra para realização das entrevistas logo que o projeto foi aprovado pelo CEP. 2.7. Análise dos dados Considera-se que os dados construídos durante a pesquisa são constituídos por informações expressadas pelos sujeitos, mas também, por elementos que surgem na interação do pesquisador e do participante no contexto da pesquisa. Desta feita, compreende-se que o dado é um “elemento que adquire significação para o problema estudado, o qual pode proceder dos instrumentos utilizados ou das situações imprevistas que surgem no curso da pesquisa” (GONZALEZ REY, 2011, p.110). A partir dos discursos dos participantes, explorei os sentidos produzidos por estes e quanto aos sentidos, compreende-se que eles não são apenas respostas prontas, lineares e lógicas, mas também, “expressões do sujeito muitas vezes contraditórias, parciais, que nos apresentam indicadores das formas de ser do sujeito, de processos vividos por ele” (AGUIAR e OZELLA, 2006, p.228). Desta forma, a análise dos dados fundamentada pela proposta dos núcleos de significação pôde contribuir com uma abordagem mais multifatorial e dinâmica dos dados. No processo de organização dos núcleos de significação – que tem como critério a articulação de conteúdos semelhantes, complementares e/ou contraditórios –, é possível verificar as transformações e contradições que ocorrem no processo de construção dos sentidos e dos significados, o que possibilitará uma análise mais consistente que nos permita ir além do aparente e considerar tanto as condições subjetivas quanto as contextuais e históricas. (AGUIAR e OZELLA, 2006, p.310). 63 A etapa de análise de dados foi realizada a partir da técnica de análise de núcleos de significação sob a fundamentação da teoria das redes de significações existente na psicologia sócio-histórica. A exploração das redes de significações existentes nos discursos possibilitou a compreensão das produções subjetivas via sentidos. Durante a pesquisa, as histórias de vida foram registradas em diários de campo e áudios. Anotaram-se as percepções dos entrevistados, reações comportamentais, afetivas e valorais dos participantes, bem como análises realizadas durante demais interações. Tais situações observadas e/ou experimentadas durante o desenvolvimento da atividade de pesquisa contribuíram com o registro do contexto da pesquisa. As entrevistas tiveram os áudios gravados (perante autorização via TCLE) e transcritos. Os dados transcritos apresentaram o discurso dos participantes na íntegra, sem correções ou alterações. Para preservar o sigilo quanto à identidade dos participantes, atribuíram-se nomes fictícios aos participantes. Descrevo a partir desse momento o processo de tratamento dos dados construídos durante a pesquisa. Inicialmente, a partir dos discursos dos participantes, realizei a construção de pré-indicadores, em seguida após uma outra leitura, aglutinei as ocorrências de discursos semelhantes, isolei as ocorrências singulares que estavam intimamente respondendo aos objetivos de pesquisa e ainda, separei discursos que poderiam ser importantes à discussão complementar das categorias de discussão, tal etapa se orientou como um “processo de aglutinação dos pré-indicadores, seja pela similaridade, pela complementaridade ou pela contraposição, de modo que nos levem a menor diversidade” (AGUIAR e OZELLA, 2006 p.230). Enfim, neste exercício, consegui concatenar os discursos em uma estrutura composta de zonas de significação, núcleos de significação e os indicadores. Desta feita, as zonas de significação compreendiam macro-categorias, os núcleos de significação seriam as próprias categorias a serem discutidas no trabalho e os indicadores seriam os argumentos de discussão da categoria. Munida das histórias de vida transcritas e das anotações resultantes dos diários de campo, compus uma planilha de dados. A planilha possuía 4 abas, 1 aba de caracterização dos participantes onde continham informações sócio-econômicas, informações contextuais do momento em que foi realizado o relato de história de vida no curso da pesquisa e por fim, o próprio relato da história de vida do participante. Na aba 2 continha os relatos individuais dos participantes em uma coluna e uma segunda coluna continha os discursos resumidos em assuntos recorrentes, contraditórios 64 e complementares. A partir da organização dos dados na aba 2, percebi que os dados informavam uma concatenação dos assuntos relatados pelos participantes. Estes expressavam zonas de significação que chamei de: indicações éticas, contra-indicações éticas e reflexões normativas que chamei também de exercício ético. Percebendo isso, criei na aba 3, um mapa de discursos que foram marcados por cores diferentes para a visualização das 3 zonas de significação: indicações éticas (na cor amarela), contra-indicações éticas (na cor vermelha) e reflexões normativas (na cor verde). Essas colorações foram filtradas de modo que eu as visualizasse isoladamente para realizar uma mais aprofundada análise, foi quando consegui identificar os núcleos de significação que compunham as macro-categorias, chamadas de zonas de significação. Além disso, distribuindo os discursos, foi possível posicionar o que se tratava de um núcleo de significação e o que se tratava de um argumento que sustentava o núcleo, o indicador. Verificando essa organização nos discursos, foi possível criar uma aba de número 4 que seria a estruturação da análise, a partir desta aba foi possível construir e visualizar tal estrutura que está disposta na Tabela 2 abaixo. Em suma, os dados compuseram a seguinte lógica: os discursos se organizam em zonas de significação que resumem os núcleos de significação, sendo que os núcleos são aqueles que especificam essas zonas, estas últimas resumem os indicadores, e esses especificam os núcleos. Assim, os dados são categorizações que se resumem e se especificam ao mesmo tempo. Tentei expressar tal arranjo através da figura 1 abaixo. Figura 1: Arranjo dos núcleos de significação 65 Esta percepção de resumo e especificação que se complementam, traz bastante à ideia da sócio-histórica explicada pela rede de significação que demonstra a dialética das informações construídas pelas pessoas, onde o contraditório se complementa ao semelhante e ambos se tornam um só discurso, que pode ou não ser linear, mas que diz sobre si, pela própria pessoa. Ou seja, uma lógica de não lógica. A teoria da rede de significação assume essa complexidade dos processos de significação, bem como seu caráter sistêmico, e considera tais dinâmicas uma rica fonte de estudo do desenvolvimento humano. A importância da metáfora de rede reside na idéia de relações, de entrelaçamento, na multiplicidade de fios de interligação em combinações pluridimensionais. À primeira vista, a complexidade parece ser um fenômeno quantitativo, por envolver um número muito grande de interações e interferências de unidades. Porém, como Morin frisa, a complexidade não compreende apenas quantidades de unidades e interações, mas também as incertezas no seio de sistemas ricamente organizados; indeterminações, fenômenos aleatórios, dado que os processos congregam contradições que são complementares, sem deixar de ser antagônicas (ROSSETTIFERREIRA, 2008, p.152). A estrutura da planilha de dados foi composta por 1 zona de significação, 5 núcleos de significação e 22 indicadores que se dividem em 3 classificações: indicações éticas, contraindicações éticas e performatividades de gênero, como se pode visualizar na Tabela 1. Os 5 núcleos de significação revelados foram refletidos sob a abordagem da rede de significação. Cada um deles foi mencionado e discutido no capítulo de resultados e discussão. 66 Tabela 1: Classificações dos núcleos de significação 67 A partir articulação teórico-metodológica descrita nesse capítulo, busquei compreender a processualidade dos sentidos de ética nas relações de gênero e suas dimensões constitutivas, contextualizando os homens num tempo, numa sociedade e em uma cultura, considerando suas vivências e relações, e aproximando-se do que têm a dizer sobre seus problemas e suas esperanças. 68 RESULTADOS E DISCUSSÃO Os dados construídos durante a atividade de pesquisa revelaram 5 núcleos de significação. Os núcleos fundamentaram os resultados desse estudo e o cruzamento destes com as histórias de vida estruturou didaticamente a discussão da pesquisa. Antes de mencionar os núcleos e realizar suas respectivas discussões, apresentaram-se os participantes da pesquisa e suas histórias de vida. Tais histórias foram apresentadas inicialmente de forma completa e depois cruzadas aos núcleos de significação através de seus episódios de modo a fundamentar a discussão do trabalho. 3.1. Caracterização socioeconômica dos participantes Os participantes da pesquisa foram 5 sujeitos masculinos que receberam nomes fictícios para o sigilo de suas identidades. Eles possuíam idades entre 32 e 61 anos, trabalhavam na obra, sendo 1 deles encarregado de obra e os demais pedreiros, possuíam renda de valores entre R$560,00 a R$3.500, quanto a escolaridade, a maioria não possuía o ensino fundamental completo, apenas um chegou a cursar o ensino médio, mas não completou. A maioria dos sujeitos não era natural da capital do estado, sendo de outros estados ou do interior do Amazonas, 3 possuíam casa própria e 2 viviam em casa cedida, seus estados civis se distribuíam entre solteiro (1), casados (2) e a maioria convivia em união estável (2) com suas companheiras, em média possuíam 3 filhos e 69 todos moravam na periferia da cidade. A maioria possuía o hábito de beber, mas não fumavam. Na Tabela 2 é possível visualizar a caracterização dos participantes, e a partir dela, teci análises que entrecruzaram as informações e a constituição psicossocial destes em suas histórias de vida. Cada um dos participantes recebeu o nome de cantores que se expressaram como homens em relações com mulheres através de músicas. Tais músicas se popularizaram e contribuíram com a expressão de subjetividades masculinas inquietas em suas relações. Tabela 2: Caracterização dos participantes Apesar do perfil socioeconômico dos participantes apresentarem diferenças, em sua maioria apresentaram semelhanças em suas histórias de vida, tais roteiros de suas experiências apresentam roteiros de afinidades. Existe uma relação negativa entre o perfil socioeconômico dos participantes e o hábito do consumo de álcool. 4 dos 5 participantes possuem baixa escolaridade e renda relativamente baixa considerando a divisão desta pelo número de componentes do grupo familiar. Estes participantes consomem bebida alcoólica, e esta relação os inclui em um perfil populacional de pessoas que fazem o uso do álcool como socializador e como usufruto de lazer e descontração. A pesquisa de Abreu (2012) observou elevada prevalência de consumo nocivo de álcool associado a sujeitos sexo masculino com baixo nível de escolaridade e de renda familiar mensal. 70 Percebi nesse processo a relação entre a experiência de trabalho na adolescência e o consumo de álcool. Os participantes em sua maioria relataram que consomem álcool ou (aprenderam a consumir e não mais consomem com tanta frequência) por motivos diferentes e os motivos que mais chamaram a atenção foram: o sujeito ter aprendido a beber sob influência de outros sujeitos masculinos para provar masculinidade e deixar de ser considerado uma criança, e ainda, beber porque trabalhava muito e “ninguém é de ferro”. Tais discursos revelam que a relação entre a inserção precoce no mercado de trabalho e o consumo do álcool, configuram para os homens um arranjo que faz parte da construção de suas masculinidades, visto que o consumo do álcool pode significar ser aceito e se tornar igual aos outros em rituais masculinos, além disso, o recurso da bebida pode ser um método de socialização masculina frente à necessidade de relaxar após um dia excessivo de trabalho. A bebida seria o que os configura “humanos” frente à mecanização de suas forças de trabalho na construção civil sob o paradigma capitalista, e a socialização a partir dela os possibilita criar laços com sujeitos masculinos que vivem a mesma situação de exaustão. A recorrência do abandono dos estudos para trabalhar, devido à necessidade de complementação de renda para sua família, assemelha-os por seus roteiros de vida e perfil socioeconômico. Deixar os estudos e ingressar precocemente no mercado de trabalho os trouxe responsabilidades e consequentemente sociabilidades adultas. O poder financeiro obtido pelo alcance de um salário e a necessidade de um lazer com seu grupo social os auxiliou a se constituírem como adolescentes precoces na vida adulta, e o álcool participou desse processo como um integrador social e subjetivo. A visão sócio-histórica do desenvolvimento dá sentido a essa compreensão, uma vez que nessa perspectiva, o desenvolvimento humano é caracterizado como um processo contínuo do nascimento à morte que ocorre em um ambiente cultural e em um código social a partir de interações com o outro, onde toda pessoa é ativa. (ROSSETTI-FERREIRA et al, 2004). Um fenômeno psicossocial interessante neste processo repetido pelos participantes é o fato da maioria destes contarem suas histórias a partir das experiências de trabalho, todas iniciadas ainda na adolescência. A profissão de pedreiro exercida por estes participantes os assemelha devido à forma e motivo pelo qual foi incluída em suas vidas. Todos vivenciaram uma infância pobre com os pais e precisaram complementar a renda para obterem melhores condições de vida. Não se justifica a escolha da profissão apenas pelo argumento da necessidade, mas afirma-se que até hoje, a profissão é uma 71 possibilidade de ingresso no mercado de trabalho das grandes cidades sem maiores exigências de escolaridade ou aperfeiçoamento técnico, trata-se de um campo que se oferece ao aprendizado da função por necessitar essencialmente de força de trabalho, e essa se faz para os adolescentes como uma atração para a obtenção de experiências, visto que são eficientes forças de trabalho devido à saúde, energia e necessidade de obtenção de um ofício. O fato dos participantes começarem a contar suas histórias de vida a partir da adolescência evidenciando suas primeiras experiências de trabalho pode revelar que para, os participantes, o início de suas histórias parte de suas mais significativas experiências psicossociais providenciadas pelo trabalho durante a adolescência. Sendo a infância um evento não tão significativo quanto suas mais consideráveis experiências de adolescentes que objetivavam uma integração psicossocial ao mundo dos adultos. Tal processo se constitui como aquele descrito pelas redes de significação que se compõem a partir de elementos pessoais, relacionais e contextuais perpassados por dimensões culturais ideológicas e de poder. Um processo de matriz sócio histórica com implicações de natureza semiótica e polissêmica “a qual tem concretude e se atualiza continuamente no aqui e agora da situação, ao nível dialógico das relações” (ROSSETTI-FERREIRA et al, 2004, p.17). Compreende-se que tal necessidade de contar suas histórias a partir do trabalho na adolescência revela a centralidade do trabalho nas identidades dos homens. Ou seja, a função social do trabalho configura suas identidades de gênero. O tornar-se masculino passa pelo trabalho, como se este tivesse a função de transformar crianças em sujeitos masculinos, como se a ascensão ao status de homem viabilizasse uma proteção para não ser desvalorizado ou rechaçado pelos outros homens, visto que se tornou igual a eles, está no mesmo patamar, não é mais uma criança indefesa, já consegue “sentir o peso”. O mesmo processo ocorre também com o fato de se constituir uma família, mas isso será discutido nas sessões posteriores. Pontua-se que a socialização que postula o trabalho como uma centralidade trata-se de um processo que remonta a idade clássica, passa por toda a história e se estabelece com o advento do capitalismo e a sociedade do consumo na sociedade moderna e contemporânea. Porém, como a força de trabalho se tornou necessidade motriz do capitalismo, as mulheres foram inclusas nesta massa e as mesmas passaram a competir com eles nesse mercado, onde eles passaram a dividir com elas essa socialização. Uns conseguiram lidar com isso de maneira positiva como Chico, e outros 72 nem tanto como Zé. Tal questão também é discutida nas sessões posteriores como ilustração da abordagem sócio histórica de gênero como uma categoria relacional. Como exposto anteriormente, na Tabela 2 é possível visualizar os dados sócioeconômicos e complementares dos participantes e também seus contextos na pesquisa. Além das informações sócio-econômicas e contextuais dos participantes, apresento neste momento a história de vida de cada um deles em resumo e em seguida passo para os tópicos que exporão os resultados construídos após a análise dos relatos. Considero importante o leitor conhecer a história de cada um dos participantes para acompanhar minhas interpretações das informações construídas sobre eles, e então também poder refletir na perspectiva da compreensão dos estudos de gênero. Tal é o ensejo que esse trabalho suscite inquietações e se transforme em pontos de partida. A seguir, discutirei acerca dos núcleos de significação construídos a partir das histórias de vida dos participantes e de seus sentidos de ética nas relações de gênero proferidos em seus discursos. Foi eleito um núcleo de significação no discurso de cada participante. 