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Escrita de si como performance

2017

This text aims to discuss autofiction as a concept specific to contemporary literature. In it, I consider autofiction as an ambivalent discourse: participating in the narcissistic culture of contemporary mass media, it simultaneously continues the structuralist critique of the subject and twentieth-century philosophy’s critique of representation. Thus, it shares aspects of performance theory from within gender studies (for example, in the work of Judith Butler), where the subject is thought as a denaturalization of the self, as well as with performance art. From this perspective, autofiction is one of the forms that literature takes on after the paradigm of modern literature is in decline.

10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 11 íntimas e multipercepções que mostram um distanciamento da escrita quanto às convenções narrativas. A voz feminina em suas múltiplas enunciações artísticas e críticas está focalizada no artigo “Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro”, de Maria de Lourdes Netto Simões, sobre a obra da poetisa de Itabuna, e sua relação com a identidade cultural da Bahia. Por fim, as reflexões filosóficas sobre a memória como fundamento da identidade subjetiva é abordada no artigo “A escritura da memória como fundamento identitário do eu”, de Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz, que contém um relato memorial, enquanto Denise Campos e Silva Kuhn, em “Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s The Dream Play: expressionism in the Theatre”, elegem a dramaturgia de Tennessee Williams e August Strindberg para estudar a criação teatral como manifestação da visão subjetiva de seus autores. Esse conjunto de artigos, como sugerimos, é uma mostra instigante de enfoques possíveis de “escritas do eu”. Agradecemos a todos que colaboraram com este número da Revista Brasileira de Literatura Comparada e esperamos que a diversidade aqui apresentada, além de confirmar a riqueza do debate crítico em nosso âmbito de atuação, sirva de estímulo para novos questionamentos e avaliações. Escrita de si como performance Diana Klinger* RESUMO: O texto se propõe discutir o conceito de autoficção como um conceito específico da narrativa contemporânea. A autoficção é pensada como um discurso ambivalente: ela faz parte da cultura do narcisismo da sociedade midiática contemporânea, mas se coloca numa linha de continuidade com a crítica estruturalista do sujeito e com a crítica filosófica da representação. Assim, ela tem pontos de contato tanto com a teoria da “performance de gênero” (por exemplo, na obra de Judith Butler) em que a subjetividade é pensada como “desnaturalização” do eu, quanto com a arte cênica da performance. Dessa perspectiva, a autoficção seria uma das formas que assumem a literatura depois do fim do paradigma moderno das letras. PALAVRAS-CHAVE: Autoficção, performance, representação, crí- tica do sujeito. ABSTRACT: This text aims to discuss autofiction as a concept specific to contemporary literature. In it, I consider autofiction as an ambivalent discourse: participating in the narcissistic culture of contemporary mass media, it simultaneously continues the structuralist critique of the subject and twentieth-century philosophy’s critique of representation. Thus, it shares aspects of performance theory from within gender studies (for example, in the work of Judith Butler), where the subject is thought as a denaturalization of the self, as well as with performance art. From this perspective, autofiction is one of the forms that literature takes on after the paradigm of modern literature is in decline. Orna Messer Levin Pedro Brum * Pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Faperj. KEYWORDS: Autofiction, performance, representation, critique of the subject. Uma das questões que atravessam a prosa literária atual na América Latina é a presença problemática da pri- 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 meira pessoa autobiográfica. Ela aparece, por exemplo, nos dois últimos romances de João Gilberto Noll (2002; 2004), Berkeley em Bellagio e Lord que narram a experiência do escritor na Europa, fazendo que seja difícil descolar a figura do narrador da figura do autor. Também se coloca essa questão na obra de Silviano Santiago (1985; 1995): em Stella Manhattan e em Viagem ao México. Silviano cria – mediante a intromissão de um narrador em primeira pessoa que expõe os bastidores da escrita – a ilusão de uma contemporaneidade entre escritura e experiência. A questão da relação do eu ficci onal