Virgílio Rafael Feliciano Monteiro Dias
Qual a posição da Rússia
no hodierno "sistema-mundo"?
UMinho | 2017
Virgílio Rafael Feliciano Monteiro Dias
Qual a posição da Rússia no hodierno "sistema-mundo"?
Universidade do Minho
Escola de Economia e Gestão
Abril de 2017
Universidade do Minho
Escola de Economia e Gestão
Virgílio Rafael Feliciano Monteiro Dias
Qual a posição da Rússia
no hodierno “sistema-mundo”?
Dissertação de Mestrado
Mestrado em Relações Internacionais
Trabalho efectuado sob a orientação da
Professora Doutora Sandra Dias Fernandes
Abril de 2017
Declaração
Nome: Virgílio Rafael Feliciano Monteiro Dias
Endereço electrónico:
[email protected]
Número do cartão de cidadão: 13463845
Escola: Escola de Economia e Gestão
Departamento: Relações Internacionais e Administração Pública
Designação do Mestrado: Relações Internacionais
Título da Dissertação: Qual a posição da Rússia no hodierno “sistema-mundo”?
Orientador: Professora Doutora Sandra Dias Fernandes
Ano de conclusão: 2017
É autorizada a reprodução integral desta dissertação apenas para efeitos de
investigação, mediante declaração escrita do interessado, que a tal se compromete.
Universidade do Minho, Abril de 2017
Assinatura: ___________________________________________
ii
Agradecimentos
Conceber os agradecimentos desta dissertação é um processo que se afigura
injusto, considerando todos aqueles que de alguma forma influenciaram o meu
pensamento ao longo da vida e que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o meu
desenvolvimento pessoal e, por conseguinte, para o próprio desenvolvimento deste
trabalho. No entanto, mesmo reconhecendo esta importância, seria impossível listar os
nomes de todas essas pessoas. De qualquer modo, julgo ser relevante fazer aqui alguns
agradecimentos directos, considerando a significância de pessoas sem as quais ser-me-ia
totalmente impossível concretizar este trabalho. São esses os casos da minha mãe e avó,
que me deram todo os valores, apoio e sustento ao longo da minha vida, fundamentais
para desenvolver as capacidades e condições que me permitiram aqui chegar. Da minha
namorada que me apoiou e auxiliou, assim como ouviu muitos dos monólogos de
reflexão que tive ao longo de todo o tempo em que este trabalho se processou. Também
em memória do meu pai e tio-avó, que se revelaram decisivos na forma como moldei o
meu pensamento e o gosto pelo cultivo do conhecimento. Aos meus amigos, com quem
troquei ideias acerca da dissertação e que me forneceram novas perspectivas ou dados,
que contribuíram para a construção de uma reflexão mais sólida. À minha orientadora,
cuja orientação científica, material, temática e crítica foi da maior importância para o
rigor que se exige a um projecto deste tipo, contribuindo dessa forma para um trabalho
muito mais elaborado e completo. Agradeço também a todos aqueles, cuja referência
directa me é impossível de destacar, mas que de alguma forma contribuíram para a
conclusão desta dissertação.
iii
iv
Qual a posição da Rússia no hodierno “sistema-mundo”?
Resumo
Neste trabalho analisamos a Rússia no período compreendido entre 1998 e 2015,
fazendo para isso uso da Teoria da Dependência e do modelo de anпlise do “sistemamundo” de Immanuel Wallerstein. Considera-se que esta teoria irá contribuir para
esclarecer o poder e o potencial deste país no seio das Relações Internacionais
hodiernas, pois oПerece uma visуo destas numa perspectiva “centro”/”periferia”, em que
o poder é um reflexo das relações de produção. O fim da URSS em 1991 marcaria um
período de periferização da Rússia que se alastraria até ao ano de 1999, tendo um
importante impacto do ponto de vista socioeconómico e político. Isto significou um
aumento da “dependência” Пace ao “centro”, e em particular ao “centro heРemяnico” do
“sistema-mundo”, através de um processo de enПraquecimento das suas estruturas
produtivas e políticas. Procuramos estudar aqui a actual posição da Rússia no sistemamundo e qual a tendência que regista, considerando as alterações após 1999 com a
chegada de Vladimir Putin ao poder. A dependência russa das exportações de petróleo e
gás natural são o factor fundamental na sua relação com o sistema-mundo e da divisão
internacional do trabalho a ele associada. Coloca-se a hipótese de a Rússia se encontrar
numa posição “semi-periПérica”, reРistando uma tendência de melhoria da sua condiхуo
sistémica rumo ao centro, ainda que com fragilidades e contradições associadas à sua
estrutura económica e política, que limitam o seu desenvolvimento e acção. O nosso
modelo de análise retoma os cinco níveis de “imperialismo” (e “dependência” a eles
associada) apontados por Johan Galtung. Ou seja, a nível económico, comunicativo,
cultural, militar e político. Também será aqui argumentado que a actual elite dominante
na Rússia assume características semelhantes àquelas encontradas nos regimes da
América Latina entre os anos de 1960-90, a que alguns autores denominaram de
“burocrático-autoritários”,
caracterizadas
pelas
suas
perspectivas
objectivistas,
racionalistas e tecnocráticas. No entanto, é exactamente este regime que suporta a
Rússia enquanto “semi-periferia”, que a impede de ascender a centro.
Palavras-chave: imperialismo; teoria da dependência; sistema-mundo; desenvolvimento;
semi-periferia; modelo burocrático-autoritário; Rússia.
v
vi
What is Russia’s position in the hodiernal “world-system”?
Abstract
In this work, Russia is analyzed in the period from 1998 to 2015, using the Theory of
Dependency and the “world-system” analysis model of Immanuel Wallerstein. We
consider that this theory will contribute to clarify the power and potential of this country
in today's International Relations, since it offers a vieа oП these in a “core”/”periphery”
perspective, in which power is a reflection of the relations of production. The end of the
USSR in 1991 would mark a period of Russia’s peripherization that would spread until
the year 1999, having a significant socio-economic and political impact. This meant an
increase in “dependence” on the “core”, and in particular on the “hegemonic core” of
the “world-system”, through a process of weakening its productive and political
structures. We are trying to study here the current position of Russia in the worldsystem and what trend it is taking, considering the changes after 1999 with the arrival of
Vladimir Putin to power. Russia’s dependence on oil and natural gas exports is the key
factor in its relationship with the world-system and the international division of labor
associated with it. It is hypothesized that Russia will find itself in a “semi-peripheral”
position, with a tendency to improve its systemic condition towards the core, although
with weaknesses and contradictions associated with its economic and political structure,
which limit its development and action. Our analysis model will make use of the five
levels of “imperialism” (and “dependency” associated with them) pointed out by Johan
Galtung. That is, economic, communicative, cultural, military and political. It will also
be argued here that the current ruling elite in Russia assumes characteristics similar to
those found in Latin American regimes between the 1960s and 1990s, which some
authors have called bureaucratic-authoritarian, characterized by their objectivist,
rationalist and technocratic perspectives. It is, however, exactly this regime that
supports Russia as a “semi-periphery”, that prevents it from ascending to core.
Key words: imperialism; dependency theory; world-system; development; semiPeriphery; bureaucratic-authoritarian model; Russia.
vii
viii
Índice
Lista de Siglas .................................................................................................................. xi
Lista de Tabelas .............................................................................................................. xii
Lista de Figuras ............................................................................................................. xiii
Introdução ......................................................................................................................... 1
Parte 1 – Análise teórico-conceptual da Teoria da Dependência e perspectiva histórica
da Rússia ......................................................................................................................... 17
1 – Abordagens ao imperialismo: da Teoria Clássica ao Estruturalismo de Galtung 17
1.1 – Teoria Clássica do Imperialismo ................................................................... 18
1.2 – A consolidação da Teoria Clássica do Imperialismo com Vladimir Lenin ... 24
1.3 – O Imperialismo Estrutural de Johan Galtung ................................................ 29
2 – Teoria da Dependência ......................................................................................... 35
2.1 – Sobre o conceito de “desenvolvimento” ........................................................ 35
2.2 – O surgimento da Teoria da Dependência ...................................................... 37
2.3.1 – Os conceitos de “centro”, “periПeria” e “semi-periПeria” ....................... 42
2.3.2 – Os monopólios – a inevitável tendência sistémica ................................. 47
2.3.3 – Exportação de capitais – o motor do expansionismo imperialista.......... 49
2.3.4 – Desenvolvimento associado dependente ................................................ 51
2.4 – O “sistema-mundo” ....................................................................................... 53
2.5 – O modelo burocrático-autoritário: as elites políticas e os interesses
económicos ............................................................................................................. 57
3 – A Rússia no “sistema-mundo” numa perspectiva histяrica: 1950-1998 .............. 63
3.1 – Fase de 1950-1973 ......................................................................................... 65
3.2 – Fase de 1974-1984 ......................................................................................... 66
3.3 – Fase de 1985-1991 ......................................................................................... 68
3.4 – Fase de 1991-1998 ......................................................................................... 70
Parte 2 – Estudo da dependência russa no período 1998-2015 ...................................... 73
ix
4 – Avaliação dos graus de dependência russa ........................................................... 73
4.1 – Dependência socioeconómica........................................................................ 74
4.1.1 – Indicadores de dependência económica ................................................. 76
4.1.2 – As consequências da dependência económica na Rússia e outros dados
complementares ................................................................................................ 101
4.2 – Dependência sociopolítica e cultural. .......................................................... 120
4.2.1 – Dinâmicas da dependência cultural russa ............................................. 121
4.2.2 – Manifestações da dependência política russa após 1998 ...................... 126
4.2.3 – Rússia: um exemplo de um regime burocrático-autoritário? ............... 132
4.3 – Os reflexos da dependência russa na sua política externa ........................... 142
4.3.1 – A dependência militar e os seus resultados na acção externa da Rússia
.......................................................................................................................... 142
4.3.2 – A política externa russa ........................................................................ 146
Conclusão ..................................................................................................................... 155
Lista de Referências...................................................................................................... 169
x
Lista de Siglas
B-A – Burocrático-Autoritário;
BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul;
CEI – Comunidade de Estados Independentes;
CEPAL – Comissão Económica para a América Latina;
EUA – Estados Unidos da América;
FMI – Fundo Monetário Internacional;
FSB – Serviços Federal de Segurança;
I&D – Investigação e Desenvolvimento;
IDE – Investimento Directo Estrangeiro;
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico;
OCX – Organização para a Cooperação de Xangai;
OMC – Organização Mundial do Comércio;
ONU – Organização das Nações Unidas;
OSCE – Organização para a Segurança e Cooperação na Europa;
OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte;
OTSC – Organização do Tratado de Segurança Colectiva;
PCUS – Partido Comunista da União Soviética;
PIB – Produto Interno Bruto;
PNB – Produto Nacional Bruto;
UEE – União Económica Euroasiática;
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas;
USD – United States Dollars.
xi
Lista de Tabelas
Tabela 1: Ranking de Complexidade Económica em 2014. ........................................... 77
Tabela 2: Indicador de Complexidade Económica. ........................................................ 77
Tabela 3: Peso dos combustíveis nas exportações.......................................................... 78
Tabela 4: Índice de Diversificação de Exportações........................................................ 79
Tabela 5: Contribuição dos recursos naturais para o PIB. .............................................. 80
Tabela 6: Exportações de alta tecnologia. ...................................................................... 81
Tabela 7: Peso das exportações no PIB. ......................................................................... 82
Tabela 8: Peso das importações no PIB. ........................................................................ 82
Tabela 9: Termos de comércio líquidos do índice de comércio (2000=100). ................ 85
Tabela 10: Formação Bruta de Capital. .......................................................................... 86
Tabela 11: Percentagem de I&D no PIB. ....................................................................... 87
Tabela 12: Peso dos gastos públicos no PIB. ................................................................. 90
Tabela 13: Investimento público na economia nacional (percentagem do Orçamento
Consolidado)................................................................................................................... 90
Tabela 14: Peso das receitas do petróleo e gás natural no Orçamento Consolidado da
Federação Russa (%). ..................................................................................................... 91
Tabela 15: Valor acrescentado por sector na economia. ................................................ 92
Tabela 16: Investimento Directo Estrangeiro (percentagem do PIB)............................. 93
Tabela 17: Dívida pública externa (percentagem do PIB). ............................................ 96
Tabela 18: Percentagem das reservas de divisas face ao PIB......................................... 98
Tabela 19: Ajuda externa (milhares de milhões de USD a preços correntes de 2014). . 99
Tabela 20: Peso do consumo privado no PIB. .............................................................. 106
Tabela 21: População (em milhões). ............................................................................ 106
Tabela 22: PIB real (em milhares de milhões de USD a preços correntes de 2016). ... 109
Tabela 23: PIB real per capita (USD a preços correntes de 2016). ............................. 109
Tabela 24: Renda dos primeiros 20% e dos últimos 20% da população (percentagem do
total). ............................................................................................................................. 110
Tabela 25: Índice de GINI. ........................................................................................... 111
Tabela 26: Índice de Desenvolvimento Humano. ........................................................ 112
Tabela 27: Esperança média de vida (anos). ................................................................ 112
Tabela 28: Mortalidade infantil por mil nascimentos. .................................................. 113
xii
Tabela 29: Índice de Educação. .................................................................................... 113
Tabela 30: Taxa de desemprego. .................................................................................. 113
Lista de Figuras
Figura 1: Evolução do peso dos combustíveis nas exportações russas. ......................... 79
Figura 2: Contribuição dos recursos naturais para o PIB russo. ..................................... 80
Figura 3: Preço médio do petróleo (USD). ..................................................................... 85
Figura 4: Investimento Directo Estrangeiro na Rússia (percentagem do PIB)............... 94
Figura 5: Dívida pública externa russa (percentagem do PIB). ...................................... 97
Figura 6: Crescimento do PIB russo. ............................................................................ 104
Figura 7: Crescimento do PIB e preço médio do petróleo entre 1996-2015. ............... 104
Figura 8: Distribuição do transporte de carga por tipo de meios de transporte. ........... 116
Figura 9: Investimento em infraestruturas relativamente ao PIB. ................................ 116
xiii
xiv
Introdução
A Rússia tem experimentado desde o início dos anos 2000 uma nova fase de
desenvolvimento, marcando assim uma mudança relativamente ao período vivido nos
anos de 1990 caracterizados por retrocessos socioeconómicos, políticos, militares e
culturais. Esta recente transformação foi essencialmente baseada nas rendas das
exportações de matérias-primas e principalmente do petróleo e gás natural (Souza 2007,
26-33), aproveitando assim as grandes reservas destes recursos existentes no seu
território, assim como a alta dos preços nos mercados internacionais, o que permitiu à
Rússia encaixar elevadas receitas monetárias. Também a renacionalização de alguns
sectores económicos considerados estratégicos (Nazet 2007, 57; Sapir 2013), as
constantes desvalorizações do rublo (Souza 2007, 24) e o investimento através das
reservas acumuladas (Souza 2007, 35-36) foram ferramentas usadas para potenciar o
crescimento económico durante este período. Porém é necessário analisar e
compreender a profundidade do impacto que este enfoque nas matérias-primas, em
particular numa gama tão limitada, possui sobre a sua economia a curto, médio e longo
prazo, para se conseguir compreender também as alterações políticas, quer a nível
interno quer a nível externo.
Após as crises nos anos 90, era fundamental a estabilização política interna,
elemento que se encontrava ainda muito debilitado no final dessa década. Esta
normalização deveria ser alcançada não só através da consolidação do poder Estatal,
que foi fortemente debilitado após o fim da URSS (Sapir 2002, 2; 2013; Nazet 2007),
mas também no que concerne aos conflitos no Norte do Cáucaso e às aspirações
independentistas de algumas repúblicas desta região. Desde então os dirigentes políticos
russos têm procurado restabelecer o “respeito” internacional da Rússia, apesar de,
alegadamente, não almejarem que esta seja uma superpotência. Segundo as palavras de
Vladimir Putin “nуo é ambiхуo por heРemonia ou qualquer outro estatuto eПémero de
superpotência”1, argumentando que o que procuram para a Rússia é que esta seja
“respeitada”, sendo para isso Пulcral que eбistam “relaхões iРuais entre todos os
participantes da comunidade internacional”2 (Russia Today 2015). Todavia esta retórica
1
“[…] is not aspiring for hegemony or any ephemeral status of a superpoаer.” - tradução própria.
2
“[…] We аant equal relations аith all participants of the international community […]”, tradução própria.
1
da busca por “respeito” internacional tem servido como justificação e legitimação para o
Estado russo fortalecer o seu jugo e autoritarismo quer sobre a própria população
(Fernandes 2014), quer sobre os países vizinhos que faziam parte da ex-URSS, e
popularizados por vários autores como sendo definidos na Rússia pelo termo
“estranРeiro prябimo”3 (Safire 1994). Para além disso a elite política russa procura
afirmar a Rússia num mundo multipolar, em que esta desempenharia uma política
externa independente, isto é, seria um dos pólos principais nesta ordem mundial. Esta
intenção ficou bem clara no discurso de Putin na Conferência de Segurança de Munique
em 2007 (Putin 2007; Fernandes 2014).
Porém, esta política externa independente, simultaneamente procurando evitar
que haja qualquer tipo de intervenção externa, não é possível sem uma estrutura
económica e material que a suporte. A preponderância da infraestrutura sobre a
superestrutura é, aliás, um dos elementos nucleares da teorização marxista, já que a base
desta se encontra no materialismo. No preПпcio р sua obra “Contribuiхуo para a Crítica
da Economia Política” de 1859, Marб aПirma que é a totalidade das relaхões de
produção que constitui a estrutura económica da sociedade e da qual deriva
directamente a superstrutura legal e política ou, de uma forma mais generalizada, toda a
organização social4. Cardoso e Faletto (1977, 11) defendem que, quando se estuda a
dependência, é necessário encontrar um ponto em que o poder económico se expresse
como dominação social e portanto política. Já Santos (2011 [1978], 51) afirma que:
“Os elementos Пinanceiros, militares, políticos e culturais […] nуo podiam dar
permanência a um sistema de relações integradas como as que assistimos no
pós-guerra. Eles criam as condições que permitem tal permanência, mas não a
determinam. Para encontrá-las temos de ir à infraestrutura do sistema para
encontrar a célula deste processo mundial”5.
E esta relação abrange quer a esfera interna quer externa das relações políticas
desenvolvidas por um Estado. Tomando estas considerações como ponto de partida,
3
“ л
4
Tendo também jп abordado esta temпtica nos seus manuscritos sobre “A ideoloРia alemу” escritos em 1845, mas publicados
н
ру
ь ” - tradução própria.
apenas em 1932 (Marx 2000 [1932]).
5
“Los elementos financieros, militares, políticos y culturales que destacamos no podrían dar permanencia a un sistema de
relaciones integradas como a las que asistimos en la posguerra. Ellos crean las condiciones que permiten tal permanencia, pero no
la determinan. Para encontrarlas tenemos que ir a la infraestructura del sistema y buscar la célula de este proceso mundial.” tradução própria.
2
pressupõe-se que para suportar a sua superestrutura, a Rússia necessite de uma
infraestrutura económica suficientemente desenvolvida que lhe permita competir dentro
do sistema no qual participa. Tendo em conta que o próprio objectivo do sistema
capitalista é a eterna acumulação de capital (Wallerstein 1993, 3), significa isto que a
Rússia precisa de desenvolver constantemente as suas forças produtivas, a sua base
económica e material, com vista a poder levar a cabo não só a defesa do seu próprio
Estado internamente, mas também as suas ambições de seguir uma política externa o
mais independente possível dentro do sistema-mundo. Sendo que o sistema-mundo é a
nossa unidade de análise fundamental para a compreensão dos fenómenos aqui
trabalhados sobre a Rússia. Este conceito refere-se ao presente sistema económico
mundial, resultante da divisão internacional do trabalho e que pode ser definido de
Пorma mais concreta enquanto “economia-mundo capitalista”.
Para isso, um aspecto fundamental para alcançar uma solidez e estabilidade
económica duradoura é uma política económica que seja o menos volátil possível às
flutuações dos mercados internacionais. E isso é algo que de momento não se afigura
existir na Rússia. Esta última afirmação toma particular importância se tivermos em
atenção três situações recentes da história russa, a saber, as crises de 1998, 2008 e 2014.
Todas elas coincidindo com fortes quebras no preço do petróleo nos mercados
internacionais e todas elas provocando profundas recessões na economia russa (World
Bank 2016a; Macro Trends 2016). Sendo esta matéria-prima um dos principais
elementos que compõem a estrutura económica russa (World Bank 2016a),
compreende-se melhor a causa da concomitância destas crises com a quebra do preço do
petróleo. Em termos económicos é reconhecida a alta volatilidade dos preços das
matérias-primas e os vários perigos associados à dependência nas exportações deste tipo
de produtos, em particular daquilo que é conhecido como “Dutch disease” ou “doenхa
holandesa”6 (Bresser-Pereira 2008).
Esta fragilidade é também reconhecida oficialmente pelo aparelho governativo
russo, tal como Dmitry Rogozin (in Sputnik International 2015a) colocou quando
6
Fenómeno característico de países possuidores de um elevado nível de dependência relativamente à exportação de recursos
naturais, normalmente resultando em fluxos de capitais que provocam elevada procura em sectores não-transaccionáveis (serviços e
construção), em particular em momentos em que os preços das matérias-primas se encontram elevados nos mercados internacionais.
Daqui resulta um aumento de custos com o trabalho tanto nos sectores de bens não-transaccionáveis como de bens transaccionáveis,
tal como uma diminuição na competitividade dessas economias.
3
aПirmou que “a Rússia necessita de uma Reconquista industrial”7 e disso depende o seu
futuro. Ou até pelo discurso do antigo Presidente russo Dmitry Medvedev, quando
aПirmava que “é impossível Рanhar a lideranхa baseando-se nas condições do mercado
do petrяleo e Рпs natural”8, por isso identificou cinco prioridades de desenvolvimento
tecnológico, nomeadamente: eficiência na produção, transporte e uso de energia;
preservação e modernização de tecnologias nucleares; modernização de tecnologias de
informação; infraestruturas terrestres e espaciais de comunicação próprias; e finalmente,
avanços na produção de equipamento médico, métodos de diagnóstico e medicamentos
(Medvedev in Russia Today 2009).
Destaca-se aqui então um elemento que se torna determinante e condicionador
no desenvolvimento económico russo e, de forma inerente, dos seus projectos políticos
externos. Se tomarmos como exemplo a vertente militar como um dos pilares da
afirmação russa, e o ambicioso projecto de rearmamento em curso programado até 2020
(Sputnik Internacional 2015b), tal como aquele que se espera que lhe suceda, tomamos
consciência da importância que uma forte estrutura económica possui para a realização
destas aspirações. Tomamos também consciência dessa importância, quando
observamos a forma como a Rússia procura Пortalecer a sua “esПera de inПluência”, quer
através da extensão da participação das suas empresas energéticas, em particular junto
da sua vizinhança, quer através da participação militar nessa mesma região (Fernandes
2014), ou até mesmo fora dela, como recentemente na Síria. Mas também em termos de
estabilidade social e política interna este factor apresenta-se como preponderante, em
particular nas regiões problemáticas como o Norte do Cáucaso (Russia Today 2011).
Além disso, a análise da estrutura económica permite-nos entender a relevância
do enquadramento russo em fóruns multilaterais, como o BRICS ou como com os seus
parceiros da União Económica Euroasiática, Organização para a Cooperação de Xangai,
Organização do Tratado de Segurança Colectiva e da Comunidade de Estados
Independentes, assim como as relações que entre estes se desenvolvem. Este aspecto
leva-nos a reflectir sobre as questões do multilateralismo e da governação mundial
dentro do contexto do sistema internacional actual. Não somente nas organizações
supracitadas, mas de igual modo noutras organizações mais antigas, tal como o Fundo
Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização das Nações Unidas, Grupo dos
7
“Russia needs to see an industrial Reconquista […]” - tradução própria.
8
“It’s impossible to gain leadership based on oil and gas market conditions.” - tradução própria.
4
89, Conselho OTAN-Rússia, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa ou
Organização Mundial do Comércio, que desempenham um papel de crescente
relevância no sistema internacional como instrumentos de força usados pelos Estados
mais fortes sobre os mais fracos (Wallerstein 2006, 55). Da mesma forma os aspectos
que concernem ao declínio relativo da hegemonia norte-americana enquanto
superpotência mundial, tal como o surgimento de novas potências regionais, como
analisado por Hopkins et al (1996), leva-nos novamente a destacar a relevância que a
multipolaridade (Galtung 1971, 105) e o crescimento daquilo que era anteriormente
designado de periferia assumem no presente do sistema internacional e onde a Rússia
desempenha um papel relevante. Analisando as funcionalidades destas organizações,
observamos que, exceptuando a Organização do Tratado de Segurança Colectiva e
Conselho OTAN-Rússia, todas as restantes são organizações que trabalham em áreas
relacionadas com economia e desenvolvimento económico, tal como com políticas a
eles associadas. Isto evidencia assim, mais uma vez, a necessidade de previamente
entender em que nível de desenvolvimento se encontra a sua economia, em comparação
com o resto do mundo, de forma a conseguirmos compreender também as verdadeiras
capacidades da Rússia para interagir nos palcos internacionais e com outros Estados.
Chegando a este ponto, onde se verifica a importância que o factor material e
económico possui para a política interna e externa da Rússia, tal como os elementos que
o limitam, propomo-nos partir para uma análise mais detalhada do fenómeno, que nos
permita responder à seguinte questão, que se encontra no cerne da nossa investigação:
Qual a posição da Federação Russa no hodierno sistema-mundo?
Para ajudar a responder a esta questão central, procurar-se-á responder também a outras
sub-questões derivadas. Tais como: “é a Rússia um país dependente?”; “que níveis de
dependência evidencia nas пreas econяmica, política, militar, comunicativa e cultural?”.
Se essa dependência inicial se confirmar, parte-se então para outras sub-questões: “quais
as características que nos permitem evidenciá-la?”; “pertence р periferia ou semiperiferia e qual a tendência assumida da sua condiхуo?”; “serп isto um Пenяmeno
contemporсneo ou historicamente continuado?”; “qual a relaхуo e o impacto que essa
dependência poderá então possuir na forma como a Rússia interage no sistemamundo?”; “como é que a Rússia se aПirma no mundo e qual a relaхуo de causa e eПeito
9
Até à sua suspensão em 2014, resultado da crise envolvendo a Crimeia.
5
com a sua condiхуo dependente?”; “a Rússia possui estrutura para se reaПirmar?”; “qual
o impacto do multilateralismo na dependência russa?”; e “podemos encaiбar o reРime
político russo no modelo burocrático-autoritпrio?”. Todas estas perРuntas sуo Пeitas com
o objectivo de compreender a natureza da melhoria de posição de poder da Rússia no
sistema-mundo.
A hipótese principal que será colocada é que a Rússia é de facto um país
dependente no sistema-mundo e que se encaixa na caracterização de país da semiperiferia, quando considerados os cinco níveis de dependência apontados por Galtung
(1971, 91). Ou seja, a Rússia evidencia características de dependência face a um
conjunto de países mais desenvolvidos no sistema-mundo, o “centro” composto pelos
EUA, Europa Ocidental e Japão (Chase-Dunn et al 2000, 79; Galtung 1971, 103-104),
participando nas dinâmicas internacionais de forma desigual, quando comparada com
estes países. Todavia possui ainda um certo grau de desenvolvimento e autonomia
política, que lhe permite situar-se num patamar intermédio de importância no sistema
internacional, desenvolvendo ainda relações intermediárias entre países totalmente
PeriПéricos (dentro da lяРica de “interacхões Пeudais”10 descritas por Galtung (1971,
89)) e os países do centro, nomeadamente no processamento de algumas matériasprimas, no seu controlo para redistribuição no centro, e em aspectos militares, políticos,
culturais e comunicacionais. A nossa hipótese converge com a análise de vários
investigadores acerca de a Rússia ser historicamente considerada uma semi-periferia
(Wallertein 2011 [1974]; Babones e Babcicky 2011, 11; Ruvalcaba 2013, 160). Sendo
assim importará também procurar determinar qual o grau da sua condição semiperiférica no sistema mundo, para conseguir compreender se é um país que está numa
fase de progressão positiva da sua posição ou se, pelo contrário, se encontra em
decadência dentro do sistema.
Acrescenta-se ainda a hipótese da Rússia apresentar características de um tipo de
regime político e económico, que segue modelos semelhantes àqueles apontados por
vários autores que trabalharam os regimes burocrático-autoritários existentes na
América Latina nos anos de 1960 a 90 (Collier ed 1979). Onde as elites oligárquicas,
através do controlo das estruturas coercivas do aparelho Estatal e sob a influência do
capital monopolista e transnacional, procuram legitimar o seu poder junto da sociedade,
10
Processo através do qual desigualdades são mantidas e/ ou reforçadas (Galtung 1971, 89).
6
legitimando também uma condição subserviente na divisão internacional do trabalho e
no sistema-mundo capitalista. Porém, ao contrário do que acontecia nos regimes latinoamericanos, a Rússia não assume uma posição favorável ao centro hegemónico, pelo
contrário, procura seguir um caminho independente e autónomo deste. Se essas
semelhanças com os regimes da América Latina se verificarem, significa também que a
Rússia partilha as suas contradições, fragilidades e vulnerabilidades. O estudo do
comportamento das suas elites e a forma como estas exercem o seu poder é de grande
relevância para compreender qual a posição destas perante as estruturas sistémicas
dominantes, potenciando-nos assim respostas face à forma como a Rússia interage no
sistema-mundo.
Para o desenvolvimento deste trabalho, toma-se por base a linha de pensamento
materialista, que afirma que a realidade é uma construção social e que esta é
determinada pelas relações materiais, ou seja, pela produção e reprodução de mais-valia
(Marx 1999 [1859], prefácio; Marx 2000 [1932]). Daí a importância dada a priori ao
factor económico para a análise aqui produzida, enquanto elemento chave na
compreensão das dinâmicas estruturais no sistema internacional. O modelo teórico e
analítico que será utilizado é aquilo que se define como Teorias Marxistas ou Críticas,
dentro das quais será essencialmente focada a Teoria da Dependência. As Teorias
Críticas contrastam com os restantes três quadros teóricos dominantes das RI
(Realismo, Liberalismo e Construtivismo) por serem menos populares na actualidade,
em consequência do fim do Bloco de Leste e da experiência socialista real nos países
que o compunham (Fernandes 2013). Contudo a validade teórica destas ideias mantémse, sobretudo se se tiver em conta o crescente fosso de riqueza e de grau de
desenvolvimento entre os vários países no mundo e também dentro das próprias
sociedades, em particular desde os anos de 1980 (OECD 2014), revelando assim a
permanência de uma dicotomia entre centro e periferia, aspecto fundamental na análise
dependentista. As várias crises económicas ocorridas desde o fim do Bloco de Leste
contribuem também para a contemporaneidade desta corrente de pensamento. Em
particular se tomarmos por exemplo a crise que se seguiu a 2008, de natureza estrutural,
que levou uma desaceleração do crescimento económico no mundo (World Bank 2016a;
Sekhri 2009, 243) e que “[…] provou a imaturidade do sistema capitalista Рlobal e
7
questionou a Пorхa da ПilosoПia econяmica neoliberal”11 (Sekhri 2009, 243). Além disto,
vários dos outros problemas elencados pelos teóricos da dependência permanecem
actuais, como são os casos da dívida ou das balanças comerciais negativas que a
periferia possui relativamente ao centro (Sekhri 2009, 250).
Nestes aspectos a Teoria da Dependência providencia-nos as ferramentas que
possibilitam não só uma abordagem alternativa, mas fundamentalmente uma perspectiva
sistémica, unidisciplinar e holística. Centrando-se na totalidade dos fenómenos e não na
soma de análises individuais na procura de respostas e explicações, ou seja, de uma
forma contrária a uma perspectiva multidisciplinar. A escolha deste quadro teórico
deriva assim não só das suas perspectivas menos usuais dentro das Relações
Internacionais, proporcionando-nos um olhar alternativo sobre a Rússia e as suas
potencialidades, mas essencialmente das suas capacidades elucidativas acerca das
desigualdades económicas e de desenvolvimento, assim como os elementos que o
promovem ou inibem, dinâmicas de conflito geopolíticas imperialistas (Lenin 1975
[1916], 95-100), das dinâmicas de conflito de interesses entre as partes (Galtung 1971,
81-83), entre outros aspectos que serão aqui discutidos. Sendo que estas particularidades
são identificáveis como fruto dos antagonismos de interesses económicos e de interesses
geopolíticos que deles derivam.
Esta teoria permite-nos compreender o mundo como um sistema unido
economicamente, porém socialmente desigual e politicamente dividido. É precisamente
a ideia de que o capital não possui fronteiras e que o mundo é economicamente unido,
mas socialmente desigual e politicamente dividido (ou talvez não tão dividido como
possa parecer à primeira vista se considerar-mos a unidade sistémica existente), que nos
leva a colocar de parte a Teoria da Interdependência (Santos 1970, 231). Isto porque a
Teoria da Dependência reforça exactamente a ideia de que é a interdependência global,
que é característica do sistema internacional actual, a causa destas assimetrias e
consequentes conflitos (Galtung 1971, 81-83; Amaral 2012, 92). A Teoria da
Interdependência surge nos anos 70 e afirma que a quebra da relação estabelecida entre
duas ou mais partes, leva a que ambos percam (GriППiths e O’CallaРhan 2002, 160). Isto
porque todos os Estados estão sujeitos a duas distintas dimensões: “vulnerabilidade” e
“sensitividade”. A primeira destaca os aspectos relativos р distribuiхуo de custos
11
“[…] proved the immaturity of the global capitalist system and questioned the strength of the neoliberal economic philosophy” -
tradução própria.
8
quando os Estados reagem a mudanças. A segunda procura compreender o grau de
suscetibilidade dos Estados a mudanças que ocorram noutros Estados (Idem, ibidem).
Esta análise centraria o seu estudo na crescente transnacionalização da economia, seja
através de fluxos de capitais, seja através de empresas multinacionais; nas relações entre
a URSS e EUA durante a Guerra Fria; nas cada vez mais influentes organizações
internacionais; entre outros (Idem, ibidem).
Um desenvolvimento desta teoria surge com a Teoria da Interdependência
Complexa (Keohane & Nye 1977). Esta foca-se no papel do Estado dentro dos
processos
transnacionais,
vislumbrando
um
processo
de
globalização
em
aprofundamento, ligando assim elementos comuns ao Realismo e ao mesmo tempo
incorporando aspectos do Liberalismo (Rana 2015, 291; GriППiths e O’CallaРhan 2002,
158). Para isso centra-se em três aspectos que se encontram em mutação num sistema
internacional cada vez mais globalizado: a crescente interdependência entre Estados em
vários assuntos; a menor autonomia de decisão e de acção; e uma crescente fragilidade
dos Estados quando se relacionam entre si (Fernandes 2010, 21). A solução apontada é
a necessidade de fomentar a cooperação económica e política entre Estados, com vista à
redução do conflito e aumento da cooperação entre estes.
Porém, isto esconde não só formas de dominação entre Estados, mas também um
acentuar dos conflitos de carácter classista entre os Estados e dentro dos Estados.
Porque as dimensões de “sensitividade” e de “vulnerabilidade” destacadas assumem
proporções diferentes dentro do sistema-mundo, havendo países e regiões mais
“sensíveis” e mais “vulnerпveis” do que outros, e que portanto verуo essas ПraРilidades
serem exploradas por agentes mais fortes no sistema internacional. Retomamos aqui
uma questуo colocada por GaltunР (1971, 85): “quem beneПicia mais?”. Por isso,
pressupostos como o facto de a cooperação proporcionar transferências de capitais e
tecnologia para países menos desenvolvidos, a amenização de relações entre potências,
o desenvolvimento ou até mesmo os direitos humanos, tornam-se à luz das Teorias do
Imperialismo e da Dependência, aspectos altamente questionáveis dentro das
perspectivas desta teoria, que procura legitimar um sistema que por natureza é opressor
e explorador.
É necessário ressalvar que a Teoria da Dependência é um quadro teórico
constituído por várias correntes de vários autores de diferentes origens ideológicas,
9
realçando aspectos diferentes umas das outras, como se poderá verificar quando
analisarmos a evolução destas perspectivas na primeira parte deste trabalho. Todavia
isto parece afigurar-se como um ponto forte deste modelo teórico-analítico e não como
uma desvantagem, permitindo assim explorar este tema de uma forma mais flexível
quanto aos aspectos que consideramos mais relevantes e demonstrativos do nível de
dependência russo. Durante o período em que a teoria se encontrava mais em voga o
método de análise dos investigadores dependentistas centrava-se em abordagens
essencialmente qualitativas, dada a dificuldade existente na época na recolha de dados
que permitissem uma demonstração empírica mais profunda dos pressupostos
afirmados. Contudo é esperado que ao longo deste trabalho se faça um extensivo uso de
dados quantitativos, que permitam demonstrar a hipótese central apontada, dada a maior
abundância de dados relativos à Federação Russa, do que aos países analisados pelos
principais autores desta teoria nos anos 60, 70 e 80.
Os primeiros passos dados em torno do conceito de dependência foram feitos
por Hans Singer, Raúl Prebisch e Celso Furtado, pertencentes a uma corrente liberal
reformista keynesiana, que observaram a relação desigual no comércio entre países.
Aqui os países produtores de matéria-prima, quando exportavam os seus recursos para
os países mais desenvolvidos e produtores de bens manufacturados, ficavam sempre a
perder (Prebisch 1962 [1949], 81-86). Isto porque a matéria-prima é sempre mais barata
e os seus preços mais voláteis do que os bens acabados, resultando numa constante
acumulação de dívida (Ferraro 2008). São definidos os dois tipos de regiões envolvidas
nesta relaхуo: os países do “centro”, que eram os países ou reРiões mais desenvolvidos e
que correspondem hoje aos EUA, Europa Ocidental e Japão (Chase-Dunn et al 2000,
79; Galtung 1971, 103-104); e as reРiões “PeriПéricas”, que sуo as menos desenvolvidas
relativamente aos anteriores, correspondendo à larga maioria dos países do mundo
(Wallerstein 2011 [1974], 349; Blom e Charillon 2001, 51).
Em qualquer análise dependentista das correntes críticas, surge também o
conceito de “Imperialismo”, noхуo esta que ajuda a compreender o processo de
dependência tal como a teoria que o procura explicar, e centrado fundamentalmente nas
dinâmicas que emanam das nações do centro. Na verdade este conceito é indissociável
de qualquer análise crítica sobre a dependência, como nos mostra Galtung (1971). Da
mesma forma, para se aprofundar e complementar o estudo do imperialismo, é
importante compreender as relações envolvidas na dependência (Santos 2011 [1979],
10
357), focadas na perspectiva das regiões periféricas. Se os estudos da dependência
surgem nos anos de 1940, dentro de uma base liberal, será nos anos de 1960-70 que se
irão consolidar, ao adoptar uma metodologia baseada na corrente de pensamento
marxiana. Passam assim de uma simples análise de desigualdades comerciais e
económicas, para uma ampla e abrangente análise social, política e económica. A
exploração teórico-conceptual de “Imperialismo” que serп aqui desenvolvida
demonstrará todo o peso e relevância que esta definição possui dentro deste quadro
teórico. Para isso serão abordados quatro dos autores essenciais para a formulação do
conceito, a saber, Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky, Vladimir Lenin
(Amaral 2012, 11) e aos quais acrescentaremos Johan Galtung, pelo seu contributo na
temпtica do “imperialismo estrutural”. Isto apesar do conceito base ter surgido pela mão
de John Hobson em 1902, na obra “Imperialismo”.
Outro conceito que serп aproПundado neste eбercício é o de “sistema-mundo”.
Este modelo de análise foi desenvolvido pelo teórico Immanuel Wallerstein nos anos de
1970 e surge como crítica às ciências sociais existentes (Wallerstein 1998, 103) e, como
tal, também se encaixa nos estudos críticos. De grosso modo este conceito significa o(s)
sistema(s) económico(s) mundial(is) vigente(s), sendo o actual designado de
“economia-mundo capitalista”, Пruto da divisуo internacional do trabalho, onde
acontecem trocas intensivas de bens e serviços, tal como fluxos de capital ou de
trabalho (Wallerstein 2011 [1974], 347-350). Wallerstein (2011 [1974], 347) define-o
como:
“um sistema social, que possui fronteiras, estruturas, membros de grupos, regras
de legitimação e coerência. A sua vida é constituída por forças em conflito que o
mantém unido pela tensão, e o quebram quando cada grupo procura
internamente remodelá-lo para sua vantagem. Possui as características de um
organismo, na medida em que tem um período de vida no qual as suas
características mudam em alРuns aspectos e permanecem estпveis noutros.”12
Dentro desta economia-mundo existem muitas unidades políticas e culturais
diferentes, encaixadas num sistema interestatal. Contudo, e apesar desta diversidade, a
12
“[…] a social system, one that has boundaries, structures, member groups, rules of legitimation, and coherence. Its life is made
up of the conflicting forces which hold it together by tension, and tear it apart as each group seeks eternally to remold it to its
advantage. It has the characteristics of an organism, in that it has a life-span over which its characteristics change in some respects
and remain stable in others.” - tradução própria.
11
tendência está orientada para a homogeneização destes parâmetros (Wallerstein 2006,
23) e daí a principal unidade de análise ser o mundo como um todo (Wallerstein 1998,
106). Outra característica marcante deste modelo de análise é olhar para a história como
uma realidade contínua, encarando-a numa perspectiva de totalidade de forma a
conseguir analisar e procurar entender. Apesar de a podermos segmentar para a
observar, não se deve descurar que cada caso deve ser estudado tendo em conta os que
lhe precedem ou acompanham (Wallerstein 1974, 388-389), na medida em que a
realidade é uma construção social e, como tal, possui um passado que a condiciona no
presente.
Wallerstein acrescenta também outro conceito de análise que será fundamental
no trabalho que aqui serп desenvolvido: a “semi-periferia”. Esta semi-periferia é
constituída pelos países que servem de intermediários entre os países do centro e da
periferia, possuindo uma economia relativamente desenvolvida, contudo não o
suficiente para poderem ser classificados como desenvolvidos (Wallerstein 2011 [1974],
349). Não obstante, a sua tónica é colocada nas relações desiguais entre países e não
apenas nas relações entre classes dentro de países, como na teoria Marxista original
(Wallerstein 1974, 405).
Também a obra “O novo autoritarismo na América Latina”, editada por David
Collier (ed. 1979), será relevante para aprofundar o estudo das dinâmicas de
dependência e como elas actuam e se manifestam. Em particular com a descrição e
deПiniхуo do conceito de “Estado burocrпtico-autoritпrio”, onde esta estrutura serve
como ferramenta de legitimação da dominação dos países do centro sobre os países
menos desenvolvidos, permitindo a penetração dos interesses dos primeiros nos dos
últimos e procurando a sua aceitação. Para isso o Estado desenvolve um aparelho
baseado fundamentalmente nas suas estruturas militares, com orientações tecnocráticas
e onde procuram promover uma industrialização através de capitais estrangeiros
investidos nos seus países (Collier ed. 1979, 24-25). Na obra de Cardoso e Faletto
(1977, 56-58), baseando-se também nas experiências da América Latina, os autores
descrevem o fenómeno de entrada de capitais externos nesses países como
“desenvolvimento associado-dependente”. Este investimento eбterno é Пeito por
empresas que vão em busca de produzir os seus produtos onde a mão-de-obra é mais
barata, ajudando em certa medida o desenvolvimento económico desse país, através da
incorporação de tecnologia que não está à disposição do país receptor. Porém não só os
12
fluxos de capitais e tecnologia estão dependentes do exterior, mas também as decisões
económicas e até políticas passam a estar sob a influência dos agentes económicos
estrangeiros, o que acaba por resultar numa centralização autoritária do poder no Estado
(Cardoso e Faletto 1977, 61-62). O que será proposto neste trabalho é que o regime
político em vigor na Rússia corresponde em vários aspectos às características
normalmente apontadas aos regimes B-A, o que também nos ajudará a compreender
melhor a situação de dependência existente no país, assim como as condicionantes que
daí derivam.
Importante também para este trabalho, serão as questões relativas ao
“imperialismo estrutural” de Johan GaltunР (1971, 91), onde o autor concretiгa uma
abordagem às razões por detrás da aceitação das relações de dominação inerentes ao
imperialismo e, consequentemente, à dependência por este gerada. Para Galtung (1971,
83) é a harmonia de interesses entre as elites de cada país que permitem esta relação.
Através desta harmonia de interesses criam-se relaхões de tipo “Пeudal” entre o centro e
a periferia, em que os primeiros servem de soberanos sobre os segundos, estabelecendo
redes de domínio sobre estes (Galtung 1971, 89). Para que esta relação se concretize e
adense são utilizados cinco tipos distintos de imperialismo, com os tipos de dependência
a eles associados, e que servem de instrumentos de dominação entre nações. Estes tipos
de imperialismo destacados são: o económico, político (onde o estudo dos regimes B-A
será de grande importância para a sua compreensão), militar, cultural e comunicativo
(GaltunР 1971, 91). Pois para o autor “apenas o imperialismo imperПeito, amador,
precisa de armas; o imperialismo profissional é baseado numa violência estrutural em
veг de directa”13 (Galtung 1971, 91).
Partindo destas perspectivas, e em particular do cruzamento das ideias de
Galtung e Wallerstein, espera-se assim que esta teoria ajude a interpretar não só a
estrutura económica russa, mas também política e social, e principalmente a capacidade
de acção do Estado russo na sua orientação de reafirmação como grande potência.
Pretendendo-se também que esta investigação possa servir de ferramenta analítica para
futuros estudos, que se centrem na capacidade russa em agir no sistema internacional,
contribuindo para esclarecer as suas dinâmicas e potencial de acção. Daí a pergunta de
partida estabelecida acima de qual a posição da Rússia no hodierno sistema-mundo. Tal
13
“Only imperfect, amateurish imperialism needs аeapons; professional imperialism is based on structural rather than direct
violence” - tradução própria.
13
como compreender também mais sobre as dinâmicas internacionais de dominação
existentes e que condicionam a acção dos Estados no sistema internacional.
Para que este trabalho seja elaborado, será adoptado um modelo de análise que o
dividirá em duas partes centrais. Primeiramente será desenvolvida uma revisão
bibliográfica, que se centrará na análise teórico-conceptual da Teoria da Dependência e
das suas bases de pensamento. Este exercício terá como objectivo construir uma visão
sobre o tema ao longo da história e dentro da perspectiva de vários autores, de forma a
construir a base teórica do nosso estudo de caso mais adiante. Tendo isto em conta, será
iniciada a nossa abordagem com a Teoria Clássica do Imperialismo, segundo as
formulações de diversos autores, e a Teoria Estrutural do Imperialismo de Galtung
(1971); apenas após ter esta temática do imperialismo consolidada partiremos para a
Teoria da Dependência propriamente dita, dado esta ser considerada como
complementar da primeira e da necessidade de estudar as consequências do
imperialismo na periferia (Amaral 2012, 27), estando por isso indissociáveis uma da
outra. Nesta fase será ainda desenvolvida uma análise e enquadramento histórico da
Rússia, que incidirá sobre o período de 1950-1998. A selecção recai sobre este período
em particular, dadas as transições económicas e políticas verificadas durante o mesmo e
como forma de ter uma compreensão abrangente das suas estruturas ao longo do tempo,
tal como o seu impacto na actualidade. Do mesmo modo esperamos aqui perceber qual
a posição sistémica ocupada pela Rússia ao longo do tempo e quais as alterações que
presenciou, tendo como objectivo estabelecer um ponto de comparação com o período
em análise e identificar os ciclos históricos subjacentes ao quadro teórico escolhido para
este trabalho.
Na segunda parte deste trabalho seguiremos para o período central do nosso
estudo situado entre 1998-2015. Aqui serão desenvolvidos os cinco elementos relativos
ao imperialismo apresentados por Galtung – e, por consequência, à dependência por eles
provocada –, assim como várias vertentes da Teoria da Dependência, de forma a
possibilitar uma resposta à nossa questão de partida, sub-questões e hipótese. Para isso
será simultaneamente desenvolvida uma análise de dados macroeconómicos e
socioeconómicos, que nos permitam encontrar indicadores que sustentem o estudo das
temáticas aqui materializadas. No tratamento dos dados económicos, o primeiro
momento será inteiramente dedicado aos elementos directamente causadores de
dependência económica, fazendo para isso o cruzamento de vários factores apontados
14
pelos diversos teóricos da dependência, expressos em tabelas e gráficos que, através do
cruzamento dos dados recolhidos em diversas fontes, permitem a comparação entre a
Rússia, a média do G7 e dos EUA individualmente. O G7 será usado neste trabalho
dado representar o grupo de países mais desenvolvidos nas áreas socioeconómicas e
militares no mundo. O segundo momento será direccionado para compreender as
consequências da dependência russa, utilizando também diversos elementos
apresentados em tabelas e gráficos, e onde se inclui também o estudo das
infraestruturas. Este elemento é incluído por Galtung (1971, 92) na dimensão
comunicacional,
contudo
aqui
será
estudado
juntamente
com
a
dimensão
socioeconómica dadas as suas relações materiais de base. O estudo das dinâmicas
económicas será, por conseguinte, de grande importância para construir a análise da
capacidade de acção externa da Rússia. Dada a importância dos elementos económicos
na sociedade, estes influenciam de forma directa as restantes formas de dependência.
Daí serem os primeiros a serem analisados. Em todos os restantes domínios é claro o
destaque que a economia assume, seja nos interesses políticos e a forma como eles se
desenvolvem e se defendem, seja na capacidade de produção de armamento, de
desenvolvimento tecnológico ou na produção de conhecimento.
