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A reinvenção da Semana e o
mito da descoberta do Brasil
RAFAEL CARDOSO I
“Assim, no meio da confusão e lutando com os embaraços que
ela própria cria para si, vem-se cristalizando a nossa vanguarda.”
(Victor, 1938, p.154)
dos últimos 50 anos, a Semana de Arte Moderna virou uma
espécie de unanimidade intocável, quase sagrada. Para alguns, a Semana
não se debate; se celebra. O curioso é que nem sempre foi assim. No aniversário de 20 anos do evento, a unanimidade era outra. Já nessa época, a Semana “parecia pronta para ser enterrada”, nas palavras de Francisco Alambert
(2012, p.112). No dia 30 de abril de 1942, Mário de Andrade, voz mais que
autorizada, proferiu a conferência “O movimento modernista” na biblioteca do
Itamaraty, no Rio de Janeiro, onde sentenciou: “Eu creio que os modernistas
da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas
podemos servir de lição” (Andrade, 1974, p.255). Essa dura condenação tem
ecoado de forma enviesada pela historiografia. Todos conhecem a palestra, porém poucos dão ao autor o crédito de levar suas críticas a sério (Cardoso, 2017;
Chaves, 2013; Jobim, 2012; Ramos Jr., 2012; Bosi, 2004).
O notório mea-culpa de Mário não foi a primeira condenação da Semana
por um de seus integrantes ou apoiadores, e muito menos seria a última. O próprio já havia se distanciado dela em 1924, na revista América Brasileira, na qual
qualificou a Semana de “Precipitada. Divertida. Inútil” (Andrade, 1924, p.115).
Em 1929, na Revista de Antropofagia, Oswaldo Costa desancou a Semana como
“falso modernismo”, entre uma saraivada de recriminações, certamente com o
aval de Oswald de Andrade (Tamandaré, 1929, p.12). Ao longo das décadas
seguintes, o evento e sua recepção foram postos em questão por Sérgio Milliet,
René Thiollier, Blaise Cendrars, Di Cavalcanti, Yan de Almeida Prado, entre
outros. Com tantas críticas e reparos vindos do seio do movimento, cabe a
pergunta: em que momento se forjou o mito triunfal da Semana? É comum
imaginar que isso só tenha ocorrido em torno das celebrações do cinquentenário
em 1972, mas, na verdade, sua formulação intelectual é mais antiga (Cardoso,
2019b; Pontes, 1998, p.21-37).
A narrativa heróica da Semana foi alicerçada nos anos finais do Estado
Novo e elaborada, do modo que a conhecemos hoje, logo após o fim dele.
Conforme apontou Silviano Santiago (1991, p.7-19), o par de volumes Testa-
A
O LONGO
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mento de uma geração (1944) e Plataforma da nova geração (1945) foi decisivo
para esse processo (Pontes, 1998, cap.2). Editados pela Livraria do Globo, de
Porto Alegre, os livros são a complilação de inquéritos publicados pelo jornal
O Estado de S. Paulo, ouvindo nomes destacados da intelectualidade brasileira.
O corte estabelecido para inclusão no primeiro volume, organizado por Edgard
Cavalheiro, era o ano 1930. Os autores que se firmaram após essa data passaram
a compor o segundo volume, organizado por Mário Neme. As primeiras sondagens foram realizadas entre 1941 e 1942, sob encomenda de Sérgio Milliet, e
publicadas no jornal em 1942 (Cavalheiro, 1944, p.271-82).
Essa enquete representou uma troca consciente da guarda entre a geração
de 1918, a que fez o modernismo paulista, e aquela outra que viria a ser apelidada de geração de 1945 – responsável não somente por enterrar os ossos da Semana, mas também por reinventar e consagrar sua história. A pergunta dirigida aos
respondentes era: o que virá após o fim da Segunda Guerra Mundial? Quando o
inquérito nasceu, contudo, o desfecho da guerra ainda estava longe. Na abertura
do primeiro volume, Cavalheiro admite que a faísca inicial para sua realização
foi um artigo de Mário de Andrade, “discutidíssimo”, em que ele teria feito o
balanço do que chamou de sua “pífia geração” (Cavalheiro, 1944, p.8-9). A
noção de derrota geracional foi externada também por Di Cavalcanti em seu depoimento, e ecoa ainda ao longo de outros trechos e autores. O próprio título,
Testamento, pode ser lido quase como prenúncio do falecimento de Mário, em
fevereiro de 1945, e o enterro de tudo que sua geração, nada pífia, representou
no panorama intelectual brasileiro.
O presente artigo se dedica a examinar a historiografia da Semana surgida
ao fim do Estado Novo. Seu propósito não é pôr em xeque a falsidade do mito
de 1922, mas compreender como e por que ele passou a ser aceito como verdade indiscutível. Em especial, quero chamar a atenção para uma tese inventada
por volta dessa época e que acabou vingando: a de que o modernismo paulista
teria resgatado o rural, o indígena e a negritude de um suposto apagamento
anterior. Em poucas palavras, a noção de que o movimento modernista pôs em
andamento a famigerada descoberta do Brasil profundo. Que essa alegação é
falsa é facílimo de demonstrar por exemplos. É só apontar nomes como Adolfo
Caminha, Affonso Arinos, Euclides da Cunha e João do Rio, na literatura, ou
Almeida Júnior, Eliseu Visconti e Arthur Timotheo da Costa, nas artes visuais,
que já haviam se lançado, entre as décadas de 1890 e 1910, à busca pelo autóctone e o autêntico, assim como ao exame da vivência urbana dos pobres e
marginalizados. Isso, sem nem falar dos muitos criadores que o cânone modernista relegou ao status do regional ou, pior ainda, do pré-modernismo, ambas
categorias mais que discutíveis.