3.2. Núcleos de significações 3.2.1. Odair – o acordo como compromisso ético pela relação de gênero. “Vamos fazer um acordo!” Odair é um mestre de obras de 65 anos de idade que já viveu 4 relacionamentos em sua vida. Segundo ele, os relacionamentos o ensinaram a necessidade de se chegar a consensos com suas parceiras para que as relações fossem satisfatórias. Em cada relacionamento aprendeu algo diferente através dos tipos de experiências. Antes de abordar-se o núcleo de significação revelado por Odair, descreve-se sua história de vida. Odair nasceu em Eirunepé-AM, família de descendência cearense, tem 13 irmãos e teve uma infância boa "porque eu vim de uma família muito, muito boa" porque "meus pais, minha mãe deram toda a atenção que um filho gostaria de ter", apesar de ser da "classe pobre", segundo o mesmo. Além disso, brincou bastante com os irmãos. Os pais eram agricultores, o pai era muito trabalhador e os filhos nunca o viram com raiva e a mãe era "carinhosa, prestando todos os requisitos que um filho gostaria de ter também". Aprendeu com os pais tudo de "caráter, de moral, de alegria". Com o pai 73 aprendeu a "ser bom pagador. Não mentir. Ser sério, ser um homem sério. Respeitar para ser respeitado. Isso eu aprendi com ele". Não vivia atritos com os irmãos. Quanto à educação "papai herdou tudo dos nossos avós e eu herdei tudo do papai". Orgulha-se de ser descendentes de cearenses porque o os cearenses são um povo muito sério, gostam de tudo "direito", isso significa que "no meu caso, por exemplo, eu copiei tudo do meu pai porque eu nunca vi o papai brigando, eu nunca vi o papai se alterando com ninguém, um homem que respeitava e era respeitado, sempre pagou suas contas em dia tudo certinho". Aos 20 anos veio morar em Manaus e estudou até a quarta série. Viveu 4 relacionamentos amorosos significativos, sendo que o primeiro começou no interior e vieram morar em Manaus, o relacionamento durou 13 anos e não deu certo porque a esposa o "trocou por outro". O segundo durou 10 anos e acabou porque a esposa adoeceu e não quis permanecer casada porque "não queria tá com um homem do lado que ela não pudesse assim... servir ele". A terceira relação durou 4 anos e terminou porque a esposa não gostava dele, apenas ele dela, Odair afirma que ela "nasceu pra não gostar de ninguém", apesar de suas tentativas em fazer dar certo, a relação acabou, ela afirmava que: "eu era um homem que toda mulher desejaria de tá ao lado". Atualmente, vive com a esposa e duas enteadas há 9 anos. Sobre o atual relacionamento, afirma: "ela diz que gosta de mim, que me ama. Eu também amo ela. Nós não briga, nós não discute". Sua esposa foi sua professora. Apesar de estar bastante satisfeito com o atual relacionamento, gostaria de ainda estar no primeiro: "eu gostaria de tá com minha primeira família e ter criado todos os meus filhos. Esse era meu desejo”, porque gostaria de ter feito como o pai "meu pai quis criar todos os filhos. Quis ver chorar, quis ver rir, tudo isso. E eu tinha o mesmo desejo". Não se lembra de já ter ouvido sobre a palavra "gênero". Para ele, ética, apesar de não entender muito bem o que seja, significa "uma coisa séria né!? uma coisa que se leva a sério, mas não tenho o perfil do que é realmente". Odair relatou uma história de vida em que recebeu uma educação baseada no afeto e na cultura familiar cearense que foi transmitida de geração em geração. Seus pais o educaram com disciplina e carinho, o que pode tê-lo orientado em suas relações. A demonstração de afeto não foi informada como um problema para o participante. Palavras como amor, carinho, cuidado e diálogo foram frequentemente usadas por ele ao se referir a uma relação. Segundo Odair, não há episódios de violência vividos por ele em suas relações, apenas menciona relacionamentos sem êxitos por motivos 74 externos ao participante, motivos que envolviam principalmente decisões feitas pela parceira. Questionei o participante sobre o que ele acreditava ser uma forma de se conduzir em uma relação para que esta fosse satisfatória para o casal. Entre seus principais argumentos, Odair destacou a necessidade do acordo entre os dois. “Como é que nós vamo fazer pra continuar vivendo?” “Porque você gosta de uma coisa que eu não gosto”. “Eu não aceito o que você faz”. “Eu não mudo, você não muda”. É conversar pra chegar num consenso. Como nós vamos viver de hoje em diante? Aí chegar num consenso: “Bem! então vamos fazer um acordo, vai ser assim”. O participante defendeu o consenso como um objetivo que deveria ser alcançado e que produziria um acordo entre o casal para a manutenção da relação. Complementando seu sentido sobre a ética na relação de gênero, Odair foi preciso ao destacar a importância do respeito ao direito do outro, e ao seu direito, bem como, defendeu a alteridade para uma relação satisfatória: “[...] você tem que respeitar os direitos do seu parceiro e ser respeitado nos seus direitos. Nossos defeitos, nosso jeito de ser, nossa cor, nossa postura dentro dos limites legais. Se a gente aprender, no meu ponto de vista, se você aprender a respeitar o outro, o Espaço do outro e ser respeitado também no seu espaço da maneira que a gente é eu acho que o relacionamento tudo vai bem. Acho que todo casal gostaria de ser”. Ao se referir às contraindicações éticas para uma relação, Odair ressaltou a ausência de afeto, o individualismo e a falta de diálogo e cumplicidade como aspectos que dificultam uma relação e impedem a vivência de um relacionamento satisfatório para ambos. “Olha, na minha pesquisa (risos), eu acho que é uma falta de afeto dos dois. A pessoa “eu sou muito eu ela é muito ela”, “ela faz o que ela quer que eu faço o que eu quero” e aí a gente não se dá bem. No meu ponto de vista não. No meu ponto de vista, se num conversar, se tiver uma dificuldade não sentar numa mesa e conversar os problemas e encontrar uma maneira de resolver o problema junto, pra mim isso faz a separação do casal”. Odair descreve-se como um sujeito masculino que tem a figura do pai como um exemplo de masculinidade ideal, sua socialização durante a adolescência e vida adulta adicionou características à sua identidade de gênero, mas não alterou sua orientação macro de performatividade masculina baseada no exemplo do pai, pelo contrário, reforçou-a. O participante se coloca como uma subjetividade de referência às outras 75 pessoas também, assim como, seu pai foi para ele. Para isso, refere-se à seriedade e à disposição ao outro como suas principais virtudes. Odair descreve-se da seguinte maneira: “Ser um homem sério, ser um homem que não gosta de brincadeira, ser uma pessoa presente em qualquer hora que a pessoa precisar e tá ali pra ajudar, pra fazer qualquer coisa e mostrar meu perfil de vida, como é que eu sou, como é meu relacionamento na rua e em casa. Eu tento passar isso pras pessoas. E daí as pessoas tirem a lição de que precisa”. Em suma, compreendi que Odair refere-se à constituição de sua masculinidade como um processo em que aprendeu a ser sério no sentido de coerente, bem como, disposto às necessidades do outro. Ele expressa que a tradição cearense de ser “honesto” está relacionada à educação afetiva recebida pelos pais que eram amorosos e cuidadosos. Além disso, por ser um homem de 65 anos, viveu mudanças políticas e sociais desde os anos 50 em que se viu o desenvolvimento político e econômico do país onde homens e mulheres passaram a concorrer no mercado de trabalho e onde os direitos referentes às causas de gênero se difundiram. Tais processos participaram da constituição subjetiva de Odair que produziu o sentido de ética tratado aqui como “acordo”. As ações das pessoas se articulam pela coordenação de papéis e contra-papéis que são desenvolvidos nas relações por apropriações dialéticas e criativas dos sujeitos. Nas interações há o embate de ações, emoções, motivações e significações dos distintos e múltiplos participantes. O desenvolver se dá através dos consensos e contradições nos conflitos e crises fundamentais ao processo de constituição das pessoas e das situações. Deste modo, concomitantemente, “pessoas e rede de significações são contínua e mutuamente transformadas e reestruturadas, canalizadas pelas características físicas, sociais e temporais do contexto no qual as interações ocorrem” (ROSSETTIFERREIRA et al, 2004, p.161). Outro aspecto que discuto é o afeto como cuidado. Odair se refere ao afeto através de palavras como amor, carinho e cuidado. Compreendi que Odair relaciona o cuidado ao afeto como aspecto ético para suas relações, visto que sua educação familiar é considerada por ele como algo que exerceu êxito em seu desenvolvimento subjetivo nas relações, o que estimula Odair a reproduzir isso em suas relações para que estas também alcancem um êxito, que seria a satisfação em estar junto do outro. Foucault já se referia ao cuidado na idade clássica como uma forma de se conduzir 76 satisfatoriamente na relação com o outro. O autor mencionou textos estóicos dos dois primeiros séculos para ilustrar a transformação do modelo de relação entre os esposos, que depois de ser uma convenção social, somente se tornou uma “arte de viver casado” que demandava um cuidado e uma reciprocidade afetiva entre os esposos. O texto abaixo abordado por Foucault assemelha-se ao sentido de Odair sobre o vínculo conjugal. [...] aquele que se preocupa consigo mesmo não deve somente se casar, ele deve dar à sua vida de casamento uma forma refletida e um estilo particular. Esse estilo, com a moderação que ele exige, não é definido unicamente pelo domínio de si e pelo princípio de que é preciso governar a si próprio para poder dirigir os outros, ele se define também pela elaboração de uma certa forma de reciprocidade no vínculo conjugal que marca tão fortemente a vida de cada um, o cônjuge, enquanto parceiro privilegiado, deve ser tratado como um ser idêntico a si e como um elemento com o qual se forma uma unidade substancial. Tal é o paradoxo dessa temática do casamento na cultura de si, tal como foi desenvolvida por toda uma filosofia: nela, a mulher-esposa é valorizada como o outro por excelência; mas o marido deve reconhece-la também como formando unidade com ele. Em relação às formas tradicionais das relações matrimoniais, a mudança foi considerável (FOUCAULT, 2012, P.164-165). Em sua principal indicação ética, Odair menciona o consenso como uma ferramenta para o alcance do acordo entre o casal e tal acordo garantiria a manutenção da relação. Porém, o participante declara que para tal, existe a necessidade do respeito ao direito do outro, e ao seu direito. E ao expor o respeito aos direitos, refere-se a si e ao outro como se defendesse a importância da alteridade para uma relação satisfatória. Em minhas leituras sobre relações contemporâneas, Giddens (1993), refere-se ao relacionamento puro como uma relação em que o casal opta em estabelecer um relacionamento baseado no afeto e experimentando direitos iguais visto que a relação não se basearia em papéis cristalizados de gênero nem em convenções sociais. Porém, para tal, seriam necessários o reconhecimento e o respeito aos direitos do outro, além do afeto como base, por isso classificou esse tipo de relacionamento como “relacionamento puro”. Como contraindicação ao relacionamento baseado no afeto, nos direitos e na alteridade: a ausência de afeto, o individualismo e a falta do diálogo, bem como da cumplicidade, seriam os aspectos que dificultariam uma relação e impediriam a vivência de um relacionamento satisfatório para ambos. Ao defender o acordo para a manutenção de uma relação satisfatória, Odair acredita que seria possível uma ética para as relações de gênero baseada em direitos 77 iguais, no afeto através do cuidado e no diálogo. O participante indica a possibilidade de uma relação necessitar de aspectos igualitários e de vinculação em todos os sentidos, o que revela que pode existir uma contextualização favorável às relações na contemporaneidade que pode ser refletido e desenvolvido, ou seja, podem existir educações, socializações, hábitos, direitos, dentre outros aspectos relacionais que favoreçam vivências mais satisfatórias de gênero que precisam ser pensados, discutidos, descobertos e experimentados. 3.2.2. Zé – a cristalização dos papéis de gênero como exercício ético para a relação. “...ela é uma pessoa que eu chego em casa dá aquele amor, aquela força, aquele coração, aquele respeito. Já fez minha comidinha. Já preparou a merenda” Zé é um pedreiro de 53 anos de idade que já viveu 6 relacionamentos em sua vida. Segundo ele, os relacionamentos não deram certo por falta de respeito, que segundo ele, seria o fato de suas parceiras não seguirem suas recomendações e suas necessidades. O motivo do atual relacionamento está dando certo e sendo satisfatório é a sua companheira não acreditar em “fuxicos” e o esperar em casa com a comida feita, exemplos de demonstração de amor, segundo Zé. Antes de abordar-se o núcleo de significação revelado por Odair, descreve-se sua história de vida. Zé nasceu em Manacapuru/AM, seus pais eram agricultores, a mãe tinha 3 filhos quando se casou com o seu pai, o pai "era daquela pessoa que o seguinte... que ferro era ferro e pau era pau. Sabe? Respeitador mesmo!". O participante afirma que o pai demonstrava carinho pelos filhos ensinando o respeito, com castigos e "peia". Já a mãe, "pessoa boa, caridosa, cheia de amor sabe?!", que encobria as saídas dos filhos, enquanto o pai "pai já era diferente. Ele ficava de butuca olhando pra saber a hora que eu ia chegar... Ele não gostava de enganar ninguém". Apesar de afirmar que viveu uma infância "não muito boa", refere-se a tal época como uma época que existia respeito em relação aos pais e aos mais velhos, em que existia a palmatória, a sabatina. Pela maneira como se referiu, aparenta dar muita importância a tais instrumentos de educação existentes em sua infância. Ele aprendeu a respeitar as pessoas através dos castigos do pai "eu aprendi muito. Isso aí me trouxe esse respeito", se não fizesse o que o pai mandasse, apanhava. Hoje, não educa seus enteados da mesma forma, apesar de achar que essa seria a melhor maneira, hoje não pode bater por causa do conselho tutelar, 78 então acredita ser melhor conversar. Aos 5 anos pegou uma doença que "dava no juízo da pessoa" que tira metade do saber da pessoa "aquela sabedoria que você tem de tabuada, das quatro operações...", mas acredita que "tudo que deus faz é uma coisa que a gente não pode ir contra deus sabe?! Eu podia ser aquela pessoa sabida, uma pessoa muito importante, hoje em dia eu tinha carro, tinha moto, tinha isso e aquilo, mas deus num quis", prefere ser uma pessoa "intermediária" e não rica, pois assim tem alegria dentro de casa e não é do tipo de "encher o bolso de dinheiro e ser aquela pessoa que num olha pra ninguém" Na juventude ainda, em virtude de sua idade, não tinha amor por sua mãe "14 a 16 anos, você num é aquela pessoa que tem aquele amor pela sua mãe. Eu fiz muito minha mãe sofrer", mas compensa isso dando amor na vida adulta. Estudou até a quarta série. Aprendeu a beber com 14 anos através das influências das "Colegagis". Saiu de casa aos 15 para os 16 anos porque queria sentir o peso do compromisso com uma mulher, queria "saber se era bom mermo. Que meu pai era uma pessoa que assumia um compromisso sério". Viveu 6 relacionamentos, o seu primeiro relacionamento foi aos 16 anos quando se envolveu com uma mulher de 32 anos, que possuía 3 filhos, uma criança de 3, de 7 e de 8 anos. A esposa e as crianças: "veio tudo pra minha responsabilidade e o compromisso todinho fui eu", e assumiu porque desejava saber como era esse “peso”, porque como o pai sentia, queria sentir também. Na juventude, trabalhou bastante, mas perdeu bastante dinheiro porque não "sabia raciocinar", gastava seu dinheiro com bebida. Ele afirma que brigou bastante na rua por qualquer motivo e também porque "quando a gente é jovem, nós não queremos perder, todos nós queremo ganhar". Era rancoroso, mas acredita que seu rancor "era do inimigo... do capeta". Ao ser jovem, "era que nem o passarinho voando no ar sabe. Mas só que aquela alegria era por pouco tempo". Deus o livrou das brigas na rua e ao passo que entrou em um relacionamento com uma mulher, os episódios de brigas na rua foram diminuindo. Seu primeiro relacionamento durou 15 anos e terminou por motivos de ciúmes "da parte dela". O segundo durou de 3 a 4 anos e acabou pelo mesmo motivo do primeiro. O terceiro, o quarto e o quinto relacionamento também terminaram por ciúmes advindos de suas parceiras. Está no sexto relacionamento há 10 anos, mas já houve crises nesse atual devido à traição por parte de Zé. É pedreiro há 20 anos e aprendeu "ralando...Sendo ajudante. Sendo mandado. Sendo enganado pelos meus próprios colegas". Aprendeu a ser pedreiro para sustentar a família e porque era uma profissão mais "fácil" de aprender. Nunca ouviu falar nas palavras "gênero" e "ética". Deseja envelhecer junto a atual esposa. 