Posteriormente a nossa investigação passará para os aspectos relacionados com a
esfera sociopolítica e cultural. Para isso serão primeiramente abordadas as questões
relativas à dependência cultural, procurando estabelecer a posição russa no sistemamundo entre quem aprende e quem ensina, tomando um enfoque social e ideológico. O
ponto seguinte tratará dos aspectos associados com a dependência política, assim como
com a manifestação de sintomas de dependência nesta área, procurando indagar acerca
das dinâmicas que a provocam e que a mantêm. Será aqui feita uma análise de carácter
mais descritivo e usando aspectos mais gerais dependentistas. No último ponto da esfera
sociopolítica será trabalhado o modelo burocrático-autoritário aplicando-o ao caso de
estudo e procurando discernir as diferenças e semelhanças entre os modelos latinoamericanos das décadas de 1960-90 e o modelo russo do século XXI.
Finalmente procurar-se-á compreender as manifestações da dependência russa
na sua interacção com o sistema-mundo. Aqui inicialmente será feito um balanço da
dependência militar russa, buscando depreender as capacidades de produção e acção
militares russas no sistema-mundo. Para isso urge constatar a posição russa passível de
providenciar segurança e protecção dentro do sistema-mundo, comparando-a para isso
15
com o centro. Seguidamente abordamos a política externa russa e o seu relacionamento
quer com os países do centro quer com outras regiões periféricas. Neste aspecto torna-se
importante compreender a capacidade da Rússia em produzir decisões que sejam
seguidas por outros países, quer de forma directa, quer no âmbito multilateral através de
organizações internacionais de que faz parte. Procurar-se-á aqui também entender
melhor qual a importância russa num sistema internacional com dinâmicas
crescentemente multipolares, buscando discernir qual o seu papel através das
conclusões previamente obtidas.
16
Parte 1 – Análise teórico-conceptual da Teoria da Dependência e
perspectiva histórica da Rússia
1 – Abordagens ao imperialismo: da Teoria Clássica ao Estruturalismo
de Galtung
Não é a consciência do homem que determina a
sua existência, mas a sua existência social que
determina a sua consciência.
(Marx 1999 [1859])
Apesar dos estudos da dependência apenas surgirem no final dos anos de 1940
dentro de uma lógica liberal keynesiana com Raúl Prebisch, Hans Singer e Celso
Furtado (Amaral 2012, 29; Cravinho 2008, 185; Couto 2007, 46), os teóricos que
surgem nos anos 60 e 70 vão basear os seus fundamentos a uma corrente de pensamento
que remonta aos trabalhos e ao método de Karl Marx. Através da análise da evolução
dos diferentes estágios do capital, Marx observa que é o desenvolvimento das relações
materiais que determinam as estruturas sociais e as relações entre os homens (Marx
1999 [1859], preПпcio). O “materialismo histяrico” (baseado no materialismo dialético)
torna-se assim na ferramenta metodológica e analítica que servirá de base à Teoria do
Imperialismo, na sua fase mais desenvolvida.
De seguida faremos uma análise a alguns autores da Teoria Clássica do
Imperialismo, iniciando a temática através da visão de vários dos primeiros autores que
contribuíram para esta. Posteriormente passaremos para a análise de Vladimir Lenin,
sendo que esta já reflecte uma consolidação sobre o tema. Por fim, terminaremos com
um tópico de Johan GaltunР e a sua obra “Imperialismo Estrutural”.
17
1.1 – Teoria Clássica do Imperialismo
Ainda que a temática do imperialismo, enquanto fenómeno novo, surja pelas
mуos do economista liberal John Hobson, na sua obra “Imperialismo” de 1902, ele serп
essencialmente aprofundado por teóricos marxianos posteriormente. É, no entanto,
importante distinРuir o “imperialismo” que aqui serп analisado, e que se convenciona de
“novo imperialismo”, conceito surРido no Пinal do século XIX e que se distinРue
daquele que eбistia anteriormente. Este “novo imperialismo” é essencialmente um
fenómeno económico e que daqui deriva para outras esferas da estrutura social. A
distinхуo Пeita por Hobson (1902, 324) acerca deste novo imperialismo é que “o novo
imperialismo distingue-se do antigo, primeiro porque substitui a ambição de um único e
crescente império pela teoria e prática de impérios em competição, cada um motivado
pela cobiça de engrandecimento político e ganhos comerciais; segundo, pelo domínio
do sector financeiro ou de investimentos, sobre os interesses comerciais”. Os principais
autores desta teoria são, por ordem cronológica das suas obras de referência, Hobson
(Imperialismo 1902), Rudolf Hilferding (O Capital Financeiro 1910), Rosa Luxemburgo
(A Acumulação de Capital 1913), Karl Kautsky (O Imperialismo 1914) e Vladimir
Lenin (O Imperialismo, fase superior do Capitalismo 1916).
Passemos entуo р deПiniхуo daquilo que hoje se convenciona ser a “Teoria
Clпssica do Imperialismo”. Hobson (1902, 82-83) aПirma que “Imperialismo” é a
“súbita procura por mercados estranРeiros, por manuПacturas e por investimentos que
Пoi maniПestamente responsпvel pela adopхуo do Imperialismo como política […] Eles
necessitavam do Imperialismo porque eles desejavam fazer uso dos recursos públicos
do seu país de forma a encontrar usos proveitosos para o seu capital, que de outra forma
seria supérПluo”14. LuбemburРo (1951 [1913], 446) deПiniria imperialismo como “a
expressão política da acumulação de capital na sua luta competitiva por aquilo que
ainda resta do ambiente não-capitalista”15. Kautsky colocaria o imperialismo como “um
produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste no impulso de todas
as nações capitalistas industriais a submeter e anexar regiões agrárias cada vez mais
14
“It is this sudden demand for foreign markets for manufactures and for investments аhich is avowedly responsible for the
adoption of Imperialism as a political policy […] They need Imperialism because they desire to use the public resources of their
country to find profitable employment for the capital аhich otherаise аould be superfluous.” - tradução própria.
15
“Imperialism is the political expression of the accumulation of capital in its competitive struggle for what remains still open of the
non-capitalist environment.” - tradução própria.
18
vastas, independentemente da nacionalidade dos povos que as habitam” (Kautsky in
Amaral 2012, 20). Lenin (1975 [1916], 108) aПirma que “se Пosse preciso dar uma
definição o mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é
a fase monopolista do capitalismo”, na qual a Пase concorrencial do capitalismo deu
lugar à fase monopolista, como veremos mais à frente.
Todavia é necessário ter em conta aquilo que é a evolução do imperialismo
enquanto fase de um sistema caracterizado pela dominação e opressão, como apontado
pelos autores que aqui analisamos. Tal como as dialécticas de classe, também o
imperialismo acompanhou a evolução dos meios de produção. Se anteriormente as
relações entre classes se desenvolviam numa relação de força muito mais directa e
visível (como nas relações entre senhor e escravo ou entre senhor e servo), com o
surgimento das relações de classe entre capitalista e proletário, também o capitalismo
(em particular na sua fase imperialista) assume formas de dominação mais subtil, em
que apenas recorre à força em última instância. Se o proletário é obrigado a vender a sua
força de trabalho, de se alienar ao capitalista, como forma de obter um salário que
permita a sua manutenção enquanto indivíduo e da sua família, também o Estado menos
desenvolvido dentro do sistema-mundo, monetarizado e capitalista, necessita de alienar
a sua mais-valia, de forma a garantir a sua sobrevivência dentro do sistema, sob pena de
deixar de existir na sua presente forma. É aqui que surge a nossa análise sobre o
“Imperialismo Estrutural” e da “violência estrutural” de Johan GaltunР (1971), que
veremos mais à frente. Passemos então a abordar os contributos de alguns autores para a
Teoria Clássica do Imperialismo, em que se destaca particularmente Luxemburgo,
contudo referindo também alguns aspectos importantes de Hilferding e Kautsky.
Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi uma das primeiras pessoas a trabalhar o
imperialismo de uma forma aprofundada e parte para a sua análise sobre o tema através
dos problemas encontrados no processo de reprodução do capital descrito por Marx,
elaborando a partir daqui a sua teoria das crises (Amaral 2012, 15). Na sua obra
descreve que na sociedade capitalista o único objectivo que guia a reprodução é o lucro
e não mais a satisfação das necessidades da sociedade, como acontecia anteriormente
nas sociedades comunistas agrárias e esclavagistas/ feudais (Luxemburg 1951 [1913],
32-43). Como Luxemburgo (Luxemburg 1951 [1913], 42) coloca “a produхуo
capitalista não é a produção de bens de consumo, nem é meramente a produção de
mercadorias: é acima de tudo a produção de mais-valia. A expansão da reprodução, de
19
um ponto de vista capitalista, é a expansão da produção de mais-valia, apesar de isso
acontecer sob a forma de produção de mercadorias e sendo assim a produção de bens de
consumo”16. Esta relação é descrita como sendo um perpetuum mobile (Luxemburg
1951 [1913], 39) e desenvolve-se dentro de uma lógica de expansão eterna do capital
(Idem, 40-41). Então para que esta reprodução aconteça necessita de existir a procura
suficiente para que possa ser absorvida, ou como Luxemburgo expõe (1951 [1913], 47):
“Assumamos que o capitalista pode continuar a sua capitaliгaхуo anual de metade da
sua mais-valia por um determinado número de anos. Para este propósito não é suficiente
que os meios de produção, trabalho e mercados em geral sejam próximos, estes factores
devem ser encontrados em proporções que permitam manter o seu processo de
acumulaхуo”17. Esta ideia leva-nos para aquilo que Luxemburgo define como a teoria
das crises (Amaral 2012, 16), ou seja, a insuficiência da procura face à oferta, o que
limita o processo de reprodução.
Qual a solução proposta por Luxemburgo para a sobreprodução existente no
mundo capitalista como forma de evitar ou sair das crises? A resposta é o fenómeno do
imperialismo, ou seja, a exportação de capitais (quer sob a forma de empréstimos ou
investimentos), colonização e os conflitos geopolíticos (Amaral 2012, 18). Estes
aspectos já haviam sido, aliás, referidos previamente por Hilferding (1877-1941) na sua
obra de 1910, que apontava estes fenómenos como sendo resultado da monopolização
de capital sob alçada das instituições financeiras (Amaral 2012, 14). Como vimos
anteriormente, para Luxemburgo, o imperialismo é a expansão do sistema capitalista
para o que resta do mundo não capitalista, a financeirização, em termos globais, do que
outrora não era uma mercadoria, através da abertura de novos mercados. Esta
transformação é explicada por Luxemburgo através de vários processos que podem
ocorrer. A exportação de capitais, sendo um desses processos, decorre da necessidade
da colocação da produção excedente existente nos países capitalistas, noutros países. Os
empréstimos cumprem assim um papel inicial daquilo que é a exportação de capitais,
servindo para que os países menos desenvolvidos comprem as mercadorias ao país
16
“Capitalist production is not the production of consumer goods, nor is it merely the production of commodities: it is pre-
eminently the production of surplus value. Expanding reproduction, from a capitalist point of view, is expanding production of
surplus value, though it takes place in the forms of commodity production and is thus in the last instance the production of consumer
goods.” - tradução própria.
17
“Let us assume noа that the capitalist can continue the annual capitalization of half his surplus value for a number of years. For
this purpose it is not sufficient that means of production, labour and markets in general should be forthcoming, but he must find
these factores in a proportion that is strictly in keeping аith his progress in accumulation.” - tradução própria.
20
credor. Um dos exemplos dados é o da expansão das redes ferroviárias durante o século
XIX, contudo era aplicável a muitas outras mercadorias (Luxemburg 1951 [1913], 421).
Nos casos em que se tratavam de colяnias, essa construхуo servia apenas “uma política
imperialista, de monopolização económica e de subjugação económica das comunidades
atrasadas” (Idem, ibidem). Todavia, nos casos em que o devedor era um país
independente, estes empréstimos fornecidos serviriam para pagar a construção dos
caminhos-de-ferro aos próprios países credores. Onde a procura não existe, ela é criada
“voluntariamente ou pela Пorхa” (LuбemburР 1951 [1913], 427), apenas tendo um único
objectivo: a acumulação de capital; destruindo assim as organizações económicas
antigas dessas regiões.
Na sua obra é feita uma análise extensiva do processo de transformação da
economia egípcia para o sistema capitalista de produção e trocas comerciais, no qual os
empréstimos desempenham um papel fulcral na construção de infraestruturas de forma a
aumentar a produtividade (Luxemburg 1951 [1913], 429). Contudo, de forma a realizar
este mesmo objectivo de aumentar a produtividade o “EРipto Пicou preso na rede do
capitalismo europeu, para nunca mais dele Пicar livre” (LuбemburР 1951 [1913], 430)18.
Esta “rede” possuía como elemento de aderência os juros associados aos empréstimos e
a contínua necessidade de aumentar a produtividade para os poder pagar, e não
necessariamente para melhorar as condições de vida do país. O país encontrava-se tão
embrenhado nesta relação, que a produtividade não conseguia acompanhar a escalada
dos juros, sendo necessários novos empréstimos para os poder pagar (Luxemburg 1951
[1913], 434). É a constante transformação da economia camponesa egípcia, para uma
economia capitalista que alimentará esta importação de capitais. O controlo da
economia encontrava-se cada vez mais nas mãos de capitalistas estrangeiros e a
exploração dos servos egípcios era cada vez maior, quer em termos de trabalho forçado,
quer em termos de impostos, que contribuíam como Пontes de capital: “Despido de
todas as ligações obscuras, estas relações consistem no simples facto de que o capital
europeu absorveu em grande medida a economia camponesa egípcia. Enormes partes de
terra, trabalho e inúmeros produtos do trabalho, obtidos pelo Estado como impostos,
18
“Egypt became caught up in the аeb of European capitalism, never again to get free of it.” - tradução própria.
21
Пoram convertidos em capital europeu e Пoram acumulados” (LuбemburР 1951 [1913],
438)19.
Para que o processo de extracção de mais-valia da força de trabalho dos países
não-capitalistas seja realizado, existe a necessidade de se concretizarem trocas
comerciais. De forma a compreender este processo, Luxemburgo (1951 [1913], 444)
utiliza o exemplo da Turquia e do seu processo de transПormaхуo de “economia natural”
para uma economia capitalista. Nesta situação, como forma de realizar a mais-valia,
aquilo que anteriormente era um simples produto de subsistência das populações, como
os cereais, ao ser cobrado como imposto pelo Estado, passa a ser considerado como
uma mercadoria, possuindo um valor, o que pode acontecer mesmo ainda antes da sua
produção, sob a forma de garantia. Desta forma, este capital, já pode ser utilizado para
as despesas estatais. Esta relação é fundamental para compreender os processos de
extração de mais-valia dos países menos desenvolvidos.
Contudo todo este processo não se desenvolve meramente numa base pacífica e
sem recurso ao conflito. Se, como Luxemburgo (1951 [1913], 446) observa, os
“economistas clпssicos […] tinham tido esperanхas num desenvolvimento pacíПico da
acumulação de capital e de um comércio e indústria que apenas podem prosperar em
tempos de paг”20, o propósito de conseguir novos mercados e do livre comércio, levava
que este processo fosse muitas vezes conseguido de forma violenta, como no caso das
Guerras do Ópio, entre a Inglaterra e a China (Luxemburg 1951 [1913], 447). Na
Europa, durante a fase concorrencial do capitalismo, a tendência inicial de livre
comércio entre as várias nações, daria lugar à colocação de fortes barreiras tarifárias,
fruto do processo acumulação capitalista e de formação de monopólios (Luxemburg
1951 [1913], 449-451). Os monopólios possuíam agora a força necessária para exercer
pressões sobre os governos nacionais, de forma a defenderem a sua acumulação. O
fecho dos mercados na Europa levaria a uma nova e intensificada fase de expansão
colonial, em busca de novos mercados. O “livre-comércio” seria apenas aplicado aos
países mais fracos e não-capitalistas, incapazes de competir com os países mais
desenvolvidos (Luxemburg 1951 [1913], 449-451).
19
“Stripped of all obscuring connecting links, these relations consist in the simple fact that European capital has largely sаallowed
up the Egyptian peasant economy. Enormous tracts of land, labour, and labour products without number, accruing to the state as
taбes, have ultimately been converted into European capital and have been accumulated.” - tradução própria.
20
“Classical economics […] had had high hopes of a peaceful development of the accumulation of capital and of a trade and
industry аhich can only prosper in times of peace.” - tradução própria.
22
O fenómeno de formação de monopólios é um dos principais pontos abordados por
Hilferding, que o considera como o início de uma nova fase, em que a concentração de
capital teria originado a formação de monopólios capitalistas, baseados essencialmente
na fusão do capital industrial com o capital financeiro, com a predominância deste
último (Amaral 2012, 12), tal como Marx havia previsto quando falava da crescente
concentração e centralização do capital (Marx 1974 [1867], 396-397). Por considerar
que o processo de formação de monopólios se tratava de uma nova fase da
transformação do capitalismo, considerava também que o imperialismo seria então a
“Пase mais recente do desenvolvimento capitalista”, como surРe no subtítulo da sua
obra21 (Hilferding 1981 [1910]). Já Kautsky (1854-1938), apesar de reconhecer que o
imperialismo havia substituído o livre comércio, concebeu no entanto que isto se tratava
de uma solução política, premeditada e deliberada, por parte das nações desenvolvidas,
com o objectivo de suprir a necessidade de bens primários existente no capitalismo
industrial e resultante do diferencial de desenvolvimento verificado entre o sector
agrícola e industrial, através da apropriação e ocupação de terras (Kautsky 2004
[1914]). Na opinião de Kautsky o resultado final da competição monopolista entre as
potências imperialistas da altura, em busca de um monopólio global para elas próprias,
poderia resultar em alРo que o autor desiРnaria de “ultra-imperialismo”, uma “Пase”
superior do capitalismo em que o monopяlio seria detido por “uma Пederaхуo dos mais
fortes, que renunciam à sua corrida armamentista”, uma “santa alianхa dos
imperialistas” (Kaustky 2004 [1914])22.
A crescente necessidade de competir por novos mercados e de acumulação de
capital acentuaria então o fenómeno do militarismo. Se, nas fases iniciais do
capitalismo, o militarismo se baseava na conquista de novos territórios, agora era:
“[...] usado para subjuРar as colяnias modernas e destruiхуo das orРaniгaхões
sociais das sociedades primitivas, para que os seus meios de produção pudessem
ser apropriados, e forçadamente introduzir o comércio de mercadorias em países
onde a estrutura social tinha sido oposta a isso e de tornar os nativos em
proletariado, obrigando-os a trabalhar por salários nas colónias. É responsável
pela criação e expansão de esferas de interesse para o capital europeu em regiões
não-europeias, por extorquir concessões nas ferrovias de países atrasados e por
21
“A study of the latest phase of capitalist development.” - tradução própria.
22
“[…] a federation of the strongest, аho renounce their arms race. […] a holy alliance of the imperialists.” - tradução própria.
23
Пorхarem reivindicaхões do capital europeu enquanto credor internacional.”
(Luxemburg 1951 [1913], 454)23
Luxemburgo associa também o militarismo a mais um processo de transferência
de capital da classe trabalhadora para os monopólios, através dos impostos que são
utilizados para a aquisição de material militar (Luxemburg 1951 [1913], 454-455).
Sendo que as políticas militaristas contribuem para a acumulação de capital por parte
dos monopólios, estes incentivam a que haja uma acentuação do próprio militarismo,
assim como da utilização da força no exterior, como forma de valer esses mesmos
interesses, numa relação de duplo proveito: lucros na indústria do armamento e abertura
de novos mercados (Luxemburg 1951 [1913], 466).
1.2 – A consolidação da Teoria Clássica do Imperialismo com Vladimir
Lenin
Lenin (1870-1924) foi um dos autores que abordou a temática do imperialismo
de forma mais aprofundada e completa, fazendo-o também através das contribuições
dadas por outros autores anteriores e de uma forma dialéctica, o que lhe permitiu ter
uma visão mais crítica e completa sobre o que até aí havia sido escrito. Ele afirmava que
a chave da compreensão do imperialismo se encontrava na fase de desenvolvimento em
que o capitalismo se encontrava. Tinha-se dado uma transformação da essência do
capitalismo, passando de um capitalismo de base concorrencial e de competição, para
uma fase de concentração de capital e monopólio, sendo esta uma fase inevitável e mais
avançada do capitalismo. Inevitável, porque a livre concorrência gerava ela mesma a
concentração de capital, necessária pelo crescente volume de capital envolvido no
processo de produção. Ou seja, o capitalismo concorrencial gerava em si mesmo a sua
própria contradição, isto é, o monopólio (Lenin 1975 [1916], 29-36). Sendo o
monopólio superior aos pequenos competidores, dada a sua capacidade de os
condicionar, passa assim a submeter todos “ao seu juРo, р sua arbitrariedade” (Lenin
23
“[…] employed to subject the modern colonies, to destroy the social organizations of primitive societies so that their means of
production may be appropriated, forcibly to introduce commodity trade in countries where the social structure had been
unfavorable to it, and to turn the natives into a proletariat by compelling them to work for wages in the colonies. It is responsible
for the creation and expansion of spheres of interest for European capital in backward countries, and for enforcing the claims of
European capital as international lender.” - tradução própria.
24
1975 [1916], 39), e fazendo uso das crises como elemento que possibilitava uma
concentração de capital ainda maior (Lenin 1975 [1916], 42), passando assim a dominar
o próprio sistema. O autor (Lenin 1975 [1916], 143-144) descreve as manifestações do
capitalismo monopolista como sendo quatro, a saber:
1 – O monopólio é um produto da concentração da produção num grau muito
elevado do seu desenvolvimento;
2 – Os monopólios vieram agudizar a luta pela conquista das mais importantes
fontes de matérias-primas;
3 – O monopólio surgiu dos bancos;
4 – O monopólio surgiu da política colonial.
Neste processo os bancos desempenhavam um papel fundamental, em particular
os monopólios bancários, expressão máxima do capital financeiro. Lenin (1975 [1916],
46) descreve um processo de concentração de capital cada vez maior e mais expressivo
sob o domínio deste capital financeiro, sendo que estas instituições controlavam
crescentes fluxos dos capitais existentes. Neste sector a velocidade de absorção,
incorporação e subordinação das instituições mais pequenas, verificava-se a uma
velocidade superior àquela encontrada no capital industrial. Mas um novo processo
começava a tomar forma, a fusão entre capital industrial e capital financeiro, sob a
alçada deste último (Lenin 1975 [1916], 56). Cada vez mais o capital à disposição do
sector industrial era providenciado pelo sector bancário, sendo controlado por este
último, dada a concentração de capital que possuíam (Lenin 1975 [1916], 63). A
promiscuidade entre funcionários do Estado e o capital era algo também apontado na
sua obra (Lenin 1975 [1916], 74).
Posteriormente parte para anпlise da eбportaхуo de capitais. Aqui aПirma que “o
que caracteriza o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência,
era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual
impera o monopяlio, é a eбportaхуo de capitais” (Lenin 1975 [1916], 79). Esta noхуo é
fundamental para a análise do capitalismo monopolista e financeiro, ou imperialismo.
Lenin prossegue, afirmando que desta forma que o:
25
“capitalismo [consaРra-se][…] ao aumento desses beneПícios através da
exportação de capitais para o estrangeiro, para os países atrasados. Nestes países
atrasados o lucro é em geral elevado, pois os capitais são escassos, o preço da
terra e os salários relativamente baixos e as matérias-primas baratas. […] A
possibilidade da exportação de capitais é determinada pelo facto de uma série de
países atrasados terem sido já incorporados na circulação do capitalismo
mundial, terem sido construídas as principais vias férreas ou iniciada a sua
construção, terem sido asseguradas as condições elementares para o
desenvolvimento da indústria, etc. A necessidade da exportação de capitais
obedece ao facto de que em alguns países o capitalismo ‘amadureceu
eбcessivamente’ e o capital (dado o insuПiciente desenvolvimento da aРricultura
e a miséria das massas) carece de campo para a sua colocaхуo ‘lucrativa’”
(Lenin 1975 [1916], 80).
Evidencia-se aqui já uma grande proximidade com aquilo que os teóricos da
dependência abordariam mais tarde, quando centram as suas atenções nas exportações
de capitais através do Investimento Directo Estrangeiro, dívida e ajudas, como veremos
mais adiante.
Também a questão da partilha do mundo entre as potências imperialistas é
descrita por Lenin. Nesta situação o capitalismo levou à formação de um mercado
global, em que os monopólios anteriormente confinados às fronteiras dos países que lhe
deram origem, disputam agora o mercado global, em busca da formação de um
“supermonopяlio mundial” (Lenin 1975 [1916], 85). Os Рrupos capitalistas
estabeleciam relaхões entre si, com vista a uma “partilha econяmica do mundo”, ao
mesmo tempo que também os Estados estabeleciam relações que permitissem a
“partilha territorial do mundo”, o que naquela época siРniПicava a disputa por colяnias,
numa “luta pelo territяrio econяmico” (Lenin 1975 [1916], 93). Lenin (1975 [1916],
101) ressalva que “a política colonial e o imperialismo eбistiam jп antes da Пase última
do capitalismo e até mesmo do capitalismo”, todavia considera que quaisquer
“consideraхões ‘Рerais’ sobre o imperialismo, que esquecem ou releРam para seРundo
plano as diferenças radicais entre as formações económico-sociais, degeneram
inevitavelmente em trivialidades vaгias ou em jactсncias”. Denota-se aqui a importância
que o pensamento de Marx e o materialismo histórico possuem, nomeadamente o
desenvolvimento das relações materiais e a determinação das estruturas sociais.
26
O imperialismo serve também como ferramenta de apaziguamento social dentro
dos países desenvolvidos, contribuindo para o escoamento da produção e para o
fornecimento de mercadorias mais baratas a estes, assim como para a entrada de
rendimentos provenientes do exterior. Formava-se nos países desenvolvidos uma
distinхуo entre uma “camada superior” de operпrios e uma “camada inПerior, operпria
propriamente dita”, em que a primeira vivia das rendas provenientes do estranРeiro,
usando como exemplo o caso de Inglaterra em que cada vez mais gente vivia de
rendimentos (Lenin (1975 [1916], 125). A predisposição do imperialismo é para separar
cateРorias de privileРiados entre os operпrios e “para os separar das Рrandes massas do
proletariado”, “acentua-se o oportunismo entre os operпrios”, provocando uma
“decomposiхуo temporпria do movimento operпrio” (Lenin 1975 [1916], 126). Lenin,
recuperando EnРels, chama a este processo de “aburРuesamento” do proletariado (Idem,
ibidem).
Nуo obstante, este “apaгiРuamento” é Пeito sobre uma base de dominaхуo social.
Gera-se uma “superestrutura eбtra-econяmica”, Пruto do capital Пinanceiro, das suas
políticas e ideologias, e que recusam a liberdade (Lenin 1974 [1916], 103). Citando
HilПerdinР, reПere que “o capital Пinanceiro nуo quer a liberdade, mas a dominaхуo”
(Lenin 1975 [1916], 103). Esta dominação é imposta, quer dentro das nações
imperialistas, quer nos seus feudos, sejam eles colónias ou países formalmente
independentes, mas que são dependentes nas áreas financeiras e diplomáticas, também
referidos como protectorados ou semi-colónias. Nestes a dominação é feita, criando
laços entre as elites de colonizados e colonizadores (Lenin 1975 [1916], 104).
Desta relação entre as potências imperialistas e as suas colónias ou
protectorados, é mantida também uma relaхуo de “Estado usurпrio versus Estado
devedor”, em que o primeiro é uma potência imperialista e o seРundo é um seu
dependente. O primeiro exporta capitais para o segundo e vive das rendas extorquidas
deste. Esta relação é mantida de forma formalmente pacífica, contudo, em caso de
necessidade, o recurso à intimidação pelo uso da força militar é sempre a ferramenta
escolhida quando o devedor dá indícios de não querer pagar ou de se revoltar contra o
credor (Lenin 1975 [1916], 120). Desta relação faz também parte o processo de
concentração política e do uso da força. A seguinte afirmação de Lenin (1975 [1916],
138) evidencia bem o seu pensamento: “sob o capitalismo não se concebe outro
fundamento para a partilha das esferas de influência, dos interesses, das colónias, etc,
27
além da força de quem participa na divisão, a força económica, geral, financeira,
militar, etc”, Lenin continua aПirmando que “a Пorхa dos que participam não se modifica
de forma idêntica, visto que, sob o capitalismo, é impossível o desenvolvimento igual
das diferentes empresas, trusts, ramos industriais e países”. E se inicialmente o processo
de concentração política se desenvolve internamente, numa fase mais avançada será
transportado para as disputas territoriais por colónias ou semi-colónias em todo o
mundo (Lenin 1975 [1916], 114-115), onde as diferenças referidas anteriormente serão
evidenciadas. Aqui têm também grande impacto as estruturas comunicativas que
ajudam a desenvolver as relações de produção entre as metrópoles e as suas
dependências (Lenin 1975 [1916], 115-117). O mote desta relação é-nos dado por
Schulze Gaevernitz (in Lenin 1975 [1916], 120): “o credor estп mais solidamente ligado
ao devedor do que o vendedor ao comprador”. A aПirmaхуo anterior serve para
demonstrar a transformação que existiu, do capitalismo baseado nas trocas comerciais,
para um capitalismo financeiro baseado na extração de rendimentos.
Para Lenin (1975 [1916], 107) o imperialismo demonstra assim ser “uma Пase
particular do capitalismo”, e que “surРiu como desenvolvimento e consequência directa
das características Пundamentais do capitalismo em Рeral”. Mas essa transПormaхуo
apenas aconteceu quando o capitalismo alcançou um grau de desenvolvimento bastante
avançado. Trata-se duma estrutura social, algo inerente ao próprio sistema, e não apenas
uma política resultado de uma qualquer decisão deliberada. Esta ideia será reforçada,
quando o autor faz uma acérrima crítica a Kautsky, por este considerar o imperialismo
como uma opção política e não como fase do capitalismo (Lenin 1975 [1916], 109).
Ainda dentro da análise feita a Kautsky, e às suas afirmações em defesa da livre
concorrência em detrimento do monopólio, Lenin atesta que até se pode admitir que a
livre concorrência poderia ter um efeito positivo no desenvolvimento da economia e do
comércio, contudo “quanto mais rпpido é o desenvolvimento do capitalismo, mais
intensa é a concentração da produção e do capital que engendra o monopólio. E os
monopólios nasceram já precisamente da livre concorrência!” (Lenin 1975 [1916], 133).
Podemos então definir em cinco pontos essenciais, apontados por Lenin (1975
[1916], 108), o imperialismo, a saber:
28
1. A concentração da produção e do capital, levada a um grau tão elevado de
desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel
decisivo na vida económica;
2. A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse
“capital Пinanceiro”, da oliРarquia Пinanceira;
3. A exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire
uma importância particularmente grande;
4. A formação de associações monopolistas internacionais de capitalistas, que
partilham o mundo entre si;
5. O termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais
importantes.
1.3 – O Imperialismo Estrutural de Johan Galtung
Johan Galtung (1930-), na sua obra de 1971 “Uma Teoria Estrutural do
Imperialismo”, aborda as questões que subjaгem a desigualdade entre os países que
desiРna como “centro e “periferia”, colocando a tяnica analítica nas questões da
“violência estrutural” (GaltunР 1971, 81) e da Пorma como esta é usada num sistema
imperialista. O autor deПine imperialismo como “uma relaхуo de dominaхуo entre
colectividades, particularmente entre nações. É uma relação de dominação de tipo
sofisticado que atravessa nações, baseando-se numa testa-de-ponte que o centro da
nação do centro estabelece no centro da nação Periférica, para benefício mútuo de
ambos”24 (Galtung 1971, 81). O imperialismo surge como um “subtipo de alРo, que
possui ele mesmo subtipos a serem eбplorados mais tarde”25 (Idem, ibidem) e é uma
“combinaхуo de relaхões intra e internacionais”26 (Galtung 1971, 84). A distinção com a
definição marxista-leninista é feita na base de o autor a considerar “reducionista”, na
medida em que ela se fundamenta meramente nas relações económicas. Galtung (1971,
24
“[…] as a dominance relation between collectivities, particularly between nations. It is a sophisticated type of dominance
relation which cuts across nations, basing itself on a bridgehead which the center in the Center nation establishes in the center of
the Periphery nation, for the joint benefit of both” - tradução própria.
25
“It is a subtype of something, and has itself subtypes to be eбplored later.” - tradução própria.
26
“[…] combination of intra- and inter-national relations.” - tradução própria.
29
81) considera, no entanto, que “o imperialismo é uma relaхуo estrutural mais Рeral entre
duas colectividades, e deve ser entendido a um nível Рeral […]”27.
Posteriormente é analisada a temпtica do “conПlito de interesses”, enquanto
“situaхуo em que as partes perseРuem objectivos incompatíveis”28 (Idem, ibidem). Aqui
é aquele que estп de Пora que deПine os objectivos “verdadeiros” para serem seРuidos
pelas partes, independentemente dos valores que as partes procuram de forma explícita
(Galtung 1971, 82). O conflito de interesses existe quando está presente a desarmonia
nas condições de vida das partes e em particular quando esta aumenta. Da mesma
forma, esse conflito diminui ou deixa de existir, quando as diferenças nas condições de
vida diminuem ou desaparecem (Galtung 1971, 82). Podemos então concluir que o
conflito existe enquanto a diferença permanecer presente.
Relacionando “conПlito de interesses” com o conceito de imperialismo, Galtung
(1971, 83-84) estabelece três pontos basilares:
1. “eбiste uma harmonia de interesses entre o centro do centro e o centro da
periferia”;
2. “eбiste maior desarmonia de interesses dentro da naхуo PeriПérica do que dentro
das nações do centro”;
3. “eбiste desarmonia de interesses entre a periferia na nação do centro e a periferia
da naхуo PeriПérica”, sendo que a primeira se considera mais prябima do centro
da nação centro do que da periferia da nação Periférica, pois os resultados do
imperialismo acabam por beneficiar de alguma forma a periferia da nação do
centro (ex.: preços mais baixos de matérias-primas provenientes da periferia,
levam também a preços mais baixos no produto de consumo final no centro).
São também definidos dois mecanismos básicos existentes nas relações entre as
partes envolvidas, a saber, o “princípio de relaхуo de interacхуo vertical” e o “princípio
de estrutura de interacхуo Пeudal” (GaltunР, 1971, 85). O primeiro é descrito como o
processo de transação de bens, serviços e capitais, entre nações desenvolvidas, que
exportam bens manufacturados, e nações em desenvolvimento, que exportam matériaprima. Esta relação é composta por diferentes níveis de processamento, sendo que
27
“[…] imperialism is a more general structural relationship between two collectivities, and has to be understood at a general level
[…]” - tradução própria.
28
“[…] situation аhere parties are pursuing incompatible goals.” - tradução própria.
30
“processamento” é deПinido pelo autor como o acto de “impor Cultura sobre a
Natureгa”29 (Galtung 1971, 86), ou seja, o processo em que o Homem reduz ao mínimo
o elemento “Natureгa” num dado produto e onde a “Cultura” assume uma maior
relevância na essência desse mesmo produto. A questão que surРe daqui é “quem
beneПicia mais?”, relativamente aos resultados da interacхуo entre países desenvolvidos
e menos desenvolvidos (Galtung 1971, 85). O resultado destes fluxos é uma crescente
desigualdade entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, fruto do
processo de incremento de trabalho (Cultura) na matéria-prima (Natureza). Neste
processo os primeiros possuem uma maior capacidade para gerar valor e que se reforça
e expande ao longo tempo, ao passo que os países menos desenvolvidos não
experimentam os incentivos que lhes permitem desenvolver a sua própria capacidade
produtiva. O seРundo princípio é eбposto como o “Пactor que mantém e reПorхa esta
desigualdade, protegendo-a”30 (Galtung 1971, 89). É a relação que estrutura a interacção
não só entre o centro e a periferia, determinando-a como vertical, mas também
restringindo as interacções entre periferia e periferia, ou entre estas e o centro numa
base multilateral, sendo que a relação com o resto do mundo é condicionada e
monopolizada pelo centro, resultando numa limitação sobre a periferia que a impede de
interagir com outros centros (Galtung 1971, 89). Isto significa que existe uma
concentração de parceiros de comércio, quer para importações quer exportações para as
periferias, e resultando também em concentração numa gama limitada de produtos a
exportar por parte destas (Galtung 1971, 90).
Analisaremos o nosso estudo de caso aplicando os tipos de imperialismo
estabelecidos por Galtung (1971, 91). Estes são os seguintes:
1. Imperialismo económico;
2. Imperialismo político;
3. Imperialismo militar;
4. Imperialismo comunicacional;
5. Imperialismo cultural.
O imperialismo económico baseia-se nas relações desiguais descritas acima. O
imperialismo político baseia-se na concentração do poder de decisão no centro,
29
“[…] imposing Culture on Nature.” - tradução própria.
30
“[…] the factor that maintains and reinforces this inequality by protecting it.” - tradução própria.
31
“alРumas naхões produгem decisões, outras providenciam obediência”31 (Galtung 1971,
92). Esta relação pode ser desenvolvida através de assistência por parte da nação do
centro à periferia, por exemplo, ou simplesmente através de imitação da primeira pela
última, eбistindo “uma aura especial de leРitimidade em qualquer ideia que emane do
centro”32 (Idem, ibidem). O imperialismo militar é fundamentado na capacidade de
produção militar que apenas as nações do centro possuem, dada a capacidade de
processamento ao seu dispor. Sendo assim é o centro quem providencia segurança e
protecção. O imperialismo comunicacional serve como um meio para manter as relações
de tipo feudal. Para isso o centro faz uso da capacidade, que apenas ele dispõe, de
desenvolver a tecnologia mais avançada de transportes e comunicações. Aqui também a
comunicação social desempenha um papel relevante. E traçando um paralelismo com a
economia o autor aПirma que “a periferia […] produz eventos que o centro transforma
em notícias. Isto é feito treinando jornalistas para verem os eventos através dos olhos do
centro, e estabelecendo uma cadeia de comunicação que filtre e processe eventos para
que eles encaiбem no padrуo Рeral”33 (Galtung 1971, 93). E por fim o imperialismo
cultural que estabelece uma divisão entre aquele que ensina e aquele que aprende.
Assim é o centro quem define o que vale a pena ser ensinado, enquanto a periferia
fornece aqueles que vão aprender. A aceitação desta relação por parte da periferia é
vista pelo centro como forma de validação de si mesmo como centro, reforçando-o
assim (Idem, ibidem).
Para GaltunР (1971, 101) o “imperialismo é uma questуo de Рrau e se Пor
perfeito é um perfeito instrumento de violência estrutural. Quando é menos do que
perfeito algo deve ser substituído pelo que é perdido em violência estrutural: violência
directa ou, pelo menos, a ameaхa de violência directa”34. O autor afirma que é neste tipo
de situações que o imperialismo militar se torna fundamental, proporcionando
condições para desenvolver os restantes tipos de imperialismo. Não obstante,
compreende-se que o imperialismo militar, dentro de uma perspectiva de dominação
31
“[…] some nations produce decisions, others supply obedience.” - tradução própria.
32
“[…] a special aura of legitimacy to any idea emanating from the Center.” - tradução própria.
33
“[…] the Periphery also produces events that the Center turns into news. This is done by training journalists to see events with
Center eyes, and by setting up a chain of communication that filters and processes events so that they fit the general pattern.” tradução própria.
34
“Imperialism is a question of degree, and if it is perfect it is a perfect instrument of structural violence. When it is less than
perfect something must be substituted for what is lost in structural violence: direct violence, or at least the threat of direct
violence.” - tradução própria.
32
estrutural, surgirá sempre como arma de recurso, enquanto ferramenta que força os
restantes tipos de imperialismo em caso de extrema necessidade. Isso significa que, para
se promover o “imperialismo perПeito”, serуo os restantes tipos de imperialismo
descritos por Galtung que assumem maior nível de relevância e em particular o
imperialismo económico, enquanto principal forma de sustentação dos restantes, dadas
as suas características infraestruturais e materiais.
33
34
2 – Teoria da Dependência
A razão de ser do capitalismo é a eterna
acumulação de capital.
(Wallerstein 1993, 3)
2.1 – Sobre o conceito de desenvolvimento
Para se iniciar uma análise ao conceito de dependência importa, primeiramente,
rever outro conceito ao qual este está subjacente. Alude-se aqui ao conceito de
desenvolvimento,
ou,
talvez
melhor
ainda,
ao
binómio
desenvolvimento/
subdesenvolvimento. Antes de mais é relevante aПirmar que o “desenvolvimento é, em
si mesmo, um processo social”35 e que “nуo basta considerar as condiхões e eПeitos
sociais do sistema econяmico”36 (Cardoso e Faletto 1977, 7). Modelos de
desenvolvimento sуo também uma “abstracхуo ideolяРica”, pois reПerem-se a objectivos
de desenvolvimento que se pretendem alcançar tendo por base padrões de
desenvolvimento alcançados por outros países considerados desenvolvidos (Santos,
2011 [1978], 334), aquilo a que Cardoso e Faletto (1977, 9) desiРnam de “eПeito de
demonstraхуo” e para o qual Prebisch (1962 [1949], 77) alerta acerca da necessidade de
cuidado na “assimilaхуo de estilos de vida” dos países desenvolvidos.
As perspectivas dos autores dependentistas evidenciam uma crítica à visão
tradicional das causas do subdesenvolvimento, abordadas pelos autores da Teoria do
Desenvolvimento na altura representados essencialmente pelos defensores da Teoria da
Moderniгaхуo (Santos 2011 [1978], 332). Esta última coloca o “subdesenvolvimento
como uma ausência de desenvolvimento” e que o “[…] ‘atraso’ dos países
subdesenvolvidos era explicado pelos obstáculos que neles existiam ao seu pleno
desenvolvimento ou moderniгaхуo” (Santos in Amaral 2012, 28). Existe assim uma
tentação de copiar modelos de desenvolvimento passados, como forma de emular
35
“[…] desarrollo es, en sí mismo, un processo social […]”- tradução própria.
36
“[…] no basta considerar las condiciones y efectos sociales del sistema económico.” - tradução própria.
35
determinados estágios de desenvolvimento pelos quais os países mais desenvolvidos
passaram.
A explicação dependentista é radicalmente diferente e assume quatro pontos
fulcrais pelos quais passará a sua análise. Primeiro, existe uma relação próxima entre o
subdesenvolvimento dos países periféricos com o desenvolvimento dos países
avançados. Segundo, desenvolvimento e subdesenvolvimento são duas faces da mesma
moeda, ou seja, são parte intrínseca de um único sistema. Terceiro, o
subdesenvolvimento não é um estágio a partir do qual se parte para o desenvolvimento.
Quarto, e último ponto, a dependência não se evidencia apenas nas relações dos países
dependentes com o exterior, mas também nas dinâmicas internas desses mesmos países
(Amaral 2012, 32). Dentro da economia mundial capitalista, “todas as sociedades se
movem paralelas e juntas para uma nova sociedade”37 (Santos 2011 [1978], 334), dentro
de um processo histórico, que apesar de contínuo, não é linear. Desta forma modelos de
desenvolvimento não podem ser copiados e implantados noutros países considerados
subdesenvolvidos,
pois
essas
experiências
históricas
estariam
completamente
ultrapassadas, assim como “‘modelos’ de sociedade desenvolvida [nуo] sуo
cristaliгaхões de metas por alcanхar”38. O desenvolvimento acontece “como uma
experiência especíПica que se dп em certas condiхões histяricas especíПicas” e por isso
eбiste “a necessidade de deПinir estas condiхões histяricas que dуo o enquadramento
possível de um processo de desenvolvimento”39 (Santos 2011 [1978], 335). Santos
(2011 [1978], 355) aПirma que “a ciência do desenvolvimento (socioloРia ou economia)
só é ciência quando abandona o pressuposto de uma meta formal por alcançar e do
caminho para a alcançar e se lança na compreensão do desenvolvimento como um
processo histяrico”40.
Pelas palavras de Andre Gunder Frank trata-se aqui do “desenvolvimento do
subdesenvolvimento”, “o produto necessпrio de quatro séculos de capitalismo”41 (Frank
in Wallerstein 1974, 392), existindo assim uma relação causal e indissociável entre
37
38
“[…] todas las sociedades se mueven paralelas y juntas hacia una nueva sociedad.” - tradução própria.
“[…] ‘modelos’ de desarrollo eбistentes no se pueden repetir y tampoco los ‘modelos’ de sociedad desarrollada son
cristalizaciones de metas por alcanzar.” - tradução própria.
39
“[…]como una experiencia específica que se da en ciertas condiciones históricas específicas. […] la necesidad de definir estas
condiciones históricas que dan el marco posible de un proceso de desarrollo.” - tradução própria.
40
“La ciencia del desarrollo (sociología o economía) solo es ciencia cuando abandona el supuesto de una meta formal por
alcanzar y del caminho para alcanzarla y se lanza a la comprensión del desarrollo como processo histórico.” - tradução própria.
41
“[…]’underdevelopment … is the necessary product of four centuries of capitalism itself.” - tradução própria.
36
desenvolvimento e subdesenvolvimento, provocada pela acção das grandes corporações
multinacionais, Estados desenvolvidos e organizações internacionais (Wallerstein 2006,
12; Cardoso e Faletto 1977, 12). Esta relação é também indissociável da própria lógica
de acumulação capitalista, apontada pelos autores sobre o imperialismo acima
mencionados, que rege a economia mundial e que acentua diferenças económicas e
sociais entre classes, países e regiões. Por fim, é também importante realçar a diferença
entre o conceito de “subdesenvolvido” e “carente de desenvolvimento”, onde o último
se reПere р situaхуo das sociedades “que nуo mantém relaхões de mercado com os países
industrialiгados” (Cardoso e Faletto 1977, 12)42.
2.2 – O surgimento da Teoria da Dependência
A Teoria da Dependência surge nos anos de 1940 e 50, como resposta a modelos
de desenvolvimento que, como vimos atrпs, consideravam o “subdesenvolvimento
como uma ausência de desenvolvimento” e que “[…] o ‘atraso’ dos países
subdesenvolvidos era explicado pelos obstáculos que neles existiam ao seu pleno
desenvolvimento ou moderniгaхуo” (Santos in Amaral 2012, 28), ou seja, apontavam as
causas do subdesenvolvimento como possuindo origens endógenas aos próprios países,
excluindo do seu discurso qualquer influência externa.
Rejeitando as teses da Teoria da Modernização, o surgimento da Teoria da
Dependência e das suas diversas correntes, deriva da necessidade de compreender a
relação que se estabelece numa base de dependência estrutural entre a periferia
relativamente a um centro desenvolvido (Blom e Charillon 2001, 51) e em particular
sobre a análise do subdesenvolvimento da América Latina (Santos 2011 [1978], 355).
Os primeiros a assumirem esta relação de dependência estrutural são Hans Singer, Raúl
Prebisch e Celso Furtado (Amaral 2012, 29), afirmando que existia uma deterioração
dos termos de troca entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, sendo que os
primeiros ficariam favorecidos, pois o valor dos bens manufacturados seria sempre
superior ao das matérias-primas e menos volátil à flutuação de preços (Prebisch 1962
[1949], 81-86), resultando daqui uma relação de comércio desigual, que provocaria
42
“[…] que no mantiene relaciones de mercado con los países industrializados.” - tradução própria.
37
graves desequilíbrios financeiros nas regiões periféricas. Desta forma a solução para os
países subdesenvolvidos passaria por um processo de industrialização, aumentando a
produtividade e permitindo reter integralmente a mais-valia produzida, em vez de a
transferirem para os países centrais (Prebisch 1962 [1949], 72), numa lógica de
industrialização por substituição de importações (Cardoso e Faletto 1977, 5).
Esta contrastava com o anterior enfoque na exportação de matérias-primas,
nomeadamente produtos agrícolas e minerais, onde estes sectores eram dominados pela
oligarquia tradicional, herdeira da era colonial (Cardoso e Faletto 1977, 20). Este
domínio do sector produtivo também se reflectia numa dominação política e social, e
por isso a presença dos sectores oligárquicos no aparelho do Estado era significativa
(Idem, ibidem). Porém este tipo de política económica está fortemente condicionado
pelas dinâmicas de mercado mundiais controladas pelas economias centrais (Cardoso e
Faletto 1977, 21). Onde exista uma falta de capacidade para desenvolver as forças
produtivas locais, desenvolveu-se uma forma relativamente diferente de dependência,
caracterizada por Santos (2011 [1978], 368) como dependência financeiro-industrial.
Nesta, o desenvolvimento da produção de matérias-primas era controlado e financiado
pelo próprio centro, havendo assim uma subordinação total destas economias aos
agentes externos. E assim estes sectores tornavam-se aqueles que apresentavam um
nível tecnológico superior ao restante apresentado na economia onde se incluíam, pois
tornavam-se “prolonРaхões tecnolяРicas e Пinanceiras das economias centrais”, a
contrapartida era também os lucros pertencerem à economia central (Cardoso e Faletto
1977, 22-23). A aposta neste tipo de crescimento económico faz-se com base nas
vantagens comparativas de cada região, assim o resultado é a aposta na monoprodução e
pouca diferenciação do aparelho produtivo (Cardoso e Faletto 1977, 27), o que
propiciava que as economias ficassem altamente expostas aos défices da balança
comercial, dada a relação dos termos de troca, em que o país dependente saía sempre
prejudicado (Santos 2011 [1978], 372).
