Adalberto Müller. Pequena filosofia
do voo. Rio de Janeiro: 7Letras,
2022.
Pequena filosofia do voo
O tempo saiu pra fora da junta
Minha sina é ver se ele se ajusta.
Hamlet, I, 5.
Não pensar antes de abrir as asas pode ser a maneira ideal
de evitar o medo do salto para o voo.
Talvez fosse o momento certo. Mas Nikki pensou duas
vezes, e estancou imóvel no chão. Não sentia segurança
bastante para tomar uma atitude – qualquer atitude. Estava
num estado de imobilidade que nascia dentro de suas articulações, e que se estendia pelos membros, diminuindo a
temperatura interna. Não estava firme. Não ainda. Sabia
que a possibilidade existia. E não apenas existia: estava indo
lentamente para aquilo. Por uma espécie de impulso imprevisto e imprevisível.
Esquecer o ovo e pensar apenas no penoso trabalho de
viver no exterior é a melhor maneira de suportar a inclemência dos ventos e a solidão das alturas.
Claro que é mais fácil viver dentro do seu casulo, sem
ligar muito para o que está acontecendo no mundo exterior
– e sempre tem um monte de coisas acontecendo no mundo
exterior. Aliás, elas sempre acontecem na rede acelerada.
Nikki estava em casa. Seu apartamento era uma das
vinte e cinco unidades do septuagésimo quinto andar de
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uma das três torres espelhadas do Conjunto Habitacional
Arcadia – mais um dos milhares de conjuntos da Megalópole. A vidraça se abria para o crepúsculo, que ia tingindo
de escarlate as construções regulares de aço e vidro espelhado erguendo-se como montes de moedas empilhadas.
Nikki estava para enfrentar uma situação típica de estranhamento, daquelas que todos os manuais escolares de
comportamento ensinam a evitar. Olhava para o cubo do
hologram, um objeto aparentemente inerte ao lado do vaso
de orquídea sintética, que soltava flores tigradas com perfume de lavanda, o seu favorito.
Nikki já sabia que a mensagem viria a qualquer
momento, e que receber aquela notícia era tão inevitável
como ir ao trabalho. Só não sabia quanto tempo teria que
esperar, e nem qual ia ser a sua reação. Ou melhor, calculava os danos. E a notícia, que irromperia subitamente,
diria respeito a Tlö. Nikki já sabia o que iam dizer sobre
Tlö. O mensageiro do hologram, com asas de anjo e cabelos
cacheados tingidos de louro, iria falar de muitas coisas difíceis de ouvir, naquela voz que, por mais que soasse como
humana, não era humana.
Certamente, também iam reproduzir as últimas imagens de Tlö sobre a vidraça da sala, mas Nikki não iria
querer ver nada daquilo. Não ia querer ouvir o que Tlö ia
dizer, e que Nikki já sabia: que Tlö esperava a compreensão
de todos, especialmente de uma pessoa (Tlö jamais mencionaria o nome de Nikki, isso era certo), porque aquela
decisão, diria Tlö, não tinha sido fácil, mas era preciso que
alguém fizesse alguma coisa.
No momento em que Nikki processava isso, bateu
na vidraça uma réstia de luz crepuscular, que tinha sur98
gido entre as distantes nuvens de poeira condensada do
mundo exterior, atravessando a imensa redoma de proteção magnética que encobria a Megalópole como uma bolha
translúcida. A noite já estava acendendo automaticamente
as milhares de luzes de neonled. Estava na hora de beber
alguma coisa. Talvez fosse melhor sair por aí num tubo
qualquer rumo à Zona Subterrânea, para nem se dar ao trabalho de ouvir o que Tlö diria, nem sequer ver o que Tlö
faria. Mas estava com receio de estar entre as pessoas. Sentia aquela mesma fobia diante de outras pessoas, uma vontade de esconder-se, de entrar dentro da casca do seu casulo
original, como o pássaro dentro de uma gema de ovo, bem
protegida pela clara e pela casca, um estado de latência, que
poderia durar indefinidamente, um estado de indiferença
absoluta ao exterior.
