CELSO LOMONTE MINOZZI
Rito e Arquitetura
São Paulo
2009
CELSO LOMONTE MINOZZI
Rito e Arquitetura
Tese apresentada à Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo, para obtenção do título de
Doutor em Arquitetura e Urbanismo.
Área de concentração: História e
Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Américo de
Souza Munari
São Paulo
2009
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
E-MAIL:
[email protected]
M666r
Minozzi, Celso Lomonte
Rito de arquitetura / Celso Lomonte Minozzi . --São
Paulo, 2009.
201 p. : il.
Tese (Doutorado - Área de Concentração: História e
Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo) - FAUUSP.
Orientador: Luiz Américo de Souza Munari
1.Semiologia – Arquitetura 2.Teoria da arquitetura
3. Arquitetura contemporânea 4.Arquitetura - Fluxo I.Título
CDU 003:72
À BERENICE, minha esposa
À AMANDA, ANDREA, MARINA e FILIPE, meus filhos
A IDO e MARIA, meus pais
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Luiz Américo de Souza Munari que, pela clareza de suas observações, orientou a
consecução desta pesquisa com paciência e inteligência.
À Universidade de São Paulo pelo acolhimento desta pesquisa e pela possibilidade de
desenvolvê-la junto a amigos e professores.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie e ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
pelo ambiente de trabalho e reflexão que motivaram o percurso desta pesquisa.
Aos meus amigos de todos os dias que souberam compreender o esforço desta empreitada.
Aos meus filhos e à minha família pela compreensão de meu isolamento.
À minha esposa, Berenice Carpigiani, pelo apoio constante, pelas revisões intermináveis, e
pela sua presença em minha vida, sem o que seria impossível realizar esta pesquisa.
RESUMO
Esta pesquisa focaliza a relação entre rito e arquitetura considerando o rito como o fluxo
semiológico e está embasada em estudos de semiologia e semiótica aplicadas à arquitetura e
às teorias da linguagem. O conceito de rito semiológico está desenvolvido a partir das
transformações dos elementos significantes tanto em aspectos diacrônicos quanto em aspectos
sincrônicos, determinando as noções de fluxo e mutação. A arquitetura é compreendida como
uma relação entre duas formas: a forma de expressão e a de conteúdo, conceitos retirados dos
estudos de linguagem. Associa-se a este fato ser também entendida como um produto cultural,
pertencente a um determinado diagrama histórico, principalmente o contemporâneo e sua
alterações diagramáticas. As bases teóricas partem das leituras de Michel Foucault, Gilles
Deleuze, Ferdinand de Saussure e Louis Trolle Hjelmslev e das comparações possíveis com
textos sobre arquitetura e projetos. Os fundamentos da história da arquitetura são trabalhados
no decorrer do texto conforme os autores, pela cronologia das idéias e não das publicações.
A pesquisa procura demonstrar uma arquitetura em movimento através do conceito de rito,
sua pertinência na história da arquitetura como uma forma de linguagem. Averigua, também,
a pertinência deste conceito quanto a quatro categorias estabelecidas como base para a
arquitetura, sendo estas: significação, poética, materialidade e técnica, e por elas, se verifica a
relação entre rito e arquitetura.
Palavras chaves: semiologia, rito semiológico, teoria da arquitetura, fluxo, arquitetura
contemporânea.
ABSTRACT
This research focuses the relationship between rite and architecture considering the rite as a
semiological flow and it is based on semiology studies and semiotics applied to the
architecture and the theories of the language. The concept of semiological rite is developed
starting from the transformations of the significant elements as much in diachronic aspects as
in synchronous aspects, determining the flow and mutation notions. The architecture is
understood as a relationship among two forms: the expression and content, extracted concepts
of the language studies. It associates to this fact to also be understood as a cultural product,
belonging to a certain historical diagram, mainly the contemporary and its diagrammatic
alterations. The theoretical bases leave from Michel Foucault, Gilles Deleuze, Ferdinand de
Saussure and Louis Trolle Hjelmslev readings and from the possible comparisons with texts
on architecture and projects. The foundations of the history of the architecture are worked on
elapsing of the text according to the authors, from the chronology of the ideas and not from
the publications one.
This research search to demonstrate an architecture in movement through the rite concept, its
pertinence in the history of the architecture as a language form. It discovers, also, the
pertinence of this concept as four established categories as a base for the architecture, being
these: significance, poetic, materiality and technique, and for them, the relationship is verified
between rite and architecture.
Key words: semiology, semiological rite, theory of the architecture, flow, contemporary
architecture.
SUMÁRIO
Prólogo
7
Introdução
16
Capítulo 1. Teorias e reflexões
41
Capítulo 2. Significação
97
Capítulo 3. Poética
126
Capítulo 4. Materialidade
143
Capítulo 5. Técnica
165
Conclusão
188
Referência bibliográfica
192
Bibliografia
195
7
PRÓLOGO
As teorias da linguagem exerceram, no século XX, uma forte influência sobre diversos
campos da ciência e das artes e consequentemente, também sobre o campo da arquitetura em
textos teóricos como “A arquitetura da cidade” de Aldo Rossi, ou “A imagem da cidade” de
Kevin Lynch, e em projetos que foram, pouco a pouco, desenvolvendo os conceitos de
linguagem os apropriando para a arquitetura e o urbanismo a exemplo dos trabalhos
megaestruturais de Yona Friedman, projetos residenciais e institucionais como os de Robert
Venturi e os exercícios projetuais de Peter Eisenman, apresentados na exposição ‘Os cinco
arquitetos’ no MOMA em New York, em 1967.
A inserção da linguagem no pensamento estruturalista permitiu experimentações e gerou
aprofundamentos quanto à arquitetura como uma das formas de linguagem não verbal, ao
mesmo tempo em que permitiu também, indagações sobre as razões do pensamento da
estrutura e suas definições como métodos projetuais e projetos de edifícios ou de áreas
urbanas. A clareza conseguida com o exercício estrutural foi semelhante ao desencanto das
regras racionais e funcionais: nem tudo poderia estar determinado pelos caminhos da
estrutura.
Sua consequência foi o avanço dos estudos de linguagem e a inserção, na arquitetura, por
meio de filósofos, linguistas e arquitetos de novas questões sobre este campo: um papel mais
abrangente e fluídico das linguagens, a desmontagem da precisão estruturalista, o surgimento
de experimentos formais inusitados. A centralidade do ser humano, e mesmo do arquiteto,
recebeu novos questionamentos e consequentes respostas.
8
Textos críticos e teóricos abordam frequentemente estas questões ao desenvolver temáticas
que visam entender como as condições do mundo contemporâneo, sua noção de tempo, sua
condição de realidade e sua noção de espaço, inferem um pensamento arquitetônico.
O pensamento espacial, através da topologia, é um dos pontos chaves da contemporaneidade
pela possibilidade de dispor diagramas de produção numa sociedade: influência do
pensamento topológico de Foucault.
A topologia, e suas relações com o espaço arquitetônico e as teorias da linguagem já havia
sido abordada na Dissertação de Mestrado “Semiótica e arquitetura: uma teoria sobre a
construção do signo arquitetônico”, indicando um caminho que relacionava novos arranjos de
noção de tempo e espaço num diagrama do nosso tempo, ou num diagrama das arquiteturas e
dos estados simbólicos.
Neste sentido, esta pesquisa justifica-se, pela importância da possibilidade de desenvolver
investigações e leituras de textos relativos às teorias da arte e da arquitetura ao longo da
história, à produção de artistas e teóricos tais como Homero, Platão, Aristóteles, Semper,
Vitruvio, Riegl. Em recentes discussões sobre a Polis e a noção de mimesis, realizados na
Universidade de São Paulo, levantou-se a questão como a estrutura social da Polis revela o
surgimento do Belo, uma herança grega, e como o Belo surgiu com o próprio advento da
Polis, quando ocorreu a estruturação da sociedade micênica: o anax, o basileu, o aedo, os
trabalhadores, possibilitando que se revelassem as condições das imagens do real e do divino.
Portanto, cidade, política e beleza são irmãs por terem surgido como conceitos de uma mesma
realidade.
9
A beleza se revela pelo poder da razão e se coloca como condição e possibilidade do mundo,
demonstrando-se por meio da harmonia. Ao longo das discussões, foi debatida a consolidação
da beleza no universo da Polis, afirmando a relação entre beleza, política e razão. O mundo
ordenado foi compreendido como a expressão da beleza, esta que “rapta os olhos” e motiva o
homem à perturbação.
Leituras e debates sobre o “Hípias Maior” de Platão e sobre a “Poética” de Aristóteles,
ampliaram a concepção da ligação entre arte e arquitetura e a significação artística. A
arquitetura, entendida como obra das artes aplicadas, é composta por um conjunto de técnicas
variadas e, permeando a técnica e a matéria, descortinam-se a cultura, a ideologia e a política.
Sendo o território – da arquitetura e da cidade – considerado como expressão semântica e
emancipadora, que se utiliza do uso de uma linguagem definidora da condição de pertença ao
grupo que o usa, torna-se possível levantar a hipótese de que a forma de atuação sobre o
espectro da arquitetura mudou de forma radical, talvez em função da perda de relações
mecânicas, corpóreas e materiais na construção do ser social que ocorreram em função de um
novo arranjo social. Os espaços na cidade são considerados produtos por meio da atuação dos
grupos sociais no ambiente urbano, desde as casa até barracas de ambulantes.
Interferem nesta leitura alguns conceitos como os de “campos abstratos”, “espaços como
comunicação”, “linguagem” e “arte”.
A importância desta investigação também está na discussão do conceito das manifestações no
espaço urbano como formas de arte, justamente pela condicional estética que estas carregam.
A significação da compreensão do indivíduo e sua relação de pertença social podem ser
10
verificadas na possibilidade de se falar uma linguagem de grupo quer seja oral, corporal ou
que se expressa, também, através de produtos culturais.
A experiência urbana é irredutível e é uma experiência de subjetivação que envolve uma
sensação de compreensão e pertença, que nasce da percepção destes sistemas abstratos,
portanto, da percepção dos conjuntos linguísticos que podem remover histórias e memórias
individuais. A vida urbana é entendida como um produto individual e coletivo compartilhado
por associações vitais dos grupos sociais. Entende-se que a expressão dos grupos diversos,
mesmo tendo apenas o corpo como sistema significante, permite abrir questões sutis quanto à
materialidade da cidade, ou quanto à sua superfície como campo de significação.
O tema central desta pesquisa é a relação entre rito e arquitetura no que tange à condição
específica de rito semiológico. Esta relação determina as características do limite do objeto, já
que se desdobra em vertentes diferentes que são verificadas através do entendimento da
arquitetura como produto cultural, e que podem condicionar inferências nas esferas do
arquiteto como autor da obra, que é possuidora de uma poética, e da percepção da obra como
ação coletiva de leitura da arquitetura. Estas esferas são entendidas como campos
paradigmáticos nos quais as noções de sujeito e objeto são determinantes para as categorias de
leitura.
Há dois campos gerais de conhecimento que se interseccionam no âmbito do tema central: a
arquitetura como um campo extenso e complexo, e a semiologia, abrigando o conceito de rito,
com extensões mais claras para os estudos de linguagem como base do entendimento
arquitetônico e antropológico.
11
Há também dois campos específicos de conhecimento gerados a partir da relação das esferas
do autor da obra e da percepção da obra, e direcionados para o tema da tese, que procuram
condicionar as extensões do tema através do conceito de rito, um sob os modos de produção e
significação da linguagem e outro sob os modos de produção e significação da arquitetura.
Portanto, as três esferas paradigmáticas: do autor, da obra e do coletivo estão relacionadas
com os dois eixos sintagmáticos: da extensão linguística do rito e da extensão arquitetônica do
rito.
Por estas razões, torna-se necessário compreender dois eixos de extensão do rito. O Primeiro:
EIXO DE EXTENSÃO LINGUÍSTICA DO RITO. O rito é compreendido a partir do
conceito de mito, descrito e analisado por Roland Barthes em seu livro “Mitologias” (2007).
Em Barthes (2007), o rito é definido como um elemento inerente ao mito e este possui como
elementos de linguagem: significante, significado e significação, portanto, é considerado
como um modo de significação constituído por um significante e seu aspecto formal, e um
significado e seu aspecto formal:
“[...] no mito existem dois sistemas semiológicos, um deles deslocado em relação ao
outro: um sistema linguístico, a língua (ou os modos de representação que lhe são
assimilados), a que chamarei linguagem objeto, porque é a linguagem de que o mito se
serve para construir o seu próprio sistema; e o próprio mito, a que chamarei metalinguagem, porque é uma segunda língua, na qual se fala da primeira.” (BARTHES.
1993.p.137.)
Dessa maneira, o mito, enquanto significado, se apóia num significante, e consequentemente
o seu rito pode ser compreendido como a concatenação formal que suporta o mito enquanto
metalinguagem. O significante do mito, o rito, é um sistema linguístico particular,
referendado na língua ‘real’.
12
A extensão deste conceito é ampla já que condiciona o entendimento do rito como uma
concatenação de processos linguísticos e passíveis de serem substanciados fazendo com que o
projeto de arquitetura, que também se dá num processo de concatenação linguística, seja ele
próprio, o rito, como parte de uma relação teórico-prática: o projeto enquanto prática, integra
a dimensão crítica e teórica no seu desenvolvimento, no fazer. Outra extensão deste conceito é
a compreensão do rito enquanto técnica produtora de uma poética do objeto, extensão essa
que abriga as significações do rito poético dentro da influência das culturas como usinas
fabricadoras de coisas e significações.
O segundo é o EIXO DE EXTENSÃO ARQUITETONICA DO RITO, uma vez que o sentido
do rito como campo específico na arquitetura está vinculado inicialmente à observação da
variação deste conceito na produção arquitetônica: o primeiro se refere ao arquiteto enquanto
autor e a expressão, ou não, de sua intencionalidade na obra. É marcante a diferença entre
concepções sobre a arquitetura que investigam os modos de produção do objeto arquitetônico
e qual seu grau de representatividade ou de identidade, quer do arquiteto quer da coletividade.
Ao se estudar, por exemplo, o trabalho de Lúcio Costa, na sua intenção de integrar uma
historicidade brasileira à época colonial, e o resultado projetual, é possível perceber a busca
de uma representatividade que expecta uma consciência coletiva no contato com esta
arquitetura. É exemplar o museu realizado na Missão de São Miguel, no Rio Grande do Sul,
no qual há uma interpenetração do barroco como historicidade e do moderno como
contemporaneidade. Neste exemplo, verifica-se uma metodologia que agrega valores à forma
e por eles lhe dá significado.
13
A intenção do arquiteto busca em si uma ritualização que a expresse e tenha, no contato com
uma linguagem, a possibilidade de realização da obra. Se essa intenção se expressa na obra ou
se ela fica recolhida no método é justamente um dos debates atuais e o rito é observado na
esfera do autor nas formas de sua condição psíquica, técnica ou comportamental, o tempo de
organização interna antes de aplicar a metodologia. Este estado do autor infere o uso da
metodologia e a escolhe como instrumento de uma poética que constrói o objeto, o qual, por
sua vez, possui seu próprio rito pela constituição de suas partes, pela organização de sua
leitura, pela possibilidade de seu entendimento como discurso complexo: social, estético,
ético, técnico.
O conceito de rito na esfera da obra permite uma leitura das metodologias de projeto, da
maneira de vivenciação da obra, da relação da obra com o contexto, da composição da obra
enquanto objeto de leitura.
As metodologias de projeto são ritos sintéticos de decisão construtiva da arquitetura,
assimilam formas e significados históricos, futuristas, idéias e realidades. Permitem
equacionar valores funcionais, culturais e políticos da obra a serem percebidos ou lidos por
quem vivenciará a experiência da obra. Esta, por sua vez, traz em si certa possibilidade de ser
lida, em função da justaposição dos espaços, da condicional da circulação ou do discurso
enquanto resultado de uma poética.
A esfera do coletivo talvez seja a esfera mais distante, pois esta só pode ser avaliada
experimentalmente através de pesquisas e entrevistas, que não é instrumento eleito nesta
pesquisa. Não obstante, é possível verificar a presença do coletivo tanto nas teorias que geram
14
metodologias, quanto nas filosofias ou conjuntos críticos que indicam uma autonomia do
leitor em relação à obra de arquitetura.