Para que a mudança de política económica ocorresse, estes países deveriam
centrar-se ao mesmo tempo na aquisição de tecnologia, que lhes permitisse diversificar
a estrutura produtiva e aumentar a produtividade, e na definição de uma política de
investimentos públicos, através da criação de infraestruturas, ou seja, baseavam-se na
crença de que o desenvolvimento dependia da própria capacidade interna de definir
políticas económicas (Cardoso e Faletto 1977, 5).
38
Porém esta teoria mantinha a “ideia do desenvolvimento económico como
continuum, […] [pois] nуo considerava o desenvolvimento e o subdesenvolvimento
como fenómenos qualitativamente diversos, marcados pelo antagonismo e a
complementaridade […] mas tуo-somente como expressões quantitativamente
diПerenciadas do processo histяrico da acumulaхуo de capital” (Marini in Amaral 2012,
30). Tal como era uma visão institucionalista e reformista, acreditando na possibilidade
de transformação sistémica a partir do interior do próprio sistema (Cravinho 2008, 186),
dentro da tradição keynesiana e associada à CEPAL43. As suas políticas económicas na
América Latina baseavam-se na industrialização para substituição de importações
(Prebisch 1962 [1949], 129) assente na burguesia nacional e no Estado, apostando nos
seus mercados internos suficientemente grandes e procurando ao mesmo tempo exportar
(Cardoso e Faletto 1977, 5 e 47).
O falhanço da implementação destas políticas em alguns países viram as
expectativas da CEPAL goradas durante os anos de 1950 e 60, quando a estagnação
atingiu esses mesmos países (Cardoso e Faletto 1977, 6), demonstrando que não eram
simples questões de política económica a implantar nos países subdesenvolvidos, mas
que eram questões estruturantes bem mais profundas. Santos (2011 [1978], 437) refere
mesmo
a
necessidade
de
“combater
qualquer
tendência
para
eбplicar
o
subdesenvolvimento e a dependência por meio dos mecanismos de intercсmbio”44,
considerando as causas destes dois fenómenos como sendo bem mais complexas do que
o inicialmente julgado.
Surge assim, nos anos 1960 e 70, uma nova corrente da Teoria da Dependência
de base marбiana. Esta nova corrente dependentista procurava “estudar a natureгa e o
alcance da crise Рeral do capitalismo contemporсneo”45 (Santos 2011 [1978], 7), sentida
neste período. Esta crise, juntamente com as contradições encerradas dentro da própria
natureza do capitalismo, resultava num aumento das desigualdades entre o centro e a
periferia, agravando o processo de desenvolvimento dos últimos, ao mesmo tempo que
reforça o dos primeiros (Santos 2011 [1978], 8-9). Para estes autores importava então
compreender os processos de extração de capitais da periferia para o centro, sob o
43
44
CEPAL (Comissão Económica para a América Latina).
“Hay que combatir cualquier tendencia a eбplicar el subdesarrollo y la dependência por medio de los mecanismos de
intercambio.” - tradução própria.
45
“[…] estudiar la naturaleza y el alcance de la crisis general del capitalismo contemporáneo.” - tradução própria.
39
prisma da lógica de acumulação global capitalista, pois o subdesenvolvimento e o
desenvolvimento eram elementos de um mesmo sistema, não excludentes, mas
complementares (Amaral 2012, 32). Um aspecto no qual todos os teóricos
dependentistas convergem é que:
“[…] a dependência é um componente estrutural do desenvolvimento na
periferia, de tal modo que as formas externas de exploração não são exclusivas
[a]quando da determinação da condição mais ou menos depende da periferia,
devendo haver necessariamente uma combinação entre os condicionantes
externos e internos de transformação, sendo que estes últimos se compõem pela
contradição existente entre as classes locais dominantes (que integram a aliança
no poder) e as dominadas (que estуo Пora desta alianхa)” (Amaral 2012, 36).
Por isso o enfoque da análise dependentista centra-se nos factores que determinam o
desenvolvimento ou a sua inibição, partindo do ponto de vista das periferias. Cardoso e
Faletto, apesar de aqui se incluírem, pertencem àquilo que é designado como a corrente
weberiana da dependência, baseada numa lógica capitalista de desenvolvimento
associado dependente, que afirma que a industrialização deve ser conseguida através da
integração dos países dentro do sistema, aproveitando os capitais estrangeiros investidos
nos seus países como forma de promover o desenvolvimento económico.
A Teoria da Dependência é vista como o resultado necessário para
complementar a Teoria do Imperialismo, analisando o resultado das dinâmicas
imperialistas na periferia (Amaral 2012, 27). E, tal como nos conceitos de
desenvolvimento/ subdesenvolvimento, também no conceito de dependência existe uma
inerência de relatividade, neste caso enquanto “relaхуo de subordinaхуo entre naхões
formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da
dependência” (Marini in Amaral 2012, 42). Isto é, existe uma relação de dependência
relativamente a nações mais desenvolvidas e a economia dos países periféricos acaba
por sofrer condicionantes que impedem o desenvolvimento independente, assegurando
que esta dependência se prolonga no tempo e limitando assim a sua capacidade de
decisão e de acção (Santos 2011 [1978], 361).
A dependência é uma manifestação interna, numa relação de causa-efeito
(Cardoso e Faletto 1977, 11; Santos 2011 [1978], 356). Tal como a sua noхуo “alude
40
directamente às condições de existência e funcionamento do sistema económico e do
sistema político, mostrando as vinculações entre ambos, tanto no que se refere ao plano
interno dos países como ao eбterno”46 (Cardoso e Faletto 1977, 12). Este aspecto fica
também bem patente no objectivo presente no trabalho de Cardoso e Faletto (1977, 11):
“Como o objectivo deste ensaio é eбplicar os processos econяmicos como
processos sociais, requer-se encontrar um ponto de intersecção teórica onde o
poder económico se expresse como dominação social, isto é, como política; pois,
através do processo político, uma classe ou grupo económico procura estabelecer
um sistema de relações sociais que lhe permita impor ao conjunto da sociedade
um modo produção próprio, ou pelo menos procura estabelecer alianças ou
subordinar o resto dos grupos ou classes a fim de desenvolver uma forma
económica compatível com os seus interesses e objectivos. Os modos de relação
económica, por sua vez, delimitam os marcos em que tem lugar a acção
política.”47
Considerando tudo isto, surРe entуo a seРuinte questуo: “quais os Пactores
externos que inibem o desenvolvimento da periferia?”. Assumindo que sуo as
condicionantes estruturais que inibem o desenvolvimento das regiões periféricas, é
necessário olhar para os mecanismos usados pelo centro para exercer o seu domínio e
hegemonia, dentro dessa mesma estrutura. Santos (2011 [1978], 368) afirma que as
formas históricas de dependência estão condicionadas:
1. “Pelas Пormas bпsicas da economia mundial, que tem as suas prяprias leis de
desenvolvimento”;
2. “Pelo tipo de relaхões econяmicas dominantes nos centros capitalistas e os
modos como se eбpandem para o eбterior”;
46
“La noción de dependencia alude directamente a las condiciones de eбistência y funcionamento del sistema económico y del
sistema político, mostrando las vinculaciones entre ambos, tanto en lo que se refiere al plano interno de los países como al
eбterno.” - tradução própria.
47
“Como el objetivo de este ensayo es eбplicar los procesos económicos como procesos sociales, se requiere buscar un punto de
intersección teórica donde el poder económico se exprese como dominación social, esto es, como política; pues, a través del
proceso político, una clase o grupo económico intenta establecer un sistema de relaciones sociales que le permitan imponer al
conjunto de la sociedad un modo de producción propio, o por lo menos intenta establecer alianzas o subordinar al resto de los
grupos o clases con el fin de desarrollar un forma económica compatible con sus interese y objetivos. Los modos de relación
económica, a su vez, delimitan los marcos en que tiene lugar la acción política.” - tradução própria.
41
3. “Pelos tipos de relaхões econяmicas eбistentes no interior dos países que se
articularam na condição dependente, no seio das relações económicas
internacionais geradas pela expansão capitalista”48;
E define três formas de dependência diferentes, a saber: a dependência colonial, de
característica
comercial-exportadora;
a
dependência
financeiro-industrial;
e
a
dependência tecnológico-industrial (Santos 2011 [1978], 368). Na primeira, o Estado
colonialista, juntamente com o capital comercial e financeiro exercia o domínio das
relações económicas sobre as colónias, impondo assim a sua vontade e determinando
essas mesmas relações. O segundo é caracterizado pelo domínio dos monopólios que
procuram investir no exterior para a produção de bens primários que são procurados e
consumidos no centro. O terceiro é característico do período pós-Segunda Guerra
Mundial e caracteriza-se pelas empresas transnacionais que investem no exterior, mas
com vista a fornecer os mercados internos das periferias (Santos 2011 [1978], 368-369).
De seguida, iremos analisar alguns dos fenómenos e conceitos centrais da Teoria
da Dependência.
2.3.1 – Os conceitos de centro , periferia e semi-periferia
Importante também, para nos lançarmos numa abordagem mais ampla sobre as
dinсmicas da dependência, é deПinir claramente os conceitos de “centro”, “periferia” e
de “semi-periferia”. E veremos aqui que as relaхões entre países mais nуo sуo do que
uma “luta de classes” transportada para o campo da política internacional, fruto da
divisão internacional do trabalho dentro do sistema capitalista (Blom e Charillon 2001,
51). Johan GaltunР Пoi um dos primeiros a deПinir conceptualmente o que era o “centro”
e o que era a “periferia” (Mahler 1980, 52). Para GaltunР (1971, 81) “o mundo consiste
em nações do centro e periferia; e cada nação por seu turno, tem os seus centros e
periferia”49, sendo estes últimos representativos das classes existentes dentro dessas
48
“1. Las formas básicas de la economía mundial, que tiene sus próprias leyes de desarrollo; 2. el tipo de relaciones económicas
dominantes en los centros capitalistas y los modos como se expanden hacia el exterior; 3. los tipos de relaciones económicas
existentes en el interior de los países que se articularon en la condición dependiente, en el seno de las relaciones económicas
internacionales generadas por la eбpansión capitalista.” - tradução própria.
49
“The аorld consists of Center and Periphery nations; and each nation, in turn, has its centers and periphery.” - tradução própria.
42
mesmas nações. Esta distinção não é meramente conceptual, pois é visível nas
interacções entre nações, naquilo que o autor define como relações de verticalidade
(Galtung, 1971, 104). Aprofundando mais os conceitos através de uma análise empírica
prévia, Galtung (1971, 103) afirma que existem três aspectos que os definem: o
primeiro é em termos de propriedade absoluta, como por exemplo variáveis de
desenvolvimento, onde o centro está bem classificado e a periferia não; o segundo é em
termos de relações de interacção, como por exemplo na composição do comércio, onde
o centro enriquece mais do que a periferia; e, por fim, em termos de interacção de
estrutura, como por exemplo nas concentrações de bens e parceiros de comércio, onde o
centro está colocado num ponto fulcral da rede de interacções, ao contrário da periferia,
sendo que esta apresenta níveis de concentração maiores. Todavia podem existir casos
de relatividade quanto à centralidade de uma nação, pois em alguns aspectos pode-se
considerar central, porém noutros poderá ser periférica (Galtung 1971, 104).
A periferia não apresenta uma delimitação geográfica evidente, sendo
caracterizada pela dominação sofrida (Blom e Charillon 2001, 51). Para Chase-Dunn et
al (2000, 79) os Estados do centro possuem maior autonomia política, militar e
económica do que os Estado periféricos, que por sua vez são mais pobres e fracos. No
centro, o papel do Estado é fundamental, servindo-se de uma máquina estatal forte, que
aliada à cultura nacional, proporciona as condições que mantêm as desigualdades
internas ou eбternas dentro do sistema, como uma “mпscara ideolяРica e justiПicaхуo
para a manutenхуo dessas disparidades” (Wallerstein 2011 [1974], 349). Um outro
aspecto relevante que Wallerstein (Idem, ibidem) acrescenta ao conceito de “periferia” é
definindo-a como “пrea” e nуo como Estado, justiПicando que nesta o Estado pode até
nem existir, como no caso das colónias, ou ter um baixo nível de autonomia como numa
situação neo-colonial.
Os centros estão associados a impérios e as relações entre impérios são relações
entre os centros dos centros destes impérios (Galtung 1971, 105). Apesar de em
situações normais estes impérios poderem competir entre si, existem outras situações
mais atípicas, em que são concebíveis relações de cooperação entre impérios para a
protecção do sistema enquanto tal, se o mesmo for partilhado por ambos, ou no caso de
não o ser para proteger as próprias relações imperialistas (Idem, ibidem). Galtung
afirma que as relações entre impérios se dão essencialmente entre centros desses
impérios, pois traça um padrão de interacção verticalizado entre centro e periferia,
43
descrevendo-as como relações de tipo feudal, servindo estas relações para manter e
reforçar a desigualdade entre os centros e as periferias (Galtung 1971, 89). Nesta lógica
a periferia de um império vê a sua interacção com a periferia de outro império limitada
(Idem, ibidem). Tal como a periferia de um império não interage com o centro de outro
império (Idem, ibidem), excepto nas situações atípicas acima descritas. Estas situações
atípicas são importantes para analisar um mundo multipolar através das perspectivas do
imperialismo e da dependência, já que estas situações implicam relações entre os
impérios. Assim “do ponto de vista das nações da periferia, um mundo com mais
impérios, o que significa acima de tudo um mundo com mais nações centro, é pelo
menos potencialmente um mundo com mais possibilidades”50 (Galtung 1971, 105).
Outro conceito que fará parte da nossa hipótese principal, serп o de “semiperiferia”51. E apesar do termo em si ser especialmente trabalhado por Wallerstein, já
anteriormente GaltunР (1971, 104) havia Пeito menхуo a uma “terceira naхуo entre as
nações do centro e periferia”52, tal como a uma respectiva terceira classe social53. Esta
nação é descrita como intermediária, particularmente produzindo bens semiprocessados, que trocaria com o centro por bens altamente processados, ou com a
periferia por matérias-primas. Tal como também serviria como intermediária na relação
feudal existente. Esta nação intermediária estaria também atrás do centro em termos
tecnológicos, mas à frente da periferia. Para Wallerstein (2011 [1974], 349) as semiperiferias são:
“пreas que estуo entre o centro e a periferia numa série de dimensões, como a
complexidade das actividades económicas, na força da máquina do Estado,
integridade cultural, etc. Algumas destas áreas foram áreas-centro em versões
anteriores de uma dada economia-mundo. Outras foram áreas periféricas que
50
“[…] from the viewpoint of the Periphery nations. A world with more empires, which above all means a world with more Center
nations, is at least potentially a world with more possibilities.” - tradução própria.
51
Existem outros autores que, posteriormente, desdobram o conceito de semi-periferia em dois ou mais tipos (Ruvalcaba 2013,
155-156).
52
“[…] a third nation betаeen the Center and Periphery nations.” - tradução própria.
53
Posteriormente, outros autores aprofundariam e complementariam o conceito, como Fernand Braudel, André Gunder Frank, Janet
Abu-Lughod, Giovanni Arrighi e Jessica Drangel, Christopher Chase-Dunn, Peter Taylor e Colin Flint, Kees Terlouw, Ben
Deurdder, José Maurício Domingues, Carlos Antonio Aguirre e Peter Wilkin (Ruvalcaba 2013, 142).
44
posteriormente foram promovidas, por assim dizer, como resultado de mudanças
geopolíticas de uma economia-mundo em eбpansуo.”54
Estas áreas são consideradas como elemento essencial no contexto de uma economiamundo, pois “deПlectem parcialmente as pressões políticas que grupos essencialmente
localizados em áreas periféricas poderiam de outra forma direccionar contra os Estados
do centro e os Рrupos que operam dentro e através das suas mпquinas estatais” (Idem,
ibidem).
A semi-periferia assume assim um papel mais político do que económico, apesar
de também na área económica ter um lugar bem definido dentro da economia-mundo,
pois oferece estabilidade ao sistema, permitindo que este seja menos polarizado, sendo
esta região ao mesmo tempo exploradora e explorada (Wallerstein 1974, 405). No
aspecto económico a semi-periferia acaba por desempenhar um papel de receptora de
processos de produção obsoletos nos países centrais, contudo ainda relevantes dentro da
economia-mundo, antes de estes passarem para a periferia (Wallerstein 2006, 29), sendo
que este processo se desenrola através de “desnacionaliгaхões” e de Investimento
Directo Estrangeiro (IDE), ou por simples transferência tecnológica (Amaral 2012, 65).
Os Estados semi-periféricos vivem numa constante luta, não só pela sobrevivência
enquanto tal, mas também procurando ascender a Estado do centro. Para isso fazem
constante uso do poder do aparelho do Estado, para conseguirem melhorar a sua
capacidade produtiva, de acumulação de capital e também procurando melhorar a sua
força militar (Wallertein 2006, 56-57). Por isso são as regiões que mais empregam
políticas de proteccionismo comercial, procurando proteger os seus processos de
produção da competição externa, em particular de outras regiões semi-periféricas
(Wallerstein 2006, 29-30). A concorrência e competição entre estas regiões e o centro,
têm como resultado “uma contínua rivalidade interestatal que normalmente toma a
Пorma de uma desiРnada balanхa de poder”55 (Wallerstein 2006, 57).
Internamente as semi-periferias são caracterizadas por possuírem fortes
assimetrias regionais, possuindo dentro das suas fronteiras cidades ou regiões com
54
“There are also semiperipheral areas аhich are in betаeen the core and the periphery on a series of dimensions, such as the
complexity of economic activities, strength of the state machinery, cultural integrity, etc. Some of these areas had been core-areas of
earlier versions of a given world-economy. Some had been peripheral areas that were later promoted, so to speak, as a result of the
changing geopolitics of an expanding world-economy.” - tradução própria.
55
“[…] an ongoing interstate rivalry which normally takes the form of a so-called balance of power […].”- tradução própria.
45
características semelhantes àquelas encontradas em países desenvolvidos (apesar de não
disporem da mesma qualidade de serviços infraestruturais), ao mesmo tempo que
grande parte das suas cidades evidenciam características menos desenvolvidas e
periféricas (Ruvalcaba 2013, 149-150). Mas também as assimetrias sociais ganham
destaque (Arrighi e Drangel in Ruvalcaba 2013, 146), existindo grandes diferenças nos
rendimentos auferidos pela sua população. A permanente convivência entre aspectos
sociais antagónicos significa também que é nestas regiões que as tensões sociais se
manifestam mais acentuadamente, aumentando o potencial de revoluções sociais que
colocam em causa o sistema dominante (Chase-Dunn in Ruvalcaba 2013, 150). Estas
diferenças ajudam a compreender o facto de as semi-periferias servirem um papel
fundamentalmente político no sistema-mundo, sendo regiões tampão entre o centro e a
periferia, dado ser nelas que se observa de uma forma mais vincada as desigualdades
encontradas em ambas as regiões, funcionando assim para aliviar as possíveis tensões
existentes entre o centro desenvolvido e a periferia menos desenvolvida.
Ruvalcaba (2013, 153) descreve várias características encontradas em regiões
semi-periféricas:
“Ao contrпrio dos estados do centro, os estados semi-periféricos não possuem
altos níveis de estado social e desenvolvimento socioeconómico, o que lhes
impede – pelo menos a curto e médio prazo – de garantir bens públicos globais e
de determinar um clima político totalmente favorável para os seus interesses a
nível global. Ainda assim, os estados semi-periféricos contam com mercados
nacionais enormes e dinâmicos, extensões territoriais suficientes, grandes
exércitos e níveis de intercâmbio comercial consideráveis. Isto permite-lhes –
para além de garantir a sua protecção territorial e prevenir tentativas de invasão
– criar projectos infraestruturais internos e externos às suas fronteiras, idealizar
socioculturalmente em espaços regionais, exercer liderança e eventualmente
supremacia entre os seus vizinhos, impelindo sistemas de integração e
implantando uma política externa pró-activa em defesa dos interesses
reРionais.”56
56
“Differently from the core states, the semiperipheral states lack high аelfare and socioeconomic development levels, which
stop them – at least in the short and medium run – to guarantee global public goods and to determine a totally favorable political
climate for their own interests in a global level. Nonetheless, the semiperipheral states count on huge and dynamic national
markets, sufficient territorial extensions, large armies and considerable levels of commercial interchange. It allows them –
46
Tendo em consideração os atributos enunciados até aqui, compreende-se melhor a dupla
natureza que a afirmação de Wallerstein (2006, 55) possui, se aplicada às regiões semiperiПéricas, quando este sustenta que “todos os estados sуo teoricamente soberanos, mas
estados Пortes conseРuem muito mais Пacilmente ‘intervir’ nos assuntos internos de
estados mais Пracos do que o contrпrio”. Isso siРniПica que os Estados mais Пortes Пaгem
pressão sobre os mais fracos, para que as suas elites sejam aceitáveis para os primeiros,
assim como para que os mais fracos os sigam nas arenas internacionais ou ajudem a
influenciar outras nações igualmente fracas. Esse esforço de influência é praticado
também em aspectos culturais, forçando as nações mais fracas a aceitar determinados
padrões culturais, como políticas linguísticas, políticas educacionais, comunicação
social, entre outros (Idem, ibidem). Sendo as regiões semi-periféricas intermediárias no
sistema-mundo, seriam regiões que sofreriam este tipo de influências externas por parte
do centro, ao mesmo tempo que procurariam resistir-lhes e exercer influências
semelhantes à periferia a si contígua. E estes aspectos são fundamentais para entender as
relações de dependência.
2.3.2 – Os monopólios – a inevitável tendência sistémica
O processo de acumulação capitalista mundial determina que, mesmo numa
situação do capitalismo concorrencial, a tendência sistémica seria direccionada para o
monopólio, sendo esta umas das contradições do capitalismo e que define o próprio
imperialismo, como já vimos acima quando analisámos Lenin (1975 [1916], 29-36).
Esta característica é aliás apontada por autores, quer do imperialismo quer da
dependência. Wallerstein (2006, 18) deПende que “os processos que sуo relativamente
monopolizados são muito mais lucrativos do que aqueles que ocorrem no mercado
livre”, isto propiciaria que os países do centro, onde se encontram os processos de
produção mais avançados, se tornassem ainda mais ricos. O monopólio é
particularmente importante quando as tecnologias utilizadas exigem um elevado nível
de concentração de capitais, quer para a sua investigação quer para o seu uso (Block e
besides guaranteeing their territorial protection and preventing invasion attempts – creating infrastructural projects inside
and outside their frontiers, ideating socioculturally in regional spaces, exercising leadership and eventually supremacy
among their neighbors, impelling integration systems and deploying a proactive foreign policy in defense of the regional interests.”
- tradução própria.
47
Keller 2009, 3). Este aspecto é tão relevante que a presença do Estado no
desenvolvimento tecnológico é cada vez maior (Idem, ibidem). Da mesma forma,
atingir economias de escala é fundamental (Santos 2011 [1978], 50) e este é outro
aspecto onde as empresas monopolistas se encontram em vantagem sobre as restantes.
A acumulação de capitais faz também com que os centros de decisão estejam
localizados onde ela for mais avançada, tal como os centros tecnológicos, de consumo,
militares, culturais, entre outros. O controlo dos mercados financeiros e comerciais é
apenas um exemplo, porém um dos mais poderosos, deste tipo de mecanismos (Amaral
2012, 42). O expoente máximo que cristaliza em si os frutos da acumulação de capital
nos países do centro não é o Estado em si, mas sim as corporações multinacionais ou
transnacionais, de características monopolistas, as quais Theotónio dos Santos
caracteriza como “células da economia internacional” (Santos 2011 [1978], 9). O
Estado serve apenas como elemento de externalização de custos e como escudo de
defesa das empresas monopolistas, aumentando as taxas de lucro destas (Wallerstein
2006, 26), através da influência política exercida pelas próprias empresas monopolistas
(Santos 2011 [1978], 54).
Importa então definir quais as características que a empresa monopolista actual
(a empresa multinacional/ transnacional) assume e que Santos (2011 [1978], 55) resume
da seguinte forma:
“Ela é hoje em dia o centro de decisуo administrativa, econяmica e política que
conduz a uma gigantesca concentração económica e centralização financeira e
administrativa; a uma união estreita e contraditória entre as empresas e os
Estados; à integração dos mercados de todos os países capitalistas; a um
crescimento enorme do comércio mundial”.57
Contudo importa aqui sublinhar que a utiliгaхуo do conceito de “monopяlio” é mais a
referência a uma tendência do que propriamente à situação concreta, que poderíamos
deПinir mais correctamente como “oliРopяlica” (Santos 2011 [1978], 79). Wallerstein
(2006, 26) define-os como “quase-monopяlios”. Da mesma Пorma que o conceito de
“multinacional” nуo elimina a “base nacional de operaхуo e eбpansуo” das empresas
57
“Ella es hoy en día el centro de decisión administrativa, económica y política que conduce a una gigantesca concentración
económica y centralización financiera y administrativa; a una unión estrecha y contradictoria entre las empresas y los Estados; a
la integración de los mercados de todos los países capitalistas; a un crecimiento enorme del comercio mundial.” - tradução própria.
48
(Idem, ibidem), sendo apenas um conceito com objectivos ideológicos que lhe permitam
“superar os estreitos limites do nacionalismo” (Santos 2011 [1978], 83), tendo em vista
o seu fim teleológico de prosseguir a acumulação de capital, mas agora além-fronteiras.
O monopólio é resultado da necessidade de limitar a concorrência nos mercados,
de forma a manter as altas taxas de lucro (Wallerstein 2006, 26). Para isso, fazem uso
do aparelho de um Estado suficientemente forte para lhe garantir a sua exclusividade, o
seu estatuto de quase-monopólio, e o sistema de patentes é reflexo dessa relação, que
reserva os direitos de propriedade e uso aos seus detentores, criando uma exclusividade
e garantindo que existe apenas um vendedor de produtos associado a essa patente,
garantindo assim elevadas taxas de lucro (Idem, ibidem). Mesmo que exista a violação
da patente ou que expire a validade desta, pelo menos o quase-monopólio foi garantido
durante algum tempo, assegurando assim os lucros associados a essa exclusividade
(Idem, ibidem). Outros exemplos do resultado desta relação entre o Estado e os
monopólios são as restrições e tarifas alfandegárias, subsídios ou isenções fiscais ou até
mesmo a intervenção política ou militar em países mais fracos que procurem proteger os
seus mercados (Idem, ibidem).
2.3.3 – Exportação de capitais – o motor do expansionismo imperialista
Lenin (1975 [1916], 80) aПirmou que “o capitalismo [consaРra-se][…] ao
aumento desses benefícios [excedentes de capitais] através da exportação de capitais
para o estrangeiro, para os países atrasados. Nestes países atrasados o lucro é em geral
elevado, pois os capitais são escassos, o preço da terra e os salários relativamente baixos
e as matérias-primas baratas”. Este é entуo outro dos mecanismos de efeitos mais
evidentes e com grande impacto na periferia. As exportações de capitais, nomeadamente
sob a Пorma de dívida, “ajudas” internacionais e IDE, sуo apontadas como as principais
ferramentas do imperialismo já pelos autores clássicos do imperialismo, como vimos
anteriormente, e nunca perderam importância para as análises sobre a temática até hoje.
Prova disso é o enfoque dado pelos autores contemporâneos ao assunto. Fruto dos
frequentes desequilíbrios da balança de pagamentos dos países dependentes, surge a
exportação de capitais, como forma de colmatar estes défices (Santos 2011 [1978], 65 e
392). Desta forma consegue-se manter o fluxo de exportação de mercadorias para o
49
exterior, muitas vezes a preços mais altos, ao mesmo tempo que se subjuga
politicamente e economicamente as regiões receptoras (Idem, ibidem). O resultado é um
saldo negativo nos fluxos de capitais nas regiões receptoras de capitais externos (Global
Financial Integrity, 2016), como veremos de seguida. Analisemos então os fenómenos
da dívida, “ajudas” e IDE, para compreender a eбtensуo das suas consequências nas
regiões periféricas.
Comecemos pela dívida que, apesar de ser uma transferência de capitais
momentânea dos países desenvolvidos para os menos desenvolvidos, a longo prazo
acaba por ter o efeito contrário, devido aos juros associados à acumulação de dívida
externa. Assim, dá-se um contínuo fluxo de recursos que, em vez de serem utilizados
para desenvolver as regiões periféricas, servirão para aumentar ainda mais o processo de
acumulação de capitais no centro (Mahler 1980, 33), através da sobre-exploração dos
países dependentes (Santos 2011 [1978], 66). Esta dívida acaba por ter como
consequências, não só a drenagem de recursos, mas também o surgimento de influências
políticas externas sobre a periferia (Mahler 1980, 33; Santos 2011 [1978], 65). Tal
como provoca uma dificuldade acrescida em situações de flutuações económicas
externas e outras anomalias internas ou externas, ao ter a sua dívida vinculada ao
exterior, dificultando políticas económicas independentes (Mahler 1980, 33).
As denominadas “ajudas” internacionais sуo outro destes mecanismos que
promovem o desenvolvimento de relações de dependência entre o centro e a periferia.
Um dos principais efeitos são as condições em que estas “ajudas” sуo concedidas р
periferia, tal como o efeito encoberto que costumam ocultar. Em muitas situações são
providenciadas com objectivos de promoção de sistemas políticos que servem de
resistência às mudanças sociais nessas regiões, que permitiriam seguir políticas
económicas e de desenvolvimento autónomas (Mahler 1980, 32). Tal como acabam por
provocar um aumento da dependência comercial, em particular quando estas “ajudas”
são concedidas para comprar determinadas mercadorias ao país dador ou quando
promovem a entrada de empresas e investimentos desse mesmo país (Idem, ibidem).
Por fim temos o IDE, uma transferência de capitais semelhante à dívida, na
medida em que envolve uma grande transferência de capitais inicial do país do centro
para a periferia, contudo a longo prazo significará uma maior transferência de capitais
no sentido contrário, fruto da alta exploração da mão-de-obra local pelas empresas do
50
centro, em especial do ponto de vista da mais-valia relativa (Santos 2011 [1978], 378 e
389). Se, à primeira vista, os efeitos do IDE são um aumento rápido do crescimento,
através da acumulação de capital e do próprio nível de conhecimento e técnica no país
receptor (Moura 2009, 4), um olhar mais cauteloso revela outros efeitos mais perversos.
Este mecanismo é essencialmente utilizado pelas empresas monopolistas
transnacionais, porém pode ser também usado por outras. E promove uma divisão do
trabalho em moldes hierárquicos entre regiões, sendo que cada empresa desempenha
papéis diferentes dentro do grupo económico de que faz parte e dentro de uma relação
de verticalidade (Mahler 1980, 31). Para além disso, e como vimos quando analisámos
as características da empresa monopolista transnacional, os investidores externos
desempenham um papel condicionante nas estruturas políticas do país receptor de IDE
(Idem, ibidem; Moura 2009, 17). Este tipo de fluxo possui também como efeito a
inibição de competição interna, colocando entraves às empresas locais (Santos 2011
[1978], 374), atraindo o capital local (Mahler 1980, 31; Moura 2009, 12) (quer mão-deobra, quer investimentos), aumentando o desemprego (através da utilização de
tecnologia que requer menos mão-de-obra), colocando o patamar tecnológico muito
acima daquele existente na região, causando assim dependência tecnológica face ao
exterior (Moura 2009, 5-7; Santos 2011 [1978], 374), sem no entanto haver uma
transferência tecnológica para as empresas locais (Moura 2009, 19-20) e a
“imprevisibilidade e instabilidade de Пluбos de IDE” acaba por aumentar a dificuldade
na previsão e tomada de políticas económicas (Moura 2009, 16).
2.3.4 – Desenvolvimento associado dependente
O desenvolvimento associado dependente, ou como Santos (2011 [1978], 369)
mais tarde deПiniria “dependência tecnolяРico-industrial”, surРe nos anos de 1950 como
resultado da necessidade de exportação de capitais pelo centro, mas numa configuração
diferente daquela que até aí predominava, que se baseava apenas em investimento
financeiro, como a dívida (Cardoso e Faletto 1977, 56). Agora, o investimento externo,
era feito directamente na capacidade produtiva das economias periféricas, ou seja, no
desenvolvimento de indústrias. Para isso, faz uso do insucesso da industrialização para
substituição de importações, baseada em capitais internos, que permitiu abrir mercados
51
novos e que agora eram preenchidos por estas empresas externas (Idem, ibidem).
Apesar de se falar aqui de um desenvolvimento promovido por agentes externos,
acelerando a industrialiгaхуo e contribuindo com “knoа-hoа”, a situaхуo de
dependência mantém-se, visto que o fluxo de capitais e as decisões económicas estão
dependentes do exterior (Cardoso e Faletto 1977, 58), tal como toda a tecnologia
provém, da mesma forma, do exterior (Santos 2011 [1978], 375).
Ao contrário da fase de dependência financeiro-industrial (Santos 2011 [1978],
368), o resultado da produção não é orientada para a exportação tendo em vista os
países do centro, pelo contrário, o seu mercado é a própria periferia. Isto é resultado do
aproveitamento das classes médias já existentes nessas regiões, mas também do
aumento do padrão social que resulta da inserção destas indústrias mais avançadas
nestes países (Cardoso e Faletto 1977, 57). A mão-de-obra é mais especializada, dá-se
um desenvolvimento do sector terciário, tal como uma distribuição mais equitativa dos
rendimentos no sector industrial e existe um reinvestimento de capitais na economia,
para continuar a promover o mercado interno (Cardoso e Faletto 1977, 58), o que não
acontecia anteriormente.
Todavia, este processo possui alguns elementos perversos e contraditórios como,
por exemplo, nas relações sociais das economias periféricas, pois dará origem a dois
tipos de proletariado: um mais “moderno”, que trabalha nestas empresas de capital
estranРeiro; e outro mais “tradicional”, que se mantém liРado рs indústrias nativas
(Cardoso e Faletto 1977, 57). Isto é resultado dos desequilíbrios tecnológicos presentes
na estrutura produtiva, fruto da alta concentração de capital e tecnologia nas empresas
de capital estrangeiro, o que acaba por resultar na utilização de menos mão-de-obra
(Santos 2011 [1978], 378), tornando assim o sector mais moderno do proletariado muito
mais pequeno, contudo este serve como “amortiгador das pressões que vêm debaiбo”,
ou seja, impedem movimentos de massas do sector tradicional (representado pelas
classes mais baixas) que coloquem em risco o sistema político (Cardoso e Faletto 1977,
63). Outro exemplo são as vantagens providenciadas pelos governos locais para a
fixação destas empresas nos seus países, por exemplo isenção de taxas alfandegárias,
financiamento directo ou empréstimos, clientes preferenciais, entre outros (Santos 2011
[1978], 378). Por fim, este tipo de desenvolvimento impõe limitações ao crescimento do
mercado interno, dado promover a manutenção de relações de produção atrasadas, de
forma a manter a taxa de exploração da mão-de-obra a mais elevada possível (Santos
52
2011 [1978], 378-379), pois apesar de possuir um operariado melhor remunerado
relativamente ao proletariado tradicional, ainda assim é muito menor a remuneração do
que a praticada nos países do centro, dentro das próprias lógicas da divisão internacional
do trabalho, daí tornar este processo rentável (Mahler 1980, 66).
O resultado prático deste tipo de dependência nos Estados da América Latina,
foi a transformação daquilo que eram anteriormente Estados populistas, que
representavam a aliança entre a burguesia nacional e operários, em Estados empresariais
(Cardoso e Faletto 1977, 61). Sinónimo disto é a adaptação do aparelho do Estado à
regulamentação económica externa, visto que os agentes económicos procuram
influenciar o Estado em seu benefício, o que normalmente resulta em centralização
autoritária de mais poder sobre a populaхуo no Estado e na “ Пacilitaхуo da implantaхуo
do modo de produхуo capitalista nas economias dependentes” (Idem, ibidem). Este
período Пicou caracteriгado pelos diversos “Рolpes militares” que ocorreram na América
Latina, em que o aparelho militar passava a assumir a forma de corporação
“tecnoburocrпtica” (Cardoso e Faletto 1977, 62), como veremos mais р Пrente, quando
analisarmos o complexo burocrático-autoritário.
2.4 – O sistema-mundo
Interessa então esclarecer qual a unidade de análise utilizada para o nosso
estudo, a estrutura que condiciona as acções dos Estados e em particular aqueles cujas
estruturas internas são mais frágeis, forçando-os assim a uma dependência ao nível
económico, político, cultural, social, militar, entre outros. Immanuel Wallerstein
desenvolve, nos anos de 1970, um conceito ao qual chama de “sistema-mundo”
(Wallerstein 2011 [1974], 347) e um modelo de análise, não uma teoria como o autor
sublinha (Wallerstein 1998, 103), que o procura estudar e compreender. Este modelo
surge como resposta aos teóricos das ciências sociais que procuravam emular teorias
que apenas haviam sido aplicadas na Europa e América do Norte, à totalidade do mundo
(Wallerstein 1998, 104). E, por conseguinte, como resposta aos teóricos da
modernização, que procuravam recriar estágios evolutivos noutras regiões do planeta,
como forma de promover o desenvolvimento nessas zonas (Idem, ibidem). É também
53
importante ter em mente que é o “sistema-mundo” a unidade de anпlise neste modelo e
não os Estados nacionais individualizados (Wallerstein 2006, 16).
Existem quatro debates que estão na origem do modelo: os conceitos de centro e
periferia, juntamente com a Teoria da Dependência; o conceito marбiano de “modo de
produхуo asiпtico”, sobre modelos alternativos de estruturas econяmicas que colocam
em causa a inevitabilidade de estágios de desenvolvimento; o debate histórico sobre a
transição do feudalismo para o capitalismo; e o debate sobre a “Histяria total”
(Wallerstein 2006, 11-16).
A noхуo de “sistema-mundo” é deПinida da seРuinte Пorma:
“[…] é um sistema social, um que possui Пronteiras, estruturas, membros de
grupos, regras de legitimação e coerência. A sua vida é feita das forças
conflituosas que o sustêm através da tensão e o quebram quando cada grupo
procura eternamente moldá-lo para seu benefício. Possui as características de um
organismo, pois possui um período de vida no qual as suas características
mudam em alguns aspectos e permanecem estáveis noutros. Pode-se definir as
suas estruturas como sendo em diferentes momentos fortes ou fracas em termos
de lяРica interna do seu Пuncionamento”58 (Wallerstein 2011 [1974], 347).
Acrescentando a esta definição o autor afirma ainda que “o que caracteriгa um sistema
social […] é o Пacto de que a vida dentro dele é larРamente contida em si e que as
dinсmicas do seu desenvolvimento sуo maioritariamente internas”59 (Idem, ibidem),
contudo “eles [sistemas-mundo] são definidos pelo facto de que a sua contenção
enquanto entidade económica-material é baseada na extensiva divisão do trabalho e de
que contêm em si uma multiplicidade de culturas”60 (Wallerstein 2011 [1974], 348).
Daqui concluímos que o sistema-mundo é um sistema social, mais concretamente
relacionado com os modos de produção, funcionando dentro de dinâmicas históricas de
58
“A аorld-system is a social system, one that has boundaries, structures, member groups, rules of legitimation, and coherence. Its
life is made up of the conflicting forces which hold it together by tension, and tear it apart as each group seeks eternally to remold it
to its advantage. It has the characteristics of an organism, in that it has a life-span over which its characteristics change in some
respects and remain stable in others. One can define its structures as being at different times strong or weak in terms of the internal
logic of its functioning.” - tradução própria.
59
“What characterizes a social system in my vieа is the fact that life аithin it is largely self-contained, and that the dynamics of its
development are largely internal” - tradução própria.
60
“[…] they are defined by the fact that their self-containment as an economic-material entity is based on extensive division of
labor and that they contain within them a multiplicity of cultures.” - tradução própria.
54
lonРo praгo (“lonРue durée” (Wallerstein 2006, 18)), a uma escala Рlobal (porém nуo
necessariamente abrangendo a sua totalidade) e de que existe a possibilidade teórica de
existência de mais do que um tipo sistema-mundo.
Existem quatro impulsos a este modelo de análise e que o autor destaca como
sendo:
1. Globalidade – num modelo centrado numa unidade de análise, como o sistemamundo, e não numa única sociedade ou Estado, a globalidade surge como
essencial para o estudo de todos os processos a ele associados (Wallerstein
1998, 106);
2. Historicidade – derivando do ponto anterior, “se os processos Пossem
sistémicos, então a história (toda a história) do sistema […] seria o elemento
crucial para o entendimento do presente estado do sistema”61 (Idem, ibidem);
3. Unidisciplinaridade – vertendo do segundo ponto, o autor considera que é
impossível separar processos em lógicas diferentes. Centrando-se na totalidade,
este modelo de análise coloca de parte disciplinas individualizadas, que
procuram visões próprias e autónomas sobre a realidade. Diferente de
“multidisciplinaridade”, pois nуo aceita as divisões eбistentes nas ciências
sociais, como acontece com esta. (Idem, ibidem);
4. Holismo – assumindo um sentido “histяrico-epistemolяРico”, que parte dos
pontos anteriores, os defensores do modelo rejeitam as fronteiras dentro da
ciência e a diferenciação dos tipos de conhecimento, procurando uma
reconstrução diferente na forma de produzir ambos (Wallerstein 1998, 106107).
Wallerstein (2011 [1974], 348) destaca dois tipos de sistema-mundo que
eбistiram até hoje na Histяria do Mundo, o “império-mundo” e a “economia-mundo”.
Um “império-mundo” é caracteriгado por um único sistema político cobrindo toda a
zona sobre o seu controlo (Idem, ibidem). Uma “economia-mundo” é deПinida como
“uma Рrande гona РeoРrпПica dentro da qual eбiste uma divisуo do trabalho e por isso
uma troca interna significativa de produtos básicos ou essenciais tal como fluxos de
61
“If the processes аere systemic, then the history – the entire history – of the system (as opposed to the history of subunits, take
separately and comparatively) was the crucial element in understanding the present state of the system.” - tradução própria.
55
capital e trabalho”62, outra das características essenciais de uma “economia-mundo” é
que “não é delimitada por uma estrutura política unitпria”63 (Wallerstein 2006, 23).
Chegando aqui perguntamo-nos: qual o tipo de sistema-mundo em que vivemos
hoje em dia? Para Wallerstein (2006, 23; 2011 [1974], 384-349) o moderno sistemamundo é uma economia-mundo capitalista, cujas origens remontam ao século XVI,
período no qual apenas se confinava a algumas partes da Europa Ocidental e onde se
deram várias transformações socais, nomeadamente o surgimento de uma classe
assalariada (Wallerstein 1974, 394) e da divisão do trabalho (Wallerstein 2006, 24), mas
a partir do qual se expandiu para cobrir a totalidade do planeta, algo que apenas foi
alcançado nos séculos XIX e XX (GriППiths e O’CallaРhan 2002, 337; Wallerstein 1974,
390). Aliпs, Wallerstein (2006, 24) sublinha que o “sistema capitalista nуo pode eбistir
noutro enquadramento que não seja o de economia-mundo”64, pois a sua razão de ser é
“a eterna acumulaхуo de capital”65 (Wallerstein 1993, 3), ou como Luxemburgo (1951
[1912], 39) colocava: “mais-valia ad infinitum”. Dentro do sistema-mundo capitalista as
regiões dividem-se em centro, periferia e Semi-periferia (GriППiths e O’CallaРhan 2002,
336-337), como acima mencionado.
Não obstante, Wallerstein (1993, 3-4) identifica várias contradições que o
sistema capitalista encerra em si. Um sistema cuja razão de ser é a eterna acumulação de
capital, necessita também de constante expansão espacial, o que já atingiu os seus
limites físicos na actualidade. O sistema é também forçado a uma constante
externalização de custos pelos produtores individuais, o que pode estar próximo de
alcançar os seus limites. A constante, ainda que lenta, proletarização das classes
trabalhadoras do planeta é igualmente fundamental, porém isto provoca aumentos nos
custos do trabalho e gera tensões e riscos políticos. A ideologia política dominante, o
liberalismo, vê cada vez mais ameaçada a sua tarefa de promover a paz social, pois a
sustentabilidade dos orçamentos de Estado e das dívidas públicas, usados na
manutenção dos Estados sociais, está em risco, colocando em risco a própria
estabilidade do sistema.
62
“[…] a large geographic zone within which there is a division of labor and hence significant internal exchange of basic or
essential goods as аell as floаs of capital and labor.” - tradução própria.
63
“A defining feature of a world-economy is that it is not bounded by a unitary political structure.” - tradução própria.
64
“[…] a capitalist system cannot exist within any framework except that of a world-economy.” - tradução própria.
65
“The raison d’ètre of capitalism is the endless accumulation of capital.” - tradução própria.
56
Pode-se ainda acrescentar que a existência de um mercado totalmente livre
tornaria a acumulação de capital impossível, pois forçaria o lucro a tender para zero, o
que deixaria de tornar a produção apetecível para os privados e por isso os vendedores
preferem sempre o monopólio, que lhes permite ter grandes margens de lucro
(Wallerstein 2006, 25-26), como já vimos anteriormente. E à medida que o tempo passa,
a produção de determinadas mercadorias torna-se cada vez mais competitiva, sendo
cada vez menos lucrativa (Wallerstein 2006, 27), dada a sobreprodução existente,
comparada com a procura (Wallerstein 2006, 30). Daí que existam lutas políticas entre
os agentes do mercado, de forma a exercerem influência que lhes seja benéfica para eles
próprios e prejudicial para os seus adversários, sendo que isto é feito quer a nível
interno de cada Estado, quer a nível externo (Wallerstein 2006, 26-27). Isto gera uma
divisão dos processos de produção no mundo, no qual aqueles que apresentam altas
taxas de lucro nos países desenvolvidos são mantidos nos países do centro, os que, pelo
contrário, apresentarem baixo rendimento ou mesmo rendimento negativo, são
deslocalizados para as regiões periféricas (Wallerstein 2006, 28). Como Wallerstein
(2006, 29) declara: “o que hoje é um processo do centro tornar-se-á um processo
periПérico amanhу”66. Porém este tipo de mudanças não provoca quaisquer alternações
na estrutura do sistema em si. Para explicar o fenómeno de flutuação da economiamundo, oscilando entre períodos de expansão e períodos de contracção, Wallerstein
(2006, 30-31) faz uso dos ciclos de Kondratieff, onde os períodos de expansão são
considerados fase-A e os de contracção de fase-B.
2.5 – O modelo burocrático-autoritário: as elites políticas e os
interesses económicos
O modelo Burocrático-Autoritário67 é aqui utilizado pela sua capacidade em
auxiliar à compreensão dos fenómenos de dependência política. Este é um modelo que
foi originalmente utilizado na análise das experiências autoritárias na América Latina
após os anos de 1960 (Collier ed 1979, 3) e que perduraram até aos anos 90. Esta
anпlise surРe nos anos 70 com Guillermo O’Donnell, como tentativa de eбplicar o
66
“[…] what is a core-like process today аill become a peripheral process tomorroа.” - tradução própria.
67
A partir daqui definido como B-A.
57
aparecimento desses regimes autoritários, associando o seu surgimento a determinados
níveis de industrialização capitalista dependente, que eram precedidos por uma crise
económica (Kaufman 1979, 168), traçando assim uma relação causal entre política e
estrutura económica e com o fim da própria democracia nesses países (Collier ed 1979,
20-21 e 4). Contudo existia uma preocupação empírica entre vários autores para que o
modelo fosse limitado na sua definição, procurando critérios mais estreitos e ligados às
suas “amarras histяricas e empíricas”, que evitassem que ele Пosse Рeneraliгado e usado
de forma indiscriminada (Kaufman 1979, 246), ao mesmo tempo que outros
procuravam aplicar o modelo a outras regiões (Collier ed 1979, 396). Esta divergência
na aplicação do modelo é, em si, resultado da própria dificuldade existente entre os
vários autores para definir o modelo B-A.
Passemos então a explorar e procurar
definir este modelo.
O’Donnell, р semelhanхa de autores dependentistas68, distingue três tipos de
regimes que surgem na América Latina:
1. O oligárquico, caracterizado pela predominância de elites políticas, ligadas à
exportação de matérias-primas, nomeadamente minerais e agricultura, servindo
o Estado apenas para a manutenção dos seus interesses (Collier ed 1979, 23-24);
2. O populista, em que já existe competição política e representação política de
várias classes, onde o Estado promove a industrialização baseada nos bens de
consumo e a expansão do mercado interno (Collier ed 1979, 24);
3. O burocrático-autoritário, onde existe exclusão de vários sectores políticos
relativamente ao aparelho do Estado e em que as figuras centrais deste são uma
tecnocracia militar e civil que colabora intimamente com o capital externo com
vista a promover uma industrialização mais avançada (Collier ed 1979, 24-25).
Porém esta definição de regime B-A é alarРada por O’Donnell. O autor
(O’Donnell 1979, 292-293) estabelece então oito pontos que considera serem
características essenciais para caracterizar o Estado B-A, a saber:
1. O Estado garante e organiza a dominação exercida através de uma estrutura de
classe subordinada às facções altas de uma burguesia oligopolizada e
transnacionalizada;
68
Ver Theutónio dos Santos (2011 [1978]) e Cardoso e Faletto (1977).
