Os contornos do ativismo judicial no
Brasil
O fetiche do Judiciário brasileiro pelo controle dos
demais poderes
DIogo BaCHa e SILva
Sumário
Introdução. 1. Pressupostos de uma metodologia historiográfico-jurídica.
2. Recepção teórica do conceito de ativismo judicial. 3. A atuação ativista
do Poder Judiciário no Brasil. Conclusão.
Introdução
Diogo Bacha e Silva
é mestre em Direito
Constitucional pela
FDSM, professor
da Faculdade São
Lourenço, coordenador
do Curso de Direito
da Faculdade São
Lourenço, membro
do Instituto de
Hermenêutica Jurídica
(IHJ) e advogado.
Antes de abordar qualquer temática no campo jurídico, o pesquisador deve observar a realidade concreta que a ela subjaz. Se isso parece
mais uma advertência metodológica àqueles que pretendem iniciar uma
pesquisa jurídica, em verdade tal assertiva esconde uma necessidade
inexorável de que os institutos jurídicos encontram definição no mundo
concreto.
Buscar a definição e a conceituação de institutos jurídicos apenas
na elaboração teórica a que dá autores diferentes parece encarar o objeto de estudo parcialmente. A definição de qualquer instituto jurídico
passa sempre pelo contexto de uso. E, como se sabe, o contexto de uso
no mundo jurídico depende, efetivamente, da aplicação que fazem os
órgãos públicos.
O objeto de estudo e análise é a busca pelo significado de ativismo
judicial. Com efeito, tal expressão implica uma multiplicidade de empregos que dificulta saber quando se está em face de uma atuação ativista ou
não do Poder Judiciário. O ponto comum parece ser a necessidade de que
ativismo – ou ainda qualquer outro emprego teórico de institutos jurídicos
– precisa ser observada de acordo com sua própria história conceitual.
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Empregar uma história conceitual significa, portanto, antes de qualquer coisa, analisar não como o sentido de uma determinada palavra
vinha sendo empregado por autores distintos, mas sim como se aplicava o
significado atual em época passadas. O estudo da história conceitual deve
abranger uma imanência entre passado, presente e futuro de um léxico.
O intuito do presente trabalho não é definir, de uma vez por todas, o
que vem a ser ativismo judicial. É, outrossim, analisar, em nosso contexto
de uso, o fundamento da atuação judicial ativista.
1. Pressuposto de uma metodologia historiográfico-jurídica
Durante muito tempo, a historiografia jurídica ficou presa a um estudo
anacrônico dos institutos, sistemas e ideias que permeiam o mundo jurídico. Os estudos históricos sempre pretendiam dar primazia a uma visão
de validade intertemporal dos conceitos e ideias do Direito. É preciso, no
entanto, perceber que o campo semântico dos conceitos jurídicos varia ao
longo do tempo. Por trás de uma continuidade aparente, há uma ruptura
radical no sentido de cada instituto jurídico. Como exemplo, cita Antonio
Manuel Hespanha (2003, p. 19-20) que o conceito de família para o Direito
Romano abrangia não somente os laços de parentesco, mas também os
criados ou escravos e até mesmo bens que guarneciam as casas.
A partir da perspectiva da História dos Conceitos formulada por
Reinhart Koselleck (1992, p. 134-153) não se pode dizer que toda palavra
pode ter um conceito e que, portanto, pode ter uma história própria1.
Se antes da formulação teórico-historiográfica dada por Koselleck, o
historicismo entendia as ideias em sua positividade – isto é, as ideias
eram uma realidade histórica por si própria, cuja existência era objetiva,
materializando-se em um tempo e espaço definidos –, com a teorização
histórica feita por ele, a ênfase é dada nas palavras e em suas historicidades, tal como utilizada em diferentes momentos e por diferentes atores
(BENTIVOGLIO, 2010, p. 117). É preciso salientar que, para a História
dos Conceitos, há uma distinção entre palavra e conceito. Toda palavra
carrega um sentido que contém um conteúdo. Isso, entretanto, não quer
dizer que toda palavra é constituída de um conceito. Para que uma palavra
se torne um conceito, é preciso uma teorização, o que demandaria um
tempo para isso acontecer (KOSELLECK, 1992, p. 135).
A metodologia utilizada pela História dos Conceitos de Koselleck
é a tradução de significados lexicais utilizados no passado para o pre1
No mesmo sentido, Antonio Manuel Hespanha (2003. p. 19) afirma que o significado de uma palavra é sempre relacional, isto é, “o significado da mesma palavra, nas suas
diferentes ocorrências históricas, está intimamente ligado aos diferentes contextos, sociais
ou textuais, de cada ocorrência”.
164 Revista de Informação Legislativa
sente. Para tanto, é preciso realizar um estudo
diacrônico (SAUSSURE, 2002). Em primeiro
lugar, é preciso fazer a redefinição científica dos
significados utilizados anteriormente. Em outro
momento, os significados lexicais são separados
de seu contexto situacional e estudados por uma
longa sequência temporal (KOSELLECK, 2006,
p. 105). Nessa medida, mostra-nos a metodologia teórica utilizada por Koselleck que um
significado sempre tende a desgarrar-se da sua
utilização semântica anterior.