79 Zé relatou sua história de vida em que recebeu uma educação baseada no castigo, na rigidez e no respeito por parte do pai, contudo, baseada também no afeto por parte da mãe. Ao se referir que com o pai “ferro era ferro e pau era pau!”, expos que a educação familiar recebida na infância e adolescência não era inclinada ao diálogo, mas sim à rigidez e aos castigos físicos e psicológicos. Sua infância foi finalizada com o trabalho pesado e sofrido através de “bicos”, também em função da pobreza, e sua juventude com a assunção de uma família própria aos 16 anos, mas com frequentes episódios de violência nas ruas antes de se casar pela primeira vez. Tais variáveis podem ter se implicado na produção de suas relações que segundo ele se baseiam estritamente no respeito. O Zé se refere ao respeito como prioridade ao afeto. O participante menciona o respeito como antecessor ao amor, visto que se uma relação segue a lógica do respeito, esta será satisfatória. Porém, viu-se a seguir que o participante posiciona o sentido de respeito no campo da obediência às leis dos papéis cristalizados de gênero às suas próprias leis. Zé não se refere à vivência de episódios de violência nas relações vividas, apenas menciona o ciúme como motivo único do encerramento de seus 5 relacionamentos anteriores ao atual. Questionei o participante sobre o que ele acreditava ser uma forma de se conduzir em uma relação para que esta fosse satisfatória para o casal. Entre seus principais argumentos, Zé mencionou o exemplo de sua esposa que cumpre o seu papel de gênero, considerado ideal por ele, que se trata de uma demonstração de respeito: “Ela é uma pessoa que eu chego em casa dá aquele amor, aquela força, aquele coração, aquele respeito. Já fez minha comidinha. Já preparou a merenda. ‘Mô vem merendar’. Entendeu? Então eu digo: ‘Merende também, vamo merendar junto’. Fica à vontade, mas com respeito, assistindo televisão. Não tem motivo de ter discussão nenhuma” Segundo o participante, o respeito seria a demonstração da obediência ao papel de gênero atribuído à mulher, pelo participante, de ser prestativa ao seu marido através dos serviços domésticos, além de ser complacente ao não provocar intrigas entre eles e seguir as instruções dele para o satisfatório funcionamento da relação. Para o participante e o seu sentido de respeito, a relação deveria ser administrada pelo homem, onde este criaria as instruções a serem cumpridas pela mulher com sua participação perante conveniência, sendo nesta exercida uma hierarquia e uma unilateralidade. Complementando seu sentido sobre a ética na relação de gênero, Zé destacou 80 novamente a importância do respeito para uma relação ser satisfatória, mas desta vez se referiu a um respeito mútuo: “Uma relação é o seguinte, se a gente conseguir viver bem eu acho que você tem que ser... eu tenho que lhe respeitar e você me respeitar. É isso”. Ao se referir às contraindicações éticas para uma relação, Zé ressaltou que o amor e o carinho são demonstrados pela anulação da necessidade de conflito por parte de sua parceira. Desta feita, o questionamento ou a reinvindicação da parceira, que poderia causar conflitos, deveriam ser anulados pela mesma para harmonia do casal. Para isso, a instrução do participante à parceira seria ela não provocar discussões, não acreditar em fuxicos da vizinhança e colegas que poderiam trazer conflitos para o lar, para a relação. “Ter aquele amor, aquele carinho. Você chegar, não tem discussão, não acreditar na vizinhança que cria os problema, não acreditar nas colegage. Isso aí vem trazendo fuxico pra dentro de casa”. Zé se descreve como um sujeito masculino que se relaciona sua masculinidade ao valor de posses, ou seja, o valor dado à sua dimensão masculina se orienta pelo valor do que tem como posses financeiras ou de bens. Ele não se refere a algum homem como referência para si, apenas menciona os valores ensinados pelo pai de educação rígida baseada no respeito e no cumprimento de regras através do castigo, e o valor de saber assumir o “peso” de uma família (a responsabilidade), nos sujeitos masculinos com quem conviveu na adolescência onde se digladiavam nas ruas buscando um vencedor e nos homens que o fizeram sofrer durante o aprendizado de sua profissão. Zé não consegue referir-se a vivências positivas perante outros sujeitos masculinos, apenas perante sujeitos femininos. Porém, estas vivências positivas referenciam-se ao cumprimento do papel de gênero de forma sexista, o que o ensinou o funcionamento de achar que as mulheres só poderiam estabelecer relações satisfatórias com ele se fossem obedientes ao papel cristalizado atribuído ao feminino. Porém, o que ele pode não perceber, é o fato de que, quando essas parceiras não cumpriam esse papel, seus relacionamentos acabavam, que é o fato destas não aceitarem a infidelidade. O que para ele, indiretamente, era um problema delas e não dele, este é um papel que elas precisam ser obedientes e não ele. As mulheres na contemporaneidade já não aceitam o fato das masculinidades serem bígamas, como aceitavam em décadas passadas, visto que eram 81 educadas para servir o marido, que as sustentavam, o que para Zé é um valor que ele precisa ter, para sustentar seu papel cristalizado de gênero. Tal dinâmica, não favorece a vivência satisfatória de gênero por Zé. Ao descrever sua masculinidade, ele apenas se referiu ao argumento abaixo: “Eu sou o tipo de pessoa que gosta de passar bem em casa graças a deus e minha família. Num me falta nada”. Em suma, compreendi que Zé se refere à constituição de sua masculinidade como um processo em que aprendeu o respeito no sentido de obediência aos papéis de gênero cristalizados, bem como, atribuiu valor à responsabilidade por uma família de forma a provê-la como cumprimento de seu papel de gênero, à base do sofrimento como um valor. Para a manutenção de relações com esse funcionamento que se referenda, Zé reivindica isso das mulheres, visto que se faz a sua parte, exige que elas também cumpram e sejam obedientes ao funcionamento, assumindo seus papéis de mulher, uma visão sexista e com valores patriarcais. A questão da hegemonia do patriarcado está tão arraigada na vida cotidiana, no mundo social, que, por vezes, parece “natural” que assim seja. Bourdieu chama a atenção ainda para as estratégias e práticas que determinam a construção social dos corpos e resultam na incorporação da dominação por parte dos homens – desde o ato sexual à divisão sexual do trabalho. Naturaliza-se a dominação masculina como se ela fosse inerente à condição social humana. Como fato histórico produzido, ela pode sofrer mudanças, o que exige pensar em formas de traçar alternativas para fugir deste esquema de perpetuação da dominação masculina, bem como pensar nas instituições que a produzem e reproduzem como a escola, a família e a igreja (CONNELL, 2000) ” (NASCIMENTO, 2001, p.21). Zé recebeu uma educação baseada na violência das figuras masculinas, tanto na infância, quanto na adolescência e vida adulta. Sua infância ocorreu durante transformações mundiais como a construção do muro de Berlin e a instauração da ditadura militar no Brasil. Tais variáveis à disposição do desenvolvimento de Zé podem ter contribuído com características rígidas que o ajudaram a reforçar uma educação de funcionamento machista e sexista, sem trocas afetivas entre subjetividades masculinas, produzindo sujeitos de masculinidades hegemônicas. Não busco justificar que o fato de Zé adotar valores machistas em suas relações seja causado por tais variáveis. Apenas destaco que os funcionamentos subjetivos se constituem também com valores de sua época e com afetos ausentes substituídos por valores, que no caso de Zé, menciono o 82 respeito. Zé constituiu o respeito como sentido de ética na relação de gênero, o cumprimento (ou a obediência) dos papéis cristalizados de gênero seria o respeito. Seu cumprimento de provedor seria o respeito demonstrado a sua parceira como ética (como maneira de se conduzir para uma relação satisfatória) e a subserviência desta, a ele, seria a demonstração e cumprimento do papel dela. As orientações presentes em sentidos produzidos por pais, parceiras, colegas de rua e de trabalho em suas experiências de vida foram compartilhadas com Zé, foram adotados pelo participante aqueles sentidos com os quais mais se identificava ou julgava conveniente. Estes sentidos são refletidos nas relações propostas por Zé em suas relações e vividos pelo casal, fundindo-se, contrapondo-se ou ressignificando-se aos sentidos de suas parceiras. Tal processo se caracteriza como uma rede em que o sujeito está imerso em um universo simbólico que se constitui como um processo social, histórico e cultural e este universo simbólico contém a produção de significados que são compartilhados na construção de sentidos sobre o mundo e sobre si enquanto constituição de si próprio pelo sujeito. O referido processo de desenvolvimento se constitui através da dinâmica concomitante de segmentação e unificação de fragmentos das experiências, percepções e projeções que envolvem passado, presente e futuro. Inclui-se a este processo a articulação entre a reprodução de modelos com fusão e repetição de ações, bem como, o confronto entre eles com a diferenciação e a criação de modelos, vinculados às necessidades, aos sentidos e às produções interpretativas de cada pessoa (ROSSETTI-FERREIRA, 2000). Zé exemplificou a indicação ética ao mencionar a demonstração de respeito de sua parceira quando ela o espera em casa com a comida pronta. Para ele, se a parceira faz isso, ou seja, se ela cumpre seu papel de complacência e subserviência, não há motivos para brigas. Zé considera que o respeito seria o sinônimo de amor, força e coração. Ou seja, o afeto é a própria obediência aos papéis de gênero. Para Zé, quando não cumpre o papel de gênero idealizado por ele, esta não tem afeto e causa brigas, portanto, não merece seu afeto, isto se reflete no número de relações frustradas vividas por ele. O sentido ético de Zé se baseia no cumprimento de uma performance masculina hegemônica em relação a si, e ao outro, e tal sentido dificulta a vivência de uma relação satisfatória. Na relação conjugal, “os parceiros podem sustentar contratos violentos de conjugalidade ao não refletirem a dimensão ético-relacional do cotidiano que os vincula, bem como por cristalizarem e imporem um ao outro papeis de gênero que não favoreçam a relação” (SILVA et al, 2015, p. 174). 83 Em suas contraindicações éticas para uma relação, Zé considera que o amor e o carinho ocorrem quando sua parceira evita o conflito e não reivindica nada ou o questiona, pode ser entendido como uma atitude imperiosa e hegemônica. A atitude dele se associa a atitudes de um ditador, e suas parceiras se prestam a tal tipo de relação somente até determinado ponto, quando não mais cumprem a suas instruções, seus relacionamentos terminam. Tanto que o motivo recorrente de seus relacionamentos encerrarem-se é o fato de suas parceiras desconfiarem de sua fidelidade. Para elas deveria ser um cumprimento do papel dele na relação, visto que elas cumprem a fidelidade, mas quando percebem que a desigualdade está instaurada (que na minha opinião, está instaurada desde o início), pois ele não está cumprindo, elas renunciam à relação. E Zé acredita que permanece com a razão visto que não dialoga com elas sobre a fidelidade, porque acredita que não deve dar satisfações a elas, pois para ele, para a relação dar certo, ela deve ser em sua essência desigual, estando ele em superioridade. Ele propõe isso às parceiras e aos poucos se instaura, elas, porém, concordam ou resistem, mas fica insustentável um dia porque elas não percebem que não se trata somente do cumprimento do papel de gênero, mas também de um imperioso patriarcal que elas se submeteram ao associá-lo ao afeto. A mulher vive então um complexo entre submissão e resistência, visto que sua performatividade é considerada importante ao modelo proposto de relação, porém, não consegue sustentar a limitação de sua liberdade ao precisar performar assim para o contínuo da relação. [...] a naturalização desse ‘enlace’ nas sociedades ocidentais torna complexa a posição da mulher, principalmente no que diz respeito à sua cumplicidade junto ao universo de referências que toma o masculino, não apenas como complementar, mas como definidor do feminino. Nesse contexto, cabem à mulher determinados atributos associados à natureza (seus instintos, a feminilidade construída a partir do corpo feminino, etc.). Isso explica, em parte, a sua clausura no doméstico, no universo da reprodução. Universo privado no qual é tecida a trama que aprisiona a mulher e, simultaneamente, torna-a singular e indispensável. E ela vive essa situação de forma ambígua: gosta de ser indispensável, mas se ressente com a limitação de sua liberdade (GREGORI, 1993, p. 193-194). Zé possui um sentido de ética bastante contraditória em suas relações de gênero. Ele tem dificuldade em relacionar ética e justiça, tanto que une a palavra respeito à noção de imperativo. Ao defender que ambos em uma relação devem cumprir seus papéis, Zé inclui nesse imperativo, sua tendência valorativa do machismo. Ele busca dizer que se deve ter uma igualdade de cumprimento de papéis, mas ao cumprir a sua parte, inclui o fato de ser um sujeito masculino como uma forma de beneficiar-se, 84 fazendo a relação ser desigual em benefício próprio. O respeito então deveria instaurar a igualdade somente até certo ponto que lhe beneficiasse daí para frente deveria se desenvolver de forma desigual e da forma que lhe conviesse. Apesar desse sentido de ética nas relações de gênero ser um sentido bastante contraditório ao sentido de ética como uma forma de se conduzir em relação ao outro para uma vivência satisfatória, esse é o sentido de Zé, este é o seu funcionamento. E este pode ser o sentido de muitos sujeitos masculinos que vivem a violência conjugal ou a solidão, visto que muitas mulheres contemporâneas não conseguem mais sustentar tanta desigualdade e permanecem tentando alcançar a igualdade em uma relação de agressões ou procuram relações que as façam mais felizes. Esta dinâmica pode ser entendida como um processo interativo que produz sentidos que são testados, rejeitados ou admitidos à realidade do relacionamento e ao passo que são constituídos durante o relacionar, muitos casais apresentam dificuldade de perceber quando ele começou a ser acordado entre ambos e só começam a tentar refleti-lo quando passou a ser prejudicial ao relacionamento. No processo interativo, portanto, o conjunto das ações possíveis de serem realizadas e o fluxo dos comportamentos são delimitados, estruturados, recortados e interpretados pela ação do outro e, também, por um conjunto de elementos orgânicos, físicos, interacionais, sociais, econômicos e ideológicos. Todos eles interagem dinâmica e dialeticamente, compondo uma rede, a qual contempla condições macro e micro-individuais e estrutura um universo semiótico. Esta possibilita não só os processos de construção de sentido em uma dada situação interativa, como os processos de desenvolvimento (ROSSETTI-FERREIRA, 2000, p.4). Zé teve em sua vida, poucas relações que o incentivassem a refletir seus conceitos e muitas oportunidades de reforçá-los. Os valores aprendidos com o pai, com os colegas, com as mulheres e com as instituições o incentivaram a buscar uma igualdade, mas majoritariamente o incentivaram a se proteger da violência e da injustiça. Apanhando bastante da vida (e batendo também) e com escassas referências de uma experiência afetiva, Zé pode ter aprimorado suas estratégias de defesa, onde sua sobrevivência e integridade seriam a sua prioridade, colocando sua ética em relação ao outro como algo secundário, tornando-se essa ética, algo tão complexo que ele se perde nela mesmo, sofrendo por ela também. Tal funcionamento de Zé, apesar de lhe beneficiar até certo ponto, acaba prejudicando sua vida e trazendo sofrimentos recorrentes e cíclicos. Ao não refletir essa sua ética, Zé permanece em relacionamentos de competição por uma hegemonia para não ser massacrado por eles. Existem pessoas que perante o mesmo quadro de vida, poderiam desenvolver estratégias relacionais bem mais eficazes. Mas para aqueles que não conseguem tal 85 feito, a oportunidade de refletir suas constituições masculinas e suas relações, poderia ser uma possibilidade para olhar para sua vida e suas relações, e fazer disso um recomeço, dar a isso novos significados para fazerem-se mais felizes, e fazer os outros felizes através de uma relação. Nesse sentido, caminhar na direção de um não silêncio em relação aos homens, a possibilidade de abrir espaços masculinos de reflexão onde se procure desconstruir o que existe enquanto modelo hegemônico, desaprendendo o silêncio acerca deles mesmos e dos assuntos mencionados anteriormente, pode se constituir em uma alternativa às formas tradicionais de exercício de poder (PANIAGUA, 2000 apud NASCIMENTO, 2001, p. 26). Muitos homens não chegam a refletir suas próprias atribuições em uma relação, apenas reproduzem funcionamentos anteriores, mas há sujeitos masculinos que conseguem avaliar esse funcionamento e aprimorá-lo para uma experiência relacional mais satisfatória, que é o caso de nosso próximo participante. Bento (2013) traz em sua dissertação de mestrado outra classificação de um estilo de masculinidade que destoa do estilo hegemônico. Ao se referir aos entrevistados por sua pesquisa, Bento os define como “Masculinidades Críticas”, caracterizando-os como homens que apresentam uma reflexividade na construção de suas masculinidades e que adotam condutas mais igualitárias em seus relacionamentos, além de combaterem o sistema sustentado pelo machismo para vivências mais libertárias para si e suas parceiras. 