com o sujeito autoral já estava em pauta, de maneira alegórica, no romance Em liberdade (Santiago, 1981), e retornará nos contos de Histórias mal contadas (Santiago, 2005), e na forma de uma “autobiografia falsa” em O falso mentiroso (Santiago, 2004). Na literatura hispano-americana, a questão aparece sintomaticamente em inúmeras narrativas recentes: por exemplo, na obra inteira do colombiano Fernando Vallejo, assim como na do cubano Pedro Juan Gutierrez, estruturadas em ambos como sagas autobiográficas, nas quais se mantém, respectivamente, o mesmo narrador em todos os romances que relatam uma e outra vez as mesmas histórias pessoais e familiares, sob diferentes pontos de vista. Esse jogo com o autobiográfico aparece também nas novelas do argentino Daniel Link (2004; 2006) La ansiedad e Montserrat, na novela Como me hice monja, de Cesar Aira (1993), em El juego del alfiler, do colombiano Darío Jaramillo Agudelo (2002), nos textos do mexicano Mario Bellatín (2005), por exemplo Lecciones para uma liebre muerta, ou nos romances do uruguaio Mario Levrero (1996; 2005), El discurso vacío e La novela luminosa, romance que inclui o diário de sua própria escrita. Trata-se de escritores, como apontou o crítico Reinaldo Laddaga (2007, p.14), que “têm publicado livros nos quais se imaginam [...] figuras de artistas que são menos os artífices de construções densas de linguagem ou os criadores de histórias extraordinárias, do que produtores de ‘espetáculos de realidade’, dos quais é difícil dizer”, continua Laddaga, “se Escrita de si como performance 13 são naturais ou artificiais, simulados ou reais”. Essas obras se situam além do paradigma moderno das letras, baseado em narrativas autônomas em relação com a figura do autor e em uma busca de uma linguagem literária claramente diferenciada da cultura de massas. A autoficção abrange um amplo leque de possibilidades: em alguns casos (como o de César Aira ou Marcelo Mirisola), o autor coloca o seu nome no protagonista de um relato disparatado ou inverossímil. Em outros casos, os relatos têm índices referenciais mais concretos, de maior carga biográfica (João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Daniel Link). Por exemplo, Montserrat é uma novela construída a partir de fragmentos, a maioria deles publicados primeiro no blog de Daniel Link. Na novela aparecem muitos personagens conhecidos do entorno do escritor e, no entanto, o livro começa com uma aclaração de que “os fatos e personagens são ficcionais e qualquer semelhança com a realidade é pura homonímia ou coincidência.” Já Fernando Vallejo faz precisamente o contrário, quando afirma que nos seus livros ele só conta a verdade, e nem sequer muda os nomes dos personagens. O narrador assume, cinicamente, todos os clichês do “politicamente incorreto” e, para tanto, a primeira pessoa imprime ao texto uma carga política muito forte. Outro caso interessante, como “gesto literário”, é o de uma narrativa que “cria um personagem” que é o autor: por exemplo, “Cucurto”, personagem criado nos textos de Santiago Veja, ou Pedro Lemebel, em que os textos são parte da performance do autor. Escrita de si como “sintoma” da época atual. O fato de muitos romances contemporâneos se voltarem para a própria experiência do autor não parece destoar de uma sociedade marcada pela exaltação do sujeito. Uma sociedade na qual a mídia tem insistido na visibilidade do privado, na espetacularização da intimidade e na exploração da lógica da celebridade. Uma cultura midiática que manifesta uma ênfase tal do autobiográfico, que leva a pensar que a televisão se tornou um substituto secular do 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico. Assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias, das biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aos inúmeros registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas, confissões, reality shows; ao surto dos blogs na internet, ao auge de autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas ciências sociais (a chamada antropologia pósmoderna), a exercícios de “ego-história”, ao uso dos testemunhos e dos “relatos de vida” na investigação social, e à narração auto-referente nas discussões teóricas e epistemológicas (Arfuch, 2005, p.51). O que considero, porém, mais interessante da boa narrativa contemporânea é que ela não é apenas um reflexo da cultura midiática, mas se situa também no contexto discursivo da crítica filosófica do sujeito que se produziu ao longo do século XX. Essa crítica começa com a desconstrução da categoria do sujeito cartesiano operada por Nietzsche, que implica assumir os efeitos da morte de Deus