Em verdade, a História dos Conceitos
preocupa-se metodologicamente com as descontinuidades que a semântica dos termos sofre
e com os contextos sociais em que são produzidos, admitindo, dessa forma, que os conceitos
são sempre transformados pelo contexto e pelo
intérprete que os lê. Nessa medida, Marcelo
Jasmim (2005, p. 33) leciona que a História dos
Conceitos de Koselleck (1992):
“[...] está interessada nos modos pelos quais
as gerações e os intérpretes posteriores
leram, alterando os seus significados, essas
proposições políticas do passado. Neste
registro é possível afirmar, rigorosamente,
que os conceitos em si não têm história;
mas também é possível afirmar, com rigor,
que a sua recepção tem. Aliás, é da própria
condição de unicidade dos atos de fala ou dos
conceitos articulados numa linguagem local
que a história conceitual deriva a necessidade
de uma história da recepção, já que parte
justamente da aposta de que os significados
não se mantiveram no tempo e que foram
alterados.”
A história conceitual de Koselleck é importante para a interpretação e a exegese de textos
jurídicos. É a própria compreensão histórica de
um texto que se conjuga com a interpretação
linguística para que se façam transformações
em novas interpretações de velhos textos (KOSELLECK, 1997, p. 90). A própria interpretação
e aplicação do direito como um todo dependem
da consciência histórica do intérprete e da comunidade jurídica.
Como disserta Flavio Quinaud Pedron
(2012, p. 82) acerca da importância da contribuição teórica de Koselleck (1997) para o
mundo jurídico:
“[...] pode-se aprender que, em cada contexto em que o conceito foi empregado, uma
dinâmica político-social estava encenada.
O conceito, então, surge para dissolver um
problema que se faz presente à comunidade
jurídica de cada contexto, adquirindo, a
partir desse problema, sua forma de compreensão.”
Essa pequena digressão teórica realizada
em torno da metodologia histórica de Koselleck serve-nos para mostrar que o conceito de
ativismo judicial é variável, observando-se o
contexto político-social em que está inserido.
Então, para apreciarmos o conceito de ativismo
judicial no Brasil, é necessário elucidarmos o
contexto de história social que marca a atuação
do Poder Judiciário ao longo do seu espaço de
experiência2.
Para observamos o contexto histórico de
atuação do Poder Judiciário no Brasil, uma
observação faz-se necessária. Não se trata de
apresentarmos alguns modelos de atuação do
Poder Judiciário ao longo do tempo como se
fossem partes de uma história linear, progressiva e acumulativa de experiências. A historiografia jurídica é marcada por rompimentos de
paradigmas, por descontinuidades nas práticas
2
Para Kosellleck (2006, p. 309-310) o espaço de experiência “é o passado atual, aquele no qual acontecimentos
foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência
se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas
inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou
que não precisam mais estar presentes no conhecimento.
Além disso, na experiência de cada um, transmitida por
gerações e instituições, sempre está contida e é conservada
uma experiência alheia”.
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jurídicas e, muitas vezes, por retrocessos. Por
isso mesmo, a história do direito precisa ser
desmistificadora, transformadora e problematizante das experiências acumuladas (WOLKMER, 2010, p. 21-22). Nesse ponto, advertimos
que cada leitura histórica do direito é realizada
por um intérprete que, por sua vez, exerce um
papel criativo e ativo, absorvendo no presente
a leitura do passado (COSTA, E., 2010, p. 47).
Dessa forma,
“[...] existem não a história do direito, mas
tantas história do direito quanto são as narrativas historiográficas que a cada vez se redigem: a história do direito não é o espelho de
uma experiência já definida e em si mesmo
fechada, mas simplesmente um contraponto
linguístico capaz de contrapor todas aquelas
narrativas historiográficas (diversas entre si,
ainda que incomparáveis) que se organizam
em torno de algum standard de juridicidade,
mesmo que compreendida” (COSTA, E.,
2010, p. 36).
A leitura histórica de textos jurídicos não
pode passar ao largo da experiência do intérprete. Cada análise histórica contrapõe-se a uma
análise histórica anterior. Esse amálgama de
concepções e ideias surgidas ao longo do tempo
é que possibilitará o diacronismo histórico. Por
isso, ressalta-se a importância que a história
dos institutos jurídicos seja sempre lida e relida
através dos tempos. Na atual quadra, o direito
não pode prescindir de uma história crítica.
2. Recepção teórica do conceito de
ativismo judicial
A significação atual que se atribui ao termo
ativismo judicial tem sua origem na análise
dogmática processual da doutrina alemã e nos
estudos da ciência política norte-americana. As
concepções socializadoras dadas ao estudo do
processo civil possibilitam o emprego do termo
166 Revista de Informação Legislativa
ativismo judicial para designar aquele magistrado que, na condução do processo, possibilita a
diminuição ou eliminação das desigualdades
fáticas entre as partes decorrentes do modelo
liberalista. Para Franz Klein, primeiro autor
a empregar tal contexto de uso em 1901, as
legislações processuais devem reforçar o papel
do juiz na fase probatória de forma a permitir que ele apoie as partes mais vulneráveis,
tornando-se, assim, um juiz ativista (NUNES,
2009, p. 79-80).
Para a doutrina processualista alemã, ativismo judicial designaria a possibilidade que o
magistrado tem de conduzir a prova dos fatos
alegados no processo. Nessa perspectiva, o predicativo “ativista” dependerá da adoção ou não
na atuação judicial, do denominado princípio
inquisitivo na colheita das provas no processo
judicial. A permissão legislativa para que o
juiz, de ofício, proceda a essa colheita implicará
ativismo judicial. Assim, por exemplo,
“[...] não existe nenhuma conexão entre a
atribuição ao juiz de poderes mais ou menos
amplos de iniciativa instrutória e a vigência
de regimes políticos autoritários e antidemocráticos. A análise comparada mostra, com
efeito, que nos principais ordenamentos europeus – respeito a cujo caráter democrático
não é possível ter dúvidas sensatamente – se
configura uma função ativa do juiz na aquisição de provas relevantes para determinação
dos fatos” (TARUFFO, 2006, p. 261)3.