A história nos fornece exemplos claros desde o pensamento moderno até a
contemporaneidade, tanto no sentido de idealização do homem social no modernismo, quanto
na substancialidade histórica e cultural nas visões pós-modernas. O indivíduo que vivencia o
espaço é dirigido a perceber relações que estão dispostas na obra e que indicam, enquanto
discurso, componentes estéticas que condicionam uma sensação de consciência social ou
histórica por meio do contato com a arquitetura.
A arquitetura contemporânea, principalmente em função da influência da desconstrução e do
pragmatismo, não exibe a presença do indivíduo na obra como um elemento reconhecível,
porém, estabelece uma relação cognoscitiva com o seu leitor de maneira a produzir uma
condição de leitura e liberdade. O percebido e entendido da arquitetura é um fenômeno cujo
significado é estabelecido pelo sujeito perceptor como detentor do código de leitura. Peter
Eisenman, no texto “O Fim do Clássico, O Fim do Começo, O Fim do Fim” (1983), ao propor
uma arquitetura não-clássica, propõe também um leitor consciente de sua identidade de leitor,
partindo do princípio de que é ele quem imprime significado a uma obra não representativa e
não significativa, constituída de elementos significantes sem significação indicada.
Esta pesquisa, de caráter interdisciplinar que reúne em si estes diferentes eixos teóricos,
possibilita a concatenação de conhecimentos e um recorte por abordagem, mas não um limite
definido. Seu tema se esclarece de dentro para fora e não ao contrário, e o conteúdo dos
conhecimentos utilizados tais como: história, teoria da arquitetura, antropologia, e semiologia,
será definido no desenvolvimento dos capítulos os quais, pela sua abordagem categorial, terão
15
recortes específicos. Portanto, o tema central: rito e arquitetura: informa e justifica o
desenvolvimento da pesquisa.
16
INTRODUÇÃO
Os conteúdos pesquisados e desenvolvidos não estão ligados por outra causalidade que não
seja o tema e o próprio exercício da leitura ao longo deste trabalho. Disto resulta a escrita
como um conjunto de conteúdos justapostos, estratificados no decorrer do texto, entremeados
pelo processamento das idéias, pelos estados de subjetividade e pela aproximação como meio
de definir causalidades, mas não linearidades. Os conteúdos não são lineares, pois estão
dispostos em épocas e disciplinas diferentes, mas são aproximados pela presença do tema.
A escrita se desenvolveu como um conjunto de fluxos que buscam nas multiplicidades dos
assuntos uma invariância. O texto é um estado de solidariedade de assuntos admitidos
historicamente pelo surgimento de sua importância na pesquisa e não pelas datas de sua
publicação original.
No desenvolvimento da pesquisa, os assuntos justapostos em estratos aparecem, em alguns
momentos, em emergência dos textos lidos, retirados do seu percurso literário de origem. Esta
emergência se verifica no conjunto de excertos colocados em sequência, revelando, à escrita e
à leitura um ‘estado puro’ da pesquisa, das informações.
1. Objetivos:
Verificar a relação rito-arquitetura por meio de suas evoluções ao longo da história e pelas
mudanças conceituais sofridas no conceito de rito semiológico. O campo de intersecção no
qual se desenvolve esta relação é a arquitetura na história, sempre vista pela atualidade,
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buscando seus ritos na conveniência da história e tomando como base os eixos da extensão
linguística do rito e da extensão arquitetônica do rito, sendo este conceito o ponto de
indagação na arquitetura.
As esferas do autor, da obra e do coletivo, especificam esta temática. Há uma arquitetura sem
qualquer sentido de rito? O rito só pode ser observado em uma das esferas ou pode haver mais
de um sentido de rito na mesma concepção de arquitetura? O rito enquanto manifestação
cultural pode também ser entendido como rito semiológico? O rito na arquitetura é apenas um
suporte do significado ou possui um aspecto qualitativo próprio? Verificar-se-á estas
indagações que permeiam o problema central desta relação e se elas podem ser alteradas no
tempo da arquitetura indicam porque a arquitetura na sua história é um dos problemas
fundamentais desta tese, sendo o outro problema fundamental o conceito de rito semiológico
aplicado, portanto, linguístico.
Os objetivos específicos estão relacionados às esferas particulares desenvolvidas como objeto
desta tese, quais sejam:
a.
Verificar, na ESFERA DO AUTOR, se as teorias e a intenção do arquiteto enquanto
agente crítico e produtor formam os pontos de observação e verificação desta esfera. Existem
questões fundamentais que sobressaem nesta esfera como, por exemplo, as relações de
identidade entre sujeito e objeto e como as teorias processam tal relação. Há teorias, como
descreve Kate Nesbitt (2006, p.16), de caráter descritivo, prescritivas, proscritivas,
afirmativas ou críticas, que determinam uma forma de compreensão do papel do arquiteto
enquanto produtor de obras. Qual a relevância do papel do arquiteto pode ser medida por
pensamentos como o de Christopher Alexander que distribui o papel de conceptor do espaço
18
entre o arquiteto e a sociedade para a qual trabalha? Ou ainda uma teoria identitária como a de
Aldo Rossi e sua concepção de arquitetura representativa, qual o papel do arquiteto e quais
são suas estratégias mentais? Há uma condicional psicológica do autor? Ela se pronuncia na
obra? As teorias, ou abordagens teóricas como as históricas, determinam ou indicam esse
papel do arquiteto. Qual seu rito particular?
b.
Verificar, na ESFERA DA OBRA, aqui se encontram os problemas dos métodos e das
composições ou arranjos formais, problemas de concepção como as geometrias
transcendentais de Peter Eisenman nos projetos de suas casas genéricas, os problemas
metodológicos do modernismo nas suas visões ideais de mundo ou as quebras de significado
de uma arquitetura pós-estrutural. As metodologias, os projetos e as obras pertencem a esta
esfera. Principais perguntas: Qual a relevância do rito como metodologia? Toda metodologia
pode ser compreendida como rito? Os hábitos metodológicos são qualitativos? E sua relação
com as teorias? A arquitetura como produto semântico revela estruturas significantes? O
Museu Guggenheim de Frank O. Gehry, em Bilbao, como obra aparente exibe apenas uma
possibilidade significante?
c.
Verificar, na ESFERA DO COLETIVO: tanto as preocupações dos arquitetos e seus
pensamentos e teorias sobre como a sociedade está integrada, ou submetida, ou livre para
relacionar-se e interpretar as obras de arquitetura.
Arquitetos entendem que a população deve ser agente ativa no processo de crítica e projeto.
Ainda é possível avançar sobre questões mais abertas como as linguagens corporais e seus
libelos libertários como o Situacionismo. Pergunta-se: Qual a participação da sociedade como
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produtora de arquitetura? É possível ainda estabelecer a arquitetura como meio de
comunicação de massa? A virtualidade é o ingresso total do leitor do espaço como
concebedor do seu entendimento? A arquitetura é uma condição ética, ou seu produto? A
arquitetura só se realiza como fenômeno?
2. Hipóteses
Definiu-se como Hipótese que em relação ao tema central e aos seus eixos de extensão às
esferas do autor, da obra e do coletivo, rito e arquitetura se referem a um quadro teórico
formado pela arquitetura e pela semiologia. A relação entre estes dois conhecimentos expressa
uma condição contemporânea que faz resultar a arquitetura como uma forma de linguagem.
2.1. POR SER A ARQUITETURA UMA FORMA DE LINGUAGEM HÁ UMA
EXTENSÃO DA RELAÇÃO ENTRE RITO E ARQUITETURA.
É considerado o eixo de extensão arquitetônica do rito como uma construção dos tempos da
arquitetura, agregando desde aspectos históricos a interpretações contemporâneas e
entendimentos dos objetos mentais e construídos.
Sob esse aspecto, o campo da arquitetura fornece o primeiro dos fundamentos que compõem o
quadro de hipóteses: o fundamento histórico. O eixo de extensão linguística do rito apresenta
as variações das leituras do rito semiológico, aspectos ideológicos e a base da compreensão da
arquitetura como linguagem. O campo da linguagem fornece, portanto, o segundo fundamento
do quadro de hipóteses: o fundamento linguístico.
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Os fundamentos estão embasados em princípios de realidade, na arquitetura e na linguagem,
na possibilidade de sua relação e de sua interpretação e crítica. O fundamento histórico
reinterpreta o eixo arquitetônico do rito pertencente ao objeto e se estende na tese como
elemento permanente por considerar o tempo atual como leitura dos fenômenos
arquitetônicos.
O fundamento linguístico reinterpreta o eixo linguístico do rito e é uma condicional dialética
ao conceito permanente da arquitetura no fundamento histórico. Os dois fundamentos
interagem, assim, por tensão dialética entre as existências da arquitetura e as suas formas de
leitura.
O conjunto do quadro de hipóteses foi desenvolvido ao longo do processo de pesquisa da tese.
Pelo próprio método adotado na pesquisa e a partir da hipótese primeira, descrita acima, e do
desenvolvimento das leituras houve um desdobramento de hipóteses mais particulares.
Os dois fundamentos das hipóteses provocam a sua indagação e averiguação em estados
categóricos da própria tese.
Foram tomadas como categorias aspectos sintéticos da dialética arquitetura-linguagem
conforme variações referentes ao tema. Portanto, é perceptível que a arquitetura não pode ser
vista por aspectos isolados, mas por conjuntos significantes, e que, pelo recorte do objeto da
tese foi necessário desenvolver categorias do objeto que demonstrassem tanto a complexidade
da arquitetura quanto as esferas do autor, da obra e do coletivo, como desenvolvimentos das
extensões do tema central.
21
A partir de contato entre as esferas e a complexidade, as categorias da produção arquitetônica
foram: SIGNIFICAÇÃO, POÉTICA, MATERIALIDADE e TÉCNICA.
Por estas categorias, pretende-se gerar áreas de concentração temática as quais abrangem dos
aspectos abstratos ao concreto e que abordam ao mesmo tempo as esferas do autor, da obra e
do coletivo.
A categoria SIGNIFICAÇÃO envolve as características da tradição e do simbolismo, assim
como envolve uma fenomenologia do lugar e a cognição ambiental.
A categoria POÉTICA envolve a produção do objeto arquitetônico, a intencionalidade, as
metodologias e as geometrias aplicadas.
A categoria MATERIALIDADE envolve a forma e sua aparência, a matéria enquanto
extensão da forma, as possibilidades de percepção e relação material com o ambiente.
Estas categorias, portanto, são áreas de concentração de interesse conceitual que integram o
tema central e seus eixos de extensão, sua transformação nos fundamentos hipotéticos
histórico e linguístico.
A categoria TÉCNICA envolve as questões da construção tecnológica, mas também da
técnica como estrutura significante, rito e projeto.
As hipóteses segundas partem de quanto o rito é inerente a estas categorias, sendo:
22
2.2. O RITO É INERENTE À SIGNIFICAÇÃO
2.3. O RITO É INERENTE À POÉTICA
2.4. O RITO É INERENTE À MATERIALIDADE
2.5. O RITO É INERENTE À TÉCNICA
3. Método
De acordo com KRAUSS (1996), a condição da produção e interpretação da arte utiliza uma
frase expressiva de Roland Barthes que produz uma analogia entre o universo da linguagem e
um barco da mitologia grega: Argos. Segundo a autora, Barthes explica que quando os seus
viajantes, os Argonautas, receberam Argos dos Deuses, receberam também a tarefa de
entregá-lo do mesmo jeito como os haviam recebido, apesar de saberem que se deterioraria
com o tempo. Por esta razão, Os Argonautas, ao longo da sua viagem foram substituindo as
peças e partes do barco, de tal forma que ao fim de sua jornada tinham um barco
completamente novo, sem que tivesse havido alteração quanto à sua forma e quanto ao seu
nome.
Barthes entendia esta fábula como um objeto estrutural recombinado por diversas
substituições e nominações, de tal maneira que demonstrava que o nome não estava
diretamente e definitivamente associado a qualquer sentido estável destas partes. O seu nome
era a sua causa e tinha apenas a forma como identidade, sem qualquer noção de sentido
permanente.
O método utilizado nesta pesquisa procurou estabelecer uma revisão sobre o conceito de rito e
sua relação com a arquitetura nos seus modos processuais e nos textos e tempos dos livros
23
que, conforme as suas próprias contingências renovam ou revigoram o sentido de conceito de
rito. Como estruturas metodológicas, estão a leitura e o desenvolvimento do conceito.
A partir destas características, a pesquisa é considerada qualitativa pela sua condição de
reavaliação do conceito. Como já foi descrito, o caráter qualitativo desta pesquisa situa-se na
verificação do rito enquanto conceito semiológico a partir do exposto por Roland Barthes.
Esta verificação demonstra tanto a manutenção deste conceito quanto a sua variação pelo
desenvolvimento da arquitetura como linguagem.
A característica qualitativa caracteriza o trabalho científico que se afirma em quatro pontos:
Pessoalidade, Autonomia, Criatividade e Rigor.
Conforme descrito por Severino (2002): o trabalho qualitativo é pessoal pelo fato de estar
assentado na experiência de vida do pesquisador. Há um fundamento histórico desta tese nos
estudos de semiologia, acrescentando-se ainda a base dada pela Dissertação de Mestrado que
envolve a arquitetura e a semiologia. Este autor escreve que “o caráter pessoal do trabalho do
pesquisador tem uma dimensão social, o que confere o seu sentido político” (2002, p.146), e
esta dimensão social está circunstanciada no envolvimento do pesquisador com o tema,
conferindo ao tema uma reflexão e compreensão do mundo.
É conveniente lembrar que há uma sequência das questões levantadas por Barthes sobre o
mito/rito, que inferem temas de grande atualidade como o conceito de fragmentos por Bernard
Tschumi, exposto em textos de 1980 e 1981, publicados na antologia coordenada por Kate
Nesbitt, “Uma Nova Agenda Para a Arquitetura” (2006), e recém traduzidos. Tais temas,
junto aos conceitos de Desconstrução, revelam uma relevância de estudo pelas condicionais
de linguagem em arquitetura.
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A autonomia no processo de desenvolvimento de uma dada pesquisa se revela pelo próprio
envolvimento do pesquisador no desenvolvimento dialético dos conceitos, dialética revelada
pelo diálogo entre as conquistas do pesquisador e as conquistas realizadas por outros
pesquisadores. Esta autonomia se apóia em alguns ensaios produzidos e apresentados em
congressos - “Conceitos de Campos Interagentes em Metodologia de Projeto” (MINOZZI,
2003). Tais ensaios debatem o estatuto do projeto de arquitetura e consequentemente seu
próprio estatuto quanto ao entendimento que ambos estão inseridos numa realidade mutante.
Os pontos de criatividade e rigor do trabalho científico estão numa relação dialética para
determinar tanto a busca de sua originalidade quanto a sua relevância para a construção do
conhecimento científico.
O rito enquanto tema desta tese não é compreendido como uma novidade dentro do sistema
teórico e reflexivo da arquitetura, mas busca-se sua reinterpretação, sua tradição particular do
universo da linguagem e da cultura e sua atualização no universo da arquitetura.
A criatividade, para Severino (2002), deve estar em tensão pelo problema e por sua vivencia:
“Embora não se possa falar de criatividade sem um rigoroso domínio do instrumental
científico [...] é bem verdade também que não basta conhecer técnicas e métodos” (p.148). A
experiência no estudo do tema permite a profundidade da pesquisa, ao verificar a dimensão
que o problema propõe. O rigor científico, junto à visão criativa, equilibra o trabalho nos seus
fundamentos de produção científica e na sua necessidade social.
25
Por meio do método indutivo, que se justifica, enquanto escolha, pois parte inicialmente da
proposição de hipóteses. Uma vez que a hipótese no método indutivo é dada por aproximação
das partes relacionadas e da consequente relação, ou inferência, conforme explica Rey (1993,
p.16) o “método indutivo é um processo criador de novo conhecimento científico”. A escolha
por esta modalidade de pesquisa se justifica também pela inexistência de procedimentos da
lógica formal que explique sua razão, ao mesmo tempo em que a demonstração de verdade da
hipótese se vê comprometida.
A utilização de tal método se deve à construção da hipótese que partiu de condições históricas
de conhecimento sobre estudos do mito e da linguagem e principalmente sua relação com a
arquitetura dos anos 60 e sua sequência.