58
2. “[…] é composto por orРaniгaхões nas quais especialistas em coerхуo têm um
peso decisivo, tal como aqueles que procuram atinРir a ‘normaliгaхуo’ da
economia”69;
3. “É um sistema de eбclusуo política de um sector popular previamente activado
que é sujeito a um severo controlo num esforço de eliminar o seu prévio papel
activo na arena política internacional”70;
4. “Esta eбclusуo envolve a supressуo da cidadania […] esta supressуo inclui a
liquidaхуo das instituiхões da política democrпtica […] [e] também envolve uma
neРaхуo do popular: proíbe […] quaisquer apelos р populaхуo como povo e,
claro, como classe”71;
5. “[…] também é um sistema de eбclusуo econяmica do sector popular, enquanto
promove um padrão de acumulação de capital que é altamente enviesada para
beneficiar grandes unidades oligopólicas de capital privado e algumas
instituiхões do Estado”72;
6. “Corresponde a, e promove, uma crescente transnacionaliгaхуo da estrutura
produtiva, resultando em mais desnacionalizações da sociedade, em termos do
grau em que é de facto contida dentro âmbito da autoridade territorial que o
Estado aПirma eбercer”73;
7. “Através das suas instituiхões esПorхa-se por ‘despolitiгar’ assuntos sociais,
lidando com eles através de supostos critérios neutrais e objectivos de
racionalidade técnica”74;
8. “[…] Пecha os canais de acesso р representaхуo dos interesses populares e de
classe”75.
69
“[…] it is comprised of organizations in which specialists in coercion have decisive weight, as well as those whose aim it is to
achieve ‘normalization’ of the economy.” - tradução própria.
70
“It is a system of political eбclusion of a previously activated popular sector which is subjected to strict controls in an effort to
eliminate its earlier active role in the national political arena.” - tradução própria.
71
“This eбclusion involves the suppression of citizenship, in the tаofold sense defined above. In particular, this suppression
includes the liquidation of the institutions of political democracy. It also involves a denial of lo popular: it prohibits (enforcing the
prohibition with coercion) any appeals to the population as pueblo and, of course, as class.” - tradução própria.
72
“BA is also a system of economic eбclusion of the popular sector, inasmuch as it promotes a pattern of capital accumulation
which is highly skewed toward benefiting the large oligopolistic units of private capital and some state institutions.” - tradução
própria.
73
“It corresponds to, and promotes, an increasing transnationalization of the productive structure, resulting in a further
denationalization of society in terms of the degree to which it is in fact contained within the scope of the territorial authority which
the state claims to eбercise.” - tradução própria.
74
“Through its institutions it endeavors to ‘depoliticize’ social issues by dealing аith them in terms of the supposedly neutral and
objective criteria of technical rationality.” - tradução própria.
59
Estes pontos serão aplicados ao nosso estudo de caso entre as páginas 136 e 140.
Outros académicos acrescentam mais algumas características que ajudam a
compreender o modelo. Cardoso (1979, 35-36) afirma que, ao contrário de anteriores
regimes autoritários característicos da América Latina, onde imperava o caudilhismo e a
liderança de um só homem, no complexo B-A é a instituição militar que impõe os seus
interesses na sociedade e no Estado, fruto da profissionalização das suas estruturas e
tendo como justiПicaхуo a “racionalidade” do seu eбecutivo (Cardoso 1979, 41). Por
outro lado, Kaufman (1979, 246) contesta a necessidade de uma massa grande de
tecnocratas. Cardoso, porém, estende-se na distinção entre o novo autoritarismo e
aquele que caracterizou os regimes fascistas e corporativistas europeus, afirmando que o
primeiro procura acima de tudo instalar a apatia nas massas da população, dispensando,
para isso, dos partidos para fazer a sua ligação com a sociedade (Cardoso 1979, 36).
Não obstante, mantém a lógica corporativista que faz a ligação entre os trabalhadores e
as gerências empresariais, e de ambas com o Estado, mas sem este adoptar a forma
corporativa de paz social (Cardoso 1979, 36-37). Da mesma forma o Estado B-A carece
de ideologia nacionalista e de superioridade racial (Cardoso 1979, 37). O próprio
inimigo do Estado encontra-se dentro das suas fronteiras, na forma das classes
populares e os seus aliados, sendo que quando se reПerem a “naхуo” esta nуo é
personalizada no povo desse país, mas sim nas instituições estatais, numa lógica de
serviço às instituições e não a um suposto interesse superior e externo a elas (Kaufman
1979, 294-295), como acontecia com outros regimes autoritários. Ainda assim mantém
uma natureza imponente, marcial e de superioridade racional, características desses
reРimes (O’Donnell 1979, 310). E, por todos estes aspectos, caracteriгado como um
fenómeno relativamente novo.
Importa também compreender os factores que deram origem ao surgimento a
este tipo de regimes. Existe a ideia, entre alguns autores, de que para cada estágio de
acumulação de capital há um tipo de regime apropriado, contudo outros consideram que
esta perspectiva levanta bastantes dúvidas (Cardoso 1979, 39 e 54). Para os teóricos da
modernização o crescimento económico, da indústria e do mercado serviriam para
limitar o surgimento de regimes despóticos (Hirschman 1979, 62), Mas o aparecimento
destes regimes demonstra exactamente o contrário. Eles surgem numa fase mais
75
“[…] closing the channels of access for the representation of the popular and class interests.” - tradução própria.
60
avançada de desenvolvimento e de acumulação de capital. Contrastando com as
anteriores fases de desenvolvimento orientado para fora (característico dos regimes
oligárquicos) e da fase de industrialização para substituição de importações
(característica dos regimes populistas) (Hirschman 1979, 66-67), a nova fase autoritária
na América Latina centrava-se essencialmente na produção de bens de consumo
duráveis e na desigualdade no consumo interno (Hirschman 1979, 79-80).
Dados os fenómenos que estão na sua origem destes regimes serem partilhados e
de natureza económica, acaba também por haver uma transversalidade relativamente às
suas políticas económicas, que envolvem a contenção inflacionária herdada dos regimes
populistas, como o congelamento de salários, baixas taxas alfandegárias, aumento de
impostos, défice fiscal reduzido e desvalorização monetária (Kaufman 1979, 176).
Desta forma, procuravam expandir a diversidade das exportações, desenvolvimento da
infraestrutura económica e promoção de investimento privado na indústria pesada
essencialmente com financiamento de multinacionais (Idem, ibidem), tendo em vista
um processo de intensificação de capital76 nas suas economias (Collier ed 1979, 26).
Este processo de intensificação de capital requer, no entanto, elevados níveis de
tecnologia, experiência administrativa e capital, o que significa a inerente presença de
empresas que cristalizem em si grandes acumulações de capital, ou seja, significa a
presença de empresas multinacionais (Collier ed 1979, 26-27), sendo estes os grandes
interesses económicos por detrás dos regimes B-A. Apesar de Kaufman (1979, 248)
afirmar que inicialmente os regimes B-A não tinham como objectivo a intensificação de
capital ou, sequer, se possuíam estratégias definidas com vista a desenvolver esse
processo.
Podemos então concluir que a definição do modelo Burocrático-Autoritário não
é consensual entre os diversos autores, existindo diversas nuances na sua caracterização
e até utiliгaхуo. Porém, os pontos produгidos por O’Donnell, e reproduгidos acima,
estabelecem de forma genérica os principais aspectos que definem o modelo em
questão. E apesar de alguns autores não acreditarem na preponderância dos factores
económicos para o surgimento destes regimes (Cardoso 1979, 40), outros apontam o
facto de que estes factores económicos, nomeadamente os externos, no seu processo de
expansão e internacionalização, provocam pressões que forçam mudanças políticas, de
76
IntensiПicaхуo de capital (“deepeninР”), significa o estabelecimento de indústrias de bens de capital, como aço, petroquímica e
maquinaria e equipamento pesados (Kaufman 1979, 205).
61
forma a criar, reforçar ou manter as suas relações económicas (Collier ed 1979, 371 e
383). Isto faria sentido mesmo quando usando o argumento de que o surgimento deste
tipo de regimes derivou da necessidade de conter novas revoluções que copiassem o
modelo cubano de 1959 (Collier ed 1979, 384), já que essa argumentação colocaria
sempre as relações políticas ligadas aos interesses económicos por detrás delas.
62
3 – A Rússia no sistema-mundo numa perspectiva histórica:
95 -
1998
Foi a interacção da economia do tipo
soviético
com
a
economia
mundial
capitalista, a partir dos anos 60, que tornou o
socialismo vulnerável.
(Hobsbawm 2011 [1994], 250)
Para uma compreensão mais alargada deste trabalho, será aqui feita uma
exposição da estrutura socioeconómica russa ao longo de um determinado período de
tempo, que se considera ser o mais adequado, dadas as alterações que aquele território
sofreu durante este espaço temporal. Alterações estas que englobam tanto mutações
políticas, com o fim da URSS e do próprio sistema político (e a consequente
independência das suas quinze repúblicas constituintes, terminando o processo em 26 de
Dezembro de 1991), como as mutações económicas pelas quais aquela região passou,
começando pelo período soviético e posteriormente com a independência russa. Para
além da análise a estas mudanças, procuramos aqui também determinar e expor alguns
dos elementos que demonstram uma continuidade entre a Rússia no período soviético e
pós-soviético, em particular na sua relação sistémica com o sistema-mundo.
Na busca de procurar explicar a relação da URSS com o sistema-mundo,
Wallerstein (1974, 397 e 415) afirmou a existência de um único sistema-mundo, do qual
também a URSS faria parte. Este aspecto foi também destacado por Andre Gunder
Frank (1992, 36) e por Babones e Babcicky (2011, 3). As razões para Wallerstein o
afirmar partem da unicidade da divisão internacional do trabalho, em que cada vez mais
os agentes económicos operavam de forma interdependente (Wallerstein 1974, 397).
Não é uma simples troca comercial entre duas partes que determina a participação num
mesmo sistema-mundo, mas sim o resultado dessa interacção. Para se poder afirmar que
participam no mesmo sistema-mundo, é necessário que haja um perdedor e um
vencedor nessa relação. Contudo, mesmo que ambos tirem algum tipo de vantagens
dessa troca, apenas um pode obter o máximo lucro, o máximo de vantagens, pois o jogo
63
da troca de mais-valia é um jogo de soma-nula, dado ser esse o objectivo do próprio
sistema capitalista: a produção para concretizar o máximo de lucro possível (Wallerstein
1974, 398). Da mesma Пorma é importante lembrar que o “capitalismo liberal” e o
“socialismo” sуo duas vertentes do mesmo tipo de “sociedade industrial” (Idem,
ibidem).
Wallerstein (1974, 411) considera também que a Revolução Russa surgiu do
declínio da posição do Império Russo no sistema-mundo, de semi-periferia (posição
ocupada desde a sua incorporação no sistema-mundo no século XIX (Babones e
Babcicky 2011, 11)) para periferia, com as consequências sociais que isso acarreta. A
Revolução de Outubro de 1917 teve como resultado a reversão desse processo, através
de uma retirada semi-mercantilista da economia-mundo, que lhe permitia uma
acumulação de capital impossível de alcançar se estivesse totalmente integrada
(Babones e Babcicky 2011). Como tal, no final da Segunda Guerra Mundial a URSS
estabelecia-se como um “membro muito Пorte da semi-periferia e podia começar a
procurar obter o seu estatuto de centro”77 (Wallerstein 1974, 411). Como vimos
anteriormente, a relação de dependência da URSS face ao exterior nunca deixou de
existir totalmente, contudo agravou-se consideravelmente a partir de 1973, provocando
uma deterioração constante da sua economia, até culminar no seu colapso político.
Usando a conceptualização marxiana: a infraestrutura condicionou a superestrutura. Ou
seja, foi a participação da URSS no sistema-mundo capitalista que levou ao seu colapso
económico e político (Frank 1992).
O período aqui tratado marca um ponto de inflexão na forma de integração e
participação que esta região teve no sistema-mundo, mesmo que nunca tenha deixado de
participar completamente neste mesmo sistema. E este ponto de inflexão situa-se no ano
de 1973. Ao mesmo tempo, o período que se segue demonstra o momento em que se
evidencia uma drástica aceleração da sua integração no sistema-mundo e, como se irá
demonstrar, do aumento do seu grau de dependência neste mesmo sistema. Sendo
assim, torna-se relevante observar estes períodos e as fases a eles subjacentes, como
forma de compreender melhor quer o passado recente, quer a situação actual vividos
pela Rússia e em particular pelo grau de dependência por ela evidenciado. Ao mesmo
tempo permite-nos constatar que a posição russa no sistema-mundo nem sempre foi a
mesma, oscilando ao longo do tempo.
77
“[…] very strong member of the semi-periphery and could begin to seek full core status.” – tradução própria.
64
Iniciando o nosso estudo pelo período soviético, podemos dividir a evolução da
economia soviética em três fases compreendidas entre 1950 e 1991. Mazat e Serrano
(s.d., 2) fazem esta divisão da seguinte forma: uma primeira fase entre as décadas de
1950 e 1973 (Mazat e Serrano s.d., 5), caracterizada por uma extensa acumulação de
capital baseada na produção de bens industriais e rápido crescimento económico (daí
começarmos esta análise por esta fase, de forma a termos presente a importante
mudança na estrutura económica que teve lugar); uma segunda fase, que parte de 1974
até 1984 (Mazat e Serrano s.d., 14), onde se evidencia uma intensificação da utilização
de capital, mas também forte aposta na exploração de matérias-primas, nomeadamente
petróleo (Hobsbawm 2011 [1994], 250), resultando numa desaceleração da economia; e
finalmente o período 1985 até 1991, onde as reformas da Perestroika78 levam a fracos
desempenhos económicos, que culminariam mais tarde no aprofundamento da crise
social e política e subsequente desintegração da União Soviética.
Sapir (2013) inicia o seguinte período de análise da economia russa ainda
durante a época soviética79, dividindo em dois períodos distintos. O primeiro, de 1991 a
1998, que descreve como a “primeira Пase de transiхуo” da economia centraliгada
soviética, para uma economia liberal de mercado. Esta fase é caracterizada por uma
forte crise económica quase contínua até ao seu final. A fase seguinte inicia-se, segundo
o autor, ainda em 1998 e podemos estendê-la até à actualidade, mais concretamente até
2015. Nesta fase, denota-se um novo crescimento económico, intervalado por algumas
crises, baseado nas rendas das exportações de petróleo e gás natural, e com forte
intervenção Estatal na economia, em particular em alguns sectores considerados
estratégicos (Sapir 2013; Nazet 2007, 64). Esta última fase será o principal foco da
nossa investigação na Parte II deste trabalho.
3.1 – Fase de 1950-1973
Comecemos por analisar a estrutura económica soviética a partir do início dos
anos de 1950. Por esta época passaram três Secretários-Gerais do Partido Comunista da
78
79
, cujo siРniПicado é “reestruturaхуo”.
Por motivos práticos faremos aqui a divisão entre o período soviético e pós-soviético. Apesar dos anos de 1990 e 1991 fazerem
parte do período inicial dos processos de privatização da economia soviética, veremos que o processo começa ainda antes. Por isso
faz-se a divisão destes períodos tendo em conta as mudanças de regime político que tiveram lugar na Rússia, o que se espera que
ofereça uma melhor compreensão dos acontecimentos em causa, evitando misturar os dois períodos.
65
União Soviética (PCUS): Josef Stalin, Nikita Khrushckev e Leonid Brezhnev. A
economia soviética era caracteriгada por ser uma “economia de comando planiПicado,
que operava sobre condições de escassez de capital, com a propriedade estatal dos
meios de produхуo”80 (Mazat e Serrano s.d., 2). No sentido de permitir uma rápida
industrialização e acumulação de capital, a aposta centrava-se na criação de condições
para a intensificação de capital, por isso as indústrias privilegiadas eram as de produção
de bens de capital, ou seja, indústria pesada (Mazat e Serrano s.d., 4). Sendo já esta uma
das prioridades desde os anos de Josef Stalin (Stalin 1972 [1952], 22-23). Daí que, em
1960, as suas principais exportações fossem maquinaria, equipamentos, meios de
transporte e metais (Hobsbawm 2011 [1994], 460), porém as trocas comerciais com o
exterior eram reduzidas (Mazat e Serrano s.d., 5). Contudo, nos anos 70 já se faziam
sentir alguns dos efeitos da transição de prioridade industrial, iniciada em 1956 com
Nikita Khruschov, numa tendência de liberalização da economia (Keeran e Kenny 2008
[2004], 47) e orientação para a produção conjunta de bens de capital e de consumo.
Mesmo assim a produção de bens de capital continuou o seu crescimento relativo dentro
da economia soviética (Mazat e Serrano s.d., 7). Este modelo de desenvolvimento
conseguiu obter um crescimento médio do PNB81 cifrado em 5,0% entre 1961-1973
(Sokoloff 1993, 187)
82
, comparado com os 4,4% dos EUA no mesmo período (CIA
1986, 2).
3.2 – Fase de 1974-1984
Após 1973 a situação iria alterar-se. Com a crise do petróleo de 1973 a URSS
aproveita a oportunidade para conseguir fáceis receitas de moeda forte, usando as suas
extensas reservas de petróleo, sendo que em 1980 o comércio externo soviético atingia
cerca de 20% do seu PIB, aumentando a uma média anual de 26% entre 1970 e 1980
80
“[…] аas a planned command economy, аhich operated under conditions of capital scarcity, аith state oаnership of the means
of production.” – tradução própria.
81
Produto Nacional Bruto
82
Existe uma escassez de dados fiáveis sobre a economia soviética e os que existem divergem muitas vezes entre si. Ao mesmo
tempo, existe também um amplo debate sobre o método estatístico utilizado para compilar a informação sobre a economia soviética,
sendo que várias tentativas de conversão para a medição da riqueza produzida pela economia soviética foram feitas, com resultados
bastante diferentes entre si, porém mostrando tendências de crescimento semelhantes (Mazat e Serrano s.d., 6). A utilização destes
dados sobre o PNB da URSS provém das várias fontes utilizadas por Georges Sokoloff (1993) para traçar a história do
desenvolvimento económico soviético. Para informações adicionais ver também o projecto Angus Maddison que procura estimar o
desenvolvimento económico de várias regiões ao longo da história, incluindo a URSS (Quandl 2014)
66
com os seus parceiros comerciais da Europa Ocidental (Mazat e Serrano s.d., 21-22).
Esta moeda forte era usada para permitir a importação de tecnologia e equipamento dos
países ocidentais, de forma a suprir as necessidades internas e potenciar o seu
desenvolvimento83. Isto apesar de a investigação científica estar a um nível bastante
avançado na URSS, contudo a utilização destes avanços técnicos era sobretudo centrada
na indústria militar, havendo um incremento tecnológico nos sectores civis
relativamente pequeno e limitado (Mazat e Serrano s.d., 17). A URSS procurava, desta
forma, potenciar o seu desenvolvimento e crescimento económico. Desta forma as
importações de produtos de consumo variados, bens de capital e tecnologia nas áreas
das tecnologias de informação, electrónica e química, provenientes do ocidente,
aumentavam a um ritmo elevado, provocando défices de moeda forte no comércio,
sendo estes financiados através de empréstimos junto da banca externa (Mazat e Serrano
s.d., 20-22).
O impacto deste enfoque na exportação de matérias-primas é também verificado
na composição das exportações soviéticas, que em 1970 tinham um impacto de 26%
sobre o total e em 1980 passavam para 51,5%, sendo estas essencialmente compostas
por petróleo e gás natural (Mazat e Serrano s.d., 23). É a partir deste período que a
economia soviética passa a estar vulnerável face à economia mundial capitalista e ao
comportamento dos seus mercados (Hobsbawm 2011 [1994], 250), dada a importância
que as receitas dependentes destas matérias-primas tinham nas importações realizadas
no Ocidente. Este aspecto tem particular importância especialmente a partir da segunda
crise do petróleo em 1979 que, após provocar um pico no preço, este irá decrescer
fazendo com que o valor das exportações soviéticas também desça e, por consequência,
as importações também tiveram de ser limitadas (Mazat e Serrano s.d., 23). A
intervenção soviética no Afeganistão, nesse mesmo ano, provocaria também a
imposição de sanções por parte dos países ocidentais a muitos produtos, aproveitando
assim a dependência soviética face a essas importações (Mazat e Serrano s.d., 23-24).
Usando as palavras de Hobsbaаm (2011 [1994], 461): “ao contrпrio da URSS do
período entre guerras, praticamente fora da economia mundial e portanto imune à
Grande Depressão, agora o socialismo estava cada vez mais envolvido nela, e portanto
nуo imune aos choques dos anos 70”, aspecto que se continua a veriПicar até р data do
83
As importações soviéticas de maquinaria, metais, artigos de consumo industriais, entre outros, atingem em 1985 cerca de 60% da
totalidade das suas importações, invertendo assim a relação anteriormente existente (Hobsbawm 2011 [1994], 460).
67
presente trabalho, como iremos observar adiante, quando analisarmos a dependência
socioeconómica russa.
Outro dos problemas evidenciados, em particular a partir desta fase, era a
corrupção e estagnação política que ocorria dentro da sociedade soviética e que se
agravaria ainda mais na fase seguinte (Keeran e Kenny 2008 [2004], 48 e 51). Mesmo a
chegada de Iuri Andropov a Secretário-Geral do PCUS em 1982 e a sua tentativa de
inverter a tendência verificada, através de várias reformas, não estimulou os resultados
esperados, dado ter morrido apenas 15 meses após assumir o cargo (Keeran e Kenny
2008 [2004], 53-63). Tendo em conta estas condicionantes, o crescimento médio da
economia soviética entre 1974-78 abrandou e ficou-se pelos 3,4% e entre 1979-85
voltou a abrandar, tendo o seu crescimento passado para 2,1% (Sokoloff 1993, 187),
notando-se assim uma tendência decrescente da sua taxa de crescimento média do PNB.
Ao passo que, no período de 1975-80, a economia dos EUA cresceu em média 3,7% e
entre 1980-85 o valor médio foi de 2,3% (Sokoloff 1993, 187). Uma interpretação feita
por alguns autores acerca desta desaceleração da economia tem por base ser uma
possível consequência da maturidade alcançada pela economia soviética (Sakwa 2013,
66). Este argumento faz sentido incluindo a URSS no sistema-mundo e afirmando que
dentro deste esta teria alcançado um estágio de desenvolvimento relativamente
avançado, a partir do qual a sua mutação sistémica rumo ao centro estaria mais
condicionada. Todavia, esta hipótese carece de uma análise mais aprofundada para
explicar a totalidade do fenómeno.
3.3 – Fase de 1985-1991
O período seguinte, iniciado em 1985, é caracterizado pela chegada de Mikhail
Gorbatchov a Secretário-Geral do PCUS assim como pelas suas reformas, como é o
caso da Perestroika iniciada em 1986. O objectivo dessas reformas era dinamizar
novamente a economia soviética, invertendo assim a tendência verificada nos últimos
anos, e acima mencionada, através de mudanças profundas no próprio sistema,
nomeadamente através de reformas de mercado, procurando a sua liberalização (Mazat
e Serrano s.d., 24-25). Reformas como a Lei das Empresas Estatais (Mazat e Serrano
s.d., 25) ou a Lei das Cooperativas (Brooks 1988) visavam um forte aumento da
liberdade de acção das empresas estatais e do florescimento da iniciativa privada. Estas
68
reformas tiveram um efeito totalmente contrário àquele que era esperado, provocando
uma desorganização acelerada da economia soviética, que anteriormente era garantida
pelo gabinete de planeamento Gosplan (Mazat e Serrano s.d., 26; Sakwa, 2013, 67).
Esta desorganização resultou num efeito de espiral recessiva, tendo como consequências
a quebra de receitas por parte do Estado soviético, queda no investimento, aumento
acelerado dos salários superior ao crescimento da produtividade, consequente inflação,
escassez de produtos, crescimento do mercado negro e corrupção generalizada (Mazat e
Serrano s.d., 27-28).
Os acontecimentos que tiveram lugar na URSS neste período fizeram surgir uma
nova classe dentro da sociedade soviética, fruto da generalização do mercado negro e da
corrupção a ele ligada, com repercussões até aos nossos dias, como teremos
oportunidade de verificar quando estudarmos as dimensões da dependência
sociopolítica e cultural russa. Aqueles que controlavam o fornecimento de produtos
dentro dos mercados paralelos acumulavam também grandes quantidades de riqueza, o
que lhes permitiu Пormarem uma classe de capitalistas ricos, para quem “prosseРuir para
o capitalismo era essencial para a sobrevivência dos seus novos neРяcios” (Kotг in
Mazat e Serrano s.d., 28). Esta classe era essencialmente composta pelos gestores das
empresas estatais (Mazat e Serrano s.d., 30) e, tendo como finalidade a defesa dos seus
interesses de classe, desempenharia um papel fulcral na dissolução da URSS.
Outro aspecto relevante a acontecer neste período foi o preço do petróleo. A
década de 1980 tinha-se iniciado com um pico do preço de petróleo que havia atingido
os 40 dólares, comparando com os anteriores cerca de 15 dólares do final da década de
70. Contudo, verificou-se uma queda dos 30 dólares por barril, para apenas 10 dólares,
entre o final de 1985 e o início de 1986, tendo-se mantido normalmente abaixo dos 20
dólares a partir daí, só voltando brevemente à casa dos 30 dólares entre Agosto e
Dezembro de 1991 (Trading Economics 2016a). A forte quebra evidenciada a partir de
1986 veio provocar um forte desequilíbrio nas contas da URSS, especialmente da
balança comercial, que ficou ainda mais agravado quando se começou a verificar uma
quebra na própria produção petrolífera soviética (Mazat e Serrano s.d., 29). A falta de
capacidade para importar bens de consumo agravou ainda mais a escassez de produtos
que se evidenciava, fruto das reformas económicas (Idem, ibidem).
Estes problemas económicos que o país vivia provocaram uma resposta negativa
por parte da banca ocidental à qual era devedor, que fez com que as taxas de juro dos
empréstimos cedidos disparassem e que os prazos para os pagamentos ficassem cada
69
vez mais curtos. Isto provocou uma acentuada subida da dívida pública externa da
URSS, tendo subido de 14,9 mil milhões de dólares em 1985, para 45,4 mil milhões em
1991 (Mazat e Serrano s.d., 30). A deterioração das finanças soviéticas fizeram com
que, em 1991, as reservas de divisas estrangeiras e de ouro soviéticas estivessem
completamente exauridas (Idem, ibidem). Todos os problemas económicos da URSS se
aРravavam continuamente, provocando um eПeito “bola de neve”. Desta Пorma, a
economia soviética que teve um crescimento médio do PNB de 2,25% entre 1986-1989,
passa para um estado de recessão económica de -3,7% em 1990 e no ano seguinte a
recessão agrava-se ainda mais passando para os -13% (Sokoloff 1993, 187). A par do
colapso económico, o colapso político tomava também forma, tendo culminado com a
independência das suas repúblicas entre 1990 e 1991, e assim a 26 de Dezembro de
1991 é decretada oficialmente a dissolução da URSS.
3.4 – Fase de 1991-1998
Após a independência russa em 1991, o processo de privatização da sua
economia Пoi acelerado, através daquilo que é conhecido como a “Terapia de Choque”
(Engdahl 1993). Os seus efeitos práticos são largamente discutidos, contudo desde
muito cedo se considerou que era um “absoluto desastre” (EnРdahl 1993, 6). O plano
teve início em 2 de Janeiro de 1992 e foi traçado em conjunto entre o novo Presidente
da Federação Russa, Boris Yeltsin; a sua equipa para os assuntos económicos, liderada
por Yegor Gaidar, Ministro da Economia e das Finanças da RSFSR 84, e Jeffrey Sachs,
economista da Universidade de Harvard; e o Fundo Monetário Internacional (FMI)85
(Idem, ibidem). Este consistia na reversão do controlo de preços de 90% dos bens de
consumo e 80% dos bens industriais, nos restantes o Estado declarou a subida dos
preços em cerca de 350%, sendo que no final de Janeiro já se situavam nos 500%. A
impressão de dinheiro foi também parada, tal como houve uma subida das taxas de juro
de 2% para 80%, de forma a conter a inflação criada. Também o comércio externo foi
totalmente liberalizado, excepto para o gás e petróleo (Idem, ibidem).
Tudo isto levou a que o país entrasse num estado de hiperinflação e que a
economia caminhasse para o colapso. Como forma de cortar nos gastos públicos e ir ao
84
República Socialista Federativa Soviética da Rússia.
85
Organização para a qual entraria no dia 1 de Junho de 1992 (IMF 2016).
70
encontro das exigências do FMI, de modo a ser garantido um crédito de 24 mil milhões
de dólares (Engdahl 1993, 7), o governo cortou o financiamento às empresas públicas, o
que as levou a acumular défices elevados, provocando falências e ineficiências na
indústria. Isto apesar destas empresas poderem contrair dívidas entre si ou ao Banco
Central, o que não tinha impacto no orçamento governamental. Porém, estas medidas
resultaram numa quebra na produção industrial de 20% e a um défice orçamental de
17% em 1992, com as consequências sociais daí derivadas, como a pobreza que atingiu
40% do total da população em 1993 (Milanovic 1998, 186) e tendo alcançado mais de
60% em 1998 (Denisova 2012, 13). O processo de privatização iria quebrar as ligações
de colaboração e interdependência existentes entre as várias empresas e laboratórios
espalhados pela URSS (Nazet 2007, 58). Para além disto, o processo foi conduzido de
forma bastante duvidosa, o que explica o ressentimento dos russos face a esse processo
e àqueles que com ele lucraram (Nazet 2007, 60; Sapir 2013). Durante este período
houve três grandes fases de privatização das empresas estatais, sendo a última em 1997
(Nazet 2007, 60-61).
Em 1998 uma crise financeira global atinge, de forma muito particular, uma
Rússia já bastante fragilizada. Esta crise teria um forte impacto na economia russa, pois
combinaria a falta de capacidade em cumprir o serviço da dívida pública, com uma forte
desvalorização do rublo (Sapir 1999, 1). Na sua origem está a crise financeira asiática
de 1997, que provocou um caos financeiro global e, por consequência, levou a que
houvesse instabilidade nos mercados mundiais, o que atingiu uma Rússia cuja economia
se baseava essencialmente na exportação de matérias-primas, nomeadamente petróleo e
gás natural (Sapir 1999, 2 e 4). O preço do petróleo cairia de cerca de 25 dólares em
Janeiro de 1997, para cerca de 12 dólares em Junho de 1998, apenas retomando valores
em torno dos 25 dólares no final de 1999 (Trading Economics 2016a). Para além disso,
vários factores estruturais e políticos ajudaram a agravar a situação ou, pelo menos, a
que houvesse maior dificuldade em controlá-la (Idem, ibidem). Só nesse ano a
economia russa cairia 4,6% (Sapir 2013).
Como resultado deste período entre o início de 1991 e o final de 1998 a
economia russa perderia cerca de 43% do seu PIB, passando de 691,7 mil milhões de
dólares86 (com que iniciou o ano de 1991), para 398,3 mil milhões em 1998 (Sapir
2013). Passaria de uma composição do PIB onde a indústria representava 38% deste,
86
A preços de 2004.
71
para 32,6% no ano de 2000 (Nazet 2007, 68). Sapir (2013) fala-nos ainda do atraso
acumulado pela Rússia durante este período de transição, tendo em conta estimativas de
crescimento médio de 1,5% que a Rússia poderia ter em condições normais,
acumulando prejuízos no PIB de 380,9 mil milhões de dólares até 1998 e prejuízos
totais de 2082,5 mil milhões de dólares. Em vez disso o crescimento médio entre 1991 e
1998 seria de -6,3% (Souza 2007, 23).
Verifica-se após o período soviético a Rússia passa por um processo de
enfraquecimento da sua posição hierárquica dentro do sistema-mundo, um processo de
periferização onde as reПormas que tinham em mente a “dessovietiгaхуo” do país
desempenharam um papel central. Os mecanismos que normalmente caracterizam este
processo de “mobilidade descendente” e identiПicados por DerluРuian e Wallerstein
(2011, 4) encontram-se todos presentes na Rússia ao longo deste período, como a
“ПraРilidade do Estado, Пorхa oliРпrquica, desindustrialiгaхуo e comércio de
‘comprador’87”88. Por conseguinte, os mesmos autores afirmam que durante este
período “em veг de [haver um movimento da] URSS para mais perto do centro, a
desorganizada morte do estado soviético produziu um recuo para a periferia”89
(DerluРuian e Wallerstein 2011, 30), “assemelhando-se mais ou menos ao Terceiro
Mundo”90 (Idem, 32).
Isto mesmo considerando a posição semi-periférica
historicamente usufruída pela Rússia e supramencionada.
A compreensão do processo de periferização ocorrido na Rússia, durante este
período, possibilita-nos interpretar de forma mais clara quais os motivos que levam à
mudança de políticas que lhe seguiriam, e quais as opções tomadas.
87
“comprador” – Uma pessoa que age como agente para organizações estrangeiras ocupadas em investimentos, comércio ou
exploração económica ou política (Oxford Dictionaries, 2017).
88
“[…] state аeakness, oligarchic strength, deindustrialization and comprador trade […]” – tradução própria.
89
“Instead of moving the USSR closer to the core, the messy demise of Soviet state produced recoil to periphery” – tradução
própria.
90
“[…] the post-Soviets found themselves someаhere more or less ressembling the Third World.” – tradução própria.
72
Parte 2 – Estudo da dependência russa no período 1998-2015
4 – Avaliação dos graus de dependência russa
[Os Estados semi-periféricos] usam o poder do
estado nas arenas interna e interestatal de
forma bem consciente para aumentar o estatuto
do seu estado enquanto produtor, enquanto
acumulador de capital e enquanto força militar.
A sua escolha é em última instância bem
simples: ou eles têm sucesso em ascender na
escada hierárquica (ou pelo menos manterem o
seu lugar) ou eles serão empurrados para baixo.
(Wallerstein 2006, 56-57)
Nesta fase do trabalho serão analisados os graus de dependência russa a vários
níveis. Será então desenvolvida a fase que se inicia ainda em 1998 e se estende até
2015, fazendo para isso uso dos cinco tipos de imperialismo (e associada dependência)
enunciados por Johan Galtung (1971, 91), tal como aplicando os pressupostos da Teoria
da Dependência em geral acima referidos. A nossa análise será iniciada na dependência
socioeconómica, onde se incluirão as dimensões económica e a parte infraestrutural da
comunicativa, utilizando vários dos indicadores socioeconómicos recolhidos na
literatura trabalhada e que mantêm hoje a sua pertinência, dado continuarem a ser
elementos macroeconómicos trabalhados e quantificados na actualidade. Posteriormente
iremos passar para a dependência sociopolítica e cultural, que engloba um tratamento
mais aprofundado das elites na Rússia e onde incluiremos as dimensões associadas à
dependência cultural (incluindo aqui as questões da comunicação social retiradas da
dependência comunicativa) e política, onde também será testada a nossa hipótese sobre
se a Rússia se encaixa no modelo B-A. Por fim, será analisada a capacidade da Rússia
interagir no sistema-mundo, debruçando-nos primeiramente sobre a dependência militar
e por fim sobre a política externa. No final desta análise espera-se obter uma visão
73
sistémica da Federação Russa, que nos permita ter uma melhor compreensão das suas
capacidades em termos de política externa e como interage no sistema internacional.
Ao longo desta segunda parte do nosso trabalho espera-se também testar as
nossas hipóteses iniciais e que importa por isso relembrar. Conjecturou-se inicialmente
que a Rússia evidenciava características de país dependente dentro do sistema-mundo,
encaixando, de forma mais específica, naquilo que designa por semi-periferia. Para que
tal seja verdade, a Rússia necessita de evidenciar atributos de dependência face aos
países do centro, integrando-se numa relação desigual face a estes. Afirmou-se também
que, no entanto, a Rússia possui ainda um determinado grau de desenvolvimento e
autonomia política, o que a faz situar-se num grau intermédio de importância dentro das
dinâmicas em prática no sistema-mundo. Esta posição permite-lhe ocupar também uma
relação de mediadora entre as nações totalmente Periféricas e as Centrais, dentro dos
princípios destacados por GaltunР (1971, 89), desiРnados de “interacхões Пeudais”. Esta
relação é desenvolvida não só em aspectos comerciais ou de processamento e de
controlo de recursos, para posterior redistribuição no centro, mas também em aspectos
militares, políticos, culturais e comunicacionais.
4.1 – Dependência socioeconómica
Nesta secção será desenvolvida uma análise comparativa através dos dados à
disposição nas várias dimensões económicas que serão aqui abordadas. A escolha recai
neste tipo de análise dada a necessidade de fazer comparações com os países
considerados desenvolvidos, para assim se conseguir entender a sua própria posição
dentro do sistema-mundo. De forma a melhor compreender essas dimensões aqui
abordadas, os indicadores analisados serão separados em dois campos distintos. O
primeiro será composto por indicadores directamente relacionados com as questões da
dependência económica da Rússia, ou seja, os factores económicos que provocam a
dependência. A selecção destes indicadores é feita tendo por base a literatura revista
anteriormente, onde se destacam:
1. Os diferentes níveis de processamento (Galtung 1971, 86; Wallerstein 2011
[1974]);
74
2. Dependência da exportação de matérias-primas (Galtung 1971, 85; Mahler 1980,
29-30);
3. Concentração numa limitada gama de produtos exportados (Galtung 1971, 90;
Cardoso e Faletto 1977, 27; Mahler 1980, 29-30);
4. O tipo de importações (Prebisch 1962 [1949], 127);
5. Crescente importância do Investimento Directo Estrangeiro (Amaral 2012, 65;
Santos 2011 [1978], 368; Mahler 1980, 31);
6. Deterioração dos termos de troca (Prebisch 1962 [1949], 81-86; Santos 2011
[1978], 372; Mahler 1980, 29-30);
7. Fraco desenvolvimento tecnológico (Cardoso e Faletto 1977, 5);
8. Fraco investimento público (Cardoso e Faletto 1977, 5);
9. Crescimento da dívida (Mahler 1980, 33; Santos 2011 [1978], 65-66);
10. “Ajudas” internacionais (Mahler 1980, 32).
O segundo campo será constituído pelos indicadores que expressam as
consequências desta dependência económica na Rússia. Neste será reflectido o impacto
que a dependência económica possui sobre a estrutura socioeconómica e as limitações
que impõe, quer na sociedade quer no próprio Estado, procurando traçar algumas
conclusões sobre o assunto em questão. Os indicadores utilizados serão, nomeadamente:
a relação entre o preço do petróleo nos mercados globais e o crescimento económico
russo; o PIB real e PIB real per capita; a evolução demográfica; a importância do
consumo privado no PIB; rendimentos do top e dos últimos 20% da população; Índice
GINI; Índice de Desenvolvimento Humano; esperança média de vida; mortalidade
infantil; Índice de educação; e taxa de desemprego. Serão aqui também observadas as
principais políticas económicas tomadas pelos governos russos desde 1998 até 2015, de
forma a compreender quais as principais estratégias utilizadas durante este período.
Outra dimensão que é directamente afectada pela dependência económica, e que iremos
aqui inserir, trata-se daquilo que Johan GaltunР aПirma ser a пrea “comunicacional”.
Apesar de GaltunР separar o “imperialismo comunicacional” num domínio prяprio, a
íntima ligação de raíz material existente entre a questão infraestrutural, inserida neste, e
as questões económicas permite-nos agregar ambas na mesma análise. Excluindo daqui,
no entanto, a vertente que trata a comunicação de notícias e a forma como estas são
processadas, parte que iremos incluir na análise sociopolítica da Rússia que será feita
mais adiante.
75
Os dados expostos nas tabelas apresentadas serão relativos à Rússia
individualmente, à média representante do G7 e aos EUA individualmente. O G7 surge
nestas tabelas dado representar o grupo de países mais desenvolvidos em termos
socioeconómicos e político-militares no mundo. São estes países mais desenvolvidos
que constituem o centro do sistema-mundo, como afirmado pelos vários autores (ChaseDunn et al 2000, 79; Galtung 1971, 103-104). Os EUA surgem separadamente por
representarem o país com maior produção de riqueza dentro do próprio G7 e do mundo.
Estas tabelas também contam com as diferenças existentes nos diversos indicadores
entre a Rússia e o G7, e a Rússia e os EUA, como forma de entender o que os distingue.
Para se compreender melhor a evolução dos nossos objectos de análise, são colocados
diferentes períodos, com curtos intervalos entre eles e que variam de acordo com a
disponibilidade dos dados nas fontes utilizadas. Estes períodos estão compreendidos
entre 1998 e 2015.
4.1.1 – Indicadores de dependência económica
Uma economia, para se considerar ser possuidora de avançadas relações de
produção, necessita de possuir um elevado grau de processamento, quando comparada
com as restantes economias do mundo. Como Galtung (1971, 87) afirma, a técnica de
processamento baseia-se na capacidade de “impor Cultura sobre a Natureгa”. A
imposição de cultura sobre a natureza é, no fundo, o mesmo que Marx (1975 [1891],
102) expunha na sua Teoria do Valor, quando falava da execução de trabalho sobre a
matéria: “uma mercadoria tem um valor, porque é a cristaliгaхуo de trabalho social. A
grandeza do seu valor, do seu valor relativo, depende da maior ou menor quantidade
dessa substância social nela contida; isto é, da quantidade relativa de trabalho necessário
para a sua produхуo”. E quando se Пala em elevados Рraus de processamento, Пala-se em
acumulaхуo de trabalho numa mercadoria, ou seja, “ao calcularmos o valor de troca de
uma mercadoria, temos que adicionar à quantidade de trabalho empregue em último
lugar a quantidade de trabalho previamente incorporada na matéria-prima da mercadoria
e o trabalho aplicado nas ferramentas, nos utensílios, máquinas e edifícios que serviram
para esse trabalho” (Marб 1975 [1891], 104).
76
Para alguns autores esta é exactamente a melhor forma de compreender o
problema da deterioração dos termos de troca, pois a explicação encontra-se não no
preço relativo dos produtos transacionados, mas sim na própria natureza e condições em
que são produzidos (Mahler 1980, 30). De forma a observar este grau de processamento
em concreto, usamos aqui o indicador de complexidade económica, um indicador que
mede eбactamente o “quуo diversiПicado e compleбo é o cabaг de eбportaхões de um
país”91, o que acaba por servir como “medida do conhecimento numa sociedade que se
traduг nos produtos que Пaг”92 (The Atlas of Economic Complexity, 2016b), ou seja, a
imposição de trabalho, de cultura, na natureza por uma dada sociedade e que é extraído
tendo por base as exportações de cada país. É então de esperar que os países mais
desenvolvidos possuam um cabaz de exportações mais complexo do que países menos
desenvolvidos. Olhando para a Tabela 1 verificamos que de facto os países que
compõem o G7 são todos países relativamente bem posicionados no ranking mundial,
exceptuando o Canadá, ao passo que a Rússia se posiciona bem atrás.
Tabela 1: Ranking de Complexidade Económica em 2014.
Rússia
50º
Canadá
39º
França
17º
Alemanha
2º
Itália
15º
Japão
1º
Reino Unido
10º
EUA
14º
Fonte: The Atlas of Economic Complexity (2016a).
De seguida, a Tabela 2 permite-nos concluir que a Rússia tem sofrido uma
degradação da sua complexidade económica, contudo também os países que compõem o
G7 têm visto regredir esse mesmo aspecto. Ainda assim, a regressão russa é superior
àquela verificada pelo G7, como se pode observar no alargamento da diferença
relativamente a este grupo.
Tabela 2: Indicador de Complexidade Económica.
Indicador de
Complexidade Económica
1998
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
0,70
0,53
0,62
0,32
0,05
1,97
1,89
1,73
1,52
1,36
1,98
1,86
1,76
1,56
1,44
Diferença
com G7
-1,28
-1,33
-1,14
-1,24
-1,39
Diferença com
EUA
-1,27
-1,36
-1,11
-1,20
-1,31
Fonte: The Atlas of Economic Complexity (2016a).
91
“ECI ranks hoа diversified and compleб a country’s eбport basket is.” – tradução própria.
92
“A measure of the knoаledge in a society that gets translated into the products it makes.” – tradução própria.
77
Analisemos então os factores que contribuem para uma baixa complexidade
económica e para o degradar desse mesmo factor na economia russa. Se a complexidade
económica é a imposição de trabalho ou cultura sobre a natureza, então uma economia
com baixa complexidade económica possuirá uma destacada importância de elementos
da natureza, com baixos graus de trabalho incorporados. Ou seja, será uma economia
baseada essencialmente em recursos naturais. E um dos elementos que caracterizam
uma economia dependente é exactamente a dependência da exportação de matériasprimas (Galtung 1971, 85; Mahler 1980, 29-30). Importa por isso ter em conta este
aspecto considerado na Tabela 3, abaixo:
Tabela 3: Peso dos combustíveis nas exportações.
Combustíveis nas
exportações (%)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
Média G7
39
51
62
66
63
2
2
3
7
8
2,6
4,3
6,3
8,3
6,9
Diferença
com G7
36,4
46,7
55,7
57,7
56,1
Diferença com
EUA
37,0
49,0
59,0
59,0
55,0
Fonte: World Bank (2016a).
Obtém-se aqui uma das causas que explicam a constante diminuição da complexidade
económica quer da Rússia, quer do próprio G7. Salienta-se que a dependência russa face
às exportações de combustíveis é bastante acentuada, chegando em 2015 a contribuir
com 63% do total de todas as exportações e tendo alcançado o seu máximo de
dependência em 2013, quando as suas exportações dependiam em 71% dos
combustíveis, tendo registado uma queda desde então (ver Figura 1). Da mesma forma,
a diferença relativa ao G7 também aumentou ao longo do tempo, mesmo registando um
ligeiro decréscimo em 2015 face a 2010.
78
Figura 1: Evolução do peso dos combustíveis nas exportações russas.
Combustíveis nas exportações russas (%)
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2015
2014
2013
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
Combustíveis nas
exportações (%)
Fonte: World Bank (2016a).
A Figura 1 demonstra-nos que a sua diversificação de exportações é relativamente
baixa, concentrando-se numa limitada gama de produtos, como também é evidenciado
pelo seu índice de diversificação de exportações, onde valores mais altos correspondem
a uma menor diversificação, como se lê na Tabela 4.
Tabela 4: Índice de Diversificação de Exportações.
Índice de diversificação
de exportações
2000
2005
2010
Rússia
EUA
Média G7
2,879
3,288
3,543
1,644
1,542
1,484
1,770
1,743
1,718
Diferença
com G7
1,109
1,545
1,825
Diferença com
EUA
1,235
1,746
2,059
Fonte: Knoema (2016).
Contudo, tomar somente estes dois aspectos em conta não reflecte de forma
esclarecedora o estado de dependência da economia russa face aos combustíveis. É
necessário ter em atenção qual a contribuição dos recursos naturais no PIB, de forma a
compreendermos a evolução registada ao longo do tempo.
79
Tabela 5: Contribuição dos recursos naturais para o PIB.
Contribuição dos recursos
naturais para o PIB (%)
1998
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
16,2
43,5
39,3
22,6
16,2
0,4
1,0
1,5
1,4
1,1
0,5
1,2
1,6
1,2
1,0
Diferença
com G7
15,7
42,3
37,7
21,4
15,2
Diferença com
EUA
15,8
42,5
37,8
21,2
15,1
Fonte: World Bank (2016a).
Aqui observamos que o impacto dos recursos naturais para o PIB nos países do G7 é
bastante baixo, como aliás seria de esperar em economias desenvolvidas. Já no caso
russo, a importância destes elementos para a produção de riqueza no país é significativa.
Olhando para a Figura 2 registamos porém que a diminuição dessa importância tem sido
gradativa, apesar de algumas oscilações, sendo o ano de 2000 aquele em que se registou
um impacto maior cifrado em 43,5% e caindo para 16,2% até 2014.
Figura 2: Contribuição dos recursos naturais para o PIB russo.
Contribuição dos recursos naturais para o
PIB (%)
50
40
30
Contribuição dos recursos
naturais para o PIB
20
10
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
0
Fonte: World Bank (2016a).
É reconhecido que a economia russa é ainda hoje menos diversificada do que era
no tempo da URSS (The Moscow Times 2015). Porém, olhando para a Figura 2, como é
que se explica que a economia russa não evidencie um aumento da sua diversificação e
complexificação? Uma explicação para este fenómeno é-nos dada por uma das
consequências daquilo que é considerado como “Dutch disease”, característico de países
com um elevado grau de dependência em recursos naturais (EBRD 2012, 13). Nos
países em que este fenómeno se evidencia, uma das ocorrências verificadas é a elevada
procura nos sectores não-transaccionáveis, nomeadamente serviços e construção, em
80
momentos em que os preços das matérias-primas se encontram altos. Isto leva a um
aumento de preços e a uma valorização do câmbio monetário (Idem, ibidem). Todavia,
isto acarreta consequências negativas para outros sectores da economia. Com este
aumento de preços, no sector dos bens não-transaccionáveis, também o custo do
trabalho na indústria aumenta, pois os custos do trabalho em bens transaccionáveis e
não-transaccionáveis estão normalmente ligados. Este aspecto, aliado à valorização
cambial, leva a uma menor competitividade dos sectores industriais e agrícolas (Idem,
ibidem). Quando, mais à frente, atentarmos à Tabela 15 compreenderemos mais
aprofundadamente o que aqui foi exposto.
Comparando o impacto das exportações de recursos naturais, observado
anteriormente, com o impacto das exportações de alta tecnologia na economia (Tabela
6), podemos tirar mais conclusões.
Tabela 6: Exportações de alta tecnologia.
Exportações de alta
tecnologia (% do total de
exportações)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
Média G7
Diferença
com G7
Diferença com
EUA
12
16
8
9
10
33
34
30
20
18
21,3
23,7
19,9
17,1
17,1
-9,3
-7,7
-11,9
-8,1
-7,1
-21,0
-18,0
-22,0
-11,0
-8,0
Fonte: World Bank (2016a).
Na Rússia, estas têm sofrido apenas pequenas flutuações, mantendo um peso
relativamente semelhante ao longo do tempo e que podemos considerar bastante baixo
quando comparado com os países do G7. Apesar de quer este grupo quer os EUA
evidenciarem fatias maiores das suas exportações associadas à alta tecnologia, denota-se
uma gradual diminuição da sua importância nas exportações.