3.2.3. Tim – desconstruindo o machismo como ética para uma relação satisfatória. “Aí então hoje é ela que diz para mim o que é certo, o que é errado. Aí o meu machismo foi... Eu tinha que deixar aquilo de fora. Esquecer, porque eu já tinha feito por muitos anos aquilo, nunca deu certo [...]. Então a partir do momento que eu larguei esse machismo, essa coisa, então as coisas foram mudando [...] Tudo isso eu estou aprendendo, porque eu não aprendi. É ver... Que eu não via antes... Então muitas coisas, como isso, eu fui aprendendo.” Tim é um mestre de obras de 52 anos de idade que já viveu 3 relacionamentos significativos em sua vida. Cada relacionamento representou um momento de sua vida que necessitava de mudanças subjetivas nele e que exigia o desenvolvimento de sua masculinidade para lidar com suas dificuldades. Os relacionamentos foram considerados pelo participante como aprendizados sofridos, mas que o desenvolveram. Antes de abordar-se o núcleo de significação revelado por Tim, descreve-se sua história de vida. 86 Tim nasceu em Monte Alegre/PA, morava na colônia com seus pais agricultores e 9 irmãos. Relatou que trabalhou muito em sua infância na roça para sobreviver. Chegou a afirmar que na época seu "divertimento era trabalhar" e que trabalhava "tipo escravo mesmo, o cara tinha que trabalhar. Deitava 08 horas... 10 horas da noite, você acordava meia-noite, para ir trabalhar de novo", desde os 6 anos de idade. O motivo do trabalho precoce é atribuído ao fato de a vida na roça ter recursos limitados, como por exemplo, só uma casa de torrar farinha para toda a comunidade. E se não torrassem a farinha, não poderiam vender na cidade e obter o sustento. Os momentos de diversão eram quando iam para o culto e tinham a oportunidade de brincar nessa atividade, "mas muitas vezes, até quando saía do culto, você ainda ia trabalhar. Arrancar mandioca e fazer isso aí". A relação com os irmãos era de conflitos e muita rigidez porque os irmãos se cobravam entre si a igualdade na realização das tarefas e isso gerava desentendimentos. Ressalto uma fala de Tim bastante significativa "quando se ganhava presente no Natal, era um terçado e uma foice". Tim descreveu seus pais como muito rígidos, principalmente sua mãe, a figura que mais os agredia. Segundo ele, a agressão acontecia por qualquer motivo. O pai era um homem trabalhador, generoso e de coração bom, além disso, "... Ele era sempre o chefe da comunidade. Tudo, as pessoas sempre faziam pelas ideias dele. Cada vez que as pessoas admiravam ele, por ele ser um cara trabalhador, um cara virado mesmo. E a gente ia fazer... Como ele era trabalhador, a gente era também”. Porém, o seu defeito era beber demais e gastar o dinheiro obtido com o trabalho na roça "ele gastava tudo. Ele ia na sexta e voltava na segunda. Se ele fosse na quarta-feira, ele só voltava na segunda. E gastava tudo. A compra que vinha às vezes não dava para a semana". Para Tim, seu pai era caracterizado como " Sempre ele era o cara", a sua mãe questionava o pai, mas as decisões eram sempre dele. A mãe era dona de casa rígida e quem efetuava as agressões "não tinha carinho, não... tinha essas coisas de muito carinho, não. É só falando mesmo como... Se tivesse falando com animal mesmo". Um dos maiores aprendizados obtidos na infância foi o que seu pai os aconselhava a se proteger nas relações "saia fora. Se viu, diz que não viu". O método de educação da mãe era a reprodução das falas do esposo aos filhos. Os pais eram muito honestos e ensinaram isso aos filhos. Ao descrever sua infância e adolescência de trabalho árduo e de poucos recursos na roça, Tim afirma "minha vida foi sofrimento". Um momento de lazer era quando jogavam bola. Depois que foi estudar na cidade de Monte Alegre, durante suas férias voltava para a colônia para trabalhar. Quando sua irmã mais velha, que já morava em 87 Monte Alegre, precisou cursar o ensino médio na cidade de Santarém/PA, Tim precisou interromper os estudos para trabalhar na colônia e assim ajudá-la a se sustentar na nova cidade. Tal fato foi relatado por Tim como um trauma (uma "revolta") para ele porque não esquece. Apesar de sua irmã o prometer que o tiraria da colônia, Tim, quando conseguiu voltar aos estudos, já não conseguiu retomar com as mesmas energias, então interrompeu os estudos e foi trabalhar já na cidade onde sua irmã cursou o ensino médio. Tim estudou até o segundo ano do ensino médio, montou uma taberna e foi aprender a ser pedreiro para completar a renda. Aos 21 anos, casou-se. Tomou tal decisão porque já bebia e estava tendo conflitos com sua irmã porque gostava de ir a festas, então queria mais autonomia, então casou. A união foi selada também porque a família de sua namorada gostava bastante dele pelo fato de ser trabalhador. “...que eu já bebia e vivia em festa, então começou a ficar ruim, aí eu já fiquei namorando... Como eu era um cara virado, trabalhador também, aí foi que o pessoal gostava de mim, porque eu era assim, eu nunca ficava parado, não vivia malandrando, trabalhava. E tudo envolvia, em termo de trabalho. Então foi que essas pessoas ficaram gostando de mim, porque eu era assim. Aí eu me casei para sair mesmo de... Já da guarda da minha irmã, que eu achei que eu tinha que sair fora e viver minha vida". Foi ajudante de pedreiro, montador de móveis, ajudante de caminhão, comerciante, dentre outras profissões. Após 16 anos de casamento se separou porque "o problema todo era eu. Que eu queria ser casado, mas solteiro também", além disso, a bebida causava muitos conflitos entre o casal, então a esposa pediu para ele escolher. E ainda, acidentou-se e não conseguiu trabalhar, o que acumulou dívidas e sua esposa era muito honesta, isso a desagradou bastante. Aprendeu a beber aos 8 anos de idade no roçado, bebia o restante do copo dos adultos, os adultos usavam a bebida para terem mais coragem para "derrubarem pau no machado [...] o resto que sobrava dos copos que meu pai bebia, eu bebia. Eu estava derrubando roçado lá, ele bebeu até álcool, cachaça, tudo, sobrava no copo e eu bebia [...] gostar, não gostava.... Bebia porque via os outros beberem. Eu pensava assim, ‘como é...’... Diziam assim, ‘bebe logo aí para virar homem logo, ser homem. Quando tu crescer, tu já...’, aquele negócio, quando crescer.... Aí eu achava que aquilo ali era.... Então por isso aí que eu comecei a beber muito cedo". O seu primeiro casamento durou 15 anos e lhe gerou 3 filhos, sua relação com os filhos era de carinho e procurava educá-los como o pai o educou, mas sem bater neles. Considera que foi um sujeito muito machista e quando sua esposa procurava ouvir os 88 conselhos das amigas, irritava-se. Seu segundo relacionamento durou 7 anos e acabou por causa de brigas da companheira por ciúmes e desentendimentos, além do seu machismo. Atualmente vive um novo relacionamento há 3 anos, onde procura fazer diferente. Procura dar mais razão para a companheira e reduzir o machismo, visto que ela teve uma "criação diferente da que eu vivi". Acreditava que "um dia eu ia encontrar uma pessoa que tentasse me ajudar a mudar". Nunca ouviu falar na palavra gênero. Para ele, ética é "tipo uma lei". Na relação, deve haver diálogo e os dois "têm que trabalhar juntos". Não tem amigos, porque seu pai o ensinou que amigo só é Deus. Sua amiga é sua companheira. Hoje, resolve seus conflitos: "Me silencio, fico por ali, tento resolver de um jeito que... De maneira diferente como eu resolvia primeiro". Tim relatou uma história de vida em que recebeu uma educação baseada na rigidez, na agressão física e no trabalho pesado, com poucas demonstrações de afeto, mas com ferrenhas cobranças de disciplina. Criado no interior do Pará, em uma comunidade do município de Monte Alegre, aprendeu cedo o peso da inchada e o corte certeiro do terçado. Sua educação familiar se baseou na fusão da responsabilização e da violência, tratava-se de um mini adulto, segundo sua descrição. O envolvimento com o álcool desde cedo e suas responsabilidades cobradas com violência o auxiliaram a construir um funcionamento irredutível e escassamente adepto ao diálogo. Segundo Tim, seus dois primeiros relacionamentos não tiveram êxito por causa de seu machismo, mas também, por suas parceiras não o terem ajudado a aprender como funcionar de forma satisfatória para sustentar uma relação, o que tem conseguido desenvolver em seu atual. Questionei o participante sobre o que ele acreditava ser uma forma de se conduzir em uma relação para que esta fosse satisfatória para o casal. Entre seus principais argumentos, Tim destacou a necessidade da parceria espontânea (voluntária) entre o casal na relação, baseado no compartilhar e no trabalho conjunto pela relação: “É. Tipo assim, uma... Tem outra palavra, que eu não estou lembrado, é sempre... Olha, eu sou uma pessoa que ajudo muito em casa, mas eu sempre fiz isso. Mas quando eu fazia, eu achava... Hoje eu faço porque... Mas sempre eu gostava de fazer. Tudo o que eu fazia antes em casa é porque eu gostava de fazer mesmo. Eu não fazia por dizer assim, "não, eu fiz isso e agora tu vai ter que fazer isso". Não, eu fazia porque... Como eu faço hoje também. Tipo mesmo uma parceria... Não, é outro nome. Mas tudo o que a gente faz tem que compartilhar com o outro. Eu acho que em tudo, dentro de casa, fora, a pessoa tem que ser... Como é que se diz? Assim, tem que trabalhar junto” 89 Para que tal parceria fosse espontânea de modo que o trabalho conjunto (baseado no compartilhar) favorecesse a relação, seria importante que as pessoas mudassem através de seus aprendizados, seria uma tarefa árdua e que demandaria tempo, mas necessária para uma relação satisfatória: “Porque na vida da gente... Se você quiser mudar, a gente vai mudando. Você não muda de uma hora para outra, não. E quando você vai mudando, vai aparecendo muitas dificuldades... Tudo isso eu estou aprendendo, porque eu não aprendi. É ver... Que eu não via antes... Então muitas coisas, como isso, eu fui aprendendo.” A contraindicação ética para uma relação apontada por Tim seria da ausência de parceria, visto que quando não há um elo que sustenta o casal, como pessoas que se constroem juntas, as dificuldades de se relacionar aparecerão e a relação pode chegar ao fim. “A partir do momento que não tem mais esse elo (a parceria) dos dois, as coisas começam a dar errado”. Tim classifica sua vivência masculina em 2 momentos: o primeiro se refere à vivência machista de sua masculinidade que o fez sofrer e suas parceiras também; e o segundo e atual se refere à experiência de uma luta própria para a desconstrução de seu machismo para a vivência de uma relação mais satisfatória. Chamei o primeiro momento de “Eu, machista!” E a segunda de “Desconstruindo o machismo de minha masculinidade”. Como “Eu, machista!”, Tim descreve-se como uma pessoa irredutível, impulsivo e egocêntrico: “Era que eu... Sempre eu era... O machista de sempre. Tinha que ser o que eu falasse, se não fosse, já era. Tinha que... Eu já saía fora e pronto”. Tim acredita que nesse seu primeiro momento, era um tipo de pessoa difícil de lidar e que as pessoas acabavam se afastando dele, além disso, sofria muito, porque suas tentativas de impor suas ideias causavam violência às pessoas e contra ele próprio. Tal funcionamento foi lhe gerando prejuízos como a separação causada nos dois primeiros relacionamentos, prejuízos esses que o fizeram uma pessoa solitária. E após conhecer 90 sua 3ª parceira 5 (a pessoa que recebeu uma educação diferente daquela recebida por Tim), ela se dispôs a ensina-lo como se relacionar de maneira mais satisfatória, foi quando necessitou rever sua masculinidade e seu machismo. “...então hoje é ela que diz para mim o que é certo, o que é errado. Aí o meu machismo foi... Eu tinha que deixar aquilo (o machismo) de fora. Esquecer! porque eu já tinha feito por muitos anos aquilo, nunca deu certo... “ No seu segundo momento “Desconstruindo o machismo de minha masculinidade”, Tim passou a questionar seus comportamentos machistas e avaliá-los com maior rigidez, focando nos aprendizados obtidos em sua atual relação. Para isso, vêm desenvolvendo recursos para monitorar e controlar seu machismo, como por exemplo, a percepção da “vinda” do comportamento machista e o exercício do silêncio: “Porque sempre fui um cara que eu compartilhei coisas diferentes que eu vivo hoje. O que eu aprendi é que eu vou ter que fazer o que eu comecei a fazer, no começo. Achava que eu era... Como eu falei, que eu era machista, às vezes ainda sou, mas às vezes quando eu quero entrar nisso aí eu me lembro e fico calado, porque eu não ficava calado. Então eu tinha muitas respostas na hora. Muitas das coisas que eu vejo, aí é para eu falar, como eu falava antes, eu deixo passar. Aí eu saio fora, porque eu... Aí eu deixo as coisas acontecerem”. Atualmente, apesar de ainda não ter conseguido desenvolver sua habilidade social do diálogo e preferir exercitar o silêncio e por vezes a esquiva perante um conflito, Tim acredita que desenvolveu mais sua humildade perante seu “ego estourado”, pois consegue perceber o quanto as suas palavras ofensivas doem nas outras pessoas, ou seja, o aspecto empático dele pode ter se desenvolvido durante a desconstrução do machismo pelo aprendizado de novas formas de lidar com as dificuldades relacionais. 5 Interessante ressaltar que sua atual parceira recebeu uma educação familiar no modelo cearense semelhante ao relatado pelo participante Odair, onde a disciplina era acompanhada pelo afeto, o que ajuda a desconstruir algumas noções ríspidas da educação nordestina. 91 “Hoje em dia eu resolvo as coisas diferentes, assim. Eu tento ver as coisas sem agressão, sem palavrão, mas fico sempre... Me silencio, fico por ali, tento resolver de um jeito que... De maneira diferente como eu resolvia primeiro. Pesquisadora: como é que o senhor resolvia antes? Ah, ficava falando... Se tivesse... O que eu estava fazendo de errado, eu ia lá em cima. Ia resolver lá. Falava, discutia e ameaçava, aquela coisa lá. E hoje em dia, não. Eu fico calado. Eu tenho mais humildade. Eu acho que é humildade. Aquilo... Fico... Tento resolver, mas de outras maneiras. Conversar já eu... Às vezes eu consigo. Às vezes eu fico mais calado do que conversar, assim. Pesquisadora: o que o senhor não consegue conversar? É porque as coisas... Ainda tem aquele... O meu ego sempre foi assim, meio... Ego estourado. Então se é de eu discutir com a pessoa, falar coisas que... Porque para muita gente a verdade dói. E para a gente também. Mas aí eu pego, fico calado, ou então saio, espero outro dia, em outra hora, para poder resolver, assim. Na mesma hora, assim, eu saio fora”. Em síntese, compreendi que a educação familiar do campo recebida por Tim o auxiliou na construção de uma subjetividade resistente ao sofrimento da pobreza, da violência como disciplina, do trabalho pesado, da posterior adaptação à vida na cidade. Porém, a referência da resistência acabou se associando à figura do pai e dos sujeitos agricultores de sua comunidade que conseguiam derrubar o pau à base do machado, mas não conseguiam lidar com suas próprias dificuldades emocionais, pois nesse contexto, não havia como apenas passar a foice no sofrimento. A necessidade de crescer logo e ter força, para não se parecer como um menino desprovido de masculinidade, o integrou a uma dependência química do álcool para se parecer com os sujeitos masculinos adultos, para se sentir forte. Quando a necessidade de modificar suas possibilidades no contexto exige do sujeito a transformação de suas significações, este passa a procurar sociabilidades com que possa compartilhar significações mais contextualizadas aos seus desejos, mas ao mesmo tempo que realiza esse movimento para atender a suas necessidades, recebe também limitações, outras próprias ao novo conjunto de significações compartilhadas como um processo de sujeição-sujeito de sua liberdadenova sujeição. Esse processo de transformação de significações, entretanto, carrega fatores limitantes, dados pelas estruturas orgânicas e ambientais, em estreita interdependência com o simbólico. Assim, elementos filogeneticamente determinados e culturalmente significados, limitam as condições físicas e psicológicas dos indivíduos para a ação, determinam ciclos de repetições necessários à própria sobrevivência e canalizam as ações mais para certas possibilidades e não para outras (Valsiner, 1987). Esta canalização varia ao longo da história individual e social e, no caso de representações e valores sociais, verifica-se uma maior persistência, com uma maior dificuldade de mudanças, exigindo por vezes verdadeiras crises e rupturas com relação a modelos antigos de pensamento e de afeto, (ROSSETTI-FERREIRA, 2000, p.14). 