Está comprovado que não adianta exercitar as patas
para alcançar o equilíbrio do voo. O voo nada tem a ver com
patas, nem com pernas. Quem quer voar, tem que pensar nas
asas, no vento, e em nada mais.
Na verdade, Nikki não sabia calcular qual seria a sua
reação exata ao receber a mensagem. Provavelmente ia ter
que se render ao óbvio, quando processasse o seu emocional. Coisas do tipo: “Quem poderia aceitar aquilo? Não é
uma coisa fácil de se aceitar”. Tlö abrira uma ferida imensa.
Quem poderia perdoar um ato daqueles? Tlö havia atentado
contra o sistema e a ordem. Mas Tlö não acreditava no sistema e na ordem. Disse que era preciso uma atitude radical. E que ninguém tinha a coragem de mudar o status quo
(usava essa palavra histórica), que estavam todos sedados
pela aceleração constante das coisas do mundo da Megaló99
pole, que, segundo Tlö, era sustentada pelo trabalho escravo
no mundo exterior. Era preciso que alguém detivesse o
grande processador, que gerenciava o mundo alfanumérico
(ele gostava de palavras antigas), codificado por fórmulas
extremamente complexas e abstratas, mas que se traduziam para todos em otimismo e bem-estar aos moradores
da Grande Megalópole, humanos e não humanos. Tudo, é
claro, controlado pelos bispos tecnocratas, que pregavam a
fé na Verdade do Sistema. Tlö tentou demostrar que aquilo
estava errado. Que esse mundo era platônico (uma palavra
que ninguém sabia processar), e dependia do sofrimento
daqueles que não tinham nenhum direito às riquezas divididas socialmente nas Megalópoles, e que eram como a gente
(Tlö dizia isso com uma autenticidade impressionante).
Só que agora, para Nikki, o que as imagens em hiperdefinição da câmeras de segurança interativas mostravam
eram cenas de terror perpetrados por Tlö e seu grupo de
políticos, e o sangue de inocentes sendo derramado no
grande Templo. Restos e corpos quentes e frios. Órgãos e
peças espalhados de maneira inconcebível. Nikki tinha feito
de tudo para convencer Tlö a mudar de ideia, para que as
coisas não chegassem a esse ponto. Tlö acreditava que não
era possível mudar as coisas sem um ato violento. Senão,
nada nunca mudaria neste mundo.
Nada.
Tlö tinha vindo mesmo do nada, do mundo exterior,
lá onde vivem os operários subumanos. Tlö conseguiu sair
daquele deserto e cruzar como um ilegal as fronteiras magnéticas da Megalópole. Um dia Tlö veio. E ficou. Depois de
dar duro e conseguir fazer sucesso, Tlö cruzou também as
fronteiras da vida de Nikki, e foi se instalando. Foi mudando
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as regras da vida tranquila de Nikki. Tlö era assim, como
artistas de circo dos filmes antigos que passavam na madrugada de domingo no canal histórico. Tlö, no trapézio imaginário da cabeça de Nikki, estava sempre se jogando, sempre
arriscando a vida. E foi isso que arrebatou Nikki: a coragem de Tlö. Coragem que Nikki não tinha, que nenhum
contemporâneo tinha, de se lançar no vazio, em busca de
algum sentido, sem respeitar protocolos de agência.
Tlö era assim mesmo, parecia não ter programação
para nada.
Nikki deixou Tlö vir como veio, e Tlö mudou tudo na
vida de Nikki. Nikki teve que ceder, teve que aceitar a submissão, porque além de inevitável, Tlö lhe ensinava coisas
que não conhecera nunca. Além do trapézio, Tlö também
sabia despertar as feras selvagens que se escondiam nos
recantos secretos de Nikki, onde a máquina e o animal se
confundiam. Sabia excitá-las tanto quanto sabia como fazer
com que elas deixassem de rugir, escondessem as presas, e
sentassem no tambor quietinhas, e até lambessem as suas
botas. E foi isso o que Nikki fez o tempo todo. Ficou no
tambor. E lambeu as botas, como um autômato primitivo.