Os estudos de semiologia, e nestes os estudos sobre mito em Roland Barthes, formaram uma
base que permitiu identificar os processos técnicos da arquitetura a partir das noções de rito,
pelo lado da semiologia, e de hábitos de ação, pelo lado da semiótica.
A hipótese está fundamentada numa crença, como o termo é utilizado por Peirce, produzida
pela inferência relacional entre o debate linguístico do rito e da natureza linguística da
arquitetura. Tal debate permitiu antever a possibilidade de um aprofundamento crítico que
produzisse o alargamento deste conceito.
O método indutivo permite a utilização deste aprofundamento, ou seja, a partir de uma
hipótese aparentemente simples, pode-se chegar a hipóteses mais complexas.
26
Nesta tese se verifica, por exemplo, que a hipótese inicial se baseia na relação arquitetura e
linguagem para fundamentar a arquitetura como construção mitológica.
No desenvolvimento da pesquisa, outras dimensões do problema foram aparecendo, como a
relação possível entre rito e hábito de ação, conceito do pensamento pragmático, e
consequente aproximação, pelo conceito de metáfora dos conceitos linguísticos do
pensamento pragmático e do pensamento deconstrutivista.
Outro aprofundamento da hipótese é a associação do conceito de rito com o conceito de
técnica, na leitura de Gillo Dorfles, e sua aproximação com a filosofia de Heidegger.
Por fim, as leituras sobre linguagem permitiram aprofundar o conceito de Grau Zero, pelo
conceito de diferença, a da sua aproximação com o processo de produção, invenção ou
criação, em arquitetura.
3.1 ABODAGEM INTERPRETATIVA
A pesquisa qualitativa tem origem na antropologia, a exemplo do trabalho de Bronislaw
Malinowsky, pela necessidade de interpretação de dados menos quantificáveis que sucessão
de fatos, tendo a pesquisa etnográfica como uma das bases da pesquisa qualitativa.
Caracteriza-se na identificação e interpretação dos produtos culturais, seus significados e suas
inferências em processos sociais.
O início da pesquisa qualitativa está ligado à concepção positivista e seus métodos de
objetivação dos fenômenos. Junto ao pensamento gerado pela sociologia da Escola de
27
Chicago mantém princípios de neutralidade científica e objetividade suficientes para a
construção de uma epistemologia positivista.
A influência do estruturalismo marca uma passagem caracterizada por maiores possibilidades
relacionais proporcionadas pelo pensamento sistêmico e as entranhas das culturas nos modos
de linguagem. Este cenário conceitual permitiu a reavaliação das significações culturais e o
sentido próprio da ciência como uma forma de colonialismo, como um instrumento
explicativo do mundo, porém, fundamentado em conceitos e processos ideologicamente
determinados.
As teorias interpretativas, ligadas às pesquisas qualitativas, ganharam espaço junto aos
pesquisadores, tomando lugar das primeiras teorias que buscavam conclusões descritivas e
acumulativas, positivistas. Ao contrário disto, as teorias interpretativas buscaram construir um
texto no qual o pesquisador está integrado ao sistema analisado, ressignificando os produtos
culturais dentro dos seus processos.
Entender os significados dos produtos culturais, a arquitetura e seus processos e métodos,
deve ser um modo em aberto por meio de novas formas de conhecimento ou de entendimento.
A epistemologia com valores e métodos fixos e acumulativos não são suficientes para
compreender uma sociedade em mutação constante.
Assim uma abordagem interpretativa, para a pesquisa qualitativa, deve entender o sistema a
ser interpretado, a relação sujeito-objeto, e a dinâmica deste sistema.
28
Nesta tese, o conceito de rito está estabelecido numa dualidade que o compõe, mas não
necessariamente o integraliza. O histórico do conceito possui um sentido permanente, mas
não imanente, já que há um processamento deste conceito.
O conceito de rito está historicamente embasado nos costumes e hábitos associados ao mito
enquanto significação mística ou não. Esta relação inerente ao rito e a significação é
permanente, por ser histórica, já que é possível associá-la ao rito enquanto encenação do
divino ou associa-la a uma metodologia de projeto, racionalizante ou não, ou podemos
associá-la à descoberta de um espaço arquitetônico pelo andar.
O fundamento histórico do rito permite compreendê-lo sempre como agenciamento físico, ou
uma forma de expressão do ser humano para o mundo, uma área de contato entre o mundo
subjetivo e o mundo objetivo.
O processamento do conceito de rito está embasado justamente no conceito de mito enquanto
fala definido por Barthes (2007) no livro “Mitologias”, o que fornece um fundamento
linguístico ao mito e consequentemente ao rito enquanto suporte. A variação deste suporte é
verificada desde o conceito lançado por Barthes (2007) até o mesmo conceito reutilizado por
Paul-Alan Johnson (1994) no seu livro “The Theory of Architecture”, no qual estabelece uma
extensão para este conceito ao associar a teoria/prática arquitetônica a uma fala.
A fala como ritual semiótico é um processo dual e sistêmico de produção e interpretação que
só pode ser interpretada dentro dos seus próprios processos de significação, dentro dos seus
próprios paradigmas de reconhecimento de valores. A teoria/prática arquitetônica é um modo
29
linguístico sem ser um modelo de representação, já que não define os valores apriori, mas
somente através de seus processos.
Um outro fundamento, o linguístico, se estabelece nesta polarização do conceito de rito, um
suporte de linguagem que determina um agenciamento formal sem determina seus
significados.
Pertinente a este conceito do fundamento linguístico, encontra-se o sentido de rito enquanto
hábito, ou costume. No que isto implica as visões antropológicas de rito, implica também as
visões semióticas, as quais entendem que a ciência se produz sem apriorismos, sem uma
teoria que valore por antemão os processos, e que ganhe sentido e valor na construção de uma
concepção dirigida pelo que Peirce (1997) denominou de hábitos de ação.
Tais hábitos de ação permitem revelar modos de entendimento que vão de processos comuns
como andar na rua e compreender a cidade, até processos incomuns como produzir uma tese
sobre arquitetura. O que valora é o processo.
O fundamento linguístico, portanto, fornece uma condição de não-permanência e dialética, de
tal maneira a permitir a descontinuidade dentro do processo da tese.
Os fundamentos histórico e linguístico do rito não são entendidos como eixos de significação,
mas como proposições de argumentação dos sistemas.
Antevê-se aqui a possibilidade de integrar sentidos que provêm de conhecimentos diferentes
como o situacionismo, a arquitetura e a semiótica, ou a psicologia, o urbanismo e as
metodologias de projetos.
30
Tais fundamentos fornecem, assim, as bases para a construção das categorias de estudo dos
sistemas.
Esta tese não infere que a arquitetura é um sistema único que estabelece relações de contato
com outros sistemas, como um pensamento holístico, ou que sintetiza em suas ações
arquétipos de outros conhecimentos, um pouco de química ou um pouco de psicologia.
Infere sim que a própria arquitetura é um sistema complexo, aberto e dinâmico e que suas
partes se relacionam com outras partes de outros conhecimentos.
Ao mesmo tempo em que esta tese infere a arquitetura como um sistema complexo, entende
que a própria tese é um conjunto de informações que forma um conjunto complexo.
3.2 UM TODO E SUAS PARTES
O exercício do método indutivo, reavaliando a hipótese ao longo do processo é utilizado de
maneira a propiciar a aproximação de informações diferentes conforme uma progressividade
contraditória da hipótese.
Os capítulos estruturam assuntos referentes ao rito e sua interpretação para a arquitetura
gerando categorias referentes aos assuntos. O processo de investigação é compreendido como
um sistema hegemônico e irredutível às suas partes, as quais, por sua vez, são partes
suficientes de seu entendimento.
Tal possibilidade se verifica pelo que já foi explicado a respeito dos fundamentos histórico e
linguístico. Este conceito de sistema é embasado em Edgard Morin e sua explicação sobre a
31
relação entre o todo e as partes de um sistema no seu livro “O Método”, parte um. Como
explica Morin (1977):
“Não podemos atribuir ao sistema uma identidade substancial, clara e simples. O
sistema começa por apresentar-se como unitas multiplex, isto é, como paradoxo:
considerado sob o ângulo do todo, é uno e homogêneo, considerado sob o ângulo dos
constituintes, é diverso e heterogêneo.” (p. 102).
Procurou-se nesta pesquisa que o seu desenvolvimento não fosse, necessariamente linear, mas
que possuísse uma interagência entre as partes como se entende que se procede na
compreensão da arquitetura. Sem pretender criar uma representação do universo da
arquitetura no conjunto da tese, este método pretendeu apenas seguir uma intencionalidade do
pensar e do escrever que, ao ser desvendado fosse produzindo conhecimento numa expressão
particular.
“A idéia de unidade complexa vai ganhar densidade se pressentimos que não
podemos reduzir nem o todo às partes nem as partes ao todo, nem o uno o múltiplo
nem o múltiplo ao uno, mas que temos de tentar conceber em conjunto, de modo
simultaneamente complementar e antagônico, as noções de todo e de partes, de uno e
de diverso.” (MORIN:1977, p.103)
O caráter interpretativo no método desta tese não está direcionado a buscar uma síntese
definitiva sobre as questões do rito e da arquitetura, mas de interpretar partes deste sistema e
encontrar, nestas partes, evidencias de um sistema aberto e inconcluso, proposto por diversas
revoluções internas que inferem significados conforme as suas próprias instâncias culturais.
O conjunto de informações pertinentes a esta tese é buscado essencialmente em material
publicado seja livro, periódico, artigo, internet, de maneira que se possa classificá-lo como
pesquisa bibliográfica, ou seja uma pesquisa voltada para relações entre conceitos já
desenvolvidos e expostos nas diversas formas de publicação, portanto este é um trabalho que
se configura como PESQUISA BIBLIOGRÁFICA.
32
Se o universo do material pesquisado define esta tese como pesquisa bibliográfica, a
intencionalidade do desenvolvimento das relações entre este material a classifica como
explicativa.
Embora tais considerações possam exacerbar as características classificatórias de uma
pesquisa que é entendida como um sistema aberto, tal compreensão permite direcionar foco
das relações e do seu entendimento.
De acordo com Gil (1996), existem três tipos de pesquisa conforme os seus objetivos.
O primeiro tipo é de caráter exploratório e tem como finalidade um levantamento das
condições do objeto de pesquisa, seja um levantamento bibliográfico ou levantamento com
pessoas, com questionários ou entrevistas. Quase toda pesquisa, inclusive esta, começa com
uma revisão de bibliografia de caráter exploratório, mas que não deve ser confundida com
uma pesquisa toda ela exploratória.
O segundo tipo de pesquisa é de caráter descritivo. Busca, através da descrição dos
fenômenos científicos estudados, o aprofundamento do objeto estudado como uma pesquisa
em arquitetura que forneça como resultado um catálogo tipológico.
O terceiro tipo, e pretendido nesta tese, é a pesquisa explicativa que, é definida por Gil (1996,
p.46), aquela que “têm como preocupação central identificar os fatores que determinam ou
que contribuem para a ocorrência dos fenômenos”.
Este tipo de pesquisa tem como finalidade explicar o porquê dos fenômenos científicos. Ao
entendermos a relação rito e arquitetura, e suas variações, como fenômenos a serem estudados
nesta tese, a razão ou os porquês destes fenômenos está no resultado das confrontações das
33
informações a partir do desenvolvimento dos fundamentos histórico e linguístico. Cabe
ressaltar que a classificação desta tese como explicativa não determina completamente sua
intencionalidade que é explicar em partes e não no todo.
Desta maneira, o conjunto de informações retiradas da pesquisa bibliográfica deve seguir mais
um ritmo de busca que uma metodologia estrita.
3.3
As fontes e as leituras
Ainda conforme Gil (1996, p.48), uma pesquisa bibliográfica deve seguir um delineamento
quanto às fontes de busca e modos de leitura. O procedimento e os instrumentos são
relacionados às formas de leitura, pois, ao mesmo tempo em que as fontes são as mais abertas
possíveis ao tema, os modos de leitura seguem uma forma de hierarquia seja esta a leitura
exploratória, a leitura seletiva, a leitura analítica e a leitura interpretativa.
Para esta tese, a leitura exploratória (que tem por objetivo rastrear assuntos e livros que sejam
pertinentes ou necessários à pesquisa), iniciou com a busca em livros, artigos e sites para
verificar a situação atual dos estudos do rito e sua relação com a arquitetura. Mesmo que não
houvesse completa pertinência com o tema, o material levantado foi importante para
determinar o caminho conceitual.
Como esta pesquisa intentou um desenvolvimento descontínuo entre as partes, fez-se
necessário que uma leitura exploratória fosse a base de todas as partes. O fundamento
histórico forneceu uma condição de permanência e o fundamento linguístico forneceu a
34
condição de não-permanência, a cada parte da pesquisa é possível iniciar uma leitura
exploratória.
A leitura seletiva seguiu-se à exploratória para definir os alinhamentos conceituais, e
consequentemente a pertinência do material levantado. Este tipo de leitura teve como função
definir as primeiras relações entre os assuntos estudados no material levantado. Ainda
segundo Gil (1996, p.68): “a leitura seletiva é mais profunda que a exploratória; todavia, não
é definitiva”. Nesta fase da leitura, o material foi selecionado pela sua pertinência sem ser
descartado, já que pode ser utilizado numa fase posterior da pesquisa.
Um exemplo disto é o livro “Elementos de Semiologia” de Roland Barthes (1997), que por
tratar justamente dos fundamentos do conhecimento semiológico tornou-se importante
informação, porém, não diretamente ligada ao desenvolvimento da relação rito e arquitetura.
Sua presença informativa, no entanto, foi fundamental como referência em vários momentos
da pesquisa.
Após feita a seleção dos textos, realizou-se a análise e foram sistematizados idéias e
conceitos. É importante ressaltar nesta fase a importância da penetração crítica para revelar as
intenções do autor e a construção dos textos desde sua temática; a identificação de idéias
chaves à síntese dos conceitos dos textos. Tal identificação permitiu alinhar os conceitos: seja
pela complementaridade das idéias seja pela sua suplementaridade ou diferença.
Um exemplo pode ser visto por meio da relação entre os livros “Mitologias” de Roland
Barthes (2007), “Novos Mitos Novos Ritos” de Gillo Dorfles (1965), e “Mil Platôs” de Gilles
Deleuze e Feliz Guattari (1995).
35
Descobriu-se uma sequência entre os livros de Barthes e Dorfles não apenas pela pertinência
dos títulos, mas pela conceitualização do conceito de mito. A relação entre mito e rito para
Barthes é ampliada no conceito de mito e técnica para Dorfles. Entre as idéias principais
destes dois livros foi possível reconhecer um efeito de complementaridade e aprofundamento.
Entre qualquer um destes dois livros e o livro de Consiglieri percebeu-se outro efeito, o de
suplementaridade dos conceitos. Consiglieri abrindo leituras semiológicas de Ogden-Richards
a Hjelmeslev e Chomsky, o que torna clara a importância da relação deste estudo com o tema
a ser investigado, ainda que não possuísse um efeito direto na relação entre rito e arquitetura.
A leitura interpretativa é o ultimo tipo e consequentemente a última fase de leitura dos textos
escolhidos, conforme Gil (1996, p.70): “naturalmente a mais complexa” já que objetiva
relacionar os significados dos textos e sua relação com o tema da tese.
Destas leituras e do resultado inferido pela relação entre os textos, foram sendo retirados os
fundamentos histórico e linguístico necessários para o suporte de raciocínio desenvolvido.
Conforme Gil (1996, p.70) “nesta última (leitura), por mais elaborada que seja o pesquisador
fixa-se nos dados, na leitura interpretativa vai além deles, através de sua ligação com outros
conhecimentos já obtidos”.
Além do estabelecimento dos dois fundamentos da tese, nesta fase da leitura foram delineadas
as categorias que nortearam cada parte da investigação. Os quatro grupos categoriais estão
focados nos fundamentos histórico e linguístico, e estão relacionados com o tema rito e
arquitetura.
36
Pelo fundamento linguístico são retirados os grupos SIGNIFICAÇÃO e TÉCNICA e pelo
fundamento histórico são retirados os grupos POÉTICA e MATERIALIDADE.
Embora os grupos categoriais tenham sido alinhados dois a dois pelos fundamentos, eles não
foram considerados estanques, fechados em si, ao contrário, foram considerados como grupos
categoriais por permitirem relações entre eles e por permitirem que outras categorias derivem
destes grupos.