Percebe-se a importância de todos os factores analisados anteriormente, quando
se estuda o peso que as exportações possuem sobre a produção de riqueza de um país.
Este indicador é, aliás, essencial para compreender até que ponto a economia de um país
é orientada para as exportações, sendo utilizado em vários estudos da dependência
(Mahler 1980, 37). Apesar das exportações serem importantes, enquanto fonte de
receitas que permitem a um país importar de outros países sem incorrerem em dívida,
elas podem possuir características danosas. Uma economia fundamentalmente orientada
81
para as exportações, faz com que nações formalmente e politicamente independentes
evidenciem características que as fazem assemelhar-se a países colonizados ou
recentemente descolonizados, em especial quando se tratam de exportações que
incorporem baixos níveis de processamento. Isto porque existe uma grande dependência
nas condições de negociação impostas pelo mercado mundial, que é controlado pelos
países centrais, nomeadamente em relação a preços, quotas, entre outras condições
(Cardoso e Faletto 1977, 21).
Tabela 7: Peso das exportações no PIB.
Exportações (total de
exportações/ PIB)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
Média G7
31,2
44,1
35,2
29,2
29,5
10,5
10,7
10,0
12,4
12,6
23,3
25,3
25,1
25,5
28,1
Diferença
com G7
7,9
18,8
10,1
3,7
1,4
Diferença com
EUA
20,7
33,4
25,2
16,8
16,9
Fonte: World Bank (2016a).
No parâmetro da contribuição que as exportações possuem para o PIB, a Rússia
apresenta em 2015 valores muito semelhantes àqueles encontrados na média do G7,
com uma diferença de 1,4%, sendo que no ano de 2000 essa diferença era de 18,8%.
Sendo que no caso russo essa relação tem vindo a diminuir, enquanto no caso do G7
tem vindo a aumentar. Já no caso dos EUA, conclui-se que estes possuem uma baixa
dependência face às exportações na sua produção de riqueza, o que significa que
possuem um mercado suficientemente grande para absorver a maior parte da sua
produção.
No que toca às importações é importante ter em conta não apenas a relação entre
estas e o PIB, mas também o seu tipo, ou seja, se se tratam de importações vitais para o
funcionamento da economia, como por exemplo máquinas, tecnologias, produtos semiprocessados, matérias-primas ou mesmo alimentos; ou se são importações de bens de
consumo duráveis ou de bens de capital que não são vitais para o desenvolvimento
(Prebisch 1962 [1949], 127). Na Tabela 8 vemos o peso das importações no PIB.
Tabela 8: Peso das importações no PIB.
Importações (total de
importações/ PIB)
1998
Rússia
EUA
Média G7
24,6
12,3
22,114
82
Diferença com
G7
2,486
Diferença
com EUA
12,3
2000
2005
2010
2015
24,0
21,5
21,1
21,2
14,3
15,5
15,8
15,5
24,714
24,857
26,329
27,871
-0,714
-3,357
-5,229
-6,671
9,7
6,0
5,3
5,7
Fonte: World Bank (2016a).
Constata-se que os EUA apresentam uma tendência crescente, mas a sua percentagem
de importações é ainda assim bastante menor que a média do G7 ou a Rússia. Esta
última mantém um nível de importações muito semelhante à média do G7, apesar de
registar uma tendência decrescente, enquanto este regista uma tendência crescente. Isto
demonstra que a Rússia apresenta uma dependência cada vez menor de importações de
produtos com origens exteriores para a satisfação das suas necessidades. Importa
também perceber a composição das importações russas, a fim de podermos traçar
conclusões mais proveitosas e ter uma visão mais esclarecedora do nível de dependência
evidenciado pela economia russa. Para isso, escolhemos o tipo de bens de consumo
duráveis importados em maior quantidade pela Rússia, sendo estes os automóveis (The
Atlas of Economic Complexity 2016c). Aqui observamos que se em 1998 e 2000
representavam 3% da totalidade das importações (1,71 mil milhões de USD), em 2005
eram já 8% das importações (7,36 mil milhões de USD), em 2010 baixariam para os 5%
(11,1 mil milhões de USD) e em 2014 totalizavam 6% das importações (17,7 mil
milhões de USD) (The Atlas of Economic Complexity 2016c). Em termos absolutos
concluímos que se registou um crescimento contínuo, enquanto em termos relativos as
importações de automóveis oscilam ao longo do tempo. Em relação aos bens de
capital93 a Rússia apresentava em 1998 cerca de 36% do total das suas importações, em
2000 cerca de 39%, em 2005 cerca de 44%, em 2010 cerca de 45%, em 2013 atinge os
48% e em 2014 cai para cerca de 41% (The Atlas of Economic Complexity 2016c).
Nota-se então um crescente peso dos bens de capital nas importações russas, apesar da
queda registada entre 2013 e 2014, o que significa que uma parte cada vez maior das
importações é utilizada para expandir a capacidade de produção da economia russa.
Apesar da participação da Rússia na OMC desde 2012 limitar a aplicação de
medidas proteccionistas comerciais, como restrições, tarifas alfandegárias, entre outros,
isso não impede a Rússia de ser dos países com maior nível de medidas proteccionistas
93
Dada a complexidade existente neste âmbito foram selecionados como bens de capital apenas algumas das grandes categorias de
mercadorias importadas. Assim o que é aqui apresentado inclui valores aproximados das importações com fins industriais de
maquinaria, produtos eléctricos, transportes (excepto automóveis e aeronaves), metais e produtos minerais.
83
e discriminatórias comerciais. Entre Novembro de 2008 e Outubro de 2015 a Rússia foi
o segundo país do G2094 com maior número de medidas discriminatórias
implementadas, num total de 478 medidas, apenas atrás da Índia que possuía 504
medidas e imediatamente à frente dos EUA com 377 medidas (Evenett e Fritz 2015,
22). A protecção comercial é um elemento utilizado pelos Estados como forma de
protecção do monopólio, já discutido pelos autores clássicos do imperialismo como
Lenin (1975 [1916], 32) e elemento recorrente em vários autores dependentistas, como
já aqui foi mencionado. É uma forma de promoção da acumulação de capital
(Wallerstein 2006, 25) e que portanto é usada pelos Estados de modo a melhorar a sua
condição sistémica, ao mesmo tempo em que promovem a liberalização económica de
outros Estados mais fracos com menores capacidades de competir nos mercados
mundiais em determinados produtos (Wallerstein 2006, 26). As semi-periferias são,
normalmente, as regiões que mais recorrem a políticas proteccionistas, tentado proteger
a sua produção interna da concorrência exterior (Wallerstein 2006, 29-30). A utilização
destas medidas por parte das elites russas surge então um dos elementos escolhidos para
promover a sua acumulação de capital e, por conseguinte, melhorar a posição da Rússia
no sistema-mundo, em particular num determinado grupo de sectores considerados
como “estratéРicos”, e que veremos de Пorma mais aproПundada р Пrente.
Como vimos anteriormente, Prebisch (1962 [1949], 81-86) afirmava que a longo
prazo existia uma deterioração dos termos de troca entre os países desenvolvidos e os
subdesenvolvidos, em que os primeiros saíam favorecidos face aos segundos. Isto é, ao
longo do tempo o valor das exportações de um país menos desenvolvido iria diminuir
relativamente ao valor dos preços pagos pelas suas importações (Mahler 1980, 38). O
que significaria que um país que melhorasse os seus termos de troca, estaria a melhorar
as suas condições financeiras e, portanto, a acumular mais riqueza ao longo desse
mesmo período, ao passo que um país que piorasse os seus termos de troca estaria
exactamente na posição contrária. A Tabela 9 mostra-nos então a evolução registada
desde o ano 2000.
94
Grupo que inclui as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia.
84
Tabela 9: Termos de comércio líquidos do índice de comércio (2000=100)95.
Termos de comércio
líquidos do índice de
comércio (2000=100)
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
Diferença
com G7
Diferença com
EUA
100
138,3
159,8
182
100
97,2
97,1
95,9
100,0
100,1
96,7
95,2
0,0
38,2
63,1
86,8
0,0
41,1
62,7
86,1
Fonte: World Bank (2016a).
É curioso notar que a evolução neste aspecto tem sido favorável à Rússia, ao passo que
a posição dos países do G7 e dos EUA se tem degradado. Talvez isto se explique por
duas razões diferentes. Relativamente à ligeira descida do G7 e dos EUA, a causalidade
deve-se, possivelmente, à decrescente importância que os produtos de alta tecnologia, e
portanto de alto valor acrescentado, possuem nas suas exportações. No caso russo a
explicação encontra-se principalmente no grande aumento de preços dos combustíveis
nos mercados mundiais, em particular desde 2003/2004, isto apesar da sua volatilidade,
como se pode ver na Figura 3.
Figura 3: Preço médio do petróleo (USD).
Preço médio do petróleo (USD)
120
100
80
60
Preço médio do petróleo
(USD)
40
20
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
0
Fonte: Investing (2016).
A fim de haver desenvolvimento da capacidade produtiva, é necessário haver
investimento direccionado para a Formação Bruta de Capital. Este aspecto reflecte o
que cada país investe anualmente no desenvolvimento das suas forças produtivas. É
95
Este índice mede a relação entre o valor das importações e o valor das exportações de um dado país num determinado período.
Um valor acima de 100 significa que houve uma variação positiva na balança comercial, enquanto um valor abaixo de 100
representa uma evolução negativa da balança comercial.
85
portanto um elemento fundamental para qualquer país e, em particular, para aqueles que
possuem relações de produção atrasadas relativamente aos países considerados mais
avançados. Atentemos à Tabela 10.
Tabela 10: Formação Bruta de Capital.
Formação Bruta de
Capital (percentagem do
investimento no PIB)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
Média G7
Diferença
com G7
Diferença com
EUA
15
19
20
23
21
23
24
23
18
20
21,9
22,4
21,1
20,0
20,3
-6,9
-3,4
-1,1
3,0
0,7
-8,0
-5,0
-3,0
5,0
1,0
Fonte: World Bank (2016a).
Aqui observa-se um crescente peso do investimento no PIB russo, o que demonstra uma
preocupação no desenvolvimento das forças produtivas do país, passando de 15% em
1998, para 21% em 2015. Por outro lado, no G7 e nos EUA, o peso do investimento tem
vindo a diminuir ao longo do tempo, passando no primeiro caso de 21,9% em 1998 para
20,3% em 2015 e no segundo caso de 23% em 1998 para 20% em 2015. O que significa
que a Rússia investe mais do que o G7 no desenvolvimento da sua capacidade
produtiva, o que não acontecia em 1998. O seu investimento possui três origens que se
destacam e que Sapir (2013) apontou: auto-financiamento, os créditos entre empresas e
os subsídios públicos, federais ou regionais. Nesta área também toma especial
importância o forte controlo exercido pelo Estado sobre a banca russa, directa ou
indirectamente, como resultado das graves insuficiências do sistema bancário russo,
apesar de ainda assim continuarem a existir anomalias (Nazet 2007, 62; Sapir 2013).
O domínio científico é uma derivação da relação imperialismo/dependência
cultural, em que também existe uma divisão internacional do trabalho entre o centro e a
periferia (Galtung 1971. 93). Contudo, dada a relação directa e até sobreposta com os
domínios económicos, decidiu-se incluí-lo aqui, ainda que Galtung lhe dedicasse um
ponto específico na sua obra (Idem, 91-93). À semelhança do que acontece nas restantes
manifestações da divisão internacional do trabalho, o centro providencia equipas de
prospecção de matérias-primas, que se deslocam para a periferia de forma a recolher
informação e que, posteriormente, irão processar nas universidades do centro e cujo uso
será em seu benefício. Isto está, de certa forma, patente na estrutura económica russa,
86
onde os recursos minerais desempenham um papel fundamental e onde as companhias
de exploração transnacionais operam, em conjunto com as companhias nacionais, na
prospecção e extracção de recursos, mesmo que estas últimas sejam as dominantes. A
Rússia não desenvolve assim uma relação estrutural típica de centro-periferia,
assumindo uma maior autonomia, como veremos de seguida.
Para que o desenvolvimento tecnológico aconteça, é necessário existir
investimento direccionado para a investigação e desenvolvimento (I&D). E este aspecto
é fundamental para qualquer país que procure potenciar a sua capacidade produtiva e a
sua posição relativa no sistema-mundo. Será portanto de esperar que países mais
desenvolvidos e avançados dediquem uma maior percentagem do seu investimento à
I&D, enquanto os países menos desenvolvidos investam menos. Os dados
correspondentes à nossa análise encontram-se compilados na Tabela 11.
Tabela 11: Percentagem de I&D no PIB.
Percentagem de I&D no
PIB
1998
2000
2005
2010
2013
Rússia
EUA
Média G7
0,95
1,05
1,07
1,13
1,13
2,50
2,62
2,51
2,74
2,81
2,02
2,10
2,14
2,23
2,27
Diferença
com G7
-1,07
-1,05
-1,07
-1,10
-1,14
Diferença com
EUA
-1,55
-1,57
-1,44
-1,61
-1,68
Fonte: World Bank (2016a).
A hipótese inicial confirma-se: o G7 investia em média cerca de 2,02% do seu PIB em
I&D em 1998, sendo que em 2013 se verificava um aumento e alocava já 2,27% da sua
produção de riqueza anual. Já os EUA em 1998 investiam 2,5% e em 2013 2,81%.
Também na Rússia se nota uma evolução positiva nestes parâmetros, passando de
0,95% em 1998, para 1,13% em 2013. Não obstante, a diferença de investimento nesta
área entre a Rússia e o G7 tem aumentado, e se em 1998 era de -1,55%, em 2013 era já
de -1,68%.
É amplamente conhecida a decadência da investigação na Rússia, após o colapso
da URSS (EBRD 2012, 72), tal como os esforços até aqui gerados para inverter a
situação não têm correspondido totalmente às espectativas ou, no mínimo, são ainda
difusos. Isto porque a Rússia continua ainda a contar com poucos centros de
investigação de alta qualidade (EBRD 2012, 77). Ainda assim procura centrar os seus
esforços em alguns sectores que considera serem centrais. Através de uma política
87
directiva, o Estado russo designou sete áreas estratégicas de investigação,
nomeadamente: tecnologias de informação; nano-sistemas; eficiência energética;
tecnologia médica; espacial; e nuclear. Sendo que estes campos de investigação
absorvem cerca de 35% da totalidade dos fundos públicos alocados à I&D (EBRD
2012, 75). E já em 2009 o então Presidente Dmitry Medvedev havia identificado cinco
prioridades de desenvolvimento tecnológico: a eficiência na produção, transporte e uso
de energia, preservação e modernização de tecnologias nucleares, modernização de
tecnologias de informação, infraestruturas terrestres e espaciais de comunicação
próprias e a necessidade de avanços na produção de equipamento médico, métodos de
diagnóstico e medicamentos (Medvedev in Russia Today 2009). A investigação nestes
âmbitos é essencialmente desenvolvida em grandes centros de investigação como, por
exemplo, em Kazan, Novosibirsk, entre outros, sendo o mais recente símbolo desse
investimento o centro tecnológico de Skolkovo, perto de Moscovo (Zavyalova 2016;
The Guardian 2015).
Desta forma, verificamos que a relação que a Rússia possui com o sistemamundo não se desenvolve no típico modo entre centro-periferia, mas sim de um modo
em que o país periférico assume maior responsabilidade no processo, evidenciando
assim uma independência mais evidente nesta relação e onde o Estado desempenha um
papel importante, como aliás seria de esperar num país semi-periférico (Wallerstein
2006, 56-57). Não obstante, a Rússia surge neste âmbito não como uma definidora de
tendências, mas sim como um país que segue as tendências definidas pelo centro. Onde,
exceptuando os sectores da defesa e aero-espacial (Gackstatter et al 2014, 302), a Rússia
se encontra claramente atrás do centro em termos tecnológicos, isto mesmo apesar do
crescimento do investimento em I&D ao longo dos últimos anos.
Considerando os dados relativos à formação bruta de capital russa (ligeiramente
superiores à média do G7), os dados do investimento em I&D (cerca de metade da
média do G7) e o facto de a Rússia se encontrar em 43º lugar no Índice de Inovação
Global (atrás de todos os países do G7) (Cornell University et al 2016, 20), podemos
especular que a formação de capital russo se concentra fundamentalmente em produtos
de baixo ou intermédio incremento tecnológico, o que é confirmado pelos dados da
OCDE (EBRD 2012, 21) e também vai ao encontro do que seria de esperar num país
semi-PeriПérico. Wallerstein (2006, 29) aПirma que “aquilo que é um processo de país do
centro hoje, torna-se um processo periПérico amanhу”, passando por um declínio
88
“primeiro para países semi-periПéricos, e depois para países periПéricos”96. Sendo assim
a Rússia é receptora de processos produtivos intermédios, que deixaram de ser
lucrativos nos países do centro, porém ainda o são em países menos desenvolvidos.
Mesmo que esta transferência de processos produtivos não se dê de forma directa (por
exemplo através de IDE, que como veremos na Tabela 16 e Figura 4 assume níveis
muito baixos) mas apenas pelo desenvolvimento da capacidade produtiva interna, em
sectores que, não sendo de alta tecnologia, mantém a sua competitividade nos mercados
globais, quando considerados os custos de produção na Rússia. Neste conjunto incluemse indústrias de bens semi-processados e de bens de capital, como químicos, matériasprimas processadas, maquinaria e equipamentos, têxteis, entre outros (EBRD 2012, 21).
Não sendo assim um país que desenvolva de forma extensiva a sua área tecnológica e
crie os seus próprios produtos de última geração, como no caso dos países mais
desenvolvidos.
Para que esta tendência se inverta é necessária uma política de investimento que
seja orientada fundamentalmente pelo Estado, usando para isso as suas instituições de
ensino e de investigação, sendo esta a estratégia normalmente usada pelas semiperiferias, onde o Estado intervém de Пorma a manter ou elevar o seu estatuto “como
produtor, como acumulador de capital e como Пorхa militar”97 (Wallerstein 2006, 5657). Esta ideia é também reforçada por Block e Keller (2008), quando afirmam que a
crença de que toda a inovação provém do sector privado é errada e que o Estado tem um
papel importante a desempenhar nesta área. Este investimento influencia não só as áreas
tecnológicas e infraestruturais (como estradas, caminhos de ferro, portos, aeroportos,
etc.), mas também educação, bem-estar social, saúde, entre outras despesas correntes,
onde o investimento do Estado é de capital importância para o desenvolvimento de
áreas onde o capital privado não investe ou fá-lo de forma insuficiente. E se
compararmos o peso dos gastos públicos no PIB, observamos que a Rússia se encontra
ligeiramente atrás da média do G7 (Tabela 12).
96
“[…] what is a core-like process today will become a peripheral process tomorrow. […] first to semiperipheral countries, and
then to peripheral ones.” – tradução própria.
97
“[…] to raise the status of their state as a producer, as an accumulator of capital, and as a military force.” – tradução própria.
89
Tabela 12: Peso dos gastos públicos no PIB98.
Peso dos gastos públicos
no PIB (%)
1998
2000
2005
2010
2013
Rússia
EUA
Média G7
25,0
21,2
19,9
21,9
19,6
18,7
17,9
20,6
16,5
13,8
34,4
33,4
34,9
23,6
22,1
Diferença
com G7
-9,4
-12,2
-15,0
-1,7
-2,5
Diferença com
EUA
6,3
3,3
-0,7
5,4
5,8
Fonte: World Bank (2016a).
Regista-se até uma tendência decrescente do investimento estatal na economia nas
várias partes observadas. Passando a Rússia de 25% em 1998, para 19,6% em 2013. Na
média do G7 passou de 34% em 1998, para 22,1% em 2013. Ainda assim a diferença
entre a Rússia, o G7 e os EUA tem vindo a diminuir ao longo do tempo. Não obstante,
no que concerne ao investimento do Estado na economia, tem-se registado uma relativa
estabilização desde 2010, oscilando entre os 13% e 17% (Tabela 13). Já no que
concerne a investimento público em I&D as instituições públicas russas, como institutos
de investigação, são responsáveis por cerca de 75% da sua totalidade (EBRD 2012, 69).
Tabela 13: Investimento público na economia nacional (percentagem do
Orçamento Consolidado).
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
8,93
11,65
13,97
20,46
14,49
13,39
13,97
13,43
16,97
14,012
99
Fonte: Ministry of Finance of the Russian Federation (2016) .
SeРundo Sapir (2013), “a partir de 2003/2004, a necessidade de uma política de
desenvolvimento garantindo um forte retorno da presença do Estado e uma melhor
distribuição da riqueza tornou-se cada vez mais evidente, não só por razões económicas
e sociais, mas também por raгões políticas”100. O que significou que o Estado começou
a utilizar as grandes empresas públicas em sua posse, como a Gazprom, Rosneft,
Transneft e Rosoboronexport, para servirem de investidoras e promoverem o
desenvolvimento industrial no país (Sapir 2013). Os fundos de estabilização, utilizados
pelo Estado russo, como forma de promoção de grandes projectos em conjunto com o
98
Para a média do G7 relativa aos anos de 1998 e 2000 não dispomos de dados referentes ao Japão.
99
Cálculos próprios.
100
“À partir de 2003/2004, la nécessité d’une politique de développement assurant un fort retour de la présence de l’État et une
meilleure distribution des richesses devenait de plus en plus évidente, non seulement pour des raisons économiques et sociales mais
aussi pour des raisons politiques.” – tradução própria.
90
sector privado, são outra das formas de incentivo à diversificação económica e
desenvolvimento de tecnologias inovadoras (Nazet 2007, 58).
Para que o investimento público russo se concretize é, porém, necessário ter em
atenção a importância que o petróleo e o gás natural possuem nas receitas do Estado
russo, em particular dado estes recursos serem tão importantes para a economia russa e
ao mesmo tempo com preços tão voláteis nos mercados globais. A Tabela 14 oferecenos uma perspectiva sobre este assunto:
Tabela 14: Peso das receitas do petróleo e gás natural no Orçamento Consolidado
da Federação Russa (%).
2006
27,70
2007
21,67
2008
27,15
2009
21,94
2010
23,89
2011
27,05
2012
27,54
2013
26,73
2014
27,77
2015
21,77
Fonte: Ministry of Finance of the Russian Federation (2016)101.
E aqui é bastante óbvia a importância que os combustíveis possuem no Orçamento
Consolidado da Federação Russa, tal como a condicionante existente sobre a capacidade
do Estado investir na sua economia usando os seus próprios recursos. Além disso,
olhando para a tabela não se verifica sequer uma tendência que nos permita concluir que
existe uma diminuição relativamente a este parâmetro, oscilando os valores entre os
21,94% e os 27,77% ao longo do período observado. O que significa que durante este
período o Estado não tem conseguido estimular o desenvolvimento de outras fontes de
receita, que lhe permitam tornar-se mais independente das receitas referentes ao
petróleo e gás natural.
Em 2005 Пoram deПinidas as quatro “Prioridades Nacionais”, onde o Estado teria
um papel interventivo: saúde, educação, habitação e integração agro-industrial (Sapir
2013). Tal como também uma estratégia de intervenção industrial, que dividia o sector
em três áreas de prioridade (Sapir 2013):
1. Um sector de máxima prioridade, onde o Estado deve ser o único a controlar,
sendo esse sector o da energia e matérias-primas;
2. O sector de indústrias estratégicas diversas, onde o Estado não controla
directamente, mas define orientações estratégicas, permitindo também
intervenção de capitais externos;
101
Cálculos próprios.
91
3. Outras indústrias variadas, consideradas não estratégicas e onde o Estado não
intervém, limitando-se a fazer cumprir a legislação aplicável.
Uma das características assumidas pelas empresas detidas pelo Estado é que estas
devem desenvolver as suas actividades como empresas privadas (Nazet 2007, 57).
Os aspectos abordados até aqui saem reforçados quando se atenta no contributo
de valor acrescentado por sector da economia.
Tabela 15: Valor acrescentado por sector na economia102.
Percentagem do sector
primário no PIB
1998
2000
2005
2010
2014
Percentagem do sector
secundário no PIB
1998
2000
2005
2010
2014
Percentagem do sector
terciário no PIB
1998
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
5,6
6,4
5,0
3,9
4,2
Rússia
1,2
1,2
1,2
1,2
1,3
EUA
1,8
1,7
1,3
1,3
1,3
Média G7
37,4
37,9
38,1
34,7
32,1
Rússia
23,5
23,2
22,0
20,3
20,7
EUA
27,7
27,1
25,0
24,4
23,7
Média G7
57,0
55,6
57,0
61,4
63,7
75,3
75,6
76,9
78,5
78,0
70,5
71,2
73,6
74,4
75,1
Diferença
com G7
3,8
4,8
3,7
2,6
2,9
Diferença
com G7
9,7
10,8
13,1
10,3
8,4
Diferença
com G7
-13,5
-15,6
-16,6
-13,0
-11,4
Diferença com
EUA
4,4
5,2
3,8
2,7
2,9
Diferença com
EUA
13,9
14,7
16,1
14,4
11,4
Diferença com
EUA
-18,3
-20,0
-19,9
-17,1
-14,3
Fonte: World Bank (2016a).
De facto comprova-se que não só a Rússia mantém parcelas maiores de produção no
sector primário, quando comparada com os países mais desenvolvidos, como também o
faz no sector secundário. Isto apesar de haver uma tendência decrescente em ambos. Em
contrapartida a importância do sector terciário cresce desde 2000. Contudo, no caso
russo e tendo em consideração o que já foi analisado até aqui, tudo parece apontar para
que o crescimento do sector terciпrio seja uma consequência do Пenяmeno “Dutch
disease” abordado anteriormente, dada a importância que as receitas das exportações de
102
Os valores referentes à média do G7 não contam com os dados relativos ao Canadá, exceptuando no ano de 2010.
92
matérias-primas possuem em relação ao PIB, levando a um fluxo elevado de capitais do
qual resulta uma elevada procura nos sectores não-transaccionáveis, onde se incluem os
serviços.
Na maioria dos países desenvolvidos a produção industrial encontra-se
deslocalizada, sendo concentrada em países semi-Periféricos ou Periféricos, pois como
foi referido anteriormente, esses processos deixaram de ser lucrativos e são então
movidos para países menos desenvolvidos, onde os custos de produção são mais baixos.
Estes processos ocorrem através da deslocação de capitais, quer através de IDE, através
de dívida ou de ajuda. As empresas monopolistas transnacionais (ou multinacionais) são
disso o melhor exemplo, actuando em todo o mundo, mantendo, no entanto, os seus
centros de capital, de decisão, tecnológicos, etc., nos países desenvolvidos, como já
vimos anteriormente. Os países do centro continuam assim a deter a maioria dos
capitais, pois é neles que a centralização e concentração desses mesmos capitais é
superior, tal como o poder decisório sobre estes103. Um reflexo disto é a importância da
sua banca, seguros e a área financeira no geral na economia mundial e daí o peso do
sector terciário ser bastante importante nestes países, quando comparado com outros,
onde os bancos representam muitas vezes as maiores companhias existentes104. Veja-se
então os aspectos relacionados com transferência de capitais.
Tabela 16: Investimento Directo Estrangeiro (percentagem do PIB).
IDE (percentagem do PIB)
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
2015
1,02
1,05
2,03
2,83
0,36
1,97
3,12
1,06
1,73
2,28
1,96
5,02
2,98
1,55
1,58
Diferença
com G7
-0,94
-3,97
-0,95
1,28
-1,21
Diferença com
EUA
-0,95
-2,08
0,97
1,10
-1,92
Fonte: World Bank (2016a)105.
Aqui constata-se que o peso do IDE na Rússia é mais baixo quando comparado com os
países do G7 e dos EUA individualmente. Significando isto que a Rússia depende
menos do IDE do que seria expectável num país semi-periférico. Isto apesar de ter
103
Isto apesar de, cada vez mais, se encontrarem empresas chinesas nos lugares cimeiros dos rankings globais das grandes
companhias (Schaefer 2016).
104
Para compreendermos melhor esta particularidade, atentemos às listas elaboradas pela revista Forbes sobre as maiores
companhias do mundo no ano (Chen 2015a) e aos maiores bancos do mundo (Chen 2015b) no ano de 2015.
105
Cálculos próprios.
93
registado um crescimento acentuado entre 1998 e 2008, e em 2013 era o quarto país
com maior entrada de IDE no mundo (Makarov e Morozkina 2015, 48), sendo que,
desde então, a importância do IDE tem diminuído, registando em 2015 apenas 0,36% da
totalidade do PIB.
Figura 4: Investimento Directo Estrangeiro na Rússia (percentagem do PIB).
IDE (percentagem do PIB)
5
4,5
4
3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
IDE (percentagem do PIB)
Fonte: World Bank (2016a).
Apesar do potencial russo para a produção de recursos naturais poder gerar a
ideia de que o IDE se foca essencialmente nesse sector, essa crença não se revela
verdadeira. O sector que absorve a maioria do investimento é a área financeira (37% em
2010 e 16% em 2013 (Makarov e Morozkina 2015, 51)) e do retalho (16% em 2010 e
23% em 2013 (Makarov e Morozkina 2015, 51)), sendo que a exploração de metais
absorvia cerca de 8% em 2010 e 16% em 2013 e a de combustíveis 11% em 2013
(Makarov e Morozkina 2015, 51). Já o sector das manufacturas surge em terceiro lugar
com 18,3% do total em 2014 (Santander Trade 2016). O sector das altas tecnologias
representa apenas entre 4 a 5% da totalidade do IDE na Rússia, o que é considerado um
valor baixo (Makarov e Morozkina 2015, 51), e que demonstra que grande parte do
sector se desenvolve com investimento interno, dentro dos centros de investigação
previamente mencionados. A explicação para a baixa presença de capitais estrangeiros
no sector dos recursos naturais deve-se não só às limitações legais impostas pelo próprio
Estado russo à presença de empresas estrangeiras, naquilo que consideram ser um sector
estratégico (Makarov e Morozkina 2015, 52), como já vimos acima, mas também aos
94
periРos evidenciados, nomeadamente de “transparência, da estabilidade política e da
interacхуo com as autoridades públicas” e que servem de aРravantes Пace рs
oportunidades oferecidas (Saveliev 2012; US Department of State 2015). A crise
envolvendo a Rússia e a Ucrânia só veio evidenciar mais ainda estes aspectos.
Outro factor relevante do IDE na Rússia é a sua origem. Em 2014 o Chipre106
era o principal investidor, com uma quota de 33,8%, surgindo em segundo lugar a
Holanda com 14,7% (Santander Trade 2016), ou seja, juntos perfazem quase metade do
IDE alocado na Rússia. Olhando para os baixos valores de IDE no sector das indústrias
e em particular de alta tecnologia, conclui-se que o seu impacto possui ainda uma baixa
importância na globalidade da economia russa, nomeadamente na transferência de
novas tecnologias, know-how, formação da força de trabalho, integração na economia
global, aumento da concorrência, desenvolvimento e reestruturação empresarial, efeitos
enumerados por Moura (2009, 5). Isto apesar dos esforços por parte do governo em
melhorar o seu perfil de risco junto dos investidores (Saveliev 2012).
Tomando os princípios acima reПeridos do “desenvolvimento associado
dependente”, destacam-se aqui algumas semelhanças entre o caso russo e os casos da
América Latina analisados por Cardoso e Faletto (1977). Existe uma vontade oficial,
por parte do Estado russo, em atrair capitais estrangeiros, particularmente no sector
tecnológico, tendo em vista suprir as necessidades do mercado interno, numa lógica de
“substituiхуo de importaхões” (Sputnik Neаs 2016b). Quer a contribuiхуo na
substituição de importações, quer a particularidade da aposta recair sobre o sector
tecnológico eram aspectos destacados pelos autores Cardoso e Faletto na sua obra
(1977, 56-58). E, à semelhança da realidade observada por Santos (2011 [1978], 378)
também em relação à América Latina, na Rússia o aparelho de Estado procura atrair
estes investidores eбternos através de “Рarantias de lonРo termo, priviléРios e outras
preПerências” (Sputnik Neаs 2016b). Porém, neste caso, apesar da vontade oПicial por
parte do Estado russo em atrair capitais estrangeiros o resultado, até aqui, não tem sido
o esperado, como se observa nos indicadores acima analisados. Convém também
afirmar que, mesmo considerando esta vontade oficial, as restrições impostas à operação
de capitais externos nos sectores determinados como estratégicos pelo Estado e onde
106
É no entanto relevante considerar que o Chipre é um local onde elevadas quantidades de capitais russos são depositados, pelo que
parte deste IDE proveniente do Chipre pode ser apenas um retorno de capitais originalmente russos (Clover e Weaver 2017).
95
este participa quase exclusivamente, limita a acção dos capitais privados em investir na
Rússia.
Para além disto, importa também destacar os perigos associados a este tipo de
políticas. Ou seja, a diferenciação em termos de rendimento existente entre os dois tipos
de proletariado eбistentes nestes casos, resultado dos “desequilíbrios tecnolяРicos” que
provocam altas concentrações de capital e tecnologia nas empresas de capital
estrangeiro (Santos 2011 [1978], 378). Desta forma, originar-se-iam dois tipos de
proletariado: o proletariado “moderno”, associado ao capital eбterno, e o proletariado
“tradicional”, liРado ao capital interno (Cardoso e Faletto 1977, 57), alРo que
provocaria elevadas procuras dentro dos sectores não-transaccionáveis por parte do
primeiro, levando a um encarecimento do custo de vida e consequente descida do nível
de vida do segundo. Além do mais, este tipo de desenvolvimento, baseado em capitais
transnacionais, está associado a regimes tecnocráticos e autoritários, que estudaremos
mais à frente quando fizermos a análise à dependência política existente na Rússia.
No que concerne à exportação de capitais por países do centro, outro dos
métodos normalmente utilizados é através da dívida, sendo também este um dos mais
antigos, já referido também por Vladimir Lenin (1975 [1916], 121-122), como vimos
atrás.
Tabela 17: Dívida pública externa (percentagem do PIB).
Dívida pública externa (%
do PIB)
1999
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
99,0
59,9
14,2
11,0
17,9
60,1
55,9
63,3
95,2
104,1
78,6
76,4
83,1
103,7
116,3
Fonte: Trading Economics (2016b).
96
Diferença
com G7
20,4
-16,5
-68,9
-92,7
-98,4
Diferença com
EUA
38,9
4,0
-49,1
-84,2
-86,2
Figura 5: Dívida pública externa russa (percentagem do PIB).
Dívida Pública Externa (% do PIB)
120
100
80
60
Dívida Pública Externa (%
do PIB)
40
20
2014
2013
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
0
Fonte: Trading Economics (2016c).
Também neste parâmetro a Rússia apresenta valores inferiores expectáveis numa
economia dependente, tal como uma acentuada tendência decrescente entre 1999 e
2007, e apenas a partir de 2008 se iniciam pequenas, mas graduais subidas do peso da
dívida pública externa. Porém, o G7 tem registado uma acentuada subida na dívida
pública desde 1999, sendo que a média do G7 se situa nos 116,3% do PIB, bem acima
dos 17,9% do caso russo. Do mesmo modo que acontece com a regulação de preços no
mercado mundial operada pelos países do centro, também no caso da dívida esta
regulação é encontrada. Daí a importância das agências de rating, que estabelecem
classificações associadas à dívida de cada país, derivando estas classificações do risco
de incumprimento por parte dos devedores. Contudo, estas agências de rating, na sua
maioria sediadas em países do centro107, servem como ferramentas de controlo
financeiro sobre a periferia, impondo assim directivas de política económica aos países
a que estão associadas (Bagchi 2006, 7).
Se averiguarmos as reservas de divisas das partes em questão, conseguiremos
constatar ainda mais acerca da capacidade de acumular divisas por parte dos Estados.
Isto porque as reservas permitem a um país “superar Пlutuaхões do comércio
internacional ou interrupхões de capital estranРeiro”, assim como permitem “abrir
107
As três maiores aРências de ratinР sуo a Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch Group, sendo que as duas primeiras se encontram
sediadas nos EUA e a última no Reino Unido e EUA (Standard & Poor’s (2016); Moody’s (2016); Fitch RatinРs (2016)).
97
espaхo para o Estado poder manobrar no campo da política econяmica eбterna”108
(Mahler 1980, 39).
Tabela 18: Percentagem das reservas de divisas face ao PIB.
Percentagem das
reservas face ao PIB
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
Média G7
4,4
10,6
23,9
31,4
24,1
1,6
1,2
1,4
3,3
0,6
4,0
4,2
5,0
7,2
6,5
Diferença
com G7
0,5
6,5
18,8
24,3
17,6
Diferença com
EUA
2,8
9,4
22,4
28,2
23,5
Fonte: World Bank (2016a)109.
Verificamos aqui que a Rússia possui largas reservas de divisas estrangeiras e de ouro
em sua posse, sendo que a evolução em relação a 1998 é bastante considerável. Por seu
turno, os países do G7 registam apenas uma ligeira subida, ao passo que os EUA
descem. Todavia, a comparação da percentagem de reservas acumuladas entre estes e a
Rússia é bastante favorável para a última, significando isto que consegue passar por
crises de uma forma menos dolorosa para as suas finanças públicas e para a sua
economia. Este aspecto é de grande relevância dada a volatilidade dos preços do
petróleo e as frequentes crises por eles provocadas na economia russa. Ainda assim,
comparativamente com outros países que dependem largamente da sua produção de
petróleo, as reservas russas e os seus fundos de estabilização são percentualmente
menores (EBRD 2012, 16). Não obstante, a acumulação de reservas possui também um
aspecto negativo, pois leva a que haja maior quantidade de moeda interna a circular,
levando a uma situação de endividamento público interno, dada a necessidade de
reduzir a inflação provocada pelos fluxos de capitais externos (Amaral 2012, 119).
Em termos de exportações de capitais, falta-nos ainda considerar os fluxos de
ajuda externa recebidos.
108
“[…] limited reserves are hypothesized to limit an LDC’s ‘ability to ride out international trade fluctuations or interruptions of
foreign capital’ and to reduce ‘the room for manoeuvre open to the state in the eбternal economic policy field’.” – tradução própria.
109
Cálculos próprios.
98
Tabela 19: Ajuda externa (milhares de milhões de USD a preços correntes de
2014)110.
Ajuda (milhares de
milhões de USD)
1998
2000
2004
2010
2013
Rússia
EUA
Média G7
1,18
1,55
1,33
-0,52
-0,63
-12,10
-13,21
-24,04
-31,85
-31,79
-7,46
-7,65
-9,67
-13,07
-13,69
Diferença com
G7
8,54
9,22
10,98
12,55
13,06
Diferença
com EUA
13,18
14,78
25,35
31,33
31,16
Fonte: World Bank (2016b); OECD (2016a).
Também nesta vertente a Rússia regista índices menores do que o esperado para um país
dependente e periférico, talvez evidenciando aqui a sua passagem de economia
totalmente periférica para um novo estágio de desenvolvimento. Ainda assim convém
referir que os fluxos de ajuda recebidos do centro pela Rússia terminaram apenas a
partir de 2004 (OECD 2016b; Rakhmangulov 2010, 51) e que os registos encontrados
de passagem a Estado doador apenas se iniciam em 2010. No que toca ao G7
verificamos que tem crescido a ajuda providenciada por estes Estados ao exterior ao
longo do tempo.
Considerando os aspectos relativos à dependência da economia russa aqui
tratados, verifica-se que existe de facto uma dependência ao centro do sistema-mundo.
Em todos os principais indicadores económicos apontados pelos autores dependentistas,
a Rússia registou tendências típicas de regiões dependentes, exceptuando em alguns
casos. No que toca aos níveis de processamento evidenciados, a Rússia continua a
registar uma menor complexidade nas suas exportações quando comparada com os
países mais desenvolvidos. Mesmo assim, observa-se que desde o ano 2000 existe uma
drástica redução da contribuição dos recursos naturais para o PIB (Tabela 5), ainda que
isto não pareça reflectir-se num aumento significativo do peso do sector das altas
tecnologias na economia, mas sim de sectores que incorporam graus tecnológicos
intermédios na cadeia de valor do sistema-mundo. Esta afirmação sai reforçada
considerando que, apesar do forte aumento na formação bruta de capital desde 1998, o
aumento verificado em I&D foi bastante baixo, tendo até aumentado a diferença face ao
G7 neste aspecto, demonstrando assim a tímida aposta existente neste sector. Isto leva110
Os valores relativos à Rússia de 1998, 2000 e 2004 estão a preços correntes de 2016.
99
nos a concluir que, em relação aos níveis de processamento, dependência da exportação
de matérias-primas e fraco desenvolvimento tecnológico, a Rússia apresenta
características tipicamente encontradas em países dependentes.
No entanto, esta situação não se verifica em todos os indicadores. Por exemplo,
relativamente às importações e quanto ao seu tipo. Desde o ano de 1998 a tendência do
impacto das importações no PIB tem-se encontrado em decréscimo, o que evidencia
uma maior capacidade em suprir as suas necessidades internas com a sua própria
produção. Ao mesmo tempo, a composição das suas importações evidencia a crescente
importância que a aquisição de bens de capital (utilizados para potenciar a sua produção
interna) possui, significando que os bens de consumo assumem uma menor relevância
(exceptuando os bens de consumo duráveis, como observámos). Também o IDE não
assume uma significativa relevância na economia russa, manifestando até valores
consideravelmente baixos ao que seria expectável numa economia dependente. Para
compensar esta falta de IDE na Rússia é o Estado que assume um papel importante
enquanto dinamizador da economia, utilizando para isso as suas grandes empresas
públicas, sobre as quais possui um elevado nível de controlo. Este é um factor comum
entre as semi-periferias (Wallerstein 2006, 56-57), todavia contrário aos regimes B-A,
como veremos adiante quando analisarmos se a Rússia se encaixa ou não dentro desta
classificação. Já os gastos públicos em despesas correntes ainda apresentam níveis mais
baixos do que aqueles encontrados no G7. Nos termos de troca, a tendência ao longo
dos anos tem sido favorável à Rússia, contrariamente ao que seria de esperar num país
dependente. Tal como o próprio peso da dívida pública externa é marginal, ainda que
registando um ligeiro crescimento após a crise de 2008 (Trading Economics 2016c). De
igual modo, tem-se verificado um aumento das reservas de divisas ao longo do tempo,
porém também aqui as consequências da crise de 2008 deixaram a sua marca, levando a
uma quebra nestas (World Bank 2016a). Relativamente às ajudas económicas externas,
a Rússia passou de país receptor, para um país dador, todavia evidenciando fluxos
bastante mais baixos do que aqueles encontrados na média do G7, o que assinala um
marco importante na inversão da sua saúde económica no período analisado. Regista-se
também um aumento do peso do sector terciário na economia, seguindo a tendência dos
países mais desenvolvidos, mas que pode porém estar relacionado com o fenómeno de
“dutch disease”.
100
Existe, pois, um esforço e uma evolução a ele associada, no sentido de melhorar
a posição da Rússia no sistema-mundo. Para isso o período de 1998-2000 foi
fundamental, revelando-se como o ponto de inflexão da sua situação, travando a forte
tendência de periferização dos anos de 1990 e potenciando a consolidação do seu lugar
enquanto semi-periferia. Ainda que o caminho percorrido desde então tenha sido
bastante irregular e contendo em si bastantes fragilidades e contradições, os dados
quantitativos aqui analisados dos factores de dependência permitem-nos concluir que se
tem registado uma evolução positiva. E isto mantém-se mesmo considerando a forte
desaceleração observada após a crise financeira global ocorrida em 2008 e que teve
fortes repercussões na Rússia através da queda dos preços do petróleo nos mercados
internacionais, levando a uma ulterior situação de estagnação económica neste país. Não
obstante, a nossa análise à presente circunstância fica condicionada se se considerar a
crise ucraniana após 2014, que veio agravar a situação económica russa e que revelou
de uma forma mais evidente as fragilidades económicas deste país. Contudo, este caso
distorce também o nosso estudo quanto à evolução económica russa no curto prazo. Não
só porque pode encerrar em si os elementos que capacitem as condições para um
agravamento da crise existente, como também pode conter aqueles que optimizem as
conjunturas e, acima de tudo, a própria estrutura russa.
4.1.2 – As consequências da dependência económica na Rússia e outros
dados complementares
A crise de 1998 forçou os dirigentes russos ao afastamento das políticas
económicas liberais até aí praticadas (Sapir 2002, 2). Posteriormente, a Rússia inicia
uma fase de recuperação, cujos factores, apontados por Sapir (2002, 4-6; 2001, 4-7), são
os seguintes:
1. Uma política de preços baixos e controlados para os transportes e energia;
2. A desvalorização do rublo, o que levou a ganhos de competitividade das
empresas nos mercados mundiais;
3. Ganhos de produtividade no trabalho, em que a capacidade industrial instalada
absorveu mais força laboral, alcançando assim maiores economias de escala;
101
4. Regulações forçadas nos fluxos de capital, impedindo assim fugas de capital e
especulação económica;
5. As empresas começaram a investir mais no aumento da produção;
6. Melhoria da disciplina de pagamentos nos sectores públicos e privados;
7. Redução do comércio interno de géneros, através de maior liquidez e confiança
financeira.
Ao mesmo tempo observou-se uma subida nos preços do gás e do petróleo nos
mercados mundiais, logo a partir do final de 1999 (Trading Economics 2016a). Acerca
deste período Sapir (2013) aПirma que o “Estado voltou […] a chamar a si as
responsabilidades, seja de maneira directa ou indirecta”111, quer isto dizer, voltou a
assumir uma posição forte na economia do país, intervindo de forma declarada, ao
contrário do que havia acontecido anteriormente. Nazet (2007, 65) usa a expressão
“quase-mercado” para deПinir a situaхуo que a Rússia passa a viver durante este período.
Expressão esta, cuja definição se assemelha com o conceito de “semi-retirada
mercantilista”, utiliгado por Wallerstein (1974, 413), que consistia no processo utiliгado
quer pela União Soviética, quer pela China após a revolução de 1949, países onde se
procedeu a nacionalizações maciças, mas que mantinham relações comerciais com o
exterior, mesmo que limitadas.
No caso russo, após o ano 2000, a escala de nacionalizações, apesar de não ter
sido tão profunda como nos casos anteriores, desenvolveu-se ainda assim em sectores
fundamentais e de alto rendimento. Esta ideia acaba por ir ao encontro de outro
conceito, utiliгado por Sapir (2013), sobre “arcaiгaхуo”, em que se evidencia “a
presenхa do passado no presente”112, onde “elementos arcaicos perduram dentro de um
processo de moderniгaхуo”113. Existe o recurso a processos e estruturas antigas para
potenciar os processos de modernização. Contudo, Sapir (2013) destaca o paradoxo do
arcaísmo/ modernismo, em que “o novo sя se pode desenvolver baseando-se na
permanência de elementos mais antiРos”114, pois é impossível modificar toda a estrutura
económica e social de uma só vez. Sendo que este procedimento serve também para
111
“L’État s’est donc retrouvé sommé de prendre ses responsabilités, soit de manière directe, soit de manière indirecte.” – tradução
própria.
112
“[…] présence du passé au sein même du présent […]”– tradução própria.
113
“[…] ou des éléments archaïques perdurant au sein même d’un processus de modernisation […]”– tradução própria.
114
“Le nouveau ne peut se développer qu’en s’appuyant sur la permanence d’éléments plus anciens.” – tradução própria.
102
atenuar possíveis tensões sociais contrárias, que possam ocorrer aquando do processo de
transição.
Desta forma, assiste-se a renacionalizações em sectores considerados
estratégicos, que envolvem tecnologia avançada e onde o Estado intervém: a
aeronáutica, a energia (petróleo, gás e nuclear) – tal como as áreas de produção
associadas –, telecomunicações, defesa e o sector automóvel (Sapir 2013; Nazet 2007,
57). Estas áreas são consideradas como fulcrais em termos de segurança nacional e daí a
justificação para a presença directa do Estado, sendo financiadas através dos capitais
provenientes das rendas das exportações de hidrocarbonetos (Sapir 2013) e cujo acesso
por capitais externos está condicionado desde que, em 2005, foi publicada uma lei que
restringia esse acesso em 39 actividades económicas consideradas como estratégicas
(Nazet 2007, 57). A economia russa passa então a comportar-se dentro dos modelos de
capitalismo de Estado (Nazet 2007, 57).
Este processo de renacionalização seria acentuado ainda mais após Vladimir
Putin assumir o cargo de Presidente da Federação Russa no ano de 2000. Sapir (2013)
estima que em 2003 o Estado russo controlasse apenas 20% de todo o sector industrial,
tal como 35% das acções de capitalização bolsista de empresas do país, 34% do volume
de negócios e 21% do emprego na indústria. Contudo esta percentagem aumenta de
forma constante. As restantes grandes empresas que não estão sob o controlo do Estado,
encontram-se na posse dos oligarcas fiéis à elite dominante, um grupo financeiro
monopolista, com um forte controlo sobre a economia do país (Nazet 2007, 66).
Atentemos agora ao crescimento económico russo ao longo do período 19982015 (Figuras 6 e 7).
103
Figura 6: Crescimento do PIB russo.
Crescimento do PIB russo (%)
Crescimento do PIB russo
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
12
10
8
6
4
2
0
-2
-4
-6
-8
-10
Fonte: World Bank (2016a).
Figura 7: Crescimento do PIB e preço médio do petróleo entre 1996-2015.
Crescimento do PIB (%) e preço médio do
petróleo (USD)
120
100
80
2015
2014
2013
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
60 USD
1996
12
10
8
6
4
2
%
0
-2
-4
-6
-8
-10
40
20
0
Crescimento do PIB
Preço médio do petróleo
Fontes: World Bank (2016a) e Investing (2016).