Em verdade, a questão relativa ao poder
instrutório do juiz – se é supletivo ou comple-
3
No original: “no existe ninguna conexión entre la
atribución al juez de poderes más o menos amplios de
iniciativa instructoria y la vigencia de regímenes políticos
autoritarios y antidemocráticos. El análisis comparado
muestra, en efecto, que en los principales ordenamientos
europeos – respecto a cuyo carácter democrático no es posible tener dudas sensatamente – se configura una función
activa del juez en la adquisición de las pruebas relevantes
para la determinación de los hechos”.
mentar ao poder de iniciativa probatória das partes – será apenas uma
questão de grau para determinar o menor ou maior grau do ativismo do
juiz em determinado ordenamento. No que tange ao atual Código de
Processo Civil, poder-se-ia dizer que o Poder Judiciário nacional é ativista
em razão da permissão outorgada no artigo 1304 para que o juiz colha as
provas necessárias para a instrução do processo. Por mais que a exegese
extraída desse artigo seja, como o faz o Superior Tribunal de Justiça, de
que a atividade probatória do juiz se opera em conjunto com as partes e
não em substituição a elas (STJ, 6a T., REsp no 894.443/SC, rel. Min. Maria
Thereza de Assis Moura, j. 17/6/2010) ou, ainda, que a iniciativa probatória dada ao juiz deve decorrer de uma relação processual desproporcional
(STJ, 1a T., REsp no 834.297/PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 18/9/2008), tem-se
que permitir ao juiz que determine as provas necessárias e valorize-as na
sentença atribuirá ao magistrado o predicado de ativista.
Na análise da ciência política norte-americana, ativismo judicial é
empregada por Arthur Schlesinger em uma publicação jornalística na
Fortune Magazine em que analisa a visão jurídica dos componentes da
Suprema Corte norte-americana (KMIEC, 2004, p. 1446). Para o articulista, a visão de mundo jurídica que pode ser definida como ativista é
aquela em que o julgador não separa o Direito e a Política, e orienta seus
julgamentos por resultados, sendo, assim, uma visão aberta do mundo
jurídico (KMIEC, 2004, p. 1447).
O modelo ativista analisado e desenvolvido por Arthur Schlesinger é
um emprego amplo demais, apesar de não se olvidar que a contribuição
do jornalista é importante na medida em que inicia debates acerca da
legitimidade da atuação judicial em Estados Democráticos de Direito
(KMIEC, 2004, p. 1448). Contudo, segundo sua definição, é difícil, senão
mesmo impossível, definir concretamente quando se está em face de uma
atuação ativista.
Também, a expressão “ativismo judicial” serviu para denominar a
atuação da Suprema Corte norte-americana no período Warren, que se
estende de 1953 até 1969. Nesse período, ela modificou a prática política dos
Estados Unidos em prol dos direitos individuais, apenas com uma adequada interpretação do caso levado à apreciação judicial (BARROSO, 2012).
Ativismo jurisdicional, portanto, para os conservadores significaria a
não observância pelos juízes e Tribunais dos seus limites de atuação, seja
4
O artigo 130 do Código de Processo Civil tem a seguinte redação: “Caberá ao juiz,
de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”. O art. 354 do Projeto
de Lei do Senado número 166/2010 que institui o novo Código de Processo Civil repete
a redação: “Art. 354. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as
provas necessárias ao julgamento da lide”.
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por meio de um ativismo contramajoritário, seja mediante uma criatividade jurisdicional exacerbada (MARSHALL, 2002, p. 104). Desse modo, ou
se utiliza o termo para criticar uma postura adotada por determinado juiz
ou tribunal, ou para elogiar a atuação. De qualquer sorte, a multiplicidade
de marcos teóricos ou de visões de mundo jurídico incidentes sobre a
análise de determinado autor impede que seja demarcado precisamente
o que satisfará todos os teóricos (WOLFE, 1997, p. 37).
A teoria, entretanto, cria sua base de análise a partir da observação
da realidade concreta. Não é possível teorização de qualquer temática
abstraída das condições concretas de análise, mormente no campo jurídico de aplicação das normas. Bem ciente das limitações epistemológicas,
devemos enxergar o ativismo dentro de um contexto de uso. Nesse caso,
a análise da atuação Poder Judiciário brasileiro ao longo de sua existência
poderá definir o conceito de ativismo em terrae brasilis.
A teoria jurídico-constitucional costuma definir ativismo judicial
como uma incursão insidiosa sobre o núcleo de atuação dos demais
poderes (RAMOS, 2010, p. 116-117). Em certa medida, a incorporação
teórica do tema no direito brasileiro é tributária da noção advinda dos
Estados Unidos da América de que ativismo assume uma conotação negativa em que o Poder Judiciário atua impropriamente (BARROSO, 2012).
É preciso ressaltar, todavia, que a atuação do Poder Judiciário assume
uma forma diferente na vigência de ordenamentos jurídicos distintos.
Assim, além de analisar se o Poder Judiciário é ou não ativista, deve-se
perquirir a qual ativismo estamos a nos referir. Para isso, impossível
seria a consecução do esforço sem analisarmos a atuação concreta de
determinado Poder Judiciário.
3. A atuação ativista do Poder Judiciário no Brasil
O modelo de atuação do Poder Judiciário do Brasil começa a ser forjado no período colonial. Sob o comando de uma metrópole, a colônia
possuía aparelhos executivos, legislativos e judiciários – enfim, todo um
corpo burocrático – submetidos são às ordens do rei de Portugal.