O olhar para o Brasil profundo
Em 1940, foi realizada uma exposição individual de Cândido Portinari no
Detroit Institute of Arts, com o título Portinari of Brazil, a qual seguiu depois
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para o MoMA de Nova York (Gomes Cardoso, 2019 , p.9-24). No catálogo, o
historiador americano Robert C. Smith (1940, p.10-11) asseverou:
A dívida que a cultura brasileira moderna tem com o folclore, as danças,
a música e a arte ritual do negro foi constatada pelos intelectuais de São
Paulo naquela Semana de Arte Moderna de 1922 que foi o primeiro reconhecimento público da arte indígena e regional no Brasil.
Desde então, surgiu uma escola de vigor impressionante inspirada em grande parte pelo negro. Abjurando o pitoresco artificial de seus antecessores
francófilos, os brasileiros modernos têm buscado entender o negro e sua
relação consigo mesmos, e sobre as concepções resultantes, têm baseado
sua arte.
Na tal “escola de vigor impressionante”, além de Portinari, Smith agrupou
Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Arthur Ramos, José Lins do Rego, Jorge
Amado, Cícero Dias e Lasar Segall. O público norte-americano, ignorante das
disputas internas ao modernismo brasileiro, não haveria de estranhar essa miscelânea de nomes. Porém, para quem conhece o assunto, o insólito ajuntamento
levanta não somente uma lebre, mas pacas, tatus e cotias.
Robert Chester Smith exerceu papel fundamental na divulgação da arte
brasileira nos Estados Unidos, em especial na promoção de Portinari, apelidado
por ele de “o Diego Rivera brasileiro” (Gomes Cardoso, 2019, p.20). Recém-formado em Harvard, onde desenvolveu pesquisa sobre arquitetura portuguesa
do século XVII, Smith veio parar no Brasil no ano fatídico de 1937, o primeiro
do Estado Novo, aos 25 anos de idade, e tornou-se pioneiro da linhagem de
brasilianistas estadounidenses. Seu interesse pela arte e arquitetura do período
colonial logo o aproximou do novíssimo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde virou colaborador assíduo da Revista do Sphan. Ali travou
boa relação com os três Andrades que transitavam pelo gabinete do ministro
Gustavo Capanema: Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de
Andrade e Mário de Andrade, todos entre dez a vinte anos mais velhos do que
ele (Reis Filho, 2012, p.9-24). É provável que a visão de Smith sobre a Semana
de 1922 tenha sido moldada pelas explicações desse trio, já que ele não possuía
conhecimento prévio para sair dissertando sobre o assunto.
O texto de Smith para o catálogo de Portinari é um dos primeiros a afirmar
uma derivação entre a Semana de 1922 e a suposta redescoberta da negritude.
Relação fantasiosa, diga-se de passagem, já que não há praticamente manifestações ou representações de afro-brasilidade nas obras que participaram da Semana ou foram produzidas em sua decorrência imediata. A exceção que confirma a
regra é A negra (1923), de Tarsila do Amaral, quadro pintado em Paris e que só
veio a ser exposto no Brasil em 1933 (Cardoso, 2019a; Gomes Cardoso, 2016).
Em sua famosa carta conclamando Tarsila a se filiar ao matavirgismo, Mário de
Andrade exortou: “Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem,
onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis” (Amaral, 2003,
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p.369). Essa menção enviesada à “arte negra” é curiosa, sobretudo pela data.
Escrita em novembro de 1923, ela é pouco posterior à produção de A negra,
cuja figura central Mário ficou conhecendo por meio do esboço desenhado.
Trata-se de uma referência negativa, invocada como prova de que Tarsila teria
se parisianizado.
Mesmo na evolução posterior do movimento modernista – tanto no verde-amarelismo do grupo da Anta como nas pesquisas etnomusicológicas de Mário, e ainda na Antropofagia –, a questão racial aparece quase sempre em papel
secundário (Toller Gomes, 1999, p.249-59). Ela costuma ser subordinada ao
nacional, resumida ao folclore ou instrumentalizada como primitivismo, quando não é relegada ao deboche e ao estereótipo. Foi na década de 1930 que os
meios modernistas passaram a dedicar maior atenção ao legado afro-brasileiro.
Notadamente, depois de 1926 a 1927 quando o Brasil viveu sua própria onda
de négrophilie, inspirada na parisiense, por conta do sucesso da Companhia Negra de Revistas, que deu palco para o talento de Pixinguinha e revelou Grande
Otelo (Barros, 2005).
Apesar de sua singularidade, a hipótese de Smith não surgiu do nada. Pelo
menos em parte, ela foi importada dos Estados Unidos. Encetou-se na década
de 1930 um diálogo entre antropólogos americanos e brasileiros – em especial
Melville Herskovits e Arthur Ramos – em torno das contribuições culturais da
diáspora africana (Guimarães, 2008). A discussão não se restringiu ao campo da
antropologia, mas respingou também nas artes. Escrevendo no Bulletin of the
Pan American Union, em 1931, o arquiteto Carl A. Ziegler (1931) destacou “a
influência do negro e do indígena” na arte e na música brasileiras. Sua impressão ecoava os sentimentos de Frances Grant – diretora do Roerich Museum, em
Nova York, local de uma exposição pioneira de arte brasileira em 1930 – expressos pouco tempo antes no mesmo órgão (Grant, 1931; Gomes Cardoso, 2014).