92 E tal dinâmica para lidar com as pessoas se estendeu aos seus colegas de bar e às suas parceiras, foi quando teve que perceber que tal funcionamento afastava as pessoas e o fazia sofrer. Mas para concluir tal percepção, necessitou perder relações até conhecer uma pessoa, que teve uma criação diferente da sua, para reaprender a lidar com os outros e consigo. O referido processo constituído por Tim e os fatos de sua vida produziu sentidos de ética nas relações que foram se transformando até chegar ao sentido de hoje e prosseguirá em formação para relações mais satisfatórias. O sentido ético de se desconstruir para conseguir ser parceiro do outro 6 em uma relação trata-se de um sentido recente para Tim, mas que para ele já vale à pena, pois está aprendendo e o que mais Tim dá valor nisso é a oportunidade de estar sendo ensinado, visto que nunca teve a oportunidade de ser ensinado com afeto, apenas com sofrimento. Hoje, aprende com afeto. O sentido ético defendido por Tim trata-se da necessidade de uma parceria espontânea (voluntária) entre o casal na relação, baseado no compartilhar e no trabalho conjunto pela relação. Tal trabalho conjunto necessita que as pessoas mudem, transformem suas subjetivações através dos aprendizados produzidos na relação. Compreendo que tal sentido ético permite-nos visualizar como a construção social da masculinidade está necessariamente inclusa na maneira como os sujeitos constroem suas éticas para lidar com o outro na relação de gênero, ou seja, no social indissolúvel do sujeito. “Quando afirmamos que os sentidos são elementos constitutivos e que expressam a subjetividade [...] estamos enfatizando a importância de uma dimensão subjetiva da realidade, entendida como uma síntese entre objetividade e subjetividade”, (AGUIAR et al, 2009, p. 64). Desta feita, reforço que trabalhar com sujeitos masculinos temas como relações de gênero e não se trabalhar a sua história e constituição da identidade de gênero é o mesmo que se tratar a doença de uma pessoa, jogando o seu corpo fora ou desativando suas funções orgânicas. Por esta configuração das problemáticas de gênero que este trabalho visou contribuir com políticas e intervenções que auxiliem na potencialização de relações mais satisfatórias pelas pessoas, através da desconstrução e ressignificação das identidades de gênero, considerando suas histórias e os recursos sócio históricos que a auxiliaram a se constituir à maneira como são atualmente, de forma que possam refletir suas constituições e seus funcionamentos vislumbrando formas mais libertárias de vivenciar suas identidades de gênero e suas 6 Aludo aqui ao conceito de “artesanato cotidiano de si” de Foucault (2012). 93 relações. Contribuir para refletir a construção de políticas que possuam uma finalidade prática de alcance dialético geral /singular dos sujeitos, suas relações e os fenômenos que vivenciam. ‘ Estamos bem longe de uma forma de austeridade que tende a sujeitar todos os indivíduos da mesma forma, [...], sob uma lei universal [...]. As poucas grandes leis comuns à da cidade, da religião, ou da natureza que permanecem presentes, mas como se elas desenhassem ao longe um círculo bem largo no interior do qual o pensamento prático deve definir o que convém fazer. E para isso ela não tem necessidade de algo como um texto que faça as leis, mas de uma techné ou de uma "prática" de um savoir-faire que, levando em conta os princípios gerais, guie a ação no seu próprio momento, de acordo com o contexto e em função de seus próprios fins. Portanto, não é universalizando a regra de sua ação que, nessa forma de moral, o indivíduo se constitui como sujeito ético; é ao contrário, por meio de uma atitude e de uma procura que individualiza sua ação que modulam e que até podem dar um brilho singular pela estrutura racional e refletida que lhe confere. (FOUCAULT, 2012, p. 77) A contraindicação ética para uma relação defendida por Tim como a ausência de parceria representa a importância que ele dá para a vinculação, para a cumplicidade do casal. Como a relação, para Tim, é uma oportunidade para se melhorar para si e para o outro, essa parceria denota o trabalho conjunto e a cumplicidade de ambos. Tim centraliza nos relacionamentos amorosos, a experiência afetiva que não alcança com familiares e amigos. É como se o afeto só pudesse ser vivenciado e desfrutado em relacionamentos amorosos, sendo a família e amigos, outro tipo de experiência relacional. Tanto que Tim não menciona amigos, pois seus amigos são deus e sua parceira, além disso, não menciona relacionamentos significativos com familiares em seu relato de vida. Ele relatou que perante frustações amorosas, recorreu ao álcool para lidar com o problema, visto que amigos e familiares não se configuravam como recurso de apoio e desabafo. Essa centralização do afeto no relacionamento amoroso, que não se estende a outras relações que poderiam lhe oferecer suporte, acaba prejudicando Tim ao lidar com a frustração, pois a bebida se representa como um remédio, em que o efeito desta permite um sofrimento solitário, sem o julgamento de terceiros, visto que é no bar onde se afogam as mágoas e liberam-se as amarras. Na contemporaneidade, beber e ouvir músicas de amores e paixões frustrados configura-se como um processo de subjetivação para as pessoas que passam por isso, pois as letras das músicas falam sobre seu sofrimento e os bares se representam como espaços de vivência “aceita” deste sofrimento, visto que são os lugares daqueles que vivem a “sofrência” ou que procuram 94 outro relacionamento, visto que o seu não deu certo. Tanto que as músicas de bastante sucesso no Brasil se centralizam em temas como amar, beber, sofrer, bem como, ficar solteiro e afirmar que a fila anda. São formas de lidar com o sofrimento que não se configuram como disposição à reflexão e construção de habilidades para lidar melhor com as relações, nesses espaços há a catarse do sofrimento, mas há também a banalização das relações (a fila anda) e a cristalização do afeto como algo complexo e que causa sofrimento (amar é sofrer e isso nunca vai mudar). Refletir estes contextos e ocorrências é importante visto que “os ‘pares’, a ‘turma’, o ‘pessoal’, que se reúne no futebol, no bar, na rua, fazem parte da socialização de meninos e rapazes e têm grande importância na construção das masculinidades” (DA MATTA, 1997, BARKER, 1998, 2000, CONNELL, 2000 apud NASCIMENTO, 2001, p. 58). Os bares como únicos espaços para tais processos de subjetivação podem deixar de ser a opção mais eficaz, se existisse a possibilidade de espaços psicossociais de trocas, de reflexões das relações, das performatividades de gênero e de significação dos afetos. Apoio iniciativas como a de Nascimento (2001) com grupos de homens, onde o autor compreendeu que: Existe um silêncio em torno do cotidiano da vida privada dos homens. Ter espaços onde se possa desaprender esse silêncio, sem julgamentos ou críticas a piori, refletir sobre as formas que aprenderam para condução de suas vidas no mundo privado e público, construir formas alternativas a uma condição masculina conectada com o sistema hegemônico, nos parece uma alternativa interessante para desconstruir esta mesma hegemonia. (NASCIMENTO, 2001, p.59). A identificação de 2 momentos na construção de sua masculinidade através das relações, revela-nos que Tim é uma pessoa que experimenta um momento na contemporaneidade em que sujeitos masculinos estão aderindo à necessidade de refletir suas performatividades para conseguir lidar com as transformações vividas pelas mulheres, onde as relações passam a ter demandas diferenciadas em relação a outras épocas. Tim pode se tratar do tipo de masculinidade hegemônica7 (“Eu,machista!”) que vem buscando entrar em um processo de desconstrução de si para a vivência de uma masculinidade crítica8 (“Desconstruindo o machismo de minha masculinidade”). Utilizo a categorização da masculinidade nesse momento, mas apenas para título didático, 7 8 Connell (1987) Bento (2012). 95 porque o que quero dizer é que os homens de educação machista vêm necessitando desenvolver masculinidades mais libertárias para si e suas parceiras nas relações contemporâneas, pois alguns funcionamentos deste sistema já enfrentam sérias barreiras na sociedade em que o feminismo e a diversidade sexual expandem suas ideias e posicionamentos. Claro que existem performatividades masculinas que encontram nessas barreiras um estímulo para se cristalizar ainda mais em seus posicionamentos, mas sujeitos masculinos como Tim, tentam transformar a si a ponto de querer reaprender através da produção de novas habilidades para o lidar. Tim pode não seguir exatamente o que seria a masculinidade hegemônica a caminho da masculinidade crítica, pode ser que ele esteja em um percurso em que se classificaria outro tipo de masculinidade, mas o que ressalto aqui é esse movimento que é importante para essas pessoas, são possibilidades, são criatividades para viver satisfatoriamente uma relação, por mais difícil que seja essa desconstrução psicossocial, onde habilidades sociais, afetos e atitudes estejam necessitando nascer ou funcionar por outro ângulo 9 . Deixo essa análise para outros trabalhos e centro-me em concluir minha análise de seu sentido ético de relação de gênero. Tim nos traz a referência de que a ética pode ser a reflexão que fundamenta a atitude de viver uma relação, para com o outro se aprender a ser melhor para si, sendo melhor para esse outro. Ou seja, a dialética em que a ética se configura, demanda-nos ações sobre como se convém nos conduzir em uma relação com outro, só que para isso, a minha constituição vai se modificar quando a relação com esse outro me demanda desenvolvimentos diferentes do que já possuo na relação para comigo, na minha constituição psicossocial. Ou seja, será possível ser ético se eu me dispuser a me modificar para mim na relação para esse outro também. Se eu quiser uma relação satisfatória, necessitarei refletir como devo me conduzir para uma relação que seja conveniente para ambos, e quando se precisa ser conveniente para o outro, eu necessitarei me modificar para essa relação, assim como o outro para viver essa relação comigo. Essa dinâmica foi descrita por Foucault (2002, p. 161) ao se referir à 9 É válido ler o artigo de Silva et al (2015) que se utiliza dessa perspectiva para trabalhar com homens autores de violência. A proposta de intervenção foi promover um espaço grupal diferenciado de escuta e diálogo, para que os autores aprendessem a analisar os mobilizadores sociais, culturais e psicológicos de suas condutas e transformassem seus modos de lidar com os outros e consigo mesmos de forma a serem capazes de promover diálogos (interpessoais e intrapessoais) pautados no reconhecimento e cuidado dos direitos e desejos de cada pessoa. 96 Econômica formulada por Hierocles “o casamento exige um certo estilo de conduta em que cada um dos cônjuges leva a própria vida como uma vida a dois, e em que, juntos, eles formam uma existência comum”. É difícil até tentar explicar isso em um texto, imagine refletir isso no dia a dia corrido das relações nos tempos atuais. Por isso a necessidade de se possibilitarem espaços de reflexões das relações para sujeitos masculinos e femininos. Espaços de atenção psicossocial para a reflexão ética da vivência nas relações afetivas podem contribuir para a desconstrução de uma sociedade que hoje se baseia em heranças positivistas que se referendam através de procedimentos, métodos, padrões, classificações, cristalizações e ideais. Pode-se favorecer a reflexão de que os relacionamentos não vêm com manuais e as pessoas não são programáveis, elas convivem e produzem dinâmicas e fluxos próprios para viver satisfatoriamente, mas para isso, necessitam ser empoderados para a potencialização de suas reflexões, para a resolução de seus problemas, para a ressignificação de seus valores e de seus conceitos. 3.2.4. Milton – o diálogo como sentido de respeito e confiança que favorece o exercício ético para a manutenção satisfatória da relação de gênero. “Tem que ter respeito, respeitar um ao outro e confiar um no outro, que é uma coisa que tem que ter porque se não tiver, não vão viver juntos, não vive com qualidade nenhuma, e ajudar, conversar, entendeu? Diálogo!” Milton é pedreiro de 37 anos de idade que já viveu 3 relacionamentos significativos em sua vida e atualmente é solteiro. Segundo ele, os relacionamentos com a mãe e irmão, bem como os conjugais, ensinaram-no a ser honesto e honrar com seus compromissos com respeito, confiança, cumplicidade. Tais aspectos poderiam ser resultantes de relações que favoreceram o diálogo para uma relação satisfatória. Apesar de ter vivenciado violências em alguns relacionamentos, preferiu se constituir como um homem tranquilo e não adepto à violência, porque do contrário, poderia ser agredido por suas parceiras. Escolheu permanecer solteiro até encontrar a mulher “certa” para se relacionar e viver mais feliz, vive atualmente sozinho com o filho. Antes de abordarmos o núcleo de significação revelado por Milton, vejamos sua história de vida. Milton é natural de Manaus/AM, viveu uma infância "boa" de brincadeiras e estudo. Estudou até a quinta-série. É filho de mãe solteira que trabalhava como operária no distrito. O pai o ajudava apenas financeiramente na infância, mas somente até os 7 97 anos, e como demonstrava não gostar de oferecer tal ajuda, a mãe se cansou e informou ao filho que seria melhor ambos trabalharem para não dependerem do pai. Então, Milton foi ser ajudante de mestre de obras aos 14 anos. Aprendeu a profissão com um mestre de obras conhecido de seu irmão. Na época estava completando 14 anos e pesava cerca de 50 kg, porém, os pacotes de cimento tinham o mesmo peso e o mestre não via potencial nele para ajudar na obra, mas a partir da insistência de Milton, incluiu-o na obra. Desejou trabalhar porque "em casa morava nós, eram 05 irmãos tudo pequeno, aí eu parti para esse ramo de construção civil". Deste modo, precisou deixar os estudos aos poucos "aí foi tempo que a gente foi crescendo e foi largando o estudo e pensando no futuro para trabalhar, quer dizer, nós não pensamos no estudo na verdade". Chegou a ser vendedor de picolé e jornal, mas acabou voltando para a construção civil, pois acreditava que era de onde conseguia uma renda melhor, apesar de ser "pesado". “Aí... fui trabalhando, trabalhando, aí fui desenvolvendo, fui desenvolvendo, fui crescendo". Trabalhou ainda no distrito industrial, mas seu irmão o aconselhou a se profissionalizar na construção civil, então seguiu o conselho e trabalhou como ajudante até conseguir uma oportunidade como pedreiro. Construiu sua casa nos fundos da casa da sua mãe. Sua mãe hoje é aposentada, tem um irmão ferreiro, outro mecânico e 2 feirantes. Para se divertir, costuma beber com os colegas da obra depois do futebol, no final de semana em que recebem. Possuía uma boa relação com os irmãos, com exceção do irmão mais velho, porque tinham conflitos em função dele ser "mandão". Com a mãe, aprendeu a ser responsável e nunca "deixar de honrar com seus compromissos". Durante a juventude, não gostava de festas, apenas de trabalhar. Começou a beber aos 17 anos, pois "geralmente quando trabalhava assim trabalha avulso, você recebe por semana, então você juntava com os colegas, 05, 06, tem pedreiro, servente, carpinteiro, pintor, eletricista ‘Para aqui, vamos tomar uma cerveja’, a semana todinha trabalhando por que a gente não pode tomar uma cerveja, né? Ninguém é de ferro, é isso que eu falo, paremos lá ‘Ah não, não quero’, ‘Toma aí rapaz’, então bastou estar lá, foi aí que até hoje, não é assim, mas é dia de vale e dia de pagamento". Entre seus dois relacionamentos mais duradouros, viveu um na juventude que durou 3 anos, mas terminou porque ela tinha um filho e precisou mudar de estado.Com ela aprendeu "a ser uma pessoa honesta, digno do que fazer e honrar com os compromissos". Próximo de completar 15 anos saiu de casa para morar sozinho pagando aluguel, pois vivia atritos com o irmão mais velho que era muito rígido. Uma dificuldade que vivenciou foi o fato de, por ser menor de idade, não poder trabalhar. 