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A críticA de Frege Ao
ideAlismo em Der GeDanke
mario Ariel gonzáles Porta*
RESUmo – Para Frege, o erro de base
do psicologismo é a sua concepção de
sujeito, que se concentra no princípio de
que meus únicos objetos são conteúdos
imanentes da consciência. Entretanto,
essa tese não é meramente falsa, mas
também refutável. A refutação da mesma
aparece, não obstante, tardiamente em
Der Gedanke. É esse o sentido último
da crítica do idealismo oferecida neste
texto. Ela é um passo necessário e imprescindível para assegurar a possibilidade de que captemos pensamentos,
possibilidade com a qual se ocupa boa
parte do artigo de 1918.
PAlAVRAS-ChAVE – Frege. Psicologismo. Crítica do idealismo.
AbSTRACT – According to Frege, the
basic mistake of psychologism is its
conception of the subject, which is
centered in the principle that only
immanent contents of consciousness
can be my objects. Now, this thesis is
not only false, but also refutable. The
refutation itself appears later in Der
Gedanke. This is the last sense of the
critique of idealism brought about in that
text. It is a necessary and unavoidable
step to assure the possibility that we
grasp thoughts, possibility that Frege
deals with in great part of his 1918
article.
KEywoRdS – Frege. Psychologism.
Critique of idealism.
1. Introdução
Ainda que a crítica ao psicologismo seja constante no pensamento
fregeano, ela não constitui uma unidade sistemática, senão um conjunto
de momentos distinguíveis e relativamente independentes uns dos
outros. Contudo, a partir de 1893, com o prefácio às Grundgeseteze der
Arithmetik, um desses momentos adquire papel predominante: a crítica
ao idealismo. Com ela, Frege intenta fixar o suposto básico sobre o qual
o psicologismo repousa e identifica esse em uma concepção errônea de
subjetividade, segundo a qual, o sujeito só tem acesso direto e imediato
a suas próprias representações. Em 1893, a crítica desta tese se efetua
explicitando as consequências da mesma e considerando-as absurdas
sobre a base do pressuposto de que ciência e comunicação são possíveis.
* Professor de Filosofia na PUC-SP.
VERITAS
Porto Alegre
v. 54
n. 2
maio/ago. 2009
p. 130-154
No entanto, neste texto, Frege não apresenta nenhum argumento dirigido
diretamente contra a tese de que meus únicos objetos são minhas
representações. Nesse ponto, opera-se uma mudança decisiva em 1918,
ano de publicação do ensaio Der Gedanke, pois agora Frege se propõe
apresentar um argumento que demonstre que a tese idealista é, em si,
falsa.
Com base no fato de que, segundo Frege, não podemos fundamentar a
lógica, questiona-se se, para ele, o psicologismo é propriamente refutável.
Certamente, muitas das críticas de Frege ao psicologismo pressupõem
a existência de uma verdade absoluta e a nossa capacidade de captála. Contudo, caso se entenda a refutação do idealismo em Der Gedanke
como o que realmente é, com efeito, Frege considera que o psicologismo
é refutável, pois se baseia em uma teoria falsa da subjetividade, o que
pode ser demonstrado por um argumento.1
Tende-se a ver em Der Gedanke uma obra, em certo sentido, atípica,
considerando-se que ela contém uma certa virada ou um giro particular,
operando uma incursão na epistemologia. Entretanto, a novidade que
oferece Der Gedanke não consiste em que Frege estenda a sua reflexão
a uma nova esfera de problemas. A doutrina exposta nesse ensaio se
encontra em estrita continuidade com o desenvolvimento anterior.
Não estamos frente a um elemento absolutamente novo, senão frente
ao prolongamento e à complementação da luta antipsicologista. As
considerações “epistemológicas” de Der Gedanke têm como objetivo
primário provar, contra o psicologismo, que é possível que captemos
pensamentos.
Em Der Gedanke, pode-se diferenciar duas linhas principais de
desenvolvimento, as quais por momentos se entrecruzam no percurso
do texto. Por um lado, trata-se de estabelecer que há pensamentos
e o que eles são e, por outro, trata-se de provar a possibilidade de
princípio de nossa captação dos mesmos. A estratégia geral adotada
para esse último propósito será a de eliminar dois obstáculos nesse
sentido: um de matriz idealista e o outro de matriz realista-empirista.
Nas linhas que se seguem, nos concentramos no argumento antiidealista, efetuando uma análise do mesmo que, se por um lado intenta
reconstruí-lo em suas linhas fundamentais, por outro dá especial ênfase
ao contexto do mesmo, isto é, tem por objetivo compreendê-lo como
momento de um percurso que o transcende. Para efeito de completude
da exposição, não obstante, não deixaremos de considerar brevemente
o outro obstáculo, de matriz realista-empirista, já mencionado.
Nossa exposição representa basicamente um comentário ao texto
1
outra via de refutação do psicologismo é oferecida em l (1897), 45.
131
fregeano que segue a ordem do mesmo e pretende acompanhá-lo
passo a passo.
2. Contexto do problema
Der Gedanke começa com um percurso que já está presente em várias
obras anteriores e que podemos sintetizar em três momentos:
1. o ponto de partida é a tese de que a lógica se ocupa com as leis
do ser verdadeiro (G, 30-31 (58-59)).
2. A questão passa então a concentrar-se no conceito de verdade.
do que aqui se trata é de estabelecer o que é originariamente
verdadeiro ou falso. diferentes candidatos são considerados
(imagens, representações, enunciados) e rechaçados por motivos
diversos. Finalmente, chega-se a pensamentos como os depositários
originários de verdade. Considera-se, então, em que consiste a
verdade como uma propriedade de pensamentos, sendo que, em
tal contexto, pensamentos são pela primeira vez, considerados
não-sensíveis (G, 31-34 (59-62)).
3. o terceiro passo será precisar o conceito de pensamento, estabelecendo a sua relação com a linguagem (G, 34-36 (62-63)).
A análise se detém no estabelecimento do vínculo entre o
pensamento e o enunciado asseverativo, e isso mostrando que
não há coincidência plena entre ambos, tanto porque a linguagem
contém “mais” quanto porque a linguagem contém “menos” que
o pensamento (G, 36-40 (63-66)). Entre os casos do segundo tipo,
consideram-se os indexicalia: o tempo presente e as expressões
“aqui” e “eu”. É a partir da análise dos diferentes problemas que
apresenta esse último termo que se introduz uma variação no tema
que leva a incluir na análise os nomes próprios (G, 39 (65-66)).
Enunciados que contêm o pronome pessoal “eu” e enunciados
que contêm nomes próprios podem ter diferentes sentidos para
diferentes indivíduos. No caso de um enunciado que contêm o
pronome “eu”, enquanto cada um é dado a si mesmo de uma
forma originária, eles expressam um pensamento que só pode
ser captado por seu titular. Agora, imaginemos a situação na qual
alguém quer comunicar algo sobre si mesmo. Nesse caso, o termo
“eu” tem de ter um sentido que seja captável por outros (G, 39-40
(66-67)).
3. Colocação do problema
É no contexto das preocupações indicadas que, de uma forma em
princípio abrupta, Frege interrompe o desenvolvimento descrito e introduz
132
uma nova questão. Contudo, assim Frege nos diz, surge uma dificuldade:
é o mesmo pensamento o que é primeiramente enunciado por aquele
indivíduo e posteriormente por este? dito de outra forma: podem dois
indivíduos captar o mesmo pensamento (G, 40 (66))?
Qual é a relação desta pergunta com o que antecede? Através do
percurso anterior, e no marco da distinção entre captar pensamentos
idênticos ou diferentes, fez-se uso em várias ocasiões da idéia de que
dois indivíduos captem o mesmo pensamento. Contudo, tal idéia foi
simplesmente pressuposta e não reflexivamente elaborada. É esse
pressuposto o que tem de ser tematizado agora.
A necessidade de problematização se evidencia pelo próprio
desenvolvimento do parágrafo anterior, onde, se por um lado simplesmente
se supunha que dois indivíduos podiam captar o mesmo pensamento,
por outro, analisavam-se situações que poderiam tornar isso duvidoso,
tais como o fato de enunciados que recebessem diferentes sentidos para
diferentes indivíduos e, sobretudo, o fato de enunciados que expressavam
pensamentos que só podiam ser captados por seu titular (G, 39 (66)).
Nesse contexto, não é tão óbvio que dois indivíduos sejam capazes de
captar o mesmo pensamento.
observemos já aqui que o problema do acesso a pensamentos, e
pelas razões de contexto que indicamos, dá-se, em princípio, do ponto de
vista intersubjetivo, como possibilidade de acesso de vários indivíduos
ao mesmo pensamento. Frege poderia ter subdividido o problema em
dois e, de fato, em sua resposta observar-se-á uma diferenciação de dois
momentos. Teríamos então duas perguntas:
1. É possível, a princípio, captar pensamentos, ou seja, pode um
indivíduo captar pensamentos?
2. Podem dois indivíduos captar o mesmo pensamento?
A primeira pergunta é mais geral e a sua resposta positiva é condição
de possibilidade de uma resposta positiva à segunda. Para que dois
indivíduos captem o mesmo pensamento, é necessário que cada um deles
seja capaz de captar pensamentos.
mas, voltemos à nossa pergunta: é possível que dois indivíduos
captem o mesmo pensamento? Esta pergunta só será respondida no final
do ensaio e, portanto, é fundamental que a conservemos em mente. É
ela que está guiando todo o desenvolvimento.
4. Reformulação do problema
Uma vez dada a primeira formulação do problema, efetua-se em
seguida uma reformulação do mesmo.
o problema se coloca, provisoriamente, a partir do ponto de vista do
senso comum que aceita sem questionar a ideia de que somos capazes
133
de captar um mesmo objeto sensível. Se somos capazes de captar um
mesmo objeto sensível, então, em princípio, somos capazes de ter objetos
comuns. mas, se, em princípio, somos capazes de ter objetos comuns,
então, nada obsta ao fato de que sejamos capazes de captar o mesmo
pensamento (G, 40 (66)).
Entretanto, apresenta-se um inconveniente. Se dois indivíduos são
capazes de captar o mesmo objeto sensível, isso não garante em nada que
dois indivíduos possam captar o mesmo pensamento, e isso pela simples
razão de que pensamentos não são objetos sensíveis; pode muito bem
existir um impedimento específico no caso de pensamentos que torne
impossível a sua captação (G, 40 (66)).
Sobre a base da observação anterior, a pergunta então se transforma:
podemos captar o mesmo pensamento assim como podemos captar
o mesmo objeto sensível, ainda que pensamentos não sejam objetos
sensíveis? É importante não perder de vista esta dificuldade, pois, depois
de um longo percurso, voltaremos a ela.
5. O que são “representações” (Vorstellungen)?
Se o senso comum aceita objetos sensíveis, também aceita um mundo
interno (G, 40 (66)). Já que pensamentos não são objetos sensíveis,
coloca-se então a questão de se eles pertencem ao mundo interno, se são
representações. A pergunta sobre se podemos captar pensamentos se
entrecruza, a partir de agora, com a pergunta pelo que eles propriamente
são. Para respondê-la, temos de dar um passo atrás e determinar o que
são representações. Para cumprir essa tarefa, por sua vez, servimo-nos de
uma contraposição entre representação e objeto externo. Nela, fixa-se o
conceito de representação e são dadas quatro características definitórias
das mesmas (G, 40-42 (67-68)):
1. As coisas do mundo externo são percebidas, representações não;
elas não podem ser vistas, apalpadas, degustadas, cheiradas.
2. Representações são tidas. o “ter” implica que o tido é parte real da
consciência, está na consciência, é imanente a ela. Representações
são “conteúdos de consciência” (Bewusstseinsinhalte).
3. Por serem essencialmente conteúdos de consciência, representações
precisam de um “portador” (Träger); já as coisas externas, não.
4. Toda representação tem um único portador, ou seja, dois indivíduos
não podem ter a mesma representação.
6. É o pensamento uma representação?
Uma vez fixado o conceito de representação, estamos em condições
de retomar a pergunta que deixamos pendente: é o pensamento uma
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representação (G, 42 (68))? A resposta é obviamante negativa, e o que
importa é o argumento. Este consiste em derivar as consequências que
se seguiriam se pensamentos fossem representações e pôr em evidência
que as mesmas são absurdas. o ponto de partida implícito é aquilo
que de essencial sabemos até agora com respeito aos pensamentos, a
saber, que eles são os depositários originários da verdade. A pergunta
sobre se pensamentos são representações remete à pergunta sobre
o que aconteceria se verdade e falsidade fossem propriedades de
representações. Frege responde a esta pergunta considerando-a no limiar
de uma alternativa (G, 42-43 (68-69)):
a) Se um pensamento pode ser reconhecido como verdadeiro, tanto por
mim mesmo quanto por outros, então ele não é uma representação,
ou seja, ele não é o conteúdo de minha consciência, nem eu sou
seu portador. Eu e outro captamos o mesmo pensamento e a esse
mesmo pensamento atribuímos verdade.
b) Ao contrário, se pensamentos fossem representações, dados
dois sujeitos, cada um terá seu pensamento. Se for esse o caso,
então poderia resultar, supondo que a verdade é propriedade do
pensamento, que o pensamento de um tivesse uma propriedade
distinta do pensamento de outro, ou seja, que o pensamento de
um fosse verdadeiro e o do outro, falso. mais ainda: aquilo que é
verdadeiro ou falso não pode ser um conteúdo de minha consciência,
pois, se assim o fosse, verdadeiro e falso seriam propriedades
privadas; ou seja, se o pensamento fosse uma representação,
seria privado, teria propriedades privadas, e a verdade seria uma
dessas propriedades. Em tal sentido, o predicado “verdadeiro” se
comportaria como o predicado “vermelho”, quando este é usado,
não para designar uma propriedade dos objetos externos, mas uma
de minhas impressões sensíveis, ou seja, ele só seria aplicável na
esfera da minha consciência e seria duvidoso se na consciência de
outro haveria algo similar. Em tal situação, uma discussão sobre
a verdade resultaria absurda, tão absurda como seria que dois
indivíduos discutissem sobre a autenticidade de uma nota de cem
marcos enquanto cada um se refere à nota de cem marcos que tem
em seu bolso e utiliza a palavra autêntico em um sentido particular.
“Autêntico” se comportaria, neste caso, como “verdadeiro”.
Como cada um tem suas representações e como cada um atribui a
essas uma propriedade privada, não só não há um objeto comum como
nem sequer há um predicado “verdadeiro” comum. logo, não pode
haver contradição e, consequentemente, tampouco argumentação e
comunicação. Em tal caso, uma ciência que fosse comum a vários se
tornaria impossível. Cada um teria sua ciência, a qual se ocuparia com
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seus próprios conteúdos de consciência. Em resumo: a tese de que
pensamentos sejam representações acaba sendo descartada por uma
análise de suas consequências, que implicam impossibilidade de ciência
e de comunicação em geral (cf. GGA, XIX).
7. Conclusão provisória: deve-se aceitar um “terceiro reino”
(drittes Reich)
A conclusão a que se chega é que pensamentos não são nem coisas
do mundo externo nem representações. Por conseguinte, deve-se aceitar
um “terceiro reino”, que coincidirá com as representações por não
ser sensível e com os objetos físicos por não precisar de um portador
(G, 43 (69)).
8. A refutação do idealismo
Entretanto, a pergunta de base segue em pé (Podem dois indivíduos
captar o mesmo pensamento?) assim como o suposto (dois indivíduos
podem captar o mesmo objeto sensível). o próximo passo será agora
questionar esse suposto. Parece que se ouve uma estranha objeção, diznos Frege. havíamos suposto que o mesmo objeto que eu vejo pode ser
visto por outros. mas, o que aconteceria se tudo fosse meramente um
sonho (G, 44 (69))?
Qual é concretamente a dificuldade em que Frege está pensando?
À primeira vista, trata-se de uma dúvida cética sobre a existência do
mundo externo e sua eventual cognoscibilidade. Assim é indicado pela
conclusão provisória a que chega Frege, a saber, que seria duvidoso se
existem objetos externos (G, 44 (69)). Entretanto, a dúvida cética sobre
a existência e a cognoscibilidade do mundo exterior não é o problema de
base que está sendo levantado aqui por Frege senão unicamente uma de
suas derivações e consequências.
lembremos: Frege está abrindo o caminho para afirmar a possibilidade
de que dois indivíduos sejam capazes de captar o mesmo pensamento.
Esse é o objetivo último de todo o percurso que estamos fazendo. É com
relação ao mesmo que temos agora que entender o momento particular
em que nos encontramos. Nele apresenta-se, em última instância, uma
objeção de princípio à possibilidade de que dois indivíduos captem o
mesmo pensamento.
A objeção que Frege se faz admite diferentes formulações e, de fato,
Frege emprega diferentes formulações para expressar a mesma. mas,
dado que nessas formulações umas são mais precisas e pregnantes
que outras, concentremo-nos nessas. A objeção diz: só o que é minha
representação pode ser objeto direto e imediato de meu conhecimento.
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do que aqui se trata é de combater essa tese, ou seja, de mostrar que “é
falsa a proposição de que só pode ser objeto de minha consideração, de
meu pensamento, o que pertence ao conteúdo de minha consciência”
(G, 48 (72)). Se essa tese fosse verdadeira, se só as minhas representações
pudessem ser objeto de consideração, então todo o meu saber e conhecer
se limitaria à esfera de minhas representações, isto é, ao cenário de minha
consciência (G, 45 (70)).
Uma vez estabelecida, ainda que provisoriamente, a tese a ser
considerada (e que Frege se propõe combater), é necessário uma
observação sem a qual o próprio título de nossa exposição permaneceria
injustificado. Em 1918, a tese que estamos considerando não recebe uma
denominação específica: em 1893, não obstante, a mesma é rotulada
como “idealismo”. Que entende Frege por idealismo? Entre os críticos e,
em particular, entre aqueles de língua inglesa, tornou-se usual pretender
especificar de algum modo o idealismo que Frege combate qualificando
o mesmo, por vezes, como idealismo cético e, em muitos casos, como
idealismo subjetivo. É duvidoso se essas qualificações são esclarecedoras
e cumprem efetivamente com o que se propõem. Sobre a primeira nós nos
referiremos mais adiante. Agora, sobre a segunda, seja dito que é certo
que o idealismo que Frege combate não é nem o idealismo de hegel nem,
com ressalvas, o de Kant. mas, não por isso, por operar essa delimitação,
a expressão idealismo subjetivo evita todo equívoco, pois existem modos
e formas variadas do mesmo. A tese berkeleyana esse est percipi pode,
sem dúvida, ser entendida como idealismo subjetivo; não obstante,
certamente a tese “tudo é representação” não lhe é equivalente.
de fato, Frege nunca usa a expressão “idealismo subjetivo” para
referir-se à tese que combate. Quando, em outros textos, deseja usar
expressões mais precisas, denomina-a “idealismo epistemológico”
(l (1897), 41). Creio que a expressão “epistemológico” deve ser entendida
aqui como delimitando esse idealismo de toda variedade “ontológica”
do mesmo. dito de outra forma, o idealismo epistemológico nada diz
sobre a constituição última da realidade, senão que, sendo neutro nesse
ponto, limita-se a indicar algo a respeito de nosso conhecimento, a saber,
que o mesmo se limita a nossas representações. Essa interpretação
é plenamente coerente com o dado fundamental que possuímos para
precisar a noção fregeana de idealismo, a saber, o fato de que ele introduz
a mesma em sua polêmica com Erdmann e para qualificar a posição
deste. A tese de que nossos únicos objetos são nossas representações é
explícita em Erdmann, assim como é igualmente explícito que a mesma
se dirige a salvaguardar a lógica de toda intromissão metafísica e,
mais concretamente, a delimitá-la frente à dialética hegeliana e toda
filosofia especulativa. Coerente com tal objetivo, a tese de Erdmann
137
não se propõe dizer nada sobre a natureza do ser em-si, senão sobre
nosso conhecimento, sendo concebida como, de princípio, conciliável
com as mais diversas ontologias, por exemplo, com a negação ou
afirmação de um ser em-si, com o estabelecimento de uma relação entre
o mesmo e as nossas representações ou, inclusive, com um realismo
representacionalista que admite uma correspondência entre nossas
representações e uma realidade que as transcende. Explicitamente,
Erdmann deixa em aberto essas questões, que, por serem metafísicas,
são irresolúveis. A sua intenção é permanecer no campo do imanente
(Erdmann: Logik §3, §14 (84), §16).
É pelos motivos anteriores que, se o idealismo que Frege critica
admite alguma qualificação, é no sentido de entendê-lo como princípio
de imanência, ou seja, como um princípio absolutamente universal, que
diz algo a respeito da subjetividade e de sua capacidade de conhecer, a
saber, que meus únicos objetos possíveis, acessíveis de modo direto e
imediato, são minhas representações, ou seja, conteúdos imanentes de
minha consciência.
Entendido nesse sentido universal, é claro que uma consequência
primeira do princípio de imanência é a impossibilidade absoluta de
objetos comuns em geral. observe-se que é isso o que explicitamente está
em primeiro plano no texto de Frege. Este escreve: que se seguiria dessa
afirmação, se ela fosse verdadeira? E responde: com ela se eliminaria
toda base para a assunção de que algo pode ser objeto para outro assim
como para mim (G, 44 (70)).
Que esse obstáculo à existência de objetos comuns e à consequente
necessidade de remover o mesmo tem em vista pensamentos, no
contexto que nos ocupa, isso já foi dito. Se o princípio de imanência fosse
verdadeiro, seria impossível que dois indivíduos captassem o mesmo
pensamento. digamos agora que, como é óbvio, o princípio de imanência,
por ameaçar a nossa possibilidade de acesso a objetos comuns, ameaça
também a possibilidade de acesso de diferentes indivíduos a um objeto
externo.
Insistamos nesse ponto, pois tende-se a entender Frege, nessas
passagens, a partir de descartes. As comparações com descartes
não contribuem para entender melhor Frege, nem concretamente no
que diz respeito ao seu problema, nem no que diz respeito à sua
solução. o problema do mundo externo entra como um aspecto parcial,
derivado e subordinado, de uma problemática que o engloba. Se o
princípio de imanência fosse verdadeiro, se só tivéssemos acesso às
nossas representações, então tampouco teríamos acesso aos objetos
do mundo externo. Isto não implica que a tese que Frege combata
seja especificamente a dúvida cética com respeito à existência e à
138
cognoscibilidade do mundo externo, nem, portanto, que a tese que Frege
queira provar seja a existência e a cognoscibilidade do mundo externo.
devemos diferenciar o princípio de imanência de suas consequências.
A negação da existência de objetos externos ou da possibilidade de
conhecê-los é uma consequência do princípio de imanência, mas não é
o princípio de imanência.2
A precisão anterior nos conduz a outra. havíamos formulado a tese a
ser refutada como princípio de imanência e, seguindo a Frege, introduzido
a mesma como uma objeção à possibilidade de objetos comuns (G, 44
(69)). Todavia, em sentido estrito, há aqui uma imprecisão. o princípio
de imanência torna impossível, primeiramente e de modo essencial, o
acesso a qualquer objeto transcendente e, por isso, derivadamente e,
em segundo lugar, a objetos comuns em particular. devemos prestar
atenção a esse ponto, caso pretendamos acompanhar o texto fregeano
fielmente.
dissemos que a pergunta que orienta a exposição fregeana é se dois
indivíduos podem captar o mesmo pensamento. observamos que essa
pergunta representa já uma concretização de uma questão que a engloba
e que nela está pressuposta, a saber, a questão de se é possível captar
pensamentos. diferenciamos então explicitamente duas perguntas:
1. É, em princípio, possível captar pensamentos? Pode um indivíduo
considerado isoladamente captar pensamentos?
2. Podem dois indivíduos captar o mesmo pensamento?
A tese da imanência torna impossível uma resposta positiva a ambas
as perguntas, mas não de igual modo. Recordemos, a tese de imanência
diz: só posso ter como objetos os meus próprios conteúdos de consciência.
Assim entendida, ela nega toda possibilidade de acesso individual a
um objeto transcendente. Assim, se ela valesse, todo acesso de um
indivíduo a algo transcendente à sua consciência seria impossível e
disso se seguiria que também é impossível que dois indivíduos captem o
mesmo objeto. A impossibilidade de captar objetos comuns é, por tanto,
2
Talvez um último esforço de precisão não seja excessivo. Se recordamos o percurso
que viemos desenvolvendo desde o começo, recordaremos que o tema dos objetos
externos ingressou em nossa reflexão como exemplo de objeto comum, não em
seu caráter de objeto externo. Se prestamos atenção agora às passagens nas
quais se introduz a existência do objeto externo como problema, veremos que a
situação não mudou: o que foi o que realmente foi aceito sem discussão e agora,
com a objeção, é questionado? Frege assumiu em várias ocasiões que a mesma
coisa que eu vejo pode ser considerada por outros. mas, que aconteceria se tudo
não fosse mais que um sonho? o que foi suposto não foi a existência do objeto
externo, o que foi suposto é que ele poderia ser objeto comum. os objetos externos
foram introduzidos no transcurso da reflexão não em seu caráter de externos ou
sensíveis, mas o essencial era seu caráter de objetos comuns.
139
uma derivação do princípio de imanência; mas, nem ela é o princípio de
imanência nem a sua negação é, sem mais, uma negação do princípio
de imanência.
Atentar para o que foi dito é fundamental para perceber uma certa
assimetria que vai conduzir, no desenvolvimento do texto, a uma
bifurcação do argumento. Em sua primeira formulação, a objeção que se
colocava era referente à possibilidade de acesso a objetos comuns. Não
obstante, a tese a ser provada não é simplesmente a afirmação de que
haja objetos comuns, senão uma tese mais restrita, a saber, que temos
acesso a objetos que não são representações.
Vejamos a situação de outro modo. Existem cinco teses que devem
ser diferenciadas:
– Tese 1 (suposto): há objetos comuns (dois indivíduos captam o
mesmo objeto externo e está em questão se também são capazes
de captar o mesmo pensamento).
– Tese 2 (objeção): não há objetos comuns (dois indivíduos não captam
o mesmo objeto externo nem captam o mesmo pensamento).
– Tese 3 (tese a ser refutada e que funda a anterior): segundo o
princípio de imanência, só temos acesso a representações ou não
temos acesso a objetos transcendentes.
– Tese 4 (tese a ser provada): temos acesso a algo que não é representação.
– Tese 1’ (tese a ser provada): temos acesso a objetos comuns.
No percurso que fizemos, a tese que será demonstrada como falsa
é a tese 3 e, para a sua refutação, oferecer-se-á um argumento. A partir
da refutação da tese 3, seguir-se-á a verdade da tese 4. o que se trata
de refutar é a tese que diz que só tenho acesso, como objetos, aos meus
próprios “conteúdos de consciência” (Bewusstseinsinhalte), o que se trata
de provar é que é possível acessar objetos que não são meus conteúdos
de consciência. Em princípio, tanto à tese 3 quanto à tese 4 não se
segue a prova da tese 1’. Em realidade, a tese 1’ não será propriamente
provada com a refutação do idealismo, senão estabelecida a partir de um
movimento complementar.3
Atentar ao conteúdo estrito do princípio de imanência e fixar precisamente a sua relação com a questão referente à possibilidade de
objetos comuns é essencial para ter claro o que é que vamos refutar, isto
é, o princípio de imanência, com o qual vamos provar a possibilidade de
captar (individualmente) objetos que não são conteúdos de consciência
e, finalmente, o que é que não se provará (ao menos diretamente pela
3
A negação do princípio de imanência prova que é possível captar objetos
transcendentes, mas não prova, por si, a possibilidade de captar objetos comuns.
140
mera refutação do princípio de imanência), a saber, a possibilidade
de objetos comuns. Essas precisões são também essenciais para fixar
adequadamente qual é o argumento com o qual se refuta o princípio de
imanência e do qual se segue a verdade de sua negação, assim como
do fato de que esse argumento não prova a possibilidade de objetos
comuns, mas de que para a prova da mesma necessitamos de outro
argumento que, como veremos, não conterá a mesma pretensão lógica
que o anterior.
9. Parágrafo intermédio: demonstração da premissa auxiliar
Em vez de passar diretamente à exposição do argumento contra
o princípio de imanência, como era de se esperar, Frege introduz um
parágrafo intermediário, no qual à primeira vista interrompe o percurso
principal (G, 45ss. (70ss.)). É “curioso” (wundersam), assim Frege nos diz,
como em considerações tais como as que estamos realizando os opostos
se derivam uns dos outros, mais concretamente, como a partir da tese
“tudo é objeto (externo)” se passa para a tese “tudo é representação”
e, inversamente, como a partir da tese de que tudo é representação se
passa para a tese “tudo é objeto (externo)”. Frege analisa essas duas
situações.
A primeira situação se apresenta no caso da psicologia fisiológica, a
qual poderia ser descrita como um estranho casamento de naturalismo e
idealismo. Partindo-se da tese da existência de um mundo, do qual minhas
representações são resultado causal, passa-se, por meio da dependência
que há entre a representação e a sua causa, a uma independência da
representação em relação a seu objeto, com o que, finalmente, abre-se o
caminho para considerar o próprio objeto como uma representação.
Em outro caso, que poderia ser assimilado a uma posição como a de mach,
parte-se de uma redução de tudo a representações, redução que termina
incluindo o próprio eu, o qual é dissolvido no fluxo das representações.
o eu não é distinto de suas representações; antes, não é outra coisa que
o conjunto das mesmas. Com essa redução, novamente, encontramos
no ponto de chegada o inverso do ponto de partida, pois se, segundo a
tese inicial, tudo era representação, as representações independentes
de um eu que seja seu portador não são outra coisa que objetos.
observemos a “inversão ao oposto” que foi anunciada no começo
(G, 47 (72)). Partimos de uma posição naturalista. logo, reduzimos tudo
à representação. logo, uma vez reduzido tudo, absolutamente tudo, à
representação, inclusive o meu próprio eu, já não há mais representações,
senão que voltamos a ter objetos autossuficientes. Temos, pois, três
passos: tudo é objeto autossuficiente, tudo é representação e, novamente,
tudo é objeto autossuficiente.
141
Qual é o ganho dessa passagem na estrutura do texto? o ganho está
contido no segundo movimento do parágrafo, desempenhando o primeiro
unicamente uma função introdutória, complementar para a explicitação
do princípio geral. Nele, prova-se uma das premissas sobre a base das
quais se efetua a refutação do idealismo subsequente. o que interessa
a Frege é provar que o conceito de representação necessariamente
remete à idéia de um eu que não é representação, que é portador das
representações. Assim, a prova de tal tese se dá antecipando-se a uma
possível objeção. Alguém poderia contra-argumentar dizendo que da
tese “tudo é representação” não se segue necessariamente a existência
de um eu, que não é representação e é portador das mesmas, pois bem
poderia acontecer que esse eu não fosse outra coisa que o conjunto de
representações e, portanto, se dissolvesse nas mesmas. A essa possível
objeção, Frege responde que representações têm uma relação necessária
com um eu como portador e que, se eliminamos a mesma, transformamos
as representações em objetos (G, 47 (72)).
10. O argumento
Com o exposto, nada resta senão estabelecer o argumento fregeano.
Para isso, procederemos em cinco passos:
a. mostraremos o que o argumento não é;
b. proporemos uma leitura do argumento;
c. explicitaremos a sua estrutura formal;
d. consideraremos alguns aspectos particulares do mesmo;
e. e, finalmente, apontaremos para objeções possíveis.
a. Se a comparação com descartes pode confundir com respeito ao
problema, ela pode confundir também com respeito à solução. o
argumento de Frege não consiste em derivar uma existência de outra
existência. Ele não diz: existem ao menos minhas ideias; assim, se
existem minhas ideias, então existe algo que não é uma ideia, a
saber, o meu eu. Não se trata de provar que existe algo diferente de
minhas ideias, mas que tenho objetos que não são minhas ideias, ou
que ideias não são meus únicos objetos.
Se o argumento não deriva uma existência de outra existência, ele
tampouco se funda em uma evidência primitiva (tenho representações)
sobre a qual repousam outras certezas (há um eu diferente de minhas
representações).
b. o argumento de Frege diz (G, 47-48 (77)):
1. se meus únicos objetos são minhas representações,
2. então existe algo que não é minha representação, meu próprio eu,
142
3. pois, se meu próprio eu não existisse, tampouco poderia haver
representações, já que se careceria de um portador das mesmas
(representações se tornariam objetos);
4. entretanto, meu eu pode ser meu objeto (ou é essencial ao eu o
poder dar-se a si mesmo como objeto),
5. portanto, é falso que meus únicos objetos sejam minhas representações.
c. Exposto o argumento em seus elementos, vejamos a sua estrutura
formal.
c.1. o argumento fregeano se constrói sobre duas premissas:
c.1.1. o ponto de partida é o princípio de imanência segundo o qual
todos os meus objetos são representações ou conteúdos de
minha consciência.
c.1.2. A esse ponto de partida agrega-se uma premissa suplementar
que, como já vimos, se demonstra separadamente: representações precisam de um eu como portador.
c.2. Segundo a interpretação que considero correta, o argumento
de Frege consiste basicamente em uma redução ao absurdo e
procede por um único e decisivo passo: ele consiste em mostrar
que, caso se aceite a tese do oponente como premissa, dela se
deriva uma consequência que a contradiz, portanto ela é falsa. o
argumento de Frege consiste em que, pressuposto que os meus
únicos objetos sejam representações, como representações
só podem ser representações de um eu, segue-se que há um
objeto, o meu eu, que então não é representação, sendo portanto
falso o ponto de partida, ou seja, que meus únicos objetos são
representações.
c.3. Uma outra interpretação que considero errônea seria a seguinte:
poder-se-ia pensar que o núcleo do argumento estaria em
oferecer um contraexemplo. A tese “tudo é representação”
se refuta provando que há ao menos um objeto que não é
representação. Se Frege pretendesse proceder mediante um
contraexemplo, então está exposto a objeções.
c.3.1. Imaginemos que Frege diga que há ao menos um objeto que
não é representação, o meu próprio eu. o idealista poderia
responder simplesmente: sim, todos os meus objetos são
minhas representações, com exceção do eu, que é o único
caso de algo que é meu objeto e, não obstante, não é minha
representação. Com isso, o idealista seguiria mantendo
fechado o caminho para admitir que eu sou capaz de acessar
pensamentos e eventualmente qualquer outro tipo de objeto.
143
o idealista só precisaria reformular a sua tese de uma forma
“mais precisa”. Isso inauguraria o trabalhoso caminho de ter
de ir introduzindo posteriormente um a um outros objetos que
não fossem representações ou um eu.
c.3.2. Com esta introdução pontual de novos objetos, o verdadeiro
problema de um decisivo passo à transcendência é simplesmente
postergado. depois de tudo, ainda quando se pode dizer
que o meu eu me proporciona um objeto que não é minha
representação, ele não deixa de ter um status particular tal que
seja compreendido como pertencente à esfera de uma certa
imanência. Assim, o passo decisivo da prova se traslada da
existência do meu eu como objeto à demonstração da existência
de um objeto diferente do meu eu. o contra-argumento de que
meu eu é meu único objeto que não é minha representação
é sempre, em princípio, plausível.4 mas, se como afirmamos,
o argumento procede por redução ao absurdo, não se exige
nenhum recurso auxiliar para permitir a passagem de meu eu
como objeto a um objeto que não seja o meu eu. de fato, observese, Frege efetua essa passagem sem maiores considerações.
c.3.3. Ademais, se o argumento procedesse por contraexemplos, ele
demonstraria que o princípio de imanência é falso mediante
a indicação de um fato que o refuta, e a afirmação desse fato
deveria conter em si uma evidência. Ao princípio de imanência
contrapor-se-ia a evidência de que posso tomar o eu como
objeto. o ponto essencial seria o fato de que há um eu que é
objeto e não é representação. Se tal fosse o caso, a tese de que
representações requerem um portador, não desempenharia
papel algum. ora, que faço afirmações sobre o meu eu, não é
introduzido como a mera constatação de um fato, mas como uma
consequência derivada de que as representações precisam de
um eu como portador.
d. Para que a exposição do argumento seja completa, devemos considerar
separadamente alguns elementos complementares do mesmo.
d.1. Além da objeção já mencionada que dissolve o eu em
representações, Frege considera outra que está com ela
vinculada e que é, em realidade, complementar. A afirmação
da tese “tudo é representação”, pode ser acompanhada por
uma negação do eu de duas maneiras. ou porque o eu se reduz
às suas representações, caso já considerado, ou porque o eu é
4
Por outra parte, dado que justamente o eu é um objeto ao qual o seu titular tem
um acesso sui generis, o fantasma do solipsismo não desaparece totalmente.
144
d.2.
d.3.
d.4.
concebido como um conjunto de representações, ou seja, uma
parte das representações capta outra parte das representações.
A essa objeção, Frege responde que, em tal caso, cairíamos em
um regresso ao infinito e, em consequência, existiriam infinitos
“eus” (G, 47 (72)).
o eu é objeto. É claro em que sentido Frege pensa que o seja,
e que o seja necessariamente: o eu é objeto de afirmações
(G, 47 (72)). Isso significa concretamente que posso fazer afirmações sobre ele, como, por exemplo, “eu tenho dores”. o objeto
dessa afirmação é o eu, não uma representação.
do que foi exposto até agora fica claro que podemos ter algo como
objeto que não é nossa representação. mas, podemos perguntar
como temos esse algo como objeto, em que consiste ter esse
algo como objeto. Já vimos o que isso significa positivamente:
ter algo como objeto é julgar, emitir um juízo sobre esse algo;
negativamente, veremos que ter algo como objeto não é formar
uma representação desse algo. devemos observar que desde
um primeiro momento a noção de “ter algo como” objeto esteve
vinculada à noção de “pensar” (Denken) (G, 48 (72)), ainda
quando essa noção será explicitamente introduzida logo depois
como captação de pensamentos (G, 49-50 (74)). mas, que o
ter algo como objeto implica pensar deve ser óbvio a partir
da relação entre pensar e julgar e o fato de que ter algo como
objeto é julgar.
No transcurso do argumento, Frege considera uma possível
objeção com particular interesse. Essa é simplesmente
uma variante do princípio de imanência que se resiste a ser
abandonado (G, 47-48 (72)). Em um certo sentido, pode-se
dizer que sempre que afirmo algo sobre algo me faço uma
representação desse algo. Isso não significa, sem dúvida, que
então meu objeto seja a representação desse algo. A questão
só pode ser adequadamente respondida se nos aprofundamos
no papel que tem a representação na referência a algo. E aqui
devemos diferenciar duas coisas:
a) que na referência a algo uma representação desempenhe
algum tipo de papel,
b) que na referência a algo a representação seja o objeto
primário dessa referência, por assim dizer, a “cópia” (Abbild)
à qual nos dirigimos imediatamente e por meio da qual nos
referimos à coisa. Assim, quando me refiro ao eu, também
está ou pode estar presente uma certa representação. Isso
não significa, no entanto, que ela é o objeto imediato por meio
145
do qual mediatamente me refiro ao eu. Que é esse o caminho
que devemos percorrer na busca de uma solução fica claro
no parágrafo subsequente que trata da relação do médico
com seu paciente (G, 48 (73)). Ali, é claramente diferenciado
o objeto da reflexão e o “meio auxiliar” do qual a mesma se
vale ou pode valer-se. mas, poderia perguntar-se, de onde se
extrai a necessidade de que representações sejam os meios
auxiliares da referência ao objeto? Na base dessa idéia,
está uma convicção, profundamente arraigada em Frege,
de que ainda quando nosso pensamento pode dirigir-se ao
não-sensível ele precisa sempre de um suporte no sensível.
Essa convicção está presente no texto na tese de que algo
na consciência deve apontar para aquilo que não está na
consciência (G, 50 (75)). mas, existe outro ponto interessante.
o caso mais maduro de como a representação pode ser
necessária para a referência, mas que não por isso constitui
a referência direta, está dado pelo papel das “impressões
sensíveis” (Sinneseindrücke) na percepção. Para que haja
percepção, precisamos de impressões sensíveis. Impressões
sensíveis, não obstante, não são o objeto da percepção nem
constituem por si mesmas a nossa referência ao objeto
percebido. Sobre esse ponto, haveremos de voltar.
e. Se é clara a estrutura geral do argumento, não é tão clara assim sua
articulação em detalhe.
e.1. No argumento fregeano, o princípio de que representações
precisam de um portador desempenha um papel fundamental.
Contudo, na exposição que Frege realiza, ele considera
demonstrado não meramente que toda representação supõe um
portador, mas que esse portador é um eu. Podemos, entretanto,
diferenciar aqui dois problemas diversos que se sobrepõem pelo
contexto polêmico específico no qual a questão se apresenta,
a saber, a redução do eu a um conjunto de representações. Em
princípio, pode-se conceder que toda representação supõe um
portador e que isso se segue analiticamente do próprio conceito
de representação. Todavia, esse portador de representações
não tem por que ser necessariamente um eu, pois bem se pode
pensar em algum tipo de psiquismo primitivo. dores supõem
um sentir dores. Entretanto, um sentir dores não supõe um eu.
o que sente dores pode ser incapaz de tomar-se a si mesmo
como objeto e dizer “eu tenho dores”. Para essa objeção, Frege
não tem resposta, posto que simplesmente não a previu.
146
e.2.
Não se pode descartar que quiçá haja uma forma muito simples
de responder a essa objeção. Frege toma como ponto de partida
aquilo que está afirmado por seu oponente. É seu oponente quem
afirma que meus únicos objetos são “minhas” representações e,
em tal sentido, em “minhas” já está introduzido um eu. Portanto,
como o ponto de partida de todo o argumento é o princípio
de imanência, não é necessário contemplar possibilidades
que estão concedidas por esse próprio princípio. mas, essa
saída é pouco convincente pelo seguinte motivo: se isso fosse
assim, não teria sentido que Frege contemplasse a dupla
possibilidade de que não haja eu, seja porque o eu se dissolve
em suas representações, seja porque o eu seja um parte das
representações.
Resumindo retrospectivamente. A tese que foi refutada afirma que
meus únicos objetos são minhas representações. A refutação propriamente
dita da mesma se efetua em um único passo, com a constatação que dela
se deriva uma consequência contraditória. Isso constitui uma unidade
auto-suficiente. Se nossa interpretação é correta, com o exposto o
argumento anti-idealista está concluído. o percurso subsequente não o
complementa, mas apenas o pressupõe.
A partir da refutação do princípio de imanência, o texto começa
um movimento regressivo que vai retomando a questões que haviam
permanecido pendentes:
1. Podemos ter um objeto comum?
1’. Podemos ter como objeto comum o objeto externo?
2. Podem dois indivíduos ter acesso ao mesmo pensamento?
3. Podemos ter acesso a um objeto comum que não é sensível, como
o pensamento?
11. Retomando a pergunta se dois indivíduos podem ter o
mesmo objeto
Já indicamos que, com a tese de que o eu é objeto que não é representação, o idealismo está refutado. o passo subsequente está no
caminho de um argumento a outra questão, aquela da possibilidade
de que dois eu se comuniquem ou possam referir-se ao mesmo objeto.
Aceitado que é falso que só posso ter como objeto minhas próprias
representações, prossegue-se a mostrar que dois sujeitos podem ter o
mesmo objeto. Justamente a conclusão explícita desse novo momento é
que objetos comuns são possíveis (G, 49 (73)).
Vejamos agora esse percurso com mais detalhe (G, 48 (73)). Frege
volta à sua pergunta sobre se dois indivíduos podem ter o mesmo objeto.
147
Para isso, Frege introduz um segundo, um terceiro e um quarto sujeito. A
situação considerada é a de que dois sujeitos que tomam como objeto as
representações de um terceiro, mais concretamente, dois médicos que
conversam sobre as dores de um paciente.
1. observe-se que a introdução de novos sujeitos não tem por fim
provar a existência dessas entidades, ou seja, a existência de outros
“eus”. Simplesmente não é esse o problema central agora, muito embora,
como veremos, seja também um problema (G, 48 (73)).
2. A única coisa que se “prova”, pressupondo o ponto já alcançado, é
que, também com respeito a outros sujeitos, temos de diferenciar entre
o seu eu e as suas representações, de tal modo que eles, assim como
nós, possam ter como objeto algo que não é a sua representação. dito
de outra forma, Frege efetua uma inferência por analogia (G, 49 (73)).
3. mas, se dois indivíduos podem ter como objeto algo que não é a
sua representação, então eles podem ter um objeto comum. Para
sustentar esse novo passo, não é suficiente apelar à refutação do
princípio de imanência, pois, como vimos, a negação deste não implica
necessariamente a existência de objetos comuns. Aqui, é necessário um
argumento complementar. Este, caso fosse explicitamente articulado,
seria assim: se dois indivíduos podem ter como objeto algo diferente de
suas próprias representações, então nada obsta a que tenham por objeto
o mesmo objeto (G, 48 (73)).
Na refutação do princípio de imanência, podemos dizer que estamos
propriamente frente a uma prova no sentido lógico mais estrito. o novo
momento do percurso fregeano que nos ocupa introduz outro plano de
consideração. Tentamos formulá-lo de modo tal que adquira a sua maior
força argumentativa. Ainda assim, vemos que há uma diferença notória
com a refutação do princípio de imanência. o princípio de imanência
é propriamente refutado; a existência de objetos comuns é tornada
plausível. o que mais podemos dizer desde um ponto de vista lógico é
que se deriva uma possibilidade de outra possibilidade ou que de algo
que não é impossível se conclui que outro algo tampouco é impossível.
A atenção à literalidade do texto sustenta tal interpretação. Com efeito,
isso se expressa em termos tais como “Agora está livre o caminho...”.
12. O problema do mundo exterior
Ao retomar ao problema da existência de um objeto comum, pusemos
o acento em que, em princípio, nada obsta a que outros “eus” possam
tomar como objeto algo distinto de suas representações, tal como nós
mesmos. Com esse movimento, contudo, deu-se outro passo decisivo:
a introdução de um novo eu traz consigo o problema da existência do
mundo externo (G, 48 (73)).
148
dissemos mais acima que o objetivo de Frege não era construir um
argumento para provar tal existência nem, muito menos, a cognoscibilidade
do mesmo. o que Frege nos diz explicitamente, agora, não vem senão
confirmar tal idéia: se Frege se tivesse proposto refutar uma dúvida
cética com respeito a nosso conhecimento do mundo externo, muito
pobre seria o resultado. o que se tem para opor à dúvida cética não é
nenhuma certeza. Frege explicitamente renuncia a toda possibilidade de
certeza absoluta nesta esfera. Existe aqui uma diferença de princípio,
nos diz o autor, entre o mundo exterior e o interior: não posso duvidar de
que tenho a impressão sensível do verde, mas não é tão seguro que eu
veja efetivamente uma folha de tília (G, 49 (73)). A introdução do mundo
exterior traz consigo, pois, a possibilidade do erro.
Provado que somos capazes de acessar objetos transcendentes, nada
obsta ao reconhecimento da existência do mundo exterior. Para Frege,
isso é uma questão resolvida e não há mais nada a dizer a respeito. Esse
ponto de vista é conciliável, mais ainda, implica-se necessariamente,
com o reconhecimento da falseabilidade essencial de todo o meu
conhecimento do mundo exterior. A falseabilidade, de princípio, de
todo o nosso conhecimento do mundo exterior não é para Frege uma
objeção à existência deste mundo, mas, pelo contrário, um argumento
ou a confirmação dessa transcendência (cf. GGA, XXI). A possibilidade
do erro é, para Frege, um ingrediente essencial na própria idéia de um
conhecimento do mundo exterior.
Uma análise completa da concepção fregeana sobre o conhecimento
do mundo externo só poderia ser oferecida depois do tratamento dos
pensamentos.
13. A introdução de pensamentos
observamos, no final da subdivisão 11, que quatro perguntas restavam
ainda para serem respondidas. As duas primeiras encontraram as suas
respostas nos itens anteriores: somos capazes de ter um objeto comum e,
em princípio, ter acesso ao objeto exterior. Como o evidencia a introdução
do problema do mundo exterior, em primeiro plano esteve até agora o
objeto sensível. Por essa razão, ainda resta um último e decisivo passo,
um passo que nos remete ao começo deste longo percurso, a saber,
à introdução de pensamentos e à dupla correlativa afirmação de que
podemos captá-los assim como outras pessoas. Frege será extremamente
parco nesse novo e decisivo movimento, muito provavelmente porque ele
não faz mais que explicitar o que, por si mesmo, deve estar já claro.
Não existem argumentos positivos que demonstrem a possibilidade
de captar pensamentos; o que existe é uma estratégia na qual se prova a
falsidade de uma tese que, caso fosse verdadeira, tornaria impossível, de
149
princípio, a nossa captação individual de pensamentos. o que Frege nos
diz explicitamente é o seguinte: nem tudo é representação. desse modo,
posso reconhecer pensamentos como independentes de mim, os quais eu
e outros homens somos capazes de captar (G, 49 (74)). Prestemos atenção,
em primeiro lugar, ao “posso”. Com ele, indica-se uma possibilidade. Isso
quer dizer: Frege não pretende ter provado que efetivamente captamos
pensamentos ou que efetivamente dois indivíduos captam o mesmo
pensamento, senão, unicamente, que é possível que assim seja5. Essa
possibilidade é afirmada em direta correlação com a negação do princípio
de imanência. Como “nem tudo é representação”, ou seja, como o princípio
de imanência é falso, “assim”, desse modo, então posso... A inversa seria:
se o princípio de imanência fosse verdadeiro, seria impossível captar
pensamentos e “assim” ruiria toda a “ponte ao objetivo” (l (1897), 62).
o núcleo do argumento é, pois, a negação do princípio de imanência e o
fato de que essa deixa em aberto uma possibilidade.6
14. Uma nova e objeção final à possibilidade de captar
pensamentos
Com o que foi dito até agora, é tornada plausível a possibilidade de
captar pensamentos. A essa tese, entretanto, pode ser feita uma objeção,
uma objeção que já foi anunciada no começo do texto. Pensamentos não
são parte do mundo interior; agora, o que não é parte do mundo interior
só pode ser captado através de impressões sensíveis. Pensamentos,
não obstante, não são objetos sensíveis e não podem ser percebidos
(G, 50-51 (75)); cf. GGA, XVIII).
o argumento de Frege se constrói sobre a base de aceitar o ponto de
partida de seu oponente. Admitamos que temos percepção de objetos
externos. Sobre isso não cabe dúvida, a dúvida é se temos percepção
de objetos não-sensíveis. o argumento consiste em inverter a relação,
mostrando que a captação de pensamentos é uma condição necessária
da captação do objeto exterior através da percepção. Para isso, esboçase rapidamente uma teoria da percepção. Para que haja percepção,
são necessárias impressões sensíveis. As impressões sensíveis, não
obstante, por si só, são tão-somente conteúdos de consciência, pertencem
ao mundo interno e não me abrem um mundo exterior. Para que haja
5
6
Talvez seja mais preciso dizer: se Frege considera que captamos efetivamente
pensamentos, então o faz, não com base no percurso que percorremos, mas com
base no fato de que existe ciência e comunicação e que elas pressupõem a captação
de pensamentos.
ou seja, não há argumentos específicos que provem a possibilidade de que dois
indivíduos captem o mesmo pensamento a não ser os argumentos que já vimos
com respeito à possibilidade de captação de um objeto comum em geral.
150
percepção, é necessário algo mais do que impressões sensíveis, e esse
algo mais é não-sensível. Esse algo não sensível, que deve estar presente,
em princípio, para que haja percepção, é o pensamento. Pelo tanto, a
captação de pensamentos é condição de possibilidade da percepção. o
argumento básico é, se a captação de algo não-sensível é condição da
percepção, por que não poderia acontecer uma captação do não-sensível
não submetida a impressões sensiveis, que são os únicos elementos
que diferenciam umas das outras, já que essas, como privadas, não nos
abrem um mundo?7
Agora podemos abordar o problema do conhecimento do mundo
exterior e dar-lhe uma forma definitiva. Esse problema só pode ser
colocado depois de introduzida a noção de pensamento, pois são
pensamentos que nos abrem o conhecimento do mundo exterior. o
conhecimento do mundo exterior nos está dado pela percepção, e essa
supõe nosso acesso a pensamentos.
A objeção que acabamos de considerar não surge por um processo
retilíneo, mas coloca-se do ponto de vista exterior ao percurso que temos
desenvolvido. mas, existe uma razão sistemática poderosa de por que
não podemos deixar de abordar a mesma. Até agora, o asseguramento da
possibilidade de acesso a pensamentos efetuou-se em discussão com o
idealista. mas, isso é só a metade do problema, pois o idealista é unicamente
um dos inimigos possíveis. o outro inimigo é o realista-empirista e também
contra esse tem de ser assegurada a possibilidade de captar pensamentos.
observe-se que, nessa última objeção, o adversário de Frege muda e,
consequentemente, muda a argumentação. Quando Frege considera a
objeção de que pensamentos não são reais, não o faz em discussão com
alguém que negue a existência do mundo exterior, mas o faz em discussão
com alguém que aceita a existência de tal conhecimento, mas nega a
possibilidade de acesso a pensamentos, ou seja, de acesso a algo não
sensível ou não real. Por isso, o argumento consiste justamente em mostrar
que, concedida a possibilidade de conhecimento do mundo exterior, o acesso
a pensamentos é uma condição de possibilidade de tal conhecimento.
Se olhamos retrospectivamente o presente percurso, temos de dizer aqui
algo similar ao já dito na ocasião anterior. Frege fundamenta a possibilidade
de captar pensamentos na refutação de uma tese que, caso fosse verdadeira, constituiria uma possível objeção a tal possibilidade. A literalidade
do texto confirma essa interpretação: “... não é impossível...” (G, 51 (75)).
7
A análise do presente texto fregeano a considerou unicamente em relação ao
percurso que estabelecemos e não pretende de modo algum resolver todas as
dificuldades interpretativas que o mesmo texto apresenta. o elemento não-sensível
ao qual Frege se refere não é meramente o pensamento, mas algo presente na
própria captação do pensamento.
151
15. Pensamentos em visão retrospectiva
Para finalizar, efetuamos uma visão retrospectiva do caminho recorrido. o ordenamento sistemático estrito que se obtém como resultado
não corresponde ao ordenamento no qual a investigação se realiza. Na
exposição argumentativa, avançamos da captação de um objeto que
não é representação, o meu eu, para a captação de objetos que não são
o meu eu ou a captação de objetos externos, que eram objetos comuns,
até chegar, finalmente, à captação de pensamentos. Isso não quer
dizer
1. que a captação do eu e do objeto exterior sejam condição de
captação de pensamento;
2. nem tampouco que ela pode ser efetuada sem a captação de
pensamentos.
Precisamente esse último é o ponto decisivo. A ordem da prova não
pode ser confundida com a ordem de pressuposição sistemática. Aquilo
que primeiro captamos e que não é o nosso conteúdo de consciência são
pensamentos, e só através deles captamos todo outro tipo de objeto. Isso
quer dizer que só captamos o nosso próprio eu e objetos externos porque
somos capazes de captar pensamentos. Que a captação de pensamentos
seja condição de possibilidade da percepção de objetos internos, já
nos foi dito expressamente. Que a captação de pensamento é também
necessária para a captação do eu como objeto, também foi dito, mas de
modo indireto, enquanto essa captação foi desde o começo determinada
como “pensar” (Denken), coisa que já observamos e, “pensar” é definido
como captação de “pensamentos” (Gedanken). (G, 49-50) (74)). Em suma,
a captação do objeto eu, sob a forma de “eu tenho dores”, não é possível
sem a captação de um pensamento.8
mais ainda: em princípio, tudo parece indicar que eu posso ter três
tipos de objetos:9
– o objeto exterior;
– o meu eu;
– os pensamentos.
8
9
Em realidade, isso já foi dito desde o começo, com a idéia de pensamentos que
são de acesso único, pelo fato de que neles o eu está dado de um modo singular,
em que só ele pode dar-se a si mesmo.
deixo sem analisar, ainda que chame a atenção sobre a sua importância, o problema
da representação como objeto. Representações são tidas. Elas podem, não obstante,
tornar-se objetos tanto para mim como para outros (recordemos a observação de
Frege a esse respeito, no caso de dois médicos que tomam como objeto as dores
do paciente). A pergunta é: como representações se tornam objetos? Supõem
também elas uma apreensão através de pensamentos? Se esse é o caso, não é
necessário precisar o sentido no qual temos acesso imediato e infalível às mesmas?
152
Agora, deixando momentaneamente de lado os pensamentos, pois
pensamentos podem ser captados diretamente, para captar qualquer
tipo de objetos supõem-se pensamentos. o princípio de que captar
uma propriedade de um objeto é captar um pensamento verdadeiro é
absolutamente universal: não podemos reconhecer uma propriedade em
uma coisa sem ao mesmo tempo considerar verdadeiro o pensamento de
que essa coisa tem tal propriedade (G, 34 (61)); cf. G, 50 (74)).
Assim, vemos todo o alcance da negação do princípio de imanência.
Este dizia que só tenho acesso às minhas representações. mas, por quê?
Porque elas eram reais em mim, eram meu “conteúdo de consciência”
(Bewusstseinhalt). Portanto, a conclusão é: eu tenho primeiramente
acesso a algo que não é real em mim e que não se torna de modo algum
real em mim pelo fato de ser apreendido, e é justamente através disso
que posso ter acesso a outros objetos reais ou não. Em realidade, os
únicos objetos a que tenho acesso imediato e que não são as minhas
representações são os pensamentos.
16. Conclusão
Em uma passagem repetidamente citada da Lógica, de 1897, Frege
afirma que, em última instância, o “como” captamos pensamentos é
um mistério. Ele afirma, no entanto, que de toda forma não devemos
nos ocupar com tal questão na lógica, pois, para todos os efeitos, o
que é relevante para a mesma é “que” captamos pensamentos. o
“como” isso acontece, em todo caso, deve ser remetido à psicologia. A
passagem citada é geralmente tomada como prova irrefutável não só do
fato de que Frege não tinha resposta à pergunta “como apreendemos
pensamentos?”, mas também que não tem interesse nessa questão
nem, em geral, em problemas vinculados à idéia de subjetividade. Não
obstante, se a interpretação que oferecemos da crítica ao idealismo em
Der Gedanke é correta, a afirmação anterior deve ser matizada. Não
cabe dúvida de que Frege dedica boa parte do ensaio de 1918 a provar
que a apreensão de pensamentos é possível e que essa prova contém
como momento essencial a refutação da concepção idealista de sujeito,
identificada, desde 1893, como núcleo último nascente do psicologismo.
Em suma, a crítica ao psicologismo não tem como contrapartida um
desinteresse absoluto por questões referentes à subjetividade, mas está
essencialmente vinculada a uma tomada de posição sobre as mesmas.
Referências
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153
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