À época em que Smith se formou em Harvard, despontava nos meios intelectuais dos Estados Unidos vivo interesse pela temática da negritude brasileira, fato
corroborado pela tradução para o inglês dos trabalhos de Ramos.
No texto de 1940, Smith aponta como princípio organizador da sua escola imaginária aquilo que apelidou de “o mistério do negro”. A expressão soa
estranha, mas não deixa de ser condizente com o uso da imprensa brasileira,
que apelava com alguma frequência para os mistérios da macumba (Giumbelli,
2015). Predominava à época uma visão da cultura de matriz africana como algo
recôndito ou enigmático, situado à parte de uma brasilidade normativa – especialmente sob o Estado Novo, quando o padrão do brasileiro moreno, católico e
nacionalista tomou ares oficiais e autoritários (Seyferth, 1999; Gomes da Cunha,
1999). Outro trecho poderia causar maior estranhamento para eventuais leitores
brasileiros, onde Smith (1940, p.11) afirma que Portinari teria revelado “o negro
de todo o Brasil como símbolo sólido na vida vigorosa e cambiante do seu país”.
Ao postular essa categoria agregadora, porém aplainadora de diferenças, o historiador americano realizava uma operação discursiva com potencial explosivo.
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Coleção Museu de Arte Contemporânea da USP, São Paulo (SP). Foto Romulo Fialdini.
A negra. 1923. Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 100 x 80 cm.
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Smith certamente imaginava prestar um serviço aos seus amigos do Sphan,
ainda mais ao creditar a realização desse arquétipo do negro brasileiro a Portinari, artista protegido por Capanema. Em 1940 – a despeito da atuação da Frente
Negra Brasileira, entre 1931 e 1937 – ainda não era usual no Brasil afirmar “o
negro” como categoria reificada, muito menos com o intuito de exaltá-la, o
que viria a ser o caso nas décadas seguintes por obra e militância de Abdias do
Nascimento e Guerreiro Ramos (Oliveira, 2008, p.40-82). Em termos conceituais, afirmar a existência de um “negro de todo o Brasil” era andar na contramão das ideias de Arthur Ramos, citado por Smith e então tido como o maior
especialista em cultura afro-brasileira. Ramos – que ficou famoso com os livros
O negro brasileiro (1934) e O folclore negro no Brasil (1935) – buscava naquele
momento desmontar a “homogeneidade redutora” das categorias negro, branco
e índio, com o propósito de colocar o estudo da mestiçagem em novo patamar,
pretensamente científico (Campos, 2004, p.274).
Cabe enfatizar o essencialismo da síntese intelectual operada por Smith.
Talvez por ingenuidade, e certamente condicionado por seu olhar norte-americano, o jovem historiador misturou todos os matizes étnicos, regionais e culturais no mesmo balaio, decretou a existência de um negro genérico e creditou
sua descoberta à burguesia de São Paulo e seus enfants terribles. Pensada ou
impensada, trata-se de uma visão monolítica da racialidade, em conformidade
com a rigidez da “linha de cor” então imposta nos Estados Unidos. Ela vai de
encontro às noções de harmonia racial avançadas por Ramos, que contavam com
o beneplácito oficial durante o período do Estado Novo. Seguindo o raciocínio
de Smith, “o negro de todo o Brasil” seria uma categoria não somente unificada,
como também demarcada pela alteridade absoluta – um Outro passível de ser
descoberto e catalogado pelo olhar do antropólogo, do historiador, do artista.
A proposição de que “os brasileiros modernos têm buscado entender o negro
e sua relação consigo mesmos” tropeça na falha lógica de pressupor que os tais
brasileiros modernos não fossem negros, nem partilhassem de qualquer intimidade com a cultura afro-brasileira.
Presumir que o “mistério do negro” pudesse ser revelado por Portinari
ou Mário de Andrade ou Gilberto Freyre, entre outros referidos por Smith, era
contingente no aceite de três premissas falsas: 1) que tal mistério existisse como
entidade, 2) que ele estivesse perdido e, por conseguinte, precisasse ser resgatado, 3) que essa tarefa competisse a agentes intelectuais que não se viam como
negros. A suposta remição da negritude atribuída por Smith a Portinari – assim
como a constatação primeira de sua necessidade, que ele situa na Semana de
Arte Moderna – perfaz uma expedição ao passado mítico, habitado por forças
telúricas e identidades estáticas. Trata-se de uma espécie de paleontologia social,
atendendo ao apelo, feito por Graça Aranha em Estética da vida (1921), aos
“elementos bárbaros da nossa formação espiritual e da nossa nacionalidade”,
o qual Abílio Guerra (2010, p.110) definiu como sendo o primeiro programa
estético primitivista brasileiro.
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Disputas críticas em torno da Semana
O essencialismo de Smith guarda semelhança epistemológica com outro
texto que se constitui no marco fundamental para a reinvenção historiográfica
da Semana de 1922. Trata-se de Retrato da arte moderna do Brasil, de Lourival
Gomes Machado, volume que, não por acaso, traz como frontispício A negra
de Tarsila. O livro foi escrito em 1945 e premiado naquele ano pela seção paulista da Associação Brasileira de Escritores; porém, só saiu do prelo em 1947,
publicado pelo Departamento de Cultura de São Paulo. Apesar do relativo desconhecimento em que caiu na posteridade, esse pequeno ensaio foi responsável
por nada menos do que resgatar a Semana do limbo em que Mário de Andrade
a lançara em 1942, redefinindo radicalmente o modo como o movimento modernista seria compreendido dali para frente. Seu autor contava 28 anos quando
o escreveu e pertencia à primeira geração de egressos da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde defendeu sua
tese de doutorado em ciência política em 1942 e foi assistente de Paul Arbousse-Bastide. Juntamente com Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de
Mello e Souza, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival foi um dos fundadores da
revista Clima, na qual atuou como diretor responsável e editor encarregado da
seção de artes plásticas (Avelar, 2015).