98 Os momentos mais prazerosos que viveu foram quando jogava bola. Aos 19 anos viveu sua primeira união estável, o relacionamento durou 7 anos e acabou, pois, sua esposa tinha muito ciúme dele e sentiu-se sufocado frente às cenas feitas por ela. Segundo Milton, eram acusações inventadas por ela. Teve dois filhos com essa companheira. Durante o relacionamento, sua esposa tentou matá-lo por sufocamento com o travesseiro por ciúmes. O segundo relacionamento durou 6 anos e não deu certo porque a sua esposa já possuía um filho e ao ter um filho de Milton, ela gostava de sair e não cuidava da criança que chegou a adoecer, então ele decidiu se separar. O terceiro relacionamento durou 2 anos e acabou porque a esposa não tratava bem o filho de Milton e muitos conflitos foram gerados por isso, então decidiram se separar, principalmente porque ela chegou a agredir a criança. Milton se considera "um cara tranquilo, nunca procurei, assim, de responder, falar, gritar, sempre converso, sempre converso". Mora sozinho com o filho mais novo, os demais moram com a primeira esposa. Atualmente é solteiro, acredita que ainda não achou a pessoa "certa" para casar. Possui amigos do tempo de sua infância e se relaciona bem com eles. Considera a mãe e um irmão como pessoas que mais o ensinaram sobre a vida e com quem tem um bom diálogo. Uma de suas principais lembranças da adolescência foi o fato de ter se apaixonado por uma moça e se envolvido com ela, mas com pesar relatou que ela foi morta na idade adulta em função de violência contra a mulher cometida por seu atual companheiro. Nunca ouvir falar nas palavras "gênero" e "ética", mas ao receber a explicação do que investigamos como ética na pesquisa, ele respondeu que ética quer dizer "respeito". Em suas relações, perante conflitos, "preferia ficar quieto, calado, porque senão ia até apanhar". Milton relatou uma história de vida em que foi abandonado pelo pai, mas recebeu o suporte da mãe que assumiu sua educação sozinha e dos demais filhos. Recebeu uma educação baseada no afeto e no trabalho como responsabilização para um futuro “melhor”. Admira bastante sua mãe que é caracterizada por ele como “guerreira e batalhadora”. Aprendeu a dar valor ao trabalho e ao diálogo para uma vida desprovida de pobreza e com parceria desenvolvida com as mulheres com quem teve relação conjugal. Palavras como respeito, ajuda, confiança e diálogo foram frequentemente usadas por ele ao se referir a uma relação. Segundo Milton, seus 3 relacionamentos anteriores não obtiveram êxitos por motivos de ciúmes, separação geográfica e agressão ao seu filho por parte de suas parceiras. 99 A pesquisadora questionou o participante sobre o que ele acreditava ser uma forma de se conduzir em uma relação para que esta fosse satisfatória para o casal. Entre seus principais argumentos, Milton destacou que o diálogo como demonstração de respeito, cumplicidade e confiança. Para ele, o diálogo possui o sentido destes 3 aspectos mencionados e se classifica como ética para Milton. “O que favorece um relacionamento, na verdade, é você ter respeito, conversar com seu companheiro ou companheira, que às vezes você passa o dia trabalhando aqui em uma empresa dessas, no solzão quente, é encarregado ‘Vem para cá, faz aquilo, vem para cá’, o que acontece aqui em um canteiro de obra você tem que deixar aqui no canteiro de obra, não levar para casa, entendeu, porque geralmente você está com cabeça quente, aí você sai daqui você chega em casa, você joga em cima da sua esposa, que não tem nada a ver. Então, a mesma coisa a sua esposa, a esposa que está em casa esperando por você, que você vai chegar na porta de casa a mulher vem com uma cara desse tamanho, já vai logo te xingando, vai falando, entendeu. Então esse negócio de pessoas que se amigam juntas tem que ter respeito, respeitar um ao outro e confiar um no outro, que é uma coisa que tem que ter porque se não tiver, não vão viver juntos, não vive com qualidade nenhuma, e ajudar, conversar, entendeu? Diálogo! ‘Como foi teu trabalho?’, é isso”. O participante defendeu a assunção das tarefas domésticas pelo homem como demonstração de cumplicidade que favorece a vivência de uma relação satisfatória para ambos, o que denota a desconstrução dos papéis cristalizados de gênero quando se refere que se orgulha em lavar roupas melhor que suas parceiras: “todas as mulheres com quem eu convivi nunca esperei por elas, eu sempre procurei fazer, não esperar por elas, sempre ajudando elas a dar conta, tanto é que quando eu vivia com elas eu lavava roupa melhor do que elas, não sei se era para me enganar, mas roupa branca para mim tem que ser bem branca mesmo, bem limpinha, se tiver um pretinho para mim já está suja, aí para mim é uma coisa que eu gosto de coisa branca limpa”. Além da responsabilidade mútua pelo cuidado da casa, o participante defendeu também, que a cumplicidade nos afazeres domésticos está relacionada ainda a busca do entendimento do outro, de sua rotina. Para ele, o trabalho fora de casa equivale-se ao trabalho doméstico, visto que demandam o mesmo nível de dificuldades tanto para a mulher que fica em casa, quanto para o homem que sai para trabalhar, e quando se busca considerar essa dificuldade vivida por ambos, exerce-se a cumplicidade e desenvolve-se a igualdade. “Eu procurava no máximo entender, entendeu, entender porque quando está em casa tem uma dificuldade porque ‘Ah porque em casa eu faço isso e aquilo, não! é que nem no teu trabalho, aqui a gente lava, passa, tudo isso’ ”. 100 Ao se referir às contraindicações éticas para uma relação, Milton ressaltou que a agressão é algo que dificulta a vivência da relação por se configurar como uma atitude contrária ao diálogo, ao afeto, ao cuidado e à valorização do outro. “Quando tem discussão você passa para agressão, então a melhor coisa que você tem que ir é conversar, resolver, melhor coisa que você tem é resolver conversando...a pessoa quando gosta... Uma pessoa quando gosta de outra pessoa ela não bate, não maltrata, entendeu, procura dar valor, cuidar daquela pessoa”. Milton descreve-se como um sujeito masculino adepto ao respeito, à franqueza, à coerência e à cordialidade através do diálogo e da tranquilidade, visto que já foi agredido e já foi vítima de tentativa de homicídio. Segundo ele, necessitou desenvolver tais habilidades porque caso tentasse reagir às suas companheiras durante conflitos, corria o risco de ser agredido, "preferia ficar quieto, calado, porque senão ia até apanhar". Com a mãe, irmão e companheiras aprendeu a respeitar as pessoas, bem como, a respeitar a si, visto que devido suas relações não terem êxito, preferiu ficar sozinho e ser mais criterioso com a busca de uma parceira, pois não queria viver relações de violência ou maiores diferenças por enquanto, por isso estava solteiro e morava com o filho, responsabilizando-se pela educação do menino. As figuras da mãe e do irmão o orientaram na constituição de sua masculinidade para a responsabilidade, a coerência, a autonomia e o respeito. Milton procurou se distanciar de figuras de violência e desrespeito como suas ex-parceiras e seu pai, tentando centrar-se em figuras que reforçassem em si o respeito e o diálogo para a vivência do afeto. “O que eu sou, eu sou um cara sincero, gosto de respeitar, gosto de conversar, que é uma coisa que eu gosto ... então eu gosto de ser sempre correto, com coisa certa, tem que ser certo para mim, e conversar e dizer o que é verdade, se é verdade é verdade, se é mentira é mentira, então falo a verdade...Eu sempre fui um cara tranquilo, nunca procurei, assim, de responder, falar, gritar, sempre converso, sempre converso”. Em suma, compreendi que Milton ao se referir à constituição de sua masculinidade como um processo em que aprendeu a ser adepto ao diálogo e ao respeito para uma relação, em poucas situações se refere a palavras como amor, paixão e afeto. Pela maneira como ele descreve o desenvolvimento de suas relações, Milton considera a ética de ser respeitoso através do recurso do diálogo como antecedente à produção afetiva na relação. Ou seja, o afeto pode ser algo desencadeado pelo estabelecimento do 101 respeito ou durante o desenvolvimento da relação. Tanto que hoje, Milton procura a parceira “certa”, ou seja, alguém que possua os “requisitos” para uma relação satisfatória. Suas experiências conjugais o ensinaram como um relacionamento pode ser insatisfatório, então Milton, hoje tem o cuidado de procurar se relacionar somente com quem possa favorecer junto com ele essa relação satisfatória buscada. Percebi que o participante sabe o tipo de pessoa com quem não quer se relacionar hoje, porém, ele demonstra não saber como encontrar essa pessoa e nem qual seria o tipo de pessoa que o atrairia para uma relação. Conclui que preferindo manter-se solteiro, Milton reflete sobre isso enquanto fica consigo mesmo e seu filho. Milton foi educado por uma mãe independente que se lançou a trabalhar no distrito industrial para sustentar os filhos enquanto o pai os rejeitava. Ela ensinou as crianças a trabalharem e se responsabilizarem pela situação econômica da família. Tal processo pode ter ensinado Milton a cuidar da casa e a valorizar o trabalho da mulher fora de casa, considerando o peso que as tarefas de casa exerciam também sobre ela, fato que o ajudou a compreender a questão feminina do trabalho e da multijornada e o sensibilizou a colocar-se mais facilmente no lugar delas. Tais ensinamentos podem ter ajudado Milton na desconstrução de alguns papéis cristalizados de gênero e a acreditar que através da cumplicidade nos afazeres de casa, seria possível obter uma relação mais igualitária que favoreceria a satisfação de ambos na relação. Milton se negou a identificar-se com o irmão “mandão” e acabou se identificando mais com o irmão adepto ao diálogo, o que contribuiu também com sua constituição masculina. Sua socialização ocorreu com colegas de rua e depois com colegas de trabalho e segundo ele, a necessidade de se socializar, exigia também o cumprimento de rituais para ser reconhecido como homem, o que o aproximou do álcool. E tal socialização se tornou seu momento de lazer. Porém, a socialização masculina pela qual passou, favoreceu a inclusão em um grupo, mas não favoreceu a interação de afetos como o desabafo de problemas, segundo Milton, ele não tem amigos, assim como Tim, amigos só considera a mãe. Percebi que essa construção social da masculinidade é feita por referências familiares, por necessidades, por preferências, bem como por estratégias de autopreservação, dentre outros. 102 [...] os sentidos não são respostas fáceis, imediatas, mas são históricos. Constituem-se a partir de complexas reorganizações e arranjos, em que a vivência afetiva e cognitiva do sujeito, totalmente imbricadas na forma de sentidos, é acionada e mobilizada. A mobilização interna e a qualidade desses arranjos e rearranjos vão depender tanto do momento específico do sujeito, como das condições objetivas geradoras da mobilização. Essa situação, como uma totalidade, afetará e tencionará, de modo especial a algumas zonas de sentidos (específicas, apesar de fluidas e contraditórias), não necessariamente ligadas, de modo claro e direto, à situação específica estimuladora, mas àqueles sentidos que, pelo seu ‘tom emocional’ (Vygotsky, 2003), foram naquele momento, mais intensamente acionados. Seguramente, tais sentidos foram constituídos ao longo da história do sujeito, a partir de situações outras, contendo outros apelos, tanto cognitivos quanto afetivos” (AGUIAR et al., 2009, p. 63-64) Refletir essa construção social da masculinidade seria uma forma de compreender como as masculinidades se tornaram o que são hoje e que masculinidades gostariam de se tornar para relações satisfatórias. Espaços de reflexões da construção social da masculinidade e das relações poderia ser uma oportunidade para questionar as funções rituais como a socialização pelo álcool vivida por Milton e a essencialidade do imperativo de que um sujeito homem não deve ter amigos, porque não deve confiar seus sentimentos a outros homens. O sentido de ética de Milton trata-se do diálogo como demonstração de respeito, cumplicidade e confiança. Pode-se perceber que as experiências positivas e negativas de relações vividas por Milton o auxiliaram a construir sua masculinidade e seu sentido de relação atual, onde refletindo sobre o que seria mais coerente Milton busca “acertar” em suas novas relações, refletindo sobre elas de forma que procura uma pessoa “certa” para se relacionar, e nesse interim, prefere permanecer solteiro. Tal conduta pode apresentar Milton como uma masculinidade reflexiva em relação a um ideal de relação que acredita ser conduzido pelo respeito e o diálogo. Ele sabe o que quer, mas reflete sozinho isso, sem a participação de um outro nesse processo, por isso, pode ainda se referir a uma relação ideal. Quanto a sua contraindicação ética para uma relação, Milton mencionou a agressão entre o casal. Ele afirmou que nunca usou de violência com suas parceiras, mas que já foi vítima de agressão por elas. Ao ser perguntado se alguma vez fez boletim de ocorrência sobre a agressão, respondeu que não, demonstrando inicialmente que não se tratava de algo comum e depois certa vergonha. Não tem como saber se Milton chegou a agredir também suas parceiras, mas sabe-se que já foi vítima da violência conjugal e se calou. Considerar a violência como um funcionamento conjugal em que neste há o compartilhamento de significações que constroem sentidos éticos distintos e 103 consonantes entre os sujeitos da relação e que esses sentidos éticos se refletirão em condutas de um para o outro, trata-se de uma possibilidade para pensarmos a ética que sustenta a violência ou que a encerra na relação. Ao invés de apenas se pensar os lados da violência, há a necessidade de pensar o funcionamento das relações violentas e as éticas sustentadas pelos componentes do casal na referida relação que faz a manutenção desta, que a torna um ciclo violento. Os parceiros de interação, através de suas ações, podem lançar um recorte ou interpretação diversa, resultando no confronto e necessidade de negociação de novas significações as quais, por sua vez, irão reestruturar o contexto e a rede de significações do sujeito e dos demais parceiros. Desta forma, segundo esta visão de desenvolvimento, não cabe uma perspectiva evolutiva em um sentido sempre ascendente. A construção de significações por parte do sujeito ocorre em negociações dinâmicas e permeadas por crises, que determinam, sempre, a perda de outras possibilidades, por vezes até então existentes, ou que não chegam a se efetivar. (ROSSETTI-FERREIRA, 2000, p.21). O respeito e o diálogo como conduta ética para uma relação de gênero satisfatória revela que, a construção da masculinidade de Milton baseada no respeito, franqueza, coerência e cordialidade, reflete-se no sentido dele sobre como se conduzir em uma ralação para a satisfação do casal. Ou seja, compreendo que para se pensar as relações necessita-se incluir nesta reflexão a construção social das identidades de gênero. Além disso, Milton destaca em suas falas que o afeto não seria o principal componente de uma relação satisfatória, mas o funcionamento dela baseado no diálogo como demonstração de respeito seria fundamental. O participante indica a possibilidade de que uma relação possui uma complexidade que precisa ser refletida, visto que nela existe a necessidade do afeto, mas também de um funcionamento igualitário e para isso, os componentes do casal precisam desenvolver o recurso do diálogo para compatibilizar o respeito às necessidades da relação e das suas performatividades de gênero. 3.2.5. Chico – a parceria como ética para uma possível simetrização na relação. “Tudo o que a gente faz, tudo o que a gente decide, tudo o que a gente trabalha junto. Tudo isso é conversado, não é, "ah, vou fazer... Não!”