Quanto mais Nikki se entregava, mais livre Tlö ia ficando,
e voltou ao alto do seu trapézio, arriscando-se e se entregando ao acaso e ao aplauso.
Tinha que dar nisso, pensava Nikki. Tinha que dar
nisso. Sentir não se calcula.
Agora sequer conseguia chegar perto da vidraça do
seu apartamento. Não gostava da vertigem. E com a idade
a vertigem aumenta, porque aumenta o medo. Isso é o pior
de envelhecer, Nikki pensava. Não são as rugas, os cabelos brancos, não são as dores nas articulações. Tudo isso
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é programado, e pode ser controlado com laser ou com
os avanços bioquímicos. O que o laser iônico e as pílulas
genéticas não controlam é o medo que nasce todos os dias
e todas as horas no organismo senciente. A sensação de
estar arrebentando por dentro, como uma bomba que está
programada para detonar, mas que não explode de vez, vai
explodindo lentamente, lentamente. Um horror.
Não é observando os outros que se aprende a voar. Isso
pode até ajudar a ter uma noção das coisas. Por exemplo,
como esticar melhor as asas, como mover-se para um lado ou
outro encolhendo uma asa, como mergulhar de bico, como
planar. Mas de nada vale observar indefinidamente se você
não toma a atitude do salto. É essa atitude que define tudo.
Além do mais, Nikki tinha uma memória. E toda
memória é um rastro de lágrimas.
Nikki pensava no irmão. Afinal, aquilo tinha acontecido quando Nikki ainda estava desenvolvendo os dentes
do saber, e ninguém que está desenvolvendo os dentes do
saber sabe bem como funcionam todas as engrenagens do
sistema. O que se vê e ouve, o cinema da memória, são imagens esgarçadas e anamorfoses sonoras: alguém que é um
irmão de Nikki, de carne e osso, e que tinha se envolvido
num escândalo de tráfico de órgãos e tecidos de operários
nas zonas de quarentena. Virou notícia em todas as megalópoles. Nikki era criança naquela época. Tudo o que Nikki
sabia, foi o que aprendeu vendo o quanto o pai chorava,
infinitamente ele chorava. O irmão de Nikki voou solitário
para o fim, atirando-se do alto da torre do hospital. Depois
disso, o pai se fechou. Foi aí que Nikki começou a ter medo
da morte, porque a morte fecha tudo dentro de uma ostra
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enorme, e cria um silêncio tão estridente que chega a ser
ensurdecedor. A morte é como esses aparelhos que se desligam para sempre.
Pior, é uma vontade de falar que não se pode satisfazer,
ou então não se consegue, ou, o que é pior ainda, não se
quer. O pai não quis. Não quis mais usar a voz. A mãe até
cantarolava. Mas era para dentro. A mãe não tardou a ir. O
pai foi depois. Lentamente. O pai foi indo – indo – no fluxo
imenso e silencioso que leva para o Grande Vazio.
Nikki sempre quis entender melhor o que era o Grande
Vazio, mas nunca ninguém lhe explicou além daquilo que
os bispos repetiam aos sábados, com imagens de campos
floridos e mensagens consoladoras escritas em letras antiquadas. Tlö tinha uma resposta pessoal. Tlö sempre soube
de coisas que não eram ensinadas a ninguém. Para onde
vão os corpos? Essa era a única pergunta que ninguém queria responder. Mas Tlö respondeu do modo mais duro, de
um modo que ninguém poderia ouvir sem querer tapar os
ouvidos e vomitar ou gritar. Já não há animais, e as plantas
são escassas. Os humanos são a única forma de proteína
que resta para preservar as duas espécies. Seremos todos
processados quimicamente, e depois disso não há nada.
É tudo uma questão de bioquímica e economia. Isso é o
Grande Vazio. Foi assim que Tlö falou, uma vez, na cama,
depois do sexo, sem roupas, apoiando as costas na tela da
parede, enquanto fumava seu vaporizador, como se isso
fosse a parte mais importante do sexo. Tlö sempre estava
fumando raízes exóticas no seu vaporizador, que vinham
do mundo exterior e que eram proibidas. Por isso dizia
tantas coisas que Nikki não entendia. E falava e falava com
aquela voz rouca. A voz era o sustento de Tlö.