Na primeira parte do livro, Retrato da arte moderna do Brasil estabelece
a narrativa heróica da Semana tal qual a conhecemos. A começar pela ideia dos
antecedentes, que se tornou o foco de trabalhos posteriores como a História do
modernismo brasileiro. I - Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958), de
Mário da Silva Brito. O texto de Lourival exalta o “papel histórico” de Anita
Malfatti como precursora da Semana e “proto-mártir da nossa renovação plástica” e relega a um segundo plano as exposições de Lasar Segall em 1913. Em
seguida, estabelece a visão da Semana como ruptura radical com tudo que a
antecedeu. Lançando mão de uma série de metáforas médicas – entre outras, a
de um “corte de navalha [em] tecidos necrosados” – o autor contrapõe o que
chama de “forças de renovação” de São Paulo ao “caráter amortecedor e esperto
da capital marítima e cosmopolita” (Gomes Machado, 1947, p.34-7).
O texto reforça que a tarefa dos modernistas teria sido de “descobrir o
Brasil” – divisa oswaldiana em origem, embora o autor não faça a atribuição a
Oswald de Andrade, figura aliás quase ausente da narrativa. Sem citar nomes,
Lourival designou o que ele chama de “traidores” do movimento e os dividiu
em dois grupos: os da piada inconsequente – uma referência oblíqua a Oswald
e à Antropofagia – e “os cultores de um idiotíssimo nacionalismo” – ou seja,
Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e os demais verde-amarelistas. Em contraposição a esses traidores, o texto ergue Tarsila à condição de
“heroína”, iniciadora da renovação pictórica com as obras que realizou entre A
negra (1923) e Abaporu (1928). Defende também Di Cavalcanti como expressão autêntica, comparando-o ao barroco mineiro por sua “identidade de essên-
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cia” com a terra. Estabelecida a prioridade e a hierarquia dos pretendentes, o
autor readmite Segall ao panteão da chamada “família plástica brasileira” como
uma acquisição a posteriori (Gomes Machado, 1947, p.40-9).
A narrativa forjada por Lourival Gomes Machado soa bastante familiar
para quem estudou a partir da historiografia produzida desde a década de 1970.
Ela é base e origem do paradigma da Semana disponível em qualquer enciclopédia. Sua ampla disseminação mascara que a concatenação dada aos fatos é não
somente arbitrária, como também rompia com o senso comum existente. Para
compreender o quanto ela foi uma releitura radical, é preciso contrapô-la aos
relatos que vieram antes. O gatilho imediato para a escrita de Lourival foi um
ensaio publicado pelo crítico Ruben Navarra na Revista Acadêmica, em 1945,
repisando argumentos desenvolvidos antes em outro artigo intitulado “A revolução plástica brasileira”, esse publicado no jornal carioca Diário de Notícias, em
abril de 1944. Lourival deixou claro os alvos contra os quais se lançava ao referir
não somente Navarra mas também um texto de José Lins do Rego, o prefácio
do livro Região e tradição, coletânea de ensaios antigos de Gilberto Freyre, publicada em 1941.
Os artigos de Navarra trazem uma discussão da pintura brasileira moderna
e suas relações com a Escola de Paris. O crítico contendia que o modernismo
brasileiro não era uma simples derivação do seu êmulo estrangeiro, mas antes
uma adaptação de seus princípios às condições e temáticas locais, constituindo
assim algo original. Era importante para seu argumento demonstrar que a modernização artística teria ocorrido no Brasil em paralelo à sua eclosão na Europa, e não de modo tardio. Com esse intuito, Navarra (1944, p.1, 5) situou a
“primeira semente de inconformismo” nas exposiçoes realizadas no Brasil pelo
jovem Segall: “Em 1913, celebrou-se o ‘vernissage’ oficial da revolução plástica
no Brasil, embora ninguém o suspeitasse”. Em seguida, o texto elenca Anita
Malfatti e Tarsila do Amaral como continuadoras do processo, culminando nas
obras de Di Cavalcanti, Guignard e Portinari.
Outro aspecto importante do texto de Navarra é de rebaixar a Semana:
A semana era uma formalidade historicamente dispensável. Pois o máximo
que acrescentou à marcha dos fatos foi criar um ambiente de publicidade
ruidosa e jovial em torno dos iconoclastas. Não foi essa famosa “Semana”
o que determinou ou monopolizou a natural evolução antiacadêmica. Ela
foi apenas uma celebração, uma festa e nada mais, como aliás está bem claro
no recente depoimento de Mário de Andrade. O movimento já estava em
curso antes da semana, como vimos, e prosseguiria da mesma maneira, sem
a “Semana”. Esta fez apenas atribuir à cidade de São Paulo, por um direito
formal, a honra de ter lançado o pregão do movimento. (ibidem, p.5)
Além de sustentar que a modernização artística teve início em 1913, o
crítico argumentou ainda que o movimento “já despontava noutros pontos do
Brasil” e que a “reação moderna estava no ar, era um fenômeno geral” (ibidem,
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p.5). Em defesa dessa tese, ele propôs que o agito em torno de Gilberto Freyre,
no Recife, teria sido tão ou mais importante quanto o modernismo paulista.