No início da colonização, a administração da justiça estava entregue
aos senhores donatários, que exerciam a soberania dentro de sua capitania.
Exerciam, desse modo, as funções de administradores, chefes militares e
juízes. Podiam nomear ouvidores para exercer a função de pacificadores
dos conflitos de interesse entre os habitantes da capitania (WOLKMER,
2010, p. 74-75).
O aumento da população e o crescimento das cidades fizeram com que
a metrópole instituísse um Poder Judiciário no modelo lusitano. Existia,
então, uma primeira instância judicial, composta de juízes ordinários,
168 Revista de Informação Legislativa
ouvidores e juízes especiais. Uma segunda
instância com tribunais colegiados agrupava
os chamados Tribunais de Relação. Já a terceira
instância era composta de um tribunal superior,
sediado na metrópole, denominado Casa de
Suplicação (WOLKMER, 2010, p. 76-77).
O primeiro Tribunal da Relação na colônia
foi estabelecido o da Bahia em 1652. Com o
crescimento das capitanias do Sul e o desenvolvimento econômico da região, instalou-se, em
1751, o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro,
cuja competência territorial abrangia Rio de
Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, Rio das Mortes,
Sabará, Rio das Velhas, Serro Frio, Cuiabá, Paranaguá, Espírito Santo, Ilha de Santa Catarina,
Goiás e Itacazes (LOPES, 2012, p. 254). Tais
tribunais eram competentes para julgar causas,
apelos e agravos, em segunda instância. Seus
juízes também podiam atuar como juízes de
primeira instância.
Obviamente, as fontes do direito utilizadas
na colônia eram as ordenações que regiam a
metrópole. Segundo Antonio Wolkmer (2010, p.
91), a legalidade colonial foi instituída negando
e excluindo radicalmente o pluralismo jurídico nativo, reproduzindo uma normatividade
legitimada por uma elite de dirigentes e profissionais do direito que servia aos interesses da
metrópole e que moldou uma estrutura jurídica
de institutos, legislações, princípios e ideias de
matiz centralizador e formalista. Com efeito,
até mesmo a independência da colônia não
foi capaz de apagar essa tradição. Tal ideologia
jurídica agravou-se com a vinda da Coroa para
o Brasil (BAHIA, 2009, p. 89).
As primeiras ordenações que vigeram na
colônia foram as Ordenações Filipinas, editadas em 1603 por Filipe II da Espanha (Filipe
I de Portugal). Trata-se de uma consolidação
do direito real elaborada para agradar aos portugueses. No entanto, tais ordenações apenas
se limitaram a consolidar o que já havia nas
Ordenações Manuelinas, de 1521, e também
nas Ordenações Afonsinas, de 1446 (LOPES,
2012, p. 255).
As Ordenações Filipinas previram, no Livro
I, Título V, parágrafo 5o os assentos da Casa de
Suplicação, com inspiração nas Ordenações
Manuelinas que previram assentos no Livro
V, Título LVIII, parágrafo 1o,5 cuja redação é
a seguinte:
“[...] quando os desembargadores [...] tiverem alguma dúvida em nossa Ordenação
do entendimento dela, vão com a dúvida
ao regedor; o qual na Mesa grande com os
desembargadores, que lhe bem parecer, a
determinará, e segundo o que aí for determinado, se porá a sentença. E a determinação,
que sobre o entendimento da dita Ordenação
se tomar, mandará o regedor escrever no
livro da Relação, para depois não vir em
dúvida [...].”
Veja-se, pois, que os assentos previstos nas
Ordenações Filipinas são assentos da Casa de
Suplicação, última instância do Poder Judiciário, não se confundindo com os assentos previstos nas Ordenações Manuelinas que eram da
Casa de Relação, tribunais de segunda instância
na organização judiciária portuguesa.
Posteriormente, todo o arcabouço jurídico é
transformado pela Lei de 18 de agosto de 1769,
a denominada Lei da Boa Razão (LOPES, 2012,
5
“E assim havemos por bem, que quando os Desembargadores que forem no despacho d’algum feito, todos,
ou algum deles tiver alguma dúvida em alguma Nossa
Ordenação do entendimento dela, vão com a dita dúvida ao
Regedor, o qual na Mesa grande com os Desembargadores
que lhe bem parecer a determinar, e segundo que aí for
determinado se porá a sentença. E se na dita Mesa forem
isso mesmo em dúvida, que ao Regedor pareça que é bom
No-lo fazer saber, para Nós logo determinarmos, No-lo fará
saber, para Nós nisso provermos. E os que em outra maneira
interpretarem Nossas Ordenações, ou derem sentenças em
algum feito, tendo algum deles dúvida no entendimento da
dita Ordenação, sem irem ao Regedor como dito é, serão
suspensos até Nossa Mercê. E a determinação que sobre o
entendimento da dita Ordenação se tomar, mandará o Regedor escrever no livrinho para depois não vir em dúvida”.
Ano 50 Número 199 jul./set. 2013 169
p. 256). Em seu parágrafo 4o, a Lei da Boa Razão
coloca os assentos em plano superior até mesmo às leis já que sempre devem ser observado:
“(...) que os assentos já estabelecidos, que tenho
determinado que sejam publicados e os que se
estabelecerem daqui em diante sobre a interpretação das leis, constituam leis inalteráveis para
sempre se observarem como tais, debaixo das
penas estabelecidas”.