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A voz.
Tlö se jogava na voz, como aqueles trapezistas se jogavam no ar.
Por isso recebia amor do público. Porque se jogava.
Porque se entregava. Com amor.
Foi justamente assim que Nikki viu Tlö pela primeira
vez, no palco de um pequeno clube noturno da Zona Norte,
com aquelas roupas de silicone brilhante, o microfone na
mão, e o corpo flutuando sobre o pequeno palco de neonled.
Foi assim. Tlö cantava com uma banda mista, mas começou a olhar, do palco, para Nikki. Nikki, a princípio, não
tinha certeza de que o olhar vinha em sua direção. Achava
que Tlö estava olhando para alguém atrás de si. Tinha uma
pessoa bem bonita atrás de Nikki, e não dava para saber
o que ela era. Tlö ia e vinha no palco, dizendo coisas subversivas contra o Templo. Usava palavrões. Claro, aquilo
era permitido, nos clubes que ficavam na zona subterrânea
das grandes fábricas da Zona Norte, onde moravam muitas
pessoas mistas como Tlö, pessoas que dificilmente teriam
condições de morar nas outras Zonas. Então, Tlö cantava e
falava, e sempre pousava os olhos nos olhos de Nikki. Nikki
foi gostando daquilo, sentiu uma alteração em suas reações
químicas, um inchaço, como uma coceira. No final do show,
foi até o camarim. Nunca tinha feito aquilo de ir ao camarim de artistas, mas não conseguiu sair depois do show, e
umas pessoas ficaram na plateia e foram até o camarim, e
Nikki foi atrás. Quando deu por si, já estava na fila. Foi Tlö
quem primeiro reparou em Nikki, enquanto abraçava amigos e fãs. Quando chegou a sua vez, Nikki foi estendendo a
mão para Tlö, com entusiasmo, embora não soubesse bem
o que se diz nessas situações. Tlö se abriu para um abraço.
Estava quente, o suor escorria por seu corpo. E Tlö não só
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abraçou, mas deu um beijo inesperado no rosto de Nikki.
Alguém filmou tudo, e logo toda a Megalópole estava vendo
Nikki dando aquele beijo em uma pessoa desconhecida do
mundo do espetáculo, uma pessoa anônima. A notícia circulou em todas as redes. Depois de dois minutos, o nome
de Nikki já era mais conhecido por jovens de quinze anos
do que pelos seus próprios colegas de trabalho.
Por isso mesmo, Tlö e Nikki não tardaram a se
encontrar. Tlö circulava livremente por toda a megalópole,
sob os olhos sempre desconfiados dos bispos tecnocratas.
Um dia Tlö veio. E ficou.
Agora o hologram não tocava, e estava escurecendo.
Estava na hora da bebida. Pediu antes aperitivo fatiado em
cubos, e, quando foi à cozinha, decorada de metal fosco, seu
pedido já o esperava. O aperitivo tinha sabor de “azeitonas
espanholas”, embora Nikki não soubesse o que “azeitonas
espanholas” queria dizer. Nikki não estava com fome. Pediu
um copo de bebida excitante “sabor vodka russa”, com água
gasosa e oito pedras de gelo. Ouviu um barulho de máquina
preparando a bebida, e o trincar das pedras de gelo e depois
a água gasosa sendo derramada. Gostava da transparência
daquela bebida excitante. Gostava das coisas claras, das
linhas retas, das estruturas leves de ferro e vidro de Ludwig
Mies van der Rohe, o grande mestre do Segundo Renascimento. O único livro que tinha em casa era um volume
de arqueologia arquitetônica, sobre a antiga cidade de Chicago, que tinha na capa o complexo do Federal Center.