Essa afirmação seguia os enunciados do próprio. Na introdução a Região e tradição, escrita em 1940, Freyre descartou a Semana como “modernismo ‘oficial’”
e alegou que o movimento de renovação do Nordeste, entre 1923 e 1930, não
devia nada aos modernistas de São Paulo e do Rio, tendo se afirmado “com
suas próprias forças”. No prefácio ao livro, Lins do Rego reforçou essa posição,
tachando a Semana de “movimento de comédia” e “gritaria dos rapazes do Sul”
(Freyre, 1941, p.12, 25-6, 35).
Ruben Navarra não estava sozinho em sua avaliação da relativa desimportância da Semana. Outros críticos que, antes dele, haviam ensaiado formular
um roteiro histórico do modernismo divergem da narrativa depois fundada por
Lourival Gomes Machado. Luís Martins (1937, p.25-8), em sua conferência A
pintura moderna no Brasil, pronunciada em 1936 e publicada no ano seguinte,
defendeu que a pintura moderna começava com Tarsila e sua “descoberta do
Brasil”. Mesmo concordando ambos a respeito da centralidade de Tarsila – com
quem Luís Martins estava recém-casado –, o argumento dele diverge em dois
pontos fundamentais. Primeiramente, Martins (1937, p.13, 47-9) considerava
que o modernismo no Brasil, definido por ele como “país de reflexos”, iniciou-se na troca com as vanguardas francesas, sem qualquer raiz ou antecedente em
solo nacional. Em segundo lugar, ele não deu importância alguma à Semana,
evento que sequer é mencionado nas cinquenta e poucas páginas da palestra
impressa. Para o jovem crítico, então com 29 anos, e que contava, portanto, 15
quando a Semana se realizou, 1922 eram águas passadas.
Vale ressaltar que Luís Martins, Lourival Gomes Machado e Ruben Navarra, assim como Robert C. Smith, eram jovens no momento em que lançaram
suas teses – todos abaixo dos 30 anos de idade. Era diferente a visão apresentada por críticos da geração anterior, os que testemunharam em primeira mão
o surgimento do movimento modernista, como Tristão de Athayde ou Nestor
Victor. Para eles, o modernismo não se configurava como ruptura ou corte, mas
como a continuidade de debates que vinham se processando desde muito antes.
Pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, Tristão de Athayde era então considerado uma das vozes mais identificadas com o modernismo literário, chegando a
ser rotulado por João Alphonsus, em seu depoimento para Testamento de uma
geração, como “o crítico do movimento” (Cavalheiro, 1944, p.144; Rodrigues,
2012). Embora seja mais lembrado hoje por seus embates com certos agentes
modernistas, especialmente após sua conversão ao catolicismo em 1928, ele ainda foi aclamado por Alcântara Machado (1929, p.4) como “o crítico do Brasil
novo” em plena Revista de Antropofagia.
Foi com o intuito de se reapropriar desse legado que o autor publicou o
livro Contribuição à história do modernismo. I volume, o pré-modernismo (1939).
À época, Alceu Amoroso Lima era membro da Academia Brasileira de Letras,
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diretor da Ação Católica Brasileira, reitor da Universidade do Distrito Federal e
tinha trânsito privilegiado no gabinete do ministro Capanema, de quem era um
dos principais interlocutores. Não era, portanto, por motivo carreirista que fez
enfeixar em volume uma série de resenhas e ensaios escritos entre 1919 e 1920,
publicados anteriormente em jornal, versando sobre autores como Afrânio Peixoto, Guilherme de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, Luiz Edmundo, Menotti del Picchia, Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Ronald de Carvalho, entre
outros. Os motivos citados pelo próprio para justificar a empreitada foram: “Um
pouco de sentimentalismo. Um pouco de vaidade. Um pouco de amor às nossas
letras” (Athayde, 1939, prefácio ).
Qualquer que fossem suas motivações pessoais, o aparecimento do livro
teve repercussão dupla. De cara, firmou Tristão de Athayde como o primeiro
crítico de peso a compendiar a história do modernismo brasileiro em livro. O
subtítulo, com a indicação “primeiro volume”, anunciava a intenção de dar continuidade ao projeto, resultado que nunca se concretizou, mas que servia como
aviso para outros que porventura se propusessem a tarefa. Antes que algum
aventureiro lançasse mão dela – e a palestra de Luís Martins estava recém-publicada – Alceu punha na cabeça de Tristão de Athayde a coroa de árbitro do modernismo. Em segundo lugar, o subtítulo firmou o conceito de pré-modernismo,
relegando por um golpe de caneta toda uma produção riquíssima ao limbo do
que veio antes daquilo que realmente importa. Ao mesmo tempo que incluía
o período imediatamente anterior a 1922 na história do modernismo, o livro
desenhava uma linha divisória que foi sendo acentuada ao longo dos anos.
A rigor, o termo pré-modernismo fora inaugurado por Tristão de Athayde
no ano anterior, em três instalações da sua coluna “Vida Literária”, publicadas
em dezembro de 1938 e intituladas respectivamente “O pré-modernismo”, “O
modernismo” e “Post-modernismo”. O artigo inaugural é dedicado a examinar
o primeiro de três períodos estabelecidos pelo crítico para estruturar a história
literária recente: “o marasmo fim-de-século até 1918, a aventura modernista de
1918 a 1930; e a perplexidade atual” (Athayde, 4.12.1938, p.6). Ressalte-se que
o argumento situa o início do modernismo literário no Brasil em 1918, o que por
si só demonstra a falta de adesão de seu autor ao mito da Semana. No segundo
artigo, dedicado a separar as correntes que compuseram o movimento, Athayde
deixa clara sua visão de que “não se viu nascer o modernismo como os companheiros de Vasco da Gama viram surgir o monstro marinho ou como Afrodite
surgiu das ondas”. “O modernismo não foi qualquer coisa que surgiu integral,
monstruoso para uns ou luminoso para outros”, escreveu; ao contrário, foi se
desenvolvendo progressivamente pela mudança de gerações e de estado de espírito (Athayde, 11.12.1938, p.6). Na última parte da série, o crítico asseverou:
“O modernismo morreu. Ou antes, foi ultrapassado”. Na sua avaliação, o movimento teria se esgotado em 1930, transformado em “um academismo às avessas”
pelo excesso de programas e a falta de obras (Athayde, 18.12.1938, p.6).
