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LINGUAGEM E PENSAMENTO EM FREGE*
MARIA LUISA COUTO SOARES
(FCSH Universidade Nova de Lisboa)
"A sua tarefa (da lógica e da matemática) poderia talvez ser representada mais como a
investigação da mente, não das mentes."
Collected Papers on Mathematics, Logic and Philosophy, 368-369.
As teses de Frege sobre a objectividade do pensamento, ilustradas pela sua
conhecida metáfora do "3º reino", têm sugerido frequentemente uma nítida conotação
com uma espécie de platonismo amalgamado com fragmentos kantianos. Na literatura
contemporânea sobre Frege a designação de platonismo é recorrente e à primeira vista
esta designação parece perfeitamente justificada por algumas das teses fortes que marcam
o pensamento de Frege: a sua noção dos números como objectos, as verdades atemporais
e independentes de qualquer sujeito que as apreenda, a própria convicção da
independência dos pensamentos em relação ao respectivo acto de pensar, tudo parece
induzir uma ontologia e epistemologia de cariz nitidamente platónicas. Segundo a
comparação de Baker e Hacker, Frege consideraria que os pensamentos estão para as suas
expressões linguísticas como as formas para as sombras projectadas no muro da caverna
de Platão1. Associado a estas ressonâncias platónicas, detectam-se também no
pensamento de Frege nítidas influências kantianas, que com mais ou menos razão têm
sido exploradas como vias de acesso e de tradução dos escritos fregeanos. Na sua
interpretação da objectividade, Stanley Rosen considera que Frege vacila entre
platonismo e kantianismo: a primeira versão assume, perante os objectos do
conhecimento, que o intelecto os apreende tal como são e se revelam a si mesmos, numa
atitude passiva ou receptiva; a segunda considera que o intelecto contribui para o modo
como os objectos se nos dão a si mesmos, construindo-os através da imposição de uma
estrutura definida própria da subjectividade2.
*Encontro Nacional de Filosofia Analítica, Faculdade de Letras, Coimbra, 2003
1
Cfr Frege: Logical Excavations, p. 67, n.10.
2
No primeiro caso, seria necessária uma teoria da intuição ou da evidência, no
segundo uma teoria da subjectividade que desse conta da construção dos conceitos.
Se nos concentrarmos nalguns textos de Frege - nomeadamente em Der Gedanke
- com esta grelha de leitura, é inevitável que encontremos fortes motivos para apoiar uma
ou outra interpretação. É célebre a passagem na qual Frege conclui que, não sendo coisas
do mundo externo, nem "ideias" (representações do mundo interno), os pensamentos
deverão pertencer a um 3º reino: o que pertence a este domínio não pode ser percebido
pelos sentidos, tal como as ideias ou representações subjectivas, mas tal como as coisas
do mundo externo, não necessitam de um portador nem de pertencer ao conteúdo da sua
consciência. O paralelismo entre os pensamentos e os objectos físicos induz a uma
"ontologização" dos objectos abstractos, entre os quais se encontrariam os pensamentos,
e a pressupor a admissão tácita de um mundo de ideias, para além do mundo da
consciência e do mundo de objectos físicos. O texto fregeano parece remeter
inquestionavelmente para uma perspectiva platónica ou platonizante. Note-se, porém, que
Frege não introduz a noção de pensamento assimilando-o a "objectos abstractos" - um
pensamento, na "ontologia" de Frege não é nunca um "objecto"3; a analogia proposta por
2
Cfr. The Limits of Analyse, p. 19.
Mesmo na teoria da referência indirecta, na qual o sentido da proposição é referido, não se pode
considerar que o pensamento, pelo facto de ser o referente (indirecto), seja um objecto. Frege não identifica
referência com objecto, como é evidente no caso do conceito, que é a referência do predicado gramatical.
Que os pensamentos não são objectos parece-me estar confirmado em Sinn und Bedeutung ; no entanto,
Angel d’Ors discorda desta posição em relação ao pensamento em Frege. Considera que no caso da
referencia indirecta, o pensamento é o objecto visado pela proposição. Claro que tudo depende do modo
como se interpreta as noções de pensamento e de objecto nos escritos de Frege. Numa leitura diacrónica,
desde a Begriffsschrift até “Der Gedanke” detectar-se-ão diversas nuances nestas noções fregeanas,
sobretudo os problemas que levanta a tão discutida noção de sentido. Escreve Angel d’Ors: “O
reconhecimento do sentido como uma das dimensões do conteúdo de um signo, embora permita a Frege dar
solução a alguns problemas com que se tinha deparado e alcançar uma solução mais satisfatória do que a
apresentada na Conceptografia, suscita, no entanto, muitos outros problemas e, por isso, está longe de
proporcionar uma solução plenamente satisfatória do conjunto de conjunto de problemas examinados. Por
um lado, o reconhecimento do sentido como uma das dimensões do conteúdo de um signo, contraposta à
referência , suscita uma questão ontológica de difícil solução. Por outro lado, esta mesma contraposição
entre o sentido e a referencia de um signo, suscita uma questão epistemológica de solução não menos
difícil: o sentido como modo de dar-se, permite dar conta dos constituintes do pensamento, enquanto
distintos das entidades determinadas por este, que constitue, a referencia, mas constitui-se ele mesmo como
algo completamente estranho ao próprio conhecimento que os enunciados exprimem” (“La naturaleza de la
identidade y el problema del análisis de contenido en Über Sinn und Bedeutung , Análise 25, 2003). Do
ponto de vista epistemológico, e como via para analisar o pensamento, a noção de sentido é uma pura
“miragem”, conlui Angel d’Ors. Estou plenamente de acordo com a formulação dos problemas suscitados
pela noção de sentido no pensamento de Frege.
3
3
Frege não pretende ser uma introdução nem à sua noção de pensamento nem à de
"objectos abstractos" e não o compromete, portanto, decididamente com um mundo de
ideias platónicas, como tantas vezes tem sido sugerido.
Por outro lado, a afirmação de Frege de que não bastam as impressões sensíveis
para termos um conhecimento objectivo do mundo externo4, mas é necessário uma outra
fonte de conhecimento não sensível que nos permita o acesso ao mundo externo, tem
levado alguns comentadores a uma aproximação da célebre frase kantiana "intuições sem
conceitos são cegas"5, que sintetiza emblematicamente a rejeição de um puro empirismo.
Aproximação um tanto forçada, tendo em conta os diferentes enquadramentos
epistemológicos e lógicos de Kant e Frege. Não me vou aqui deter no exame das
possíveis influências de Kant no pensamento de Frege, nem numa releitura de certos
textos fregeanos para detectar a sua interpretação da epistemologia kantiana6.
Longe de pretender apresentar uma reinterpretação do pensamento de Frege,
proponho apenas uma abordagem aos seus escritos procurando compreendê-los em si
mesmos, livres de possíveis e múltiplas ressonâncias que sugerem afinidades, influências
e interpelações de outros pensadores ou correntes filosóficas. Decerto que Frege não pode
ser considerado como alguém que abdica de toda a tradição lógica e filosófica. Mas o
peso dessa tradição não o impediu de pensar e escrever algo de fresco e novo que pode
ser apreendido como tal, desprendendo o seu pensamento genuíno da rede de
interferências e relações com outros modos de tratar dos mesmos problemas.
Detenhamo-nos no ensaio Der Gedanke, o primeiro de uma série de três ensaios
que constituem os Logische Untersuchungen: o texto de Frege concentra-se numa
4
"As impressões sensíveis só por si não nos revelam o mundo externo(…) Ter impressões sensíveis é
certamente necessário para ver coisas, mas não suficiente. O que se deve ainda acrescentar não é algo de
sensível. E no entanto é isso que nos abre para o mundo externo; com efeito sem este algo não sensível,
cada um permaneceria encerrado no seu mundo interno." ( “Der Gedanke”, Kleine Schriften p. 360 )
5
Sobre um confronto entre a teoria fregeana do conhecimento perceptivo e o seu exame crítico da
perspectiva empirista para a qual a percepção sensível é "a mais certa, mesmo a única fonte de
conhecimento sobre tudo o que não pertence ao mundo interno", com a filosofia kantiana cfr Carl W. Frege's Theory of Sense and Reference, p. 194: a componente não sensível da percepção de um objecto
material consiste na captação de um pensamento(…) Portanto, a forma lógica do conhecimento perceptual
tem que ser proposicional. Esta perspectiva, conclui o autor pode bem ser comparada com a tese de Kant de
que as intuições exigem os conceitos.
6
Para um confronto de Frege e Kant, cfr. a obra de Hans Sluga - Gottlob Frege; a convicção de que o
projecto de Frege era motivado em grande parte por interesses epistemológicos kantianos encontra-se
também em Philip Kitcher, "Frege's Epistemology" e Tyler Burge "Sinning against Frege", Gregory Currie,
4
argumentação a favor da objectividade do conhecimento e, ao garantir essa objectividade,
garante ipso facto a autonomia do pensamento. A noção de objecto e de objectivo surge
já nos Gundlagen der Arithmetik,7 essencial para assegurar o estatuto próprio dos
números. O § 26 termina com um esclarecimento sobre a noção de objectividade, que é
importante reter para a compreensão do que Frege pretende sugerir em Der Gedanke com
a "autonomia" ou "independência dos pensamentos: "Entendo por objectivo o que é
independente das nossas sensações, intuições e imaginação, e de qualquer construção de
imagens ou representações mentais a partir de recordações de sensações anteriores, mas
não o que é independente da razão - pois o que são as coisas independentemente da
razão? Responder a esta questão seria pretender julgar sem julgar ou lavar o couro sem o
molhar".
O mundo das sensações, representações e imagens constitui o nosso mundo
privado, ao qual temos um acesso privilegiado, mas sobre o qual nos encontramos numa
situação de total incomunicabilidade com os outros, enclausurados no âmbito da própria
consciência. Em confronto com este mundo de representações, Frege propõe-se defender
a possibilidade de escapar a esta "prisão" da privacidade individual, através da
viabilidade de uma relação directa com o mundo do pensamento, objectivo, público,
comunicável porque partilhável por várias mentes. Esta relação é precisamente a
apreensão ou captação (das Fassen) do pensamento: "Uma pessoa vê uma coisa, tem uma
ideia, capta ou pensa um pensamento. Quando capta ou pensa um pensamento não o cria,
mas apenas se dá uma certa relação com algo que já existia - uma relação diferente da de
ver ou ter uma ideia"8. Sobre esta relação que se dá com o pensamento, esta apreensão,
Frege não nos esclarece muito. Trata-se de uma forma de acesso diferente da de ver ou
sentir, e a esta captação deverá corresponder uma capacidade mental especial, o poder de
pensar, que não é um poder de criar ou produzir pensamentos, mas apenas de os captar.
Este processo de apreensão do pensamento é, sem dúvida um tanto "misterioso" e Frege
Frege: An Introduction to His Philosophyi; cfr também Dummett, M. The Interpretation of Frege's
Philosophy, pp. 495-557.
7
Os Grundlagen foram publicados em 1884, antes portanto da descoberta de Russell da antinomia do
programa logicista de Frege, tal como se apresenta nos Grundgesetze der Arithmetik (1893 I vol., 1903, II
vol.). O ensaio "Der Gedanke" é publicado em 1918. Apesar do impacto que a carta de Russell com a
revelação da antinomia que tornava inconsistente o sistema, teve em Frege, a noção de "objectivo" a que
aqui nos reportamos mantem-se no pensamento de Frege, se bem que neste último escrito o seu
enquadramento seja outro.
5
não tem a pretensão de a explicitar: "Basta para nós que podemos captar pensamentos e
reconhecê-los como verdadeiros; como é que isto se dá, é uma questão de todo o direito.
É certamente suficiente para o químico que ele pode ver, cheirar e saborear; não é da sua
conta investigar como é que se dão estes processos… Por isso não nos preocuparemos
com a questão de saber como é que de facto pensamos ou formamos as nossas
convicções"9.
O que Frege pretende salientar é que, para escapar ao colapso num idealismo
subjectivista a que nos conduziria a hipótese de todo o nosso conhecimento assentar nas
ideias ou representações do mundo da consciência, é necessário compreender que se dá
um elemento não sensível, uma outra fonte de conhecimento que, não só é condição para
que as impressões sensíveis sejam reveladores do mundo real, como é o único modo de
sair do nosso mundo interno. A argumentação fregeana pretende simultaneamente
mostrar que admitir este modo de relação com o pensamento é indispensável para que se
dê conhecimento, e refutar que a percepção sensível seja a fonte do conhecimento de tudo
o que não pertence ao mundo interno. A percepção é constituída por impressões sensíveis
que formam parte do nosso mundo interno. Mas Frege sustenta que a impressão sensível,
por si só, não nos revela nada do mundo externo. Pode haver mesmo alguém que tenha
apenas impressões sensíveis sem ver ou captar as coisas. Ter impressões sensíveis, afirma
Frege não é o mesmo que ver coisas. É óbvio que ver uma coisa depende das impressões
visuais fisicamente impressas nas retinas dos dois olhos, nas quais se forma realmente,
fisicamente, uma imagem particular. Mas qualquer outra pessoa que veja o mesmo
objecto terá as suas imagens visuais, que diferem das minhas. As impressões sensíveis
variam de indivíduo para indivíduo, embora nos movamos no mesmo mundo externo.
Além destas imagens sensíveis, é necessário algo de não-sensível para ver as coisas: é
esse algo de não-sensível que nos abre para o mundo externo; sem esse algo, cada
indivíduo ficaria encerrado no seu próprio mundo interno. Trata-se de um factor
determinante, tanto para distinguir o mundo externo, próprio das coisas sensíveis, como o
mundo do que não é perceptível pelos sentidos. A necessidade de admitir a existência
desse algo não-sensível para explicar o próprio conhecimento sensitivo é, para Frege, o
8
9
Collected Papers, p.363.
Posthumous Writings, p. 145.
6
argumento mais forte para provar a existência do pensamento e a nossa capacidade de o
captar, de entrar em relação com o pensamento. Com certas ressonâncias
wittgensteininanas, poderíamos ver nesta argumentação de Frege uma analogia com o
argumento contra a linguagem privada e a refutação do solipsismo: é a possibilidade de
pensar que rompe com a «falsa prisão» do mundo interno e privado, o mundo das
próprias representações e sensações. Em sentido estrito, levando a sério o argumento de
Frege, se não houvesse pensamento e capacidade de pensar, nem sequer esse mundo
privado, interno, seria inteligível para nós próprios.
A conclusão do raciocínio de Frege pode formular-se do seguinte modo: não há
qualquer conhecimento sem a apreensão de um pensamento e não temos qualquer
conhecimento do que é real e acessível à percepção sensível, sem ter acesso ao domínio
do pensamento - domínio que Frege designa de 3º reino. O papel epistemológico que
desempenha esta noção do 3º reino pode agora ser repensado a partir da distinção remota
traçada já nos Grundlagen, entre o que é objectivo e o que é real. No já citado § 26, Frege
esclarece que o real é um subconjunto do que é objectivo; o que é real é objectivo, mas
nem tudo o que é objectivo é real - este "domínio do que é objectivo, mas não real"
corresponde ao 3º reino a que Frege se refere em "Der Gedanke". Com a introdução deste
domínio do que é objectivo, mas não real, Frege pretende refutar o empirismo e a sua
teoria do conhecimento assente na percepção sensível; a argumentação de Frege
concentra-se em mostrar que mesmo esta forma de conhecimento perceptivo exige algo
de "não-sensível", algo de objectivo mas não real.
Enquadrando a aparentemente estranha noção do 3º reino na argumentação de
Frege contra o empirismo e o psicologismo, compreende-se bem que a metáfora fregeana
constitui um recurso retórico para sublinhar bem que só pode dar-se conhecimento
verdadeiramente, e acesso ao que é real, pela via do pensamento, a única via para emergir
do completamente subjectivo; só uma concepção do conhecer como uma actividade que
não cria nem constrói o que é conhecido - permaneceria assim dentro da esfera do interno
ao próprio sujeito - mas apreende, capta o que está já aí. Sendo assim, a insistência
fregeana no reconhecimento de um domínio do objectivo não real, um 3º reino - nem
meramente interno, privado, nem identificado com o mundo de objectos físicos reais tem sobretudo um significado epistemológico e não necessariamente implicações
7
ontológicas. O próprio Frege reconhecia que atribuir aos pensamentos a independência
em relação ao acto de pensar ou de apreender o pensamento se prestaria a mal-entendidos
que deslizariam facilmente para extrapolações ontológicas que não estariam
provavelmente na mente do próprio Frege. Por isso mesmo esclarece que "o que é
independente dos nossos processos mentais, não tem que ser considerado espacial ou
material ou real. Se não tivéssemos isto em conta, facilmente deslizaríamos para uma
espécie de mitologia" 10. A comparação que faz dos pensamentos com os objectos físicos
tem apenas a intenção de sublinhar o carácter independente da nossa própria vida interna
que os primeiros têm em comum com os segundos: tal como os objectos físicos que estão
aí, no mundo externo, não dependem para nada do meu próprio mundo interno ou da
minha consciência, os pensamentos têm também uma certa forma de independência, não
são produto nem criação nem construção da minha consciência nem do meu processo
interno de pensar, são simplesmente captados apreendidos11. A expressão favorita
reiteradamente empregue por Frege para traduzir o pensar é "captar, apreender um
pensamento", e utiliza-a de modo metafórico, sem mais explicações que revelem a
natureza do nosso acesso ao que é objectivo mas não real. Não explica, portanto em que é
que pensar um pensamento difere de perceber um objecto.
Apreender um pensamento pressupõe alguém que o apreenda, alguém que pense;
no entanto Frege insiste que o sujeito que pensa é dono do pensar, mas não do
pensamento pensado. Como é isto possível? Alguém ser dono do pensar mas não do
pensado? O que é então pensar? Renasce a pergunta. Recorrendo à metáfora do ver,
captar, apreender, o que é visto pela visão é realmente ser visto. Não pode ser visto antes
de ser visto. O pensado, antes de ser pensado, como pode ser pensamento, como pode
estar já aí para ser apreendido? Em relação aos pensamentos captados por um ou outro
10
Cfr Carl W. - Frege's Theory of Sense and Reference, p. 87. O texto citado é dos Nachgelassene, pp. 149150.
11
Cfr a argumentação de Peirce em The Logic of 1873, na qual se considera que nem sequer tem sentido
falar de algo completamente independente do pensamento, porque isso equivaleria a pensar algo totalmente
independente do pensamento, ou seja que o pensamento se excluísse a si mesmo, o que se torna autorefutatório: "But if it be asked us, wether some realities do not exist, which are entirely independent of
thought; I would in turn ask, what is meant by such an expression and what can be meant by it. What idea
can be attached to that of which there is no idea? For if there be an idea of such a reality, it is the object of
that idea of which we are speaking, and which is no independent of thought. It is clear that it is quite
beyond the power of the mind to have an idea of something entirely independent of thought - it would have
to extract itself from itself for that purpose; and since there is no such idea there is no meaning in the
expression" Collected Papers, tomo II, 345, p. 211.
8
sujeito, Frege levanta a questão retórica: "O que seria um pensamento para mim se não
fosse nunca captado por mim?"12 A resposta parece ser que um pensamento é algo para
mim, se for apreendido por mim. Se identificarmos pensamentos conscientes com
pensamentos que são algo para mim, parece razoável pressupor que a única via de captar
um pensamento consiste em exprimi-lo numa proposição numa linguagem que eu
compreenda. Sendo assim, só podemos pensar recorrendo à linguagem.
A relação do pensamento com a linguagem é recorrentemente explorada nos
escritos de Frege. Mas, dado o estatuto do pensamento, até que ponto é importante a
expressão linguística para pensar? Se o sujeito vê, capta, apreende o pensamento porque
necessita da sua expressão linguística? Frege parece dar a seguinte resposta: "Sabemos
que podemos ter várias expressões para o mesmo pensamento. A conexão de um
pensamento com uma frase particular não é necessária, mas que um pensamento do qual
temos consciência esteja conectado com uma ou outra frase é necessário para nós, seres
humanos"13. Este facto diz respeito à nossa capacidade de apreender um pensamento e
não ao próprio pensamento: "Não há contradição em supor que existam seres que possam
captar os mesmos pensamentos como nós captamos sem necessidade de os revestir numa
forma que possam ser percebidos pelos sentidos. Mas no entanto, para nós, homens existe
esta necessidade"14.
Trata-se da própria condição do modo humano de conhecer e de pensar, que
obriga necessariamente a recorrer também sempre à componente sensível, perceptível
que reaparece agora na forma de linguagem como mediação inevitável para o pensar. Os
pensamentos serão captados, apreendidos, mas ao serem pensados por um ser da
condição humana, são também articulados em linguagem, de contrário permaneceriam
puros pensamentos inexpressos, silenciosos, mudos perante a nossa própria capacidade de
pensar. Frege é bem explícito: não é o pensamento (Gedanke) enquanto pensamento que
carece em absoluto da sua expressão linguística; é a capacidade humana de pensar, com a
qual captamos o pensamento, que para pensar necessita de articular o pensamento numa
linguagem. Mas de facto, o pensamento está contingentemente conectado com as suas
próprias expressões características, em especial com a linguagem. Esta é, no entanto, a
12
Der Ged. P. 76.
Nachgelassene, 288.
14
Ibidem, 288.
13
9
poiesis primordial, a actividade genuinamente mais humana, e confere uma dimensão
fáctica ao pensamento: é uma poiesis essencial e internamente vinculada à praxis do
pensamento que, sem identificar-se plenamente com ela, lhe dá vida, penetrando-a até ao
fundo. Daí o carácter intrinsecamente inteligível da linguagem, que permite a
compreensão de um livro poeirento enterrado numa biblioteca, uma antiga inscrição
caldeia ou a frase balbuciada por qualquer criança. É possível que se dê pensamento não
expresso em linguagem, o que não se poderá dar é linguagem humana que não seja
também pensamento15.
A reiterada pergunta - o que é pensar? - surge no horizonte como uma das
questões "misteriosas" ou um enigma que recorrentemente persegue toda a investigação
filosófica. Entre a actividade do sujeito pensante e o mundo de pensamentos que podem
ser por este captados há um hiato por suturar. Entre o pensamento linguisticamente
expresso, tornado perceptível, revestido com a roupagem da palavra, e o pensamento
inexpresso, parece surgir uma fronteira que faz lembrar a distinção wittgensteiniana entre
o dizer e o mostrar. Como uma auréola que rodeia toda a coisa pensada e dita, há algo
que sugere o "místico", algo que se mostra e por isso se capta, mas o captar significa
15
Cfr Llano, A. - Metafísica y Lenguaje, p. 108. De qualquer modo, o “realismo” de Frege quanto ao
pensamento parece excessivo: fica por justificar toda a epistemologia que dê conta do modo e do porquê
captamos nós esses pensamentos. Não existe, em Frege, uma teoria causal que explique a captação de um
pensamento, pois não é a partir do mundo dos objectos que se constitui o mundo dos pensamentos. Estes
são captados, aprendidos por uma certa visão intelectual, mas não há nada que prove ou explique esta
forma de conhecimento ou de acesso do sujeito ao pensamento. As consequências para uma teoria do
sentido e da comunicação são também bastante problemáticas: existindo os pensamentos antes e
independentemente de serem aprendidos ou expressos por alguém, Frege é levado a considerar as relações
entre uma pessoa e um pensamento, e entre um pensamento e a linguagem que o exprime, como arbitrárias
e contingentes. Como é possível explicar assim a comunicação de um pensamento? Não é possível sequer
saber se uma pessoa está a exprimir o mesmo pensamento, e não há qualquer acesso à apreensão que os
outros têm de um pensamento, apenas aos signos que emprega. Perde-se assim qualquer justificação para
falar de uma linguagem intersubjectiva, comum, o que conduziria a um solipsismo linguístico. Um
solipsismo devastador, que atinge a própria possibilidade de uma pessoa poder identificar um pensamento
seu como sendo o mesmo , independentemente da linguagem na qual o exprime. Wittgenstein dá conta
desta situação paradoxal e frustrante: “Se dizes: ‘Como posso eu saber o que ele quer dizer se vejo apenas
os signos que apresenta?’, então direi: ‘Como pode ele saber o que quer dizer, se ele próprio não tem nada a
não ser os signos?’” (Philosophical Grammar, 40). É evidente que estas ilações estão muito longe do
pensamento de Frege, que defende sempre a noção de um mundo “objectivo não real”, ao qual pertencem
precisamente todos os juízos verdadeiros, que podem ser apreendidos por qualquer mente humana. A
dificuldade ou mesmo a falta de uma clarificação de como se dá essa apreensão é que põe em causa a
consistência desta teoria de Frege e suscita inúmeras questões.
10
também contornar, traçar fronteiras, aprisionar, estabelecer limites. O limite, neste caso
não significa negatividade, mas é precisamente o que dá a forma.
Frege desencadeia problemas que ultrapassam o próprio âmbito do seu
pensamento e para os quais não só não apresenta soluções, como procura contorná-los,
remetendo-se para o peculiar estilo analítico que desde sempre adoptou. O problema que
sempre o ocupou foi o da fundamentação da aritmética, que, no entanto o conduziu
irremediavelmente a outras questões filosóficas que estão formuladas, ou pelo menos
implícitas, na obra de Frege e constituem parte da herança que legou à posteridade.
Os objectivos do pensamento de Frege pertencem ao domínio da lógica e da
matemática. E o seu âmbito foi claramente delineado: “Nem a lógica nem a matemática
têm a tarefa de investigar as mentes e os conteúdos da consciência pertencentes aos
homens individuais. A sua tarefa poderia talvez exprimir-se melhor como a investigação
da mente, não das mentes.”16 Uma filosofia da mente depara-se com a questão radical:
como pensa a mente? Captando, apreendendo, vendo os pensamentos, mas sem que o seu
acto de pensar alcance jamais uma total identificação com o próprio pensamento. ( Nem
se poderia mesmo falar de acto de pensar, uma vez que se trata de mente em sentido
genérico). Só retocando muito o discurso de Frege se poderia atribuir-lhe uma
perspectiva que integrasse a noção de intencionalidade – identidade intencional entre o
acto e o seu conteúdo: o sentido e o pensamento, como “modos de dar-se” são doações
sempre inacabadas, parciais, como um “dar-se” que no mesmo instante se retrai. O
pensamento “dá-se” na linguagem, incarna na proposição, constituindo o seu sentido, mas
sempre no limite – nesse limite que, embora lhe dê a forma, o deixa também sempre
intocável.
16
Collected Papers on Mathematics, Logic and Philosophy pp. 368-369.
11
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