e do homem, ou seja, da figura construída tanto pela tradição da filosofia moderna, fundada no cogito cartesiano, quanto pela tradição cristã na qual interioridade, renúncia e consciência de si seriam seus eixos fundantes. A crítica nietzschiana do sujeito implica também a desconstrução da categoria a ele associada de verdade. Em A genealogia da moral, Nietzsche (2004, p.36) argumenta que na origem da moral se encontra o ressentimento contra a vontade de força, de dominação. Mas seria um erro da razão entender que o atuar é determinado por um atuante, um “sujeito”. “Não existe tal substrato; não existe ser por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – e a ação é tudo”. E mais adiante conclui que, “o sujeito foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e seu ser assim como mérito”. Escrita de si como performance 15 Foi o estruturalismo que deu continuidade à crítica do sujeito em meados do século XX. O estruturalismo estabeleceu um paradigma transdisciplinar cujo eixo seria uma concepção lógico-formal da linguagem. Assim, na sua reformulação do conceito de inconsciente freudiano, J. Lacan (1985) afirma que ele está estruturado como uma linguagem e que nele existem relações determinadas: é a estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. Seguindo o mesmo raciocínio de Lacan, também R. Barthes (1977, p.85) pensa o sujeito como signo vazio: “o sujeito é apenas um efeito da linguagem”. O Foucault dos anos 1960 também toma esse caminho. Em As palavras e as coisas, Foucault (1966, p.398) fala aliás do apagamento do homem “como na beira do mar, um rosto de areia”. Em seu texto “O que é um autor?”, Foucault (1994) faz uma análise do conceito de autor centrando-se na relação do texto com o sujeito da escrita; quer dizer, no modo como o texto aponta para essa figura que – agora só aparentemente – é exterior e anterior a ele. O ensaio é uma declaração da morte do autor que, como ponto de partida toma as palavras do personagem de Beckett em Esperando Godot: “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”. Nessa indiferença, Foucault reconhece um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea; éticos porque se trata de um princípio que não marca a escritura como resultado, mas que a domina como prática. Na escritura, diz Foucault (1994, p.793), “não se trata da sujeição de um sujeito a uma linguagem, trata-se da abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não deixa de desaparecer”. Foucault percebe uma passagem de uma relação da escrita com a imortalidade (por exemplo, a epopéia grega estava destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e nas Mil e uma noite Sherazade conta uma história a cada noite para não morrer) para uma relação da escrita com a morte. Diz Foucault (1994, p. 793): “a obra que tinha o dever de conduzir à imortalidade do herói tem recebido agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor”. 16 Escrita de si como performance Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Fala-se da “morte do autor”, porque têm desaparecido os caracteres individuais do sujeito escritor, de maneira que “a marca do escritor já não é mais que a singularidade de sua ausência”. Esse é o espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriu ao se perguntar, não o que eram o bem e o mal em si mesmos, mas o que era designado como tal e, então, quem é que sustenta esses conceitos. Segundo Foucault (1966, p.317), à pergunta de Nietzsche – “quem fala?” – Mallarmé responde que quem fala, “em sua solidão, em sua frágil vibração, em seu nada, fala a palavra mesma”, em seu “ser enigmático e precário”. Mallarmé – diz Foucault – “não pára de apagar-se a si mesmo de sua própria linguagem” (ibidem). Adverte, porém, Foucault que não é tão simples descartar a categoria de autor, porque o próprio conceito de obra e a unidade que essa designa dependem daquela categoria. Por isso Foucault busca localizar o espaço que ficou vazio com o desaparecimento do autor (“um acontecimento que não cessa desde Mallarmé”), e rastrear as funções que esse desaparecimento faz aparecer. De fato, para Foucault, o autor existe como função autor: um nome de autor não é simplesmente um elemento num discurso, mas ele exerce um certo papel em relação aos discursos, assegura uma função classificadora, manifesta o acontecimento de um certo conjunto de discursos e se refere ao estatuto desse discurso no interior de uma sociedade e no interior de uma cultura. Nem todos os discursos possuem uma função autor, mas em nossos dias, essa função existe plenamente nas obras literárias. Para a crítica literária moderna, o autor é quem permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos numa obra como suas transformações, suas deformações, suas modificações diversas. O autor é também o princípio de uma certa unidade de escritura – é preciso que todas as diferenças se reduzam ao mínimo graças a princípios de evolução, de amadurecimento ou de influência. Finalmente, o autor é um certo “lar de expressão” que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta tanto e com o mesmo valor em obras, em 1 Segundo Josefina Ludmer, esses gêneros costumam ser associados pela crítica ao feminino e, portanto, sofrem uma dupla marginalização. 