Entende-se que estes grupos se desdobram em novas categorias tais como: Identidade,
Historicidade, Mito, Rito, Signo, Semiose, Linguagem, Construção, Desconstrução,
Materialidade, Imaterialidade, Fragmentação, Ideologia, Design.
São exatamente estes grupos categoriais que formam os capítulos da pesquisa nos quais foram
desenvolvidas as categorias particulares e as variações do tema. Estas categorias resultaram
do estudo da arquitetura como sistema complexo e foram consideradas variáveis conforme o
conjunto de textos analisados, conferindo o caráter descontínuo da tese.
4. Estrutura dos capítulos
Capítulo 1: SIGNIFICAÇÃO
A proposição deste capítulo está em que a arquitetura é uma linguagem e como tal exibe a
possibilidade de comunicar, significar. Desta proposição entendem-se alternativas para a
significação da arquitetura, seja por meio de seu conteúdo ideológico, histórico ou técnico, ou
mesmo por meio da ausência de um conteúdo significativo, como é possível observar na obras
de arquitetura contemporâneas.
37
O capítulo mostra que é possível entender a arquitetura como: a expressão de uma intenção
subjetiva ou uma ação sobre o mundo objetivo; como um discurso semelhante a uma
sentença, uma constituição de elementos paradigmáticos para expressar um sentido, a
exemplo do Robert Venturi chamou de “arquitetura pato”; como a expressão unificada de
vivências individuais como uma arquitetura tradicional assim como a expressão de um
conceito como as obras de Oscar Niemeyer.
Define também o conceito de significação como o resultado de um entendimento poderá ser
trabalhado nesta pesquisa pelas seguintes abordagens: a significação na tradição antropológica
a exemplo dos trabalhos de Gillo Dorfles e o entendimento dos mitos e suas ritualizações ou
de Massimo Canevacci e o sentido da cidade na leitura da antropologia urbana; a significação
na tradição linguística apoiada nas leituras semiológicas e semióticas como os trabalhos de
Barthes, Peirce, Bonta, Shusterman. Variam a compreensão do sentido do signo da escola
semiológica francesa à escola semiótica americana, focalizando aspectos como os significados
dos espaços arquitetônicos e das artes; a fenomenologia do lugar apoiada nas leituras de Aldo
Rossi e o conceito de significação histórica do lugar urbano ou a significação de base
existencial como a de Christian-Norberg Schulz e a mídia e a virtualidade observando o
sentido da arquitetura como meio de comunicação de massa como descrito por Renato de
Fusco e o sentido de virtualidade da arquitetura como nos conceitos embasados nos estudos
sociológicos de Bauman e a modernidade líquida.
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Capítulo 2: POÉTICA
“À atividade artística é indispensável uma poética, explícita ou implícita, já que o
artista, já que o artista pode passar sem um conceito de arte, mas não sem um ideal,
expresso ou inexpresso, de arte. Embora em linha de princípio todas as poéticas sejam
equivalentes, uma poética é eficaz somente se adere à espiritualidade do artista e
traduz seu gosto em termos normativos e operativos, o que explica como uma poética
está ligada ao seu tempo [...]” (PAREYSON: 1997, p.18).
A poética é um contato revelador do “eu” do arquiteto, o que transparece uma condição de
quem produz ou intenciona algo. Neste sentido, a poética é uma escolha individual dentro de
uma técnica de fabricação do objeto, o pensar/fazer como intensidade de sujeito sobre o
mundo objetivo. Neste capítulo são abordados temas como: intencionalidade estética como o
termo utilizado por Rossi: a cidade é uma obra de arte coletiva que nasce do inconsciente
social e através de uma poética que realiza o objeto para a própria sociedade; o historicismo
como base de uma poética por ele substancializada como a arquitetura italiana, ou a cultura
japonesa transparecendo na arquitetura contemporânea, o historicismo como momento de
crítica à sua atualidade ou como base metafísica para a compreensão da sociedade por meio
de sua representação física, a cidade; ideologia e sua representação, ou a ausência de
representação como forma de controle ou de informação dominadora.
A arquitetura contemporânea, a partir de escritos como o “Fim do Clássico” de Peter
Eisenman (2006), procura justamente retirar arquétipos comunicativos da formas para retirar a
informação ideológica e consequentemente dominadora; ou a arquitetura moderna como
informadora de uma ideologia reformadora da sociedade; textualidade: a partir do conceito da
arquitetura como forma de linguagem, principalmente depois da arquitetura pós-moderna, a
obra enquanto texto passa a ser algo comunicativo, significativo, podendo ser copiado ou
compreendido. Uma hermenêutica aplicada à arquitetura é uma possibilidade desta leitura,
assim como os trabalhos dentro dos conceitos de intertextualidade, contextualidade e
intratextualidade.
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Capítulo 3: MATERIALIDADE
Neste capítulo foram abordados temas relativos à matéria da arquitetura, algo que se define
como possibilidade, uma possibilidade para algo, para viver, para entrar, sentir ou emocionar.
A matéria admite uma mudança sem que se altere, sem que mude sua substância. A matéria é
constante, mas nela se pode exercer a intencionalidade da forma como a expressão da
mudança.
A cidade é produzida na matéria, mas nos tempos da cidade se verificam as mudanças da
sociedade, como escreveu Aldo Rossi (1998) em “A arquitetura da cidade” e na matéria se
verifica também a superfície da arquitetura, sua aparência, a forma na matéria.
Alguns temas foram abordados neste capítulo: medida e as extensões da matéria em relação
ao pensamento, a antropomorfia do espaço arquitetônico ou a medida independente ou
autônoma da arquitetura: escala e a expressão da arquitetura em si, a arquitetura tem uma
escala que é definida pela sua própria presença como edifício, como expressão, não a
expressão de seu programa, mas a expressão da sua realização na cidade; Geometria e os
exercícios de geometrias transcendentais nas primeiras casas de Eisenman e materialidade e
imaterialidade do espaço arquitetônico, desde o pensamento econômico no modernismo, à
transitoriedade da arquitetura contemporânea.
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Capítulo 4: TÉCNICA
Neste capítulo serão vistos temas relacionados à técnica como ação sobre o mundo objetivo,
transportadora de uma carga ideológica e base de uma poética do objeto.
Há sempre uma técnica que insere a poética de uma narrativa do objeto, uma técnica que
insere os produtos no mundo humano, cultural.
Como escreveu Frampton (in NESBITT. 2002, p. 556):
“A essência (da arquitetura) está na manifestação poética da estrutura, um ato de fazer
revelar, que é a tectônica. O leve e o pesado, opostos cosmologicamente, evocam céu
e terra, solidez e desmaterialização. A tectônica é a estilística, interna à disciplina e
mítica”.
Alguns temas podem ser abordados neste capítulo: Metodologia: toda arquitetura está assente
num modo de fazer que estabelece os procedimentos técnicos e os hábitos de ação, a
construção do objeto no cenário técnico do método. Há problemas a serem levantados desde
os exercícios de meta-linguagem, meta-projeto, as técnicas autenticas, inseridas no seu tempo
e com seus campos intencionais e as técnicas alienantes, sem a sua intencionalidade, perdendo
seu caráter de autenticidade; Manufatura/indústria e as maneiras de produção do objeto,
apoiadas na repetição ou na sua negação, nas suas relações culturais e históricas. As
mudanças do mundo técnico da manufatura aos sistemas abstratos que conformam a nossa
atualidade.
41
CAPÍTULO 1. TEORIAS E REFLEXÕES
A questão a ser mencionada no desenvolvimento deste texto é a dificuldade que se apresenta
sobre o limite, ou os limites, que circunscrevem a pesquisa sobre o rito e sua relação com a
arquitetura dada a extensão deste conceito e suas variações.
A possibilidade de seu alinhamento com as performances arquitetônicas inicia pelo sentido do
projeto arquitetônico, entendido como o resultado de um processo, sempre confirmado e
sempre alterado, e se estendem na medida em que o objeto arquitetônico é vivenciado pelo
sensível, pela absorção rítmica do espaço de um corpo que se move dentro deste.
Dentro deste conjunto de possibilidades em movimento, é que se deve circunscrever a
natureza desta relação pelo estabelecimento de uma condição do foco e do real.
O foco desta pesquisa é essencialmente discutir a fluidez dos elementos linguísticos que
suportam a mensagem arquitetônica, dando-lhe um significado claro enquanto mensagem, ou
deixando o significado aberto para ser impressa pelo sujeito que dele se apropria pela
experimentação, portanto, a esta fluidez fixou-se o conceito de rito, um rito semiológico, pela
condição que este conceito tem de agregar tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos em
função das variações das performances em arquitetura.
O conceito de rito está fortemente relacionado aos aspectos antropológicos que revelam
processos da vida coletiva, sejam religiosos ou não, mas que são unificados pela sua condição
de uma encenação da vida baseada em modelos arquetípicos - das religiões, das histórias ou
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dos esportes - ou baseada apenas em novos modos de vida tais como comportamentos
resultantes e impostos pela industrialização e da massificação da sociedade ou, em fenômenos
mais recentes, em função da nova condição de uma sociedade de excessos ou de consumo.
A fluidez de um rito enquanto real encenação dos valores sociais ou enquanto encadeamento
de processos simbólicos vive no acaso das infinitas combinações dos Significantes “que só
por acaso estão unidos de um dado modo, mas que poderiam ser combinados de maneiras
diferentes, realizando, como se diz hoje, uma infinita deriva deles.” (ECO: 1991, p.224,). Essa
deriva não é entendida como um processo simples de significação constante, mas como uma
trama de fluxos semióticos que promovem, a cada possibilidade de interpretação, produtos
significantes complexos envolvidos em tramas também ideológicas, um mito.
Por outro lado, o conceito de mito desenvolvido por Roland Barthes no livro “Mitologias”
(2007) é início e base para as indagações e relações entre rito e arquitetura, pois que, além da
sempre possível atualização deste conceito, há na sua formalização semiológica as bases de
uma crítica sócio-cultural que convergem para questões desenvolvidas na arquitetura
contemporânea, mais pelas proposições conceituais destas arquiteturas que pela maneira de
alcunhar-lhas.
Não se trata, assim, de analisar processos e objetos de uma “arquitetura da desconstrução”,
mas de aprofundar uma análise de linguagem que se estabelece desde os anos 60,
principalmente, no cenário ocidental. Estão incluídos, neste cenário, regiões e países que têm,
na sua forma de produção econômica e de distribuição social, caracteres análogos aos do
mundo ocidental e capitalista, mesmo que estas regiões e países se situem no oriente.
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É possível estabelecer analogias entre arquiteturas produzidas por países orientais e
arquiteturas produzidas por países ocidentais, que demonstram aspectos aparentemente atuais
como, por exemplo, os traduzidos nos trabalhos de Toyo Ito, Jean Nouvel, Rem Koolhaas, ou
Aldo Rossi.
Há aspectos que reúnem a produção da arquitetura mesmo quando há disparidades tão fortes
como os percebidos entre os trabalhos de Aldo Rossi e sua busca de uma identidade histórica
e o seu contrário no trabalho de Rem Koolhaas.
Os principais movimentos arquitetônicos internacionais após os anos 60 desenvolveram
conceitos embasados na produção da arquitetura como uma forma de linguagem, que
misturavam os novos modos de produção industrial - como a arquitetura de Frank O. Ghery ou a busca de estruturas linguísticas significantes - como os trabalhos de Peter Eisenman ou
Bernard Tschumi. Justamente neste último arquiteto se percebem influências do pensamento
de Roland Barthes.
O texto de Tschumi: “O Prazer da Arquitetura” (in NESBITT: 2006, p.575) está relacionado
com um livro de Barthes chamado “O Prazer do Texto”, (1973) nos quais se verifica que a
leitura, seja de textos ou da arquitetura, não se faz linearmente, mas de uma forma
fragmentada, o que ressalta a importância de tais relações para o entendimento da arquitetura
como uma forma de linguagem, que, além de não linear, possui características de produção de
mensagens bastante específicas, efêmeras e múltiplas.
A análise da arquitetura contemporânea indica que existem outros instrumentos de leitura e
produção, e é diante de uma arquitetura que se configura como linguagem que o texto de
44
Barthes aparece como indicador de uma busca, além de se firmar como ponto de início de um
caminho sobre a compreensão do rito como um pensamento sobre o significante, pois é este
conceito o ponto central para o desenvolvimento do conceito de rito.
Modos ou métodos de projeto, comportamentos individuais ou coletivos, a história passada
por meio de textos ou obras, as próprias obras, podem ser compreendidas como formas do
significante frente às formas do significado, se tomado como ponto de partida a semiologia
proposta por Ferdinand de Saussure.
A abertura fornecida por este conceito permite tanto desenvolver aspectos que são traduzidos
pela linguagem – como, por exemplo, a mensagem de uma arquitetura religiosa – ou mesmo
conceitos que inicialmente não parecem ligados à linguagem como dados antropológicos e
sociais.
A arquitetura é uma linguagem suficiente em si, os seus elementos de linguagem possuem
uma relação suficiente, semelhante à relação de entendimento de seus resultados pelas
palavras. Mesmo que as palavras não encerrem, e nem se encerrem nos meandros dos estados
simbólicos da arquitetura, há um entendimento da natureza dos espaços quando expressos em
palavras, assim como quando expressos por desenhos; tranças de linguagens e significações,
de tempos passados e presentes como se dá na transposição dos significados na história das
construções pelos projetos de cunho historicista.
Linguagens roubadas que compõem e estruturam mensagens que agregam, e, muitas vezes,
escondem artifícios ideológicos no seu interior, como se percebe na estrutura do mito.
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O conceito de rito centrado no significante que se procura desenvolver, inicia da leitura de
Barthes sobre os componentes do mito enquanto construção ideológica, assim como da
análise de forma e conteúdo no mito.
Como explica Barthes, o mito é uma fala, uma apropriação de coisas, objetos ou linguagens
por meio de uma outra linguagem. Os fatos esportivos sendo recontados como histórias
heróicas, o homem sendo recontado na arquitetura.
A fala mítica é uma cartola de mágico, onde só aparece o coelho, não a cartola, pois a cartola
que pretende ser o esconderijo da surpresa mágica não é fato aparente na estrutura mítica. E, é
justamente isto que a faz dominadora. Por essas razões, a fala mítica não se revela em si,
exige uma análise crítica que descole a trança de linguagens e coisas.
Na primeira parte do “Mitologias” (2007), Barthes apresenta e analisa uma série de mitos
franceses, provindos de uma sociedade de massa, da primeira metade do século XX.
Resultado de uma sociedade marcada pelo capital e pela industrialização, a mitologia do
século XX é um jogo de forças de poder, um misto dos Anagramas de Saussure com os
Diagramas de Foucault, pois uma mensagem senha é passada pelos mitos ao mesmo tempo
em que agenciam funções sociais: arquiteturas sob o regime do presenteísmo e da moda. O
coelho que se mostra sem dizer que está dentro da cartola para que não se sinta a pressão que
ela faz.
Mitos que Barthes analisa entre outros: um guia de viagens (o Guide Bleu), brinquedos,
marcianos, astrologia, strip-tease e plástico.
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Strip-tease e plástico são temas a atualizar: a sedução e o pecado, a cópia e o original.
Os dois temas convergem para o mesmo ponto: uma anestesia de valores através de uma
mensagem liberal, uma pretensão na quebra de valores, mas, ao invés disto, os valores
originais não estão sendo observados, apenas o seu pálido reflexo pela fala mítica.
Há uma força social no strip-tease que pretende naturalizar, falsamente, o corpo da mulher
diante de um tabu que é um dado histórico. Pois, o limite imposto pelo tabu não é algo
permanente, sequer igual nas sociedades. O corpo nu e o desejo que provoca são condições de
uma época para uma sociedade.
O desejo, próprio dos corpos e das suas relações, se vê domado ante a possibilidade de tomar,
em fantasia, pelo olhar, o corpo que se desnuda. De acordo com Barthes (2007, p.148): “o
strip-tease parisiense baseia-se numa contradição: dessexualiza a mulher no próprio instante
que a desnuda.” A distância dada pelo exotismo das roupas, dos gestos e dos acessórios
fornece a segurança necessária à imobilização do desejo. Tautologia aos pedaços, a pseudorevelação do corpo nu como o corpo mesmo sem objetivação do desejo é a construção mítica
que transforma o corpo, os gestos, o strip-tease como objeto de consumo e não de desejo.