O livro era uma relíquia da família, por isso nunca achou
que estivesse infringindo nenhuma das regras do Templo,
que só permitiam ter em casa os livros incluídos no Índex
dos Dez Livros Necessários.
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Você tem que ter muito claro na sua mente que tipo de
pássaro você é. Há pássaros que voam em bandos. Gansos selvagens, por exemplo, fazem uma formação em V, assim controlam melhor a direção em trajetórias longas, porque pensam em grupo. Quem vai na frente atua como sensor, como
vanguarda. Quem vai atrás, mantém a unidade do grupo. O
meio é sempre o meio: é a massa, sem forma. Mas o gavião e
o martim-pescador não querem dividir com ninguém a sua
presa, que eles, a sós, observam lá do alto, e cobiçam, e se
deixam enfeitiçar por ela, jogando-se docemente no abismo,
e mergulhando cegos em direção à terra e ao mar. Por essas
razões, também não faz sentido querer educar gaviões para
serem patos, e vice-versa.
Apesar de ser um dos princípios da ordem, Nikki sempre detestou a ideia de andar em grupos. Desde o começo
do processo de socialização. Não que andasse sozinho, porque isso seria suspeito. Escolhia alguém. Como escolheu a
filha do bispo distrital. A filha do bispo distrital era muito
humana. Ela tinha acesso a vídeos que falavam sobre a vida
no deserto. Eles iam até o templo. Sentavam-se num dos
bancos e discutiam religião. Nikki não seguia a religião do
Templo. Vinha de uma das poucas linhagens de agnósticos,
que haviam sobrevivido graças às Leis Históricas, e que ninguém mais questionava, nem mesmo os bispos tecnocratas.
Mas não havia como escapar às escolas religiosas, porque as
poucas escolas laicas eram malvistas e ficavam nas zonas de
fronteira. Quem estudava nelas dificilmente entraria para as
Faculdades de Teologia Telemática, e quem não se formasse
nas Faculdades de Teologia Telemática não teria formação
avançada em programação bioprotética, e teria que fazer serviços secundários, como controlar os androides que cuidam
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de limpeza e de serviços. A filha do bispo gostava de tentar
convencer Nikki de que só havia a Verdade do Sistema. Que
a Verdade do Sistema, escrita no Livro do Templo, salvava,
e evitava a corrupção e os vícios, principalmente o vício das
ideias políticas. Elas negavam a Verdade do Sistema. E não
havia no mundo nada mais claro e evidente que a Verdade
do Sistema, sendo que a clareza e a evidência representavam
os valores mais altos da sociedade contemporânea. Só que a
filha do bispo tirava notas piores que as de Nikki em quântica diferencial. Por que a tal Verdade dela não a ajudava
nas provas de quântica? De todo modo, sentia-se bem com
ela. E até gostava do culto obrigatório, aos sábados. O bispo
era um homem bonito, tinha uma voz metálica, que ecoava
suave por todos os cantos do templo, e os ecos rebatiam dentro da cabeça de Nikki, martelando os versículos que Nikki
passou a admirar, mesmo que não acreditasse no Livro do
Templo. “Não te impacientes nem queiras te entregar aos
vícios. Anima-te. Espera no Senhor do Templo, e ele dará
força aos teus propósitos. Acredita em ti apenas, e encontrarás a fortuna. Não penses no próximo. Não queiras contrariar o curso das coisas. Acredita na clareza e na ordem. Não
desvia do Caminho, não te olvides dos Dez Princípios Universais. Antes provê ao Senhor do Templo e aos Seus Bispos, e nada te faltará.” As palavras do bispo distrital ecoaram
em sua cabeça quando entendeu que o irmão mais velho se
fora para o Grande Vazio. Por isso, não se deixou levar no
redemoinho que arrastou a mãe, nem se prendeu na torre
de silêncio do pai. Antes, manteve-se estável e firme, como
um bloco de aço. E assim passou a viver. Como uma coisa
solidamente construída. Aprendeu a controlar o seu corpo,
a submeter o animal à máquina.