17 rascunhos, em cartas, em fragmentos etc. Quer dizer que, para Foucault, o vazio deixado pela “morte do autor” é preenchido pela categoria “função autor” que se constrói em diálogo com a obra. Com o intuito de evitar a sacralização burguesa do nome do autor, a teoria literária devedora do formalismo russo ou do estruturalismo “passa a conceber a literatura como um vasto empreendimento anônimo e como uma propriedade pública, em que escrever e ler são percursos indistintos, autor e leitor papéis intercambiáveis, nesse universo onde tudo é escrita” (Melo Miranda, 1992, p.93). A crítica que sustenta essa acepção da literatura desconfia de qualquer relação exterior ao texto, marginalizando e considerando “gêneros menores” por serem gêneros da realidade, ou seja, textos fronteiriços entre o literário e o não-literário, a toda uma série de discursos relacionados com o eu que escreve: crônicas, memórias, confissões, cartas, diários, auto-retratos (Ludmer, 1984, p.47-54).1 No clássico ensaio “A morte do autor”, Roland Barthes se pergunta, a propósito de uma passagem de Sarrasine, de Balzac: “Quem fala assim? É o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado por sua experiência pessoal de uma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia romântica?”. Barthes (1988, p.65) conclui que é impossível responder a essas perguntas porque “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo, aonde foge nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”. Será, no entanto, que a destruição “da identidade do corpo que escreve” não é menos um produto da “escritura” do que de uma concepção modernista da escritura? Não será que ela não depende de uma perspectiva da autonomia da arte, segundo a qual “a realidade externa é irrelevante, pois a arte cria sua própria realidade” (cf. Hutcheon, 1988, p.146)? Sendo assim, a escritura como destruição 18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 da voz e do corpo que escreve seria um conceito datado, e talvez historicamente ultrapassado. Por isso – como assinala Beatriz Sarlo (1995, p.11) –, se nós, os leitores, ainda nos interessamos pelos escritores é porque “não fomos convencidos, nem pela teoria nem por nossa experiência, de que a ficção seja, sempre e antes de tudo, um apagamento completo da vida”. A partir disso, uma pergunta se torna inevitável: como pensar o sujeito da escrita depois da crítica estruturalista do sujeito, de sua descentralização? O “retorno do autor” – a auto-referência da primeira pessoa autobiográfica na narrativa contemporânea – talvez seja uma forma de questionamento do recalque modernista do sujeito. “Retorno” remeteria assim não apenas ao devir temporal, mas especialmente ao sentido freudiano de Wiederkehr, de reaparição do recalcado. Parto, então, da hipótese de que essas narrativas contemporâneas respondem ao mesmo tempo e paradoxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito. Há dois anos, na pesquisa que concluiu no meu livro Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica (Klinger, 2007), considerava que o conceito de “autoficção” (posto em circulação em 1971 pelo escritor francês Serge Doubrovsky) podia dar conta desse paradoxo. No entanto, tenho percebido que em muitas das discussões acadêmicas e jornalísticas esse conceito tem adquirido uma amplitude tal que parece abranger desde Infância¸ de Graciliano Ramos, até os blogs pessoais. Por isso, se acreditamos – como acredito – que alguma coisa tem mudado na literatura recente, torna-se importante especificar a noção de autoficção como uma característica própria da narrativa contemporânea, que pode ter pontos de contatos, mas se diferencia de outras narrativas anteriores. Para isso, é necessário chegar numa definição precisa do que consideramos “autoficção”. Parto da hipótese de que a autoficção se inscreve no coração do paradoxo deste final de século XX: entre um desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da im- Escrita de si como performance 19 possibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita. Assim, a