Se antes os assentos constituíam apenas um
critério unificador da jurisprudência, com a Lei
da Boa Razão eles passaram a ter força de lei,
para além de solucionar um caso concreto; tinha
força obrigatória para outros casos análogos,
sob pena de incidência nas penas cominadas
(BAHIA, 2009, p. 88). Como disserta Victor
Nunes Leal (1982, p. 50-51):
“Muito informativa é a leitura dessa lei, que o
volume reproduz. Por considerar ‘manifesta a
diferença’ entre a Casa da Suplicação e as demais Relações, para aquela, instituiu recurso
contra os assentos destas últimas. E ficou estipulado que, em caso de dúvida ou violação
da lei, a Casa da Suplicação tomaria ‘assento
decisivo’ sobre a glosa, dos desembargadores
ou do regedor. [...] Acrescentou ainda que
‘os assentos já estabelecidos [...] e os que se
estabelecerem [...] sobre as interpretações
das Leis’ constituiriam ‘Leis inalteráveis para
sempre se observarem como tais debaixo das
penas [...] estabelecidas’ (§ 4o).”
Os assentos da Casa de Suplicação, principalmente após o advento da Lei da Boa Razão,
serviram como meio para que a instância
superior controlasse a interpretação jurídica
realizada pelos órgãos jurisdicionais de instância inferior, situadas nas colônias ou até mesmo
no Reino de Portugal.
Em verdade, a preocupação que levou à
edição da Lei da Boa Razão fora exatamente a
interpretação abusiva por parte dos advogados e
dos juízes acerca do que entendiam pelo Direito
e pela Justiça, segundo consta no próprio pre-
170 Revista de Informação Legislativa
âmbulo da lei (AZEVEDO, 1971, p. 118-119). A
preocupação da Lei da Boa Razão, manifestada
pela transformação dos assentos em verdadeiras
leis, era, sem dúvida, centralizar a interpretação
do Direito em torno da Casa da Suplicação,
órgão de jurisdição máxima, permitindo um
controle jurídico-ideológico de juízes e autoridades do poder público.
Com a declaração de independência em
1822, a dissolução da Assembleia Nacional
Constituinte em 1823, o Conselho de Estado6
elabora, sob as ordens de D. Pedro I, um projeto
de Constituição que receberia o beneplácito
do Imperador em 25/3/1824, data em que se
outorgaria a Constituição Política do Império
(BAHIA, 2009, p. 91).
A estrutura do Poder Judiciário no Império
foi definida no título 6o da Constituição de 1824.
Em 1a instância, eram órgãos do Poder Judiciários os juízes de direito, com competência para
aplicar a lei, e os jurados, competentes para
pronunciar-se sobre os fatos da causa7. Em 2a
instância, a Constituição manteve as Relações,
instaladas nas províncias do Império8. Como
órgão de cúpula, a Constituição de 1824 institui,
na capital do Império, o Supremo Tribunal de
Justiça9 com competência para conhecer das
6
Sobre o Conselho de Estado no Império, sua configuração, suas competências e a forma de atuação consultar
Lopes (2012, p. 308-311).
7
Conforme se observa na redação dos artigos 151 e
seguintes da Constituição do Império: “Art. 151. O Poder
Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados,
os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos
casos, e pelo modo, que os Codigos determinarem. Art. 152.
Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam
a Lei. Art. 153. Os Juizes de Direito serão perpetuos, o que
todavia se não entende, que não possam ser mudados de
uns para outros Logares pelo tempo, e maneira, que a Lei
determinar”.
8
Art. 158. Para julgar as Causas em segunda, e ultima
instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que
forem necessarias para commodidade dos Povos.
9
Art. 163. Na Capital do Imperio, além da Relação,
que deve existir, assim como nas demais Provincias, haverá
tambem um Tribunal com a denominação de – Supremo
causas por meio da Revista, julgar os delitos cometidos pelos seus ministros, os das Relações, os dos membros do corpo diplomático e decidir
sobre os conflitos de jurisdição entre as Relações das Províncias10.
A magistratura teve papel preponderante na construção do Estado
nacional e na afirmação da política imperial (CARVALHO, 2011)11. A
importância da magistratura é ainda maior três décadas após a Independência. Muitos dos magistrados ocupavam cargos políticos simultaneamente ao exercício da magistratura. Muitas vezes, ocupavam-se de
tarefas de cunho administrativo e político. Tomavam decisões quanto à
obras públicas, impostos e outros assuntos (CARVALHO, 2011, p. 174).
Com a reforma judiciária do Império de 1871, os magistrados foram
proibidos de exercer qualquer cargo político: buscava-se afastar os magistrados do exercício dos cargos políticos e torná-los afetos apenas às
suas funções profissionais. Acerca disso, José Murilo de Carvalho (2011,
p. 175) leciona:
“[...] a participação dos magistrados em cargos eletivos causava grandes
inconvenientes à administração da Justiça, pois várias comarcas ficavam
às vezes por longo período sem seus juízes. Como vimos, os magistrados
desapareceram quase por completo da elite política e dedicaram-se apenas
a suas atribuições profissionais.”
Quase sintomático da perda de poder por parte dos magistrados no
jogo político imperial é a edição do Decreto no 2.684, de 23 de outubro
de 1875, que conferia ao Supremo Tribunal de Justiça a possibilidade da
edição de assentos e, na mesma medida, determinava que os assentos
publicados pela Casa de Suplicação de Lisboa tivessam vigência, com
força de lei, em nosso território12.
Tribunal de Justiça – composto de Juizes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Titulo do Conselho. Na primeira organisação poderão
ser empregados neste Tribunal os Ministros daquelles, que se houverem de abolir.
10
Art. 164. A este Tribunal Compete: I. Conceder, ou denegar Revistas nas Causas,
e pela maneira, que a Lei determinar. II. Conhecer dos delictos, e erros do Officio, que
commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico,
e os Presidentes das Provincias. III. Conhecer, e decidir sobre os conflictos de jurisdição,
e competencia das Relações Provinciaes.
11
Nesse contexto, afirma Antônio Carlos Wolkmer (2010, p. 117): “Mais que um
estamento burocrático, a magistratura simbolizava uma expressão significativa do poder
do Estado, ungido para interpretar e aplicar a legalidade estatal, garantir a segurança do
sistema e resolver os conflitos de interesses das elites dominantes. Constata-se, pois, o
procedimento profissional e político dos magistrados enquanto atores privilegiados da
elite imperial, sua relação com o poder político, com a sociedade civil e sua contribuição
na formação das instituições nacionais”.
12
“Art. 1o Os assentos tomados na Casa da Supplicação de Lisboa, depois da creação da
do Rio de Janeiro até á época da Independencia, á excepção dos que estão derogados pela
legislação posterior, têm força de lei em todo o Imperio. Art. 2o Ao Supremo Tribunal de
Justiça compete tomar assentos para intelligencia das leis civis, commerciaes e criminaes,
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A edição do Decreto no 2.684 teve um propósito compensatório. Se, em
1871, com a reforma judiciária do Império, os magistrados não poderiam
mais fazer parte da elite política, assumindo cargos políticos, pondo-se
fim à hegemonia da magistratura na construção do Estado brasileiro, a
edição desse decreto possibilitou o retorno da magistratura ao cenário
político com um instituto que confere poderes legislativos – ou até mesmo
maiores do que uma lei – ao Supremo Tribunal de Justiça.
Um ano depois, veio a lume o Decreto no 6.142, de 10/3/1876, que
visava a regulamentar a edição dos assentos. À semelhança de um preceito legislativo, os assentos poderiam ser tomados em casos apreciados
já concluídos visando regulamentar uma matéria jurídica em tese, isto é,
destituídos de um caso concreto sob os auspícios do Supremo Tribunal
de Justiça. Dessa maneira, o parágrafo único do art. 2o do referido decreto requisitava que, para a edição do assento, “os julgamentos tenham
sido proferidos em processos que estejam findos, depois de esgotados os
recursos ordinarios facultados por lei” ou, então, “que a divergência dos
julgamentos tenha por objeto o direito em tese ou a disposição da lei, e não
a variedade da aplicação proveniente da variedade dos fatos”. Comentando
tais requisitos, Rodolfo de Camargo Mancuso (2001, p. 224) disserta:
“Desse contexto se pode inferir que: (i) o assento derivava de um procedimento instaurado para interpretação do jus in thesi, quando sua interpretação se revelasse controvertida; (ii) ao contrário do atual incidente
de uniformização de jurisprudência, que é instaurado na pendência de
um julgamento em segundo grau, podendo a tese ao final assentada vir
a ser ali mesmo aplicada (CPC, arts. 478 e 479), já o procedimento para
a formulação do assento pressupunha que se tratasse de autos findos.”
Os assentos da Casa de Suplicação e do Supremo Tribunal de Justiça
permitiam, pois, a fixação de uma interpretação definitiva e vinculante
para os demais poderes públicos acerca de qualquer norma que ensejasse
dúvidas. Por mais que se queira dizer que tal instituto é decorrência do
poder interpretativo pertencente ao Poder Judiciário conferir força de lei
às suas razões interpretativas acaba por solapar a própria independência
dos demais membros do Poder Judiciário (BAHIA, 2009, p. 92).
No período pré-republicano, há uma opinião geral de que seria
necessária a criação de um tribunal superior, de forma a transferir as
atribuições do Poder Moderador para ele. Tal intuito contava com a opinião de Dom Pedro II que recomendou a Salvador Mendonça e Lafayette
quando na execução dellas occorrerem duvidas manifestadas por julgamentos divergentes
havidos no mesmo Tribunal, Relações e Juizos de primeira instancia nas causas que cabem
na sua alçada”.
172 Revista de Informação Legislativa
Rodrigues Pereira, em viagem diplomática ao
Estados Unidos da América, que estudassem a
organização da Suprema Corte para uma possível implantação no País13.
A influência ideológica dos republicanos
resultou na edição do Decreto no 848/1890 que
criou o Supremo Tribunal Federal, instalado
apenas em 1891. O propósito da criação do
Supremo Tribunal Federal era evitar o retorno
da Monarquia. Por isso, quando se lê “guarda
da Constituição”, leia-se “República” (CRUZ,
2004, p. 210):
“[...] o Supremo Tribunal Federal expôs,
desde logo, seu viés antimonarquista. A
denegação dos habeas corpus propostos por
João Mendes de Almeida em 1897 em favor
do Centro Monarquista, bem como em favor dos deputados Barbosa Lima e Alcindo
Guanabara e do Senador João Cordeiro, por
ocasião do atentado de 5 de novembro contra
o Presidente Prudente de Morais, sustenta o
raciocínio de que o Supremo nascera como
óbice a um contragolpe monárquico” (CRUZ,
2004, p. 211).
A atuação do Supremo Tribunal Federal
logo em seus primeiros anos distanciou-se
de seu congênere durante o período imperial,
o Supremo Tribunal de Justiça. Logo na sua
primeira década de atuação, o Supremo Tri13
“A ideia de se criar um órgão responsável para zelar
pelo bom funcionamento do sistema constitucional antecede
à própria República. D. Pedro II, ao despedir-se de dois brasileiros, Salvador Mendonça e Lafayette Rodrigues Pereira,
que partiam em missão oficial para os Estados Unidos, em
meados de 1889, pediu-lhes que estudassem “com todo
o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça
de Washington. Creio que nas funções da Corte Suprema
está o segredo do bom funcionamento da Constituição
norte-americana. Quando voltarem haveremos de ter uma
conferência a este respeito. Entre nós as coisas não vão bem,
e parece-me que, se pudéssemos criar aqui um tribunal igual
ao norte-americano, e transferir para ele as atribuições do
Poder Moderador da nossa Constituição, ficaria ela melhor.
