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Encenando e cantando a tragédia já conhecida

2021, Socine

A seguinte pesquisa pretende analisar dois números musicais de cada um dos primeiros longas de ficção de Lorena Muñoz: Gilda – no me arrepiento de este amor (2016) e El Potro – lo mejor del amor (2018). Como parte de um doutorado focado em cinebiografias musicais latino-americanas, e que dá os seus primeiros passos, a ideia do texto é verificar escolhas de (re)encenação de duas cenas musicais simbólicas de ambos os filmes, baseados em fenômenos populares argentinos com mortes trágicas.

Encenando e cantando a tragédia já conhecida335 Staging and singing the already known tragedy Leandro Afonso336 (Doutorando – Universidade Federal da Bahia – UFBA) Resumo: A seguinte pesquisa pretende analisar dois números musicais de cada um dos primeiros longas de ficção de Lorena Muñoz: Gilda – no me arrepiento de este amor (2016) e El Potro – lo mejor del amor (2018). Como parte de um doutorado focado em cinebiografias musicais latino-americanas, e que dá os seus primeiros passos, a ideia do texto é verificar escolhas de (re)encenação de duas cenas musicais simbólicas de ambos os filmes, baseados em fenômenos populares argentinos com mortes trágicas. Palavras-chave: Cinema argentino, Cinebiografia, Lorena Muñoz, Gilda – no me arrepiento de este amor, El Potro – lo mejor del amor Abstract: The following research intends to analyze two musical scenes in each of the first feature films by Lorena Muñoz: I’m Gilda (Gilda – no me arrepiento de este amor, 2016) and El Potro – lo mejor del amor (2018). As part of a doctorate focused on Latin-American musical biopics, that gives its first steps, the idea of the text is to verify (re)staging choices in two symbolic musical scenes in both films, based on popular Argentinean phenomena with tragic deaths. Keywords: Argentinean Cinema, Biopic, Lorena Muñoz, I’m Gilda, El Potro – lo mejor del amor Imagens para uma música No seu primeiro longa, Yo no sé que me han hecho tus ojos (2003), Lorena Muñoz já aborda o mundo musical através de Ada Falcón, uma das grandes lendas da era de ouro do tango (e do cinema musical argentino), mas é nos dois filmes mais recentes que a diretora vai para a ficcionalização de personagens históricos: Gilda – no me arrepiento de este amor 336 - Professor, pesquisador, realizador. Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Encenando e cantando a tragédia já conhecida (2016) e El Potro – lo mejor del amor (2018). Em ambos os casos, Muñoz decide narrar a as- 337 - Entendemos cinebiografia como a tradução mais precisa para biopics, “filmes de ficção enfocados em personagens cuja existência histórica está documentada” (VIDAL, 2014, p. 3). 643 censão de fenômenos musicais na Argentina, mortos trágica e precocemente. Gilda faleceu em 1996, Rodrigo (El Potro) em 2000; ela tinha 34 anos, ele tinha 27 – em ambos os casos, a morte súbita veio após um acidente automobilístico. Os longas estão, portanto, ligados a outro gênero longevo que é o das cinebiografias337, mas nossa análise, agora, recai sobre os números musicais. Afinal de contas, estes longas só existem porque as vidas de seus personagens principais foram popularizadas graças, sobretudo, às canções. 335 - Trabalho apresentado no XXIV Encontro SOCINE na sessão ST Audiovisual e América Latina: estudos estético-historiográficos comparados – Políticas do corpo em performance no audiovisual da América Latina. Vamos falar aqui, portanto, de endoclipes, sequências em que uma canção fica em primeiro plano, como nos videoclipes, com o diferencial de ser produzida pela equipe do filme (VIDIGAL, 2012), mas o ponto aqui não é (apenas) esse. As cenas que compõem as obras analisadas se conectam a uma história pregressa de fenômeno popular – as músicas já conhecidas são interpretadas por atores que (re)encenam as vidas de quem consagrou aquelas canções, dentro de uma narrativa, simultaneamente, ficcional e biográfica: estamos diante de endoclipes das cinebiografias. O presente trabalho, importante frisar, é parte de um doutorado recém-iniciado e que tem como foco as cinebiografias musicais latino-americanas feitas no século XXI. No espaço aqui cedido, a análise é introdutória. As aberturas, os desfechos e as construções dos personagens antes dos fenômenos populares ficam para outro instante. Dentro das possibilidades, esta investigação selecionou duas músicas de cada filme como simbólicas para verificar as escolhas visuais para canções já conhecidas. Como é a encenação338 delas? Em que se aproximam e se diferenciam, o que podemos inferir através delas? Santa que baila No caso de Gilda – no me arrepiento de este amor, nossa análise se inicia por Corazón Herido. A música é a reencenação de um acontecimento verídico, a apresentação da cantora em um presídio de La Plata.339 A cena do filme, porém, ganha um acréscimo significativo: entre os detentos, um deles segura a imagem de Cristo, o que, dentro do que essa pesquisa conseguiu verificar, não aparece nas imagens disponíveis do show à época em que ele ocorreu. Poderia ser só uma licença poética, mas o final do filme lembra, em cartela, um fato importante a respeito do local da morte de Gilda: “no lugar do acidente seus admiradores construíram um santuário, muitos a veneram como uma santa” (GILDA – NO ME ARREPIENTO DE ESTE AMOR, 2016). 