autoficção se aproxima do conceito de performance, que, como espero mostrar, também implica uma desnaturalização do sujeito. O termo inglês “performance” significa “atuação”,“desempenho”, “rendimento”, mas começou a assumir significados mais específicos nas artes e nas ciências humanas a partir dos anos 1950 como idéia capaz de superar a dicotomia arte/vida. Do ponto de vista da antropologia, uma performance é “toda atividade feita por um indivíduo ou grupo na presença de e para outro indivíduo ou grupo” (Schechner, 1988, p.30). Assim, para Victor Turner (apud Taylor, 2003, p.19), as performances revelam o caráter profundo, genuíno e individual de uma cultura. Pelo contrário, o performático significa, na teoria de gênero da crítica norte-americana Judith Butler, não o “real, genuíno”, mas exatamente o oposto: a artificialidade, a encenação. A argumentação de Butler (2003, p.197), ainda que voltada para uma gender theory, pode ser muito proveitosa para pensar o conceito de autoficção. Para Butler, o gênero é uma construção performática, quer dizer, uma construção cultural imitativa e contingente. O gênero é “um estilo corporal, um ato, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde performativo sugere uma construção dramática e contingente de sentido”. Butler argumenta que a noção de gênero como essência interior de um sujeito e como a garantia de identidade é uma ilusão mantida para os propósitos da regulação da sexualidade dentro do marco obrigatório da heterossexualidade reprodutiva. Assim entendido, o gênero é considerado uma ficção regulatória e encarna uma performatividade por meio da repetição de normas que dissimulam suas convenções. A performance dramatiza o mecanismo cultural de sua unidade fabricada. Butler analisa o caso da paródia do gênero que realiza o travesti e diz que essa paródia não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitariam. “A paródia que se faz é da própria idéia de um original” (ibidem, p.199). 20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 A perspectiva de Butler interessa precisamente pela desconstrução do mito de original, pois ela argumenta que a performance de gênero é sempre cópia da cópia, sem original. Da mesma maneira, a autoficção também não pressupõe a existência de uma sujeito prévio, “um modelo”, que o texto pode copiar ou trair, como no caso da autobiografia. Não existe original e cópia, apenas construção simultânea (no texto e na vida) de uma figura teatral – um personagem – que é o autor. Para se compreender essa relação entre escrita e performance é preciso levar em consideração a crítica à noção de representação da episteme moderna, que se produz nos campos mais diversos, da estética à metafísica, passando pela política. Vou limitar minha argumentação à critica de Derrida, que considero bastante significativa. Segundo Derrida (1996, p.78ss.) apesar da força dessa corrente, a autoridade da representação se impõe ao nosso pensamento mediante uma história densa e fortemente estratificada. Com efeito, toda epistemologia moderna está fundada sobre a noção de representação. O antropólogo Paul Rabinow (1986, p.234) define assim o conhecimento: “conhecer é representar adequadamente o que está fora da mente”. A partir dessas premissas, Derrida se pergunta: o que é a representação em si mesma? Qual é o eidos da representação? E diz que, antes de saber como e o que traduzir por representação, devemos nos perguntar pelos conceitos de tradução e de linguagem, conceitos dominados freqüentemente pelo conceito de representação, seja interlingüística, intralingüística ou inter-semiótica (entre linguagens discursivas e não-discursivas) na arte, por exemplo. Em cada caso nos encontramos com pressuposto, ou o desejo, de uma identidade de sentido invariável, que regula todas as correspondências. Esse desejo seria o de uma linguagem representativa, linguagem que representaria um sentido, um objeto, um referente, que seriam anteriores e exteriores a essa linguagem. Sob a diversidade das palavras de línguas diferentes, sob a diversidade dos usos da mesma palavra, e sob a diversidade dos contextos e dos Escrita de si como performance 21 sistemas sintáticos, o mesmo sentido ou o mesmo referente, o mesmo conteúdo representativo conservaria sua identidade irredutível. O representado seria uma presencia e não uma representação. A crítica a essa noção de linguagem representativa não pode evadir o pensamento de Heidegger. Segundo o filósofo alemão, diz Derrida, no mundo grego não havia uma relação com o ente como uma imagem concebida como representação (Bild): o mundo era pura presença (Anwesen). É com o platonismo que o mundo se anuncia como Bild; o platonismo prepara, destina, envia o mundo da representação. É na Modernidade que o ente se determina como objeto trazido perante o homem, disponível para o sujeito-homem que teria dele uma representação. A representação chegou a ser o modelo de todo pensamento do sujeito, de todo o que lhe sucede a esse e o modifica em sua relação com o objeto. O sujeito, diz Derrida, não se define apenas como o lugar e a localização de suas representações: ele mesmo, como sujeito, fica aprendido como um representante. O homem, determinado em primeiro termo como sujeito, se interpreta ao mesmo tempo na estrutura da representação. O sujeito, segundo Lacan, é aquilo que o significante representa para outro significante. Estruturado pela representação, como alguém que tem representações, é também sujeito representante, alguém que representa alguma outra coisa. Quando o homem determina tudo o que existe como representável, ele mesmo se põe em cena, no círculo do representável, colocando-se a si mesmo como a cena da representação, cena na qual o ente deve se “re-apresentar”, ou seja apresentar novamente. Assim se remete da representação em relação com o objeto à representação como delegação, substituição de sujeitos identificáveis uns com os outros. Derrida formula a desconstrução da noção de representação a partir da noção de envio (Geschick). Um envio não constitui uma unidade, e não tem nada que o preceda. Não emite senão remetendo: “tudo começa no remeter, ou seja, não começa”. Essas pegadas, esses rastros, são re- 22 Escrita de si como performance Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 missões a um passado sem origem do sentido, remissões que não têm estrutura de representantes nem de representações, de significantes, nem de signos, nem de metáforas etc. As remissões do outro ao outro, as pegadas de différance, não são condições originárias e transcendentais. São um envio, um destino (Geschick) que “não está nunca seguro de se juntar, de se identificar, de se determinar” (Derrida, 1996, p.78). Da mesma forma se pode pensar a autoficção como “envio”, remissão sem origem, sem substrato transcendente. Então, é a partir da crítica à noção de representação e de sujeito que se pode formular um conceito de autoficção que seja específico da literatura contemporânea. O sujeito que “retorna” nessa nova prática de escritura em primeira pessoa não é mais aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetória da vida estoura em benefício de uma rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmar que o sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere Barthes,2 mas que a ficção abre um espaço de exploração que excede o sujeito biográfico. Na autoficção, pouco interessa a relação do relato com uma suposta “verdade” prévia a ele, que o texto viria saciar, pois como aponta Cristopher Lasch (1983, p.42), “o autor hoje fala com sua própria voz mas avisa ao leitor que não deve confiar em sua versão da verdade”. Confundindo as noções de verdade e ilusão, o autor destrói a capacidade do leitor de “cessar de descrer”. Assim, o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um “mito do escritor”. É preciso dizer algumas palavras do que entendemos aqui por mito. Em Mitologias, Roland Barthes (2003) oferece uma sagaz descrição do mecanismo de criação do mito, partindo da estrutura ternária do conceito de signo de Saussure. Significante, significado e signo são três termos formais, aos quais se podem atribuir diferentes conteúdos. Por exemplo, para Freud, o significante é constituído pelo conteúdo manifesto de um comportamento, enquanto o significado é seu 2 Também Philippe Sollers, em seu texto “Logique de la fiction”, in Logiques (Seuil, 1968, p.15-43. Coll. Tel Quel), citado por Emilie Lucas-Leclin (2005, p.3). 23 sentido latente. O terceiro termo é a correlação entre os dois primeiros. Quer dizer que os sonhos e os atos falhos são signos, ou seja, eventos concebidos como economias realizadas graças à junção da forma (primeiro termo) e da função intencional (segundo termo). Barthes concebe o mito em analogia com o signo saussuriano e o inconsciente freudiano, pois ele reproduz o mesmo esquema tridimensional. O mito se constrói a partir de uma idéia semiológica que lhe preexiste no sistema da língua: o que é signo (junção de três termos) no primeiro sistema é significante (primeiro termo) no segundo. O signo, termo final do sistema da língua, ingressa como termo inicial no segundo sistema, mitológico. Barthes chama esse signo (significante no segundo sistema) de “forma”, e o significado, de “conceito”. O terceiro termo, no sistema do mito, é a significação. O mito porém se aproxima mais do inconsciente freudiano do que do signo lingüístico, pois num sistema simples como a língua o significante é vazio e arbitrário e, portanto, não oferece nenhuma resistência ao significado. Pelo contrário, “assim como para Freud, o sentido latente do comportamento deforma seu sentido manifesto, assim no mito o conceito deforma o sentido” (Barthes, 2003, p.313). O mito, dirá Lévi-Strauss (1987, p.233), é linguagem, mas linguagem que opera num nível muito elevado e cujo sentido consegue decolar – cabe usar uma imagem aeronáutica – do fundamento lingüístico sobre o qual tinha começado a se deslizar. A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da autoficção não é a biografia mesma e sim o mito do escritor nos permite chegar próximos da definição que interessa para nossa argumentação. Qual a relação do mito com a autoficção? 24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 O mito, diz Barthes (2003, p.221), “não é uma mentira, nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade como sanção.” A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a “mentira” e a “confissão”. A noção do relato como criação da subjetividade, a partir de uma manifesta ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite pensar a autoficção como uma performance do autor. É no sentido de artifício, como “comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p.27), que pensamos a identidade autoral no caso das narrativas contemporâneas mencionadas no início. O conceito de performance deixaria ver o caráter teatralizado da construção da imagem de autor. Estou propondo uma sutil diferença entre o sujeito escritor e a figura do autor. Dessa perspectiva, não haveria um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida pública) do escritor são faces complementares da mesma produção da figura do autor, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas que, em todo caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é considerado como sujeito de uma performance, de uma atuação, que “representa um papel” na própria “vida real”, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e auto-retratos, nas palestras. Portanto, o que interessa do autobiográfico no texto de autoficção não é uma certa adequação à verdade dos fatos, mas sim “a ilusão da presença, do acesso ao lugar de emanação da voz” (Arfuch, 2005, p.42). Assim, a autoficção adquire outra dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando que o sujeito da escrita não é um “ser” pleno, cuja existência ontológica possa ser provada, senão que o autor, a figura do autor, é resultado de uma construção que opera tanto dentro do texto ficcional quanto fora dele, na “vida mesma”. Escrita de si como performance 25 Daí que o texto de autoficção se aproxime também da performance como arte cênica. O texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. A dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Imaginando uma analogia entre a literatura e as artes cênicas, poder-se-ia traçar uma correspondência entre o teatro tradicional e a ficção, por um lado, e a arte da performance e a autoficção, por outro. Na cena teatral existe um paradoxo, que Julian Olf (apud Cohen, 2002, p.95) chama de dialética da ambivalência, que pode ser enunciado como a impossibilidade de “ser” e representar simultaneamente. O ator não pode ser e construir um outro ser ao mesmo tempo. Quando o ator entra na cena teatral, ele passa a “significar”, a virar signo, desdobrando-se em ator e personagem. O ator situa-se assim entre dois pólos: o da atuação e o da representação. Essa ambivalência é insalvável: o ator nunca poderá estar somente “atuando”, mesmo que ele represente a si mesmo, nem poderá estar completamente possuído pelo personagem. Ora, esse paradoxo está em relação a um outro, que atinge tanto a representação teatral quanto o texto ficcional: como no texto de ficção, no espetáculo teatral espaço e tempo são ilusórios, no teatro e no romance tudo remete ao imaginário. Quanto mais o ator (ou o autor do texto) entra no personagem, e mais real tenta fazê-lo, mais reforça a ficção, e portanto, a ilusão. Por isso a arte da performance rejeita a ilusão, ela é precisamente “o resultado final de uma longa batalha para liberar as artes do ilusionismo e do artificialismo” (Glusberg, 2003, p.46). A arte da performance supõe uma exposição radical de si mesmo, do sujeito enunciador, assim como do local da enunciação, a exibição dos rituais íntimos, a encenação de situações autobiográficas, a representação das identidades como um