“Ao contrário do que diz o preconceito costumeiro, a dança que acompanha
o strip-tease, do começo o fim, não é de modo algum um fator erótico. Muito
pelo contrário: a ondulação ligeiramente ritmada exorciza o medo da
imobilidade; não só dá ao expectador a garantia da Arte (as danças do musichall são sempre artísticas), mas sobretudo constitui a última clausura, a mais
eficaz; a dança, feita de gestos rituais [...] esconde a nudez, submerge o
espetáculo sob uma cobertura ‘adocicada’ de gestos inúteis[...]” (BARTHES:
2007, p.150)
A tautologia é uma das formas retóricas da produção mítica: as coisas são como as coisas são,
o pragmatismo da linguagem é dimensionado pela naturalidade de coisas e fatos. Falsa
naturalidade proposta pelo mito, o desejo expresso pelo corpo-objeto está envolvido na co-
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participação da ilusão do strip-tease: o fingimento do corpo que se despe com a ilusão que
este corpo é desejado por quem o vê.
A mensagem de controle do desejo, presente no rito do strip-tease envolve as forças naturais
da libido. Um conjunto de forças que pseudo-naturaliza o desejo. O corpo nu é o corpo nu
desde que sua revelação, e o incomodo das quebras de tabu que isto provoca, esteja controlada
por uma revelação fetichista, o desejo está contido no seu próprio simulacro. É uma técnica de
castração travestida de libertação que investe uma ação de forças sobre o corpo.
O significado resultante deste jogo expõe a forma de controle, como explica Baudrillard
(1996) no livro “A troca simbólica e a morte”:
“Neste esquema fundamental análogo ao do signo lingüístico, a castração é
significada (passa ao estado de signo), e, portanto desprezada. O nu e o nãonu funcionam numa oposição estrutural e contribuem para a designação do
feitiço.” (BAUDRILLARD: 1996, p.170).
O corpo nu perde sua condição de deposição das máscaras e expressão de uma liberdade. A
dança erótica, ao mimetizar o ato sexual ritualizado, provoca um suficiente distanciamento
ideológico. O corpo nu e o sexo, metáfora de um estado de liberdade, encontram-se
transformado em signo inibidor.
A sexualidade transformada em signo, e não em qualquer tipo de signo, permanece ligada às
instruções ideológicas que são passadas neste signo-mensagem.
Embora Barthes defina a sua visão de mito para a sociedade de massa ocidental, Baudrillard a
atualiza pela leitura de uma realidade de produção industrial, no seu sentido mais amplo de
objetos, cultura e comportamentos. Uma sociedade que se enfrenta como uma excessiva
produtora de efemeridades, valores flutuantes.
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A lógica da hiperprodução e do excesso inibem o bom-senso e argumentam com liberdade
total, falsamente total, porque não é a liberdade de agir que é tolhida, mas a quase obrigação
da liberdade de desejar, envolvida na ilusão do prazer liberal. O resultado é tédio e perda de
compreensão analítica.
O desejo diante deste mítico strip-tease é tão real e intenso quanto o erotismo de um filme de
Demi Moore: cultura de massa e informação de bom comportamento. Comportamento fingido
não pela teatralidade, mas pela conivência entre mensagem e espectador, pela docilidade com
a qual o desejo se deixa dominar. Desejo de plástico, diante de um corpo de plástico para uma
sociedade plástica em função de sua volatilidade.
Plástico: dois fatores são importantes neste mito analisado por Barthes, a transformação
infinita e similar dos objetos de plástico e a sua quase não existência como substância, numa
existência difusa.
A possibilidade de transformação do plástico, escreve Barthes (2007), é infinita conforme seu
nome indica sempre uma matéria do que não se consolida por poder ser qualquer objeto,
utilitário ou não, “um balde ou uma jóia”. Uma substância que se altera da matéria prima,
artificial e industrialmente produzida, ao objeto com a finalidade do comum, do prosaico, do
objeto doméstico.
Se hoje existem plásticos extremamente sofisticados e sem a imagem “turva e flocosa” da
época de Barthes, a matéria do possível abre um campo de significação diante do
presenteísmo – alcunha de Lipovetsky – do mundo contemporâneo e do universo da moda
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como fator de sua significação. Moda e plástico convergem e mostram uma sociedade que
perdeu seus referenciais de passado e futuro e vive, na forma de consumo, a vida do presente
como extensão domesticada do desejo.
Barthes (2007) também associa a moda do plástico com a imitação, com o símile, “um
costume historicamente burguês” a reprodução de objetos e materiais mais raros ou nobres. A
indústria da moda conseguiu reverter o papel do plástico, como a “primeira matéria mágica a
admitir o prosaísmo”, mas a sua proliferação de formas, velocidade de troca e perda de valor
relativo reforçam a associação do plástico a esta indústria. Plasticidade de formas e conceitos
na trança de linguagens que compõem o universo mítico formam o novo diagrama de forças,
nova conjuntura social, política, individual.
Sedução e plasticidade abrem os termos do nosso tempo e a arquitetura não consegue se
esquivar, tanto pelas questões conceituais, como o erotismo e a sedução da arquitetura na
leitura de Bernard Tschumi quanto à moda e o consumo na leitura dos shoppings e outros
elementos urbanos na leitura feita por Ignási de Solá-Morales.
Mesmo quando se trata de tecnologias aplicadas ao projeto e à construção, ou quando se trata
das matérias pelas quais se constroem ambientes da vida urbana, a arquitetura se traduz no
universo das linguagens e dos seus fluxos, a pragmática da linguagem – o seu uso e
atualização – se faz pelos fluxos linguísticos e suas conexões.
Pelos fluxos significantes ou pelos fluxos dos significantes é que são construídos os
elementos de linguagem urbana e arquitetônica que constituem os seus mitos relativos.
Shoppings ou hospitais ou museus, explica Solá-Morales (2002), embasado em Baudrillard,
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são produtos de uma sociedade voltada ao consumo: produtos míticos de uma sociedade
encerrada no tempo não da sua existência, mas da sua experiência.
Tudo pode ser mito, pois tudo, ou qualquer produto cultural humano pode ser absorvido pela
ideologia da sociedade de massa e do consumo.
Como se constitui um mito? Um mito é algo, pessoa, objetos, histórias, que possa ser
recontado por meio de um sistema linguístico. Ao considerar que a língua, falada ou escrita, é
um código ao qual todos os outros códigos se reportam: “cada objeto do mundo pode passar
de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois
nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas”.(BARTHES: 2007, p.200)
O mito é uma fala, não uma língua, o que significa que é um processo e não um sistema. A
fala é um modo de uso e atualização da língua, um processo por meio do qual expressões e
conceitos são compensados por pessoas e grupos de tal maneira que passam a constituir e dar
significado às suas relações, vidas, coisas, sentimentos.
A língua é o sistema de valores, através do qual a natureza multiforme da matéria (substância)
se encontra relacionada por valores de equivalência e, institucionalizada pela sociedade e seu
uso, fornece a Norma - termo utilizado por Hjelmslev (1978) – que será o arranjo interno do
seu conjunto de formas e funções. Barthes (2007) entenderá a Norma como a ideologia que
fornece as condições do jogo linguístico e da sua interpretação, ideologia burguesa que se
envolve na fala mítica. A Norma, fundamento abstrato à língua, indica o conjunto de forças
existente no jogo da linguagem e a fala demonstra a concretização das possibilidades
linguísticas.
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O que Barthes percebe, a partir da análise saussuriana da linguagem, é que pelo uso de uma
fala mítica se produz uma dominação ideológica, uma supremacia dos valores de um grupo
social sobre outros, um jogo hierárquico dos poderes de uma sociedade, embora tal análise
não seja suficiente para os estudos da linguagem atuais, a formalização do jogo de linguagem
permite o desenvolvimento deste estudo. O mito enquanto fala está composto por duas
mensagens distintas, uma envolvendo a outra, uma trança de linguagens produzindo uma
significação enevoada.
Barthes segue o caminho de Saussure, e seu Curso de Linguística Geral (s/d), e de Hjelmslev,
e seus Ensaios Linguísticos (A estratificação da linguagem e Prolegomenos a uma teoria da
linguagem).
A mensagem, o signo, se forma pela relação de dois elementos: o significante como suporte
material e o significado como conteúdo da mensagem. A relação, a significação, se faz pela
aproximação, não pela identidade, dos dois termos iniciais.
Considerada a língua como um sistema semiológico, ou uma semiótica, o mito passa a ser
entendido como um sistema semiológico segundo, uma semiótica conotativa, uma fala
envolvente tendo, para Barthes, a Norma burguesa como fundamento para este encobrimento
da mensagem inicial.
A Norma se verifica no desejo controlado diante da exposição do corpo nu no strip-tease, ou
na reprodução do símile plástico e no presenteísmo da moda, um controle de corpos e
pensamentos, portanto, montar o jogo da Norma burguesa é montar o jogo da linguagem e do
mito como semiótica conotativa.
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O mito, por sua vez, também é um signo e também se compõe de significante, significado. O
corpo nu é a mensagem inicial, expressão e conteúdo, a que pode provocar o sentido original
da libido, o surgimento da ação desejante. O ritual, as roupas, a sensualidade fingida da
striper, o exotismo das personagens figuradas, são elementos que moldam os limites do
comportamento e dos sentimentos, inibem os estados afetivos iniciais e que dão vez a um
distanciamento do objeto fetiche, devidamente domesticado dentro da superficialidade de uma
sociedade massificada.
O corpo nu é tão simples quanto o corpo nu, falsa tautologia básica que encena a
domesticação do desejo. As mensagens se enlaçam e a inicial, do desejo, se encontra
enevoada pelo objetivo massificante deste ritual cenário.
Tomemos como exemplo o plástico utilizado para imitar o material nobre ou dar a sensação
da percepção de um mundo up-to-date. O objeto de matéria nobre é entendido como a
mensagem inicial, o fato denotado, função primeira do signo. O objeto em plástico, símile do
primeiro, cópia vulgar, é entendido como o fato conotado, a mensagem industrial do objeto
feito na sua escala, no seu tempo, no tempo de uma matéria que qualquer forma pode vir a ter
é a percepção enganosa de um presente contínuo, eterno, imutável: a perfeição de plástico.
Explica Barthes:
“Pode-se constatar, assim, que no mito existem dois sistemas semiológicos,
um deles deslocados em relação ao outro: um sistema linguístico, a língua
(ou os modos de representação que lhe são comparados), que chamarei de
linguagem-objeto, porque é a linguagem de que o mito se serve para
construir o seu próprio sistema...” (BARTHES: 2007. p. 206).
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O mito enquanto signo possui um significante e um significado, sendo que o seu significante é
composto por uma mensagem inicial, um sistema semiológico primeiro, que, é abordado e
envolvido por uma outra mensagem que o inibe sem o fazer desaparecer: o domestica.
A Norma disposta na forma de controle do comportamento e dos sentimentos sociais numa
sociedade – burguesa – tem as funções de apascentar o desejo do corpo e de iludir a
compreensão dos objetos, com a finalidade de manter o domínio sobre a roda da vida
cotidiana. É apresentada como metafísica do controle social, de tal maneira a reproduzir os
seus modelos sociais utilizando uma matéria prima alheia.
A natureza e sua similaridade aparecem como redentoras para a Norma burguesa. Naturalizar
o que lhe convém, ou o que lhe ameaça, é a ordem do mito, embora uma falsa natureza. Nada
do que é oferecido ao mito como material de base é natural, pois ele pertence ao conjunto dos
fatos e da história, a novos diagramas de força.
As ações, os objetos, as pessoas, as ações sobre as pessoas, pertencem a uma conjuntura única
que distribui sua força conforme o cenário dos grupos interagentes. Ainda lembrando
Foucault (1998), cada época tem seu próprio diagrama. O material de base do mito é histórico
e não natural.
A história é um artifício de reconhecimento de cada sociedade em sua época, recontar o
passado ao ponto de reconhecer o presente. Todo produto cultural é histórico mesmo que este
produto seja um olhar significativo para a natureza. Não é este olhar significativo que Barthes
encontra na postura mítica, mas tomar a natureza como relação neutra dos processos na sua
origem e na sua finalidade: as coisas acontecem porque são naturalmente assim, mesmo que
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estas coisas naturais sejam os produtos de uma sociedade de massa e industrial. Produção e
distribuição se acertam dentro do mesmo diagrama.
A finalidade do mito é ‘naturalizar’ o diferente e transformá-lo de acordo com a Norma e,
nesta passagem, retirar o conteúdo político de toda ação ou mensagem. O mito não destrói a
mensagem existente no sistema semiológico primeiro, semiótica denotativa, mas a mantém
sob os auspícios de claras e sob a condição de verdade, eternidade. As coisas são como são.
“Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a
complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências,
suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível
imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um
mundo plano que se ostente na sua evidencia, e cria uma afortunada clareza:
as coisas, sozinhas, parecem significar por elas próprias.” (BARTHES: 2007,
p. 235).
O mito é uma mensagem dupla, uma relação entre significante e significado na qual o
significante é uma mensagem inteira. A importância do estudo sobre o significante reside no
fato dele ser uma semiótica conotativa e alterar o valor relativo da mensagem.
Uma arquitetura pode ser uma semiótica conotativa quando possui uma alteração no valor
relativo do objeto construído em relação ao seu mundo e ao seu tempo.
As linguagens, a língua enquanto linguagem de referência universal, ou a arquitetura,
enquanto mistura e tessitura de linguagens, não são elementos de identidade seja entre si ou
na relação com o seu tempo, mas certamente são correspondentes a este mesmo tempo que
fornece a elas as possibilidades técnicas, materiais, lúdicas.
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O mito é uma mensagem roubada tal qual um estilo roubado da história por uma arquitetura
de consumo, tal qual a imagem de Taj Mahal em Las Vegas, tal qual um hospital com
referências de um shopping center.
A arquitetura como semiótica conotativa – mito – não evidencia os estados da vida, não é um
regime de identidade existencial da nossa sociedade, mas pode ser entendida como clamores
de uma época, parte do sistema de significação, ou da sua ausência.
Quais as fronteiras das semióticas conotativas? A arquitetura moderna foi uma continuação do
pensamento iluminista e das poéticas românticas. Tal abraçamento ideológico a configura
como o quê? Mito ou metalinguagem? A ideologia política do modernismo não apenas
envolve a arquitetura, mas lhe propõe a funcionalidade histórica da produção do ser social
político.
Se a utopia moderna é a busca do ser político, a arquitetura é também uma linguagem
subserviente a outra. A arquitetura é meio político e não finalidade.
A Norma burguesa é também a Norma de uma linguagem de apropriação do Outro, na qual
Barthes vê a ideologia de um grupo social apoderar-se dos recursos das ideologias de outros
grupos, e fornecer as regras de um jogo de linguagem que indica os caminhos a serem
seguidos pelas diversas ações sociais. O predomínio de um sistema ideológico sobre outro
abre uma hierarquia funcional, ou nas atribuições dos sentidos de palavras e coisas, fato que
pode ser contestado pelo entendimento do conjunto de forças que atuam numa sociedade.
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A arquitetura kitsch é a relutância do jogo ideológico moderno – a contrapartida das casas
brancas e puras - ou é o próprio jogo jogado dentro do cenário real dos mercados? A
heterogeneidade do mundo contemporâneo exige uma uniformidade de suas características
como resposta aos fenômenos da globalização ou simplesmente pela perda dos valores de
referência do ser e da sua relação com o mundo. O kitsch, as “neo-arquiteturas” motivadas
pelo exercício imobiliário, podem ser respostas a esta busca de homogeneização.
A mitificação da arquitetura reside, às vezes, na encruzilhada das identidades: a preservação
patrimonial e a perda do processo do tempo. Gillo Dorfles, no livro “Novos Mitos Novos
Ritos”, abre esta discussão dentro das configurações da arquitetura e da perda deste
referencial técnico no tempo:
“Mas, ao cuidar-se da restauração, do isolamento e do remoçar desses
ilustres documentos do passado, deve ter-se uma consciência clara do que
está a fazer, ou seja, que esses cuidadosos e carinhosos restauros são, na
realidade, um trabalho de mumificação, de museificação, e por isso mesmo
também de feiticização”. (DORFLES: 1965, p.81).
O aprisionamento linguístico que a Norma burguesa exerce sobre objetos e linguagens é a
construção de um casulo dentro do qual se perde a noção da história através de um processo
de naturalização como forma de apropriação.