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Claro que também sabia agir coletivamente, como
todos. Nos tempos de curso superior, foi ala no time de basquete. Era a mão de ouro. Seus arremessos de três pontos
eram fatais. Mas também sabia distribuir a bola para dentro
do garrafão na hora certa, tornando a cesta inevitável. Fazia
a boa assistência no rebote. O basquete não é como uma
formação em V, como a daqueles pássaros do filme de Tlö
sobre o voo? Cinco pessoas ligadas tensamente, por nervos
invisíveis, movendo-se em conjunto, contando cada qual
com a precisão dos movimentos de outrem, e a bola voando
entre, quase intangível, quase um pássaro.
A precisão era a mesma que usava na arquitetura de
redes. Antes de estudar arquitetura de redes, estudara engenharia genética, o que era desejável, já que as redes inteligentes dependem da conexão genética com os seres humanos. Sempre teve as melhores notas em quântica diferencial.
Foi isso que levou Nikki a trabalhar com grandes redes de
hiperconectividade biotécnicas. Sempre gostou das pontes
que ligam a vida e a matéria.
Calculista, mas sem frieza, Nikki sempre se manteve
de forma coesa nas equipes, para o bem dos projetos.
Aprendeu a nunca querer se destacar. Sabia da importância de cada qual no grupo. Fora isso, o seu número era discreto. Não gostava dos refeitórios imensos em que, volta
e meia, alguém podia desviar o olhar, e plugar na tela dos
seus olhos. Das atividades públicas que fazia, além do
trabalho, ia a centros de turismo no metaverso. Não gostava de pacotes turísticos oferecidos pelos simuladores,
em que tinha que seguir um guia e um programa fechado
de visitas, todos os avatares vendo as mesmas coisas, de
passagem, sem aprofundar-se. Preferia perder-se só pelas
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ruas das cidades que não conhecia. Sabia, no fundo, que é
difícil perder-se numa daquelas cidades antigas, como São
Paulo ou Hyderabad, pois tudo já estava programado, tudo
já estava calculado, para que a pessoa não se perdesse. Os
sinais. A geometria. A topografia. Ainda assim, gostava de
ir ao sabor do acaso. Sabendo que era um acaso programado. Sabendo que todo atraso era calculado. Uma vez
sentou-se por alguns minutos numa pequena praça em
algum lugar perdido de Veneza, e ficou contemplando as
gôndolas flutuando sobre as águas esverdeadas do canal.
Jamais sentira o cheiro dos jasmins antes. Acabou recebendo uma advertência de um instrutor de férias, de que
havia ultrapassado em quase dois minutos aquela viagem
turística, e teria uma anotação no seu tempo de lazer. Nikki
não se importou. Passou meses relembrando a imagem das
gôndolas flutuando em silêncio, dos fogos de artifício, dos
jasmins. Parecia-lhe que tudo aquilo vinha de uma memória mais profunda, como se estivesse lendo em si os genes
de civilizações muito antigas de um planeta extinto.
Agora, essa imagem das águas do canal de Veneza
voltava outra vez, enquanto esperava exasperado a mensagem do hologram. Normalmente já teria saído para jantar,
no refeitório pequeno do templo distrital. Não teria esperado tanto. Porque tinha seus horários. Porque tinha suas
rotinas. Mas agora estava esperando. Quanto tempo? Não
queria olhar para nenhuma tela. Tinha que olhar? Já estava
escurecendo, e, por isso, sabia que o tempo havia decorrido.
Estava terminando sua dose de bebida, e a sua excitação
aumentara, e seus órgãos pediam alimento. Mas não queria
comer aquela comida com sabor de plástico. Estava com a
boca amarga. E aquilo não era de hoje, não.
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Não, tinha começado lá atrás. O voo de Tlö. Mas
quando? Qual o momento exato da transposição? Qual o
momento em que a iminência do ato desesperado de Tlö
se tornou irreversível? Qual o momento em que a envergadura das asas de Tlö adquiriu a máxima extensão, permitindo que ele se arrojasse sobre aquele abismo? Não tinha
como calcular. Justamente, Nikki não tinha como calcular.