Deem toda atenção a este ponto...” A monarquia não resistiu,
mas o objetivo de D. Pedro II de criar no Brasil um órgão à
semelhança da Suprema Corte americana, foi logo colocado
em prática pelos republicanos” (VIEIRA, 1994. p. 73).
bunal Federal tentou afirmar a independência
do Judiciário (CRUZ, 2004, p. 214). Não raras
vezes, no entanto, a tentativa de afirmação de
independência do Judiciário chocava-se com o
Executivo, que personificava o “representante
das garantias de todos os direitos e fiel intérprete
da ordem e da segurança social, de cujo fortalecimento dependia a permanência da República”
(COSTA, E., 2006, p. 32).
Logo no início da República Velha, com a
morte do Marechal Deodoro da Fonseca, assume o vice-presidente Floriano Peixoto. Uma
manifestação dos partidários do velho Marechal reivindicava novas eleições presidenciais,
contando com apoio de deputados, senadores,
jornalistas, militares. O presidente Floriano
Peixoto mandou efetuar a prisão de vários manifestantes, decretou estado de sítio por três dias
e suspendeu algumas garantias constitucionais
(COSTA, E., 2006, p. 29).
Rui Barbosa impetrou habeas corpus, o famoso HC no 300, em que alegava que o Supremo
Tribunal Federal seria competente para apreciar
a prisão dos indivíduos durante o estado de
sítio, uma vez que envolvia questões pertinentes
a direitos individuais, bem como analisar os
requisitos para a decretação do estado de sítio
(BAHIA, 2009, p. 106). A mera interposição do
writ por Rui Barbosa teria irritado profundamente Floriano Peixoto, que chegou a afirmar
que, se o Supremo Tribunal Federal concedesse
a ordem, os próprios ministros iriam precisar
de um habeas corpus (COSTA, E., 2006, p.
30). Talvez por conta da pressão envolvida, os
ministros denegaram a ordem por dez votos
contra um. Em seus fundamentos, o Supremo
Tribunal Federal acabou por decidir que este
não poderia se envolver nas funções políticas
do Executivo e do Legislativo, mesmo que elas
envolvessem direitos individuais, pois será
impossível separar questões políticas e direitos
individuais (BAHIA, 2009, p. 106).
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Estaria, dessa forma, criada, à moda brasileira, a doutrina das questões
políticas (TEIXEIRA, 2004). Em verdade, como diz José Eleares Marques
Teixeira (2004, p. 60-61), a doutrina das questões políticas foi adotada
pelo Supremo Tribunal Federal para evitar um confronto com o poder
político, mesmo que à custa dos direitos individuais, utilizando-se, em
verdade, do subterfúgio de que não há como separar as questões políticas
dos direitos individuais.
A primeira década de atuação do Supremo Tribunal Federal ficou
marcada pelo confronto com o Poder Executivo; sua atitude de extrema
timidez, fez com que algumas vezes o próprio Presidente da República
descumprisse algumas ordens emanadas do Supremo (RODRIGUES,
1991b, p. 50).
Na primeira década do século XX, no entanto, por ocasião da
vitória de Marechal Hermes da Fonseca na corrida presidencial em
1910, sob o protesto de Rui Barbosa de que o vencedor seria inelegível,
o Poder Executivo passou a praticar um sem número de violências
contra direitos individuais, tais como fechamento de jornais, recrutamento de involuntários para o Exército e a Marinha (RODRIGUES,
1991b, p. 32).
Diante do clima de instabilidade política que pairava sobre o território
nacional, o Supremo Tribunal Federal passou a ser acionado para resolver questões ligadas ao exercício de poder. A única ação constitucional,
prevista na Constituição de 1891, que garantiria os direitos individuais
previstos naquela Constituição era o habeas corpus. Previsto no § 22o do
art. 72 da Carta de 1891, o instituto assumia a seguinte configuração:
“Dar-se-á o habeas-corpus sempre que o individuo sofrer ou se achar
em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou
abuso de poder”.
Obviamente, a redação do instituto, a interpretação de Rui Barbosa14
e a disposição do Supremo Tribunal Federal para intervir em questões
políticas fizeram com que se criasse, por obra pretoriana, a doutrina
brasileira do habeas corpus. Se, antes, restrito à proteção da liberdade
de locomoção, o habeas corpus passou a tutelar todo e qualquer direito,
ameaçado ou violado (CRUZ, 2004, p. 215-216).
14
Rui Barbosa vislumbrou a possibilidade de ampliação no espectro de proteção do
habeas corpus: “Não se fala em constrangimentos corporais. Fala-se amplamente, indeterminadamente, absolutamente, em coação e violência, de modo que, onde quer que surja,
onde quer que se manifeste a violência ou a coação, por um destes meios, aí está estabelecido o caso constitucional do “habeas corpus”. Quais são os meios indicados? Quais são
as origens da coação e da violência, que devem concorrer para que se estabeleça o caso
legítimo de ‘habeas corpus’? Ilegalidade ou abuso de poder. [...] Coação definirei eu, é a
pressão empregada em condições de eficácia contra a,liberdade do exercício de um direito,
qualquer que esse seja” (BARBOSA, 1978, p. 172-173).