O mito é fala e fala é processo, mas a fala mítica é intencionada na produção da pseudonaturalização de fatos e coisas, inocentando causalidades na perda da história como percepção
referencial do entendimento do indivíduo no seu mundo. Mesmo que confrontemos a política
social do pensamento moderno com o então cambaleante mundo burguês, o conceito do
Zeitgeist também exerce um aprisionamento ideológico na metafísica do espírito social. Os
ritos produtivos modernos não eliminaram, em si, a Idéia como forma de controle ou de
explicação.
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Barthes entendeu que havia mitos na esquerda e na direita, sendo o mito uma fala
despolitizada. Explica assim:
“Se o mito é uma fala despolitizada, existe pelo menos uma fala que se opõe
ao mito: a que permanece política... Se eu for um lenhador e nomear a arvore
que derrubo, qualquer que seja a minha frase, falarei a árvore, e não sobre
ela. Isto quer dizer que a minha árvore é operatória, ligada ao seu objeto de
modo transitivo: entre a árvore e mim, não há nada além do meu trabalho,
isto é, um ato político, uma linguagem política.” (BARTHES: 2007 p.237).
Tal fala denotada, produto de uma interpretação primeira, está isenta dos processos de
naturalização do processo mítico, pois que se reconhece que o homem-lenhador produz uma
ação modificadora, artificial e simbólica, que altera o mundo – árvore – ao seu redor.
Para Barthes, esta consciência do ser no mundo por meio da fala política é uma ação
revolucionária e consequentemente isenta dos processos mitificadores.
Não é diferente na construção da ideologia da arquitetura moderna como resultado do caos
social e urbano do século XIX. O espírito de uma nova civilização se encontrava na
arquitetura como atividade política e como meio de socialização do homem.
Metafísica do tempo histórico e dos produtos culturais, o espírito do tempo demonstrava a
filiação numa concepção hegeliana dos fatos históricos e políticos, uma transformação das
estruturas sociais, as mais amplas ao ponto de compreender a ruptura dos processos históricos
e a fundação de um novo período baseado num processo animista coletivo.
Pensar e produzir o novo tempo eram viver um novo espírito e revelá-lo pelos seus índices: a
industrialização, a mecanização, a socialização, a máquina. Revelar o espírito social por
intermédio dos produtos de sua cultura e pelas intenções do design e do devir social. Os novos
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produtos, as novas arquiteturas de paredes brancas e tetos planos, eram os arautos desta
transformação a acontecer pela ação, principalmente, pela mudança urbana responsabilizada
nas mãos dos arquitetos.
O desenho da arquitetura moderna revelava este novo tempo enquanto a arquitetura baseada
no desenho clássico indicava a permanência de valores de uma sociedade que já estava se
transformando.
Não são diferentes modos e finalidades do pensamento mítico de Barthes e dos arquitetos
modernos, há aspectos que são transformadores, revolucionários sob o ponto de vista político:
do lugar do ser no mundo e do entendimento da sua história. Modos e finalidades, que não
revelavam tais aspectos, carregavam, em si, apenas os resquícios de uma forma de poder
passado e ultrapassado.
O confronto entre a esquerda e a direita nos processos mitificadores em Barthes contém o
mesmo sentido do confronto entre a arquitetura moderna com a arquitetura burguesa, a
arquitetura da “arte decorativa”, chamada pelos modernos e por Le Corbusier que expõe o
dissenso entre as diferenças da época pré-industrial e do novo espírito que se avizinhava da
“estética que exala das criações da indústria moderna” (BARTHES: 1977, p. 59), fazer
arquitetura para “homens quaisquer”, fazer a arquitetura para o lenhador, de maneira direta.
Escreveu, Le Corbusier, sobre o embate entre a arquitetura moderna e a arquitetura das Belas
Artes, motivado pelo preterimento de seu projeto para o Palácio das Nações:
“Foi assim que, fieis ao dever arquitetural, apresentáramos em Genebra um
palácio moderno. Ah, mas que escândalo! Escândalo na Academia que
mobilizou todas as suas tropas. Suas tropas enviaram para Genebra algo
como dez quilômetros de plantas, pálidos reflexos de atitudes históricas. A
opinião se manifesta: decididamente o mundo não está tão avançado como
acreditávamos; a ‘boa sociedade’ espera um palácio e para ela o verdadeiro
palácio existe nas imagens registradas durante uma viagem de núpcias aos
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países dos príncipes, dos cardeais, dos doges ou dos reis.” (LE
CORBUSIEUR: 1977, p.XXVII).
Mas se a “arquitetura não tem nada a ver com os estilos” é porque se encontra vinculada ao
espírito da sua época, um novo espírito industrial movido por novos materiais e tecnologias e
por uma nova forma de pensar o homem através deste princípio de padronização buscando um
estado de perfeição: assim diz Le Corbusier (1977): “O padrão é uma necessidade de ordem
trazida para o trabalho humano [...] Todos os homens têm o mesmo organismo, mesmas
funções [...] Todos os homens têm a mesma necessidade”.
A arquitetura moderna se realizou em torno de um objeto e de uma intenção, o objeto
revelado nos corpos modernos e a intenção internalizada no programa de transformação e
perfeição, numa primeira leitura: significante e significado.
Corpos motivados pela intenção são homens transformados pela visão política de igualdade
padrão, são arquiteturas realizadas por uma técnica de homogeneização. A idéia de perfeição
disposta sobre os corpos realiza uma disciplina organizadora do trabalho, do lazer, da
produção, ao mesmo tempo em que esconde a forma de controle que tal intenção encerra: não
é homem lenhador sem a influência do capital que se procura, mas é o homem transformado,
cujo trabalho está sistematizado nas fileiras de uma nova sociedade.
Técnica de produção:
“Em todo homem moderno, há uma mecânica. O sentimento da mecânica
existe motivado pela atividade cotidiana. Esse sentimento é, em relação à
mecânica, de respeito, de gratidão e estima. A mecânica traz consigo o fator
de economia que seleciona. Há no sentimento mecânico, sentimento moral.”
(LE CORBUSIER: 1977, p.85).
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De acordo com Corbusier (1977), a liberdade proposta para uma vida feliz e construída com
sentido de “harmonia”, traz consigo a sistematização desta mesma vida e desta mesma
liberdade, pois na sabedoria do manejo do cálculo, ainda segundo o autor citado: “estamos
num estado de espírito puro e, neste estado de espírito, o gosto segue caminhos seguros”. O
Modulor enquanto especulo do corpo e antropomorfização da arquitetura revela, também, o
modo da relação com a qual os corpos interagem, uma vez que o espaço construído contém o
sinal da convenção de comportamento que indica a o caminho certo e moral da mecânica
social.
Exercício sobre corpos como ritual significante e intenção social e política como instrução de
significado. Não se revela o mito? A linguagem política é a linguagem que demonstra a
produção como se ela fosse realizada antes da ação do capital como agente modificador do
valor do produto, ou o valor dado não pela produção, mas apenas pela especulação do capital.
Enquanto linguagem Barthes define a revolução como um produto de purificação, de catarse,
próprio para construir o ‘mundo’ através da sua fala carregada de intenção política, histórica,
antinatural.
O pensamento moderno na arquitetura não possui um viés revolucionário por estar centrado
nas utopias socialistas do século XIX, como as de Robert Owen e de Charles Fourier. Estas,
intencionalmente positivas na sua luta por um estado ideal, buscavam a transformação da
sociedade muito mais pela eliminação dos conflitos do que pelo seu enfrentamento. No
entanto, a sua visão social marcou fortemente o urbanismo e a arquitetura modernos.
O programa social, tido como enunciado político, vê-se ligado às formas das construções. A
solidariedade de formas indica a relação dos elementos sígnicos. Mesmo não carregado das
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visões revolucionárias, o urbanismo e a arquitetura modernos podem ser situados dentro desta
esfera da “esquerda” mencionada por Barthes. Porém, até onde poderemos encontrar na
construção do ser humano ideal do socialismo utópico o homem-lenhador de pensamentoação, o construtor do mundo denotativo e político?
O mito da esquerda há, mas não na mesma intensidade do mito na direita, pois conforme
define Barthes (2007, p.239): “o mito na esquerda é inessencial [...] os objetos de que se
apodera são escassos [...] nunca atinge o imenso campo das relações humanas [...]”
Por fim, a esquerda está associada à imagem do proletário, do lenhador, na qual os modos
simples de ver e produzir a vida cotidiana indicam uma ingenuidade diante da possibilidade
de construir fábulas míticas porque, conforme Barthes, na obra citada acima: “a fala do
oprimido é real [...] impotente para mentir”. Esta fala não possui a força da sedução
naturalizadora do mito burguês.
No seu próprio reduto, a direita, o mito encontra mecanismos de relato para o seu
estabelecimento, seu fundamento factual, sua história e sua geografia. A metamorfose mítica é
fluida no passar do tempo e na região social na qual se manifesta, o mito é uma fala e a fala é
fluida pela constante ressignificação de seus elementos significantes movida pela
comunicação entre pessoas, entre grupos. A significação e o valor são alterados na
propagação linguística.
Pelos mais diferentes meios de comunicação, o pensamento moderno se propagou atingindo
países com história e condições diferentes de Inglaterra, Alemanha, Holanda. O efeito desta
interpretação se evidencia na arquitetura moderna americana, na brasileira.
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Comunicação e tradição – o intercurso e o espírito de campanário – segundo Saussure,
equilibram as forças de propagação da língua. O intercurso determina o poder das trocas, as
relações comerciais, a comunicações entre pessoas, a possibilidade de viajantes se
encontrarem, os costumes serem intercambiados diante do valor de comportamentos e
mercadorias. O espírito de campanário, ao contrário, é dado pela força da tradição, das formas
as mais internas de uma língua e de um povo e tem um caráter de manutenção e alteração
interna do valor linguístico.
O intercurso, segundo Saussure (s/d) define no “Curso de Linguística Geral”, o intercurso:
“numa palavra, é um princípio unificador, que contraria a ação dissolvente do espírito de
campanário” (p.238), permitindo, portanto, por meio do sistema de trocas a coesão e a
extensão da linguística sempre através da fala, e de sua forma de uso e experimentação. Tal
ação se define em regiões geográficas da mesma forma com que, por exemplo, a arquitetura
moderna se propaga por países europeus. Barthes observa este aspecto geográfico dos
sistemas linguísticos no mito, ou seja, é uma produção localizada e não universal.
A sociedade de massa é um dos fatores que facilitam a propagação de suas formas de
linguagem e, no efeito domesticador de sua mensagem que se utiliza de mensagens cuja
significação e valor estão alterados pelo sistema de produção e, hoje se encontram ainda mais
alterados pela exacerbação produtiva ou pelo fim da produção.
Barthes associa o valor do trabalho operário, a árvore artifício do lenhador, pela analogia que
Saussure propõe, para compreender o valor das palavras e entender o valor relativo das
moedas.
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A economia política é condição da equivalência dos valores entre trabalho e salário, entre
significante e significado. Mesmo sendo fatores arbitrários e distintos, há um fator de
equivalência que os equilibra para produzir frases de sentido.
Nessa linha de pensamento, a compreensão da relação entre esquerda e direita não se
configura mais como quando “Mitologias” foi escrito. A visão ingênua e pura do trabalho
como fator significante do valor humano está destruída pela alteração do diagrama da
sociedade pós-moderna, da perda dos limites plausíveis da produção cultural-industrial, e da
alteração do sentido do valor de equivalência:
“Ora, passamos da lei mercantil do valor à lei estrutural do valor, o que
coincide com a volatilização da forma social denominada produção.
Estaremos então ainda num modo capitalista? Talvez nos encontremos num
modo hipercapitalista ou numa ordem muito diferente... já não estamos nem
no capital nem na revolução...” (BAUDRILLARD: 1996, p. 26).
Analisar o mito na direita é a principal tarefa para Barthes (2007). Encontrar a promessa do
Eterno na dominação mítica, a roda do mundo que faz girar sempre a presença do Mesmo,
com medo ou ignorante da ausência, da mutação das funções do sistema, medo da alteração
dos diagramas de poder.
A geografia e extensão dos mitos – porque são geograficamente localizáveis – não impede a
sua ação, a de pretender a sua Idéia de Ordem, de purificação do Outro transformando-o no
Mesmo, fazendo com que a sua expressão perca força, mas não seja eliminada. O mito possui
uma retórica composta por figuras de linguagem.
Barthes (2007, p.242) define esta retórica como: “transparentes, isto é, não perturbam a
plasticidade do significante”, portanto, através desta retórica é que se produza a naturalização
do Outro: do corpo nu, da crueza do plástico, da expressão do oprimido, o coelho que se
esconde na cartola que não se vê é a mágica ao inverso, não é a prestidigitação do fato, mas a
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digitalização da mensagem que inverte o sentido: a mágica não é vista, por isso é um fator de
dominação.
Na constituição da retórica mítica, observam-se algumas figuras sendo que três são
importantes na análise e na sua atualização: a omissão da história, a identificação e a
tautologia.
A elaboração linguística do mito – o envolvimento de uma semiótica pelo significante do mito
– subentende uma ordenação ideológica na mensagem que altera, enevoa o sentido de
consciência histórica, entendida a história enquanto noção de tempo e lugar e das atribuições
sociais que definem a responsabilidade do indivíduo no mundo.
Olhar para o corpo nu de uma striper e ter a ilusão do extravasamento de desejo e
comportamento – ao mesmo tempo em que é dominado por um código de mansidão – é
perder a noção da experiência do corpo ou, e talvez principalmente, perder a noção dos
códigos que estabelecem as relações sociais. Ilusão semelhante à de um edifício construído
com elementos estilísticos clássicos que levam a descrever um padrão de nobreza e
significado de classe social, enquanto tais edifícios, nos seus registros mais internos, como a
distribuição de aposentos, possuem o mesmo código de uma classe média. Produção e
consumo se enlaçam numa forma de produção e distribuição de bens e valores.
O reconhecer histórico se naturaliza na eternidade da produção mítica, uma eternidade
realizada pelo abstrato da Ordem burguesa e reforçada pelas duas outras figuras. A falsa
naturalidade da informação difusa do mito provoca a sensação do eterno ao perder o
sentido do tempo e do lugar.
65
Alterar o sentido de referência e enfraquecer a presença do outro naturalizam o fato ao mesmo
tempo em que o trazem para a ideologia burguesa, produzem uma identificação e uma
neutralização dos contrastes, a identidade é uma tautologia de dominação.
A identidade é uma tautologia (A=A) e, consequentemente, sempre reforça uma forma de
poder, no espelhamento de comportamentos, repetição das indumentárias, na idéia do grupo,
do exército ou da religião, a expressão refletida é um poder que se exerce através dela. A
tautologia promove uma identidade entre o mundo artificial histórico e o mundo mítico
naturalizado, assim como promove, também, uma identidade entre indivíduos de uma mesma
sociedade que se consolida pelo regime de leis.
Ao debater o caso Dominici (um velho pastor que havia assassinado outro homem), Barthes
(2007) expõe a construção da identidade no uso da fala jurídica que alicerça a personificação
do acusado dentro da linguagem técnica oferecida:
“A mesma coisa para a psicologia do velho Dominici. Era verdadeiramente a
dele? Não dá para saber. Mas podemos estar certos de que era a psicologia
do presidente da corte e do procurador geral.” (BARTHES: 2007, p.51-52).
O uso da fala jurídica indica, ao mesmo tempo, a falsa equivalência entre juiz e acusado, o
diálogo entre o homem letrado e o “velho pastor de cabras sem instrução”. A identificação
entre os dois apenas revela um poder instalado, os homens são assim, esta é a natureza
humana a qual a literatura técnica e as leis dão conta, linguagem universal que a todos os
corpos abarca “O pequeno-burguês é um homem incapaz de imaginar o Outro. Se o outro se
apresenta perante o seu olhar, o pequeno-burguês tapa os olhos, ignorando-o e negando-o, ou
então o transforma em si mesmo”. (BARTHES: 2007, p.243).
66
A alteração da ação sobre os corpos produz a sensação de alívio para quem condena na
identidade do alívio da pena para quem é condenado. Na elaboração da pena, se encontra a
possibilidade de vida e morte ou da sua recusa: mescla de Foucault e Baudrillard.