Com Tlö, tudo sempre foi impreciso como as imagens afetivas de sua memória profunda. Estava sempre se atirando.
Tlö sabia bem o que era o abismo. Já tinha se machucado.
Claro, todo voo é arriscado. Ainda mais em desfiladeiros
profundos. Era a especialidade de Tlö.
lhados, e que batia na mãe, além de tentar abusar de Tlö.
Tlö não gostava de falar desse assunto. Apenas sugeriu uma
vez. Depois viveu em centros de quarentena, em internatos
para imigrantes ilegais, onde recebeu todos os implantes.
Aprendeu desde cedo a abrir mão das coisas. Aprendeu
a compartilhar. Aprendeu a trabalhar em coletivos. Não
fez faculdade. Sempre soube o que queria, queria o palco.
Pouco se importava com o que teria que fazer para chegar
lá. Comeu o pão que o diabo amassou. Vendeu-se. Vendeu
até sua voz. Mas aprendeu. Conheceu gente, lugares, experimentou todas as alegrias momentâneas e todos os dissabores profundos. Tinha cicatrizes. E próteses secretas.
Há voos pequenos, como os do pardal. São voos burocráticos. Vão de um galho a uma cerca e da cerca ao chão,
para recolher uma migalha. Há voos de surpresa, como o das
corujas, à noite, silenciosas, adejam pelas sombras, entre as
árvores. Há voos elegantes, como os do tucano cruzando o
cerrado, imperioso. Há voos longos, como o das andorinhas,
errantes e transcontinentais.
O voo é uma necessidade. Não é algo que se idealiza.
Primeiro, é preciso querer voar. Segundo, é preciso saber voar.
Terceiro, e mais importante, é preciso poder voar. Mesmo o
galo, que voa apenas em casos de extrema necessidade, num
quase salto amparado pelas asas, sabe quando precisa voar,
e sabe que pode voar. Mas, numa gaiola, o galo não embala
o seu voo.
Mas o que Nikki sabia de liberdade? Quem nunca
voou, sabe lá o que é liberdade? Ou quem voou pequenos voos, domésticos, corriqueiros, como ir aos centros
comerciais e comprar pílulas de quimeras; como exagerar
nas bebidas excitantes e dançar sozinho na pista de dança
dos games; como cantar uma canção antiga num karaokê
de um bar de androides de serviço. Tlö tinha se atirado na
vida desde cedo. Cruzou a fronteira quando tinha apenas
onze anos, com uma pequena guitarra a tiracolo. Odiava
o pai, que vivia num barraco de fibra, que se entorpecia
com bebidas fortes, que se empanturrava de insetos gre-
O hologram enfim começou a piscar. Era uma mensagem que Nikki não poderia recusar, pois vinha da Central
de Mensagens da Polícia da Ordem. A mensageira deixava
claro que o nome de Nikki constava da lista de contatos
recuperada no conector externo de Tlö, e que Tlö havia sido
um dos responsáveis pelo atentado no Templo. As imagens
mostravam gritos e uma explosão. Logo em seguida apareciam reportagens da Rede Universal. O grupo terrorista do
qual Tlö fazia parte era acusado de ateísmo e de se basear
em ideias políticas para tentar destruir os pilares da sociedade: a ordem e a fé na Verdade do Sistema. Tudo em nome
110
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de ideias políticas. Em seguida mostravam-se as famílias
das vítimas. Uma mãe declarava ter perdido dois filhos. Ela
dizia chorando que era tudo culpa da política e das ideias
dos radicais. Era um androide sensciente, estava na cara.
Mas eles falaram em sofrimento humano, eles sempre falam
em sofrimento humano nessas horas. No final, oficial de
justiça do da 2a. Vara Federal do Templo apareceu, pedindo
a Nikki que se apresentasse no dia seguinte ao Centro de
Investigação de seu distrito. Nikki sentiu culpa, embora não
entendesse por quê.