trabalho de constante restauração sempre inacabado (Ravetti, 2002, p.47). Na arte da performance, a ambivalência do teatro persiste, mas ao contrário desse, 26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 o performer está mais presente como pessoa e menos como personagem. Da mesma forma que na performance, na autoficção convivem o escritor-ator e o personagem-autor. E não se procura aumentar a verossimilhança, pois ela, como vimos, aumentaria paradoxalmente o caráter ficcional. No texto de autoficção, entendido nesse sentido, quebra-se o caráter naturalizado da autobiografia numa forma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e o questiona, ou seja, que expõe a subjetividade e a escritura como processos em construção. Assim, a obra de autoficção também é comparável à arte da performance na medida em que ambos se apresentam como textos inacabados, improvisados, work in progress, como se o leitor assistisse “ao vivo” ao processo da escrita. Literatura como performance, isto é, como uma prática inserida num contexto sociocultural mais amplo, no qual a figura do autor interfere na leitura do texto. Reinaldo Laddaga (2006, p.7) afirma que estamos perante uma profunda transformação da configuração da modernidade estética, na qual a literatura se destinava “a um espectador ou um leitor retraído e silencioso, que a obra devia subtrair [...] do seu entorno normal para confrontá-lo com a manifestação da exterioridade do espírito ou do inconsciente”. Isso ainda era válido para a literatura latino-americana digamos até os anos 1980: da obra de Borges, Carpentier, Lezama Lima, Guimarães Rosa até Garcia Marquez, Carlos Fuentes, Julio Cortázar ou Clarice Lispector, para citar apenas alguns exemplos. Os novos narradores, diz Ladagga (2006, p.10), sabem que suas operações se realizam numa época de superabundância informativa, na qual é improvável encontrar esse tipo de leitor que deseja se isolar do entorno de comunicações ordinárias para se confinar na confrontação solitária com um artefato de linguagem. Por isso, a escrita de si como performance também supõe uma revisão na noção de valor literário: a autoficção não pode ser lida apenas a partir das qualidades estéticas do texto. A autoficção só faz sentido se lida como show, como espetáculo, ou como gesto. Isso é característico, também, de certa literatura que Josefina Ludmer (2007) cha- Escrita de si como performance 27 ma de “pós-autônoma”. Estas obras performáticas podem ser lidas junto com aquelas narrativas que, segundo Ludmer (2007), “aparecem como literatura mas não podem ser lidas com os critérios ou com as categorias literárias (específicas da literatura) como autor, obra, estilo, escrita, texto e sentido. E, portanto, é impossível lhes atribuir um ‘valor literário’: já não tem, para essas escritas, literatura boa ou ruim”. Sendo assim, a autoficção mostraria algo a mais do que uma tendência da narrativa contemporânea. Talvez ela seja um dos signos de um esgotamento da cultura moderna das letras. Referências ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977. . O rumor da língua. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo; Campinas: Brasiliense; Editora da Unicamp, 1988. . Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2003. 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Buenos Aires: Alfaguara, 2004. do reconfigurado, o objetivo principal do trabalho é o comentário teórico sobre o conceito de autoficção, entendido como uma estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para performar a própria imagem de si autoral que surge nos textos. O foco investigativo se concentrará na produção de alguns autores que se lançaram na rede, como Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian. PALAVRAS-CHAVE: Autoria, autoficção, blog, literatura contem- porânea. ABSTRACT: Under the hypothesis of that the concept of literary is being reconfigured, the main objective of the essay is the theoretical commentary about the concept of autoficção as a strategy of contemporary literature, by setting in the center of the arguments afresh the possibility from the recurrence author’s. The focus will be concentrated in the production of some authors whom if they had launched in the net, some names: Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian, KEYWORDS : Authorship, autoficção, blog, contemporary literature. * Professora doutora de Teoria Literária da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Uberlândia (MG). “A necessidade canônica, quando se vai trabalhar com o contemporâneo, de saída nos coloca diante dessa questão: O que é literatura?” (Beatriz Resende)