O escravo perde o direito à vida diante do poder do seu senhor, mas principalmente perde o
direito à sua morte, o senhor é aquele que o detém. A morte como condição expiatória da
perda da luta numa guerra de aprisionamentos é o ultimo instante de honra e direito do
perdedor. A escravização controla vida e morte pela supressão deste direito. Assim explica
Baudrillard (1996, p.77): “Poupando-o à morte, o senhor poupa o escravo à circulação dos
bens simbólicos: é a violência que lhe faz e que vota o outro à força de trabalho”.
O controle do tempo e do espaço e o controle das atividades diárias são dispositivos sociais
das utopias, da mecânica da vida e da penalidade invisível imposta aos indivíduos e a
mudança do controle sobre os corpos, na alteração da pena, não exclui o controle do tempo e
do espaço, não exclui o controle da supressão do direito da morte diante da promessa da
Harmonia eterna exposta na metafísica das leis, visível nos pensamentos de Corbusier e
Fourier.
Foucault explora este conteúdo no livro “Vigiar e Punir” (2008), iniciando sua escrita com o
sentenciamento de Damiens (a 2 de março de 1757) a ser atado por tenazes a cavalos que o
esquartejariam e de ter partes do seu corpo queimadas com enxofre e chumbo derretido.
Prescrever a condenação dolorosa é transformar o juiz em carrasco e este – por identidade –
no momento da aflição do condenado, rebaixa a natureza de quem condena ao mesmo nível
de quem é condenado. A transformação da pena sobre os corpos é a aplicação da marca
invisível da justiça pela anestesia à dor:
67
“O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos
da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma
economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e
tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará a distancia, propriamente, segundo
regras rígidas e visando a um objetivo bem mais elevado.” (FOUCAULT:
2008, p.14).
Um “bem” mais elevado é a alma. Distante da atuação direta sobre os corpos, suplícios e
mutilações, distante da corporificação do juiz-carrasco e de estados de brutalidade, as
penalidades, a partir do século XVIII passam a agir não mais sobre os corpos, mas sobre as
almas.
Golpe do destino ou novo diagrama histórico, o fato que corresponde a tal ação é a visão da
futura correção de almas. As novas leis, como enunciados, formalizaram as ações: a
delinquência. As arquiteturas, como visibilidades, formalizaram os edifícios: a prisão. Uma
nova estrutura disciplinar se ajusta a um novo diagrama de forças sociais.
O poder central está representado, é sensível, mas é invisível, porque se encontra, a partir de
então, em qualquer indivíduo daquela sociedade.
Elevar o julgamento para as almas é desprezar o objeto corpo, localizável e destrutível, e ter
controle sobre os estados metafísicos, sobre os futuros, sobre os devires.
A abstração iluminista abriu as portas das sociedades disciplinares até hoje, transformando
cada indivíduo como expressão do poder instalado, não mais necessitando de quem o
controle, mas sendo o seu próprio controle. Domesticar os corpos torná-los dóceis ao ponto de
admitirem sacrifícios e suplícios na troca de ter um corpo forte e dócil, apto para as mais
difíceis tarefas práticas e inertes diante dos abusos que se possam cometer contra ele. O corpo
disciplinado está inclinado à sua utilização econômica. Investimento político do exercício do
68
poder só admite sua função social quando admite sua força de produção e sua capacidade de
sujeição: corpo produtivo e corpo submisso.
Foucault admite um saber sobre o corpo e seu conjunto de forças, uma tecnologia política do
corpo:
“Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui,
que não é o ‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o
efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às
vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por
outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma
proibição, aos que ‘não têm’; ele os investe, passa por eles e através deles;
apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança.”. (FOUCAULT:
2008, p.26).
Não é estranho admitir a claridade da razão iluminista nas utopias de fornecimento ideológico
ao modernismo e das centralidades sociais de Owen, Fourier e Bentham, e da mecânica
metafísica de Corbusier.
Sobre o saber do corpo foram construídos campos de conhecimento psicológico ou social e
conceitos tais quais subjetividade, personalidade e consciência, construtos de exercício de
forças sociais, leis, disposições médicas e arquiteturas.
A alma, elemento de eternidade é a peça chave de um humanismo de igualdade transitória. A
igualdade dos diferentes se desfaz no exercício da linguagem e na ação de transformar o
Outro no Mesmo.
“O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já em si mesmo o
efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele... A alma, efeito e
instrumento de uma anatomia política; a alma, a prisão do corpo.”
(FOUCAULT: 2008, p.29).
Caso Dominici: a literatura psicológica evidenciou, o que Barthes contesta, a veracidade do
drama pela reconstituição científico-novelesca dos alfarrábios de comportamento, ao mesmo
tempo em que o juiz, o presidente da corte, conversa na ‘mesma língua’ com o pastor, e nesta
69
conversa de mesma língua que se fez a falsa identidade entre as partes, edificada tal
identidade pela construção de uma linguagem de um só, privando o outro de sua própria,
justificando, pela linguagem ‘universal’ a identidade entre os diferentes, a tautologia de
submissão.
Mas, a tautologia não é possível no universo flutuante dos significantes e dos significados em
função da natureza discrepante de ambos, o signo é o resultado da “solidariedade” de termos
distintos em forma e substância. O significante, produto da matéria fônica, expressa a sua
forma e substância. O significado, produto dos corpos, fornece o conteúdo a esta
solidariedade sígnica, através de sua forma e substância. Não há identidade ou similaridade
entre os elementos que compõem a mensagem, a fala, a língua. Os estratos da língua
fornecem a base dos elementos significantes: conteúdo e expressão, forma e substância: o
mito é só forma, não possui substância.
A identidade é a apropriação do diferente, fazendo tornar-se igual mesmo quando se
“respeita” a singularidade do outro. O benefício de um valor maior, a Natureza ou a Lei, que
se esparge sobre os diferentes formando um manto de igualdade, é somente o poder instalado
que busca a homogeneidade utópica, signo de perfeição.
A própria intenção da perfeição pertinente às estéticas idealistas estabelece, em regimes
utópicos ou não, um sistema de controle social motivado por uma informação fantasmática.
Seja por Deus ou pela Razão, a informação que gera identidades no todo de um corpo social
heterogêneo não respeita, pelo mínimo, os fatores originais desta heterogeneidade.
A arquitetura contemporânea, considerada da década de 60 até hoje, compreendeu esta
heterogeneidade por meios amplos ou restritos.
70
Trabalhos no campo dos métodos projetuais como os de Kevin Lynch, coletando informações
em campo sobre particularidades dos locais de projeto, ou os de Christopher Alexander, com
processos de participação efetiva da população nas decisões de design, demonstram uma
capacidade de entendimento sobre as características heterogêneas das matérias sociais.
Evidenciam, sobretudo, a desmontagem parcial de métodos e objetivos da arquitetura
moderna e sua idealização do padrão humano.
No entanto, mesmo nos dois exemplos citados fatores geram produtos de homogeneização e
identidade.
No método de Lynch, dois pontos podem ser ponderados como sistemas unificadores: a base
gestáltica do design e a mão demiúrgica do arquiteto como fator de decisão do objeto final. O
desenho, moldado pela mão do arquiteto, está regido por regras transcendentais de percepção
e entendimento como a organização da cidade e as imagens que esta provoca nos seus
habitantes conforme Lynch (1982): “Parece haver uma imagem pública de qualquer cidade
que é a sobreposição de imagens de muitos indivíduos”. Tais imagens, produtos fenomênicos
da participação do indivíduo na realidade material da cidade, são sintetizadas na classificação
dos elementos constitutivos da imagem urbana: vias, limites, bairros, cruzamentos ou nós,
pontos marcantes ou marcos referenciais.
Tal sistema classificatório instala, no método de projeto e na decisão do arquiteto, um sistema
significativo que orienta o design e, posteriormente, a legibilidade urbana. Calcado num
hábito pragmático da construção do simbólico, percebe-se no jogo linguístico do design, as
mesmas relações expostas por Saussure: o intercurso e o espírito do campanário, a
contextualidade e a tradição. A trança de elementos significantes dentro do processo evidencia
71
a construção do objeto urbano – arquitetônico semantizado sem evidenciar a natureza das
ideologias que as compõem. A “boa forma da cidade” indica uma busca de equilíbrio
harmônico na junção do diverso, ruas e etnias, histórias e técnicas, devem ser equilibradas
para resultarem num conjunto integrado de design.
Pensamento próprio da gestalt: os elementos constitutivos do design urbano definem o
conjunto-figura que será distribuído na cidade-campo através de regras de ajuste significativo
destes elementos: continuidade, similaridade, fechamento, sequência, pregnancia.
Ao tratar de projetos em grandes áreas, ou áreas metropolitanas, Lynch (1982) observa, em
“A imagem da cidade”, a possibilidade de estabelecer o design a partir do conceito de uma
cidade estruturada por uma “hierarquia estática” (p. 125) – bairros dentro de bairros –
sistematizando o desenho no conceito de árvore – hierarquizado- ou a partir do conceito de
cidades lineares, fazendo com que caminhos principais se cruzem oferecendo uma leitura
possível ao individuo. O uso da regra gestáltica se revela:
“Contudo, considerando o nosso modo de experiência presente numa área
urbana grande, somos levados a pensar numa outra forma de organização. A
organização da sequência ou do modelo temporal. Esta noção é conhecida no
campo da música, do drama, da literatura ou da dança. Por isso, é
relativamente fácil de compreender e estudar a forma de uma sequência de
elementos ao longo de uma linha, tal como a sucessão de elementos com que
um viajante pode deparar, quando se desloca numa auto-estrada urbana.
Com alguma atenção e material adequado, esta experiência poderia ser feita
de modo significante e bem delineado.” (LYNCH: 1982, p. 126-127).
A sequência, modo de organização gestáltica, prepara a mensagem urbana para sua cognição
ambiental, de tal modo que o indivíduo, ao andar pela cidade, experimente-a no conjunto
estruturado de seus fenômenos. O sentido de organização, equilíbrio e harmonia, subjazem no
design ambiental.
72
Das vantagens, verificam-se a quebra do modelo ideológico moderno quanto à idealização de
cidade e pessoa; entendimento aproximado, e não lógico e científico, do ambiente urbano;
presença antropológica mais efetiva que o modelo utópico sociológico do modernismo;
compreensão que a cidade se estabelece como uma linguagem.
Das desvantagens, verifica-se a gestalt como regra apriori de desenho, com consequências
ideológicas internas nas proposições formais e método classificatório e com estrutura
hierarquizada dos elementos de projeto urbano.
No caso de Christopher Alexander, o design da arquitetura deveria ser atingido pela
participação da população, ou grupo, que viria utilizar tal edifício. No relato sobre o trabalho
na Universidade de Oregon, Alexander demonstra a flexibilização de um passado moldado
nos modelos matemáticos – é dele e de Geoffrey Broadbent um dos primeiros modelos
matemáticos para a arquitetura em ambiente computacional – apresentando um método
participativo de alunos e professores na confecção de edifícios para a universidade. Enfim,
quem sabe mais sobre o lugar do piano na sala de música?
Com esta inventiva, Alexander sintetiza o que antes esteve aproximado, o design e o
programa. No livro “Notas sobre a síntese da forma”, exemplos são dados sobre como
estruturar e sintetizar dados sociais a partir de processos lógicos, matemáticos, e, desses
dados, constituir um programa que dê equivalência entre programa e forma.
Neste tipo de formulação não é difícil encontrar entre o programa, como conjunto complexo
de dados, e a forma, como fator equivalente aparente, a relação semiológica de significado e
significante. Solidariedade entre partes não redutíveis uma à outra, a relação forma –
73
programa expressa conveniência com as primeiras equivalências sígnicas: a forma enquanto
significante, o programa enquanto significado.
O programa, antes referente a um determinado grupo social e suas especificidades de
comportamentos e ações espaciais, se encontra, nesta formulação, transformado no próprio
grupo. O programa, que antes trazia definições de orientação para o projeto, fica impresso na
própria ação do grupo interessado, programa vivente, arquiteto espectador.
O projeto como objeto decisório da relação arquiteto-grupo se define por uma ação menos
interveniente por parte do arquiteto, mas com os mesmos elementos anteriores, as mesmas
informações ideológicas, mas numa mescla informacional mais aberta, ou menos clara.
O que permite que a ação de um grupo social se encontre melhor representada dentro do
resultado projetivo também permite que conteúdos sociais não sejam devidamente
apresentados. A dialética binária da lógica classificatória dos sistemas padronizados encontra
um paralelo na micro-utopia da decisão livre e compartilhada. O arquiteto tem papel de
mentor e analista.
No sistema matemático de Alexander e no sistema gestáltico de Lynch, embora se encontrem
avanços significativos na presença do indivíduo diante da disciplina arquitetônica, há a
manutenção de resquícios de uma ideologia moderna, utópica e ideal, na busca de resultados
que entendam a universalidade das gentes através da universalidade do design.
Tautologia de boa intenção, os métodos e conceitos das gerações de arquitetos modernos
podem ser vistos como o juiz diante do velho pastor, a linguagem reformadora e
74
uniformizadora abre a identidade do universal pela alteração de meios, mas de mesma
ideologia.
O modo pelo qual Barthes enxerga os processos míticos da sociedade são justamente
informações que são passadas na manutenção de outras. O mito não elimina a linguagem
roubada assim como os métodos de projeto não eliminam o desejo-participação, mas a Norma
se encontra relatada nas bases lógicas, psicológicas, programáticas, produzindo uma ilusão
quanto à força da participação de indivíduos ou grupos.
Analisar o conceito mítico, e a maneira pela qual ele se processa, revela a existência de
mensagens deturpadas pela constituição política híbrida na forma de sua expressão. Expressão
e conteúdo são conceitos similares de significante e significado, às vezes tratados como
sinônimos, como nos conceito da antropologia estrutural de Claude Lévy-Strauss.
O mito como forma de arte coletiva, ou como resposta produtiva e criativa de uma sociedade
diante das condições de seu tempo, pode ser abordada nesta leitura, mas não é o objetivo
crítico do texto de Barthes. O condicionamento e o domínio ideológico são condicionais nesta
leitura, o que faz com que dados metafísicos existentes nos processos produtivos sociais
denotem uma forma de orientação causal ou dominação ideológica.
Tal condição é estudada por Peter Eisenman no texto “O fim do clássico” de 1984. Eisenman
(2006) propõe que a arquitetura, do Renascimento até o século XX, compreendendo a
arquitetura moderna e o pós-modernismo, esteve sob a influência de três aspectos ficcionais –
simulações – que fizeram com que a arquitetura perdesse sua autenticidade. Estes aspectos
ficcionais são: a representação, com a manutenção da idéia de significado; a razão, gerando
75
uma intenção de verdade; e a história, que pela metafísica da transformação no tempo
manteria a idéia de eternidade.
Na abordagem da amplitude histórica de cinco séculos, estas três simulações podem ser
observadas na arquitetura renascentista na “imitação” da arquitetura antiga romana, no
historicismo do fim do século XIX e começo do XX, resultado da quebra da hegemonia do
pensamento neoclássico, e do cientificismo do século XIX e da arquitetura modernista no
século XX. Cinco séculos de um pensamento que “pretendeu ser um paradigma do clássico,
ou seja, daquilo que é intemporal, significativo e verdadeiro”.
Eisenman considera que a arquitetura é autorreferente, ou seja, não tem a necessidade de
alicerçar a sua significação, o seu resultado de entendimento enquanto signo, em qualquer
outro sistema significativo. A arquitetura não precisa de referência na ciência ou na filosofia,
nas técnicas ou formas do passado, porque é a metáfora do seu próprio tempo, da sua própria
existência: é a sua própria ficção.
Ao exibir a referência de um sistema significativo externo, a arquitetura “clássica” usa do
suporte de uma ficção que não lhe pertence, a simulação do eterno pela condicional histórica é
uma simulação da simulação, uma ficção que retira a autenticidade da arquitetura pelo uso
fingido, roubado, de seu próprio telos.
A eternidade fingida na qualidade da forma retirada dos exemplos históricos envolve
ideologicamente a realidade processual da arquitetura no manto dos arquétipos e dos modelos.
O conjunto das relações entre os elementos de composição da mensagem arquitetônica é
semelhante aos desenvolvidos por Barthes (2007).