. Tudo é conversado....Graças à Deus. Nós vendemos muito Romanel, nós vendemos Jequiti, aqui e na obra dela. A gente vai vivendo... Eu acho que relacionamento é aquelas pessoas que vivem junto bem, trabalham, se esforçam...” Chico é um pedreiro de 32 anos de idade que já viveu 1 relacionamento que durou 10 anos e atualmente, vive outro há 3 anos. O primeiro relacionamento o ensinou 104 a necessidade do diálogo, do carinho e da parceria para que uma relação se tornasse satisfatória. No atual relacionamento, vivencia tais aspectos e julga-se bastante satisfeito com a maneira como a relação é conduzida por ambos. Antes de abordarmos o núcleo de significação revelado por Chico, vejamos sua história de vida. Chico é natural de Manaus/AM, filho de pai pedreiro e mãe lavadeira, a família era composta por 12 filhos. Sua mãe era muito esforçada e seu pai muito trabalhador e ambos possuíam uma relação de bastante união entre eles e carinho com os filhos. Aprendeu a ser trabalhador com os pais. Desde os 8 anos trabalhava com o pai que era pedreiro e também carpinteiro. Aos 10 anos foi morar sozinho em casa alugada porque queria "crescer na vida", nessa época trabalhou como caseiro na residência de um mecânico que precisou viajar. Aos 13 anos foi contratado por uma instituição para trabalhar como aprendiz, qualificou-se e permaneceu trabalhando no mesmo lugar até a vida adulta. Morou em abrigo para conseguir a função de aprendizagem e depois de 2 acidentes de trabalho, pediu demissão, passou 9 anos nessa instituição. Em seguida, foi morar no interior e passou 3 meses lá, onde conheceu sua primeira esposa, viveram 10 anos juntos. Nessa época, trabalhou 6 anos no distrito industrial como ajudante de carga e descarga e depois conferente e conferente líder. Sua esposa não trabalhava apesar dos incentivos de Chico para que ela trabalhasse também. A união estável acabou porque a relação "esfriou", além disso, Chico reclamava que ela não possuía iniciativa para resolver os problemas. Ele construiu uma casa para ela e seus 3 filhos e a deu. Depois do primeiro relacionamento, Chico ficou sozinho e hoje está há 3 anos casado com uma nova esposa que o pegou de surpresa ao organizar o casamento no civil sem comunicá-lo, mas ficou muito feliz com a iniciativa desta. Ela já possuía 2 filhos de um relacionamento anterior e hoje ambos vivem com o casal. A esposa também é da construção civil e trabalha como rejuntadora. Chico possui relação estável, segundo o mesmo, com os 3 filhos da primeira relação, vendo-os no final de semana e paga pensão para estes. Em seu atual relacionamento, demonstra-se muito satisfeito, porque "tudo é conversado" e porque "a gente trabalha junto". Acredita que o diálogo e o carinho são muito importantes para uma relação, fato que aprendeu com o primeiro relacionamento amoroso que não deu certo pela ausência disso. Chico não sabe o que significam as palavras "gênero" e "ética". Estudou até a quinta-série. Uma recordação boa que possui foi o fato de trabalhar em equipe quando estava empregado como aprendiz. Uma recordação difícil foi a vida morando sozinho. É pedreiro há 3 anos. Foi trabalhar na construção civil porque era uma forma de "ganhar 105 mais", mas pensa em ter um negócio próprio junto com a sua esposa. Para “desestressar”, consome álcool. Para resolver os conflitos intra-conjugais, gosta de conversar "tudo o que acontece, as diferenças a gente conversa". Chico relatou uma história de vida em que seus pais e irmãos se relacionavam com afeto e união. Vivendo uma infância pobre, começou a trabalhar muito cedo, chegando a morar sozinho no início de sua adolescência. Orientado pelo objetivo de “melhorar de vida”, sempre trabalhou bastante e não tinha tempo para “namoricos”, priorizando sua renda e seu desempenho no trabalho. Após viver um relacionamento que não deu certo porque este “esfriou” (sem carinho e sem diálogo) e porque sua esposa não tinha “iniciativa para nada”, ficou sozinho e em seguida encontrou uma pessoa com quem vive até hoje, uma parceira com perfil diferente de sua primeira esposa, alguém que possui iniciativa e é adepta do diálogo e do carinho para “crescerem” juntos. A pesquisadora questionou o participante sobre o que ele acreditava ser uma forma de se conduzir em uma relação para que a mesma fosse satisfatória para o casal. Entre seus principais argumentos, Chico destacou a necessidade do diálogo de iniciativa dos dois componentes da relação, para uma cumplicidade, para uma parceria, para acordos. “no casamento a gente tem que ter conversa, em uma família tem que ter conversa tanto da mulher como o homem. Onde ele está errado, onde a gente pode consertar... Eu acho que relacionamento é aquelas pessoas que vivem junto, bem, trabalham, se esforçam para ter aquilo... Eu acho que, eu falo com ela assim, tudo o que acontece, as diferenças a gente conversa. A gente vai passear, "bora.", a gente vai trabalhar junto, "bora.", entendeu?”. Para complementar seu sentido ético de relação de gênero, Chico afirmou que o diálogo é capaz de combater o individualismo e favorecer o atingimento de objetivos de vida ao produzir cumplicidade, acordo, metas, responsabilidades e trabalho em conjunto para viverem uma estabilidade financeira e conjugal. “Tudo o que a gente faz, tudo o que a gente decide, tudo o que a gente trabalha junto. Tudo isso é conversado, não é, "ah, vou fazer... Não!” Tudo é conversado....Graças à Deus. Nós vendemos muito Romanel, nós vendemos Jequiti, aqui e na obra dela. A gente vai vivendo... Eu acho que relacionamento é aquelas pessoas que vivem junto bem, trabalham, se esforçam para ter aquilo, para comprar alguma coisa, um objetivo na vida.. ela diz: "olhe, tem um serviço pra gente fazer, quer ir lá?", eu digo, "bora.". Um ajudando o outro. Uma vez estava, ela é rejuntadora, ela pegou um contrato para fazer sábado e domingo e eu fui com ela”. 106 Chico se refere ainda aos efeitos do diálogo. Ele percebe que quanto mais o diálogo for desenvolvido, maior será a capacidade de os componentes do casal serem empáticos um com o outro e assim, alcançarem uma satisfação para ambos através da relação. “É. Essa aí tudo que a gente pensa quando eu vou falar ela já tinha falado, tudo dado certo, graças à Deus”. Em contrapartida, a contraindicação ética para uma relação mencionada por Chico se trata da “falta de diálogo e carinho” da parte de ambos. Segundo o participante, há uma importância do diálogo e do afeto entre os componentes do casal, mas ele complementa que a iniciativa em relação a esses dois aspectos se deve a ambos e não somente a um, além disso, precisa ser espontânea. Chico não usou de uma descrição para dizer sobre sua masculinidade, mencionou apenas que o aspecto importante de sua performatividade masculina é o fato dele incentivar suas parceiras a trabalharem, a buscarem “algo melhor” porque relacionamentos acabam e estas precisam garantir algo para si, sendo autônomas. Por ter colegas mulheres, incentivava estas, bem como sua parceira a se desenvolverem financeiramente, para conquistar sua independência em seus relacionamentos: “Eu sempre incentivava as mulheres, no caso ela ou as outras que eu converso porque eu tenho muita colega mulher e eu digo assim, "olha, vocês têm que arrumar um trabalho porque, às vezes, nem tudo dá certo para nós””. Chico apresenta uma performatividade masculina baseada nos valores do trabalho e da igualdade, isso se reflete em suas relações quando se refere ao seu relacionamento conjugal como um trabalho em equipe para o desenvolvimento da família com afeto e parceria, em que desconstrói concepções cristalizadas de gênero que julgam a mulher como representante do lar. Sua esposa é rejuntadora e trabalha em uma obra, exercendo um trabalho no mesmo ramo que o seu e ambos trabalham bastante para conseguir estabilidade na vida e criarem os filhos. Como seus pais que trabalhavam fora de casa, Chico se referenda nesse tipo de relação para viver a sua. Além disso, aprendeu com o relacionamento anterior as atitudes que ajudam um relacionamento a 107 falir e compreendeu o que necessitaria desenvolver na sua próxima relação para que ela fosse satisfatória. O participante se foca bastante em seus desempenhos e se demonstra flexível para aprendizados que o ajudem a desenvolver sua vida. Desta feita, percebi que Chico procura em sua parceira valores que se assemelhem aos dele, porque se apega aos valores que dão certo e o distanciam do retrocesso, mas também se demonstra aberto a novos aprendizados que o ajudem a evoluir, tanto que acredita que o diálogo que produz os acordos é sua principal ferramenta para lidar com os problemas e com necessidades para o desenvolvimento do casal. Foucault (2012), fundamentando-se na Erótica Platônica, define o que eu poderia falar de Chico quanto ao seu sentido de relação. O sujeito participante não procura a metade de si mesmo em uma parceira, e sim a verdade com a qual se identifica, concorda ou admira. Uma verdade que o ajudaria a se desenvolver, uma verdade com a qual se sente aparentado a partir da sua própria verdade. A dinâmica explorada no parágrafo anterior orienta a constituição masculina de Chico e se desenvolve em suas relações, o que tem favorecido estas e produzido satisfação para ele na maneira como se conduz em relação ao outro. O que o faz acreditar que o diálogo para o afeito, cumplicidade e parceira é responsável pela simetrização entre os componentes da relação, o que favorece a vivência de uma satisfação nesta. Ainda se referindo ao diálogo, Chico relaciona o diálogo à empatia, afirmando que o nível de diálogo se compatibiliza no nível de empatia do casal e este processo desenvolve a relação de forma satisfatória. Tal construção ética sugere a importância da sintonia entre as subjetividades que optam em se relacionar. A referida sintonia pode ser entendida como o que Foucault (2012) discute em seu livro História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, o autor afirma que o trabalho de si como uma “elaboração do trabalho ético”, objetiva o alcance da Teleologia, ou seja, o sujeito a partir do artesanato que faz de si nas relações se transformará em um “sujeito moral de sua própria conduta”, onde não agirá somente conforme as regras. Este produzirá um modo de ser (uma conduta ética) que alcançará o que ele mesmo considera como sujeito moral, estabelecendo uma posição própria frente aos preceitos morais e se tornando o sujeito moral que ele mesmo considera ser um sujeito moral. E alcançando essa teleologia, ele poderá desfrutar de “uma tranquilidade perfeita da alma”, o que para Chico, pode ser uma sintonia perfeita com sua parceira, para a tranquilidade de sua alma. 108 O possível alcance de tal teleologia referida por Foucault, segundo Chico, ocorreria através do diálogo, visto que o sujeito avaliaria suas ações a partir do discurso do outro e construiria uma conduta para si baseada na reflexão do que deseja viver em uma relação e do que é demandado pelo outro e por ele próprio no alcance de tal vivência satisfatória. No processo de constituição de sua subjetividade, o sujeito considera seu contexto, suas relações e suas identificações bem como confrontações no fundamento das redes de significados que compõem os sentidos em sua vida e nesse processo, a empatia seria o objetivo de Chico em sua conduta ética, para isso, desenvolve o diálogo para o alcance de tal objetivo. Tal empatia pode ser entendida como uma igualdade semiótica, ou uma só linguagem da relação para ambos (organização de uma linguagem mútua), e essa linguagem compartilhada e sustentada por eles através dos significados, auxiliaria cada um constituir um sentido ético de relação que se convergiriam e contribuiriam com a vivência de uma plena satisfação na relação. Essa linearidade poderia não ser possível, visto que os sentidos não se constituiriam de maneira tão cartesiana, mas complexa, dinâmica e multifatorial. Porém, para o participante, isso seria possível e por isso busca. Mas vale à pena refletir tal desejo dele e relacioná-lo à possibilidade e se criar contextos sociais que permitissem e incentivassem abstrações como esta de Chico. O participante busca sentidos éticos para as suas relações, discutindo as possibilidades, limitações e novas formas de ser e se relacionar. Constrói-se, desta forma, a consciência individual, formada pela impregnação da pessoa pelo conteúdo semiótico historicamente criado por grupos sociais organizados, com os quais se relaciona. Os signos em geral, e a linguagem dentre eles, são apropriados através da interação com parceiros diversos – cada um com recursos sócio-históricos de ação e nível de desenvolvimento diferentes – em práticas sociais diversas, onde os indivíduos confrontam os significados que atribuem às situações e às suas próprias ações. O comportamento é, portanto, um fluxo contínuo, recortado, interpretado, significado pelo contexto, pelas próprias ações, pelas ações do outro e pela situação, sendo continuamente constituído e transformado, ao mesmo tempo que constitui o outro e a situação. Nesse processo, ocorre uma contínua transformação da rede de significações, enquanto constituem-se, reciprocamente, a subjetividade e os conhecimentos de cada indivíduo. (ROSSETTI-FERREIRA, 2000, p.22). Chico acredita que a cumplicidade confere igualdade e satisfação aos componentes do casal, visto que ambos constroem juntos a relação e dão ritmo e harmonia à conjugalidade, o que gera os resultados esperados. Mas, para ele, tal igualdade exige também o cumprimento de responsabilidades no acordo do 109 relacionamento, ou seja, existe um fluxo que necessita funcionar e que ambos precisam estar engajados nisso, tal fluxo é sustentado pelo diálogo e pelo cumprimento das responsabilidades acordadas, por este motivo, para o participante, a ausência do diálogo e do carinho por iniciativa espontânea dos dois pode ser uma contraindicação para a relação. Porque a ausência do diálogo e do carinho interrompe o fluxo e tira o fundamento afetivo deste. Chico sustenta um sentido ético de relação em que o diálogo é o principal representante simbólico da relação, pois ele é quem será o elo subjetivo entre os componentes do casal e a linguagem que sustentará o fluxo de afetividade/conveniência que baseia a relação. Assumir um acordo que leva em consideração a igualdade, o trabalho em conjunto, as responsabilidades e o afeto espontâneo mútuo, seria uma forma de se desenvolver a cumplicidade que conferiria benefícios à relação e essa, se tornaria cada vez mais satisfatória. Chico nos traz um sentido ético que tem feito, segundo ele, sua relação “dar certo” e para isso ressalta a desconstrução dos papéis de gênero, o trabalho de si, a afetividade, os valores familiares, o acordo e a perspectiva como componentes da complexa dinâmica que constrói as relações. Proporcionar que sujeitos masculinos como Chico possam falar de suas estratégias para a construção de uma relação satisfatória pode se tratar de uma importante ação para a valorização da experiência masculina nas relações, de forma que relatos como os dele sejam uma perspectiva para homens que objetivem tal experiência. Dar voz a sujeitos masculinos como Chico é uma forma de difundir as possibilidades de vivências masculinas mais criativas e libertárias. A construção deste trabalho trouxe contribuições às discussões de gêneros voltadas aos homens e às relações. Partir da perspectiva de uma construção social da masculinidade e associá-la à produção das relações de gênero através da construção ética do sujeito possibilitou considerar a produção subjetiva da identidade de gênero em uma sistematização intrinsecamente relacional. As experiências de afeto e igualdade na construção subjetiva do homem podem favorecer que este constitua uma ética baseada no cuidado e no diálogo. Visto que a referência de relações igualitárias e de afetiva vinculação pode orientar a necessidade de produzir um contexto favorável às relações para que estas sejam norteadas (ou mesmo reproduzidas, como no caso de Odair) da referência inicial que foi exitosa na construção da subjetividade do sujeito homem. Tal construção ética pode nos revelar a possibilidade da consideração, reflexão e desenvolvimento de educações, socializações, 110 éticas e outros aspectos relacionais que favoreçam vivências mais satisfatórias de gênero. Mas para isso, o projeto de uma sociedade necessita favorecer que seja valorizada, pensada e discutida a dimensão relacional para se descobrir e experimentar vivências mais criativas e libertárias para todos. Para alguns sujeitos masculinos que tiveram a oportunidade de vivenciar relações afetivas suficientes para utilizarem essas como referências para as demais, a construção de um contexto e de uma condução ética favorável às relações satisfatórias pode ter um nível de complexidade distinto daqueles que viveram intensa violência em sua construção social de suas identidades de gênero. Certos homens podem