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Pequena reflexão sobre os destinos em Pulsão

Este ensaio promove uma reflexão sobre o espetáculo Pulsão a partir dos pressupostos da micropolítica e da análise do termo pulsão.

DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v14i2p153-155 Dossiê espetáculo Pulsão - olhares de fora Pequena relexão sobre os destinos em Pulsão A short relection about the destiny in Pulsão Ferdinando Martins1 Resumo Este ensaio promove uma reflexão sobre o espetáculo Pulsão a partir dos pressupostos da micropolítica e da análise do termo pulsão. Palavras-chave: Destino, Micropolítica, Pulsão Abstract This paper promotes a reflection about the spetacle Pulsão from the assumptions of micropolitics and the analysis of the term pulsion. Keywords: Destiny, Micropolitics, Pulsion Na atual episteme, caudatária das revoluções micropolíticas da década de 1960, o corpo ocupa o lugar da palavra. Há saberes novos, que são inefáveis. A psicanálise lacaniana, o anti-Édipo de Deleuze e Guattari, o cuidado de si Foucaultiano, as reflexões políticas de Zizek e Agamben, entre outras manifestações, colocam os racionalismos cartesianos e iluministas em cheque. A Arte, testemunha de todas as mudanças, perde seus contornos renascentistas, dissolvendo a ideia de autoria e de obra acabada. É nesse quadro, fluido e potente, que o espetáculo Pulsão, da rede de criadores Desvio Coletivo, emerge como expressão candente de uma nova ordem e de mudanças em curso, não concretizadas e talvez sequer concretizáveis. O nome não poderia ser mais adequado. “Pulsão” é um conceito caro à Psicanálise. Corresponde “a um representante psíquico das excitações provenientes do corpo e que chegam ao psiquismo” (ROUDINESCO & PILON, 1998, p. 630). Trata-se, portanto, de algo situado entre o Real do corpo e suas representações simbólicas e imaginárias. “A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância, que é a do inconsciente” 1 Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) (ROUDINESCO & PILON, 1998, p. 167). Em alemão, “pulsão” é Trieb, erroneamente traduzida para o português por “instinto” em muitas traduções dos textos freudianos. “Instinto” (em alemão, “Instinkt”) remete exclusivamente à natureza. “Trieb”, por sua vez, é também cultura, também moldável pela criação humana. Carentes de instintos, nós humanos inventamos outras formas de sustentação para estar no mundo. A pulsão lembra que o corte civilizatório não foi total, e que todos estamos imersos nas duas ordens, natureza e cultura. O corpo já estava em uma encruzilhada desde a gênese do espetáculo. Uma prolongada internação hospitalar de Marcos Bulhões, uma doença que permaneceu inominável (e, portanto, não tratável) durante muito tempo, e a proximidade da morte fizeram com que Pulsão começasse a ser criado. Não por acaso, as cenas iniciais remetem a um saber médico caduco face aos novos estatutos do corpo. Saber este já moribundo, mas cujos efeitos ainda se fazem presentes. Trata-se aqui de uma fenda na clínica tradicional, das anamneses e diagnósticos, que não deixa de existir mas deve-se lançar para além da Ciência. De maneira análoga, os arcanos do tarô invocados no início de Pulsão remetem a essa fenda no saber, uma outra ordenação, inexplicável pelos discursos racionalizantes da modernidade. O tarô, que surge no Renascimento assim como a clínica médica, é a expressão de um saber não totalizante, de um alfabeto de signos que se associam e se dissipam sem que haja a necessidade de se fixar em um ponto de significação, sem precisar ser transformado em fala. O corpo doente, ponto de partida de Pulsão, desfalece-se em poéticas. A beleza plástica, esforço coletivo capitaneado por Marcelo Denny, é uma estratégia de deslumbramento, transcendência que não precisa de religião. O corpo de Priscila Toscano abrindo-se em flores, em uma das cenas mais bonitas do trabalho, contrasta com o corpo que agonizava em uma cama hospitalar no início do espetáculo. Esse mesmo corpo moribundo é continuamente transformado. O body artist T. Angel surge, quase no final, como um anjo. Ganchos fixados em sua própria pele causam aflição, mas é esse corpo transformado por extensores de orelha, piercings e tatuagens que resgata o doente com um beijo. O corpo no limite da dor, incompreendido por quem se aferra ao conservadorismo, reivindica aqui sua legitimidade artística. E, como arte, salva. Não por acaso, predomina a música eletrônica na trilha sonora, uma música dançada à maneira de cada um e em que as palavras podem ter sentido ou somente servir de brincadeira para repetições, quando significantes se deslocam e escorregam dos significados. Música que não se presta a lamentações, mas sim a mobilizar o corpo. Dança-se sozinho ou em grupos, que se associam e se separam, laços que unem mas são mantidos frouxos o suficientes para garantir a liberdade possível. Da mesma forma, 154 uma das performances finais apresenta os corpos nus entrelaçando-se e se soltando aleatoriamente. O público entra e sai do jogo quando e como quer. Expressão de um amor líquido (BAUMAN, 2004, p.8). Sabe-se que a pulsão é uma “força constante” que “não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida” (LACAN, 2008, p. 163). Pulsão, o espetáculo, cria um espaço onde temporalidades e espacialidades conflitantes se harmonizam. “Espetáculo”, no caso, não remete à contemplação. Ao contrário, a opção por um teatro relacional, performativo e pós-dramático chama à participação espontânea. Nas três noites em que foi apresentado durante a I Bienal Internacional de Teatro da USP, foi possível presenciar situações ímpares, de desejos que foram mobilizados e pulsões que encontraram novos destinos. “Posso tirar a roupa, chefe?”, me perguntou um funcionário do teatro. “Eu esperava encontrar cadeiras e um palco, mas fui recebido por bacantes em uma rave”, disse um espectador que chegou somente no final. “Vou voltar amanhã”, falou outro entusiasta. Curiosamente, no último dia, um grupo de alunos de Engenharia da USP estava presente. Tentaram se passar por alunos de História, “para não se sentirem deslocados”, me disse um deles. Não passaram incólumes. Aos poucos, foram mexendo o corpo junto com a música, em uma dança tímida. Walter Benjamin já constatava, há mais de 70 anos, o empobrecimento da experiência em um mundo devastado pelo capitalismo, pelo fascismo das ideologias. As vivências não conseguem se transformar em algo a ser transmitido e partilhado. Pulsão, ao contrário, torna possível o resgate da experiência. Dentro da cena, rompe-se com hierarquias e preceitos morais. É um espaço utópico, apolineamente construído para dar vazão à plena expressão do dionisíaco. Referências BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – V1. São Paulo: Brasiliense, 1985. LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ROUDINESCO, Elisabeth & PILON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Recebido em 17/03/2014 Aprovado em 30/04/2014 Publicado em 25/06/2014 155