174 Revista de Informação Legislativa
A primeira ocasião que o Supremo Tribunal
Federal se manifestou pelo alargamento do âmbito de incidência do instituto foi o caso do Conselho Municipal do Distrito Federal, em que o
Tribunal concedeu a ordem para que membros
de uma determinada facção política pudessem
entrar no recinto do Conselho Municipal do
Distrito Federal e exercer as funções para as
quais foram eleitos (RODRIGUES, 1991b, p.
55-68). Nos anos seguintes, as ordens de habeas
corpus concedidas pelo Supremo Tribunal Federal abarcaram uma série de direitos individuais,
para além da garantia de liberdade de locomoção. Leda Boechat Rodrigues cita a liberdade de
imprensa, aí incluída a ordem concedida contra
abuso da liberdade de imprensa e a suspensão
da publicação de jornais; direitos políticos, tal
qual a possibilidade da concessão da ordem para
garantir o direito de voto; ordem concedida para
possibilitar a propaganda de crença religiosa;
liberdade de exercício de profissão, tal como
ordem concedida para garantir o exercício da
profissão de pescador (RODRIGUES, 1991b,
p. 191-213).
Tanto a utilização repressiva como a preventiva do remédio constitucional foi uma constante no período que vai desde o ano de 1910 até
o ano de 1926, com intuito de tutelar todos os
direitos previstos no catálogo da Constituição
de 1891. Referida utilização do habeas corpus
pelo Supremo Tribunal Federal foi denominada
de aberrante por Pedro Calmon, já que havia
uma intervenção do Poder Judiciário nos casos
políticos (RODRIGUES, 1991b, p. 68).
Leda Boechat Rodrigues chega a afirmar
que a doutrina brasileira do habeas corpus foi a
maior construção jurisprudencial feita no Brasil. Segundo a historiadora, o mérito há de ser
dado ao Ministro Enéas Galvão (RODRIGUES,
1991b, p. 17). Com efeito, não há dúvidas de que
a doutrina brasileira do habeas corpus foi serviente para a proteção de muitos dos direitos in-
dividuais proclamados na Constituição de 1891.
Talvez sem a ampliação da utilização do habeas
corpus feita pelo Supremo Tribunal Federal tais
direitos ficariam à mercê da discricionariedade
em sua concretização pelos poderes públicos
nos mais diversos níveis da República. Contudo, é preciso ver que tal prática jurisprudencial
buscou influenciar o jogo político.
Em verdade, se a ampliação do espectro
de incidência de uma ação constitucional tal
como feita pelo Supremo Tribunal Federal na
doutrina brasileira do habeas corpus, de um
lado, amplia a possibilidade de proteção dos
direitos individuais ameaçados e violados, de
outro, essa ampliação coloca o Supremo Tribunal Federal como controlador do jogo político,
pretendendo submeter o Poder Legislativo e
o Executivo à interpretação fixada diante das
violações de direitos.
Em hipótese alguma se está a defender que
os direitos individuais violados devem ficar
à mercê da própria sorte. Apenas queremos
ressaltar o viés político-jurídico que tal prática
expõe. De fato, sob a argumentação de proteção
aos direitos individuais, muitas vezes se escondem objetivos pragmáticos e ideológicos de
controle sobre os demais poderes republicanos.
A atuação do Poder Judiciário, pelo que se
demonstrou, foi marcado por períodos de descontinuidade entre a ocupação deste no ponto
mais evidente do jogo político, tal como se
demonstrou com os assentos e a construção do
Império, e a completa obscuridade participativa
na política com a doutrina das questões políticas
logo no início da República Velha.
Esse caminhar, no entanto, demonstra que
o Poder Judiciário sempre teve um fetiche
no controle dos demais poderes. O ativismo
não é nenhuma novidade em nosso contexto
político-social. Até bem pode ser no plano
teórico, mas não o é novidade no plano prático
jurisprudencial.
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Conclusão
A posição de proeminência do Poder Judiciário no contexto jurídico
e político atual não é fruto exclusivamente de uma nova principiologia
ou teoria constitucional moderna. Em verdade, teorias jurídico-constitucionais que creem em uma suposta proeminência do Poder Judiciário no
jogo democrático descendem de uma ideologia jurídica. De fato, há uma
crença generalizada no seio da teoria jurídica de que o Poder Judiciário
é capaz de dar conta dos anseios sociais.
No entanto, por mais que se pregue que referida teoria é fruto de um
ideário moderno advindo da Constituição Federal de 1988, viu-se que
o ativismo judicial – tal como se entende hoje em dia –, ao menos em
terrae brasilis é consequência de quase dois séculos de atuação de nosso
órgão responsável para julgar os litígios individuais. Há, com evidência,
um desvirtuamento do Poder Judiciário no Brasil na medida em que ele
conflita com os demais poderes.
Devemos, antes de tudo, reconhecer que em nenhum momento o
Poder Judiciário foi tido pela própria Constituição de 1988 como responsável pela condução dos destinos de nossa comunidade política.
Aqueles que pregam que é o Poder menos perigoso ou, então, que é o
mais capacitado, em geral, colocam-no sob um perigoso fardo. Todos os
sucessos ou fracassos da comunidade política não serão compartilhados
igualitariamente pelos indivíduos de nossa sociedade, mas serão inteiramente atribuída ao Poder Judiciário.
De qualquer modo, nunca é demais lembrar que o próprio Poder Judiciário poderá ser responsável pelos retrocessos de políticas conquistadas
democraticamente pela sociedade. A história é repleta de erros cometidos
pelo Poder Judiciário. Esta pequena digressão histórica e teórica sobre
o ativismo judicial no Brasil dá-nos conta de que nem sempre a atuação
judicial é o melhor remédio para os males sociais.
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