Na Figura 7 conseguimos perceber a relação existente entre o preço médio do
petróleo nos mercados internacionais e o crescimento económico russo. Este gráfico
permite-nos observar de forma mais evidente as tendências experimentadas pela
104
economia russa e a proporcionalidade directa com os preços de petróleo. A economia
russa apenas regista crescimento positivo quando os preços do petróleo crescem ou se
mantém. Por outro lado, observa-se que quando existem quebras no preço do petróleo,
como se pode observar em 1998, 2008 e 2015, o crescimento registado é negativo. O
que aliás seria espectável numa economia fortemente dependente da exportação de
matérias-primas e em particular tão concentrada num único recurso. Este é, aliás, outro
aspecto de uma economia orientada para as exportações. Existe uma clara tendência
para o seu desenvolvimento económico depender do dinamismo económico dos
mercados globais, ou seja, das economias centrais (Cardoso e Faletto 1977, 22).
Souza (2007, 24) distingue três fases distintas de crescimento no período de
1999 a 2006. Para o autor existe uma primeira fase entre 1999 e 2000, na qual o
crescimento é essencialmente impulsionado pelos ganhos de competitividade do rublo,
dada a sua desvalorização na crise precedente. Desta forma o crescimento seria um
efeito automático da inflação, que teria reduzido as despesas reais (não-indexadas a
moeda estrangeira) da economia russa, ao mesmo tempo que as receitas reais (estas sim
indexadas ao exterior) subiam. As importações também sofreram um corte, dada a
inflação, o que levou a que acontecesse um excedente nas contas russas. Outra das
consequências foi o aumento da produção industrial em vários sectores (Souza 2007,
24-25). Esta fase converge com aquela apresentada por Sapir (2002, 4-6; 2001, 4-7)
para o mesmo período.
A segunda fase desenvolveu-se entre 2001 e 2006, suportada pela subida dos
preços de petróleo, gás e carvão nos mercados mundiais, ao mesmo tempo que se
verificava uma subida na produção de petróleo russo. No ano de 2000 os preços tinham
voltado a superar a marca de 28 dólares por barril de petróleo, o que significava um
forte aumento relativamente ao ponto que havia atingido em 1998. Isto provocou um
considerável aumento do valor das exportações russas na sua globalidade, permitindo a
arrecadação de receitas importantes, ao mesmo tempo que contribuía para o crescimento
da economia russa. O impacto da exportação de petróleo na totalidade das exportações
russas passava assim para cerca de 51% (Tabela 3). Estes efeitos verificaram-se ao
longo de todo o período entre 2000 e 2006. O processo foi acompanhado por um
crescente aumento da produção de petróleo e gás, de forma a satisfazer as necessidades
da economia russa (Souza 2007, 26-33). Porém, também o sector industrial continuou a
crescer neste período, como por exemplo na produção de maquinaria (Souza 2007, 33105
34). Da mesma forma também do lado do consumo interno a procura aumentou,
fomentando assim o crescimento económico.
Este crescimento do consumo interno era feito graças à subida dos salários reais
e à valorização do rublo (Souza 2007, 34). Todavia, aquilo que caracteriza o
crescimento nesta fase é ter sido feito essencialmente com base nas exportações, isto
apesar de o consumo possuir um peso cada vez mais importante (Souza 2007, 35) e em
particular após o ano de 2000 (Tabela 20).
Tabela 20: Peso do consumo privado no PIB.
Peso do consumo
privado no PIB (%)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
EUA
59,6
46,2
49,4
50,6
51,9
64,9
66
67,2
68,2
68,4
Média
G7
58,9
59,1
59,4
60,3
60,0
Diferença
com G7
0,7
-12,9
-10,0
-9,7
-8,1
Diferença com
EUA
-5,3
-19,8
-17,8
-17,6
-16,5
Fonte: World Bank (2016a).
Apesar de a Rússia apresentar uma evolução positiva quanto ao peso do
consumo privado desde o ano 2000, encontra-se ainda bastante distante das médias do
G7, que em 2015 são ainda superiores em 8,1%. A grande importância no crescimento
do consumo privado é colocada, pois permite alcançar escalas de produção mais
elevadas, em particular num momento em que a tecnologia assim o exige (Santos 1978
[2011], 50). E neste aspecto a Rússia conta com uma população consideravelmente
grande quando comparada com os países do G7, exceptuando os EUA, tendo então um
potencial considerável de expansão do seu mercado interno (ver Tabela 21).
Tabela 21: População (em milhões).
População
(em
milhões)
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia
Canadá
França
Alemanha
Itália
Japão
Reino
Unido
EUA
147,67
146,60
143,52
142,85
144,10
30,25
30,77
32,31
34,01
35,85
60,19
60,91
63,18
65,03
66,81
82,05
82,21
82,47
81,78
81,41
56,91
56,94
57,97
59,28
60,80
126,40
126,84
127,77
128,07
126,96
58,49
58,89
60,40
62,77
65,14
275,85
282,16
295,52
309,35
321,42
Fonte: World Bank (2016a).
106
Sendo que aqui destaca-se também a tendência decrescente registada pela Rússia entre
1998 e 2008 (World Bank 2017), que coloca sérios problemas no desenvolvimento do
país e na sua mão-de-obra disponível, mesmo considerando a inversão desta tendência.
Por fim, temos a terceira fase, que se desenvolve após 2006, em que o
crescimento da economia russa é baseado essencialmente no investimento. O
investimento alcança os cerca de 22% do PIB e entre 2006 e 2007 a Rússia
experimentou fluxos de capitais positivos e crescentes, algo que até aí não havia
acontecido. Continuou também a verificar-se um aumento no preço do petróleo,
contribuindo assim para a acumulação de mais divisas e para o crescimento da
economia. Os gastos públicos também aumentaram durante este período (Souza 2007,
35-36). Souza (2007, 39) afirma que a Rússia afigurava encaminhar-se para um modelo
de crescimento mais sustentável, baseado num maior investimento interno e externo.
Mas em 2008 uma nova crise financeira é despoletada no mundo e a Rússia é
novamente atingida de forma violenta. Os efeitos da crise na economia russa fazem-se
sentir principalmente no ano seguinte, levando a uma quebra de 7,8% no PIB, isto
apesar de em 2008 já ter sido verificada uma desaceleração da economia de 8,5% em
2007 para 5,2% (World Bank 2016a). Contudo, graças às largas reservas de divisa
estrangeira acumuladas ao longo dos últimos anos de excedente fiscal, a intervenção do
governo russo considera-se ter sido bem sucedida em evitar um impacto maior (Sutela
2010, 3-4). Mesmo assim os efeitos de curto prazo fizeram-se sentir essencialmente por
três formas diferentes: sob a forma de queda nos preços das exportações, através de um
recuo no volume de exportações e pela retirada de capitais externos investidos no país
(Sutela 2010, 4). Mais uma vez, o preço do petróleo, juntamente com o do gás, seria o
grande responsável pela quebra no valor das exportações russas. Após o pico do preço
do petróleo registado no final de 2008, em que alcançou os 145 dólares por barril, o seu
valor passa rapidamente para a casa dos 30 dólares por barril no final de 2009 (Trading
Economics 2016a). É necessário também registar o fluxo negativo de capitais verificado
neste período, onde cerca de 148 mil milhões de dólares saíram do país (Sutela 2010, 5).
Para além da utilização das reservas de divisas, outra das soluções encontradas foi a
gradual desvalorização do rublo, ainda no final de 2008, o que foi visto como uma
resposta necessária, já que as exportações iriam sofrer uma quebra acentuada na
segunda metade de 2008 (Sutela 2010, 6). Mesmo assim em 2010 a Rússia voltaria a
crescer a 4,5% (World Bank 2016a).
107
Este crescimento continuaria a verificar-se até 2014, não obstante ser possível
observar uma clara tendência da economia russa: a constante desaceleração do
crescimento económico. Se em 2010 a Rússia cresceu 4,5%, em 2011 cresceria 4,3%,
em 2012 esse valor seria de 3,4%, em 2013 o crescimento cairia para 1,3% e em 2014
para apenas 0,6% (World Bank 2016a). Durante este período o preço do petróleo
oscilaria, geralmente, entre os 80 e os 100 dólares por barril, verificando-se apenas uma
nova quebra significativa no preço do petróleo em meados de 2014 (Trading Economics
2016a). Apesar do crescimento, o ano de 2014 foi marcado por mais uma crise que
afectou a economia russa. A crise teve uma dupla origem e cujas causas ocorreram
sensivelmente no mesmo espaço temporal: a acentuada descida dos preços do petróleo a
partir de Julho até Dezembro de 2014; e o conflito geopolítico ucraniano com as tensões
resultantes do envolvimento da Rússia, de onde derivam sanções aplicadas a esta
(World Bank 2015, iii). As soluções empregues pelo governo russo foram, mais uma
vez, a desvalorização do rublo, através da liberdade de flutuação da moeda nos
mercados de câmbio, porém não antes de tentar controlar estes fluxos através do gasto
de cerca de 30 mil milhões de dólares das suas reservas (World Bank 2015, 9-10). O
livre fluxo da taxa de câmbio foi fortemente influenciado pelas flutuações do preço do
petróleo, tendo tendência para as acompanhar, reflectindo-se assim numa elevada
desvalorização da moeda (World Bank 2015, 9). Outra medida posta em prática foram
as aplicações de dinheiro das reservas de divisas, de forma a compensar as saídas de
capital para fora do país (World Bank 2015, 10). Estas saídas de capitais cifraram-se na
ordem dos 130 mil milhões de dólares durante 2014 (World Bank 2015, 12-13).
Quanto às sanções aplicadas de forma multilateral, os seus efeitos são ainda
difíceis de quantificar (World Bank 2015, 41). Várias tentativas têm sido feitas para
compreender os impactos directos e indirectos das sanções sobre a economia russa.
Contudo, vários problemas metodológicos dificultam a tarefa de perceber qual o seu
real impacto (World Bank 2015, 34). Em resposta a estas sanções a Rússia aplicou o seu
próprio conjunto de sanções, banindo vários produtos de países ocidentais (World Bank
2015, 36; Johnston 2015). Porém, apesar dos problemas atrás identificados, podemos
observar que as sanções atingiram a economia russa de três maneiras diferentes. A
primeira foi a crescente volatilidade do rublo nos mercados internacionais, dados os
fluxos de capitais negativos (World Bank 2015, 37-38). A segunda foi o aumento das
restrições impostas à Rússia no acesso aos mercados financeiros internacionais, o que já
se observava ainda antes do surgimento das tensões geopolíticas (World Bank 2015,
108
38). E por fim, o agravamento da queda da confiança dos consumidores e dos negócios
a nível interno, que levou a uma descida no consumo e no investimento (World Bank
2015, 39-41). Para além disto, destacam-se também as restrições à aquisição de
tecnologia externas (World Bank 2015, 37), que também era uma das limitações ao
desenvolvimento estrutural apontadas por Santos (2011 [1978], 375).
Ainda assim, e tendo em conta o decréscimo relativo a 2010, a evolução do
crescimento económico russo durante o período 1998-2015 é observável na evolução do
seu PIB quando comparado com os países do G7 e os EUA em particular, como
demonstrado pela Tabela 22.
Tabela 22: PIB real (em milhares de milhões de USD a preços correntes de 2016).
PIB real
1998
2000
2005
2010
2015
Rússia Canadá
França
Alemanha
Itália
Japão
271,0
259,7
764,0
1524,9
1326,0
1510,8
1368,4
2203,7
2647,0
2421,7
2243,2
1950,0
2861,4
3417,3
3355,8
1226,8
1142,2
1853,5
2126,7
1814,8
3914,6
4731,2
4571,9
5495,4
4123,3
631,4
739,5
1164,1
1614,0
1550,5
Reino
Unido
1537,1
1554,8
2418,9
2403,5
2848,8
EUA
9089
10285
13094
14964
17947
Fonte: World Bank (2016a).
E aqui de facto nota-se a forte evolução registada pela Rússia desde 1998, multiplicando
cinco vezes o seu PIB entre 2000 e 2015. Como nota de comparação os EUA
multiplicam o seu PIB duas vezes. Contudo, este grande crescimento russo é apenas
resultado da forte quebra registada ao longo dos anos 90 e, como já foi referido
anteriormente, o crescimento económico tem sofrido desde 2010 uma constante
desaceleração e até recessões (Figura 6).
Olhando para o PIB per capita russo, ou seja, a riqueza média produzida por
cada cidadão russo, e comparando com a média do G7 e com os EUA, conseguimos
tirar mais conclusões acerca da produtividade de cada uma das economias (Tabela 23).
Tabela 23: PIB real per capita (USD a preços correntes de 2016).
PIB real per capita
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
1835
1772
5324
10675
36450
36450
44308
48374
27057
27204
36817
42202
109
Diferença com
G7
-25222
-25432
-31493
-31527
Diferença com
EUA
-34615
-34678
-38984
-37699
2015
9057
55836,8
40373
-31316
-46779,8
Fonte: World Bank (2016a).
Aqui destaca-se claramente a menor produção de riqueza média evidenciada por cada
cidadão russo, quando comparado com o que acontece no G7. A diferença em relação à
média do G7 é de cerca de quatro vezes menor e relativamente aos EUA é de cerca de
cinco vezes e meia. Esta diferença é o espelho de uma economia com uma capacidade
de criar valor acrescentado consideravelmente menor do que os países mais
desenvolvidos, situando-se bem atrás destes na escala de criação de valor. Isto é um
claro sintoma dos factores de dependência económica externa analisados anteriormente.
Para além disso a Rússia é um país com fortes assimetrias sociais, o que aliás é
também uma característica mais acentuada em países periféricos e semi-periféricos.
Olhando para a Tabela 24, que nos mostra a renda dos 20% mais ricos e dos 20% mais
pobres, percebemos um pouco mais acerca de como se encontra distribuída a riqueza
nos países observados.
Tabela 24: Renda dos primeiros 20% e dos últimos 20% da população
(percentagem do total)115.
Renda do top 20%
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
2013
Renda dos últimos
20%
1998
2000
2005
2010
2013
44,6
43,7
47,8
47,4
48,3
Rússia
s.d.116
46,1
46,0
45,8
46,4
EUA
s.d.
s.d.
41,5
41,5
41,6
Média G7
6,2
6,4
5,8
5,8
5,9
s.d.
5,4
5,2
5,1
5,1
s.d.
s.d.
6,2
7,0
7,0
Diferença com
G7
s.d.
s.d.
6,3
5,9
6,7
Diferença com
G7
s.d.
s.d.
-0,4
-1,2
-1,1
Diferença com
EUA
s.d.
-2,4
1,8
1,6
1,9
Diferença com
EUA
s.d.
1
0,6
0,7
0,8
Fonte: World Bank (2016a).
Podemos constatar que na Rússia houve um aumento da concentração de rendas nos
20% mais ricos da população, tendo subido 3,7% entre 1998 e 2015 em relação ao total
115
Sem dados para algumas das médias aqui calculadas.
116
S.d. = Sem dados.
110
da população, o que demonstra uma tendência para a acumulação e concentração de
riqueza nas camadas socioeconómicas mais elevadas. Nos EUA e na média do G7 esta
tendência de concentração de riqueza ao longo do tempo é menos significativa, tendo
crescido 0,3% no primeiro (2000-2015) e 0,1% no segundo (2005-2015). Desta forma a
Rússia vê a sua diferença relativamente aos EUA passar de -2,4% em 2000 para 1,9%
em 2015. Enquanto em relação à média do G7 essa diferença passa de 6,3% em 2005
para 6,7% em 2015. Isto significa que é na Rússia que essa concentração de riqueza se
processa de forma mais acelerada, quando comparada com os países do centro. Por
outro lado, os rendimentos obtidos pelos 20% mais pobres, desenvolvem na Rússia e
nos EUA uma tendência decrescente no seu percurso temporal, sendo que na primeira
descem 0,3% entre 1998 e 2015 e no segundo também descem 0,3% entre 2000 e 2015.
Na média do G7 o rendimento obtido pelos 20% mais pobres sobe 0,8% entre 2005 e
2015. Desta forma a diferença da Rússia em relação aos EUA passa de 1% em 2000
para 0,8%, o que significa que a Rússia possui uma distribuição de rendimentos nos
20% mais pobres mais elevada do que os EUA, mesmo que essa relação esteja a
diminuir. Quando comparada com o G7 essa relação é desfavorável à Rússia, onde a
diferença passa de -0,4% em 2005 para -1,1% em 2015, mostrando assim que os 20%
mais pobres na Rússia não possuem uma distribuição de rendimentos tão elevada, em
termos percentuais, como na média do G7.
Um outro dado que nos pode ser útil é o índice de GINI, utilizado para medir a
desigualdade na distribuição de rendimentos, onde valores mais altos significam maior
desigualdade social.
Tabela 25: Índice de GINI.
Índice GINI
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
2013
38,1
37,1
41,4
40,9
41,6
s.d.
40,5
40,6
40,5
41,1
s.d.
s.d.
34,6
34,3
34,4
Diferença com
G7
s.d.
s.d.
6,9
6,6
7,2
Diferença com
EUA
s.d.
-3,4
0,8
0,4
0,5
Fonte: World Bank (2016a).
Observamos a este respeito que a desigualdade de rendimentos tem sofrido um
crescimento na Rússia desde 1998, tal como nos EUA, tendo descido apenas
ligeiramente na média do G7. Estas duas tabelas aqui mostradas anteriormente,
111
confirmam também aquilo que os teóricos do imperialismo e da dependência,
principalmente aqueles inspirados por Marx, estabelecem ser o processo de acumulação
de capital (Luxemburgo 1951 [1913], 39; Wallerstein 1993, 3), sendo aqui evidenciado
o seu reflexo nas classes sociais dos países analisados.
Importante ter em conta é também o desenvolvimento humano que se regista
nestes países, sendo este aspecto um reflexo do desenvolvimento de uma sociedade.
Usamos para isso o Índice de Desenvolvimento Humano, como indicador que mede esta
mesma questão. Este indicador, apesar das críticas que lhe são apontadas sobre
fundamentar-se em modelos padrão de desenvolvimento ocidentais (Bawa e Seidler
2009, 32-33), torna-se ainda assim importante para perceber em que posição se situa a
Rússia no sistema-mundo onde esses padrões imperam.
Tabela 26: Índice de Desenvolvimento Humano.
Índice de
desenvolvimento
humano
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
Diferença com
G7
Diferença com
EUA
0,717
0,750
0,783
0,798
0,883
0,897
0,909
0,915
0,858
0,877
0,894
0,900
-0,141
-0,127
-0,111
-0,102
-0,166
-0,147
-0,126
-0,117
Fonte: United Nations Development Programme (2016a).
Neste ponto a Rússia situa-se num patamar que pode ser designado como de
desenvolvimento humano alto (United Nations Development Programme 2016b). Já no
caso dos EUA e da média do G7, estes países são considerados países com um
desenvolvimento humano muito alto (United Nations Development Programme 2016b).
Observando outros factores relacionados, como por exemplo a esperança média
de vida, a mortalidade infantil, o índice de educação ou taxa de desemprego,
conseguimos ter uma visão mais aprofundada dos aspectos sociais nestes países.
Tabela 27: Esperança média de vida (anos).
Esperança média de vida
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
67
65
65
69
77
77
77
79
78,4
78,9
79,7
81,0
112
Diferença com
G7
-11,4
-13,9
-14,7
-12,0
Diferença com
EUA
-10
-12
-12
-10
2014
70
79
81,6
-11,6
-9
Diferença com
G7
15,7
15,1
9,4
6,0
5,1
Diferença com
EUA
14
13
7
4
3
Fonte: World Bank (2016a).
Tabela 28: Mortalidade infantil por mil nascimentos.
Mortalidade infantil por
1000 nascimentos
1998
2000
2005
2010
2014
Rússia
EUA
Média G7
21
20
14
10
9
7
7
7
6
6
5,3
4,9
4,6
4,0
3,9
Fonte: World Bank (2016a).
Tabela 29: Índice de Educação.
Esperança média de vida
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
2014
67
65
65
69
70
77
77
77
79
79
78,4
78,9
79,7
81,0
81,6
Diferença com
G7
-11,4
-13,9
-14,7
-12,0
-11,6
Diferença com
EUA
-10
-12
-12
-10
-9
Diferença com
G7
5,2
3,5
0,1
-0,6
-2,1
Diferença com
EUA
8,7
6,5
1,9
-2,4
-1,1
Fonte: United Nations Development Programme (2016a).
Tabela 30: Taxa de desemprego.
Taxa de desemprego (%)
Rússia
EUA
Média G7
1998
2000
2005
2010
2013
13,3
10,6
7,1
7,3
5,1
4,6
4,1
5,2
9,7
6,2
8,1
7,1
7,0
7,9
7,2
Fonte: World Bank (2016a).
Percebemos que em todos estes indicadores a Rússia se encontra consideravelmente
atrás de todos os países considerados desenvolvidos, exceptuando na taxa de
desemprego. Ainda assim regista uma evolução em todos estes indicadores, diminuindo
a sua distância às economias mais desenvolvidas.
A dimensão comunicativa é relevante para qualquer análise que se debruce sobre
a estrutura económica e social de um dado país. É reconhecida a capacidade do
113
investimento em transportes e comunicações – infraestruturas em geral117 – de estimular
o crescimento económico e produtividade de qualquer país a longo prazo, sendo estes
dois últimos factores claramente mais desenvolvidos onde as infraestruturas também o
são. Isto acontece não só porque os investimentos em infraestruturas geram um impacto
directo sobre o crescimento do PIB e postos de trabalho daí resultantes, mas também
porque ajudam a reduzir custos de produção, alargam a área de recrutamento de
trabalhadores, aumentam a competitividade e o fluxo de investimento, ajudam a
reorganizar o uso do território e promovem a expansão do desenvolvimento a locais
previamente inacessíveis (Ernst & Young 2014, 9).
Mas só é possível desenvolver meios de comunicação e transporte avançados,
assim como manter elevados níveis de investimento em infraestruturas, se se possuir
relações de produção também elas de última geração, o que significa que é necessária
uma elevada capacidade de produção industrial (Galtung 1971, 92). Ou seja, apenas os
países mais desenvolvidos têm a capacidade de desenvolver, produzir e utilizar as
infraestruturas mais avançadas, destacando-se assim dos restantes que não possuem a
mesma capacidade, numa clara relação de natureza vertical existente na divisão do
trabalho internacional na área comunicativa e dos transportes (Idem, ibidem). Galtung
destaca também a natureza típica das estruturas de interacção feudal reflectidas neste
campo (Idem, ibidem). O resultado é uma estrutura onde o centro possui ao seu dispor
os mais avançados meios de comunicação/ transporte, ao passo que a periferia apenas
tem acesso a meios de gerações mais atrasadas, muitas vezes em segunda mão (Idem,
ibidem). Importa então esclarecer qual a situação russa neste âmbito e como esta
influencia a sua interacção no sistema-mundo.
A extensão territorial da Rússia possui uma influência negativa sobre o
desenvolvimento das infraestruturas ao dispor da população, dada a necessidade de ter
acessos que permitam alcançar territórios muitas vezes remotos. Esta necessidade é
ainda mais vigente quando as maiores zonas de extracção mineira e petrolífera russas se
encontram em zonas também elas remotas e às quais é necessário aceder e tornar o
fluxo de matérias e pessoas possível. Estas distâncias incorrem num aumento do custo
de produção que pode em alguns casos chegar aos 30%, tornando assim as empresas
que operam nestas regiões menos eficientes e capazes de competir no mercado global
(Gazprombank 2014, 20).
117
Toma-se aqui por infraestruturas aquilo que inclui estradas, caminhos-de-ferro e metros, portos, oleodutos e gasodutos,
aeroportos, rede de distribuição energética, telecomunicações e outras estruturas de utilidade pública.
114
As limitações à mobilidade na Rússia assumem assim um carácter
consideravelmente maior do que nos países mais desenvolvidos, sendo este um
elemento limitador ao próprio desenvolvimento económico russo (Idem, ibidem). O
legado de infraestruturas deixado pela URSS, apesar de estar longe do ideal, era
considerado razoavelmente capaz de suprir as necessidades então existentes. Contudo,
20 anos de desinvestimento em infraestruturas provocaram sérias limitações118, levando
à sobreutilização das infraestruturas, ao envelhecimento destas e consequente
diminuição das velocidades médias de transporte (Gazprombank 2014, 21). Por
exemplo, calcula-se que em 2013 o comprimento total de pontos de estrangulamento na
via ferroviária russa se situasse em cerca de 8100 Km (9,4% do total de ferrovias),
aumentando este valor a uma média de 500 Km por ano (Gazprombak 2014, 36).
Também a rede de distribuição energética alcançou um nível de obsolescência bastante
avançado, onde 50% de toda a rede ultrapassou o seu tempo máximo de vida, ou as
redes de distribuição de aquecimento e de água, onde as perdas se situam em 30% e
60% respectivamente (Gazprombank 2014, 48-50).
Este tipo de ocorrências possui sérias consequências no transporte de
mercadorias assim como no seu custo final e na economia em geral, especialmente se
tivermos em conta que os caminhos de ferro são o principal meio de transporte de
mercadorias. Por outro lado, avalia-se que uma diminuição dos custos de transporte a
nível geral em 10%, provoca um aumento de 0,12% do PIB (Gazprombank 2014, 37).
Na Rússia, o único sector dos transportes que se considera estar abaixo do nível máximo
de utilização é o dos portos, situando-se a sua utilização em 75% da capacidade máxima
(Gazprombank 2014, 44). Olhando para a Figura 8 podemos ver quais os principais
meios de transporte utilizados para transportar mercadorias na Rússia.
118
O investimento em infraestruturas até meados dos anos 2000 situava-se em cerca de 1%, muito abaixo dos 3% recomendados
(Gazprombank 2014, 21).
115
Figura 8: Distribuição do transporte de carga por tipo de meios de transporte.
Distribuição do transporte de carga por
tipos de meios de transporte
50
45
40
35
30
%
25
20
15
10
5
0
46,75
45
Gasodutos/Oleodutos
Caminho-de-ferro
4,95
3,3
Estrada
Mar
Fonte: Gazprombank (2014, 35 e 46).
E na Figura 9 podemos ter uma visão mais esclarecedora sobre o investimento
existente em infraestruturas em vários países.
Figura 9: Investimento em infraestruturas relativamente ao PIB119.
Investimento em infraestruturas
9
8
8
7
6
6
% do PIB
5
4
3
3
2,6
2,8
2,9
3
3,3
3,4
2
1
0
Russia
Japan Germany France
USA
United Canada
Kingdom
India
China
Fonte: Gazprombank (2014, 22).
119
O valor relativo ao investimento em gasodutos e oleodutos na Rússia é de 0,7%, sobrando assim 2,3% para os restantes sectores.
116
Observa-se que a Rússia realiza um investimento anual muito semelhante àquele
encontrado em países desenvolvidos. Contudo é necessário destacar que a Rússia possui
uma necessidade maior de investimento dada a situação de obsolescência das suas
infraestruturas e que uma importante fatia desse investimento é centrada em gasodutos e
oleodutos.
Existe então uma necessidade de investimento nas infraestruturas na Rússia, de
forma a potenciar o seu desenvolvimento. Para isso estão em curso desde 2010 planos
para uma forte aposta neste sector. Mas o fraco desempenho económico nos últimos
anos tem colocado entraves à plena implementação dos programas previstos, dado o
declínio no orçamento de Estado120. Prevê-se, ainda assim, um aumento absoluto nos
gastos até 2020, todavia também uma queda em relação ao PIB, passando de cerca de
1,508 triliões de rublos em 2010 (3,3% do PIB), para 2,43 triliões de rublos em 2020
(2,2% do PIB). Estes projectos incluem não só a modernização das infraestruturas
existentes, como a sua expansão e criação de novas, como é o caso do projecto da Linha
de Alta-Velocidade Moscovo-Kazan, modernização das infraestruturas na Crimeia,
construção de vários portos, expansão dos metros, construção de novas autoestradas,
caminhos-de-ferro,
oleodutos
e
gasodutos,
telecomunicações,
entre
outros
(Gazprombank 2014).
Os gasodutos e oleodutos adquirem uma especial importância no poder
desempenhado pela Rússia no sistema-mundo, daí o seu peso no sector das
infraestruturas e no investimento que é feito nestas. Estas estruturas permitem-lhe
recolher o petróleo e gás natural produzidos em vários dos países da Ásia Central, para
que posteriormente se juntem à sua produção interna e sejam processados internamente,
para de seguida redistribuir nas regiões que lhe importam estes produtos, sejam eles a
Europa ou a China (Egiazarian 2013, 66-68). É devido a esta aposta estratégica que a
Rússia possui o domínio do trânsito de gás natural e petróleo 121 naquela região do
mundo, mesmo que não detenha o monopólio (Idem, ibidem), assegurando assim uma
posição de grande força no sector energético a nível mundial. Este é, ainda assim, um
120
Estima-se que a participação Estatal directa no investimento em infraestruturas de transportes se tenha cifrado em 54% em 2014,
chegando a 98% se incluirmos as empresas públicas, sendo os restantes 2% relativos a investimento privado. E em 2020 calcula-se
que o investimento directo do Estado chegue a 65%, mais 31% relativo às empresas públicas, totalizando assim 97%, onde os
restantes 3% serão relativos a investimento privado (Gazprombank 2014, 26).
121
No caso do petróleo o domínio russo é menor.
117
relacionamento na cadeia de produção e no sistema-mundo típico das semi-periferias,
servindo de intermediária nas relações entre a periferia e o centro.
No que toca a telecomunicações a Rússia tem tido um forte crescimento desde os
anos 2000 (Eurasian Development Bank 2010, 9). Em relação à internet, por exemplo,
apesar de se ter encontrado consideravelmente atrasada relativamente aos países mais
desenvolvidos, entre 2010 e 2015 a taxa de penetração da internet na Rússia passou de
37% para 70% (East-West Digital News 2016). A importância da internet é
demonstrada por dados da OCDE, segundo a qual por cada 10% de penetração de
internet de banda larga num dado país, há um acréscimo de 1,5% ao seu PIB
(Gazprombank 2014, 49). Em relação a redes móveis de comunicação em 2006 já
possuía uma taxa de utilizadores superior a 105% (Eurasian Development Bank 2010,
12). Estes são sectores de alta tecnologia e portanto de utilização intensiva de capital. E
dada a sua rápida obsolescência, requerem actualizações ou substituição a cada 5-7 anos
(Gazprombank 2014, 49). Por isso os projectos nesta área devem ser constantes,
acompanhando a evolução tecnológica no sector.
Importa também aqui incluir a capacidade de desenvolvimento e utilização de
comunicações por satélite. Este tipo de meio de comunicação adquire uma especial
relevância no caso russo, onde a necessidade de chegar a zonas remotas e de baixa
densidade habitacional faz com que se torne mais económico de utilizar quando
comparado com redes terrestres convencionais, como os cabos de cobre ou fibra óptica
(Eurasian Development Bank 2010, 36). Estas limitações são, afinal, a principal razão
de a Rússia se encontrar na periferia dos principais “nяs” de comunicaхуo Рlobal, num
Пenяmeno denominado de “Asian Рap” (Eurasian Development Bank 2010, 30). De
momento a Rússia, apesar de ainda possuir um número de satélites baixo, quando
comparada com os EUA ou a Europa, olha para esta área como fundamental para o seu
desenvolvimento. E para isso contribui a autonomia bastante significativa que
apresenta, relativamente a outros países, dada a sua capacidade própria de produção de
satélites, assim como o seu transporte para o espaço, estando previsto um forte
crescimento no sector (Eurasian Development Bank 2010, 37). Exemplos marcantes da
capacidade russa nesta área são o seu sistema de posicionamento global, de nome
GLONASS e actualmente em operação; e o sistema de comunicações pessoais de órbita
baixa Gonets (Eurasian Development Bank 2010, 37-38).
118
Resumindo este tópico, verifica-se então que o período de 1998-2015 é
caracterizado por várias fases. Contudo, aquilo que o caracteriza de forma mais genérica
é, como foi dito acima, a estabilização política (que abordaremos de forma aprofundada
na dimensão da dependência sociopolítica) e económica do país, especialmente se
comparado com o período anterior. Neste novo período destaca-se essencialmente: o
ressurgimento de uma forte presença do Estado na economia, em particular num grupo
de sectores considerados estratégicos; uma crescente dependência nas receitas da
exportação de matérias-primas, em particular o petróleo e a consequente fragilidade
associada à volatilidade dos seus preços nos mercados mundiais, havendo apenas uma
ligeira descida nos últimos anos; a incerteza quando à duração das reservas de petróleo
russas (Clemente 2016; Russia Today 2016b); a consequente dependência destas
receitas por parte do Estado para poder investir na economia; uma diminuição do
contributo das matérias-primas para o PIB; houve um aumento do consumo privado
face ao PIB, porém a níveis ainda inferiores aos de 1998 e distantes da média do G7; de
1998 a 2008 houve um forte decréscimo populacional; a Rússia exibe fortes assimetrias
na distribuição de rendimentos e com uma tendência crescente; o seu IDH tem
verificado uma evolução positiva bastante significativa desde o ano 2000.
No que toca às suas infraestruturas a Rússia surge como um país capacitado de
uma relativamente desenvolvida rede de infraestruturas, mas possuindo também sérias
limitações. Não só a sua extensão territorial é um importante elemento condicionador,
como o acelerado estado de obsolescência e insuficiência das suas infraestruturas,
potenciam um embaraço à economia russa, cujos escassos investimentos projectados
não parecem ser suficientes para ultrapassar. Para além disso, o investimento russo nesta
área encontra-se bastante concentrado nos tão necessários gasodutos e oleodutos, que
transportam o principal recurso exportado pelo país, mas postergando os investimentos
noutros tipos de infraestruturas também fundamentais. Como aposta de futuro
estratégica na área das telecomunicações destacam-se as comunicações por satélite,
onde a capacidade tecnológica russa poderá ser um importante pilar de afirmação, em
particular num meio que oferece tantas possibilidades num país com uma extensão tão
grande e com consideráveis áreas remotas.
Tendo em conta todos os dados analisados ao longo da abordagem económica
aqui realizada, concluímos que a Rússia possui um grau de desenvolvimento claramente
inferior àquele verificado nos países do centro. Registando, por consequência, aquilo
119
que os autores dependentistas designam por dependência face a estes países. Também se
descarta a Rússia de ser uma periferia a nível económico dada a sua mistura de
processos mais “avanхados” com outros mais “atrasados”, como é reПleбo da sua
estrutura produtiva, onde conjuga uma relativa dependência da exportação de matériasprimas, com um sector industrial significativo, mas não sendo fundamentalmente de alta
tecnologia (ainda que também opere neste sector). Outros indicadores socioeconómicos
aqui analisados também nos permitem excluir a Rússia da classificação de país
periférico, como é o caso do seu Índice de Desenvolvimento Humano ou o Índice de
Educação, que a colocam em posições acima da média. A tendência observada ao longo
do período analisado demonstra uma ligeira evolução da sua situação, assim como uma
diminuição da sua diferença relativamente ao centro. O resultado expressa-se numa
melhoria da condição da Rússia no sistema-mundo em termos socioeconómicos,
ocupando uma posição semi-periférica na escala de produção de valor. Assumindo uma
função de produtora de bens semi-processados dentro do sistema-mundo, recebendo
para isso os processos de produção obsoletos nos países centrais, uma vez que se
encontra atrás do centro em termos tecnológicos, contudo à frente da periferia se
considerarmos a sua posição no Índice de Inovação Global (Cornell University et al
2016, 20).
4.2 – Dependência sociopolítica e cultural.
A dependência é uma manifestação interna das dinâmicas imperialistas nos
países pertencentes ao sistema-mundo, mas também com implicações ao nível externo.
Esta vinculação aplica-se, igualmente, aos fenómenos da dependência política e
cultural. Para Galtung (1971, 92), esta relação apresenta também semelhanças àquelas
encontradas na divisão internacional do trabalho, existindo nações que produzem
decisões (centro) e outras que as recebem e providenciam obediência (periferia).
Compreender esta relação é fundamental para determinar o posicionamento de uma
região no sistema-mundo e a forma como interage dentro dele. Conceitos como
“desenvolvimento” e “moderniгaхуo” sуo parte desta relaхуo, servindo como padrões
geoculturais definidos pelo centro para que a periferia siga e imite, sem contudo alguma
vez desafiar a posição do centro dentro do sistema (Idem, ibidem). Este tipo de
conceitos, onde também podemos incluir os conceitos de “democracia” ou “direitos
120
humanos”, servem para Пundamentar um estatuto de leРitimidade por parte do centro
dentro do sistema.
Para interpretar a globalidade do fenómeno temos, primeiramente, de analisar as
ocorrências internas e apenas posteriormente é possível partir para a análise interrelacional e sistémica. Tendo isto em mente, trataremos aqui das manifestações
directamente internas da dependência russa, nomeadamente daquelas relacionadas com
a dependência cultural e com os reflexos da dependência política russa a nível
doméstico, para no tópico seguinte passarmos para o estudo das relações externas da
Rússia no sistema-mundo.
4.2.1 – Dinâmicas da dependência cultural russa
A dependência cultural é resultado do imperialismo cultural imposto pelos
países desenvolvidos do centro, de onde, através das dinâmicas comunicacionais e dos
canais por elas criados, se propagam tendências culturais por intermédio de um efeito de
demonstração, que assume características em muito semelhantes àquelas evidenciadas
na divisão do trabalho internacional. Neste caso, a divisão encontra-se entre aqueles que
ensinam e aqueles que aprendem, mas como GaltunР distinРue “nуo é a divisуo do
trabalho em si […] que constitui o imperialismo, mas a localiгaхуo dos proПessores e
dos aprendiгes”122 (1971, 93). Nesta relação, os professores seriam providenciados pelo
centro, ao passo que os aprendizes seriam providenciados pela periferia. Mas a relação
de dominação não se fica por aqui, não só existe esta clara distinção entre a localização
de professores e aprendizes, como também é o centro que define aquilo que deve ser
ensinado, as tendências culturais em vigor (teorias, tecnologia, ideologia, modas, etc),
assim como o planeamento da obsolescência destas mesmas tendências. Tudo isto ao
mesmo tempo em que a periferia procura seguir o modelo do centro, como forma de
agradar a este (Idem, ibidem). Existe, portanto, um efeito de demonstração quase
unidireccional, e daí a constante diferença temporal existente entre a estrutura cultural
periférica e a central nestes domínios. Se, porventura, a periferia ousa inverter esta
relação, a resposta do centro exibe-se, muitas vezes, sob uma forma agressiva, na
122
“[…] it is not the division of labor as such […] that constitutes imperialism, but the location of the teachers, and of the learners
[…]” – tradução própria.
121
procura de defender o seu modelo de qualquer contestação que o coloque em causa
(Idem, ibidem). Isto porque, quando a periferia aceita a transmissão cultural
providenciada pelo centro, não só valida a cultura com origem neste, como aceita a sua
hegemonia, ajudando a afirmar e reforçar a posição hegemónica do centro e a diferença
existente entre ambos (Idem, ibidem). Portanto, qualquer recusa ou tentativa de inversão
relativamente aos fluxos culturais por parte da periferia face ao centro, constitui uma
directa contestação da posição hegemónica deste último, sendo então encarada por este
como uma ameaça à sua própria posição dentro da estrutura.
Aquando da nossa análise à fase histórica russa de 1991-1998, tal como veremos
quando abordarmos a dependência política russa, destacou-se o peso directo que a
influência norte-americana teve na direcção política tomada pela Rússia ao longo dos
anos de 1990. Em particular através do uso das “legiões de missionários e
evanРeliгadores políticos” (Cohen 2000), que procuravam disseminar as suas
perspectivas ideológicas numa Rússia em transição. Este tipo de transmissão adquire
não só uma fisionomia política, se tivermos em consideração o seu objectivo, mas
também um formato cultural, quando considerado o processo em que decorreu. A
relação desenvolveu-se numa nítida relação entre professor e aprendiz, onde a elite dos
EUA definia o que a elite e as restantes massas da Rússia deviam aprender, tal como
procedia à transferência desses conhecimentos. Do outro lado, havia na Rússia, ou pelo
menos por parte das suas elites, uma clara intenção de adquirir os conhecimentos
transmitidos e colocá-los em prática, daí a colaboração entre as duas partes, como
também já vimos atrás e como aprofundaremos à frente. Observava-se assim um
processo no qual a elite da Rússia se submetia à vontade e à hegemonia ditada pelo
centro, ao qual se encontrava agora subordinada, validando assim a posição dos EUA
como única superpotência global, em claro contraste com o que ocorrera ao longo da
Guerra Fria.
Porém, a deriva que Vladimir Putin representou, ao não cumprir com as
espectativas inicialmente previstas pelas elites que o haviam escolhido como sucessor
de Boris Yelstin, como já abordámos, colocou em causa a relação previamente existente
de transmissão cultural entre centro e periferia, mesmo que não tenha invertido ou
sequer completamente acabado com esta. Ainda assim, passa a existir uma tentativa de
diminuir e limitar o fluxo provindo do centro, ao mesmo tempo que a Rússia procura
seguir um caminho mais autónomo do que aquele até aí trilhado. Esta alteração de
122
relações coloca assim em causa a própria posição do centro dentro da estrutura global,
pois existe uma contestação à sua posição enquanto elemento dominante. Se os EUA e o
Ocidente se procuram afirmar enquanto promotores do seu modelo geocultural123 no
mundo baseado nos valores liberais (Wallerstein 2007, 23) e, nomeadamente, no seu
modelo de democracia, capitalismo, direitos humanos, entre outros, a mudança de rumo
evidenciada na Rússia veio colocar um freio à sua implementação internamente ou, pelo
menos, dentro dos modelos propostos pelo centro. O resultado disto espelha-se no
debate e na indefinição geral ainda existente na Rússia acerca da sua identidade e ideias
nacionais, que orientem não só a sua sociedade internamente, mas também a sua
percepção do mundo e da sua posição neste (Karaganov in Likhacheva e Makarov 2014,
5).
Este debate e indefinição na sociedade russa são fruto da rejeição, por parte da
sua elite, não só do modelo soviético anteriormente seguido, mas também do modelo
Ocidental, gerando assim um vazio que importa preencher. A posição geográfica da
Rússia, tal como o seu passado, desempenham aqui papéis fundamentais na construção
de uma nova identidade. Contudo, as perspectivas existentes em cima da mesa, apesar
de procurarem evocar aspectos diferentes da História russa, possuem pontos comuns
entre si. As características mais evidentes desta identidade russa e que as várias partes
em debate procuram afirmar, fundamentam-se essencialmente no tradicionalismo,
conservadorismo, independência e autonomia (Likhacheva e Makarov 2014, 21-24).
Dos cinco debates predominantes existentes124 apenas um propõe uma aproximação aos
valores Ocidentais, sendo que os restantes apontam para caminhos que divergem destes,
uns de forma mais aprofundada, outros menos, contudo a tendência é clara. O que
significa que existe uma clara divergência e assumida por uma grande parte da
sociedade, relativamente aos valores propalados pelo centro, procurando uma afirmação
própria e autónoma.
123
Wallerstein (2007, 23) deПine “Рeocultura” como a “parte mais escondida [da estrutura da economia-mundo] e, por isso, a mais
diПícil de avaliar, mas cuja eбistência Пaг com que subsista”. O autor chama-lhe de “‘Рeocultura’ enquanto analoРia com a
geopolítica, não por significar um aspecto supralocal ou supranacional, mas porque representa a marca cultural dentro da qual opera
o sistema mundial” - “[…] la parte más oculta a la vista y, por tanto, la más difícil de valorar, pero sin la cual no subsistiría. La
denomino ‘geocultura’ por analogía con la geopolítica, no porque se trate de un aspecto supralocal o supranacional, sino porque
representa el marco cultural dentro del que opera el sistema mundial” – tradução própria.
124
Os cinco debates são, a saber: o eclesiástico, da doutrina russa, neo-imperial ou neo-soviético, nacionalista/ultra-nacionalista e o
movimento de ocidentalização liberal (Likhacheva e Makarov 2014, 21-24).
123
Cruzando esta perspectiva russa, focada nas tradições, com o modelo apontado
por Wallerstein que aqui apresentamos, poderemos tirar algumas conclusões. Este
declara que:
“Quando as classes sociais dominantes locais sуo ameaхadas por qualquer
consciência de classe insipiente por parte das classes mais baixas, a enfâse na
cultura local serve para deflectir os conflitos internos locais, criando em vez
disso solidariedade local contra o exterior. Se, além disso, esta classe dominante
local se sentir a si mesma oprimida pela classe mais alta do sistema-mundo, eles
sуo duplamente motivados a perseРuir a criaхуo de uma identidade local”125
(Wallerstein 2011 [1974], 353).
Tomando esta perspectiva, o comportamento das elites russas serviria não só para conter
pressões internas provindas das classes mais baixas descontentes, fruto dos fortes
retrocessos sociais que tiveram lugar nos anos 90, e que subitamente haviam adquirido
algum tipo de consciência de classe. Mas, ao mesmo tempo, também para fazer frente
aos constrangimentos impostos pela classe dominante no sistema-mundo, procurando
afirmar-se como independente desta. Para que esta reacção tenha sucesso é fundamental
o controlo dos meios de comunicação (Ruvalcaba 2013, 151).
Para que este todo processo se desenvolva é fundamental ter em atenção o que
GaltunР
desiРna
comunicativas
126
por
“versуo
especial”
da
natureгa
vertical
das
relaхões
(Galtung 1971, 93) e que o autor insere nos fenómenos derivados do
imperialismo comunicativo. Surge daqui então o interesse em abordar a comunicação de
125
“When the local dominant strata are threatened by any incipient class-consciousness of lower strata, emphasis on local culture
serves well to deflect local internal conflict, creating instead local solidarity against the outsider. If, in addition, these local
dominant strata feel themselves oppressed by higher strata of the world-system, they are doubly motivated to pursue the creation of
a local identity.” – tradução própria.
126
Galtung afirma existir uma “versуo especial” da natureгa vertical das relaхões comunicativas, na qual o autor destaca uma
combinação dos aspectos culturais e comunicacionais, e que se reflecte na comunicação de notícias (Galtung 1971, 93). Sendo os
países do centro os possuidores das maiores agências de comunicação social, actuam sobre a periferia de uma forma muito
semelhante àquela encontrada na esfera de produção, com a sua divisão do trabalho internacional. Nesta relação as notícias
disseminadas na periferia passariam por um processo idêntico aos produtos processados aí consumidos. Aqui a periferia
providenciaria as matérias-primas, que neste caso se desiРnariam por “eventos”, enquanto o centro as processaria em “notícias” e
posteriormente distribuiria, após um processo de ПiltraРem realiгado por jornalistas treinados para “verem os eventos através dos
olhos do centro” e que traхariam as tendências dominantes no campo (Idem, ibidem). Esta relação desenvolver-se-ia nestes termos
pois é o centro da periferia quem produz e lê estas notícias, e portanto são eles que procuram saber mais e o mais relevante acerca do
centro em torno do qual orbitam, através das relações de interacção feudal (Idem, ibidem).
124
notícias na Rússia e como estas são processadas. Na Rússia a televisão desempenha
ainda um grande papel na disseminação de notícias e informação. Acompanhando este
meio de comunicação existe também a internet. O primeiro meio de comunicação está
normalmente associado a um público mais velho, enquanto o segundo a um público
mais jovem, isto apesar de televisão e internet se influenciarem mutuamente nas notícias
e temas que consideram ser relevantes (Cottiero et al 2015, 2). Mas a presença do
Estado neste sector é bastante acentuada, destacando por exemplo os canais de televisão
Russia Today ou Rossiya-1, onde as mensagens disseminadas estão de acordo com a
visão do Estado acerca dos assuntos tratados (Cottiero et al 2015, 4).
Dado o posicionamento político da Rússia ser diferente dos países centrais no
sistema-mundo, e em particular no que concerne a questões internacionais, onde a
Rússia se procura afirmar num mundo multipolar (Putin 2007), a comunicação social
russa nas mãos do Estado torna-se na ferramenta fundamental de contestação da visão
predominante propagada pelos países do centro, não só internamente mas também
externamente, determinando e afirmando assim a sua própria agenda política. Sendo
usada pelas elites dominantes como forma de legitimação e de defesa dos seus
interesses, uma necessidade característica de qualquer regime político e, por isso,
também dos regimes burocrático-autoritários, como analisaremos adiante. Esta
característica é, aliás, bem patente se tomarmos em consideração a cobertura feita, por
exemplo, ao conflito ucraniano (Cottiero et al 2015, 5-8) ou as contínuas posições
marcadamente anti-americanas (Cottiero et al 2015, 8-10) e portanto anti-hegemónicas
relativamente à potência central do sistema-mundo. Se seria de esperar que num país
periférico as notícias fossem processadas de acordo com a visão do mundo que o centro
possui, como Galtung afirmava (1971, 93) tal não acontece na Rússia, ou pelo menos
não acontece de uma forma predominante na sua comunicação social. A comunicação
social Estatal assume-se assim como um elemento basilar da afirmação da Rússia no
sistema-mundo, procurando adoptar uma posição independente daquela determinada
pelo centro deste. A utilização do Estado para a competição sistémica é, aliás, uma
prática comum por parte das semi-periferias (Wallerstein 2006, 56-57).
125
À semelhança de outros indicadores já aqui analisados, também a nível cultural a
Rússia revela características em tudo expectáveis de encontrar numa região semiperiférica. A contenção do fluxo cultural existente durante os anos de 1990 é um dos
principais factores que contribuem para esta conclusão. Existe uma clara rejeição dos
modelos ocidentais e a adopção de uma posição contrária à da potência hegemónica e
dos seus aliados, procurando afirmar interna e externamente um conjunto de valores que
são maioritariamente consensuais na sociedade russa. Para isso os meios de
comunicação social na posse do Estado desempenham um papel fulcral, contudo e
apesar de tudo isto, a Rússia não surge ainda como definidora de tendências à escala
global.