340 Outra cena notável é da canção que empresta o título ao longa. No me arrepiento de este amor aparece sendo composta em um momento solo de Gilda (interpretada por Natalia Oreiro), com o violão, em contraluz. O canto e os acordes aparecem, ambos ainda hesitantes, em processo de gestação. Daí corta-se para uma cena em que Miriam – nome de batismo da protagonista – ganha a companhia de seu principal parceiro musical, Toti Giménez, que acrescenta um teclado e sugestões. No mesmo plano em que ele diz “¿y si lo subimos un poquito?”, a câmera faz um leve movimento vertical para baixo e mostra o próprio Javier Drolas (ator que interpreta Toti Giménez) tocando as notas como sugeriu. O contraplano revela Natalia Oreiro cantarolando agora a música com um ritmo mais perceptível ao espectador. A cena soa mais realista porque o vemos tocar e a vemos cantar. Também se nota um clima de Leandro Afonso intimidade no desenvolvimento da canção, que vai ganhando corpo. Mais do que “apenas”, 644 ênfase nas aspas, sublinhar a força de um hit, o filme escolhe uma encenação que prima pelo 338 - Para nossa pesquisa, abraçamos o conceito de Oliveira Jr. (2013, p. 121), para quem “a mise en scène é o que acontece quando há o encontro do cineasta com os atores, lugares e eventos que ele pretende filmar”. A análise é imanente ou, dito de forma mais específica, ela vai para o que está no filme como resultante deste processo de encenação: o que está audiovisível do encontro entre pessoas, cenários e situações filmadas. 339 - A cena da apresentação de Gilda, no presídio, pode ser vista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dJ05370Wwsw (UNA PASIÓN VERDADERA, 2016). 340 - No original: “en el lugar del accidente sus admiradores construyeron un santuario, muchos la veneran como una santa”. realismo341 – e por um realismo que mostra a personagem em complexa relação com o outro. Toti é um produtor, mas é também a pessoa com quem, desde o início, Gilda mais se sente à vontade. Há uma tensão criativa e também sexual. Essa sexualidade da cantora à mostra, ainda que seja comparavelmente menor que a das concorrentes de Gilda na cena em que ela conhece Toti, coexiste com o imaginário de santa, informado na cartela final, materializado no presídio e presente, na sua ambivalência, na sequência em que mãe e filha acreditam que a música de Gilda as curou da doença. A mãe, sobretudo, acredita no poder sacro da artista. A cantora rechaça tal poder, mas não se comprova nada – nem a capacidade curandeira nem a mera coincidência. O filme, nas duas sequências musicais analisadas, e ao longo de sua duração, mostra incertezas de uma impressão dominante: estamos diante de uma santa humana, que canta e dança. El Potro Diferentemente de Gilda, natural de Villa Devoto, bairro de classe média de Buenos Aires, Rodrigo vem do interior da Argentina, de Córdoba – distante mais de 600 quilômetros da capital portenha. Quando é convocado a gravar em Buenos Aires, El Potro ouve de Oso (Fernán Mirás, aqui interpretando um agente em potencial de Rodrigo) que a banda está confirmada lá, mas Rodrigo bate o pé: os músicos têm que ser de Córdoba. Esse posicionamento, que pode ser visto como uma espécie de resistência identitária, termina sendo aceito e é frisado em cena também por seu figurino – tão vibrante nos shows que presenciaremos, aqui o cantor se resume a uma discreta calça azul marinho e à camisa do Club Atlético Belgrano, o Pirata Cordobés. Assim que a comemoração pela viagem ao destino portenho começa, um som de teclado introduz Fue lo mejor del amor – que também empresta o nome ao filme – costurando a transição entre as cenas. Antes da parte vocal da música começar, o show é apresentado: “Eles chegam de Córdoba com toda a força do cuarteto. Antes a gente o chamava de bebê, mas ele cresceu e é o potro, o potro, o potro… Rodrigo!” (EL POTRO – LO MEJOR DEL AMOR, 2018).342 “Fue lo mejor del amor / Lo que he vivido contigo / Dejo mi esposa, tú dejas tu marido / Para matarnos en un cuarto de hotel” (Ibid.). Enquanto a canção celebra o adultério como consequência natural do prazer do melhor do amor, as imagens dedicam atenção sobretudo 341 - “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida” (BAZIN, 1991, p. 62). Nesta situação, os dois ou mais fatores da ação identificáveis, que potencializam o realismo da encenação, são 1- a atriz que canta e 2- o ator que toca, simultaneamente, no mesmo quadro, sem que, por exemplo, se precise cortar das mãos de um dublê para o rosto do ator. Encenando e cantando a tragédia já conhecida a Rodrigo Moreno, o ator, que canta, baila e destila carisma; vemos o público, mas não como 342 - No original: “llegan de Córdoba con toda la fuerza cuartetera. Antes le decíamos el bebote, pero él creció y es el potro, el potro, el potroË ¡Rodrigo!” 