construir um referencial de relação que busque relacionar ética e justiça, mas apresentam dificuldade em sustentar tal orientação, visto que não conseguiram experimentar e psicossocialmente aprender isso (como é o caso de Zé). Nas relações destes homens, o conflito e o imperativo (do machismo ou necessariamente da rigidez) são presentes e produzem sofrimentos que auxiliam a cristalizar cada vez mais as experiências de gênero, escassamente existindo oportunidades de reflexão da construção social masculina e o reflexo disso nas relações de gênero. O funcionamento de homens, que não têm a oportunidade de refletir seus sentidos éticos e que reproduzem formas de lidar aprendidas, dificulta a vivência de uma igualdade, tal sentido de igualdade muitas vezes é revestido de desigualdade em virtude da ausência da reflexão e do exercício da conveniência e da banalização das relações. Em contrapartida, existem sujeitos masculinos que conseguem “dar o salto”, ou seja, transpor a dificuldade de perceber sua inflexibilidade e por vezes o seu funcionamento machista em busca de uma experiência relacional exitosa. Tim contribuiu com esta pesquisa ao sugerir que seria possível com o outro, aprender a ser melhor para si, sendo melhor para esse outro. A iniciativa de sujeitos como Tim necessita de atenção e voz, visto que a dialética apontada pela ética defendida por Tim, não se trata de uma busca simples e encontra entraves na relação e no social. Espaços de reflexão e uma sociedade que incentive a transformação das relações partindo das desconstruções das vivências de gênero cristalizadas auxiliariam esses sujeitos em suas caminhadas, bem como, suas parceiras, suas famílias, seus amigos, suas vidas. O afeto seria um componente importante para as relações, mas homens como Milton acreditam que não só de amor, vive uma relação. O respeito, a franqueza, a coerência e a cordialidade seriam aspectos importantes às relações e que deveriam partir dos componentes do casal. Sendo assim, o afeto não garantiria o êxito de uma relação, 111 mas o desenvolvimento de uma série de habilidades para a sustentação desta. O desenvolvimento de tais habilidades seria compatível à evolução do diálogo. Determinadas músicas e produções literárias na contemporaneidade trazem a centralidade do afeto nas relações e escassamente se discute o que mais uma relação precisa. Será se só o amor é o essencial? Seria importante refletir as relações e suas constituições para chegar a conclusões sobre o que cada relação precisa. A sociedade basear-se em romances e manuais amorosos pode estar limitando suas possibilidades relacionais. O acordo intersubjetivo proporcionado pelo diálogo é uma ferramenta produzida pela ética defendida por Chico, assim, a ética que considera o diálogo como sustentação da relação exerce estratégias que favorecem a linguagem afetividade/conveniência. Por essa necessidade de conjuntura abstracional, a construção da ética nas relações de gênero se trata de uma tarefa árdua e complexa, pois depende da desconstrução dos papéis de gênero, do trabalho de si, da afetividade, da educação familiar, cultura, de habilidades para o acordo e alteridade, além de perspectiva de vida, dentre outros. Por isso, necessita tanto de incentivo, reflexão e favorecimento por parte de nosso projeto de sociedade. Homens como Chico precisam de voz e de valorização da experiência masculina nas relações, para que outros sujeitos masculinos enxerguem a possibilidade de refletir suas masculinidades e relações e consigam fazer suas éticas para relações satisfatórias. Há a necessidade de se incentivar a pensar e criar e não somente investigar e punir. As éticas construídas pelos participantes em suas histórias de vida e relações ressaltaram que as condutas para uma relação satisfatória necessitariam de afeto, igualdade, respeito (disfarçado ou não de desigualdade), franqueza, coerência, cordialidade, acordo intersubjetivo e do diálogo. Porém, segundo a particularidade deles, cada dimensão destas possuiria entrecruzamentos, dinâmicas, sentidos e intensidades diferentes e que precisariam ser acordadas com essas conjunturas que também ocorrem no outro, o que revela a complexidade deste processo. O que ajuda a constatar que as relações possuem uma dialética entre o universal e o intrínseco. Tal dialética impediria de aplicarem-se manuais de instruções às relações e leis sem reflexividade às ocorrências de direitos e deveres de gênero, bem como às intervenções sobre fenômenos das relações de gênero como violência e saúde. Estes argumentos ajudam a pensar a seguinte questão: se os homens sabem o que poderia ajudá-los a viver relações mais satisfatórias, por que não conseguem viver isso 112 nas relações? Pode ser que o que eles me disseram que vivem em suas relações pode não se compatibilizar com a realidade (ou com o que suas parceiras pensam sobre o que vivem na relação), pode ser que eles tenham dificuldades de viver relações satisfatórias apesar de saberem como deveria ser, ou não. Em alguns momentos, os participantes relatam não conseguir exercer o diálogo em suas relações, apesar de acreditar que o diálogo seja a resolução, ou então contaram situações em suas vidas que apesar de acreditarem na igualdade de gênero, foram rígidos e machistas. Por que será esse fenômeno ocorre? Minha hipótese seria de que não basta saber o que fazer, o que fazer é amplamente difundido no social através de campanhas e movimentos, é necessário refletir sobre esse fazer como construção ética em que seria necessário que as histórias de vida das pessoas e seus sentidos fossem consideradas e refletidos juntos com a necessidade da construção do como se conduzir em relação ao outro para uma vivência satisfatória a dois. 113 CONCLUSÃO “[...] É por isso que se há de entender Que o amor não é um ócio E compreender Que o amor não é um vício O amor é sacrifício O amor é sacerdócio Amar É iluminar a dor - como um missionário”. Chico Buarque. Atualmente, sabe-se o que fazer, mas não se sabe como fazer, por isso a dificuldade, a lacuna no “lidar”. O saber fazer se baseia em ideais de relação e de performatividade de gênero que foram instruídas por leis e educação através da história e cultura, porém, o ideal se baseia na prescrição e não na recomendação, que são ações diferentes. Quando a organização social institui o que precisa ser feito, ela nega o aspecto subjetivo em função de um social, porém, partindo da compreensão de que o subjetivo e o social são indissociáveis, revela-se a necessidade de se constituir ações de recomendação que incentivem a reflexividade ao invés de se apenas instituir e punir. A desconstrução de um paradigma de gênero ou a atualização deste necessita da ampliação da reflexividade dos valores, da contemporaneidade e consequentemente, das relações. Por este motivo que a necessidade da reflexão ética nas relações de gênero se revela através dos relatos dos sentidos éticos produzidos por esses homens. 114 Aspectos como abstração, reflexividade, alteridade e assertividade, necessários ao desenvolvimento do diálogo, destacam-se nas dificuldades e nas potencialidades relatadas pelos participantes. A ineficiência ou a potência destes aspectos dificultam ou os ajudam a desenvolver o lidar nas relações. A pesquisa identificou a necessidade dos participantes em relacionar os sentidos que orientam suas vidas às suas atitudes em relação a si e ao outro como o cuidado, o afeto e a conveniência. A construção da ética nas relações de gênero se desenvolve como uma reflexão cotidiana e contínua, visto que se baseia em uma conjuntura de processos com múltiplos componentes que geram uma linguagem, um discurso, ou seja, sentidos que orientarão a maneira de se conduzir em uma relação. Na referida conjuntura, incluem-se os processos de construção da identidade de gênero e constituição subjetiva, contextualizados por fenômenos sociais, históricos e culturais. Desta feita, a infinita, emaranhada e ativa rede de significações que constituem os sentidos éticos nas relações configuram o caráter complexo do trabalho de si como reflexão ética para uma relação, em uma relação. Devido à referida complexidade, ressalto como árduo o trabalho de reflexão ética nas relações e por isso se justifica a intensa necessidade de reflexão das relações. Os participantes não associaram suas reflexões éticas à palavra ética em si, na verdade, não conseguiram fazer uma definição para esta palavra. Não conhecem a ética pela palavra ética. Tal fenômeno pode revelar o quanto os participantes não possuem familiaridade com o termo e suas definições, podendo revelar ainda, o quanto nossa sociedade ainda mantém em círculos inacessíveis a discussão do que seria a ética e da importância da construção e reconstrução desta no desenvolvimento das relações. Falando um pouco sobre o percurso da pesquisa, ressalto as dificuldades e o potencial encontrado nesse caminho. Dentre as dificuldades experimentadas, a rejeição da primeira construtora a qual submeti a proposta de pesquisa foi um fato que atrasou bastante o processo de obtenção da aprovação do CEP. A empresa demorou a emitir a negativa de autorização e eu precisei lidar com a espera e com a atitude da empresa em não se interessar em ceder seu campo para a realização da pesquisa. Não foram informados os motivos da rejeição. Perante o primeiro “não”, tive dificuldades em conseguir o acesso em outra empresa, cheguei a conseguir a autorização de um colégio próximo à obra da primeira empresa para abordar e realizar a pesquisa com os trabalhadores da obra que se interessassem em participar da pesquisa, mas tal iniciativa foi vetada pelo comitê de ética. Outra dificuldade foi, após conseguir a autorização de 115 uma segunda construtora, obter um espaço com privacidade suficiente para os trabalhadores se expressarem. Por fim, a escassez de tempo dos trabalhadores fez com que eu necessitasse passar mais tempo na obra. Contudo, dentre os potenciais encontrados, a necessidade de passar mais tempo a obra favoreceu meu vínculo com os trabalhadores, além disso, a construtora que autorizou a pesquisa foi bastante colaborativa para comigo, o que favoreceu a execução deste trabalho. As possíveis limitações da pesquisa podem ter sido a presença de determinada parcialidade no discurso dos trabalhadores, visto que estavam contando suas histórias de vidas em uma sala que não tinha a total privacidade necessária, caso tivesse, quem sabe conseguiriam relatar mais detalhes de suas histórias. O tempo também foi escasso, visto que quando os mesmos já estavam se sentindo mais à vontade para falar, o sinal de retorno do intervalo tocava e o diálogo precisava ir se resumindo aos poucos. Considero que a pesquisa obteve êxito em seu intento e pode contribuir com outras pesquisas sobre relações de gênero de forma a construírem discussões sobre relações mais satisfatórias. Além disso, o desenvolvimento de tal discussão pode favorecer a construção de políticas públicas que considerem cada vez mais os fenômenos psicossociais de forma que as pessoas e suas relações sejam trazidas para o centro da solução. Tal processo pode contribuir para a constituição de um contexto social, histórico e cultural menos desigual e cada vez mais livre. Esse trabalho conseguiu contribuir com reflexões sobre possibilidades de constituir-se e conviver visto que evidenciou considerar a reflexão da construção social das identidades de gênero nas relações via processos éticos. A ética e sua ação reflexiva na relação são capazes de constituir orientações para o desenvolvimento da convivência de forma que duas vidas consigam fazer de uma relação, a satisfação de si, a satisfação mútua. Por isso, minha mobilização é tecida pelo desejo de contribuir com reflexões sobre possibilidades de ser e se relacionar. E acredito que o “artesanato cotidiano de si” na relação com o outro pode revelar possibilidades criativas e libertárias para se viver. 116 REFERÊNCIAS ABREU, Â. M. M. et al . Consumo nocivo de bebidas alcoólicas entre usuários de uma Unidade de Saúde da Família. Acta paul. 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Informamos que sua participação é voluntária e poderá ser realizada através do preenchimento de um questionário e pelo relato de sua história de vida. Os riscos que podem ocorrer em relação a você durante a sua participação na pesquisa são a mobilização de conflitos psicológicos negativos causados pela mobilização emocional durante o relato de história de vida, se isso acontecer, a Faculdade de Psicologia oferece o serviço de atendimento psicológico gratuito no Centro de Serviço de Psicologia Aplicada CSPA, na clinica-escola do curso de psicologia da UFAM. Caso você aceite participar da pesquisa, você estará contribuindo com a construção de conhecimentos importantes para a produção de intervenções sociais que favoreçam as relações de gênero. Mesmo após ter aceitado participar da pesquisa, você tem o direito de desistir de participar em qualquer etapa da pesquisa. Você terá a liberdade de retirar seu consentimento por qualquer motivo e sem prejuízos a sua pessoa. A participação na pesquisa não ocasionará nenhum custo ou despesa a você. Os resultados da pesquisa serão publicados, porém, a sua identidade não será divulgada. Se você aceitar participar da pesquisa, precisamos que você assine este documento, que está em duas vias, uma delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. No caso de dúvidas você pode procurar as responsáveis pela pesquisa no laboratório de Desenvolvimento Humano da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, endereço: Av. Rodrigo Otávio, 4200 – Setor Sul – Campus Universitário – Bloco X, Bairro Coroado, Manaus/Amazonas ou entrar em contato com as mesmas pelo fone (92) 3305-4550 e pelos e-mails [email protected] e [email protected]. Para qualquer outra informação, você poderá entrar em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa – CEP/UFAM, na Rua Teresina, 495, Adrianópolis, Manaus-AM, telefone (92) 3305-5130. Expressando o meu consentimento sobre as informações acima a mim repassadas, afirmo que estou sendo informado por escrito e verbalmente sobre os objetivos dessa pesquisa e em caso de divulgação, AUTORIZO a publicação. Eu_______________________________________________________idade:_____Sexo:_____________ Naturalidade:________________ Portador(a) do documento RG Nº.____________________ declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da minha participação na pesquisa e concordo em participar. ______________________________________________ Assinatura do participante ______________________________________________ Testemunha* ______________________________________________ Assinatura do Pesquisador Responsável Impressão do dedo polegar. Caso não saiba assinar. Manaus, _________ de _____________de 2015 124 INSTRUMENTO DE PESQUISA I .Questionário sócio-econômico: Cód. do Entrevistado: ______________ Bairro:____________________________ Idade: _____ Profissão:_____________ Casa própria ( ) Casa Alugada ( ) Casa cedida ( ) Outros ______ Religião:________________ Hábitos: ( ) Bebe ( ) Fuma ( ) Outros hábitos _________________________ Estado Civil: ___________________ Escolaridade: _________________________ Naturalidade: ______________________ Renda Mensal: ________________________ Filhos? ( ) Sim ( ) Não Se afirmativo, quantos? __________ II. Roteiro para especificar temas da história de vida Enunciado: Conte-me sua história de vida. Fique à vontade para falar sobre os relacionamentos mais significativos que você experimentou em sua vida. Itens exploratórios: -Construção social das masculinidades: Recordações da infância e adolescência. Performatividades masculinas e femininas. Princípios aprendidos na educação familiar, escolar ou em outras relações. Pessoas em que inspirou seu desenvolvimento. Fatos significativos nas relações vividas. Aprendizados mais significativos da vida. Dificuldades e conflitos vividos. Alegrias e prazer vividos. Vivências atuais. Outras informações. -Relações de gênero: Sentido de relação. Relações mais significativas vivenciadas. Pessoas importantes. Principais aprendizados. Opiniões sobre o amor, paixão... Decepções vividas. Conquista e intimidade. Outras informações. -Sentidos de éticas nas relações de gênero: Sentido de ética na relação. O outro e a alteridade. Comportamentos que favoreceram ou dificultaram as relações. Outras informações. Orientação: Buscar compreender o que os participantes consideram ser ético em uma relação, relacionar o sentido de ética à construção de suas masculinidades – se têm um ideal de ética e se exercem, se não, por que não exercem? O que os dificulta de exercer? Se não têm, o que utilizam para construir suas relações? – compreender como se constitui ética em uma relação de gênero. 125 PARECER DE APROVAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA