UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
LETÍCIA FERNANDES DE OLIVEIRA
A CULTURA DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
FORTALEZA
2016
LETÍCIA FERNANDES DE OLIVEIRA
A CULTURA DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Monografia
apresentada
à
disciplina
de
Monografia Jurídica do Curso de Direito da
Universidade Federal do Ceará – UFC, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharela em Direito.
Orientadora: Profª. Drª. Gretha Leite Maia de
Messias.
FORTALEZA
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
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O48c
Oliveira, Letícia Fernandes de.
A Cultura do Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal / Letícia Fernandes de Oliveira. – 2016.
58 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito,
Curso de Direito, Fortaleza, 2016.
Orientação: Profa. Dra. Gretha Leite Maia de Messias.
1. Ativismo Judicial. 2. Supremo Tribunal Federal. 3. Judicialização da Política. 4. Controle de
Constitucionalidade. 5. Princípio da Separação dos Poderes. I. Título.
CDD 340
LETÍCIA FERNANDES DE OLIVEIRA
A CULTURA DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Monografia
apresentada
à
disciplina
de
Monografia Jurídica do Curso de Direito da
Universidade Federal do Ceará – UFC, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharela em Direito.
Aprovada em ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Profª. Drª. Gretha Leite Maia de Messias (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará - UFC
_______________________________________
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa
Universidade Federal do Ceará – UFC
________________________________________
Profª. Gabriela Gomes Costa
Universidade Federal do Ceará - UFC
À minha vó Mãezinha, que partiu nesse ano
sem me ver formada, mas que certamente está
comemorando esta vitória onde quer que esteja
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente aos meus pais, Suely e Bernardino, por todo o suporte que me
deram, garantindo que minha educação fosse sempre prioridade em nosso lar e me ensinando
que o conhecimento traz grandes responsabilidades éticas e morais. Agradeço também ao meu
irmão Raphael, companhia nas horas em que queria chutar o balde, sempre me lembrando que
devo tentar ser um modelo e como tal, desistir nunca é uma opção.
Agradeço à minha orientadora, Profª Gretha, que é minha maior inspiração no meio
acadêmico, cujo amor pelo Direito me contagiou, enchendo-me ainda mais com a vontade de
enveredar pelos estudos dessa tão célebre ciência. Agradeço também a cada professor que já
passou pela minha vida, pois deixou um pedacinho de si em mim.
Minha eterna gratidão à minha maravilhosa (e numerosa) família, a cada um dos
meus tios e primos, gente demais para listar, mas representados nos meus primos Vanessa, que
ouvia meus discursos apaixonados sobre esta monografia (provavelmente achando a conversa
muito chata) e de vez em quando fazia a temida cobrança “E a mono?”, e meu primo Filipe,
cujos esforços e força de vontade imensos me inspiraram para a vida.
Agradeço demais aos meus amigos e colegas de faculdade que sempre me
lembravam pelos corredores que “vai dar certo”, e aturaram minhas inúmeras reclamações de
falta de tempo para coisa demais, em especial à Marjorie e à Vivi, que foram tolerantes com
as minhas inúmeras ausências no semestre e ainda são minhas amigas! Agradeço também ao
Quarteto Cearense de Cordas pela dose mensal de inspiração, e que me deu, depois da
cansativa prova da OAB, o “parabéns pra você” mais bonito que alguém poderia ouvir.
Também sou grata aos meus novos amigos do BEM, que sempre me encorajam nos estudos.
Expresso ainda minha gratidão aos inúmeros modelos que tive profissionalmente,
pois escolhi o Direito para minha vida e reafirmei essa decisão após vê-los tão
apaixonadamente se relacionarem com ele. Representando-os, obrigada dr. Otávio dos Anjos,
por quem conheci antes mesmo de entrar na faculdade a bela arte de advogar, dra. Martha
Oliveira, que me mostrou o quanto o Direito é instrumento capaz de modificar vidas, dra.
Emmanuelli Leite, quem, enquanto eu era aluna de ensino médio e ela estudante universitária,
fez-me ver Direito mesmo na literatura, enquanto discutia um trabalho de colégio da Vanessa,
defendendo Jean Valjean em um julgamento simulado, e dra. Jeritza Lopes, que representa a
profissional que quero ser, achando sucesso na família e na carreira que ama.
Por fim, porém mais importante, agradeço a Deus, que me permitiu ter tanta gente na
minha vida a quem eu possa agradecer.
“É preciso que os homens bons respeitem as
leis más, para que os homens maus respeitem
as leis boas.” (Sócrates)
RESUMO
Define ativismo judicial de uma forma abrangente. Parte de uma análise histórica com
abordagem eminentemente zetética do surgimento do ativismo judicial na cultura jurídica
estadunidense, até sua recepção pelo Direito brasileiro pós-1988. Analisa o que significa uma
cultura do ativismo judicial e como no Brasil ela derivou de um processo histórico de
judicialização da política. Estuda o quanto a Constituição Federal de 1988 interferiu nesse
processo e como a legislação posterior reiterou esse aumento na atividade do Poder Judiciário.
Analisa ainda dois casos recentes nos quais o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma
potencialmente ativista, procurando entender com base na definição encontrada no momento
inicial deste estudo o porquê de essas decisões serem assim consideradas. Busca, por fim,
entender as consequências do desenvolvimento dessa cultura do ativismo judicial no Supremo
Tribunal Federal, verificando a possibilidade de riscos ao princípio republicano da separação
dos poderes, à legitimidade democrática dos três poderes e à segurança jurídica.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; Ativismo Judicial; Judicialização da Política;
Controle de Constitucionalidade; Princípio da Separação dos Poderes.
ABSTRACT
This work definesjudicial activism in a embracing way. It starts from a historical analysis with
an approach eminently zetestic of the emergence of judicial activism in the American juridical
culture, until its reception by the Brazilian Law after 1988. It analyzes what a culture of
judicial activism means and how in Brazil it derived from a historical process of
judicialization of politics. It studies how much the Federal Constitution of 1988 interfered in
this process and how the subsequent legislation reiterated the increase in the activity of the
Judiciary Power. It also analyzes two recent cases in which the Federal Supreme Court
decided with a potentially activist posture, trying to understand, based on the definition found
at the initial moment of this study, why these decisions are so considered. Finally, it seeks to
understand the consequences of the development of this culture of judicial activism in the
Federal Supreme Court, verifying the possibility of risks to the republican principle of the
separation of powers, to the democratic legitimacy of the three powers and to legal certainty.
Keywords: Supreme Court; Judicial Activism; Judicialization of Politics; Judicial Review;
Principle of Separation of Powers.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADC
Ação Declaratória de Constitucionalidade
ADI
Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADO
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
ADPF
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
CF
Constituição Federal
CPC
Código de Processo Civil
EC
Emenda Constitucional
LC
Lei Complementar
MI
Mandado de Injunção
MS
Mandado de Segurança
STF
Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO……………………………………………………………..
1
2
A ORIGEM DO ATIVISMO JUDICIAL NO SISTEMA COMMON LAW..
3
2.1
Do Judicial Review e Stare Decisis ao Ativismo Judicial…………………...
3
2.2
A polêmica definição de ativismo judicial…………………………………..
12
3
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DA
CULTURA ATIVISTA NO BRASIL………………………………………..
18
3.1
Relação entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial……………….
19
3.2
A Constituição Federal de 1988……………………………………………..
20
3.3
As Fases da Judicialização da Política no Brasil e a Postura dos
Magistrados………………………………………………………………….
25
3.4
A Emenda Constitucional nº45/2004 e as Súmulas Vinculantes…………….
28
4
A CULTURA DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL E SEUS
REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA ATUAL……………………………..
4.1
30
As ADCs nº29 e nº30 e a ADI nº4.578 e o princípio constitucional da
presunção de inocência……………………………………………………...
32
4.2
O MS nº32326 e a competência constitucional para cassar um mandato…...
37
5
CONCLUSÃO………………………………………………………………
42
REFERÊNCIAS……………………………………………………………..
45
1
1 INTRODUÇÃO
“O universo não é uma ideia minha; a minha
ideia do universo é que é uma ideia minha.”
(Fernando Pessoa)
Desde a Constituição de 1988 o Supremo Tribunal Federal foi declarado o guardião da
constituição, havendo uma ampliação significativa de suas competências, principalmente no
âmbito de controle de constitucionalidade. Tal avantajamento das funções do STF pode ser
considerado uma reação à recém-superada ditadura militar do executivo, que dentre outros
atos de arbitrariedade, aposentou ministros do Supremo Tribunal Federal, fechou o Congresso
Nacional e em muito tolheu a força de ambos os poderes legislativo e judiciário. Esse
crescimento de poder foi reforçado desde então por institutos como a súmula vinculante e a
repercussão geral, acrescidos ao ordenamento pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que
permitem ao Supremo estender a eficácia de decisões em controle de constitucionalidade
difusa para além das partes litigantes.
Recentemente, a intensificação do poder do Supremo culminou com a adoção pelo
Código de Processo Civil de 2015 de um instituto de precedentes vinculantes, parecido com o
stare decises americano, porém com adaptações ao cenário jurídico nacional. Essa novidade
obriga os juízes a decidir conforme precedentes do STF, assemelhando-se a uma imposição
erga omnes de decisões em recurso ordinário ou extraordinário que se caracterizassem como
precedentes, expandindo consideravelmente a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal
impelir todo o judiciário a seguir seus posicionamentos.
Essa hipertrofia da Corte Constitucional, característica integrante de um fenômeno
chamado judicialização da política, dá ensejo a decisões com cada vez mais interferência nos
atos de outros poderes, não sendo impossível, inclusive, considerar possíveis usurpações de
competência em situações nas quais o STF legislou positivamente ou interferiu de forma
demasiado incisiva em políticas públicas, usando de uma postura que a doutrina chama
ativismo judicial, vocábulo cujo uso polissêmico torna difícil de objetivar. O ativismo judicial
tem origem nos Estados Unidos da América, ainda no início do século XX, tem
reconhecimento pelos juristas apenas em 1947 e desde o início do século XXI tem gerado
muita repercussão no Brasil e vários juristas têm se posicionado favoráveis ou contrários à
adoção de uma postura ativista pelo Supremo Tribunal Federal.
Dentre os argumentos daqueles que defendem o ativismo judicial está o caráter quase
2
sempre populista das decisões do STF que são consideradas ativistas, situações nas quais os
ministros julgam considerando a vontade da maioria ainda que para isso comprometam
significado de uma norma constitucional, como ocorreu com a ADC nº29 que tratou da
constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Baseiam-se ainda na ineficiência dos outros
poderes em alcançar os objetivos traçados pela Constituição Federal de 1988, como por
exemplo a incapacidade do Executivo em garantir os direitos fundamentais como a saúde e a
educação universais, ou a morosidade do Legislativo em criar leis que cumpram os
requerimentos constitucionais, como promulgação de uma lei que, na forma do art. 37 VII da
CF/88 (BRASIL, 1988), regulamente a greve dos servidores públicos.
Por outro lado, os juristas que consideram que os malefícios de uma postura ativista
ultrapassam em muito os benefícios consideram principalmente os princípios da Supremacia
da Constituição e da Segurança Jurídica, argumentando que os riscos em relativizar preceitos
constitucionais mesmo que para alcançar objetivos louváveis são demasiados grandes para
que se incorra neles. Os juristas que assim se posicionam consideram a Constituição Federal
de 1988 como produto de um processo histórico, não havendo legitimidade democrática na
possibilidade de escolha dos onze ministros do STF em aplicar seus dispositivos ou não.
Este trabalho tem o objetivo de entender o processo de judicialização da política e
como se desenvolveu a cultura do ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal que hoje é
tão perceptível nas decisões dos ministros. Não se busca estabelecer qualquer juízo de valor
sobre as decisões que advém de uma postura ativista, mas perceber os fatores que levaram os
ministros do STF a preferirem tal postura por meio de uma análise histórica, que deverá ser
iniciada na compreensão da origem do ativismo no sistema Common Law e no Judicial
Review estadunidenses, passando pela sua recepção no Brasil e concluindo no estudo de casos
que refletem a adoção da cultura do ativismo judicial pelo STF.
No segundo capítulo desta monografia, será analisada a história do judicial review
estadunidense desde o emblemático caso Marbury v. Madison até os dias atuais, rastreando a
origem do ativismo judicial mesmo antes de ser reconhecido como uma postura do juiz,
derivando desse estudo histórico uma definição objetiva e abrangente para o termo
polissêmico. No terceiro capítulo será verificado como os ministros do Supremo Tribunal
Federal adotaram uma postura ativista, ligando-se o desenvolvimento da cultura do ativismo
judicial a um processo de judicialização da política que tem marco histórico no fim da
ditadura militar. Por fim, no quarto capítulo, serão estudados duas decisões do STF que
tendem a ser consideradas advindas de uma postura ativista pelos juristas brasileiros,
analisando-se se suprem as características para assim serem entendidas.
3
2 A ORIGEM DO ATIVISMO JUDICIAL NO SISTEMA COMMON LAW
“No legislative act contrary to the constitution
can be valid.” (Alexander Hamilton)
Não obstante sua recente popularização no meio jurídico brasileiro iniciada somente
após a Constituição de 1988, de acordo com Kmiec (2004) e Green (2009) a expressão
“ativismo judicial” foi usada pela primeira vez ainda no ano de 1947, nos Estados Unidos da
América, sendo o objetivo da criação do termo conceituar uma prática ainda mais antiga, já
percebida no século XIX, que se aproximava daquilo que os juristas estadunidenses da época
chamavam de “legislação judicial”, a criação do direito positivo pelos juízes.
De fato, como Cittadino (2004) ressalta, o que tornou o Direito dos Estados Unidos
terreno fértil para o ativismo judicial foi o seu sistema common law, diferenciado do inglês
principalmente em razão de sua versão do processo de criação judicial pelo direito
característico da common law, como Tassinari (2013) percebe, flexibilizado pela baixa rigidez
na vinculação dos tribunais superiores ao stare decisis, considerados desvinculados de suas
próprias decisões, e o poder conferido à Corte Constitucional pelo judicial review, que serão
explicados nesse trabalho.
Hoje, já no século XXI, setenta anos depois do surgimento do termo “ativismo
judicial”, ainda é um desafio dar significado à expressão, divergindo os juristas
frequentemente quanto a que características deve ter uma decisão (ou com qual intensidade
deve possuí-las) para ser considerada ativista. Intencionando entender o porquê de ser tão
difícil conceituar ativismo judicial e ao mesmo tempo tentar achar uma definição
razoavelmente capaz de ser recebida pelos vários sistemas jurídicos que o utilizam, deve-se
buscar as origens da prática e do termo que a expressa, de forma a traçar o raciocínio que leva
aos conceitos atuais e às razões pelas quais essa cultura tão tardiamente influenciou a Direito
brasileiro.
2.1 Do Judicial Review e Stare Decisis ao Ativismo Judicial
Apesar da afirmação de Tassinari (2013) sobre não mais existirem países que se
encaixem puramente em um sistema jurídico, segundo David (2002) é indiscutível que os
Estados Unidos da América integram predominantemente a família common law,
principalmente em razão de terem sido colônia da Inglaterra, berço do sistema. Realmente, até
4
a independência do país o sistema jurídico estadunidense seguia de forma idêntica em
funcionamento ao inglês.
No entanto, David (2002) afirma que, após a declaração de independência dos Estados
Unidos, as várias influências de países adeptos ao Sistema de Direito Romano-Germânico,
como do México e, principalmente, da França, com quem se aliou contra a Inglaterra durante
a Guerra da Independência, propiciaram certas peculiaridades à Common Law estadunidense,
traçando-lhe diferenças significativas do sistema jurídico do colonizador e, segundo consoam
Tassinari (2003), Cittadino (2004) e Trindade e de Morais (2011), dando-lhe características
únicas que permitiram o surgimento de decisões ativistas.
Destacam-se para esse estudo duas diferenças percebidas por David (2002), uma delas
a adoção de uma Constituição positivada com o posterior estabelecimento de um sistema de
controle de constitucionalidade das leis e das decisões judiciais de forma a dar real aplicação
ao texto constitucional (o judicial review), a outra uma flexibilização ao sistema do stare
decisis, ou vinculação aos precedentes, herdado do direito inglês, justificando-se pela
estrutura Federalista do Estado, que exigia uma menor rigidez dos precedentes para evitar
diferenças irredutíveis na aplicação do direito nos vários estados e permitir a busca da
uniformização do Direito dos estados.
Segundo David (2002) e Tassinari (2003), dentre as flexibilizações destaca-se
inclusive a não vinculação dos tribunais superiores, tanto a nível federal quanto estadual, aos
próprios precedentes, característica inexistente no direito inglês e que permite mudanças na
interpretação da Constituição. Essa característica abre possibilidades de alterações extremas
de entendimento como ocorreu, dentre outros, nos casos Adkins v. Childrens Hospital e,
catorze anos depois, West Coast Hotel v. Parrish, situação registrada por Sunstein (1987) e
que será estudada a frente.
Segundo Tassinari (2003), em 1787 foi promulgada a Constituição dos Estados
Unidos, trazendo em seu texto o princípio da separação de poderes e iniciando a Era
Tradicional do constitucionalismo estadunidense, que duraria até o final do século XIX. Nesse
período, contrariando a tendência do país de desconsiderar qualquer vinculação do poder
legislativo à Constituição como decorrência da proteção da liberdade oriunda do princípio
republicano, o judiciário começou a conceber a supremacia da Constituição sobre as demais
leis.
Tassinari (2003) e Wolfe (1997) afirmam que tal posicionamento teve início com o
caso Marbury v. Madison, em 1803, no qual, segundo David (2002) e Corwin (1914) o juiz
Marshall da Suprema Corte reconheceu em função do princípio da separação de poderes a
5
inconstitucionalidade de uma lei que permitia ao tribunal constitucional julgar em primeira
instância um writ de mandamus.
Na ocasião, o presidente federalista John Adams, logo antes de deixar o cargo para a
assunção do presidente eleito Thomas Jefferson, membro do partido político oposto, fez várias
nomeações de cargos importante entre componentes de seu partido (dentre eles o próprio juiz
Marshall). William Marbury estava dentre os nomeados, e lhe foi atribuído o cargo de juiz de
paz no distrito federal, Washington D.C. Ocorre que, com a mudança de governo, o novo
Secretário de Estado, Madison, recusou-se a enviar a Marbury sua ordem de nomeação,
situação que deu ensejo ao processo Marbury v. Madison.
Em desfecho, o juiz Marshall entendeu que Marbury tinha o direito a ser nomeado ao
cargo, visto ser a nomeação irrevogável, havendo passado por todos os trâmites legais, mas
simultaneamente declarou a Suprema Corte incompetente para julgar, considerando
inconstitucional a lei que lhe dava tal competência em razão de a Constituição não permitir a
ampliação do rol das ações que a corte constitucional poderia julgar em primeira instância,
sendo a Suprema Corte eminentemente um tribunal de apelação.
Assim, como afirma Wolfe (1997), ocorre a primeira aplicação perceptível do
chamado judicial review, um controle de constitucionalidade concreto que intencionava evitar
a opressão da vontade da maioria sobre a das minorias refletida da criação legislativa por um
poder formado em eleições. A decisão em Marbury v. Madison adentra na concepção da
natureza de uma constituição escrita, partindo a decisão do juiz Marshall da ideia de que,
conforme Wolfe (1997, p.11, tradução nossa), “uma constituição escrita que contém limites ao
governo deve ser considerada como superior à lei ordinária, de outra forma os limites são
ilusórios”.
Nesse caso, conforme Campos (2014), a Suprema Corte toma o que muitos juristas
estadunidenses consideram a primeira decisão considerada ativista da história dos Estados
Unidos da América ao considerar inconstitucional uma norma e dessa forma, ressalta
Tassinari (2003), afirma sua legitimidade para revisar atos dos poderes Legislativo e
Executivo em nome da defesa da Constituição, inclusive criando um instituto que não estava
previsto na Carta para tanto.
Assim, segundo Wolfe (1997), pode Marbury v. Madison ser considerado um marco
essencial para questionamentos acerca dos poderes de uma corte constitucional. Esses
questionamentos surgiram tanto entre os vários juízes que já compuseram a Corte, em
julgamentos posteriores, como pela sociedade, em debates que se desenvolveriam na
formulação dos termos ativismo e autocontenção judicial.
6
A conclusão de que o judicial review nasceu de uma decisão considerada por muitos
ativista exatamente por criar tal instituto, ultrapassando os limites constitucionais dessa forma,
ajuda na percepção de que entendê-lo é imprescindível para a compreensão destes termos, na
medida em que se pode considerar que, conforme Wolfe (1997, p. 1, tradução nossa),
“ativismo e autocontenção são funções da extensão na qual uma judicial review pode ser
justamente considerada uma execução da vontade da Constituição sem a infusão das próprias
preferências e crenças políticas do juiz”.
Mas, segundo Trindade e de Morais (2011) apesar de o surgimento do judicial review
ter-se dado na Era Tradicional, nesse período o poder de atuação da Corte era bem mais
modesto do que nas eras do constitucionalismo americano que se seguiram, como se nota com
clareza no caso Dred Scott v. Sandford, em 1857.
Embora
ativista,
conforme
Campos
(2014),
no
sentido
de
declarar
a
inconstitucionalidade de uma Lei Federal, o Compromisso do Missouri, que proibia a
escravidão em, dentre outras regiões, Wisconsin e Illinois (relevante informação à análise do
caso Dred Scott), Wolfe (1997) afirma que a Suprema Corte não conseguiu estender sua
decisão aos demais poderes da Federação. De fato, como afirma Campos (2014) a decisão
polêmica da Corte nesse caso tornou ainda mais graves as tensões entre o Norte e o Sul do
país, funcionando como um incentivo à eclosão da Guerra da Secessão.
No caso, o escravo Dred Scott pleitava sua liberdade em razão do princípio “uma vez
livre, sempre livre”, em razão de ter vivido por vários anos nos territórios de Wisconsin e
Illinois, sob a égide do Compromisso do Missouri. No entanto, a Suprema Corte recusou-se a
conceder liberdade ao escravo Dred Scott, conforme relatam Trindade e de Morais (2011),
afirmando a ausência de tutela dos direitos dos escravos pela Constituição em função do
direito de propriedade do dono do escravo, visto que o território de seus “donos”, Missouri,
ainda era adepto do regime escravocrata.
Segundo Campos (2014), foi uma decisão considerada por muitos baseada na cláusula
de devido processo como limite às ações do Estado, o que seria, de acordo com o que afirmam
Sunstein (1987), Wolfe (1997), Kmiec (2004) e Green (2009), o fundamento de várias
decisões ativistas da Era Lochner, a ser nesse estudo analisada. Na mesma decisão, conforme
afirma Wolfe (1997), a Suprema Corte tentou ainda vetar ao Congresso a criação de lei capaz
de abolir a escravidão nos territórios, considerando-a inconstitucional antes mesmo de
promulgada.
Para Wolfe (1997), a decisão se chocava inquestionavelmente com a política pregada
pelo presidente à época, Abraham Lincoln, que concluiu ser a decisão vinculante como
7
precedente judicial, porém não possuidora de autoridade sobre os outros poderes, pontuando
que, presentes algumas circunstâncias por ele enumeradas, dentre elas a falta de unanimidade
entre os juízes da Corte e um aparente partidarismo, uma decisão não poderia ser considerada
munida de autoridade, devendo ainda ser afirmada e reafirmada ao longo dos anos.
Completou ainda solicitando aos demais poderes que não se vinculassem a toda e qualquer
decisão da Suprema Corte, deixando claro ao Congresso que, apesar do julgado, poderia a
qualquer tempo criar leis que abolissem a escravidão nos territórios, afrontando
veementemente os poderes da Corte.
Seguiu-se à Era Tradicional, conforme Wolfe (1997) e Kmiec (2004) a chamada Era de
Transição do constitucionalismo americano, entre os anos de 1890 e 1937. Nesse período,
também conhecido como Era Lochner dentre os juristas estadunidenses em decorrência do
caso Lochner v. New York, aqui a ser explorado, é perceptível o ativismo judicial da Suprema
Corte, principalmente com o uso da imprecisão contida no princípio constitucional do Devido
Processo, segundo David (2002), presente na quinta e na décima quarta emendas à
Constituição Estadunidense, definindo que, sem o Devido Processo, não se pode privar
alguém da vida, da liberdade, ou dos bens. Wolfe (1997) e Kmiec (2004) afirmam que a
plurissignificância desse princípio foi, na Era Lochner, utilizada para a defesa de interesses
econômicos contra interesses sociais.
Kmiec (2004) explica que o emblemático caso Lochner v. New York retrata bem o
cenário de desenvolvimento do ativismo judicial, sendo uma decisão amplamente reconhecida
na literatura posterior como ativista, apesar de o surgimento da expressão “ativismo judicial”
ter-se dado em momento posterior, já em 1947. Segundo narra Wolfe (1997), em 1905 o
estado americano de New York promulgou uma lei proibindo o contrato de padeiros que
ultrapassem sessenta horas semanais de trabalho, gerando comoção suficiente para dar ensejo
ao processo judicial. Justificando sua decisão com argumentos que incluíam a defesa da
liberdade contratual, protegida pela cláusula do devido processo, a Suprema Corte derrubou a
lei do estado.
Durante a Era Lochner, Sunstein (1987) e Wolfe (1997) afirmam que o ativismo
judicial era considerado uma defesa dos institutos da Common Law, havendo entre os juízes
do período um senso comum de que a inatividade do Estado preveniria a interferência
judicial. Nesse período era frequente que decisões derrubassem leis que tentavam interferir no
livre mercado.
Para Wolfe (1997), a Era Lochner atingiu seu apogeu e iniciou seu declínio ainda
durante a década de 30, quando a Suprema Corte derrubou diversos atos do presidente à
8
época, Franklin Delano Roosevelt, relativos ao plano New Deal e antes do final da década
mudou sua forma de atuação em razão de o presidente ter ameaçado alterar a estrutura da
Corte por meio do chamado Court Packing, que, segundo Trindade e de Morais (2011),
aumentaria uma vaga na Corte para cada juiz que ultrapassasse os setenta anos de idade.
Para Sunstein (1987), apesar de anterior ao ápice da Era Lochner, é especialmente
relevante para entender seu declínio o caso Adkins v. Childrens Hospital, em 1923, no qual a
Suprema Corte, sob a alegação de que dificultava a livre contratação prejudicando os
empregadores, invalidou normas sobre salário-mínimo para crianças e mulheres. Essa
considerável relevância se dá principalmente pela possibilidade de comparação com o
posicionamento da Corte em 1937, apenas quatorze anos depois, no caso West Coast Hotel v.
Parrish, na qual, acatando os argumentos contrários que havia pouco tempo rejeitara no caso
Adkins, a Corte constatou a constitucionalidade de legislação que estipulava salário-mínimo
para mulheres. De fato, o caso West Coast Hotel v. Parrish está entre os que representam o
declínio da Era Lochner.
Segundo Sunstein (1987) e Campos (2014), na Era Lochner os juízes julgavam de
forma ativista sem assim entenderem suas condutas, acreditando combater o excesso de
interferência dos demais poderes e, por consequência, defender a normatividade da
constituição, na era seguinte o ativismo passou não apenas a ser reconhecido (tendo sido
inclusive assim denominado nesse período), como começou ainda a dividir opiniões, tanto de
juristas e juízes quanto de pessoas externas ao Direito.
A transição de era do constitucionalismo ocorreu com a mudança de posicionamento
da Corte e, apesar de ser considerada gradual, foi com decisões como no caso West Coast
Hotel v. Parrish que houve a superação das fundações teóricas da era Lochner, representando
rupturas de interpretação da norma constitucional.
Conforme Trindade e de Morais (2011), a Era Moderna se prolonga de 1937 até os
dias atuais e durante esse período, iniciando-se pela forte pressão exercida pelo presidente
Franklin Delano Roosevelt, a Suprema Corte passou a tratar as leis de intervenção econômica
como presumidamente constitucionais, utilizando como critério de validade apena o que
chamavam de “teste da base racional”, ou seja, se a lei se dava a um propósito político
razoável.
Campos (2014) registra que, entre 1937 e 1943, Roosevelt nomeou oito juízes para a
Suprema Corte, além de selecionar para Chief Justice um magistrado que sempre proferira
decisões favoráveis ao plano New Deal, renovando totalmente as ações da Corte. No entanto,
são unânimes Cover (1982), Wolfe (1997), Trindade e de Morais (2011), Tassinari (2013) e
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Campos (2014) que, com a mudança de atuação, a Corte basicamente passou seguir o
caminho diametralmente aposto em princípios, no caso privilegiando direitos sociais sobre os
econômicos sem, porém, alterar sua postura protagonista.
Afirmam Kmiec (2004), Green (2009), Teixeira (2012) e Campos (2014) que foi na
Era Moderna do Constitucionalismo Estadunidense, mais precisamente no ano de 1947, que o
nome ativismo judicial apareceu pela primeira vez, usado pelo professor de História em
Havard e ganhador do prêmio Pulitzer de 1946, Arthur Schlesinger Jr. na revista Fortune.
Green (2009) ressalta que tais credenciais do autor deram credibilidade ao artigo, The
Supreme Court: 1947, e, apesar de o texto ter maior foco em descrever o momento histórico
das decisões da Suprema Corte no ano de 1947 do que em entender as teorias jurídicas que as
fundamentaram, visto não se tratar de texto voltado a juristas, mas sim ao público em geral, o
fato é que os termos formulados por Schlesinger, “judicial activism” e “activist”, ganharam
bastante popularidade. No artigo as expressões eram utilizadas para descrever os próprios
juízes, como características subjetivas, e não as decisões por eles tomadas, significado
creditado aos juristas que estudaram o tema posteriormente.
Kmiec (2004) percebe que, em seu texto, Schlesinger toma a formação da Suprema
Corte no ano de 1947 e classifica os juízes da época entre ativistas e autocontidos, os
primeiros formando o que ele chamou de grupo Black-Douglas, usando do nome de dois
juízes por ele considerados muito ativistas, e os segundo ele nomeou grupo FrankfurterJackson, seguindo mesmo raciocínio.
Apesar de, como pontua Green (2009), não explicar com exatidão o porquê de cada
juiz ter sido taxado como ativista ou autocontido, um trecho de seu artigo pode dar uma ideia
razoável do raciocínio de Schlesinger (1947), sendo possível perceber que, na sua concepção,
a definição de juiz ativista considerava o quanto o magistrado estava disposto a impor suas
concepções por meio de suas decisões.
O grupo Black-Douglas acredita que a Suprema Corte pode atuar de forma
afirmativa para promover o bem-estar social. O grupo Frankfurter-Jackson
advoga uma política de autocontenção judicial. Um grupo é mais preocupado
com o emprego do poder judicial para suas próprias concepções de bem
social; o outro com a ampliação do leque de julgamentos pela legislação,
mesmo que isso signifique suportar conclusões as quais pessoalmente
condenem. Um grupo percebe a corte como um instrumento para alcançar
resultados sociais desejados, o segundo como um instrumento que permita
aos outros ramos do poder alcançarem os resultados que o povo deseja, para
melhor ou pior. Em resumo, a vertente Black-Douglas aparenta estar mais
preocupada com a resolução de casos particulares de acordo com suas
próprias preconcepções sociais; a vertente Frankfurter- Jackson, com a
preservação do judiciário em seu estável, porém limitado, lugar no sistema
americano. (SCHLESINGER, 1947, p.201, tradução nossa)
10
Schlesinger (1947) se mostrou, em seu texto, favorável ao posicionamento da vertente
Black-Douglas, mas percebeu que a postura ativista dos juízes que a compunham apresentava
um risco em potencial à democracia, sendo ele mesmo favorável a um ativismo, desde que
resumido à proteção das liberdades civis.
Campos (2014) ressalta que essa notável variação no posicionamento de juízes com
base política semelhante nos ideais do New Deal, visto que a Corte de 1947 já havia a pouco
tempo sido reestruturada por Roosevelt, provavelmente se deu em razão das diferentes reações
ao ativismo economicamente liberal e socialmente conservador da Era Lochner, o grupo
liderado pelo juiz Frankfurter entendendo ser maléfico qualquer nível de interferência no
poder político, enquanto que a vertente de Black reagiu apenas contra o posicionamento dos
juízes de Lochner, mas ainda favoráveis a sua postura nas decisões.
Essa visão do grupo Black-Douglas, ainda conforme Campos (2014), pode ser
fundamentada inclusive por um nota de rodapé na decisão do caso United States v. Carolene
Products CO., em 1938, na qual o juiz Stone, também notadamente ativista, se manifesta pela
aplicação de padrões diferentes no controle de constitucionalidade de acordo com a matéria
envolvida, devendo ser mais fraco em se tratando de normas econômicas, e mais agudo na
defesa das minorias, impedindo que leis formuladas pelas maiorias restringissem a liberdade
ou mesmo carregassem preconceito contra minorias em seu texto, a presunção de
constitucionalidade dessas normas devendo ser tratada com ressalva.
No entanto, o ativismo judicial rumou de fato ao seu auge com a nomeação de Earl
Warren como Chief Justice da Suprema Corte em 1953, iniciando a chamada Corte Warren,
considerada a formação mais ativista em prol das liberdades individuais da corte
constitucional estadunidense da história. Foi com essa formação que a Corte julgou em 1954 o
emblemático caso Brown v. Board of Education of Topeka, que derrubou uma lei do estado da
Lousiana.
Conforme Campos (2014) e Trindade e de Morais (2011), nesse julgado, um dos mais
importantes da história da Corte, foi decidida por unanimidade a inconstitucionalidade da
segregação racial em escolas públicas do sul dos Estados Unidos tendo por fundamento o
princípio da equal protection of law, estendendo a proteção legal aos afrodescendentes,
existente na décima quarta emenda desde 1868, mudando o precedente formado no caso
Plessy v. Ferguson, de 1896, que interpretava tal princípio na forma separated but equal, de
modo a permitir que uma empresa ferroviária mantivesse vagões separados para brancos e
negros, desde que em mesmas condições de tratamento.
Trindade e de Morais percebem que o auge do ativismo judicial da Corte Warren foi
11
alcançado na década de 60, com a saída dos juízes Whitakker e Frankfurter, substituídos pelo
juízes White e Goldberg, respectivamente. Com essa formação, os juízes Warren, Black,
Douglas, Brennan e Goldberg, que defendiam as mesmas ideias, conseguiam, conforme
percebe Campos (2011), a maioria simples em todos as decisões da Corte, garantindo a
constante prevalência de seu posicionamento.
Trindade e de Morais (2011) e Campos (2014) afirmam que, com a aposentadoria do
Juiz Warren, em 1969, assumiu o juiz Warren Burger, nomeado pelo então presidente Nixon.
Tanto Nixon quanto os presidentes que se seguiram, Ford, que assumiu após sua renúncia, e
Reagan, tentaram reestruturar a Suprema Corte buscando nomear juízes conservadores.
Porém, nem a Corte Burger, nem a Corte Rehnquist, liderada pelo ultraconservador William
Rehnquist nomeado por Nixon em 1972 lograram êxito em derrubar completamente as
decisões progressistas da Corte Warren.
Se, de acordo com Campos (2014), por um lado foi um fator preponderante para essa
manutenção de fundamentos a presença constante de juízes considerados socialmente liberais
ou ao menos moderados, como Blackmun, Powell, Brennan e Marshall, em razão das
pressões do Partido Democrata, por outro lado a própria tendência natural de os juízes
conservadores do período não reformarem decisões anteriores por condenarem a postura
ativista da Corte Warren também tem forte contribuição no sentido de não interferir nos
precedentes deixados pelos liberais.
De fato, percebe Trindade e de Morais (2011), o argumento de proteção ao direito
constitucional à privacidade apresentado pela Corte Warren no julgamento Griswold v.
Connecticut para declarar inconstitucional a lei estadual de Connecticut que proibia o uso de
contraceptivos por casais casados, em 1965, foi usado em Roe v. Wade em 1973 pela Corte
Burger para declarar a inconstitucionalidade de uma lei do Texas que proibia o aborto se não
tivesse funções terapêuticas, reformando a legislação de 43 estados para que fosse
considerado legal o aborto até o terceiro mês da gestação.
Como Campos (2014) afirma, é inegável que com as mudanças na Suprema Corte as
decisões passaram a ter cunho cada vez mais conservador, mas a postura ativista de manteve
desde Lochner. Entre 1993 e 2005 a Corte Renhquist assumiu uma fase extremamente
conservadora, que julgou inconstitucional dezenas de leis Federais, defendendo o que à época
foi chamado de Novo Federalismo, havendo uma fortificação do poder dos estados em
detrimento do Congresso Nacional. Depois de 2005, com a morte de Rehnquist, o então
presidente George W. Bush nomeou o conservador de extrema direita John Roberts como
Chief Justice, de postura autocontida, que inclusive usou como analogia à atuação de juízes o
12
árbitro de beisebol, que não faz as regras, as aplica.
A Corte Roberts de acordo com Campos (2014) é comparável com a Corte na Era
Lochner em conservadorismo, se mantendo desde 2005 com a alteração apenas de dois nomes
depois da eleição de Barack Obama, Justice Sotomayor, assumindo o lugar do Justice Soter
em 2009, e da Justice Kagan, após a saída do Justice Stevens em 2010, conforme se vê no site
da Suprema Corte (Supreme Court of the United States, 2016).
No entanto, Liptak (2013), correspondente na Suprema Corte do jornal The New York
Times, afirma que, se o parâmetro para decisão ser considerada ativista for declaração de
inconstitucionalidade de uma lei, em comparação às Cortes Warren, Burger e Rehnquist a
Corte Roberts é consideravelmente pouco ativista, mas se for considerada ativista a decisão
que tem fundamentos políticos, a Suprema Corte atual não pode ser considerada autocontida,
visto que frequentemente juízes liberais tentam derrubar leis conservadoras, e vice-versa.
A dúvida suscitada brevemente por Liptak (2013) quanto a possibilidade de mais de
parâmetro dever ser considerado na definição de uma decisão ativista expressa um problema
que, de acordo com Green (2009, p. 1203, tradução nossa), Schlesinger deu origem,
explicando que:
Em vez de articular princípios, o foco de Schlesinger sempre foi pessoal. Ele
identificou quatro juízes como ativistas – particulamente Hugo Black e
William O. Douglas – e três outros como heróis da autocontenção –
especialmente Felix Frankfurter e Robert Jackson. Schlesinger nunca
explicou o que exatamente esses juízes fizeram para merecerem esses títulos.
Essa imprecisão na definição de ativismo judicial gera tanto a possibilidade de
variantes parâmetros em diferentes culturas jurídicas para a definição de ativismo judicial,
baseados nos poderes constitucionalmente dados aos juízes, quanto a existência apontada por
diversos autores como Green (2009), Cross e Lindsquist (2006), Wolfe (1997), Tassinari
(2013), Kmiec (2004) e Teixeira (2012), de muitos conceitos de ativismo judicial, e é uma
árdua, porém necessária tarefa encontrar uma definição condizente com um conceito que préexiste em muitas décadas ao termo, tendo, segundo Green (2009), sua própria história
intelectual e desenvolvimento pré-1947. Esse trabalho deverá explorar as definições existentes
do termo e adotar aquela que melhor achar encaixe com seus objetivos.
2.2 A polêmica definição de ativismo judicial
Definir ativismo judicial de uma forma que seu sentido seja globalmente reconhecido
é tarefa hercúlea pois, como afirma Ramos (2015, p.106), “se a caracterização de ativismo
13
judicial importa na avaliação do modo de exercer a função jurisdicional, o fenômeno será
percebido diferentemente de acordo com o papel institucional que se atribua em cada sistema
ao Poder Judiciário”.
Com efeito, a expansão dos poderes dos juízes é um inquestionável fenômeno que
alcança grande parte das democracias ocidentais, como afirmam Tate e Vallinder (1994),
Cittadino (2004) e Leite (2014). No entanto, apesar de não se poder confundir essa expansão
da competência do judiciário, por Tate e Vallinder (1994) denominada “judicialização da
política” com o ativismo, visto que ocorre à revelia do juiz, se dando no próprio texto
normativo, esse fenômeno tem larga relevância no estudo do ativismo judicial pois segundo,
esses autores, o ativismo judicial e a autocontenção são posturas dos juízes derivadas de um
posicionamento acerca da judicialização da política.
No caso brasileiro, essa afirmação de Tate e Vallinder (1994) se verifica com certa
facilidade, visto ser percebido pela maioria dos autores nacionais que as discussões sobre
ativismo judicial no Brasil se deram exatamente após a promulgação da Constituição Federal
de 1988, que amplia consideravelmente as competências do poder judiciário, inclusive
largueando ao Supremo Tribunal Federal o poder de controle de constitucionalidade, versão
brasileira para o Judicial Review (TASSINARI, 2013; CAMPOS, 2014; RAMOS, 2015;
CITTADINO, 2004; TEIXEIRA, 2012; TRINDADE, 2011).
Poder-se-ia dizer, portanto, que a judicialização da política, fenômeno em sensível
crescimento nas democracias ocidentais, tem como consequência o desenvolvimento de uma
postura ativista em várias partes do mundo, em países de diversas culturas jurídicas e sob os
mais variados parâmetros.
No entanto, ainda mais do que o problema das diferentes abordagens que cada cultura
adota do que seria uma decisão ativista, uma questão mais profunda, que se origina na história
do instituto e no desenvolvimento de seu termo fora do Direito, é forte obstáculo para a
conceitualização de ativismo judicial: a polissemia da expressão que, conforme Kmiec (2004),
quanto mais é usada mais confuso é seu significado, e a consequente possibilidade prevista
por Campos (2014, p.150) de que haja “tantas concepções de ativismo judicial quanto autores
sobre o tema”.
Alguns autores, como Wolfe (1997), Heydon (2003) e Kmiec (2004), deixam presumir
em seus textos que entendem serem esses vários sentidos dados ao termo possíveis
explicações. Wolfe (1997) e Kmiec (2004) inclusive explicitam opinião de que cada um
desses significados tem um uso relevante para o discurso dependendo de quando ou quem usa,
havendo autores que, como Campos (2013) e Cross e Lindquist (2006), aceitem a existência
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de dimensões do ativismo judicial baseadas em um conceito abrangente do termo, de forma
que se aplique às diversas decisões denominadas ativistas pelos juristas.
No entanto, neste estudo se defende o posicionamento de juristas como Green (2009),
Tassinari (2013) e Ramos (2015), que entendem a necessidade de se estabelecer um conceito
de ativismo judicial que seja único e permanente, derivado da formação histórica do instituto
jurídico e capaz de abranger parâmetros de diversas culturas jurídicas. Para isso, alguns como
Cross e Lindquist (2006) e Green (2009) verificam a existência de vários sentidos e analisam
seu cabimento no cenário atual em consonância com o desenvolvimento do instituto ao longo
do tempo, tentando atribuir um sentido para ativismo judicial coerente tanto com sua
estruturação quanto com seus variantes usos.
Green (2009) consegue citar pelo menos quatro possíveis significados, não reduzindo
as possibilidades a esses, que os juristas modernos tendem a atribuir ao termo quando o
aplicam no discurso, sendo: um grave erro judicial, qualquer resultado controverso ou
indesejado, qualquer decisão que anula uma lei, ou ainda um conjunto desses três fatores. O
primeiro significado é facilmente derrubado por Green (2009), que percebe ser “erro judicial”
uma expressão ainda mais generalista do que ativismo judicial, podendo ocorrer das mais
diversas formas, não resolvendo o problema da imprecisão do termo.
Além disso, em outra oportunidade, o autor cita o caso Korematsu v. United States, de
1944, no qual a decisão da Suprema Corte é considerada autocontida, mas amplamente
criticada ao permitir atos militares racistas, capazes de subtrair direitos de cidadãos nipoamericanos (GREEN, 2009), o que poderia se considerar uma decisão contendo um erro
inconstitucional mas que, ao mesmo tempo, não é considerada ativista.
O segundo significado, ativismo judicial como qualquer resultado controverso ou
indesejado, também é percebido por Cross e Lindquist (2006), que lhe atribuem outra
denominação, “um lamento” quanto a decisões impopulares. Tanto Cross e Lindquist (2006)
quanto Green (2009) verificam que usar o termo nesse sentido o torna um mero instrumento
retórico de defesa, sendo, então, plausível chamar de ativista qualquer decisão desagradável à
opinião do locutor, tornando-se o ativismo judicial, aplicado dessa forma, um termo
absolutamente inútil ao discurso por não exigir uma definição técnica.
Já o terceiro significado verificado por Green (2009), qualquer decisão que anula uma
lei, é citado também por Kmiec (2004) e Cross e Lindquist (2006) de forma ampliada como
sendo uma decisão que derruba um ato dos outros ramos do Governo, mas de forma mais
veemente, do Poder Legislativo. No entanto, esse significado é capaz de tornar impossível
atribuir objetividade ao termo, visto que, conforme Cross e Lindquist (2006), desde Marbury
15
v. Madison é entendido que o judiciário estadunidense tem a legítima função de verificar a
constitucionalidade dos atos dos outros poderes, de forma que cada indivíduo caracterizaria
como ativista a decisão que contrariar o que entende por Constituição, principalmente no que
tange princípios gerais.
Dessa forma, tal definição acharia empecilhos mesmo na cultura jurídica de Common
Law onde tem origem, e de fato, como afirma Tassinari (2013), esse significado teria ainda
menos aplicação em países que, assim como o Brasil, efetivamente possuem em suas
Constituições a previsão de controle de constitucionalidade abstrato dentre as funções da
Corte Constitucional, visto que nesses casos não há o que se questionar da legitimidade dessas
Cortes para derrubar atos dos outros poderes, desde que eivados de inconstitucionalidade,
evitando-se uma dúvida passível de ser suscitada em qualquer país adotante do sistema
Common Law.
Nesse erro incide também, em parte, Campos (2014) quando afirma que, além do
preenchimento “de vácuos de institucionalização surgidos com a omissão e o déficit funcional
desses poderes [Legislativo e Executivo]”, trecho que deverá ser ainda nesse tópico analisada,
o ativismo judicial são “interferências nas escolhas políticas do Executivo e do Legislativo”
fundadas principalmente “no discurso dos direitos fundamentais e na ideia de democracia
inclusiva, com interpretações criativas e expansivas de normas constitucionais” (CAMPOS,
2014, P. 257), uma descrição bem razoável para o que se entende por controle de
constitucionalidade.
A amálgama de todos esses significados, compreendida por Green (2009) como uma
das possibilidades de atribuição de sentido a “ativismo judicial” no discurso, de acordo com o
autor, é possível que seja o mais amplamente adotado pelos juristas modernos. Todavia, Green
(2009) ressalta que, adotando tal significado ao termo, é notável o quanto ele se torna
desnecessário para o discurso, visto que, ao utilizar a expressão “ativismo judicial”, o autor
sempre terá que explicitar o sentido no qual o toma.
Barroso (2009) oferece ainda uma outra definição para ativismo judicial, que ele
explica como sendo “um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo
seu sentido e seu alcance [com o objetivo de] extrair o máximo das potencialidades do texto
constitucional, sem, contudo, invadir o campo da criação livre do direito” (BARROSO, 2009,
p. 285).
Todavia, tal definição também pode ser considerado vazia de significado pois, de
acordo com Tassinari (2013), a descrição que o Ministro atribui ao termo ativismo judicial
nada mais é do que uma conceituação da atividade judicante, tornando ambos os termos
16
sinônimos e, novamente, gerando uma irrelevância quanto à existência da expressão “ativismo
judicial”, indo de encontro ao fato de que cada vez mais se faz referência ao termo.
Os significados modernos apontados por Green (2009) não passam, de acordo com o
autor, de uma amostragem dos sentidos nos quais os juristas atuais falam em ativismo judicial,
a qual neste texto tentou-se arrolar e analisar alguns outros. No entanto, Green (2009) afirma
que não importa o quanto os juristas tentem ignorar seu uso, o termo não desaparecerá, e para
Cross e Lindquist (2006), o excesso de uso da expressão não a tornará sem significado,
reiterando a necessidade de dar ao ativismo judicial um sentido único, considerando que as
generalizações apresentadas o deixam vazio de significação.
Em análise às decisões da Suprema Corte estadunidense que foram consideradas
ativistas pelos autores estudados, tem-se o lugar-comum de que em todas elas a Corte fez uso
de seu poder de Judicial Review, conquistado em Marbury v. Madison e tornado instituto do
Common Law estadunidense pela reiteração de sua aplicação para derrubar atos de outros
poderes. No entanto, ao mesmo tempo foi concluído que a mera revisão de tais atos é função
inerente à Corte considerada guardiã da Constituição, de forma que assim caracterizar
ativismo judicial tornaria o termo sinônimo de Judicial Review. Tal definição, como já
analisado aqui, por si só não prestaria utilidade ao termo e não justificaria seu crescente uso
em diversas culturas jurídicas.
Dessa forma, eliminadas algumas definições às quais não há fundamentação zetética
interessante, verifica-se uma definição pertinente, aplicável a regimes jurídicos tão variáveis
que neste estudo foi encontrada ao mesmo tempo em um artigo de um juiz australiano, em
livros de um jurista brasileiro e outro americano, aparecendo ainda em um estudo de cinco
anos liderado por um jurista sueco com um americano que abrangeu boa parte da Europa,
além de países de outros continentes. Essa definição trata uma decisão como ativista quando,
para tomá-la, o juiz toma decisões políticas e usa de suas convicções individuais para decidir
pela aplicação ou não de uma norma a um caso concreto (TATE, VALLINDER, 1995;
WOLFE, 1997; HEYDON, 2003; STRECK, 2011).
No entanto, apesar de ser útil e indispensável à descrição do ativismo judicial, tal
definição se entende aqui limitada pois, em discordância a Streck (2011) e Tassinari (2013)
quanto a sua afirmação de que uma decisão jurídica não pode se constituir de um ato de
vontade, entende-se aqui, como Kelsen (1999), Cappelletti (1999) e Ramos (2015) ser
indiscutível que, ao interpretar a norma, o juiz acaba por exercer um ato de vontade, ainda que
limitado às possibilidades da polissemia legislativa.
Kelsen (1999), Cappelletti (1999), Cittadino (2004) e Coelho (2015) inclusive
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concordam que interpretar o Direito é atividade criativa do Direito, sendo que, para o primeiro
autor, nesse momento o juiz poderá usar de elementos externos ao Direito, tais como a moral
e a política, sendo inevitável recorrer a eles devido à própria limitação inerente à letra de um
texto. Coelho (2015) destaca que a criação do direito pelo magistrado se trata inclusive de um
dever-poder do órgão judicante para garantir a prestação material de um direito abstrato e
Cappelletti (1999) reforça ainda que “o verdadeiro problema é […] o do grau de criatividade
e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários”
(CAPPELLETTI, 1999, p.21, grifo do autor), e não se uma decisão é criativa ou não, visto
que todas o são.
Essa consideração de Cappelletti (1999) justifica um complemento à definição de
Heydon (2003) e Streck (2011) tornando a definição de ativismo judicial mais técnica e
considerando a problematização real quanto à inelutável atividade criativa do judiciário, que
seria a sua limitação. Defende-se aqui, então que o conceito defendido por Tassinari (2013),
Coelho (2015) e Ramos (2015) de que tem postura ativista o juiz que exerce sua função além
dos limites que o ordenamento jurídico no qual está inserto lhe impõe deve inevitavelmente
está inclusa em um conceito de ativismo judicial.
Como corolário de seu conceito, afirma Ramos (2015) que as práticas ativistas
importam na “desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário em detrimento dos demais
poderes” (RAMOS, 2015, p.131). Aqui se pontua o segundo significado dado a ativismo
judicial por Campos (2014), havendo sido analisado acima o primeiro, visto que
preenchimento de omissões se configura como atividade legiferante e, a depender de seu grau
de criatividade, poderá ser, ou não, ativismo judicial. Nesse mesmo sentido entende Coelho
(2015, p. 14), afirmando que não há de se falar em ativismo judicial quando “o próprio texto
constitucional – pela sua abertura semântica – comporta leituras que, embora distintas, são
igualmente defensáveis ou plausíveis”.
Neste estudo, então, entender-se-á por ativismo judiciário a postura na qual o juiz,
tomando uma decisão política e usando de suas convicções para decidir sobre a aplicação de
uma norma (WOLFE, 1997; HEYDON, 2003; STRECK, 2011), ultrapassa nesse exercício os
limites a que está submetido pelo sistema constitucional de seu país (TASSINARI, 2014;
RAMOS, 2015). Percebe-se que tal conceito é aplicável tanto a países de cultura jurídica
baseada no Common Law quanto no Civil Law pois a ação do juiz sempre é, em diferentes
níveis, criativa, porém limitada seja por normas positivadas, seja por precedentes, e são esses
limites impostos pelas normas internas de cada Estado, principalmente pela Constituição, que
tornam possível definir se uma decisão é ativista ou autocontida.
18
3 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA
ATIVISTA NO BRASIL
“Não é a Constituição perfeita, mas será útil,
pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de
lamparina, na noite dos desgraçados.” (Ulysses
Guimarães)
As discussões sobre ativismo judicial tiveram início no Brasil já pelo final do século
XX e início do século XXI (CAMPOS, 2014), em torno de cinquenta anos após a publicação
do artigo de Schlesinger que criou a expressão ativismo judicial e, segundo Veríssimo (2008),
Tassinari (2013) e Campos (2014) não há o que se questionar da afirmação de que a
promulgação da Constituição Federal em 1988 tem ligação direta com essa ampliação.
Esse liame é formado em grande parte na dilatação considerável dos poderes do
Judiciário, precipuamente do Supremo Tribunal Federal, em especial no que diz respeito ao
controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado (CAMPOS, 2014; FERREIRA,
2014; RAMOS, 2015), o que de acordo com Cittadino (2004) é reflexo do processo de
judicialização da política no Brasil.
Ramos (2015) destaca ainda outro fator advindo da promulgação da Constituição
Federal de 1988 que contribuiu com o desenvolvimento do ativismo judicial no Brasil: as
normas Constitucionais possuírem sentido amplo devido a sua natureza predominantemente
principiológica, bem como a existência de conceitos indeterminados em muitas normas
constitucionais, no art. 62 caput da CF/88 sendo usados como exemplo os termos “relevância”
e “urgência” utilizados para condicionar a adoção de medida provisória com força de lei pelo
Presidente da República, que são de difícil definição.
Deverão ser estudados mais detalhadamente tais fatores para que se possa entender
como o Brasil iniciou seu processo de judicialização da política, criando terreno fértil que
favoreceu a adoção pelo Supremo Tribunal Federal de um peculiar ativismo judicial, segundo
Veríssimo (2008) marcado pela característica mista do Corte Constitucional brasileira, que é
competente para julgar ações em controle abstrato concentrado e difuso, mesclando os
sistemas europeu e estadunidense, o que a tornou o tribunal mais produtivo do Brasil,
contribuindo para o que o autor chamou de “ativismo à brasileira”.
19
3.1 Relação entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial
Tate e Vallinder (1995) definem Judicialização, de forma clara e sintética, como sendo
“transformar alguma coisa em uma forma de processo” (TATE, VALLINDER, 1995, p.13,
tradução nossa). Nessa linha de raciocínio, judicialização da política seria, portanto, em curtas
palavras, transformar temas essencialmente políticos em matéria de processos judiciais, ou
conforme Tate e Vallinder (1995) em um conceito mais elaborado, se trata da expansão da
jurisdição em detrimento dos outros poderes com a transferência do poder de decidir em
temas eminentemente políticos para o judiciário.
Os autores destacam ainda que são possíveis várias expressões da Judicialização da
política, porém consideram como sendo a mais significativa o exercício do judicial review, ou
controle de constitucionalidade, o que, por si só já teria o condão de posicionar o Poder
Judiciário acima dos outros dois (TATE, VALLINDER, 1995).
Ocorre que, como afirma Tassinari (2013), entender a judicialização da política passa
inevitavelmente pela compreensão das interações entre Direito, Política e Judiciário, que se
expressariam na própria definição de constitucionalismo, o que, para ela, se trata de uma
“tentativa jurídica (Direito) de oferecer limites para o poder político (Política), o que se dá por
meio das Constituições” (TASSINARI, 2013, p.28). Tate e Vallinder (1995) também
percebem esse limite, que seria o próprio texto constitucional, capaz de se contrapor a esse
exercício de Poder do Judiciário com o intuito de eliminar a arbitrariedade possível nesse
controle e permitir o equilíbrio entre os Poderes.
Destarte, é fácil perceber que o uso do controle de constitucionalidade funcionaria
como um freio aos abusos do Legislativo e do Executivo frente a uma Constituição escrita,
limite para o próprio controle de constitucionalidade e, conforme o que foi discutido nesse
trabalho, seria o trespassar dessa fronteira pelo magistrado o que aqui se entende como
ativismo judicial.
Para Valle (2009) o ativismo judicial é condição subjetiva dos magistrados que leva à
intensificação da judicialização da política no Brasil. No entanto, discorda-se da autora
quando afirma que a judicialização da política seria o resultado de um fenômeno estrutural
(VALLE, 2009). Para este trabalho, considera-se mais acertado o entendimento de Tate e
Vallinder (1995), Tassinari (2013), Campos (2014), Ferreira (2014) e Leite (2014) de que
judicialização da política é uma demanda da sociedade de que haja uma abrangência maior da
jurisdição sobre assuntos políticos, refletindo-se em alterações legislativas que aumentam o
poder do Judiciário, de forma que a judicialização da política ocasiona as mudanças
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estruturais na norma e não o contrário, como afirma Valle (2009).
De acordo com Tassinari (2014), pode-se dizer que é uma questão social baseada na
ineficiência do Estado em garantir a efetivação dos direitos por ele reconhecidos e que tem
como consequência o aumento da atividade jurisdicional com o pleito a esses direitos,
independendo, portanto da vontade dos magistrados para ocorrer, diferente do ativismo
judicial.
Tate e Vallinder (1995), assim como Valle (2009), entendem ainda que a decisão
ativista é a aceitação dos juízes a essa demanda social. Neste trabalho essa visão é
considerada limitada pois o conceito de ativismo judicial por Tate e Vallinder (1996) adotado
perfaz apenas uma das condições para que uma decisão seja considerada ativista de acordo
com a definição aqui adotada, que seria a fundamentação pelo magistrado em seu próprio
posicionamento político. Nesse ponto, entende-se aqui que uma decisão política não
necessariamente seria ativista, se margeada pelas possibilidades da norma constitucional,
considerando-se esse ato um mero exercício do poder judicante.
No entanto, é inegável que a noção de judicialização da política de Tate e Vallinder
(1995) proporciona possibilidade para o magistrado assumir uma postura ativista de uma
forma que, em uma situação na qual o judiciário tem suas competências reduzidas, não seria
possível. A judicialização da política não traz mudanças apenas institucionais, mas também na
forma de se pensar o Direito e a Jurisdição, possibilitando, conforme Trindade e de Morais
(2006) a adoção de uma nova teoria constitucional, capaz de abarcar o movimento da
judicialização da politica, até o ponto em que o próprio judiciário percebe a demanda social
por uma maior atuação como uma permissão para ultrapassar os limites constitucionais de sua
jurisdição em função de uma concretização dessa demanda.
Essa ligação estreita entre judicialização da política e ativismo judicial, na qual a
judicialização da política gera ambiente que torna possível o ativismo judicial (TATE,
VALLINDER, 1996) ao mesmo tempo em que é intensificada por ele, deverá ser aprofundada
adiante, quando serão analisados alguns aspectos da Constituição Federal de 1988 que
refletem e propiciaram a judicialização da política e como a postura ativista do STF tem uma
conexão intrínseca com as fases da judicialização da política no Brasil.
3.2 A Constituição Federal de 1988
Segundo Veríssimo (2008) e Tassinari (2013), a experiência brasileira de retorno à
Democracia vai muito além do regime de governo e da participação política, diz respeito
21
também a “[…] direitos de inclusão social: é, portanto, uma democracia social marcada pela
garantia de direitos sociais próprios a um Estado que se quis fundar como wellfarista, e que
tem objetivos declarados de transformação social, redução de desigualdades de renda e de
oportunidades, e também de desigualdades regionais” (VERÍSSIMO, 2008, p.408, grifo do
autor), característica que deu à Constituição Federal de 1988 o epíteto de “Constituição
Cidadã”.
Alguns aspectos da Carta de 1988 ensejaram diretamente o processo de judicialização
da política, que teve continuidade com, dentre outras normas pós-constituição, a Emenda
Constitucional nº45 de 2004 e o instituto do stare decisis adotado pelo Código de Processo
Civil de 2015, permitindo que, desde o início do século XXI, uma previsível postura ativista
tomasse forma entre os ministros do STF.
Aqui quatro desses aspectos serão estudados, a “normatização do direito”
(CITTADINO, 2004; BARROSO, 2009; MACHADO, 2009), a ampliação do acesso à
jurisdição constitucional (CITTADINO, 2004; VERÍSSIMO, 2008; BARROSO, 2009;
CRUZ,
2010;
CAMPOS,
2014;
RAMOS,
2015),
a
expansão
do
controle
de
constitucionalidade (BARROSO, 2009; VERÍSSIMO, 2008; MACHADO, 2009; CAMPOS,
2014; RAMOS, 2015) e o caráter predominantemente principiológico das normas
constitucionais (RAMOS, 2015), deixando-se claro que tais características da CF/88 não
esgotam as justificativas possíveis para o fenômeno da judicialização da política, a restrição
deste texto a elas tendo por base apenas a relevância para o estudo da cultura do ativismo
judicial no Brasil.
O primeiro aspecto considerado capaz de ligar a Constituição Federal de 1988 e o
processo de judicialização da política que se prolonga até os dias de hoje é o que Cittadino
(2004) denomina de “normatização de Direitos” e usa como sinônimo a “juridificação das
esferas da vida social”, o que seria uma tentativa de possibilitar o alcance à jurisdição de
questões que antes eram resolvidas extrajudicialmente, o que certamente tem grande
influência no aumento da ação do judiciário.
No entanto, no que tange o aumento da atividade do STF, o fenômeno que Barroso
(2009) titularizou “constitucionalização abrangente”, espécie de que é gênero a “normatização
de direitos”, tem ainda mais peso no processo de judicialização da política. Em síntese de
Machado (2009), a “constitucionalização abrangente” de Barroso (2009) é descrita como
sendo a conferência de status constitucional a assuntos que normalmente seriam tratados em
legislação infraconstitucional. Seria a “normatização de direitos” de forma específica no texto
constitucional.
22
Sobre isso Barroso (2009) externa o porquê de considerar tal fenômeno uma das
causas dos avanços da judicialização da política, inclusive afirmando que, intuitivamente,
“[…] constitucionalizar uma matéria significa transformar política em direito” (BARROSO,
2009, p.24) na medida em que permite que temas de natureza política como políticas públicas
se tornem alvos de processos judiciais.
Machado (2009) afirma ainda que tal fenômeno, retratado por Barroso (2009) como
reflexo de uma desconfiança do constituinte, e consequentemente da população, ante o
legislador, tendo como consequência direta a ampliação de possíveis parâmetros em questões
de inconstitucionalidade, dessa forma contribuindo imediatamente para o aumento de
demandas judiciais envolvendo controle de constitucionalidade, afetando especialmente o
Supremo Tribunal Federal. Acerca disso, Veríssimo (2009) explica:
Adicionalmente, o texto constitucional transformou em regra jurídica um
conjunto amplo e por vezes contraditório de anseios sociais e políticos,
consagrando ideais de liberdade individual e igualdade material, propriedade
e redistribuição de renda, liberdade de empresa e dirigismo econômico.
Outorgou à justiça a tarefa de implementar esse plano difuso de ação e
ampliou significativamente os mecanismos de acesso que instrumentalizam
esse ideal. (VERÍSSIMO, 2009, p. 411).
O que, conforme Veríssimo (2008), foi um meio encontrado para garantir a efetividade
dos direitos e princípios contidos no próprio texto constitucional leva ao segundo aspecto da
CF/88 que contribuiu com a judicialização da política. De acordo com Cittadino (2004), em
consequência à fase de transição de regime autoritário para o sistema democrático na qual foi
redigida, a Constituição Federal de 1988 iniciou um processo de ampliação da ação judicial,
podendo-se entender o desenvolvimento da judicialização da política como uma reação à
Ditadura Militar, tanto em razão da patente redução de direitos individuais e sociais que
levaram ao mencionado fenômeno da “normatização do direito” quanto à contenção imposta
ao Supremo Tribunal Federal.
Ressalte-se que a inércia do Supremo Tribunal Federal no período ditatorial não se
deveu ao texto da Constituição de 1967 vigente à época pois houve uma manutenção do
controle de constitucionalidade concentrado abstrato (BRASIL, 1967), conquistado com a
Emenda Constitucional nº16 de 1965 à Constituição de 1946, criadora da arguição de
inconstitucionalidade de lei federal ou estadual por ação direta (BARROSO, 2006; CAMPOS,
2014), nesse sentido não havendo evolução ou retrocesso nas competências do STF.
De acordo com Campos (2014), a desvalorização institucional do Supremo Tribunal
Federal se deu de fato em razão das pressões externas impostas pelo Executivo, que não
apenas aposentou compulsoriamente três ministros do STF em 1969 como garantiu, com a
23
saída em protesto de outros dois ministros e a redução de 15 para 11 magistrados na
composição da Corte Constitucional, que o tribunal fosse formado exclusivamente por
ministros indicados por presidentes militares. A situação foi consequência imediata do art. 6º
do Ato Institucional nº 5 (BRASIL, 1968) que retirava a estabilidade e a vitaliciedade dos
funcionários públicos, ministros do STF inclusos.
Com efeito, a CF/88 tentou escudar o novo regime política e socialmente democrático
de futuros golpes fortalecendo o Poder Judiciário e nomeando o Supremo Tribunal Federal
“Guardião da Constituição” expressamente no próprio texto constitucional, em seu art. 102
caput (BRASIL, 1988). Para tanto, o Constituinte garantiu as duas características da
Constituição Federal de 1988 que aqui serão analisados.
O segundo aspecto é o que, conforme Veríssimo (2008), traduz-se como uma
popularização das vias de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal Federal por meio, como
Veríssimo (2008), Cruz (2010) e Campos (2014) verificam, da amplificação do rol de
legitimados para as ações de controle concentrado abstrato de constitucionalidade, no caso as
ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e de inconstitucionalidade por omissão (ADO), a
ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a arguição de descumprimento de preceito
fundamental (ADPF).
De acordo com o art. 114 inciso I alínea l da Constituição de 1967 (BRASIL, 1967),
apenas poderia arguir inconstitucionalidade de norma estadual ou federal, em ação direta de
inconstitucionalidade proposta em instância única ao Supremo Tribunal Federal, o
Procurador-Geral da República, que é subordinado ao Presidente da República, implicando
que somente um representante do próprio Estado, ressalte-se, do Poder Executivo, poderia
questionar a constitucionalidade de uma norma, o que, segundo Campos (2014) limitava o
controle apenas aos assuntos interessantes ao Governo Federal.
A Constituição de 1988 criou um rol bem mais amplo, incluindo, além do ProcuradorGeral da República, que manteve sua legitimidade, o Presidente da República, a Mesa da
Câmara dos Deputados, a Mesa do Senado Federal, a Mesa das Assembleias Legislativas e o
Governador do Estado. Destaca-se que o rol inclui ainda representantes da sociedade civil,
sendo as entidades de classe, as confederações sindicais a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) e os Partidos Políticos com representação no Congresso Nacional (BRASIL, 1988), o
que Campos (2014) destaca como uma “revolução político-institucional no papel que o
Supremo passaria a cumprir [...]” (CAMPOS, 2014, p.233).
Se por um lado em sede de controle difuso de constitucionalidade Campos (2014) e
Ramos (2015) afirmam que se tem a manutenção do modelo estadunidense que inspirou as
24
Constituições desde a Carta de 1891, destaca-se aqui o terceiro aspecto de crescimento do
Poder Judiciário, a expansão do controle de constitucionalidade resultante da criação da ADO
e da ADPF pelos Constituintes, ato que foi, por si só, uma demonstração de que era esperado
um processo de judicialização da política.
Tais considerações se dão em razão de a primeira ação representar uma interferência
direta nos atos dos outros poderes, abrindo espaço para a postura ativista em razão da inércia
de outros entes, e a segunda ação, de caráter subsidiário, ampliar consideravelmente as
possibilidades de análise da constitucionalidade de uma norma ou sua recepção pela CF/88,
caso lhe seja anterior, sendo ainda condicionado a um termo que, segundo Cruz (2010) possui
uma definição imprecisa, a própria expressão “preceito fundamental”.
Segundo Campos (2014), mesmo a possibilidade de modulação de efeitos de decisões
em ADI, ADO e ADC, garantida pela Lei nº 9.868/99 que regulamenta os processos nessas
ações, representa um aumento considerável do que ele chamou de poder político-normativo,
pois para modular efeitos o Supremo Tribunal Federal ganha legitimidade para dar eficácia a
uma norma nula ab initio, e que em nosso ordenamento não poderia surtir efeito algum, para
isso usando em seus argumentos de termos vagos como segurança jurídica e interesse social.
Essa patente evolução pela qual passaram o controle de constitucionalidade em ambos
os modelos difuso e concentrado, conforme Ramos (2015) contribuem consideravelmente
para o desenvolvimento de uma postura ativista dentre os juízes principalmente por ser um ato
jurisdicional em proximidade com a função legiferante e por interferir diretamente nos
próprios atos dos outros poderes que são nele discutidos.
Nesse sentido, Ramos (2015) explica também o quarto aspecto da Constituição
Federal de 1988 aqui destacado, o fato de que as normas constitucionais que servem de
parâmetro para o julgador tem predominantemente natureza principiológica, e que, conforme
Teixeira (2012), possuem tal nível de abstração que se torna impossível uma solução precisa a
um problema que envolva sua interpretação.
Esse caráter principiológico de muitas normas constitucionais conduzem o magistrado,
de acordo com Ramos (2015), ao “[…] desdobramento de seu significado de base,
construindo disciplinas normativas que a eles se relacionam, mas que deles não decorrem”
(RAMOS, 2015, p.293), havendo como consequência direta a criação de uma norma.
Afinal, aduz Ramos (2015) ainda que a imaturidade institucional de uma Corte
Constitucional que apenas recentemente saiu das amarras de uma Ditadura do Executivo
também é fator de grande relevância para a adoção de uma postura ativista pelo julgador,
havendo o que o autor chamou de “deslumbramento” com o exercício de controle que
25
encontraria redução conforme houvesse um amadurecimento institucional. A critério de
exemplo, Ramos (2015) cita o sistema de controle europeu, que exigiria do magistrado uma
postura autocontida depois de passar por esse processo de amadurecimento.
3.3 As Fases da Judicialização da Política no Brasil e a Postura dos Magistrados
O processo de judicialização da política no Brasil, marcado pela promulgação da
Constituição Federal de 1988, foi súbito na lei, porém gradativo em relação à sua recepção
pelos magistrados. De acordo com Trindade e de Morais (2006) esse processo pode ser
dividido em três fases distintas que têm relação direta com a postura autocontida ou ativista
dos juízes, principalmente dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Já Campos (2014)
divide esse período em duas fases, incluindo no final da primeira e no início da segunda a fase
que Trindade e de Morais (2006) têm o cuidado de apontar como a transição, um período a
parte, entre a primeira e última fase que reconhecem.
É interessante analisar brevemente essas fases pois refletem o liame lógico entre a
judicialização da política e o ativismo judicial no Brasil, e são reflexos da maneira como
foram incorporadas as modificações que a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto
com o fito de aumentar a ação do judiciário.
A promulgação da Carta de 1988 aconteceu em um momento de ruptura de um regime
totalitário que restringia liberdades individuais, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal
“apanhou mais do que bateu […] submetendo-se ao Poder Executivo hipertrofiado.”
(CAMPOS, 2014, p. 231), para um período de progressiva redemocratização do Estado sendo,
portanto, natural que a Corte Constitucional levasse algum tempo para se adaptar à ampliação
de seus poderes.
Para Campos (2014), essa adaptação se iniciou modesta, com um Supremo Tribunal
Federal passivo e ainda preso à sua antiga posição político-jurídica, em um período
imediatamente pós-1988 a que o autor chamou passivismo judicial. Trindade e de Morais
(2006) denominam tal período de “fase da ressaca” e descrevem uma crise dogmática do
direito devido à grande mudança de perspectiva que a nova Constituição trazia, reconhecendo
a consequente necessidade de haver uma mudança radical também no magistrado que aplica
essas alterações.
Pontuam inclusive Trindade e de Morais (2006), em consonância com Campos (2014),
que a formação da Corte anterior a 1988 se manteve ainda por alguns anos, composta apenas
por Ministros apontados por Presidentes da República do Regime Militar. Os autores
26
entendem que essa fase teve curta duração, tendo fim, para Campos (2014), em meados dos
anos 90, período em que para Trindade e de Morais (2006) se iniciaria uma transição para a
fase atual.
Campos (2014) aponta nessa fase uma característica defensiva por parte do Supremo
Tribunal Federal, ele próprio se negando competências e poderes. Não seria estranho
relacionar essa postura ao posicionamento da Suprema Corte Estadunidense em Marbury v.
Madison, quando paradoxalmente a Corte, usando de uma postura ativista exatamente por ter
criado instituto inexistente na Constituição, usou disso para diminuir seu poder de
interferência nos atos administrativos. Como exemplo disso, Trindade e de Morais (2006) e
Campos (2014) afirmam que foi nessa primeira fase que o próprio STF limitou o uso do
mandado de injunção para mero reconhecimento da lacuna legislativa que impedia o exercício
de direito constitucionalmente previsto, considerando sua incompetência para legislar
positivamente de forma a suprir tal lacuna.
Além dessa limitação à decisão em mandado de injunção, Campos (2014) destaca que
o Supremo Tribunal Federal ainda condicionou à pertinência temática por meio de sua
jurisprudência o ingresso em ADI por Governadores, Assembleias Legislativas e
confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional, restringindo dessa forma o
pleito da sociedade civil em caso de inconstitucionalidade.
Trindade e de Morais (2006) e Campos (2014) chamam ainda a atenção para a recusa
da Suprema Corte brasileira em dar eficácia a direitos fundamentais sociais previstos na nova
Constituição, além da postura extremamente contida da Corte em relação ao Poder Executivo,
o que permitiu um enorme quantidade de medidas provisórias e suas numerosas reedições,
ocorridas principalmente no governo Collor, valendo-se da imprecisão dos termos do art. 62
da CF/88 “relevância” e “urgência”, vedando essas medidas apenas em situação de “excesso
de poder legislativo”, dando caráter político a tais normas e permitindo uma
discricionariedade considerável para a Corte decidir o que seria, ou não, um “excesso de
poder legislativo”.
Trindade e de Morais (2006) pontuam também a consequência da nova ordem
Constitucional no ensino jurídico brasileiro, explanando que essa fase reflete uma dogmática
jurídica tradicional, baseada no período anterior à Constituição Federal de 1988, o que
resultou em uma leva de juristas inicialmente presos aos paradigmas do período de Regime
Militar e contribuiu para que as mudanças pensadas pelo constituinte demorassem a sair do
papel.
A segunda e atual fase descrita por Campos (2014), a qual ele chama de avanço do
27
protagonismo institucional do Supremo Tribunal Federal, para Trindade e de Morais (2006) é
precedida pelo que chamaram de fase de constitucionalização, que os autores explicam como
se tratando do “descobrimento da Constituição”, ocorrendo no início dos anos 90 e tendo
grande contribuição principalmente do estudo da obra do jurista português Gomes Canotilho,
bem como de vários autores contemporâneos que viam a necessidade de se pensar uma nova
teoria constitucional condizente com as mudanças históricas percebidas nas décadas de 70 e
80.
Trindade e de Morais (2006) aponta como uma das principais características dessa fase
de transição a exigência crescente da sociedade de que os juízes buscassem a concretização
dos direitos fundamentais, requerendo uma postura mais ativa do judiciário para tanto. Nesse
período houve um crescimento gradual das decisões que concediam eficácia imediata a
direitos fundamentais sociais como saúde, educação e moradia e o judiciário passou a ter
envolvimento em assuntos que antes tinham como função exclusiva dos Poderes Legislativo e
Executivo, que seriam as políticas públicas.
Desemboca-se, nesse ponto, na já mencionada segunda fase de Campos (2014), ou
terceira fase de Trindade e de Morais (2006), pelo primeiro, chamada de avanço do
protagonismo institucional do Supremo Tribunal Federal, pelos segundos, denominada
simplesmente fase ativista. Nesse ponto, Trindade e de Morais (2006) e Campos (2014) se
posicionam de maneira diametralmente oposta diante do mesmo fato: a adoção de uma
postura iminentemente ativista pelo judiciário como um todo, mas principalmente pelo
Supremo Tribunal Federal, o que se dá em razão da diferença de significado que dão ao termo
“ativismo judicial”.
Como foi explorado neste trabalho em tópico anterior, para Campos (2014) “ativismo
judicial” se aproxima consideravelmente do conceito de judicial review, enquanto Trindade e
de Morais (2006) preferem entender ativismo como postura na qual os tribunais não se
mantêm dentro dos limites que lhe são constitucionalmente impostos, conceituação pela qual
se toma ativismo judicial neste trabalho.
Trindade e de Morais (2006) consideram como os marcos que simbolicamente
encerram a fase de constitucionalização e iniciam a fase ativista a renovação da composição
do Supremo Tribunal Federal em 2003 e, um ano depois, a promulgação da Emenda
Constitucional nº 45/2004, derivando do processo de judicialização da política iniciado com o
texto constitucional a postura ativista que o STF vêm adotando. Torna-se essencial, portanto,
analisar brevemente essa Emenda Constitucional que reformou o Poder Judiciário em vários
aspectos, alguns de inquestionável importância para o desenvolvimento do ativismo judicial
28
na Suprema Corte brasileira.
3.4 A Emenda Constitucional nº45/2004 e as Súmulas Vinculantes
Quatorze anos depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, que, conforme
discutido em tópico anterior, já havia trazido em seu texto alterações estruturais suficientes
para desenvolver um processo de judicialização da política no Brasil, foi aprovada a Emenda
Constitucional nº 45/2004, tendo em seu conteúdo o que juristas como Pereira (2009) e
Ramos (2015) chamaram de Reforma do Judiciário, acrescentando ao texto constitucional,
dentre outras, uma notável inovação para o judiciário brasileiro: a súmula vinculante.
A EC nº45/2004 acrescentou à Constituição Federal de 1988 o art. 103-A
estabelecendo que
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante
decisão de um terço de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa
oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento na
forma estabelecida em lei. (BRASIL, 1988)
Apesar de, conforme Sampaio e Fringini (2016), junto ao instituto da repercussão
geral, as súmulas vinculantes serem uma aproximação dos efeitos em controle abstrato
daqueles atribuídos ao controle concreto, de forma que baseado no que se analisou até aqui
pode ser considerado fator de judicialização da política, Veríssimo (2008) entende que ocorreu
exatamente o contrário. Para ele, se tratava de uma reação defensiva quanto ao fluxo de
processos que a Corte recebia para julgamento, o que era uma consequência direta do
processo de judicialização da política que se iniciara no Brasil com a CF/88, de forma que
seriam uma tentativa de mitigar tal processo.
Ainda segundo Veríssimo (2008), em razão do caráter misto do STF, mesmo depois da
aprovação da Emenda da Reforma do Judiciário, pelo menos até 2008 cada ministro recebia
para julgar em torno de 10.000 feitos anualmente, dentre recursos, ações de controle de
constitucionalidade e ações de competência originária do STF, o que superava em oito vezes a
média de produtividade dos magistrados no Brasil, tornando-se a Corte mais produtiva do
Brasil e, possivelmente, uma das mais produtivas do mundo.
No entanto, apesar de Veríssimo (2008) entender o instituto das súmulas vinculantes
como instrumento de combate à judicialização da politica, Ramos (2015) o percebe como
atividade normativa atípica do Supremo Tribunal Federal, pois se diferencia da função
29
legislativa que a Constituição lhe delegou com a intenção de manter a independência do
poder, agindo como elemento de impulsão para o ativismo judicial.
Ramos (2015) é claro ao afirmar que, ainda quando se considera que a jurisdição é
uma atividade de criação normativa, seja para o caso concreto, seja na criação de normas
abstratas quando em controle de constitucionalidade abstrato, o juiz não tem a iniciativa de
criá-la pelo princípio da inércia e nem tem a discricionariedade de escolher se a cria ou não,
diferente do que acontece com as súmulas vinculantes. Ressalte-se ainda que, conforme
Machado (2009) aponta, antes da Emenda Constitucional nº 45/2004 apenas as decisões em
ADI e ADC tinham caráter vinculante, e com a instituição das súmulas vinculantes tal efeito
passou a ser possível nas decisões em controle de constitucionalidade difuso concreto.
Machado (2009, p. 94) pontua que “um novo quadro foi pintado com a Emenda 45 de
2004, o quadro de uma jurisdição constitucional que pode mais: pode tornar o entendimento
de 11 ministros – acerca dos mais variados e complexos assuntos – obrigatório para toda a
estrutura do Poder Judiciário e Executivo”, servindo de obstáculo para mudanças de
posicionamento inclusive no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal.
Mais do que vincular o Judiciário e o Executivo, como afirma Coelho (2015), as
súmulas vinculantes, apesar de não vincularem diretamente o Legislativo, têm um
considerável potencial de limitar a ação do ente legiferante, visto que uma lei que contrarie
uma súmula vinculante visando anulá-la pode facilmente ser declarada nula em sede de
controle de constitucionalidade, e considerada consequentemente sem nenhum efeito,
mantendo intacta a súmula questionada. Tal cenário é possível em razão de que uma decisão
sumulada supostamente advém de uma interpretação de norma constitucional passível de ser
parâmetro em controle. Coelho (2015) chega a afirmar que a súmula vinculante tem pretensão
de impor-se tal como preceitos constitucionais.
Para Ramos (2014) as súmulas vinculantes podem ser consideradas uma aproximação
excessiva e desnecessária com a atividade legiferante, falhando inclusive em seu intuito
inicial percebido também por Veríssimo (2004) de reduzir a carga de processos no STF em
razão de que, por se tratarem de enunciados escritos, estão propensas a todos os conflitos em
interpretação que as leis em geral, e a reclamação constitucional acabará por levar tais
conflitos de volta ao Supremo Tribunal Federal. Ainda segundo Ramos, esse aspecto de
aproximar excessivamente a atividade do juiz à do legislador é capaz de gerar um cenário
propício à postura ativista no STF.
Além do instituto da súmula vinculante, em 2015 foi aprovado um novo Código de
Processo Civil que começou a vigorar em 2016, inaugurando um sistema de vinculação a
30
precedentes no Brasil, o que, para Sampaio e Frigini (2016) é a cominação positivada de uma
série de posicionamentos jurisprudenciais acerca da eficácia erga omnes no controle de
constitucionalidade difuso concreto, uma inquestionável aproximação do sistema civil law
brasileiro ao sistema common law, que considera a jurisprudência fonte primária do Direito.
Tem-se aí um desencadeamento lógico de que, ao aproximar-se o direito nacional com o
sistema que proporcionou as primeiras decisões ativistas de que se tem notícia, fertilizar-se-á
o terreno ainda mais para o desenvolvimento já latente da cultura ativista no Brasil.
Fato se faz, no entanto, que diversos juristas brasileiros que analisam o cenário
jurídico recente, tais como Machado (2009), Streck (2011), Tassinari (2013), Campos (2014),
Ferreira (2014), Leite (2014), Coelho (2015), Ramos (2015), dentre muitos outros, apesar de
divergirem tanto no sentido que dão ao termo quanto à valoração que atribuem a ele,
concordam que, no Brasil, são cada vez mais frequentes as decisões do Supremo Tribunal
Federal que merecem ser ditas advindas da adoção de uma postura ativista, percebendo-se o
desenvolvimento de uma cultura do ativismo na comunidade jurídica nacional. Faz-se
necessária uma análise de como essa cultura se reflete nas decisões atuais, o que será levado
adiante no capítulo que se segue.
4 A CULTURA DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NA
JURISPRUDÊNCIA ATUAL
“Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão
dar contornos definidos e inequívocos à
condição que o limita.” (Ruy Barbosa)
Após definir ativismo judicial e mostrar como tal postura ganhou espaço no Supremo
Tribunal Federal, volta-se à real problemática em questão, que seria, conforme Coelho (2015,
p. 16), “delimitar-se a fronteira entre criação do direito conforme ou desconforme com o
traçado constitucional da separação dos poderes”. Apesar de não haver pretensão neste
trabalho em delimitar tal fronteira, serão feitas breves análises de duas decisões recentes do
STF que alguns doutrinadores percebem como oriundas de uma postura eminentemente
ativista, tentando-se verificar o porquê de elas assim serem consideradas.
No entanto, deve-se ressaltar que ao analisar essas decisões não se adentrará em seus
méritos, nem se fará qualquer juízo de valor quanto ao que nelas se defende. Destaca-se, pois,
que conforme se vê do breve estudo da história do ativismo judicial nos Estados Unidos, é
31
possível se perceber decisões consideradas ativistas como Brown v. Board of Education of
Topeka que foram criticadas positivamente e outras como Lochner v. New York com
resultados sociais considerados negativos.
Notam-se também decisões caracterizadas como autocontidas com resultados
reprováveis, como Korematsu v. United States, e outras, como West Coast Hotel v. Parrish,
autocontidas, porém consideradas positivas pelos juristas. Valorá-las em seu conteúdo, além
de comprometer a objetividade deste trabalho excedendo-se os níveis de subjetividade autoral
razoável, seria ainda arriscar cair em uma das definições reducionistas citadas por Green
(2009): considerar toda decisão reprovável ativista.
Usar-se-á como base para se concluir nesse trabalho quanto a uma postura ativista ou
não da Corte o que Coelho (2015) descreve bem como limitação à liberdade de o órgão
judicante criar o direito:
A liberdade do intérprete/aplicador do direito, por outro lado, há de ser uma
liberdade responsável e auto-controlada, pois não lhe é dado introduzir na lei
o que deseja extrair dela e tampouco aproveitar-se da abertura semântica dos
textos para neles inserir, fraudulentamente, conteúdos que, de antemão, ele
sabe serem incompatíveis com esses enunciados normativos. (COELHO,
2015, pp. 17-18)
Nesse ínterim, verificar-se-á qual norma constitucional serviu de parâmetro para a
tomada de decisão e como foi ou não aplicada, para então tomar-se decisão sobre se o
resultado é refletido na assunção de uma postura ativista ou se apenas se tratou de uma técnica
interpretativa do texto constitucional. Propositadamente, escolheu-se aqui para análise um
caso em controle de constitucionalidade difuso concreto e outro em controle concentrado
abstrato para que se verifique a possibilidade de ativismo judicial em ambos os modelos de
controle.
Serão aqui analisados as ADCs nº29 e nº30 e a ADI nº4.578, julgadas juntas na ADC
nº29, que tratavam da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa ante o princípio da
presunção de inocência e a decisão em liminar no MS nº32326, que tratou da perda de
mandato de deputado condenado a regime fechado. Ressalte-se que ambas as decisões tiveram
imenso apoio popular e não é impossível que tragam consequências práticas consideradas
positivas para a sociedade, mas o mérito delas aqui se manterá intocado, buscando-se
responder apenas se o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, manteve-se dentro de seus
limites constitucionais.
32
4.1 As ADCs nº29 e nº30 e a ADI nº4.578 e o princípio constitucional da presunção de
inocência
O princípio constitucional da presunção de inocência é previsto no rol dos direitos
fundamentais do art. 5º LVII da Constituição nos termos: “ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). Tal princípio é
reiteradamente lembrado na Carta nos art.15, art. 41 §1º, art. 55 VI, art. 95 I, art. 128 §5º I e
art. 142 §3º VII (BRASIL, 1988) quando se questiona a aplicação de penas como perda de
nacionalidade, cargo público ou mandato, sempre havendo por parâmetro o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória como extinção da presunção de inocência no
principalmente no âmbito do processo penal.
A Lei Complementar 135 de 2010 foi, segundo Medina (2015), norma suportada pela
possibilidade dada ao legislador pelo constituinte no art. 14 §9º da Constituição de 1988 de
estabelecer outros casos de inelegibilidade além dos listados na própria Constituição através
de lei complementar. Essa norma trazia alterações ao texto da Lei Complementar 64 de 1990,
dentre elas mudanças nas redações das alíneas “d”,“e” e “h” de seu art. 1º I, além de
acrescentar as alíneas “j”, “l” e “m” no mesmo inciso do art. 1º.
Originalmente, as alíneas “d”,“e” e “h” diziam respectivamente que se tornavam
inelegíveis os indivíduos que fossem condenados por decisão transitada em julgado em
processo de apuração de abuso do poder econômico ou político pela Justiça Eleitoral ou que
fossem condenados criminalmente, também passado o trânsito em julgado, por crimes listados
na lei ou ainda o membro da administração pública que beneficiasse a si ou a terceiro por
abuso do poder econômico ou político após o trânsito em julgado de decisão condenatória.
Após a LC 135/2010, tantos os novos dispositivos, quanto os alterados, passaram a ter, além
da decisão transitada em julgado, decisão proferida por órgão colegiado na forma
exemplificada:
Art. 1º São inelegíveis
I - para qualquer cargo:
(…)
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente
pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por
órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou
político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem
como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou
proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso
do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
(…)
(BRASIL, 1992)
33
Ainda segundo Medina (2015), tais alterações foram feitas com o intuito de garantir o
princípio da moralidade e a probidade administrativa no exercício de mandato eletivo. No
entanto, não é difícil perceber que uma decisão em órgão judicial colegiado, seja criminal,
seja eleitoral, não necessariamente trará o trânsito em julgado como consequência, de sorte
que a nova redação trazida à LC 64 de 1990 pela LC 135 de 2010, que ficou conhecida como
Lei da Ficha Limpa, vai totalmente de encontro com o princípio constitucional da presunção
de inocência, punindo indivíduos que, constitucionalmente, são presumidos inocentes.
As ADCs nº29 e nº30 e a ADI nº4.578 suscitaram esse debate no Supremo Tribunal
Federal, o que resultou no histórico julgamento em que declarou a polêmica
constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Conforme Santoro (2014), muitos foram os temas
que chegaram a ser discutidos e os princípios a serem ponderados no julgamento dessas ações,
no entanto este trabalho se aterá aos princípios constitucionais da presunção de inocência
como garantia fundamental individual, da moralidade e da probidade da administração
pública, que foram chaves para a cominação em uma declaração de constitucionalidade e, por
si só, são capazes de suprir nesse trabalho o objetivo.
Um dos principais argumentos da defesa da constitucionalidade da LC 135 de 2010
seria o fato de que a lei partiu de iniciativa popular como um fator de legitimação de seu
conteúdo e se deu como consequência de a ação ser uma disputa entre um direito individual –
a presunção de inocência – e o interesse coletivo – os princípios da administração pública. Tal
argumento, conforme Medina (2015) e Santoro (2014) afirmam, foi apresentado pelo relator
Ministro Luiz Fux e fortemente ressaltado pelo voto-vista do Ministro Joaquim Barbosa, que
afirmou ser a propositura popular de tal lei um clamor da sociedade contra a corrupção que
assola a política brasileira, devendo necessariamente ser considerada a supremacia do
interesse público sobre as garantias individuais.
Esse certamente é um argumento que coaduna com uma postura ativista por seu
caráter político, não condizendo com a atuação contramajoritária que, segundo Barroso
(2009), compete a um ministro do Supremo Tribunal Federal manter sempre que necessário à
manutenção de uma garantia constitucional, afinal, “a conservação e a promoção dos direitos
fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas é uma condição do
funcionamento do constitucionalismo democrático” (BARROSO, 2009, p.30).
Aliás, segundo Santoro (2014), o rebate a esse argumento proposto pelo primeiro
divergente, o Ministro Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio na qual, depois de fazer
referência ao período de Ditadura Militar, quando através da LC 5 de 1970, que permitia ser a
34
mera abertura de um processo criminal causa suficiente para a inelegibilidade do indivíduo e
em razão disso a probidade e a moralidade da administração foram usadas de maneira
abusiva, o ministro disse:
Veja-se que o problema atualmente submetido ao crivo deste Pretório Excelso
não é novo, e os fundamentos moralizantes, típicos de épocas de “salvação
nacional”, estão de volta ao cenário político-jurídico da Nação. Ao menos por
esse importante aspecto, julgo não ser ocioso avivar a memória coletiva sobre
a correlação histórica e os riscos do discurso moralizante, quando ele chega
ao extremo de desrespeitar o núcleo essencial de direitos fundamentais, ainda
que de indivíduos pelos quais não se exprime uma opinião das mais
favoráveis. [...] As pedras de toque do sistema constitucional, tais qual o
núcleo essencial dos direitos fundamentais, intangíveis, são objeto, por vezes,
de tentativa de quebra. Pequenas fissuras, em certos casos, resultam em
fraturas graves à estrutura do edifício normativo, e podem levar a sua ruína.
O papel da Corte, às vezes desgostoso, mas necessário, é de combater abusos
perpetrados pelo Poder Público, ainda quando veiculados pelo poder
legiferante. (DISTRITO FEDERAL, 2010, p.80)
O Ministro Gilmar Mendes, também divergente, fez coro à fala do Ministro Dias
Toffoli, dizendo ser a missão da Suprema Corte aplicar a Constituição, mesmo que para isso
seja necessário contrariar a opinião popular (DISTRITO FEDERAL, 2010). Essa mera
possibilidade de atuação contramajoritária do STF, garante que a defesa da vontade da maioria
quando envolve reduzir o alcance de direitos e garantias sempre seja considerada uma postura
política, principalmente se existirem outros meios de se alcançar o fim sem que haja essa
redução.
No caso em tela o Ministro Gilmar Mendes faz referência ao voto e à seleção
partidária dos candidatos (DISTRITO FEDERAL, 2010) e se pode citar ainda reformas
processuais capazes de acelerar o trânsito em julgado nas ações, pois, na forma do voto do
Ministro Gilmar Mendes, “as mazelas do Poder Judiciário não podem ser suplantadas com o
sacrifício das garantias constitucionais, sob pena de se descumprir duas vezes a Constituição:
violando-se o princípio da celeridade e o princípio da presunção de inocência” ( DISTRITO
FEDERAL, 2010, p.291). Aliás, tanto o Ministro Gilmar Mendes, quanto o Ministro Dias
Toffoli afirmam mais de uma vez nos seus respectivos votos que, caso respeitado fosse o
princípio da celeridade processual, nada se falaria em relativizar a presunção de inocência
(DISTRITO FEDERAL, 2010).
Destaca-se que, por si só, na definição de ativismo judicial aqui adotada, isso não
garante que o ato do julgador ao usar desse argumento seja ativista, perfazendo apenas uma
das condições que demonstram tal postura. Mas o clamor popular não foi o único argumento
apresentado que levou à decisão de constitucionalidade da LC 135 de 2010. Com efeito, o
Ministro Luiz Fux fez uma pontuação que efetivamente fundamentou a decisão pela
constitucionalidade da lei: defendeu que, por se tratar de uma norma eleitoral, não teria
35
caráter sancionador, a ela não se aplicando, portanto, a presunção de inocência, fundando-se
unicamente na defesa da moralidade e da probidade administrativa (DISTRITO FEDERAL,
2010).
A resposta à pergunta aqui proposta, se a decisão na ADC nº29 é baseada em uma
postura ativista, resta na análise de se o Supremo Tribunal Federal desrespeitou o princípio
constitucional da presunção de inocência, dando a sua decisão, dessa forma, a força de alterar
uma garantia fundamental, resultado que apenas uma Emenda Constitucional seria apta a
alcançar. Analisa-se o argumento levantado pelo relator Ministro Luiz Fux e pelos Ministros
que o acompanharam em seus votos.
A Ministra Rosa Weber, que votou com o Relator, afirmou que a lei de inelegibilidade
não tem a intenção de apenar pois o indivíduo não é seu destinatário, mas sim a coletividade
(DISTRITO FEDERAL, 2010), ocorre que, como se vê do art. 15 da Constituição Federal, a
cassação de direitos políticos só pode ter duas motivações razoáveis: a incapacidade ou
ilegitimidade de exercê-los, como é o caso dos incisos I e II, e suspensão do direito em
consequência atos de infração à lei, como nos incisos III, IV e V, ou seja, uma sanção.
Dessa sorte, conforme o Ministro Gilmar Mendes afirma em seu voto, a Constituição
não prevê a cassação de direitos políticos como medida acautelatória, o que se exemplifica na
impossibilidade de suspensão desses direitos no decorrer de processo por improbidade
administrativa (DISTRITO FEDERAL, 2010), que, na forma da lei 8.429/92 em seu art. 20
caput, somente “se efetivará com o trânsito em julgado da sentença” (BRASIL, 1992), ou
seja, nos limites da presunção de inocência previsto na Constituição.
Ainda que permitida fosse a natureza cautelar para a suspensão de direitos políticos, a
estrutura da norma na Lei da Ficha Limpa não condiz com tal natureza, dado que fixa um
prazo exato de duração para cassação do direito, o que não acorda com a característica de
transitoriedade da cautela, que dura enquanto necessária for, havendo apenas previsão de um
prazo máximo justamente para garantir que não se torne uma ofensa aos princípios da
segurança jurídica e da presunção de inocência.
Ademais, conforme relembra o Ministro Dias Toffoli em seu voto, o Supremo Tribunal
Federal já havia decidindo na ADPF nº144 que o princípio da presunção de inocência tinha
eficácia irradiante, sendo, portanto, extensível ao processo eleitoral, afirmando o ministro que
“o princípio da presunção de inocência tem encargo de pressuposto negativo, que refuta a
incidência dos efeitos próprios de ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do
perfazimento ou conclusão do processo respectivo” (DISTRITO FEDERAL, 2010, p. 88,
grifo nosso). De acordo com Santoro (2015), uma mudança de posicionamento no sentido de
36
alterar o alcance da norma fere o princípio da vedação ao retrocesso, aplicável também sobre
interpretações do STF quando sobre normas-princípios.
Para Santoro (2014), a técnica interpretativa usada pelo Supremo Tribunal Federal, a
ponderação de princípios, é acertada pois deve-se analisar inclusive a extensão dos direitos
políticos do indivíduo frente aos princípios da moralidade e da probidade da administração
pública. O autor afirma, no entanto, que o uso dessa técnica foi contaminado pela
insignificância dada ao direito político passivo, ou seja, ao direito de ser votado, que foi
entendido como mitigável por ser considerado apenas uma expectativa de direito, levando a
Corte a ferir o conteúdo essencial do direito político, à contramão de sua função, a máxima
preservação dos direitos fundamentais.
Como aqui pontuado, a existência de outros meios de controle quanto ao acesso aos
cargos eletivos, sendo, conforme o Ministro Gilmar Mendes (DISTRITO FEDERAL, 2010),
expressões da vontade popular como o voto e a escolha partidária dos candidatos, mais
legítimos do que a própria Lei da Ficha Limpa, determinam que a escolha entre mitigar ou
não o princípio da presunção de inocência seja fundamentalmente política, perfazendo o
primeiro requisito para que se entenda como ativista a decisão na ADC nº29.
Portanto, o que se trata, segundo Santoro (2014) e Medina (2015), de um uso indevido
da técnica da ponderação de princípios “de modo a torcer os princípios, desvirtuando seus
sentidos e finalidades” (MEDINA, 2015, p.242), pode ser percebido como um ato no qual o
Supremo Tribunal Federal ultrapassa sua competência Constitucional, visto que permitiu que
uma lei mitigasse um princípio fundamental em razão de uma escolha eminentemente política,
satisfazendo as condições necessárias para a identificação de uma postura ativista do STF.
No entanto, essa não foi a única decisão ativista dentro do acórdão da ADC nº29.
Também foi discutido se a Lei Complementar nº135 de 2010 poderia ser aplicada a fatos
anteriores à sua vigência, retroagindo, portanto. Ocorre que, como o próprio relator Ministro
Luiz Fux afirmou para tentar fundamentar seu argumento de que à Lei da Ficha Limpa não
seria aplicável o princípio da presunção de inocência, trata-se a Lei Complementar nº135 de
2010 de uma norma de teor eleitoral (DISTRITO FEDERAL, 2010).
Conforme o art. 16 da Constituição Federal, “a lei que alterar o processo eleitoral
entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano
da data de sua vigência” (BRASIL, 1988), descrita em termos claros e pouquíssimo
suscetíveis a dubiedades em sua interpretação, funcionando de acordo com Medina (2015)
como um meio de garantir a segurança jurídica. Dessa sorte, novamente o Supremo Tribunal
Federal utiliza do argumento político da vontade da maioria para decidir de forma ativista,
37
dando a sua decisão a força de criar ressalvas a uma norma constitucional como se emenda
fosse.
Essas decisões do STF na ADC nº29 antecederam uma decisão mais recente com o
condão de gerar ainda mais discussões. Após julgamento do Supremo Tribunal Federal no HC
126292 em fevereiro de 2016, no qual o Supremo permitiu a execução antecipada da pena
após julgamento em segunda instância, novamente a corte se manifestou nesse sentido, mas
dessa vez em sede de controle de constitucionalidade concentrado abstrato, negando liminar
nas ADCs nº43 e nº44 que pleiteiam a declaração da constitucionalidade do art. 283 do
Código de Processo Penal, que veda a prisão de indivíduos exceto em flagrante delito,
preventiva ou temporária e em razão de decisão fundamentada transitada em julgado, o que
consoa com a presunção de inocência prevista no art. 5º LVII (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2016).
Essa decisão demonstra que o STF escolheu criar uma mutação constitucional contra a
própria letra da Constituição, usando de um poder de deliberação que não possui, que seria
decidir se aplica ou não a norma constitucional, novamente usando da escolha política de
fundo populista ao mitigar novamente o princípio constitucional da presunção de inocência
para resolver o problema da morosidade da justiça, distúrbio eminentemente estrutural do
poder judicial com a intenção de agradar a maioria.
Dessa vez, a mitigação pode ser considerada mais expressiva, pois se trata de norma
penal, havendo aí um claro retrocesso na interpretação de uma garantia constitucional. No
entanto, essa decisão não será aqui abordada em mais do que os dois parágrafos que já lhe
foram dedicados, servindo apenas para reiterar a importância dos debates quanto ao poder que
é dado aos onze indivíduos não eleitos que compõem o Supremo Tribunal Federal sobre o
texto da Carta Magna e a postura ativista dos ministros na contemporaneidade.
4.2 O MS nº32326 e a competência constitucional para cassar um mandato
Na análise da ADC nº 29, percebe-se uma postura ativista do Supremo Tribunal
Federal em relação a uma garantia constitucional do indivíduo, ocorrendo uma
“interpretação” do texto da norma que ia muito além do que a amplitude de significado das
palavras permitia. Quando se vê a decisão do STF no Mandado de Segurança nº32.326,
percebe-se a possibilidade de uma postura ativista quanto à relativização da competência de
outro poder conferida pelo próprio texto constitucional.
Para melhor entender o que fundamentou a decisão no Mandado de Segurança
38
nº32.326 é necessário detalhar o cenário que se compôs quando o Supremo Tribunal Federal
julgou a Ação Penal nº565, em agosto de 2013, chamada por Streck, Tassinari e Lepper
(2015) de Caso Cassol pois o réu era o senador Ivo Narciso Cassol. Consistia na decisão do
Supremo que reconheceu a dependência da perda do mandato do parlamentar condenado em
ação penal com decisão transitada em julgado de deliberação do Congresso Nacional, e não
como consequência imediata da condenação. Streck, Tassinari e Lepper (2015) reconhecem
essa decisão, que derrubou o entendimento contrário que o STF teve na Ação Penal nº470
alguns anos antes, como sendo acertada.
Os três autores afirmam que na decisão o Ministro Roberto Barroso reconheceu que,
seja positivo ou negativo o juízo de valor que seja feito acerca da deliberação da Casa no
sentido de cassar ou não o mandato de seu parlamentar, ainda assim em nada o Supremo
poderia interferir pois assim dizia a Constituição (STRECK, TASSINARI et LEPPER, 2015).
No mesmo ano, deu-se ainda a condenação do deputado Natan Donadon em última instância
pelo Supremo Tribunal Federal a treze anos, quatro meses e dez dias de reclusão, devendo
iniciar o cumprimento da pena em regime fechado (DISTRITO FEDERAL, 2013).
Apesar da longa condenação, que mesmo com a progressão de regime ainda
ultrapassava o período do mandato no cumprimento em regime fechado, a Câmara de
Deputados se recusou a cassar o mandato do deputado. A Casa o fez dentro do que lhe
permitia a Constituição, usando da prerrogativa que lhe foi dada pelo art. 55 §2º da CF/88,
que condiciona a perda do mandato pelo deputado em caso de infringir proibições do artigo
54, ou exercer ato incompatível com o decoro parlamentar e, o mais relevante para este
estudo, for condenado criminalmente por decisão transitada em julgado, a uma votação por
maioria absoluta na Câmara dos Deputados, assegurando-se a ampla defesa ao indivíduo
(BRASIL, 1988).
Insatisfeito com o fato, o Deputado Carlos Sampaio impetrou o Mandado de
Segurança nº32.326 no Supremo Tribunal Federal com o fim de que “seja reconhecido que, na
hipótese, a perda do mandato parlamentar não está sujeita a decisão do Plenário, mas a mera
declaração da Mesa da Câmara dos Deputados” (DISTRITO FEDERAL, 2013, p.2). De
acordo com Sauaia (2015), o Deputado Carlos Sampaio argumentou que, quando em 2001
passou a vigorar a EC nº35, tornando desnecessária a permissão da Casa de que o parlamentar
é membro para que seja instaurado processo criminal contra ele, houve mutação
constitucional que, inclusive, alterou o alcance do art. 55 §2º, sendo necessária para a perda
do mandato apenas a declaração da Casa, não mais uma deliberação.
A liminar foi concedida em setembro de 2013, apenas um mês depois da decisão do
39
Supremo Tribunal Federal no Caso Cassol, por um dos ministros que na Ação Penal nº565
defendeu que a letra da Constituição deveria sempre ser considerada, o Ministro Roberto
Barroso, em uma repentina mudança de posicionamento que evidentemente fere o princípio
da Segurança Jurídica. Analisar-se-á os argumentos que fundamentaram tão brusca mudança
de entendimento pelo ministro.
Inicialmente, em sua decisão, o Ministro Roberto Barroso inclusive afirma que de fato
é necessária uma Emenda Constitucional para alterar o texto do art.55 §3º, indo ao encontro
com seu posicionamento no Caso Cassol, chegando mesmo a mencionar uma mobilização do
Congresso Nacional em suprir tal necessidade (DISTRITO FEDERAL, 2013, p.2). De acordo
com Sauaia (2015), o Ministro dá a entender que vai acabar por decidir que o Judiciário não
pode se imiscuir nesse assunto, mantendo seu posicionamento, como se vê quando explica:
Este imbroglio relativamente à perda de mandato parlamentar, em caso de
condenação criminal, deve funcionar como um chamamento ao Legislativo.
O sistema constitucional na matéria é muito ruim. Aliás, o Congresso
Nacional, atuando como poder constituinte reformador, já discute a
aprovação de Proposta de Emenda Constitucional que torna a perda do
mandato automática nas hipóteses de crimes contra a Administração e de
crimes graves. Até que isso seja feito, é preciso resistir à tentação de produzir
este resultado violando a Constituição. O precedente abriria a porta para um
tipo de hegemonia judicial que, em breve espaço de tempo, poderia produzir
um curto circuito nas instituições. (DISTRITO FEDERAL, 2013, p.14).
Coadunam com esse entendimento do ministro os autores Streck, Tassinari e Lepper
(2015) quando afirmam que o disposto no art.55 §2º é fruto de uma deliberação histórica com
o claro intuito de preservar o princípio republicano da separação dos poderes e em razão disso
poderia ser considerado cláusula pétrea, pois o Legislativo não deveria ser obrigado a se
vincular a uma decisão judicial. Cláusula pétrea ou não, ainda perfaz norma constitucional
com características de regra e passível de alteração apenas por Emenda Constitucional.
Além disso, conforme chama a atenção Sauaia (2015), a redação do dispositivo não
abre espaço para mutação constitucional, visto que é claro em seu texto quando faz referência
não apenas a uma decisão da Casa como ainda à garantia do princípio da ampla defesa para o
parlamentar que se aplica no art. 55 §2º da CF/1988, e mesmo a mutação constitucional não
pode se excluir do que implica a literalidade da norma.
Sauaia (2015) explica ainda a impossibilidade de se interpretar essa norma
constitucional de forma diferente à sua literalidade pois, assim como Streck, Tassinari e
Lepper (2015), acaba por concluir que o dispositivo “seria uma proteção à exacerbação de um
Poder sobre o outro, merecendo interpretação restrita e sendo descabida a interferência do
Poder Judiciário [...]” (SAUAIA, 2015, p.47). O dispositivo é uma forma de se evitar que o
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Supremo Tribunal Federal, cuja composição se dá por indicações do Presidente da República,
possa decidir sobre a composição do Congresso Nacional.
Com efeito, é perceptível que quando o constituinte entendeu não ser necessária a
deliberação da Casa à qual o parlamentar cujo mandato é debatido integra, mas sim uma mera
declaração da cassação, deixou patente no texto constitucional, como se vê da análise do art.
55 §3º, segundo o qual nos casos dos incisos III e V do caput do mesmo artigo, a cassação do
mandato do parlamentar depende apenas de que a Casa da qual é membro o declare,
diferenciando os casos desses incisos dos demais, que se enquadram no §3º do art. 55
(BRASIL,1988). Facilmente é derrubado o argumento do Deputado Carlos Sampaio, mas a
decisão do ministro se deu com embasamento diferente.
Apesar de insinuar que concorda que o Poder Judiciário não poderia interferir nesse
tema sem ferir o princípio da Separação dos Poderes e agir além de sua competência,
conforme Sauaia (2015) explica, o Ministro Roberto Barroso acaba por concluir que em razão
de o deputado federal ter sido apenado em última instância a pena de reclusão iniciada em
regime fechado, o art. 55 §3º da CF/1988 não se aplicaria ao caso pois o deputado não teria
condições jurídicas ou físicas para trabalhar, visto que estaria preso. Assim, decidiu o Ministro
pela não aplicação do disposto no art. 55 §3º do texto constitucional em situação que nele
claramente incidiria, suspendendo a decisão da Câmara dos Deputados, embora discordasse
do argumento do deputado Carlos Sampaio de que a EC 35 de 2001 resultou em mutação
constitucional, não o utilizando em sua decisão.
De fato, o deputado Natan Donadan não conseguiria exercer sua função no Congresso
Nacional. Porém, como Streck, Tassinari e Lepper (2015) afirmam, seria uma questão de
tempo até seu número de faltas nas sessões fazer-lhe incidir no art.55 III e §3º, segundo os
quais o parlamentar que faltar em uma sessão legislativa a um terço das sessões ordinárias as
que era obrigado a comparecer deveria ter declarada a cassação de seu mandato (BRASIL,
1988), resultado lógico de sua pena, havendo um respeito ao texto constitucional ao mesmo
tempo em que seria alcançado resultado similar caso fosse aplicada a decisão do Ministro
Roberto Barroso. Além da própria cassação do deputado, Streck, Tassinari e Lepper (2015)
pontuam ainda o desgaste que isso causaria ao Congresso Nacional diante do povo, de forma
a desincentivar atos dessa natureza.
Tal decisão do Supremo Tribunal Federal, embora em liminar em ação de controle
concreto, assim como na ADC nº29 aqui já brevemente debatida, fragilizam a força da
Constituição ao possibilitar que mesmo um dentre os onze indivíduos indicados pelo Poder
Executivo para compor o Supremo Tribunal Federal tenha o poder de escolher se aplica ou
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não a norma constitucional usando para decidir inclusive de argumentos metajurídicos, agindo
muitas vezes como legisladores positivos sem possuir, no entanto, a legitimidade democrática
para tanto. Conforme Streck, Tassinari e Lepper (2015) ressaltam existe uma necessidade de
se verificar a Constituição e seus fundamentos como os princípios republicanos e
democráticos como um resultado de um processo histórico, e não como sua finalidade.
A violação à Constituição é sempre uma ameaça à democracia. O senso
comum costuma pensar a Democracia como um processo cujo fim é a sua
conquista, ou como algo do qual a coletividade se apropria. Não é visto tal
qual é: uma relação, sempre instável e sujeita a altos e baixos, a avanços e
retrocessos, a continuidades ou rupturas. Nossa história mostra isso. A
democracia precisa ser vista numa perspectiva histórica e de lutas políticas.
[...] a sociedade tem uma garantia: o respeito à Constituição. Ninguém está
acima dela. Ela é o norte do regime democrático porque condiciona todos a
um regramento único. Assim, sem o respeito a argumentos jurídicos na
decisão judicial, o aplauso de hoje pode se tornar o seu grito de horror do
amanhã. (STRECK, TASSINARI et LEPPER, 2015, p. 59)
A decisão em liminar do MS 32326 foi pressão suficiente para que a Câmara dos
Deputados revisse sua decisão e acabasse por cassar o deputado Natan Donadon na forma do
art. 55 §2º mesmo, deliberando e decidindo dessa forma. Graças a isso, o remédio perdeu seu
objeto e não foi necessário o julgamento do mérito afinal. No entanto, essa decisão do
Ministro Roberto Barroso tem todas as características que perfazem o resultado de uma
postura ativista.
É uma decisão política, visto que, Streck, Tassinari e Lepper (2015) demonstram que,
sem tocar no alcance do texto constitucional o mesmo resultado poderia ser alcançado, sendo
portanto uma escolha do ministro interferir no dispositivo em uma decisão cujo objetivo é
claramente satisfazer os anseios populares, e inquestionavelmente é uma decisão que altera a
norma constitucional, agindo como uma Emenda Constitucional e criando ao art. 55 §2º uma
exceção ao excluir de sua incidência os casos do inciso IV do mesmo artigo em que o
parlamentar é condenado em decisão transitada em julgado a uma pena de reclusão iniciada
em regime fechado, dessa forma mexendo com um dispositivo criado para a defesa do
princípio republicano da Separação dos Poderes.
O Mandado de Segurança nº32.326 e a Ação Declaratória de Co nº29 são apenas dois
exemplos de como a cultura ativista se desenvolveu no Supremo Tribunal Federal a ponto de
se refletir na tomada de decisões dos ministros hoje. Permitem também uma análise de como
se dá essa postura entre os membros do STF, sempre disfarçada de interpretações alternativas
de textos constitucionais ou mutações socialmente benéficas a curto prazo, mas que
potencialmente colocam em risco garantias constitucionais arduamente conquistadas no
processo histórico que resultou na Constituição.
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5 CONCLUSÃO
“A pior ditadura é a do judiciário. Contra ela,
não há a quem recorrer.” (Ruy Barbosa)
Depois de se analisar a origem do ativismo judicial e definir o termo de forma a bem
aplicá-lo à realidade brasileira inserta em um contexto global, neste trabalho se tentou
perceber como se desenvolveram as condições necessárias para um processo de judicialização
da política que acabou por desembocar na expansão de uma cultura do ativismo judicial no
cenário jurídico brasileiro.
Compreender o processo histórico que desembocou na judicialização da política foi
requisito imprescindível para perceber como se recepcionou a cultura do ativismo judicial no
Brasil. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário, que durante
a ditadura militar sofreu graves repressões, e talvez como consequência do aumento de suas
competências, passou a ter no imaginário do povo brasileiro a imagem de um “superpoder”,
capaz de resolver todo e qualquer problema, mesmo quando não seja de sua competência.
Essa tendência a resolver todos os problemas por meio de processos judiciais se
intensificou ainda mais diante de uma patente ineficiência dos outros poderes, visto que o
Legislativo se mostrava inerte quanto aos anseios sociais e o Executivo se eximia de garantir
mesmo os direitos mais fundamentais da Constituição. Essa frustração quanto à atuação dos
outros poderes levou não apenas à procura desenfreada pelo judiciário e ao aumento paulatino
das competências do Supremo Tribunal Federal como também, somada à pressa da sociedade
em resolver seus problemas, o quanto antes não importando a custa de que, levou ainda à
gradativa adoção de uma postura ativista pelo STF.
Há de se considerar ainda o aumento na exposição do trabalho dos ministros quando
começaram a julgar casos polêmicos levando inclusive à criação de personagens midiáticos,
como o “juiz Batman”, pelo que ficou conhecido o Ministro Joaquim Barbosa por sua postura
populista, como demonstra quando disse em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo
que “[o juiz] não pode desprezar os valores mais caros da sociedade no qual opera. Seria
suprema arrogância […] achar que não interessa o que a sociedade pensa sobre determinadas
decisões.” (BARBOSA, 2008). A influência da vontade popular pode ser capaz de levar os
ministros a tomar decisões que agradem à população, mesmo que para isso precisem reduzir o
alcance de garantias individuais mais básicas, como o devido processo legal e a presunção de
não culpabilidade.
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Além dos casos citados neste trabalho, muitas outras decisões têm a postura dos
ministros que a proferiram considerada ativista, como no MI nº670, no qual o STF deu à
greve dos servidores públicos a regulamentação da greve celetista, apesar de ser tal
regulamentação uma competência do Legislativo, ou ainda na ADI nº4277 e na ADPF nº132,
quando se interpretou o texto constitucional: “Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar [...]” (BRASIL,
1988) de forma a incluir uniões homoafetivas, apesar da limitação textual, que deveria ser
alterada por emenda constitucional, além da ADPF nº54, que criou uma norma penal
descriminalizando o aborto de anencéfalos, novamente competência do Legislativo.
Vê-se assim que o Supremo Tribunal Federal busca suprir demandas sociais que
ficariam a cargo de outros poderes, nos três casos citados pelo Legislativo, em decorrência à
falta de legitimidade democrática resultante do sistema eleitoral brasileiro, que usa o
coeficiente eleitoral de forma a privilegiar o partido ao candidato, resultando em uma Câmara
dos Deputados na qual apenas 34 dos 513 deputados federais foram eleitos com os próprios
votos (BENITES, 2016). O imediatismo na procura por suprir os anseios sociais mascaram os
reais problemas, nos casos aqui abordados, o sistema eleitoral pouco democrático, usando de
uma decisão judicial que resolve uma consequência pontual do distúrbio, sem deslindar, no
entanto, a fonte, e contribuindo ainda mais com a cultura do ativismo judicial.
Aumentar de forma tão patente as competências de um único poder tem um risco a ele
inerente: a arbitrariedade. O exemplo da própria história do ativismo judicial nos Estados
Unidos da América demonstram os dois gumes da postura ativista, os extremos da Era
Lochner e da Corte Warren, mostrando de início um ativismo judicial extremamente contrário
às políticas sociais, e em poucos anos depois, a mesma postura defendendo posicionamento
oposto.
Criar uma dependência da eficácia de direitos fundamentais a decisões judiciais é
torná-la igualmente dependente do posicionamento dos juízes que ocupam a Corte, trocando a
segurança jurídica da Constituição escrita, passível de modificação apenas por um processo
legiferante democrático específico, por uma segurança momentânea, que depende demais da
formação humana de um tribunal, pondo em risco direitos cujas conquistas foram árduas
batalhas históricas contra o arbítrio do poder. Esse risco é ainda majorado pela composição de
o Supremo Tribunal Federal ser formada por indicação, princialmente porque, como se
percebe na análise da formação histórica da postura ativista estadunidense, na qual os juízes
da Suprema Corte decidiam de forma ativista ou autocontida de acordo com os benefícios
políticos que a decisão poderia levar, o ativismo ou a autocontenção judicial sendo
44
potencialmente utilizados para beneficiar certo grupo social ou político com o qual o juiz
tenha afinidade.
É possível, então, concluir que a cultura do ativismo judicial no Supremo Tribunal
Federal encontrou estabilidade no STF por meio do apelo popular de suas decisões ativistas, e
uma análise histórica do instituto, tanto em seu país de origem, os Estados Unidos, como no
Brasil, demonstra os riscos de legitimar tal postura em um poder que não foi idealizado na
representação democrática, mas na solução técnica de conflitos. Resta então decidir se o
ativismo judicial é, de fato, a solução para as questões sociais ou é apenas mais uma tentativa
de combater as consequências, funcionando como um paliativo, e não as reais fontes dos
problemas sociais do Brasil.
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