4.2.2 – Manifestações da dependência política russa após 1998
Como acima referido, o colapso da URSS foi decisivo para as mudanças
políticas e económicas que a Rússia sofreria nos anos 90. Não obstante, é importante
destacar algumas características marcantes que a Rússia apresentava e que se
assemelhavam àquelas encontradas, no final do século XIX e início do século XX, nos
territórios recém-colonizados ou que haviam ganho recentemente a sua independência.
Quer isto dizer que se tratava de uma vasta região onde as relações capitalistas não
estavam internalizadas e onde a propriedade privada não se encontrava instituída de
forma generalizada. Com a transformação sistémica operada e o rápido processo de
privatização consequentemente desenvolvido na Rússia, significava que novos
territórios se encontravam abertos para a expansão dos mercados capitalistas (Goldman
2004; Souza 2007, 4-6; Nazet 2007, 60-61). Nesta situação, alguns sectores, cuja
capacidade de financiamento própria era insuficiente, passavam agora a contar com
investimento externo, nomeadamente o petróleo e o gás (Ögütçü 2002, 4). Este processo
tomava forma essencialmente através de assistência técnica, empréstimos, garantias ou
ajuda internacional nos diversos sectores e não tanto através de IDE (Wedel 1999, 1),
tendo origem essencialmente nos EUA, que para esse fim faziam uso do FMI (Wedel
1999; Odling-Smee 2006; McClintick 2006).
126
É essencial destacar a influência norte-americana na Rússia, que é evidente se
tivermos em conta o peso que FMI e a Universidade de Harvard (Wedel 1999; OdlingSmee 2006; McClintick 2006), assim como outras organizações ideológicas, fundações
ou instituições de educação, tiveram junto do governo russo, na mudança política e
econяmica em curso no país naquele período, Пaгendo para isso uso de “leРiões de
missionпrios e evanРeliгadores políticos”127 (Cohen 2000), num claro sintoma de
dependência cultural já aqui abordado. Existia uma vontade de replicar na Rússia o que
havia acontecido anteriormente na América Latina e as semelhanças entre os dois casos
adensam-se quando atentamos a Cohen (2006) que afirma que os modelos económicos
de mercado livre e privatizações em larga escala, que desde os finais dos anos de 1980
eram apontados para a Rússia, tinham forte inspiração nos mesmos modelos apontados
na década anterior como solução para o Chile. E os paralelismos não se ficavam apenas
nos modelos económicos, estendendo-se também aos modelos políticos propostos.
Cohen (2006) realça ainda que aqueles que apoiavam Iéltsin eram também admiradores
de Augusto Pinochet, e portanto viam neste um exemplo a ser praticado na Rússia. As
reformas económicas pretendidas para aplicar na Rússia deviam ser suportadas por uma
“mуo de Пerro”, usando para isso “medidas anti-democrпticas”. Paralelismo que
coincide com a nossa hipótese de a Rússia apresentar características em comum com o
modelo burocrático-autoritário e que analisaremos à frente.
Após a crise económica do ano 1998 destaca-se uma mudança na orientação
política, que leva ao afastamento das políticas económicas liberais até aí praticadas
(Sapir 2002, 2). Com esta transformação a Rússia altera também a relação previamente
existente, num processo semelhante àquele verificado nas regiões colonizadas que
haviam Рanho recentemente a sua independência e desiРnado por “ruptura com o pacto
colonial” (Cardoso e Faletto 1977, 16), todavia assumindo que a Rússia possuía a sua
independência política formal. Esta relação é estabelecida tendo em conta que em
determinadas situações a vinculação das economias periféricas ao sistema-mundo se
desenvolve em moldes “coloniais”, enquanto noutros casos o Пaг em termos de
“sociedades nacionais” (Cardoso e Faletto 1977, 12). Este processo tinha origem no
fortalecimento de grupos nacionais a nível interno, que procuravam defender os seus
próprios interesses e que entravam em conflito com os interesses externos, que até aí
dominavam as relações de produção nesses países (Cardoso e Faletto 1977, 20). O que
127
“[…] legions of American political missionaries and evangelists […]” – tradução própria.
127
se encaixaria na lógica apontada por Galtung (1971, 108-109), quando se refere ao
conflito de interesses existente entre o centro do centro e o centro da periferia, podendo
resultar numa luta de libertação de carácter nacionalista por parte dos últimos e assumir
até uma condição populista. Cardoso e Faletto (1977, 20) explicam também que,
aquando dessas alterações, os grupos internos organizavam alianças entre os produtores
nacionais e os grupos oligárquicos. O caso russo surge-nos num formato mais complexo
do que este acima descrito e para evitar equívocos chamar-lhe-emos uma “ruptura com
o vínculo de dominaхуo previamente eбistente”, dentro dos moldes de um país sob
dominação neo-colonial, que não possui a sua autonomia decisória e que pretende
quebrar com esta ligação. Passemos então a analisar as semelhanças.
Durante os anos 90 os oligarcas haviam consolidado o seu poder, fruto do
processo de privatização e consequente apropriação de terras, assim como de
importantes indústrias (Goldman 2004; Odling-Smee 2006, 154). Com o objectivo de
defender os seus interesses e os seus monopólios, estes grupos oligárquicos utilizavam o
seu poder de forma a influenciar o poder político, determinando assim a legislação e a
sua implantação (Hale 2004, 172; Odling-Smee 2006, 154). São exemplos disso as bem
conhecidas ligações de Berezovsky às elites políticas em torno de Yelstin e em
particular no que concerne à ajuda dada a Putin, quando este se candidata pela primeira
vez à presidência russa (Hale 2004, 176; Stuermer 2009, 62).
Putin surge em 1999 como um produto de recurso, construído e apresentado
pelas elites russas, em alternativa às opções políticas para Primeiro-Ministro até aí
proporcionadas e que haviam falhado (Stuermer 2009, 61-62). Putin era a derradeira
hipótese. A escolha recai nele dado o reconhecimento deste possuir a capacidade de
pressionar elementos não apreciados pelo Kremlin (Hale 2004, 176). Daí até se tornar
no “herdeiro de Yelstin”, seria apenas mais um passo (Hale 2004, 1976; Stuermer 2009,
61). E para isso muito contribuiria a Segunda Guerra da Chechénia, iniciada em 1999,
tal como a resposta dada por Putin à mesma (Hale 2004, 177-179). Este conflito iria
consolidar a sua imaРem interna como sendo um “herяi nacional” e “salvador da naхуo
russa”, para o qual a imprensa detida e controlada por Bereгovsky daria muito suporte
(Stuermer 2009, 63). Ao mesmo tempo, um novo partido tomava Пorma, o “Edinstvo”
(Unidade), controlado também pelos oligarcas e pelo Kremlin, e que serviria para
preparar o caminho para a campanha de Putin às presidenciais de 2000 (Idem, ibidem) e
que este ganharia.
128
O resultado dessa vitória eleitoral não seria, no entanto, o inicialmente esperado
pelas elites económicas russas. Vladimir Putin iria reorganizar o aparelho de Estado à
sua maneira, instalando, para isso, pessoas fiéis nos principais cargos do poder
(Bremmer e Charap 2007, 84). O poder ficaria dividido entre três grupos principais,
previamente existentes, e normalmente designados por liberais, tecnocratas e os
“siloviki”128 (Bremmer e Charap 2007, 85). Dentro destes, os últimos são,
provavelmente, o grupo mais poderoso e representam a elite que concentra grande parte
do poder na Rússia. O grupo é constituído fundamentalmente por membros das Forças
Armadas, FSB e outros serviços ligados à área da segurança no Estado (Stuermer 2009,
96), como aliás o próprio nome indica. Ao assumir cargos nas mais variadas e
importantes posições dentro do aparelho estatal russo, procuram concentrar o poder no
Estado, limitando ao mesmo tempo o poder dos oligarcas que não colaborem (Stuermer
2009, 98-99). Controlam não só as estruturas de poder coercivo, como também
estruturas com significativo poder regulador dentro da economia, assim como na área
enerРética e dos recursos (Bremmer e Charap 2007, 86). Dentro desta “elite” eбiste um
Рrupo ainda mais restrito, desiРnado por “clу de Sуo PetersburРo”, e constituído por
velhos aliados de Putin naquela cidade (Stuermer 2009, 102).
Porém, a própria utilização do termo “siloviki” assume proporхões muitas veгes
enganadoras, abrangendo indivíduos que não fazem, nem nunca fizeram, parte das
estruturas de poder coercivo do Estado (Bremmer e Charap 2007, 86), como o caso de
alРuns membros do acima mencionado “clу de Sуo PetersburРo” (Stuermer 2009, 102).
Daí se considerar que os “siloviki” sуo aqueles que se encontram unidos pelas ideias
políticas, interesses e controlo sobre os recursos que possuem em comum, e não tanto
pelo seu passado (Bremmer e Charap 2007, 86). Estas ideias políticas e interesses são,
fundamentalmente, o nacionalismo económico, cultural e religioso, a restauração da
importância russa nos palcos internacionais, a consolidação do poder político e
económico num Estado altamente centralizado e controlado por eles próprios. Os seus
próprios interesses económicos são também relevantes, contudo considera-se que os
recursos à sua disposição são essencialmente focalizados na manutenção do seu poder
dentro da Rússia (Bremmer e Charap 2007, 88-90). Como qualquer estrutura militar
128
– palavra russa que designa aqueles que são provenientes dos serviços secretos, serviços de segurança ou do ramo
militar e que representam o aparelho coercivo do Estado (Bremmer e Charap 2007, 86).
129
este grupo é caracterizado pela alta hierarquização das suas estruturas, existindo vários
níveis de importância entre os seus membros (Bremmer e Charap 2007, 86).
O resultado desta concentração de poder nesta nova elite política provocaria um
confronto com as anteriores elites oligárquicas, que anteriormente detinham a maior
fatia de poder na Rússia. Se anteriormente os oligarcas, como Berezovsky, Abramovich
ou Khodorkovsky, eram protegidos pelo FSB e pelo Estado (Stuermer 2009, 57), agora
passavam a ser considerados seus inimigos, em particular caso os seus interesses
colidissem com os da nova elite. Exemplo disso foi o caso de Khodorkovsky, antigo
director-geral da importante empresa energética Yukos, que em 2003 foi acusado de
fraude fiscal, sendo preso em 2005 e cumprindo nove anos de cadeia, saindo em
liberdade apenas em 2013. Quanto à sua empresa, foi nacionalizada e incorporada na
Rosneft e Gazprom. Estes mesmos que o ajudaram a construir e beneficiavam do regime
russo, passavam agora a ser os que mais se insurgiam contra este, algo que Derluguian e
Wallerstein (2011, 29) descrevem como: “os mais altos chamamentos pelo Estado de
direito e puniхуo dos ‘Рatos Рordos’ normalmente provêm das Пacхões da elite que aРora
se encontram no lado perdedor”129.
Verifica-se então que os grupos de interesse nacionais saem fortalecidos após a
eleição de Putin, mesmo que estes não sejam os antigos grupos oligárquicos russos.
Destaca-se uma nova elite dominante, que na procura de defender os seus interesses,
entra em conflito com a elite económica e política até aí dominante e que era também
aquela que possuía fortes ligações ao exterior, mesmo sendo composta por cidadãos
russos. Esta anterior elite dominante, ao promover a integração aprofundada da Rússia
no sistema capitalista e, por consequência, no próprio sistema-mundo, assume um
carпcter que se encaiбa naquilo que Theotяnio dos Santos deПine por “sяcios menores
do imperialismo” (2011 [1978], 76). O que nуo siРniПica que a nova elite nуo procure
cumprir o mesmo propósito. Como observámos, os novos grupos de interesse nacionais
não procuram retirar a Rússia do sistema, apenas procuram uma integração diferente,
mais fechada, em que o Estado (o aparelho por eles controlado) administra sectores
considerados estratégicos, numa visão mais mercantilista, não obstante, sem deixar de
129
“The loudest calls for the rule of laа and punishing of ‘fat cats’ typically come from the elite factions аho currently find
themselves on the losing side” – tradução própria.
130
participar no sistema de divisão internacional do trabalho, isto é, sem deixar de
participar no sistema capitalista per se. Este processo continua a desenvolver-se através
de uma relação com as elites dominantes do sistema-mundo e que é promovida pela
nova elite russa. E, apesar de este vínculo ser de tipo diferente daquele que existia
previamente, a elite russa continua a desempenhar aquilo que Galtung (1971, 81)
descreve como uma “relaхуo de tipo soПisticado […] para beneПício mútuo de
ambos”130, onde o centro da nação periférica actua como testa-de-ponte do centro da
nação centro, dado o seu papel na manutenção das relações de dominação sistémicas
existentes.
Não obstante, podemos considerar que existiu uma ruptura com o vínculo de
dominação previamente existente, havendo assim uma nova aliança nas estruturas de
poder russas, que permitiu um novo alinhamento nas relações de poder internas, assim
como um fortalecimento do Estado nacional. O que levou a que a Rússia assumisse uma
característica encontrada nas nações semi-periféricas, onde a principal classe
exploradora é de origem doméstica, contrastando com a realidade das periferias onde a
classe exploradora é fundamentalmente estrangeira (Babones e Babcicky 2011, 2). Até
aí, a classe oligárquica dominante possuía fortes conexões com interesses externos,
como forma de a defender e legitimar. Para isso foi fulcral o controlo do sector
exportador e outros sectores estratégicos por parte da nova elite. As probabilidades de
êxito de impor uma nova ordem nacional na Rússia e que impedissem esta de regressar
a uma economia planificada e centralizada com os seus meios de produção socializados
(um receio recorrente até meados dos anos 90 (Goldman 2004; Odling-Smee 2006,
162), derivavam em Рrande parte da “situaхуo de mercado” Рerada pelo Рrupo que
controlava as exportações ou o sector produtivo dominante – aspecto também destacado
por Cardoso e Faletto (1977, 20) em relação às economias que haviam quebrado o pacto
colonial. Estes autores (1977, 20) aПirmam, relativamente a estas economias, que “neste
sentido a organização de uma administração e de um exército nacional, não local ou
caudilhesco, foi decisiva para estruturar o aparelho estatal e permitiram a transformação
de um poder de facto numa dominação de jure”131. E aqui podemos destacar a
130
“It is a sophisticated type of dominance relation […] for the joint benefit of both.” – tradução própria.
131
“En este sentido la organización de una administración y de un ejército nacional, no local o caudillesco, fue decisiva para
estructurar el aparato estatal y permitir la transformación de un poder de facto en una dominación de jure […]” – tradução
própria.
131
importância anteriormente ilustrada, que os quadros ligados ao FSB132 e às elites
militares possuíram na estabilização do aparelho de Estado russo (Goldman 2004)133.
Esta captura do aparelho de Estado por uma elite é apontada por vários autores como
um elemento que pode potenciar a ascensão de países periféricos à semi-periferia,
contudo será esta mesma elite dominante que impedirá que o Estado ascenda ao estatuto
de centro no sistema-mundo (Babones e Babcicky 2011, 14; Ruvalcaba 2013, 147-149).
Por isso mesmo deve ser cuidada qualquer leitura que considere que o Estado russo é
sólido internamente. Pelo contrário, pois a necessidade encontrada de se fortalecer é
exactamente o reflexo da sua posição periférica em relação ao centro (Derluguian e
Wallerstein 2011, 4).
4.2.3 – Rússia: um exemplo de um regime burocrático-autoritário?
Existe uma crença, por parte dos defensores da Teoria da Modernização, de que
níveis mais avançados de industrialização e livre comércio
promovem o
desenvolvimento de tendências mais democráticas e igualitárias dentro de uma dada
sociedade. Não obstante, a realidade tem demonstrado não existir uma ligação assim tão
directa entre desenvolvimento e democracia. Pelo contrário, a história tem até
demonstrado que níveis mais elevados de industrialização e liberdade comercial podem
levar ao “colapso da democracia e a uma crescente desiРualdade”134 (Collier ed. 1979,
3-4; também analisado por Hirschman 1979, 62). Quando foi acima apresentado o que
era o modelo burocrático-autoritário (B-A), concluiu-se que a definição do modelo de
Estado B-A não é unânime entre os diversos autores que procuram trabalhar o tema. Por
conseguinte, a aplicação do próprio modelo a outros contextos e regiões, como é aqui o
caso, é também algo que incorpora bastantes divergências e dúvidas. Mesmo assim, se
relembrar-mos a deПiniхуo inicial de O’Donnell, denotamos eбistirem alРumas
semelhanças que nos fazem evocar o caso russo, considerando o que já foi tratado até
aqui. O’Donnell descreveu o modelo de Estado B-A como aquele onde existe exclusão
de vários sectores políticos relativamente ao aparelho do Estado e em que as figuras
132
Ф
133
– Serviço Federal de Segurança.
Este aspecto será abordado de forma mais detalhada quando analisarmos a dependência política russa e o modelo Burocrático-
Autoritário.
134
“[…] the collapse of democracy and an increase in inequality.”- tradução própria.
132
centrais deste são uma tecnocracia militar e civil, que colabora intimamente com o
capital externo com vista a promover uma industrialização mais avançada (Collier ed.
1979, 24-25). Tendo em conta esta definição destacam-se claramente semelhanças com
o nosso caso de estudo. Isto é, a Rússia apresenta-se como um Estado onde as figuras
centrais são uma tecnocracia militar e civil, que restringe a acção de outros sectores
políticos. O que nos suscita mais dúvidas é a ligação íntima entre o aparelho do Estado e
o capital externo mencionada na definição, em particular se tivermos em conta os níveis
de IDE existentes no país, tal como a sua evolução. Passemos então a abordar esta
temática mais aprofundadamente, fazendo uso desta curta definição, mas também dos
pontos fulcrais apontados por vários autores que se debruçaram sobre o assunto,
comparando ao mesmo tempo com a realidade russa.
Os autores que trabalharam o modelo B-A, normalmente, tomavam por exemplo
a realidade latino-americana, afirmando que esta havia passado por duas fases antes de
culminar no Estado B-A. Estas fases eram o Estado oligárquico e o Estado populista
(Collier ed. 1979, 23-25), como visto anteriormente. Para Cardoso e Faletto (1977, 1617) a primeira fase iniciava-se, seРundo, através da “ruptura com o pacto colonial” nos
países latino-americanos e com a sua independência formal. A segunda fase baseava-se
numa realidade em que existe alguma forma de democracia e representação dos vários
sectores sociais de um dado país e onde a política económica procurada se centra na
substituição de importações (Idem, ibidem). Para O’Donnel os reРimes B-A eram um
resultado directo da exaustão do modelo de substituição de importações, que levava a
uma profunda crise económica, e por isso seria também um resultado directo dos
regimes populistas (in Collier ed. 1979, 26). E a solução económica encontrada pelas
novas elites políticas desses países estaria num processo de “deepeninР”, em que a
produção se centraria em bens semi-processados e de capital (Idem, ibidem). Contudo,
nem todos os autores suportam esta relação (Kaufman in Collier ed. 1979, 247-248).
Outro processo que é característico da fase B-A é a aposta na produção de bens de
consumo duráveis, como automóveis e armamento, procurando um desenvolvimento
económico semelhante às economias ocidentais já desenvolvidas (Hirschman in Collier
ed. 1979, 79-80).
Transportando estas fases e características para o caso russo conseguimos traçar
alguns paralelismos entre a fase oligárquica e a Rússia dos anos 90, onde os oligarcas
russos do petróleo e de outros sectores chave da economia, associados maioritariamente
133
às exportações, juntamente com entidades externas, comandavam os destinos do Estado
em seu favor, procurando aprofundar a integração da Rússia no sistema-mundo
capitalista. Contudo, as parecenças com esta fase ficam-se por aqui. Nesta fase de
desenvolvimento, as nações recentemente independentes da América Latina
encontravam-se unidas ao sistema-mundo apenas em termos económicos e não tanto em
termos políticos. Mas no caso russo, como vimos anteriormente, a interferência norteamericana era tão grande e os interesses políticos e económicos tão interligados que a
Rússia evidenciava algumas características que se assemelhavam àquelas encontradas
nas colónias latino-americanas analisadas por Cardoso e Faletto (1977), isto apesar da
sua independência formal. E enquanto Cardoso e Faletto (1977, 16-17) identificavam a
classe oliРпrquica como o movimento impulsionador da “ruptura colonial”, no caso
russo a necessidade de impedir o retorno a uma economia com os meios de produção
socializados, fez com que a relação servil e dependente, face ao aliado externo, fosse
mantida.
Segundo Stephen Cohen (2006), vemos que os enviados norte-americanos à
Rússia nos anos 90 e que apoiavam Yeltsin eram também admiradores de Augusto
Pinochet, vendo no modelo político-económico praticado no Chile como algo a emular
na Rússia. Assim como as reformas a ser aplicadas deveriam ser suportadas por uma
“mуo de Пerro”, através de “medidas anti-democrпticas”. É importante reПerir, a título de
comparação, que o regime de Augusto Pinochet é apontado pelos teóricos do modelo BA como um dos exemplos deste tipo de regimes (Cardoso in Collier ed. 1979, 24;
Collier ed. 1979, 8; Kaufman in Collier ed. 1979, 179; O’Donnell in Collier ed. 1979,
285). Mas olhando para Yeltsin observamos que este não se tornou no tão desejado
estabilizador da situação política e económica, apesar de ter sido um grande
impulsionador do tipo de medidas pretendidas ao longo do seu período de governação
(Idem, ibidem). A crise instalada no final dos anos 90 abria assim lugar à necessidade
de encontrar uma solução que correspondesse de forma mais completa às espectativas
iniciais. E essa resposta, como também já vimos, surgiu na figura de Putin.
Não obstante, apesar das semelhanças existentes entre a fase oligárquica nos
países da América Latina e a Rússia, não se consegue vislumbrar nesta última uma fase
correspondente à fase populista. A transição ocorrida entre 1998-2000 aparenta saltar
esta fase, ou pelo menos esta não teve tempo de se desenvolver e assumir uma forma
clara e explícita, passando imediatamente para aquilo que se configura ser a fase B-A
134
russa. Mas se usarmos a relaхуo entre substituiхуo de importaхões e “deepeninР” de
O’Donnell (in Collier 1979, 26), tal como a aposta em bens de consumo duráveis, e
tendo em conta o desenvolvimento industrial e económico russo, vemos que a Rússia
procura alcançar estes objectivos normalmente associados com regimes B-A (Sputnik
News 2015a; Medvedev in Russia Today 2009). Aquilo que podemos concluir até aqui
é que, apesar de encontrarmos parecenças, a Rússia não passa por processos totalmente
semelhantes de causalidade normalmente apontados para a formação de um regime BA, como os que são encontrados na realidade latino-americana trabalhada pelos autores
do modelo B-A nos anos de 1970, assumindo até aqui bastantes características próprias.
Continuemos então a analisar se as características evidenciadas pelo regime russo actual
correspondem com aquilo que se define ser um regime B-A.
De acordo com Cardoso (in Collier ed. 1979, 52) os regimes B-A procuram
inserir-se no sistema internacional tentando aproveitar possíveis oportunidades que se
lhe afigurem proveitosas. Para isso estes regimes celebram acordos com empresas
transnacionais, afirmando servir o interesse geral da nação. Porém, ao longo do tempo,
cimenta-se como óbvia a ideia de que o objectivo de servir os interesses da população
não é a principal finalidade, mas sim o fortalecimento do Estado e da sua estrutura
burocrática. Este é, aliás, um aspecto que facilmente se destaca quando observamos o
comportamento da elite russa dominante e a sua acção no Estado (Bremmer e Charap
2007). Mas na aПirmaхуo que vimos anteriormente de O’Donnell, este Пrisava
claramente a ligação com o capital externo. No caso russo esta ligação é
significativamente mais ténue e difusa. Em vez disso observa-se uma forte participação
estatal na economia, assumindo a liderança na intervenção em vários sectores que
considera serem estratégicos. Cardoso (in Collier ed. 1979, 53) afirma que no Estado BA as empresas estatais assumem também um papel importante. Não com um objectivo
de instaurar um regime de capitalismo de Estado, mas como forma de facilitar o
desenvolvimento capitalista nessa região, assim como reforçar a posição daqueles que
se encontram no poder. Na Rússia a realidade observável remete-nos para esta
afirmação, em particular se tivermos em conta alguns aspectos aqui trabalhados e
também apontados por vários autores, como Sapir (2013), Nazet (2007, 57) e Bremmer
e Charap (2007), onde o Estado detém várias empresas transnacionais em sua posse e as
usa em defesa dos seus interesses. Assim, se tivermos em conta a relação entre o capital
externo e a realidade russa, parece destacar-se uma característica inovadora
135
relativamente aos regimes B-A na América Latina. Ou seja, o Estado russo possui
também ele uma extensiva relação com empresas transnacionais monopolistas, contudo
neste caso estas são maioritariamente nacionais e detidas pelo próprio Estado. Isto
talvez seja explicado tendo em conta a acumulação de capital à disposição destas
empresas e a fase de desenvolvimento em curso no país, o que não acontecia nas suas
semelhantes latino-americanas. Desta forma, o aparelho burocrático russo não
encontrou uma necessidade de submissão a ambições externos às suas, à semelhança do
que acontecia com os seus congéneres latino-americanos, podendo assim seguir uma via
de defesa dos seus interesses bem mais independente e desligada desses interesses
externos, colocando até restrições à acção destes internamente.
Para além da aПirmaхуo anterior de O’Donnell, este estendeu a deПiniхуo de
Estado B-A a mais oito pontos, abordados anteriormente nas páginas 58 e 59.
Atentemos então a cada um deles.
No primeiro ponto deПinido por O’Donnell, este aПirma que o Estado é o Рarante
e organizador da dominação de classe existente relativamente à burguesia oligopolizada
e transnacionaliгada (O’Donnell in Collier ed. 1979, 292). Transitando então para o
caso em questão, notamos que o aparelho de Estado russo assume uma forma mais
aprofundada desta realidade. A burguesia oligopolizada e transnacionalizada, formada
durante os anos 90, apesar de continuar a existir, deixou de possuir o papel
preponderante na definição da política corrente. Porém, é importante destacar que se
gerou uma nova burguesia, também ela oligopolizada e transnacionalizada, e que é
agora formada pelos mesmos que tomaram as rédeas do poder político e das instituições
a este ligadas (Bremmer e Charap 2007, 86-89). Esta usa o aparelho de Estado,
aproveitando o seu poder coercivo, para impor uma dominação de classe favorável a
esta mesma nova burguesia. Sendo assim, pode-se afirmar que o primeiro aspecto
apontado por O’Donnell, corresponde р actual circunstância russa.
No segundo ponto é destacado que o Estado tem os seus alicerces fundamentais
de funcionamento no aparelho coercivo que o constitui. Ao mesmo tempo existe uma
Пorte tendência das suas elites para a normaliгaхуo da economia (O’Donnell in Collier
ed. 1979, 292). E também aqui o caso russo demonstra paralelismos evidentes. A subida
de Putin ao poder foi marcada pelo seu carácter de recurso, em grande parte dado o
reconhecimento da sua habilidade e predisposição para pressionar indivíduos e
136
organizações que fossem adversos à estrutura política e económica até aí dominante
(Hale 2004, 176). Mas também a sua governação desde então tem reforçado ainda mais
esta natureza coerciva. O círculo de poder desenvolvido em sua volta, baseado
essencialmente em torno dos chamados “siloviki” é um claro eбemplo do que é aqui
tratado. Ao mesmo tempo os aspectos de normalização da economia assumem ser um
forte componente dos objectivos desta elite dominante.
Kaufman apontava que um traço comummente partilhado entre os regimes B-A
é que estes haviam herdado, nos seus respectivos Estados, uma situação económica de
crise (in Collier ed. 1979, 168 e 176). Nos casos analisados da América Latina, os
regimes políticos precedentes, denominados como populistas, haviam colapsado dada a
sua incapacidade em lidar com a crise económica que enfrentavam. A resposta dada
pela elite dominante, receosa de movimentações sociais que colocassem em causa o seu
poder, era o Estado B-A (Hirschman in Collier ed. 1979, 71). Por conseguinte, o
discurso da “normaliгaхуo” econяmica surРia como Пerramenta Пundamental na resposta
a essa mesma crise. Esta resposta vem normalmente associada a medidas de austeridade
económica, de forma a combater a dívida pública externa e a inflação, que ameaça o
valor da propriedade (Kaufman in Collier ed. 1979, 172; Hirschman in Collier ed. 1979,
76). A preocupação evidenciada na Rússia face a um possível retorno a uma economia
planificada, dado o descrédito a que as reformas até aí desenvolvidas haviam sido
votadas (Goldman 2004; Smee 2006, 162), obrigou a uma resposta em tudo semelhante
àquela encontrada na América Latina. Significa isto que para manter as relações de
produção, até aí dominantes, havia que tomar um rumo autoritário que impedisse os
avanços dessas movimentações sociais contrárias à ordem instalada, tal como promover
uma recuperação económica que colocasse termo à crise até vivida. A resposta surgiu
sob a forma de um antigo oficial dos serviços secretos do FSB.
Esta tentativa de conter os movimentos sociais contrários ao poder instalado,
leva-nos ao terceiro ponto destacado por O’Donnell (in Collier ed. 1979, 292), ou seja, a
exclusão política de um sector popular anteriormente activado. Na Rússia, o primeiro
passo foi blindar o acesso aos postos de chefia dentro do aparelho de Estado, impedindo
que influências externas a este, nomeadamente dos grandes negócios que até aí
compravam os favores administrativos em seu benefício (Bremmer e Charap 2007, 84),
e colocando nestes cargos pessoas de confiança à elite governativa. Apesar de neste
caso em concreto não podermos aqui falar de um sector propriamente popular, dado
137
aqueles a quem o acesso à política é negado se tratarem duma elite influente no governo
anterior, falamos no entanto da exclusão de um sector que não faz coincidir os seus
interesses com os da elite dominante naquele momento. Outro método de exclusão
utilizado, e aqui sim relativamente aos sectores populares, foram as leis anti-greve
(Obrazkova 2015) e anti-protesto (Demirjian 2014) aprovadas desde a eleição de Putin
em 2000, para além das próprias acções de repressão e violência policial durante
manifestações (Sandford 2011). Este esforço de exclusão tem como objectivo a
imposição de uma ordem sobre a sociedade determinada pelo regime em vigor. Através
desta dominação social procura-se Пorхar uma “normaliгaхуo” dentro dos padrões
aceites pelo governo, que não coloque em causa o seu poder e os interesses que
representa (O’Donnell in Collier ed. 1979, 292; Kaufman in Collier ed. 1979, 166). E
para isso o uso da repressão é um fenómeno recorrente neste tipo de regimes, sendo a
sua resposta às pressões sofridas internamente e procurando justificar estas acções em
nome da “seРuranхa nacional” (Cardoso in Collier ed. 1979, 49), na Rússia esta
realidade ficou bem mais patente após a revisão ao Código Criminal em 2012 (Roudik
2012).
O quarto ponto indicado por O’Donnell encontra-se intimamente relacionado
com o anterior, na medida em que sugere a supressão da cidadania, onde se insere a
supressão das instituições da democracia, tal como a negação da dimensão classista
representada pelo sector popular. Como visto no parágrafo anterior, a supressão ou o
condicionamento de instituições na Rússia é um processo utilizado pelo poder
governativo como arma de contenção de movimentações populares contrárias aos seus
interesses. Este processo já é, aliás, utilizado desde os tempos de Iéltsin, como quando
em 1993 mandou bombardear o Congresso dos Deputados do Povo da Rússia, o
parlamento russo na altura, dissolvendo de seguida este órgão e substituindo-o,
inconstitucionalmente, pela Assembleia Federal da Rússia (Cohen 2000). Ou através
das medidas de negação de protecção e direitos sobre os trabalhadores, num momento
de forte convulsão económica que levou uma elevada percentagem de cidadãos russos à
pobreza (Idem, ibidem). O processo que se seguiu tomou um rumo de continuidade
desta “normaliгaхуo” da ordem social. Eбemplo disso sуo, para além das previamente
mencionadas legislações impeditivas ou condicionadoras de movimentações sociais
contrárias, os apelos de Putin para que os sindicatos cumpram um papel colaborativo
com o governo e que não funcionem como instrumentos de tensão social ao
138
reivindicarem o que “nуo pode ser cumprido” (Ashаin e Clarke 2002, 60). Estes
exemplos revelam restrições impostas pelo governo às actividades políticas de
organizações externas ao aparelho político vigente. O’Donnell suРere também que o
regime B-A se apresenta como conПrontando uma “naхуo doente”, em Пunхуo da crise
que lhe precede, e com o objectivo de a “curar” invoca no seu discurso o “interesse
Рeral”, procurando identificar este interesse geral com os interesses do próprio aparelho
estatal e com os seus interesses (O’Donnell in Collier ed. 1979, 293-295). E na Rússia,
com o seu Estado centralizado e organizado em torno das suas estruturas de segurança e
defesa, tal como de outros sectores envolvidos, a sua burocracia opera nos seus cargos
de forma a dirigir a política consoante os seus objectivos (Bremmer e Charap 2007, 88).
Para isso contribui também de forma decisiva o controlo por parte do Estado dos meios
de comunicação, promovendo através destes ideias que sirvam como deflectoras de
pressões internas. A título de exemplo relativamente a essas ideias temos o caso das
tradições, como visto anteriormente. Mas o Estado B-A ao promover um padrão de
acumulação de capital altamente concentrado e monopolizado, representado pelas suas
oligarquias, serve também como sistema de exclusão económica face ao sector popular,
levando a elevadas desigualdades na distribuição da riqueza. Este aspecto de exclusão
econяmica do sector popular corresponde ao quinto ponto descrito por O’Donnell (in
Collier ed. 1979, 293). E, no que concerne a este aspecto, o caso russo já foi
empiricamente tratado anteriormente neste trabalho.
No sexto ponto é afirmado que o Estado B-A “corresponde e promove uma
crescente transnacionalização da estrutura produtiva, resultando numa maior
desnacionaliгaхуo da sociedade”135 (O’Donnell in Collier ed. 1979, 293). O autor
acrescenta que o processo de privatização é característico deste tipo de regimes
(O’Donnell in Collier ed. 1979, 295). Este é, porém, um aspecto em que no caso russo o
Estado parece exercer forte influência de forma a restringir este tipo de processo.
Exemplo disso é a crescente intervenção estatal na economia russa desde 2000, como
também já vimos atrás, quando analisámos as questões da dependência económica.
O Estado procura despolitizar as questões sociais fazendo uso de uma retórica
racionalista, objetivista e tecnocrática. O objetivo deste tipo de argumentação é
completar o processo de exclusão dos sectores populares, dando-lhe uma legitimidade
135
“It corresponds to, and promotes, an increasing transnationalization of the productive structure, resulting in a further
denationalization of society […]” – tradução própria.
139
que suporte a sua luta contra estes, que considera serem “irracionais” e “prematuros”
nas suas reivindicaхões (O’Donnell in Collier ed. 1979, 293), ao mesmo tempo que
procura um “consenso tпcito” da populaхуo (O’Donnell in Collier ed. 1979, 296). O
pedido de Putin aos sindicatos é um exemplo. Mas também a própria estruturação da
sua elite no poder (Bremmer e Charap 2007), assim como dos discursos públicos desta
(Russia Today 2009). E este é o sétimo ponto indicado por O’Donnell.
O oitavo, e último ponto, descreve o culminar do processo de afunilamento das
instituições públicas num Estado B-A, após as restrições impostas ao sector popular.
Isto é, aqueles que têm acesso aos mais altos cargos do Estado e das suas instituições
são os mesmos que se encontram no topo da pirâmide de poder, sendo representados
pelas elites de organizações públicas ou privadas, em particular pelo aparelho
securitпrio do Estado e de Рrandes companhias oliРopolistas (O’Donnell in Collier ed.
1979, 293). O exemplo dos siloviki, que vimos acima, aponta o paralelismo entre o caso
russo e a realidade aqui tratada, onde este mesmo grupo é composto pelas elites das
forças de segurança russas, assim como por membros de grandes grupos económicos,
públicos ou privados (Bremmer e Charap 2007).
Nos casos latino-americanos havia uma situação de partidos únicos, assim como
uma suposta postura anti-ideológica, procurando separar a estrutura governativa de
qualquer dialéctica política e assumindo uma postura totalmente tecnocrática, sendo esta
a ideologia oficial (Cardoso in Collier ed. 1979, 43). O que acaba por diferenciar a
Rússia dos casos latino-americanos nestes pontos anteriormente mencionados é a
manutenção de um sistema pluripartidário, com eleições que decorrem dentro de moldes
em muito semelhantes àqueles encontrados em outras democracias liberais, apesar de
alegados casos de corrupção e ilegalidades lhe serem associados (Bershidsky 2016). O
domínio por parte das estruturas de poder instaladas tem sido crescente desde o ano
2000, quer em termos de assentos na Duma quer na Presidência, sendo um regime com
elevados índices de popularidade mesmo em contexto de crise (Russia Today 2016a).
Significa isto que existe uma base de legitimação por parte da população russa em
relação a esta elite. Mas a diferença fica-se apenas pela fachada democrática existente
na Rússia. Pois a postura anti-ideológica e tecnocrática é também aqui adoptada, assim
como um discurso que a procura legitimar (Sputnik News 2016c) sob uma forma
orаelliana de “neаspeak” (Hobsbaаm 2008, 52). Esta tecnocracia é legitimada através
140
do arРumento da “eПicпcia do seu trabalho, em veг da lealdade a um ou outro Рrupo”136
(Sputnik News 2016c). E as tecnocracias são conhecidas pelo seu pragmatismo e
racionalismo na defesa da modernização capitalista (Kaufman in Collier ed. 1979, 289),
por possuírem baixa tolerância a divergências políticas, assim como aos resultados das
crises económicas, olhando para as movimentações populares como obstáculos ao
crescimento económico (Cardoso in Collier ed. 1979, 27).
Como vimos aqui, o regime político russo em vigor possui muitas características
em comum com os regimes Burocrático-Autoritários da América Latina do século
passado, apesar de não partilhar de toda a causalidade que lhe dá origem. Em ambas as
realidades encontram-se o uso da repressão, e sem fazer aqui uma análise que
quantifique os graus atingidos; colocação em prática de políticas tecnocráticas, em
particular no âmbito económico; e partilha de uma forte intimidade com grandes
empresas transnacionais monopolistas, apesar de no caso russo estas terem a sua origem
internamente, ao contrário dos casos latino-americanos. Mas se a Rússia partilha estas
características então também deverá partilhar das suas contradições, fragilidades e
vulnerabilidades (Collier ed. 1979, 392). Estas contrapartidas envolvem não só aspectos
económicos, e que também são comuns a outros regimes políticos que participam no
sistema-mundo, mas fundamentalmente problemas políticos. Em particular através da
descredibilização do regime aos olhos da população a longo prazo e especialmente nos
sectores de massas onde reúne o seu apoio (Idem, ibidem). Mesmo existindo um sistema
pluripartidário na Rússia, o desgaste das suas instituições pode atravessar um processo
semelhante àquele pelo qual os regimes B-A da América Latina passaram. No caso
destes Пoi o desaparecimento dos sectores “subversivos” dentro das suas Пronteiras que
ditou o descrédito da repressão ao longo do tempo (Collier ed. 1979, 393), sendo que
estes eram o inimigo comum que fazia reunir apoio em torno do governo. Mas no caso
russo, a solução aparentemente encontrada de momento, após o esmorecimento da
questão do Norte do Cáucaso nos últimos anos, surge sob a forma de um inimigo
externo. Especialmente considerando os acontecimentos mais recentes, em particular
com a questão ucraniana, onde a Rússia procura defender a sua esfera de influência na
136
“[…] most important for them is the effectiveness of their work, rather than loyalty to one group or another.” – tradução própria.
141
Europa de Leste através da manutenção de um regime favorável na Ucrânia, tal como
em idênticas disputas de esferas de influência com os EUA/ OTAN, quer na Europa de
Leste, quer noutras regiões do globo. O principal objectivo é a promoção de uma
imagem, interna e externamente, de pertença por parte da Rússia ao grupo dos
principais pólos num mundo crescentemente multipolar, ideia que procura representar o
país como um dos “centros” no sistema-mundo.
4.3 – Os reflexos da dependência russa na sua política externa
Tendo previamente analisado a influência da praxis imperialista nos domínios
sociopolíticos e culturais internos na Rússia e em que medida esta última incorpora as
decisões provenientes do exterior, importa finalmente abordar as suas consequências ao
nível da política externa, assim como perceber se a Rússia consegue produzir decisões
que sejam seguidas por outros. Para isso é necessário analisar o comportamento da
Rússia no sistema-mundo, compreendendo qual a sua posição sistémica enquanto
potência militar e quais os seus enfoques doutrinais neste campo, assim como de que
forma esta se relaciona com os restantes países, quer directamente, quer através de
organizações internacionais de que faça parte. A compreensão destes relacionamentos
permitir-nos-á, também, ter uma visão mais clara sobre as dinâmicas da crescente
multipolaridade do sistema internacional e do papel russo neste processo.
4.3.1 – A dependência militar e os seus resultados na acção externa da
Rússia
Quando se trata da temática imperialista, os processos militares surgem como os
mais óbvios, dada a sua natureza mais directa, evidente e difícil de esconder. Contudo,
esta vertente é apenas a que mais se destaca dentro dos cinco processos que constituem
o imperialismo e é normalmente a arma de último recurso. Relembrando a afirmação de
Galtung, já aqui mencionada, este diг que “apenas o imperialismo imperПeito e amador
necessita de armas; o imperialismo profissional baseia-se na violência estrutural em vez
142
de violência directa”137 (1971, 91). E, como vimos também acima, para um país ser um
centro em aspectos militares necessita previamente de uma estrutura económica capaz
de suportar todo o aparelho militar, que lhe permita destacar-se dentro do sistemamundo (Galtung 1971, 92). Ou seja, também aqui a divisão internacional do trabalho
desempenha um papel de grande relevância, pois apenas um país capaz de gerar
equipamentos de alta tecnologia e que possua fábricas capazes de produzi-los em
quantidades suficientes, pode ser uma grande potência militar. A necessidade de uma
estrutura económica que opere numa escala de valor elevada é fundamental para essa
produção e também para o sustento de tais forças. E, ao mesmo tempo, também só esses
países é que possuem uma estrutura social compatível e suficientemente desenvolvida
para suportar um exército moderno, treinado e disciplinado. Se a capacidade económica
não se verificar, o que normalmente ocorre é uma dependência face àqueles que a
possuem, através da importação de equipamentos e conhecimentos. E essa necessidade
é tanto maior quanto a constante evolução tecnológica (Idem, ibidem). Daí não ser
esperado que um país que, dentro da estrutura da divisão internacional do trabalho, se
situe numa gama de produção associada a produtos de baixo valor, seja capaz de
suportar um exército suficientemente grande, moderno e treinado que lhe possibilite ser
um centro militar.
Todavia, apesar da Rússia não se situar como um centro económico no sistemamundo, esta surge-nos normalmente referenciada como a segunda potência militar no
mundo (Global Firepower 2016; Credit Suisse 2015, 41)138, tal como também em 2015
era o quarto país com maiores gastos militares (SIPRI 2016a). Para além disto a Rússia
situava-se, também em 2015, como o segundo maior exportador de material militar no
mundo (SIPRI 2016b). Se o primeiro e terceiro aspectos se explicam dadas as elevadas
quantidades de material militar herdado da ex-União Soviética e que ainda hoje fazem
parte dos seus arsenais, incluindo as armas nucleares, assim como os centros de I&D e
indústrias de defesa, factores que permitiram à Rússia se manter até hoje como a
segunda potência militar no mundo. O segundo aspecto é explicado pela importância
que as elites políticas russas dão à manutenção de uma força militar considerável e a sua
137
“Only imperfect, amateurish imperialism needs аeapons; professional imperialism is based on structural rather than direct
violence.” – tradução própria.
138
Inclui-se este tipo de rankings mesmo tendo em consideração todas as suas limitações em quantificar o poder militar de um país,
alРo que enРloba uma compleбidade muito superior aos “mais de 50 Пactores” utiliгados para compilar o ranking da Global
Firepower e ainda maior no caso das seis variáveis relativas ao ranking do Credit Suisse.
143
modernização, bastando olhar para o crescimento do orçamento da defesa desde 1998
(SIPRI 2016c) e em particular como este não acompanha o crescimento do PIB (World
Bank 2016a).
Tem sido dada uma particular atenção para reformar e reforçar as forças armadas
após a Guerra Russo-Georgiana de 2008 (Kosnik 2016, 145). Onde, apesar da clara
vitória da Rússia, várias foram as deficiências operacionais identificadas e que era
urgente corrigir, assim como outras lições que foram retiradas do conflito (Kosnik 2016,
146; Giles 2015, 3). Com o objectivo de alterar esta realidade foi lançado um ambicioso
programa de moderniгaхуo das Пorхas armadas intitulado de “Perspectiva Futura das
Forças Armadas da Federação Russa e Prioridades para o seu Desenvolvimento para o
Período de 2009-2020”139, cujo objectivo era elevar a percentagem de equipamento
moderno dos cerca de 10% existentes em 2009 para cerca de 70% até 2020, assim como
aumentar o grau de prontidão e operacionalidade das suas forças (The International
Institute for Strategic Studies 2010, 211-213)140. Este processo decorre maioritariamente
com recurso às indústrias e tecnologias internas, mesmo apesar dos crescentes
problemas neste sector (Kosnik 2016, 155-158). Os primeiros resultados evidentes desta
reforma foram vistos aquando da ocupação da Península da Crimeia em 2014, mesmo
que não possibilitem observar o impacto geral das reformas operadas (Giles 2016, 16;
Golts e Kofman 2016, 9-10). Não obstante, foi clara a capacidade de envio de tropas e a
organização evidenciada na sua deslocação no terreno, algo que não se verificou, por
exemplo, aquando da Segunda Guerra da Chechénia (Golts e Kofman 2016, 9). As
operações na Síria vêm também trazer uma melhor compreensão às novas capacidades
adquiridas pelas forças russas, onde se afirmaram capazes de manter um ambiente de
elevada intensidade de operações aéreas, semelhantes àqueles observados nas forças
ocidentais (Idem, 10-11).
A doutrina militar russa define, como uma das principais ameaças à Rússia, a
intensificação dos conflitos regionais à sua volta (President of the Russian Federation
2015), o que se confirma tendo em conta os mais recentes conflitos em que a Rússia se
tem encontrado envolvida. Daí notar-se uma crescente prioridade na utilização de forças
139
140
В
Ф
ч
2009-2020
.
Considera-se que em 2015 a percentagem de equipamento moderno se situe nos 47,2%, ou seja, 97% do esperado até àquele ano
(Sputnik News 2016a). Mesmo duvidando do cumprimento total do programa (Golts e Kofman 2016, 7; The International Institute
for Strategic Studies 2016, 171) é ainda assim assinalável o processo de reequipamento até aqui alcançado (Giles 2016, 13).
144
especiais ou outras “Forхas de Reacхуo Rпpida” com enПoque na projecхуo de poder,
isto é, alta mobilidade estratégica, elevados níveis de prontidão e elevada capacidade de
combate (Golts e Kofman 2016, 9-12; The International Institute for Strategic Studies
2016, 165). A sua doutrina refere ainda a decrescente probabilidade de uma guerra em
larga escala, que recorra a utilização maciça de armas convencionais e nucleares,
contudo sem descartar esta hipótese (President of the Russian Federation 2015). Toda
esta percepção é desenvolvida considerando um mundo crescentemente multipolar
(Idem).
A Rússia tem assim vindo a afirmar-se como uma potência regional, que mesmo
sendo incapaz de competir abertamente com a OTAN, e os EUA em particular,
consegue ainda assim operar nas suas próprias imediações, como as intervenções na
Geórgia e Ucrânia evidenciam, tal como continua a demonstrar uma maior capacidade
militar relativamente a qualquer membro da OTAN individualmente, exceptuando os
EUA141 (Giles 2016, 17; Gressel 2015, 5). Para além disso evidencia também a
capacidade de manter forças em intensas operações de combate fora da sua zona de
vizinhança directa, como no caso da Síria, porém numa escala relativamente pequena. E
mesmo não possuindo uma economia que opere numa escala de valor elevado, quando
comparada com outras economias desenvolvidas, consegue ainda assim manter umas
forças armadas relativamente modernas, treinadas e em quantidades consideráveis,
recorrendo maioritariamente às suas próprias indústrias e centros de I&D. Não se
verifica assim uma condição de dependência na Rússia em matéria militar, mesmo que
existam algumas transações de equipamentos e conhecimentos (Gressel 2015, 3-4).
Apesar de tudo isto, talvez seja difícil afirmar que a Rússia é hoje um centro
militar dentro do sistema-mundo, dado a sua influência não conseguir rivalizar com
aquela demonstrada pelos EUA, sendo que estes sim são o único centro hegemónico
dentro do sistema-mundo142. A Rússia opera e exerce a sua influência essencialmente a
um nível regional, como é característica das semi-periferias, ao passo que de um centro
se requer que o faça a uma escala global. Quanto muito poderíamos afirmar que a
141
Para além do grau de prontidão registado nas forças russas ser superior àquele que se encontra entre algumas das forças europeias
(Gressel 2015, 8).
142
Em 1996 Wallerstein ainda descrevia que em relaхуo “рs Пorхas armadas e a tudo o que lhe estп associado na Rússia”, eбibia
características de centro (in Egiazarian 2013, 66).