Tlö dizia que não pode haver culpa onde há liberdade. A culpa é sentimento de quem está preso na rede de
erros alheios. Era assim que Tlö raciocinava, e era preciso
reconhecer: Tlö sempre pensou assim, desde o início. Tlö
sempre foi livre. Sempre fez o que bem entendeu. Nikki
não teria entendido? Ou não teria aceitado? Ou fingiu que
aceitou? Tlö acreditava que pudesse mudar a programação de Nikki. Que ia deixar de ser quem ele era. Que seria
uma pessoa mais entregue às outras, mais sensível ao que
se passa além dos seus contatos e das suas fronteiras. Tlö
queria que Nikki sentisse as coisas mais profundamente.
Mas sentir profundamente é uma prisão, dizia Nikki. É
como cuidar de uma criança que está aprendendo a andar,
e que brinca num parquinho. E se ela cai de costas no chão
duro, e bate a cabeça? E se ela se afoga no balde? Não, quem
sente profundamente sempre está preso. Tem que cuidar do
outro, tem que se escravizar. A escravidão pode ser suave,
argumentava Tlö. Mas Nikki encerrava o assunto dizendo
não há fé nem ordem em gostar profundamente de uma
pessoa. Tlö insistia que Nikki devia crescer, quanto a isso.
Não podia ser eternamente a criancinha do parquinho
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brincando distraidamente. Há baldes, Tlö dizia, bem maiores que esse seu, onde cabem oceanos inteiros. Você precisa
ir e ver que é o mundo além da tua fronteira. Você precisa
provar o que não lhe deram de comer. Nikki, contudo, não
queria admitir. Ou será que, na verdade, não sabia como
fazer? Não sabia como se dá o passo maior do que a perna.
O voo maior que a envergadura da asa.
Tlö dizia que mais cedo ou mais tarde ia ter que acontecer uma mudança, e que Nikki tinha que estar preparado.
Tlö dizia que Nikki precisava de outra pessoa. Alguém que
estivesse com ele, no seu ninho quotidiano de pessoa conformada e necessária para o sistema. Alguém incapaz de
sonhar, como Nikki. Tlö disse que não poderia ser essa pessoa. Que não poderia jamais ser essa pessoa. E que Nikki
intimidava Tlö a ser quem Tlö não poderia ser. E que isso
era querer cortar-lhe as asas. E que Tlö não poderia viver
sem voar. Nikki sabia exatamente o que essa palavra queria
dizer na boca de Tlö.
Tlö era uma pessoa decidida. Nikki sempre soube
disso. Sempre contou com a possibilidade de uma ruptura.
Mas não sabia que ia ser assim, esse aborto às avessas. Não
imaginava que ia doer tanto, como sangramentos internos,
nas articulações. Não via a força da tempestade que se formava. Isso só vê quem voa livre. Quem está no seu ninho,
não conhece a raiz dos ventos.
Sobre a mesa havia um pacote grande com um bilhete
criptografado.
Nikki já sabia o que era. Apontou o leitor de códigos
para ver o bilhete e o corpo de Tlö surgir à sua frente, sempre se movimentando, numa espécie de dança. Era quase
uma ópera.
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“Nikki, Nikki...eu não queria que fosse assim. Do fundo
do fundo do meu coração que eu não queria. Mas há coisas
maiores que eu e você. Você sabe do que estou falando. Eu
te peço, tente olhar para além dessa grande casca de ovo
em que vivemos. Lembre-se agora do que filme que vimos
juntos sobre a extinção dos pássaros, aqueles Fragmentos
para uma filosofia do voo. Lembre-se do que fomos, e do
que somos, e do que podemos ser. Nós podemos mudar a
codificação das coisas, Nikki. Lembre-se de mim. Profundamente em você. Coragem, Nikki-Nikki.”
Foi a última coisa que Tlö disse, quase sorrindo com
o apelido carinhoso. Então, Nikki entendeu. Recolheu da
mesa o pacote deixado por Tlö. Já não se viam traços de
crepúsculo, e Nikki andou firme em direção à voragem.
O mais belo voo é o último. Só que ninguém voltou para
contar.
114
primeira edição
impressa na gráfica eskenazi
para viveiros de castro editora
em dezembro de 2021.