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No mesmo ano em que Tristão de Athayde esquematizou essa divisão
tripartida, foi publicado o volume Os de hoje: Figuras do movimento modernista
brasileiro (1938), reunindo ensaios do crítico Nestor Victor, falecido em 1932
– a maioria aparecida entre 1926 e 1930, no jornal O Globo. Por ser póstumo,
o título não reflete necessariamente uma intenção programática de historiar o
modernismo. Todavia, os textos revelam uma visão aguda e atualizada do vanguardismo, expondo conceitos e elencando autores estrangeiros com uma familiaridade pouco comum para os padrões da época. Entre os autores analisados
no livro estão nomes corriqueiros dos compêndios de modernismo brasileiro,
dentre os quais Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Menotti del Picchia,
Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, mas também nomes pertencentes a
outras correntes e outros circuitos: Adelino Magalhães, Andrade Muricy, Cecília
Meireles, Gilka Machado, Jorge de Lima, o próprio Tristão de Athayde. O olhar
de Nestor Victor para o modernismo é ecumênico e não se detém absolutamente sobre a Semana de 1922, que aparece nas páginas de Os de hoje como uma
passagem menor na trajetória de Graça Aranha (Victor, 1938, p.26).
Ambos Nestor Victor e Tristão de Athayde enxergavam o movimento modernista como uma calda misturada de obras e artistas, proposições e reações,
agrupamentos e relações, que datavam do início do século XX e atingiram um
ponto de aglutinação em torno da Primeira Guerra Mundial. Nessa visão, bem
mais condizente com a complexidade dos fatos históricos, não havia espaço para
o protagonismo de um único gesto fundador; e, mesmo que houvesse, é duvidoso que o episódio escolhido fosse a Semana de 1922. Ambos os críticos também creditavam a modernização cultural a iniciativas e agentes espalhados pelo
Brasil e, muito logicamente, atribuíam importância ao Rio de Janeiro, como
capital do país. São Paulo, para eles, era um polo de irradiação entre outros, o
qual foi capaz de espalhar sua influência mais do que outros por causa de suas
relações privilegiadas com a capital. Athayde explicitou a questão geográfica:
Esparso e simultâneo no Rio e em São Paulo, pouco depois em Minas e no
Rio Grande do Sul. Foi um movimento principalmente do Centro. Teve
como acontecimentos marcantes a “Semana de Arte Moderna”, de S. Paulo, em 1921, [sic] e a conferência de Graça Aranha sobre o “Espírito Moderno”, na Academia, em 1924. Foram suas figuras iniciais – sem que desta
enumeração se conclua por qualquer hierarquia, exclusão ou precedência
que não entendo aqui discutir – Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário
de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara
Machado. (Athayde, 11.12.1938, p.6)
O detalhe da data errada, lembrada como 1921, dá uma ideia do relativo
esquecimento em que a Semana havia mergulhado. Não que o crítico tivesse
qualquer implicância com ela. O artigo exalta o “extraordinário valor simbólico” de ambos os acontecimentos e conclui que o modernismo foi “útil e sadio”
(ibidem, p.6). Athayde não queria abater a Semana – até porque já estava pra-
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ticamente morta, aguardando apenas o tiro de misericórdia que seria disparado
por Mário de Andrade em 1942.
De volta para o moderno
Ao final da década de 1930, o consenso era de que a Semana dera em
nada, ou que tivera importância apenas relativa. Esse sentimento não deixava
de ter relação com a derrota de São Paulo em 1932. Nomes importantes do
modernismo paulista haviam se engajado na trincheira constitucionalista – alguns, literalmente, como Guilherme de Almeida; outros nos bastidores, como
Mário de Andrade (Weinstein, 2015, p.148-9). Com a ascensão de Ademar de
Barros ao cargo de interventor, em 1938, e o confisco do jornal O Estado de S.
Paulo, em 1940, as pretensões das elites paulistas à autonomia regional foram
efetivamente esmagadas pelo governo federal. A exoneração de Mário do Departamento de Cultura, em maio de 1938, acompanhou a queda política de seu
protetor Armando de Sales Oliveira, culminando na prisão e no exílio desse. A
permanência de Mário no Rio, entre 1938 e 1941, à margem do poder e à beira
da depressão, é emblemática da fortuna minguante da Semana (Calil; Penteado,
2015; Jardim, 2005).