145
Rússia é uma semi-periferia em crescendo, mas, considerando as suas aspirações
estratégicas, ainda muito longe de se tornar um centro. Esta caracterização sai reforçada
se tivermos em consideração os aspectos de divisão do trabalho em matéria de
segurança apontados por Galtung, onde a Rússia procura ainda afirmar-se como uma
nação que providencie segurança enquanto os seus dependentes fornecem a disciplina e
os soldados necessários. Ou, de uma forma mais geral, uma relação onde a Rússia
processe a obediência providenciada por um conjunto de Estados seus dependentes, em
decisões que estes cumpram e implementem (Galtung 1971, 92). Isto é claro, quando se
observam as organizações de segurança, a que a Rússia pertence e onde participa, que
têm um pendor claramente regional, como a Organização do Tratado de Segurança
Colectiva ou a Organização para a Cooperação de Xangai, sendo que nesta última a sua
influência fica claramente dividida com a exercida pela China. Para qualquer disputa a
uma escala global são necessários à Rússia sólidos aliados, que a ajudem a equilibrar a
balança claramente desequilibrada neste momento (Gressel 2015, 5). Todavia, é
importante considerar que a “Rússia nуo possui nem a vontade nem a capacidade de
competir com o ocidente р escala Рlobal”143 (Gressel 2015, 13), como também Putin
destaca, quando aПirma que “nуo é ambiхуo por heРemonia ou qualquer outro estatuto
eПémero de superpotência”144 o que a Rússia procura (Russia Today 2015). E em vez do
conПronto directo, a Rússia parece preПerir Пaгer uso das suas “vantaРens tпcticas como
Пorma de contornar as desvantaРens estratéРicas”145 (Giles 2016, 25).
4.3.2 – A política externa russa
Como foi visto anteriormente, a semi-periferia assume, no sistema-mundo, um
papel mais político do que económico, servindo para deflectir e/ou absorver tensões
políticas que possam existir entre a periferia e o centro. São por isso importantes
elementos para a estabilidade do sistema-mundo (Babones e Babcicky 2011, 5). Através
de uma estrutura de interacção vertical e feudal, como descrito por Galtung (1971, 104),
espera-se que estas regiões se relacionem com as regiões periféricas envolventes ou a si
submissas, mantendo com estas relaхões directas, Пormando assim “Пortes laços de
143
“Russia has neither the аill nor the capacity to compete аith the West on a global scale.” – tradução própria.
144
“[Russia] is not aspiring for hegemony or any ephemeral status of a superpoаer.” – tradução própria.
145
“Russia thus remains in a position to leverage tactical advantages to offset strategic disadvantages.” – tradução própria.
146
harmonia de interesses entre elas”146, sendo que estas relações são o reflexo da
harmonia de interesses entre as classes dominantes de ambas as regiões. No caso da
Rússia, observamos que os países que a envolvem assumem um carácter de especial
relevo nas suas prioridades de relacionamento, sendo desiРnados por “estrangeiro
próximo” (SaПire 1994). Neste termo sуo incluídos todos os países que Пaгiam parte da
ex-URSS e que a Rússia pretende que estejam subordinados à sua esfera de influência.
Tudo isto se desenvolve ao mesmo tempo em que a Rússia se encontra dependente do
centro do sistema-mundo, nomeadamente em relação a investimentos, tecnologia,
comércio, etc, como observado neste trabalho aquando da nossa análise a estas
dimensões.
Existe, por parte da Rússia, uma “aparente estratéРia de renovado mercantilismo
na Bielorrússia, Ucrânia147, no Cпucaso e Ásia Central”148 (Babones e Babcicky 2011,
12), sendo que é fundamentalmente para estes países que as empresas russas se
expandem e procuram novos investimentos, em particular nos sectores do comércio e
energia (Egiazarian 2013, 58 e 67-68). No entanto, as parcerias assumem,
tendencialmente, um carácter de baixo incremento tecnológico, sendo essencialmente
focadas na extracção e transporte de recursos. Mas é também destes países que provêm
grande parte dos imigrantes que completam a tão necessária força laboral russa (Idem,
ibidem). Para além disto, há ainda a importância que estes países assumem no que toca
aos aspectos securitários da Rússia, servindo como tampão a ameaças exteriores a este
espaço, sobre o qual a Rússia ainda mantém algum tipo de influência (Egiazarian 2013,
66).
Neste sentido, a Rússia tem, desde o final da URSS, desenvolvido esforços de
aprofundamento da integração regional, com vista a reПorхar o seu papel de “líder” no
conjunto de países que orbitam na sua esfera de influência, assumindo assim um
carácter de interacção feudal (Galtung 1971, 89). Alguns exemplos mais paradigmáticos
deste processo são organizações como a Comunidade de Estados Independentes
146
“[…] firm ties of harmony of interests betаeen them.” – tradução própria.
147
Hoje envolvida numa guerra civil que deriva do choque de interesses entre a Rússia, os EUA e União Europeia e que divide o
país em duas facções antagónicas, que representam exactamente esses mesmos interesses em conflito.
148
“Russia’s apparent strategy of reneаed mercantilism in Belarus, Ukraine, the Caucasus, and Central Asia […]” – tradução
própria.
147
(CEI)149, a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC) que deriva da
anterior, a União Económica Euroasiática (UEE) e, em certa medida, a Organização
para a Cooperação de Xangai (OCX), partilhando nesta última a liderança política com
a China. E é curioso notar que os pilares fundamentais, sobre os quais estas
organizações trabalham, são a segurança regional e contra-terrorismo, economia,
desenvolvimento, integração regional e aspectos políticos em geral, ao mesmo tempo
que procuram servir de tampão à influência norte-americana na região da Ásia Central.
E mesmo que as organizações com os projectos mais ambiciosos – UEE e OCX –
estejam ainda numa fase muito inicial, os passos dados na integração têm sido positivos
(Yesdauletova e Yesdauletov 2014, 8; Bailes e Dunay in Bailes et al 2007, 27-29;
Boland 2011). Verifica-se assim uma tendência para a Rússia procurar exercer o seu
domínio regional através de organizações com fundamentos multilaterais, mas nas quais
o seu peso é tão grande, comparativamente com as restantes nações participantes, que é
a própria que colhe os maiores benefícios, exceptuando no caso da OCX, onde estes
benefícios são partilhados com a China150. Nestes casos, a Rússia comporta-se não só
como uma “naхуo do centro que processa a obediência providenciada pelas nações da
periferia em decisões que podem ser implementadas”151, para usar a expressão de
GaltunР (1971, 92), mas também num “centro que providencia protecção [enquanto] a
periferia [providencia] a disciplina e os soldados necessпrios”152 (Idem, ibidem).
A importância que a soberania e não intervenção em assuntos internos dos
Estados membros assumem nestas organizações (Yesdauletova e Yesdauletov 2014, 11;
Bailes et al 2007, 9) não esconde as relações de dependência geradas no seio destas
organizações, muito pelo contrário. O enfoque dado à estabilidade política existente nos
países participantes, em particular através da dimensão que o contra-terrorismo e contrainsurgência assumem tanto na OTSC como na OCX (Weitz 2014, 2; Bailes e Dunay in
Bailes et al 2007, 9), vem realçar aquilo que Bailes e Dunay (in Bailes et al 2007, 9)
deПinem, quando Пalam da OCX, como “um pacto para a sobrevivência de reРime: uma
149
Apesar de este projecto estar bem aquém das espectativas que lhe eram inicialmente reservadas (Hansen 2013, 146-147; Rowe e
Torjesen 2009, 15-16).
150
Pode-se até argumentar que é mesmo a China a maior beneficiada nesta organização, em particular no campo económico, onde é
claramente o país que mais tem a ganhar com este projecto (Bailes et al 2007, 28).
151
“[…] Center nations processing the obedience provided by the Periphery nations into decisions that can be implemented” –
tradução própria.
152
“[…] Center providing the protection and the Periphery the discipline and the soldiers needed […]” – tradução própria.
148
coligação pro-status quo, tal como anti-terrorista”153. Desta forma verifica-se uma
manutenção da estrutura produtiva mais atrasada, nos países menos desenvolvidos,
permitindo uma extração da mais-valia por parte dos países mais desenvolvidos, a
exemplo do que Santos (2011 [1978], 377) refere quando fala da manutenção de
estruturas dependentes em países dependentes.
Olhando para as relações comerciais existentes actualmente entre a Rússia e os
países envolvidos (Egiazarian 2013, 60; The Atlas of Economic Complexity 2016d),
compreende-se que existe uma grande concentração de importações por parte destes
países relativamente à Rússia (em média de 32%)154. De igual modo, olhando para os
investimentos feitos pela Rússia e tendo em conta que estes países não possuem
estruturas industriais desenvolvidas, verifica-se qual o tipo de produção que a Rússia
pretende ver desenvolvida e praticada na região, para que assim a possa importar e
processar no seu país, baseada na extração de recursos naturais (Egiazarian 2013, 6768). Aqui, o petróleo e gás natural são os principais focos de atenção da Rússia e daí a
sua concentração de esforços nos países da Ásia Central, sobre os quais detém bastante
influência e que acabam assim por ser determinantes na sua estratégia de domínio
energético colocada em prática. É através da manutenção destas relações de produção
centradas na extração de recursos naturais nos países a si periféricos, que a Rússia
procura extrair a mais-valia produzida na região, incorporando-a assim, para que
posteriormente possa exportar estes produtos semi-processados para os países mais
desenvolvidos. Esta é uma relação de natureza imperialista, desenvolvida numa escala
média da produção, onde a Rússia serve de intermediária entre o centro e a periferia do
sistema-mundo, ou seja, de semi-periferia na divisão internacional do trabalho. Para que
esta estratégia prossiga o seu caminho e se aprofunde é fundamental para a Rússia fazer
uso de todos os recursos à sua disposição, nomeadamente nas áreas económica,
comunicativa, cultural, militar e política. Daí estas dimensões terem sido abordadas
anteriormente de uma forma mais aprofundada, procurando quantificar o potencial da
Rússia dentro do sistema-mundo, concluindo que esta se situa numa posição sistémica
intermediária nos factores abordados (semi-periferia) e, portanto, com uma capacidade
de exercer influência e causar dependência sobre alguns Estados mais fracos do que ela
própria, que se tornam assim suas periferias, numa relação de interacção vertical e, ao
153
154
“[…] a pact for regime survival: a pro-status quo, as well as anti-terrorist, coalition.” – tradução própria.
Países incluídos: Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Cazaquistão, Geórgia, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e
Uzbequistão.
149
mesmo tempo, de tipo feudal. Este tipo de relação com a periferia é descrito por Marini
(in Amaral 2012, 64-65) através da eбpressуo “subimperialismo”, que o deПine como
“[…] a Пorma que assume a economia dependente ao cheРar р etapa dos monopяlios e
do capital Пinanceiro”, no qual sуo necessпrios dois Пactores Пundamentais: “um aparato
produtivo nacional de composição orgânica mediana (em relação ao que se verifica no
resto do mundo) e o eбercício de uma política eбpansionista relativamente autяnoma”
(Amaral 2012, 65).
Outro aspecto, que assume uma relevância fundamental no tipo de interacção
que a Rússia possui no sistema-mundo, é a condição da potência hegemónica neste.
Para Wallerstein (1993, 4) uma série de factores apontam para uma queda da hegemonia
relativa dos Estados Unidos da América no sistema-mundo. O mais importante é a
crescente concorrência por parte de outras potências nos mercados globais, o que
provoca a queda na taxa de lucro, espelhada na fase B do ciclo de Kondratieff, como
considerado pelo autor. Esta concorrência levou a uma deslocalização da produção no
sistema-mundo e, portanto, a uma perda relativa de importância dos EUA no mundo.
Esta fase de decadência tem como resposta, por parte dos EUA, políticas que procuram
evitar e contrariar esta tendência em curso, muitas vezes de carácter unilateral (Idem,
ibidem) e violento.
Considerando então esta ascensão de potências concorrentes à potência
imperialista ainda hegemónica, destaca-se um Рrupo que procura “construir uma ordem
mais iРual e multipolar, alternativa р autoridade do G7”155 (Ruvalcaba 2013, 167) e no
qual a Rússia participa: os BRICS156. A participação russa neste grupo tem-se destacado
como uma clara afirmação da sua parte enquanto potência de relevo na nova ordem
multipolar, emergente desde o início dos anos 2000 e em maior evidência após a crise
de 2008. E esta multipolaridade, que deriva do desenvolvimento de novas potências que
não só contestam a hegemonia norte-americana e do ocidente desenvolvido em geral,
como também possuem cada vez mais os meios e os argumentos para o fazer, provoca
um recrudescimento do conflito geopolítico à escala global. Algo que, aliás, já Vladimir
Lenin (1975 [1916]) apontava quando falava da partilha económica do mundo:
155
“[…] the construction of a more equal and multipolar order, apart from the authority of G7 […]" – tradução própria.
156
Brasil, Russia, Índia, China e África do Sul.
150
“A época do capitalismo contemporсneo mostra-nos que se estão estabelecendo
determinadas relações entre os grupos capitalistas com base na partilha
económica do mundo, e que, ao mesmo tempo, em ligação com isto, se estão
estabelecendo entre os grupos políticos, entre os Estados, determinadas relações
com base na partilha territorial do mundo, na luta pelas colяnias, na ‘luta pelo
territяrio econяmico’”.
É a evolução das condições materiais das potências emergentes que as coloca em rota de
colisão com os interesses do centro, possibilitando assim esta “luta pelo territяrio
econяmico”, uma luta por novos mercados que intensifica a concorrência e acentua a
tendência para a queda da taxa de lucro. Por consequência, acentua também o declínio
da potência hegemónica, ao mesmo tempo que as novas potências se procuram afirmar
como centros e melhorar a sua posição no sistema-mundo. E, historicamente, tem sido
exactamente nestes momentos em que o centro hegemónico possui a sua posição em
risco, que a Rússia se tem aproximado mais de uma posição central no sistema-mundo
(Derluguian e Wallerstein 2011, 13-14). Todavia, esta disputa não significa
necessariamente que evolua para um conflito armado, ainda assim essa hipótese nunca
fica completamente excluída, sendo por vezes desenvolvida através de terceiros, como
observamos na Ucrânia, com os rebeldes pró-russos em Donbass (Gressel 2015). A
situaхуo que oriРina desta disputa é chamada de “balanхo de poder” por Wallerstein,
que a eбplica como a “situaхуo em que nenhum estado soгinho conseРue
automaticamente aquilo que pretende na arena interestatal”157 (2006, 57).
Não obstante, apesar desta disputa existente entre a Rússia e o centro, a primeira
participa em organizações nas quais os EUA e os países ocidentais desenvolvidos
também fazem parte. São disso exemplo o FMI, o Banco Mundial, OMC, G8158,
Conselho OTAN-Rússia, OSCE e ONU. Estas são organizações internacionais,
fundadas e dominadas pelo centro hegemónico, que procuram fazer valer os seus
interesses (Wallerstein 2006, 86) e onde o peso da Rússia se torna secundário159. Para
GaltunР as orРaniгaхões internacionais sуo “acima de tudo um meio onde a inПluência
circula, com ambos os centros juntando-se como membros e encontrando-se um ao
157
“[…] situation in аhich no single state can automatically get its аay in the interstate arena.” – tradução própria.
158
Até à sua suspensão em 2014, resultado da crise envolvendo a Crimeia.
159
Mesmo se tivermos em consideração a ONU e o facto de a Rússia ser um membro permanente do Conselho de Segurança.
151
outro” (1971, 95)160. Os “centros” aqui descritos pelo autor sуo as elites de cada país, o
que nos traг р mente a ideia de relaхões multilaterais, ou seja, “instituiхões e temпticas
que envolvem múltiplos países (três ou mais) a trabalhar em concertação de uma
maneira sustentпvel”161 (Rowe e Torjesen eds. 2009, 1), em que essas elites de cada país
procurariam fazer valer os seus interesses, negociando com os seus semelhantes de
outros países. Sendo a Rússia um parceiro de relevância e poder de decisão secundários,
a sua estratégia nestes âmbitos assume contornos diferentes daqueles encontrados nas
organizações onde o seu peso é determinante.
Não sendo a potência dominante nestas organizações, procura assumir um
discurso no qual o multilateralismo ganha uma importância maior. Mas na prática
procurando que se trate apenas de um multilateralismo de “Рrandes potências” (Roаe e
Torjesen eds. 2009, 8), onde busca defender a existência de esferas de influência em que
a intromissão de outras potências seja limitada (Idem, 14) e focando-se na discussão de
temas-chave da área internacional (Idem, 19), ostentando um estilo claramente
defensivo. Algo particularmente evidente, por exemplo, na forma como a Rússia
participa no Conselho de Segurança da ONU (Legvold in Rowe e Torjesen eds. 2009,
22). Esta deПesa das esПeras de inПluência é Пeita tendo em conta o “objectivo de criar
uma estrutura que seja essencial para o mundo; uma estrutura na qual o mundo não seria
capaz de funcionar sem a Rússia e as alianхas que a envolvem”162, como afirmou o
Vice-Primeiro Ministro Victor Khristenko (in Rowe e Torjesen eds. 2009, 15). Desta
forma, o multilateralismo funcionaria como uma ferramenta de afirmação da Rússia
num mundo multipolar (Legvold in Rowe e Torjesen eds. 2009, 21-22), ao mesmo
tempo que serviria para enfraquecer a posição hegemónica do centro dominante,
colocando em causa o seu modelo de governação global em prática (Idem, 28).
Tendo todos estes aspectos em consideração, observa-se claramente a posição
periférica que a Rússia possui face ao centro dominante em matérias de interacção
dentro do sistema-mundo. Ao mesmo tempo, destaca-se a sua posição central em
160
“But above all it is a medium in аhich influence can floа, аith both centers joining as members and finding each other.” –
tradução própria.
161
“By ‘multilateralism’ аe refer to institutions and issue areas that involve multiple countries (three or more) working in concert
in a sustained manner.” – tradução própria.
162
“[…] our goal is creating a structure that is essential for the world; a structure in which the world would not be unable to
function аithout Russia and the alliances involving it.” – tradução própria.
152
relação aos países que pertencem à sua esfera de influência. Considerando estas duas
particularidades, leva-nos a concluir que a Rússia se situa numa posição semi-periférica
no sistema-mundo, ocupando assim uma posição intermediária entre as potências do
centro e a periferia a si contígua. Ao mesmo tempo tenta destacar-se e juntar-se ao
grupo de países centrais, através de uma posição que se procura afirmar como
alternativa àquela presentemente dominante no sistema-mundo. Esforça-se por
apresentar uma ideia de que “um mundo com mais impérios […] é pelo menos
potencialmente um mundo com mais possibilidades”, para citar GaltunР (1971, 105),
buscando reunir um conjunto de nações em torno de si que também não se revêm nos
ideais representados pelo centro hegemónico.
A Rússia exibe um comportamento tipicamente característico das semiperiferias, onde o aparelho do Estado é usado interna e/ou externamente, tendo como
objectivo melhorar a sua posição dentro do sistema-mundo, quer como produtor e
acumulador de capital, quer como força política e militar, não possuindo muitas
hipótese relativamente a isto, pois “ou eles têm sucesso em ascender na escada
hierárquica (ou pelo menos manterem-se) ou eles serуo empurrados para baiбo”163
(Wallerstein 2006, 56-57).
163
“[…] either they аill succeed in moving up the hierarchical ladder (or at least staying put) or they аill be pushed doаn.” –
tradução própria.
153
154
Conclusão
Ao longo deste trabalho, o objectivo essencial, para o qual se apontou, foi situar
a posição da Rússia no hodierno sistema-mundo capitalista. Este desígnio levou à
análise das capacidades russas de interacção neste mesmo sistema. Para nos auxiliar
nesta tarefa, procurou-se estudar uma série de sub-questões, que permitissem construir
uma base de resposta sustentada, colocando a hipótese de a Rússia se situar naquilo que
é designado como semi-periferia do sistema-mundo. De modo a dar resposta às nossas
questões e demonstrar a nossa hipótese principal, utilizou-se a Teoria da Dependência,
dada a sua capacidade de explicação de fenómenos sociais, políticos e económicos
numa perspectiva estrutural. Esta teoria adopta, a partir dos anos de 1960-70, uma
sistematização de base marxiana e materialista, passando a servir como complemento à
Teoria do Imperialismo e centrando-se nos efeitos do imperialismo sobre os países
periféricos e menos desenvolvidos. Daí que o elemento base de análise seja o factor
económico, a partir do qual se estrutura a análise dos restantes factores. Para além desta
teoria foi também usado o modelo de análise do sistema-mundo, elaborado por
Immanuel Wallerstein a partir dos anos de 1970 e servindo como complemento à Teoria
da Dependência. Este modelo procura explicar as dinâmicas internacionais tendo por
base fenómenos sistémicos, tomando uma perspectiva global, historicista, unidisciplinar
e holística. Com o objectivo de determinar o grau de dependência russo faz-se uso de
cinco
dimensões
de
dependência
distintas
(económica,
política,
cultural,
comunicacional e militar), mas complementares e interligadas entre si, baseando-nos no
trabalho de Johan Galtung (1971). No auxílio à determinação da dependência política
faz-se ainda uso do modelo burocrático-autoritário, originalmente usado no estudo de
alguns regimes políticos da América Latina entre os anos de 1960-1990. Este modelo
centra-se na explicação dos processos de legitimação da dominação do centro sobre a
periferia e considerou-se contribuir para a análise ao estudo de caso em questão.
Passemos a sintetizar as conclusões obtidas.
A primeira vertente considerada foi a socioeconómica, dada a sua
preponderância no quadro teórico utilizado. Nesta incluíram-se as análises dos graus de
dependência de Galtung que incluem não só a dimensão económica, como também a
parte da dimensão comunicacional correspondente às infraestruturas de um modo geral.
E aqui a conclusão inicialmente retirada acerca da posição russa neste aspecto é bastante
155
clara: considerando a dependência da economia russa em relação à exportação de
matérias-primas, significa que, da posição que a Rússia ocupa na divisão internacional
do trabalho, resulta uma dependência face ao centro, isto é, EUA e restantes membros
do G7, sendo portanto sistémica. Esta inferência permite-nos excluir a Rússia de uma
posição central dentro do sistema-mundo, contudo não nos permite compreender a sua
verdadeira posição dentro deste, nem perceber a tendência seguida pelo país, isto é, se
apresenta uma evolução ou regressão na sua condição sistémica. Como vimos, após o
fim da URSS e ao longo dos anos 90, a Rússia assistiu ao seu declínio relativo e
absoluto, fruto da profunda crise socioeconómica e política vivida durante esse período.
Houve um claro retrocesso e uma tendência de periferização da sua condição sistémica.
Todavia, essa relação seria alterada após a crise de 1998 e em particular com a chegada
de Vladimir Putin ao poder em 1999. A tendência a partir daí seria a de consolidação da
Rússia como semi-periferia, verificando-se para isso uma evolução positiva, diminuindo
a sua diferença para um centro num estado de declínio relativo. Para esta reversão muito
contribuiria a forte presença do Estado russo na economia, contrariando as políticas dos
anos 90 de liberalização económica. Essa presença não foi desenvolvida em todos os
sectores económicos, à semelhança do que acontecia durante o período soviético, mas
sim em sectores considerados estratégicos e fundamentais para o Estado russo.
No entanto, a dependência evidenciada pela Rússia face à exportação de
matérias-primas, em particular de petróleo e gás natural, fortemente agravada durante os
anos 90, continuar-se-ia a verificar, mesmo que em tendência decrescente ao longo dos
anos 2000. Ao mesmo tempo, verifica-se também uma diminuição do sector industrial
relativamente à riqueza produzida pelo país, sendo que o único sector que tem registado
um crescimento significativo é o terciário. Possivelmente em consequência do
Пenяmeno de “dutch disease”. Deste fenómeno, normalmente, origina-se uma elevada
procura nos sectores não-transaccionáveis, quando os preços das matérias-primas
exportadas se encontram em alta nos mercados internacionais, levando assim a um fluxo
significativo de capital em circulação no mercado interno. Isto provoca uma elevação
dos salários e preços, tal como gera um desequilíbrio de rendimentos entre o
proletariado moderno e o tradicional (trabalhadores associados ao capital transnacional
vs. trabalhadores associados aos outros sectores). A acrescentar a esta reconhecida
dependência, há a incerteza quanto à mudança deste enfoque económico, cujas
tentativas de alteração não têm produzido os resultados pretendidos.
156
Em relação às suas infraestruturas (um dos elementos que compõem a dimensão
comunicacional da dependência), destaca-se aqui não só o peso que o factor geográfico
impõe sobre a Rússia, nomeadamente considerando a sua extensão territorial e os
constrangimentos infraestruturais que daí advêm, mas fundamentalmente o factor
material e económico como motor de sustentação e dinamização deste sector. Os vários
anos de decadência a que todas as infraestruturas russas foram votadas após o colapso
da URSS (ainda que os oleodutos e gasodutos não tenham sido tão afectados),
determinaram um elevado estado de obsolescência destas. Esta obsolescência tem como
consequência um aumento dos custos no produto final e, portanto, uma diminuição da
competitividade dos produtos russos nos mercados mundiais, sendo assim uma
condicionante ao seu desenvolvimento e, por conseguinte, uma condicionante à sua
própria posição no sistema-mundo, dada a importância das infraestruturas na
dinamização económica e crescimento a longo prazo. Este é um dos sectores onde as
reservas de capitais acumuladas, através das exportações de matérias-primas, poderão
assumir um carácter fundamental em reverter a situação verificada, permitindo à Rússia
investir e modernizar as suas infraestruturas. Contudo, o investimento tem sido, até
aqui, substancialmente inferior ao necessário, mesmo considerando os programas em
curso e os que se encontram planeados. O único sector das infraestruturas que tem
recebido uma significativa importância e investimentos suficientes tem sido aquele
ligado ao transporte das principais matérias-primas exportadas pela Rússia,
nomeadamente, os gasodutos e oleodutos que percorrem a Rússia e alguns dos seus
países periféricos. O que demonstra bem a magnitude da importância que o petróleo e o
gás natural possuem em termos políticos e económicos para a Rússia.
Na área das telecomunicações a Rússia encontra-se relativamente desenvolvida,
mesmo que não de uma forma comparável àquela encontrada nos países do centro. Não
obstante, a Rússia possui ainda uma posição periférica no fluxo de comunicações
global, quando as suas características geográficas centrais entre a Europa e a Ásia lhe
poderiam possibilitar um carácter igualmente central nas comunicações entre estas duas
reРiões. Em veг disso, o que se veriПica é um “vaгio” que é contornado por esses
mesmos fluxos. Ou seja, a questão geográfica russa assume aqui uma dupla
particularidade: enquanto elemento potenciador, dada a sua posição; e enquanto
elemento limitador, dada a sua extensão. O desenvolvimento de tecnologias de
comunicação,
incluindo
satélites,
exibem
157
traços
cruciais
para
o
próprio
desenvolvimento da Rússia e da melhoria da sua posição relativa no sistema-mundo.
Internamente, mas também cada vez mais externamente, estes meios de comunicação
ganham uma crescente relevância na contenção e resistência face às tendências de
dominação com origem no centro hegemónico do sistema-mundo, assim como enquanto
ferramentas de afirmação da Rússia dentro deste, como vimos quando estudámos a
dimensão sociopolítica e cultural.
Pesando todos estes elementos surge a questão de “por quanto tempo mais serп
sustentпvel este modelo de desenvolvimento?”, que nos últimos anos parece ter dado
sinais de se encontrar esgotado, considerando a forte desaceleração económica
evidenciada pela Rússia. Esta dependência em relação à exportação de matérias-primas
é um fenómeno típico das economias mais periféricas e que, portanto, condiciona a
acção russa no sistema-mundo. Mesmo assim, as receitas de capital acumulado através
das exportações destas matérias-primas desempenham um papel fundamental, enquanto
fontes de financiamento de infraestruturas e de uma economia mais diversificada, que
apresente uma incorporação de valor superior nos seus produtos.
Desta forma, após pesar e avaliar o conjunto dos indicadores observados,
concluímos que a Rússia se encontra numa posição intermediária na escala de produção
de valor do sistema-mundo e da sua divisão internacional do trabalho. O seu enfoque na
produção de bens primários ou semi-processados distancia-a claramente dos países mais
desenvolvidos. E o sector tecnológico é disto exemplo. Aqui, apesar de não se encontrar
numa posição totalmente periférica, está consideravelmente longe das capacidades
evidenciadas pelas economias mais desenvolvidas do centro. O próprio investimento
neste sector é ainda substancialmente baixo quando comparado com o centro, sendo que
grande parte da formação bruta de capital realizado na Rússia se centra em indústrias de
bens semi-processados e de capital. Não obstante, a Rússia notabiliza-se por possuir um
baixo nível de dívida pública externa, o que lhe confere um grau de autonomia,
independência e flexibilidade nas suas políticas económicas bastante considerável,
quando comparada com qualquer economia dependente e periférica, que normalmente
possuem elevados níveis de dívida pública externa. E mesmo quando se verificam
fluxos baixos de IDE no país, esta realidade não é de todo negativa, permitindo assim
que uma maior percentagem da mais-valia gerada no país não seja deslocada para os
países do centro, como usualmente acontece nos países dependentes com investimento
externo, tal como uma maior autonomia nas suas políticas e estratégias económicas. A
158
Rússia parece assim distanciar-se de um modelo de desenvolvimento associado
dependente, ainda que por vezes pareça querer atrair investimento externo. Por isso, é o
Estado, através das suas grandes empresas estatais, que assume uma posição de
responsabilidade enquanto dinamizador da economia a nível interno.
Porém, é a própria participação da Rússia no sistema-mundo, e a competição
pela sobrevivência neste, que a condena ao objectivo da eterna acumulação de capital,
sob pena de colocar em risco a sua própria existência. E o caminho seguido até aqui não
tem sido ausente de dificuldades, que revelam as suas fragilidades e contradições. Ainda
que possamos concluir, com a análise quantitativa aqui realizada, que se tenha
verificado uma evolução positiva na diminuição da sua dependência face ao centro do
sistema-mundo. Todavia, vimos também que após a crise de 2008, para além da grave
recessão observada no ano seguinte, registou-se também uma desaceleração geral da
economia tendendo para a estagnação. E a crise de 2014 veio acrescentar ainda mais
dúvidas quanto à estrutura económica russa, ainda que considerando o seu carácter
excepcional e conjuntural. Assim, a análise aqui realizada fica condicionada por estes
acontecimentos relacionados com o conflito geopolítico existente em torno da Ucrânia,
pelo menos no que toca a perspectivas económicas de curto prazo. Isto porque esta crise
pode gerar não só os factores que potenciem um agravamento das condições
económicas, como pode despertar as autoridades russas para a necessidade de alteração
da estrutura económica russa, caso haja uma verdadeira intenção de prosseguir um rumo
que posicione a Rússia como um centro do sistema-mundo.
Posteriormente, passámos para a análise da vertente da dependência
sociopolítica e cultural russa, que nos surge como condensadora das dimensões atrás
trabalhadas. O reflexo mais evidente da superestrutura que é determinada pela base
socioeconómica. Por isso, iniciámos a nossa abordagem através das questões
relacionadas com a dependência cultural, onde também aí as tendências verificadas
actualmente pela Rússia são dissonantes daquelas observadas durante os anos de 1990.
Se neste período a Rússia se posicionava no sistema-mundo de uma forma totalmente
periférica, submetendo-se à hegemonia cultural que emanava do centro e orientada,
principalmente, pelas elites norte-americanas, após a eleição de Putin essa relação
sofreria um forte revés. O resultado foi uma diminuição no fluxo cultural proveniente
do centro, ao mesmo tempo que a Rússia passa a seguir um caminho mais autónomo, no
qual o Estado desempenha um papel importante em traçar novas tendências e na
159
construção de uma nova identidade. E, apesar desta mudança de situação colocar em
causa a própria posição hegemónica do centro no sistema-mundo, rejeitando o seu
modelo, este processo desenvolve-se sem no entanto a Rússia rejeitar o modelo
capitalista e, portanto, a sua própria integração no sistema-mundo. Este modelo
desenvolve-se no meio de uma incerteza identitária, fruto quer da rejeição do modelo
liberal ocidental, quer do modelo soviético anteriormente em vigor na Rússia. Mesmo
assim, as tendências gerais que predominam são caracterizadas por valores
tradicionalistas, conservadores, de soberania e autonomia, promovidos internamente.
Daí que a Rússia não coloque em causa o sistema capitalista e apenas procure uma
forma de integração diferente daquela que é imposta pelo centro às nações mais fracas.
Este modelo, de contradição da tendência hegemónica do centro, serve também como
elemento de consolidação do poder internamente, através da deflexão das pressões
sociais classistas em direcção a um inimigo externo, o que limita a contestação social
interna. Daí que os meios de comunicação social (o outro elemento que compõe a
dependência comunicacional) assumam uma importância considerável e por isso uma
parte significativa destes se encontrem nas mãos do aparelho estatal, como aliás é
característico das semi-periferias. Ainda assim a Rússia surge-nos não como uma
definidora de tendências culturais ou científicas a nível global, mas sim como um país
que normalmente segue tendências traçadas externamente.
Após este balanço das questões culturais passámos para as questões relacionadas
com a dependência sociopolítica. Verificou-se anteriormente que as graves falhas
evidenciadas pela adopção do modelo de democracia liberal e de políticas de
liberalização económica na Rússia, durante os anos 90, levaram a que o modelo
Ocidental ficasse descredibilizado perante a sociedade russa e as suas elites. O resultado
desta descredibilização provocou uma alteração da ordem social que levou a uma
ruptura com o vínculo de dominação previamente existente face ao centro, num
processo semelhante àquele verificado nas regiões coloniais aquando da sua ruptura
com o pacto colonial. O surgimento de Putin, como um produto de recurso, foi
determinante para esta alteração. Promovido pela elite oligárquica então dominante e
favorável ao centro, dadas as suas reconhecidas capacidades em pressionar e coagir
elementos antagónicos aos interesses instalados no poder, esperava-se dele que ajudasse
a manter a relação de dominação previamente existente, evitando que possíveis
movimentos sociais, emanados da crise, pudessem surgir e colocar em causa o modelo
160
de economia baseado na propriedade privada, voltando ao antigo modelo onde imperava
a socialização dos meios de produção.
Contudo, a reorganização do aparelho de Estado orquestrada por Vladimir Putin
e as elites a si associadas consolidaria no topo do poder político e socioeconómico russo
uma nova elite dominante, os siloviki, sendo esta intimamente ligada aos aparelhos
repressivos do Estado. Para esta nova elite dominante o Estado deveria assumir um
estatuto bem mais centralizado, quer a nível político quer económico, quando
comparado com o que normalmente acontece nas democracias liberais, levando a um
consequente conflito com as antigas elites oligárquicas e ao afastamento destas últimas
do poder. Esta alteração nas relações de poder levou a um reforço dos grupos de
interesse nacionais, ainda que estes não sejam os antigos grupos oligárquicos
dominantes, mas sim um novo grupo oligárquico que o substituiu. Porém, esta mutação
não significou uma retirada do sistema-mundo ou sequer uma alteração do modelo
socioeconómico base, o que indica que a elite russa continua a actuar enquanto testa-deponte do centro da nação centro na Rússia, dado o seu papel na manutenção das relações
de dominação sistémicas existentes e que beneficia ambos. Contudo, existe um tipo de
integração diferente daquele normalmente encontrado em nações totalmente periféricas,
uma integração mais fechada, onde o Estado assume um papel central na economia. Em
termos sociais, esta transformação deu origem a que a principal classe exploradora no
país passasse a ser de origem doméstica, ao contrário do que normalmente acontece nas
economias periféricas, mas dentro dos moldes encontrados nas semi-periferias. O papel
desta nova elite seria determinante em travar o processo de periferização da Rússia,
ajudando à consolidação e ascensão do seu grau de semi-periferia no sistema-mundo.
Ainda assim, é esta mesma elite que também a impede de ascender ao estatuto de centro
no sistema-mundo, servindo assim para manter e travar avanços nas relações de
produção que permitissem por sua vez evoluções políticas, sociais e económicas.
Para isso a nova elite oligárquica russa iria adquirir características em muito
semelhantes àquelas encontradas nos regimes da América Latina dos anos 1960-90, os
quais vários autores classificaram por regimes B-A. Isto ainda que não encaixe
perfeitamente nas fases que levam à ascensão deste tipo de regime e usualmente
identificadas pelos vários autores. Porém, as divergências existentes na definição do
modelo permitem-nos a oportunidade e flexibilidade de aplicação ao caso russo. Para
que o regime B-A subsista é fundamental a influência que o capital monopolista e
161
transnacional possui na defesa do regime. Mas se, no caso das periferias, este capital é
de origem externa, no caso russo este possui uma origem essencialmente doméstica,
surgindo sob a forma de empresas estatais controladas pela elite oligárquica no poder. É
esta diferença, relativamente à periferia, que permite a existência de orientações e
políticas alternativas e até certo ponto contrárias àquelas propaladas pelo centro
hegemónico. Pois aqui o capital monopolista, fundamental na fase imperialista do
capitalismo, tem uma origem nacional, impedindo que o Estado se submeta de uma
forma tão exposta às ambições externas às quais a periferia se encontra geralmente
subserviente.
Também nos oito pontos utiliгados por O’Donnell (in Collier ed. 1979, 292-293)
para caracterizar o modelo B-A, a Rússia apresenta fortes semelhanças com este,
reforçando a nossa percepção de que o modelo serve para analisar este país. Atentemos
a uma rápida conclusão de cada um destes pontos:
1. O Estado russo afirma-se como o garante e organizador da dominação de classe
existente, servindo os interesses da nova classe oligárquica russa, que por sua
vez domina o próprio aparelho de Estado;
2. O Estado russo possui os seus alicerces no aparelho repressivo que o compõe,
manifestando uma postura autoritária, tal como tendências normalizadoras da
economia (sendo isto fruto de uma crise económica que precedia o próprio
regime);
3. Existe uma tentativa de contenção de movimentos sociais contrários ao poder
instalado, sejam eles populares ou não;
4. Há uma supressão das instituições da democracia e negação da dimensão
classista representada pelo sector popular, sendo este um processo já em curso
ainda antes da própria instalação do regime;
5. A burocracia opera nos seus cargos de forma a defender os seus interesses. Desta
forma o Estado B-A promove padrões de acumulação de capital extremamente
desiguais e serve como sistema de exclusão económica face ao sector popular;
6. É suposto o Estado B-A favorecer uma crescente transnacionalização da
estrutura produtiva, resultando numa desnacionalização da sociedade. Contudo,
neste ponto a Rússia não se enquadra no que é normalmente característico dos
regimes B-A ou, pelo menos, não o faz de uma forma tão evidente. Isto porque o
162
Estado russo não promove um processo privatizador da sua economia, pelo
contrário.
7. O aparelho de Estado russo procura despolitizar as questões sociais, assumindo
uma postura tecnocrática, objectivista e racionalista;
8. Aqueles que possuem cargos no Estado são aqueles que se encontram no topo da
pirâmide do poder, usualmente os siloviki ou a eles associados.
Como se verifica, exceptuando o ponto 6, a Rússia apresenta características gerais
normalmente identificadas num regime B-A, seguindo sete dos oito pontos identificados
por O’Donnell.
Para além disto, é apontada como característica destes regimes a existência de
um partido único no poder. E apesar de isto não se verificar na Rússia, existe um
domínio acentuado do partido ligado à oligarquia dominante (Edinstvo), levando a que
na prática, desde o ano 2000, o domínio deste partido seja quase incontestado. Para que
este domínio tenha o sucesso pretendido, tem sido fundamental a prática de um discurso
que procure legitimar o Estado e o regime junto da sociedade, onde a necessidade de um
inimigo ao regime é basilar. Nos regimes da América Latina esse inimigo era interno, na
Rússia após a quase completa eliminação das ameaças internas no Cáucaso Norte esse
inimigo passou a ser externo, sendo representado pelo centro hegemónico do sistemamundo, ou seja, os EUA e os seus aliados.
Mas se a Rússia partilha das características encontradas nos regimes B-A, isso
significa que também deverá partilhar das suas contradições, fragilidades e
vulnerabilidades. Em particular se tomarmos uma perspectiva de longo prazo, seja ela
de base económica, social ou política. Uma nova crise económica que provoque graves
retrocessos sociais, seria um sério obstáculo à manutenção deste regime. E esta
realidade surge com ainda mais relevo se tivermos em consideração as questões da
dependência económica evidenciadas pela Rússia relativamente ao seu aparelho
produtivo. A alta instabilidade dos preços do petróleo e gás natural nos mercados
mundiais é algo que se manifesta como uma ameaça constantemente presente.
Por fim analisámos os reflexos da dependência russa na sua interacção com o
sistema-mundo enquanto semi-periferia deste. Neste sentido, o nosso estudo iniciou-se
através do balanço da dependência militar e dos seus reflexos na acção externa russa.
Concluímos aqui que esta é a dimensão em que a posição russa se encontra mais
163
solidificada e mais perto do centro hegemónico do mundo. Mesmo considerando o peso
fundamental que os elementos económicos possuem na sustentação deste sector, assim
como as fragilidades que a Rússia evidencia na sua economia, esta consegue posicionarse relativamente bem dentro do sistema-mundo. Apesar disto, esta localização sistémica
deve-se, em grande parte, à herança soviética em todo o sector militar, seja em
quantidades de material, indústrias, tecnologias e I&D. Ainda assim, as forças armadas
recebem uma considerável atenção por parte da elite política, sendo um dos sectores
prioritários do investimento público. Nos últimos anos, as forças armadas russas têm
vivenciado reformas significativas, assim como um forte investimento, de forma a
capacitar as forças russas para o cumprimento dos objectivos estratégicos definidos pela
sua elite política. O sentido dado a estas reformas é um claro reflexo do que a doutrina
russa exige, centrando-se na capacitação para as suas forças operarem em zonas
fundamentalmente contíguas à Rússia, como aliás é característico da praxis semiperiférica. Porém, a Rússia falha em ser um centro, na medida em que apesar das largas
capacidades militares que possui, apenas secundárias face à potência hegemónica, os
EUA, a sua influência fica-se limitada à esfera regional. Ao mesmo tempo, a Rússia
falha em ter aliados suficientes, dos quais processe a obediência por eles fornecida, ao
mesmo tempo que lhes providencia a segurança que eles necessitam, mesmo que
procure desenvolver esforços nesse sentido a nível regional. Por tudo isto a Rússia não
se consegue assumir como uma potência global, mas apenas como uma potência
regional, com limitadas capacidades de projecção de poder para além da sua zona
envolvente.
E, posteriormente, observámos o resultado que o conjunto das dimensões acima
analisadas possuem na política externa russa e na sua interacção com o sistema-mundo.
A sua condição semi-periférica ao nível económico, comunicativo, militar e cultural
expressa-se assim também na sua condição semi-periférica na política, quer
internamente (como já concluímos) quer externamente. Isto significa que a Rússia não
se apresenta no sistema-mundo como uma região que consiga expressar o seu domínio
sobre áreas significativas do globo – como seria de esperar de um centro –, em vez disso
centrando a sua influência essencialmente nas regiões a si periféricas. É nestas zonas
que a Rússia logra em influenciar e exercer um domínio em seu favor. Para isso faz uso,
não só das típicas relações bilaterais, mas também de várias organizações multilaterais
que procuram promover um aprofundamento da integração regional, económica,
164
política, cultural, militar e comunicativa. São estas particularidades que nos permitem
definir a Rússia como uma semi-periferia no sistema-mundo, onde o domínio que opera
se limita a um âmbito regional.
As características fundamentais evidenciadas por esta influência são variadas,
onde se destaca o enfoque na manutenção da soberania e do princípio da não
interferência nos regimes aliados, como forma de garantir a dependência destes face à
Rússia, dado a sua própria segurança e preservação dependerem da segurança
providenciada por esta. Nesse sentido o combate ao terrorismo e insurgência surgem
como elementos fundamentais na manutenção da estabilidade desses regimes
dependentes da Rússia, assim como a defesa contra outras ameaças externas. As
próprias relações comerciais mantidas entre a Rússia e os Estados envolventes são disso
um exemplo. Existe por parte da Rússia um relevante esforço na manutenção das
relações de produção existentes, que têm por base essencialmente os bens primários que
possam posteriormente ser processados na Rússia. Isto porque, qualquer alteração na
infraestrutura da sociedade poderia significar uma alteração da superestrutura, o que
poderia colocar em risco a relação de dominação actualmente existente. Ao mesmo
tempo, esta conservação da estrutura produtiva permite à Rússia assegurar o seu estatuto
de região que processa as matérias-primas da periferia em bens semi-processados, que
posteriormente trocará com o centro, servindo assim de intermediária na divisão
internacional do trabalho entre as duas zonas.
De forma contrária, a sua relação com os países do centro revela um papel
secundário face a estes, nomeadamente dentro das organizações multilaterais. Sendo
também esta uma ferramenta importante para se afirmar dentro do sistema. Estes são
fóruns onde as elites dominantes da Rússia se relacionam com as elites dominantes dos
países do centro, procurando influenciá-las ao mesmo tempo em que também são
influenciadas. Nestes casos o discurso russo centra-se fundamentalmente num
multilateralismo de grandes potências, onde pratica uma táctica claramente defensiva na
esperança de preservar e conservar a sua esfera de influência relativamente a agentes
externos que a coloquem em causa ou que a procurem limitar. Nesse sentido a Rússia
promove a discussão de assuntos que, na sua perspectiva, considera serem centrais na
área internacional e que vão ao encontro dos seus interesses. A Rússia procura assim
usar o multilateralismo como um meio que promova a sua afirmação enquanto pólo
165
central num mundo crescentemente multipolar, ao mesmo tempo que procura
enfraquecer a posição hegemónica dos EUA dentro do sistema.
Na evolução e fortalecimento da posição da Rússia dentro do sistema-mundo,
muito tem contribuído a decadência relativa do centro hegemónico do sistema. A
ascensão de um mundo cada vez mais multipolar tem promovido o crescimento das
semi-periferias dentro do sistema, processo no qual a Rússia desempenha um papel
relevante. O próprio crescimento económico russo tem sustentado de forma significativa
o reforço da sua posição dentro do sistema, expandindo assim a sua influência aos seus
vizinhos e usando como recurso político o seu domínio sobre o sector energético, até
mesmo nas relações com outros países mais desenvolvidos. Desta forma a Rússia
continua a procurar melhorar a sua posição dentro do sistema-mundo, reforçando para
isso o seu estatuto enquanto produtor, acumulador de capital e de força militar, mesmo
que permaneça um país de cariz dependente. Sendo assim e ao que tudo indica, as
conclusões finais deixam poucas dúvidas acerca da posição sistémica da Rússia
enquanto região semi-periférica, contudo numa tendência ascendente. E esta posição
ocupada no sistema-mundo é um fenómeno continuado, dado ser considerado que a
Rússia tem historicamente sido uma semi-periferia, mesmo com flutuações no seu grau
ao longo do tempo.
Todavia, apesar desta trajectória ascendente registada, a estrutura russa
actualmente existente começa a demonstrar estar perto dos seus limites, como
observamos pelo abrandamento da economia russa nos últimos anos. A estrutura actual
evidencia fragilidades em cumprir o objectivo de a Rússia competir e se reafirmar no
mundo, ficando constantemente dependente dos preços das matérias-primas e dos
preços definidos pelo mercado mundial dominado pelo centro hegemónico. O próprio
facto de a Rússia atribuir uma ênfase significativa à vertente militar do imperialismo é
um sinónimo da sua fraqueza em impor uma dominação estrutural, o tipo de
imperialismo que GaltunР (1971, 91) aПirma ser “imperПeito”. Sem uma transiхуo
económica profunda, que reencaminhe a Rússia para um rumo mais sustentável,
baseado em relações de produção de valor acrescentado mais alto, comparáveis com os
do centro, esta sofrerá uma estagnação ou recessão que colocará novamente a sua
posição dentro do sistema em causa, assim como a própria credibilidade do seu regime
político externamente e em particular internamente. Da mesma forma, só através do
desenvolvimento da sua economia e infraestruturas é que a Rússia poderá melhorar a
166
sua posição relativamente às áreas políticas, comunicativas, culturais e militares, tal
como a sua capacidade em influenciar outras nações a seguir e defender os seus
interesses no mundo. Não obstante, isso também significa que a Rússia terá de operar
mudanças no tipo de regime em vigor, sendo que este impede neste momento a Rússia
de evoluir rumo ao centro, ainda que tenha sido e continue a ser um elemento
importante na sua consolidação enquanto região semi-periférica após os anos 90. A
necessidade da consolidação das suas instituições políticas é fundamental e isso
significa o abandono do modelo de Estado baseado no aparelho coercivo que protege as
elites oligárquicas dominantes. Algo que não será facilmente alcançável, pois isso
significaria uma transição de poder contrária aos interesses da elite dominante. O
modelo actualmente em vista pelo regime russo centra-se numa transformação
económica, rumo ao centro, mas que mantenha intactos os interesses da elite russa.
Outro modelo alternativo significaria uma substituição total em relação ao actual,
acabando com as elites oligárquicas. Actualmente o modelo Ocidental liberal encontrase descredibilizado na sociedade russa, e rejeitado também pela elite dominante que
procura um modelo próprio que garanta a sua continuidade no poder e de participação
no sistema-mundo. Derluguian e Wallerstein (2011, 37) colocam de parte também o
modelo nacionalista, que num país multiétnico seria uma opção que colocaria sérios
problemas de estabilidade social. Que outro modelo surge como opção? Esta é uma
dúvida que fica em aberto. Ainda assim, a principal questão que surge é: será a Rússia
capaz de progredir e desenvolver-se o suficiente para se tornar num centro do sistemamundo? Ou outra questão mais audaz: ambicionará a Rússia manter a sua participação
no sistema-mundo, prolongando assim a sua competição e luta pela sobrevivência
dentro deste?
167
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