645 um grupo de pessoas individualizadas, e sim como uma massa apaixonada que está à frente do cantor, a quem vemos mais. Curiosamente, depois dessa canção o protagonista conhece, após o show, aquela que será a mãe de seu filho – e que terá papel fundamental na outra sequência musical que investigamos aqui. Soy Cordobés é acompanhada por imagens que o mostram recebendo sexo oral de uma apresentadora de TV, com quem ele volta a transar, em ato seguido por outro encontro sensualizado onde ele troca carícias simultâneas com duas mulheres. A finalização da cena, todavia, é a imagem solitária daquela que, em vários instantes, notados graças à montagem alternada, tentou em vão o contato com Rodrigo: Patricia, Pato, a mãe de seu filho, irritada por nunca conseguir falar com ele, lança uma garrafa de bebida no chão. Se pode-se sublinhar que El Potro é cada vez mais resumido a uma máquina sexual, é também perceptível que presenciamos, numa mesma cena, o pior do ser privado (de acordo com um certo imaginário ocidental judaico-cristão: o marido e pai que combinam infidelidade e ausência) com o melhor do ser público (o músico esbanjando canto, dança e magnetismo). Considerações finais Essa proposta decidiu pegar, de cada longa, dois números musicais: um que empresta o nome ao filme e outro que, aos olhos e ouvidos desta pesquisa em andamento, pareceu mais simbólico. Fica a impressão de que essas escolhas estão em sintonia com o rumo geral de cada obra – Gilda transborda sensualidade e sensibilidade sacro-mundanas, enquanto Rodrigo é um hedonista inveterado. Em ambos os casos, os personagens não são tão facilmente resumíveis, claro, mas o destaque especial é a Gilda, que se mostra mais ambígua: ela é uma santa que flerta e dança, sem arrependimento. Mesmo Natalia Oreiro sendo uma também cantora, o investimento é menos na sua potência vocal que nas nuances da personagem, o que inclui passagens pela infância de Gilda. O longa de El Potro, em contrapartida, foca menos em uma narrativa complexa que no fascínio emanado pelo ator-cantor – um pedreiro que foi convocado por sua semelhança física com Rodrigo (DILLON, 2020, p. 134) –, sem flashbacks. Se por um lado podemos falar de idolatrias e de finais que remetem a uma cristandade, a uma crucificação, como lembra Dillon (Ibid., p. 137), por outro a atenção dada a Rodrigo salienta o que há não só de humano por ser complexo, com eventuais dilemas, mas no que há de pouco virtuoso, quase vilanesco. No caso de Gilda, a ambivalência da personagem nunca se afasta muito da virtude, o que leva o filme, também, a um possível diálogo mais forte com o melodrama. Esta sensação, porém, assim como outras, pedem mais tempo de análise. Três acontecimentos posteriores à apresentação no congresso devem ser salientados aqui: uma revisão dos filmes, a discussão de ambos em sala de aula e um aumento do repertório sobre os personagens levou este analista a outras interpretações, que não cabem aqui. Nem o título da apresentação seria mantido, mas a escolha de seguir o mesmo se deu por entender que ele representa o estágio da pesquisa quando este rabisco foi concebido. Outras visitas a Gilda e Leandro Afonso Rodrigo devem vir no futuro próximo – as duas cinebiografias, com uma razoável bibliogra- 646 fia a respeito, demandam imersões mais cuidadosas e análises mais profundas, parte de um foco a médio prazo. Referências BAZIN, André. Montagem proibida. In: O cinema: ensaios. São Paulo, 1991, Editora Brasiliense, p. 54-65. CHION, Michel. A Audiovisão. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Texto & Grafia, 2011. DILLON, Alfredo. La biopic musical argentina como fenómeno cultural: los casos de Gilda y El Potro. adComunica, 2020, 123-142. EL POTRO – LO MEJOR DEL AMOR. Direção: Lorena Muñoz. Fotografia: Daniel Ortega. Argentina, 2018. Digital (122min), son., cor. Título original: El Potro – lo mejor del amor. GILDA – NÃO ME ARREPENDO DESSE AMOR. Direção: Lorena Muñoz. Fotografia: Daniel Ortega. Argentina, 2016. Digital (118min), son., cor. Título original: Gilda – no me arrepiento de este amor. OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. A mise en scène no cinema – do clássico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013. VIDAL, Belén. The biopic and its critical contexts. In: BROWN, Tom; VIDAL, Belén (Orgs.), The Biopic in Contemporary Film Culture. Nova Iorque: Routledge, 2014. p. 1-32. VIDIGAL, Leonardo Alvares. Música Popular e Endoclipe nas Séries Musicais Televisivas: Reggae e Deslocamento Territorial em Baila Caribe. Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular. 4., São Paulo, 2012. Anais... MUSICOM. USP, 2012. Encenando e cantando a tragédia já conhecida UNA PASIÓN VERDADERA, Gilda. Gilda - Corazón Herido (Penitenciaria en vivo). 2016. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dJ05370Wwsw. Acesso: 5 de setembro, 2021. 647