Esse era o pano de fundo político e intelectual para a entrada em cena de
Lourival Gomes Machado. Formados pela USP – outro produto da gestão de
Armando de Sales Oliveira – os jovens do grupo Clima detinham uma aversão
compreensível à ditadura do Estado Novo, apesar do tom ostensivamente apolítico da revista. Compartilhavam ainda laços de família, conforme Heloisa Pontes
(1998, cap.3) os apelidou, com o modernismo de 1922 e também de lealdade
à causa regionalista derrotada, como a maioria dos paulistas que contava seus
14 para 15 anos em 1932. Isso explica o ufanismo com que Lourival postulou,
em Retrato da arte moderna do Brasil, o “caráter geográfico particularizado
[do] movimento de renovação”. Para o diretor da revista Clima, “[s]ó em São
Paulo poderia ter nascido uma revolução estética de tal porte”. Citando Mário
de Andrade, o texto elenca o provincianismo, o sangue imigrante e o espírito do
burguês novo rico como fatores sociológicos que condicionaram “as misteriosas
forças de renovação” (Gomes Machado, 1947, p.37-8, 48-50).
Ao mesmo tempo que se reconhece o pioneirismo da narrativa erigida por
Lourival Gomes Machado, é importante compreender que ela não surgiu do
nada. O autor também bebeu em suas fontes, duas em particular. A primeira é
Mário de Andrade, referido sempre com admiração em Retrato da arte moderna do Brasil. O livro foi escrito nos meses que se seguiram à morte do poeta;
é natural, portanto, que guardasse certa postura de reverência, reforçada pelos
elos que ligaram Mário aos jovens do grupo Clima no final da vida. Contudo,
o fantasma do finado crítico ocupa ali um papel que não se resume à simples
admiração. O livro opera efetivamente como um desagravo à memória de Mário
e um ato de apropriação do seu legado. Ruben Navarra evocara a palestra “O
movimento modernista” para autorizar seu próprio desdém pela Semana. Lou-
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rival, em resposta, qualificou-a de “admirável trabalho sobre o modernismo” e
recriminou o modo como Mário foi “tão jeitosamente citado pelos seus contraditores” (Gomes Machado, 1947, p.37, 90-3). Ao tomar as dores do finado
papa do modernismo, Lourival se posicionava como seu herdeiro e sucessor.
A segunda fonte em que Lourival bebeu foram as ideias do sociólogo
francês Roger Bastide. No ano anterior à escrita do livro, o jovem intelectual se
envolveu num diálogo sobre barroco e surrealismo com o colega mais velho na
USP, o que demonstra a influência de um sobre o outro. Pouco após sua chegada ao Brasil em 1938, Bastide se engajou nas discussões sobre arte colonial e, de
1944 a 1945, conforme demonstrou Fernanda Arêas Peixoto (2011, p.383-5),
ele dedicava atenção a explorar as relações entre o barroco e o candomblé. Ao
lado de outros pensadores estrangeiros, notadamente Hanna Levy e Robert C.
Smith – e juntos a Lúcio Costa e Rodrigo Melo Franco, influentes agentes do
Sphan – o sociólogo contribuiu para constituir o paradigma do barroco colonial
como expressão mais autêntica da cultura brasileira. No debate com Lourival,
em 1944, ele chegou mesmo a propor que o barroco seria uma “antecipação do
surrealismo” e aventou o “pequeno paradoxo” de que “a estética ultramoderna
permitisse ao Brasil retomar raízes em seu antigo tropicalismo” (Peixoto, 2011,
p.384; Gomes Júnior, 1998). Registre-se a coincidência metodológica com o
gesto primitivista de Smith: ambos foram buscar num passado mítico as origens
de uma identidade brasileira moderna.
Lourival Gomes Machado se formou em meio a essas discussões, absorvendo em primeira mão seu impacto, e essa influência se evidencia na estrutura
de Retrato da Arte Moderna do Brasil. As demais seções do livro são dedicadas a
traçar paralelos entre a arte colonial e a arte moderna, justificando assim a tese de
que o modernismo seria uma retomada das raízes brasileiras, supostamente deturpadas no século XIX pelo academismo de origem francesa (Gomes Machado,
1947, p.39, 51). Em ambos os lados da disputa entre Ruben Navarra e Lourival
Gomes Machado, havia concordância com relação à redescoberta do barroco.
Em 1942, Navarra (1942, p.1-2) escreveu um artigo intitulado “Uma escola de
tradição brasileira”, em que destacou como os técnicos do Sphan, ao resgatarem
o passado colonial, estavam fundando uma inédita “consciência nacional”. A
ocasião foi a publicação do quinto número da Revista do Sphan, e o texto tece
um elogio à tradição como base para organizar a cultura artística brasileira, com
destaque especial para as pesquisas de Lúcio Costa sobre a arquitetura jesuítica.
Entre 1940 e 1945, formou-se o consenso de que o modernismo, ao
contrário de ser uma adaptação das vanguardas europeias, brotava do passado
brasileiro profundo e mantinha com ele laços de continuidade. Continuidade
e ao mesmo tempo ruptura, num paradoxo ainda hoje pouco questionado. Ao
decretar que a Semana teria sido o “corte de navalha” a remover cirurgicamente
a cultura de importação e revelar o caráter nacional, Lourival atualizou e radicalizou a tese do modernismo como redescoberta da alma brasileira – mote que
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moveu Mário de Andrade desde suas primeiras pesquisas sobre arte colonial
nos anos 1919 a 1920. Nessa época, ainda sob a influência das ideias de Ricardo Severo, Mário pregava o tradicionalismo e desdenhava do futurismo e das
“formas exóticas”, propondo um “movimento nacionalista da arte” (Andrade,
1993, p.83-7, 91-6). Embora tenha renegado posteriormente essa conferência,
atravessam sua obra as concepções paradoxais de um modernismo fundado na
tradição e de uma identidade brasileira surgida antes da existência da nação.
Há uma sutil diferença de grau, no entanto, entre as visões de Mário e
Lourival. O discípulo radicalizou a posição regionalista ao explicitar, com todas
as letras, a primazia e excepcionalidade do caso paulista. Mário, famosamente,
repreendera Sérgio Milliet por escrever, em 1926, na revista Terra Roxa, que só
se podia ser brasileiro sendo paulista (Silva, 2013, p.9-10). Porém, isso foi antes
que as elites do estado se decidissem pelo confronto militar com o poder central. A partir de 1928 e com maior intensidade nos anos seguintes, ele adotou
uma retórica de antipatia extrema ao Rio de Janeiro, postura discursiva captada
e amplificada por Lourival. Retrato da arte moderna do Brasil deu continuidade
à disputa pela supremacia paulista e a elevou a um novo patamar de afirmação
explícita da hegemonia cultural.
O sentido político dessa postura, em 1945, era claro. Retrato da arte moderna do Brasil é inequívoco em sua condenação ao Estado Novo. Os integrantes do grupo Clima se posicionavam contra a ditadura, então de saída, e igualmente contra sua oposição comunista que, após anos de clandestinidade e luta,
se alinhou com Vargas na campanha do Queremismo. Para os que defendiam a
esquerda democrática durante a emaranhada Constituinte de 1946, o caminho
do meio era minado. Quando o livro saiu finalmente, em 1947, Lourival teve o
cuidado de inserir uma advertência datando sua escrita de dezembro de 1945. O
momento político já era outro, e as forças do socialismo democrático buscavam
se unir nacionalmente, desta vez na fundação do Partido Socialista Brasileiro
(Karepovs, 2017, p.95-123).
Nos anos seguintes, surgiram as grandes instituições do cenário artístico
de São Paulo – o Masp, a Bienal, o Museu de Arte Moderna. Em 1949, Lourival
Gomes Machado passou a dirigir o MAM e, em 1951, foi nomeado diretor-artístico da primeira Bienal. Com a consolidação institucional dessa geração,
já distante da vivência da Semana, naturalizou-se a ideia de que 1922 fora uma
revolução, e não parte de um processo mais amplo. Mais uma revolução... num
país que as ama em nome, mas foge das verdadeiras como o diabo da cruz. Com
isso, apagou-se as contribuições dos outros modernismos ocorridos em paralelo
ao movimento de São Paulo. Apagou-se também, o que é talvez mais grave, a
possibilidade de reconhecer a modernidade daquilo que veio antes de 1922,
gerando um ponto cego na historiografia cultural.
É importante reconhecer o quanto tudo isso é nocivo e nos impede de
atentar para a complexidade dos fatos. O problema não é a Semana. O que
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aconteceu ou deixou de acontecer em fevereiro de 1922 está aí para ser estudado, pesquisado, rediscutido e até mesmo comemorado. O problema está no que
ocorreu de 1945 para cá, na constituição de um paradigma que transformou a
Semana em mito intocável. No Brasil, como se sabe, as pessoas frequentemente
elegem o mito e descartam a crítica ponderada como “mimimi”. Vou concluir
citando o escritor e político paraense Abguar Bastos, um dos entrevistados para
o volume Testamento de uma geração. Seu depoimento consistiu em argumentar
lucidamente que o movimento modernista não se limitou a São Paulo e Rio de
Janeiro. Na contramão dos que insistiam, e ainda insistem, em ver a Semana
como momento de eclosão, ele escreveu: “O modernismo não é um ato teatral.
É um processo. Pode tomar variados nomes e assumir variadas formas. Mas é
um processo” (Cavalheiro, 1944, p.26). Estamos ainda em processo de aceitar
essa verdade tão evidente.
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– A consagração da Semana de Arte Moderna pela história cultural é fenômeno que data da década de 1940. O artigo analisa a reinvenção discursiva da Semana
por meio dos escritos de Tristão de Athayde, Lourival Gomes Machado, Luís Martins,
Ruben Navarra, Robert C. Smith e Nestor Victor, entre outros críticos. Aponta-se a
correspondência epistemológica e metodológica entre dois mitos originários, gerados
nessa época e ainda vigentes: a tese de que o movimento modernista redescobriu o Brasil profundo, resgatando a negritude do apagamento, e a noção de que o modernismo
brasileiro seria uma retomada das raízes do período colonial.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
Semana de Arte Moderna, Modernismo, Historiografia, Regionalismo, Estado Novo.
ABSTRACT – The 1922 Modern Art Week in São Paulo was enshrined as the starting
point of Brazilian Modernism only in the 1940s. The article unfolds discussions on this
reinvention by examining the writings of Tristão de Athayde, Lourival Gomes Machado,
Luís Martins, Ruben Navarra, Robert C. Smith and Nestor Victor, among other critics.
It also considers a methodological and epistemological parallel between two widely
accepted origin myths generated at the time: the idea that the Modernist movement rediscovered a so-called ‘deep Brazil’, reclaiming blackness from its previous expunction,
and the notion that Modernism is a recovery of Brazil’s colonial roots.
KEYWORDS:
Modern Art Week, Modernism, Historiography, Regionalism, Estado Novo
(Brazil).
Rafael Cardoso é Ph.D em História da Arte pelo Courtauld Institute of Art/Universidade de Londres. Membro da AICA-Deutschland e do Verband Deutscher Kunsthistoriker (CIHA). Atua como membro colaborador do Programa de Pós-Graduação em
História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e como pesquisador
associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin (Alemanha).
@ –
[email protected] / https://orcid.org/0000-0002-5055-7398.
Recebido em 18.10.2021 e aceito em 21.12.2021.
I
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História
da Arte, Rio de Janeiro, Brasil.
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