76
Um edifício renascentista que tem o seu design baseado no design de um outro edifício
antigo, buscando conviver com sua qualidade particular demonstra uma mensagem que
deveria encontrar seu próprio telos ser encoberta, e desviada de sua autenticidade, pelo uso de
uma outra mensagem. Fruto de uma época, a dupla mensagem é uma semiótica conotativa, a
exemplo do nu no strip-tease ou da falsa nobreza do plástico. O feitiço se volta contra o
feiticeiro.
A crítica transformadora social do modernismo se vê na encruzilhada das ideologias e das
razões dos tempos e seu papel transformador é a imagem da manutenção dos domínios de
grupos sociais sobre outros através da ação das idéias e dos comportamentos: dos hábitos.
É possível encontrar hábitos de ação nos modos e métodos de projeto, nas relações entre
pessoas, no conjunto dos sistemas sociais, os sistemas de trocas simbólicas, no
comportamento enquanto ação sobre o mundo concreto, sistemas construtivos. Os hábitos
poderão estar sujeitos a uma forma de engajamento ou de domínio e, enquanto possibilidade
da existência humana, designar ou dominar o seu devir.
A associação de uma tipologia de edificação que carrega uma carga histórica –
consequentemente ideológica – a um design novo, como todos os modos de projetação de
base historicista – só pode ser feita numa realização sobre a matéria, a forma. As associações
formais são resultadas de um hábito, por uso da memória ou não, que constroem a presença
síginica.
77
Um projeto de arquitetura processado num conjunto de procedimentos que às vezes são
padronizados junto a escolas e movimentos, ou procedimentos particularizados definidos no
decorrer de uma vida profissional, pode ser entendido embasado em hábitos, numa série de
ações significantes que geram as determinações sobre a matéria gráfica ou construtiva.
O projeto, compreendido como mensagem, é constituído por relações entre significantes, os
desenhos, por exemplo, e significados, o entendimento sobre a existência da construção.
Entende-se o conceito de hábito na sua forma ampla, da possibilidade de fornecer condição de
ação sobre o mundo e da possibilidade de repetição desta ação; o hábito como possibilidade
do pensar, do viver, se emocionar. O hábito se agrega ao conceito de rito como sentido de
repetição e condição da experiência.
Crença, hábito, ação e experiência se encontram ligados neste pensamento. Foram
desenvolvidos por Charles Sanders Peirce no seu texto, publicado em 1878, chamado “Como
tornar as idéias claras” (1993), e são pontos estruturais do pensamento pragmático e da
Semiótica.
O termo Semiótica nomeando a teoria dos signos de Peirce não deve ser confundido com o
termo semiótica, utilizado por Barthes, fundamentado em Hjelmslev como: “um sistema de
significação que comporta um plano de expressão e um plano de conteúdo”. (1977, p.95)
Embora a Semiótica de Peirce e a Semiologia de Saussure tenham raízes científicas deferentes
os conceitos de crença e hábito são definidos por uma condição de movimento e mudança que
em muito se aproximam de dois conceitos semiológicos que são cruciais no entendimento da
arquitetura contemporânea e auxiliam a compreensão do conceito de rito: ausência e presença.
78
A Semiologia define que a língua está sempre em processo através da fala e que cada palavra
proferida atua num ambiente fluídico de pensamento; na relação dos significantes, ou plano
de expressão, com os significados, ou plano do conteúdo; como explica Saussure:
“O papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um meio
fônico material para a expressão das idéias, mas servir de intermediário entre
o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza
necessariamente a delimitações recíprocas de unidades. O pensamento,
caótico por natureza, é forçado a precisar-se ao se decompor. Não há, pois,
nem materialização de pensamento, nem espiritualização de sons; trata-se,
antes, do fato de certo modo misterioso, de o ‘pensamento-som’ implicar
divisões e de a língua elaborar suas unidades constituindo-se entre duas
massas amorfas. Imaginemos o ar em contato com uma capa de água: se
muda a pressão atmosférica, a superfície da água se decompõe numa serie de
divisões, vale dizer, de vagas; são estas ondulações que darão uma idéia da
união e, por assim dizer, do acoplamento de pensamento com a matéria
fônica.” (SAUSSURE: s/d, p.131)
O pensamento se torna preciso e se decompõe, cada palavra dita é uma precisão das massas
amorfas, que se decompõe imediatamente diante da efemeridade da expressão. A fluidez da
linguagem se produz nesta alternância de precisão, ou um arranjo particular dos planos de
expressão e de conteúdo, e de decomposição deste mesmo arranjo. A mesma palavra dita duas
vezes não é a mesma palavra, porque o sentido da segunda está carregado de condições
diferentes da primeira. Duas expressões que se ligam pela memória do significante e das
possibilidades de significado. Precisão e decomposição, como presença e ausência.
Tal movimento do pensamento, que caracteriza esta passagem, é verificável no conjunto
conceitual crença-hábito-ação de Peirce. Nesta semelhança, reside a importância do conceito
de hábito e sua possibilidade de aplicação no conceito de rito semiológico, já que permite
ampliar tal conceito para condições de natureza antropológica pela condição contextual da
cultura; metodológica pela exigência do entendimento de projeto; interpretativa pela maneira
como um indivíduo possa se relacionar e compreender uma arquitetura.
79
Eisenman, no texto “O Fim do Clássico” (2006), escreve que a sua arquitetura “começa a
envolver ativamente a idéia de um leitor consciente de sua própria identidade como leitor em
da presença de um usuário ou de um observador”. (p. 246)
Peirce (1993) discute na sua confrontação ao pensamento cartesiano, que o conhecimento
parte de uma forma de crença, não de dúvida. A crença não é entendida como forma de
aceitação tola da realidade, mas é uma produção do pensamento no qual se assenta a
possibilidade de um hábito, uma regra de ação: “A essência da crença é a criação de um
hábito e diferentes crenças se distinguem pelos diferentes tipos de ação a que dão lugar”
(p.56).
Mas o movimento produzido no conjunto conceitual crença-hábito-ação se alicerça no mesmo
estado de “precisão e decomposição” de Saussure. Na explicação do que é uma crença, Peirce
demonstra que inicialmente:
“é algo que estamos cientes... aplaca a irritação da dúvida e envolve o
surgimento, em nossa natureza, de uma regra de ação... o surgimento de um
hábito. Na medida em que aplaca a irritação da dúvida, que é o motivo de
pensar, o pensamento diminui a sua tensão e, ao atingir a crença repousa por
um momento”. (PEIRCE: 1993, p.56)
A crença, assim, define um hábito numa alternância de dúvida e reflexão, repouso e
movimento, mesmo o pensamento sendo, “essencialmente, ação”.
O movimento fluídico da linguagem se assemelha ao movimento ação-repouso do
pensamento, fornecendo componentes de linguagem na construção de significados
abrangendo hábitos, em amplo sentido.
80
O contexto e a memória são condições possibilitadoras para o movimento do pensamento e da
fala, pois se não houver a possibilidade de repetição não há a construção do hábito ou da fala.
Mesmo que palavras e pensamentos se alterem a cada movimento pela sua nova conjuntura, é
pela possibilidade da repetição, consequentemente do uso da memória, que se produzem as
relações sígnicas mais amplas e diversas.
Tanto o hábito quanto a fala são atualizações dos pensamentos-palavras ulteriores ao
momento da sua experiência, da sua ação, da produção, ou da leitura.
O hábito, e a memória, não pertencem aos edifícios, mas aos indivíduos. Podem estar
sugeridos dentro dos edifícios, mas também podem ser modificados com novas formas de
comportamento em épocas diferentes.
Os edifícios são formas que possibilitam interpretações conforme a possibilidade de quem os
vê. A idéia de Eisenman de “um leitor consciente de sua própria identidade” revela o conceito
da arquitetura como uma escrita, resultada de um ato – de projetar:
“O que estamos propondo é a idéia da arquitetura como ‘escrita’ em
oposição à arquitetura como imagem. O que está sendo ‘escrito’ não é o
objeto em si - sua massa e volume – mas o ato de dar forma.” (EISENMAN:
2006, p. 246)
A arquitetura é uma escritura definida pela relação de planos de conteúdo e de expressão que
se relacionam num estado fluídico de significação e que é o resultado, na produção e na
interpretação, de hábitos de ação.
Este ato, como a capacidade do arquiteto expressar seu traço por meio de um projeto ou de
uma arquitetura revela o entendimento que o arquiteto tem do seu tempo, da sua história.
Compreender um leitor consciente de sua leitura é também compreender a arquitetura como
81
processo, como fala, como atualização, retirando de suas entranhas o fardo da verdade, da
eternidade, do significativo.
Mas o entendimento que uma sociedade possui de sua época pode ser um engano ou é apenas
resultado do conjunto de forças que atuam no seu período histórico?
Ao tratar da ficção da História, Eisenman focaliza certeiramente o conceito do Espírito do
Tempo, o Zeitgeist, como uma máscara do classicismo diante de sua ‘realidade’ de efeitos
transformadores das cidades e das sociedades:
“Caberia perguntar por que os modernos não se reconheceram nessa
continuidade. Uma resposta possível é que a ideologia do Zeigeist confinouos ao seu próprio presente histórico com a promessa de libertá-los de seu
passado. A ideologia os fez cair na armadilha da ilusão de eternidade de seu
próprio tempo.” (EISENMAN: 2006, p.240)
A arquitetura deveria estar relacionada com o seu tempo de tal maneira a expressar com
exatidão as condições espirituais da época que deveriam existir em todos os produtos culturais
de uma sociedade.
A sociedade moderna deveria estar expressa na arte, nos comportamentos, nas arquiteturas,
nos hábitos. A Idéia imanente no Espírito do Tempo conferia às realizações sociais a crença
de um Estado social perfeito baseado no pensamento mecânico: a casa como máquina de
morar numa cidade ideal, harmoniosa, para um ser humano ideal; sendo os arquitetos os guias
portadores da responsabilidade de mudança de uma sociedade burguesa para uma sociedade
industrial e socialista.
A dialética do real encontrava sua referencia significativa no Zeigeist e a arquitetura
encontrava sua referencia neste estado de perfeição.
82
A sociedade burguesa encontrava o fim da experiência da sua finalidade histórica, o sentido
de ruptura e fim da História, enquanto a sociedade moderna buscava encontrar a sua nas
fábricas e na mecânica. Ruptura do telos social encontrado, no seu tempo, como expressão de
sua própria eternidade.
Romper com a história passada, princípio de renovação, deveria exibir modos e objetos
relacionados com a nova finalidade, rompimento entre “o valor contingente do Zeitgeist e o
valor eterno do clássico” (EISENMAN: 2006, p.239).
O autor também expõe o engano moderno:
“Ironicamente, ao invocar o espírito da época em vez de abolir a história, a
arquitetura moderna não fez mais que continuar agindo ‘como parteira da
forma historicamente significativa’. Desse ponto de vista, a arquitetura
moderna não foi uma ruptura com a história, mas simplesmente um
momento no mesmo continuum, um novo episodio na evolução do Zeigeist.”
(EISENMAN: 2006, p.239)
Desenhos novos – as paredes brancas e a arquitetura funcional – e métodos novos foram
concebidos na consecução da ficção moderna. Ritos modernos para fabricar objetos modernos
são cadeias sígnicas nas quais o desenvolvimento se estabelece por intermédio das formas
significantes, reconhecendo uma nova condição de época.
Demonstra tal ordem dos fatos a intenção moderna de fabricar os seus produtos industriais
como o resultado de instruções tecnológicas nas metodologias projetuais, quebrando a regra
acadêmica da imitação de edifícios modelos já construídos que levavam, em si, as qualidades
apriori de uma regra de composição. O pensamento moderno, concebido como essência de
uma nova época tecnológica, substituiu o sentido das imitações projetuais pela liberdade
projetual com base no pensamento mecânico como forma distributiva do bem industrial como
equivalência da distribuição equânime de um bem social.
83
No texto “Tipologia e metodologia de projeto”, Alan Coulquhoun (2006) discorre sobre as
alternâncias do pensamento projetual entre o tecnológico, como o citado acima, e o
determinista, cunhado pelas raízes acadêmicas e pelo pensamento evolucionista.
Diante da necessidade de uma continuidade das condições existenciais do ser humano, dos
modelos biológicos, da aproximação com a natureza e da imitação dos modelos, a fabricação
tecnológica da arquitetura deveria ser feita baseada em condições que exaltassem os novos
tempos.
Dois excertos citados por Coulquhoun (2006) são claramente significativos quanto a isto. O
primeiro, de Le Corbusier demonstra a condição da qualidade de um edifício residir na sua
possibilidade do projeto enquanto desígnio, ação para o devir. O edifício como acontecimento
plástico se estabelece fora do estado de imitação:
“Meu intelecto recusa a adoção dos módulos de Vignola em matéria de
construções. Eu penso que há uma harmonia entre os objetos com os quais
estamos lidando. A capela de Ronchamp talvez mostre que a arquitetura não
é uma questão de colunas, mas uma questão de acontecimentos plásticos. Os
acontecimentos plásticos não se regem por fórmulas acadêmicas ou
escolásticas; elas são livres e inumeráveis.” (LE CORBUSIER: 2006, p.278)
O trabalho sobre a matéria, a possibilidade plástica, é produto das condições da época e de
suas técnicas, como o concreto armado. A forma moderna sobre a matéria do concreto é
realizada por uma técnica que evidencia o possível presente, o motivo que determina que
aquela forma não poderia ter sido feita antes, o novo.
O acontecimento plástico é um processo de hábito que resulta numa forma, o hábito que rege
uma ação nova sobre a matéria mesma do mundo. A tentativa de o moderno ser um Outro que
se destaca da força diagramática do Mesmo da sociedade burguesa, da arquitetura acadêmica.
84
O segundo, de László Moholy-Nagy se associa à condição da liberdade e da inventividade,
mas permite a inserção da possibilidade de “qualquer pessoa” poder atingir tal estado de
concepção desde que perceba a mecânica e uma tecnologia de associação:
“O ensino se dirige à imaginação, à fantasia e à inventividade, condições básicas
para um contexto industrial em permanente mudança, para uma tecnologia em
permanente fluxo... O último passo nesta técnica é a ênfase na integração por meio
de uma busca consciente de relações... A mecânica da intuição do gênio nos fornece
a chave desse processo. Qualquer pessoa pode chegar perto da aptidão singular do
gênio, se compreender sua característica essencial: o clarão breve e intenso do ato de
associar elementos que não combinam entre si de maneira óbvia... Se usássemos a
mesma metodologia em todos os campos de conhecimento teríamos a chave de
explicação de nossa era – ver tudo em relação.” (MOHOLY- NAGY: 2006, p. 278,
279)
O pensamento moderno entendeu eliminar a estética na consecução dos seus objetos ao
eliminar as imitações icônicas e apostar a essência da nova era nas tecnologias de projeto.
A possibilidade que alguns edifícios tenham se tornado ícones para gerações de arquiteto – a
Ville Savoye de Le Corbusier, o edifício Seagram, de Mies van der Rohe – não elimina a
crença inicial que o pensamento funcional produziria as novas máquinas sociais. A ficção
moderna do Zeigeist, como expressa por Eisenman (2006), foi percebida por uma dobra do
tempo e por novos dispositivos intelectuais.
A mudança dos modos projetuais, de uma imitação artística dos modelos acadêmicos para
uma fabricação tecnológica dos objetos, evidenciava a crença que tal conhecimento essencial
do seu mundo estava voltado para o seu promissor futuro. Condição da eternidade do espírito
de uma época expressa na dialética do cotidiano.
Os aspectos contingentes do mundo e dos dias, os materiais e operários disponíveis, as
culturas nas quais objetos modernos seriam aplicados, seriam configuradas no seu movimento
85
por uma presença metafísica. A aposta do futuro estava calcada numa metafísica do tempo e
na crença do idealismo dos homens.
A matéria do mesmo velho mundo reconfigurada por um novo regime de forças, expressa
pelas mesmas palavras comutadas nos seus planos de expressão e conteúdo, reflete a fluidez
das linguagens, dos modos, dos hábitos. Entretanto, não há identidade possível entre as
linguagens, as diversas expressões sociais, e uma metafísica do tempo. A associação entre os
elementos que constituem expressão e conteúdo não é identitária, são formas distintas que se
associam por arbitrariedade, por convenção.
As formas de expressão de um tempo são o resultado de um movimento fluídico e incessante,
de aparecimento e desaparecimento, tendo os códigos e a memória como elementos nos
dispositivos de significação. Na sua relação com as formas de conteúdo, as formas de
expressão são cognições do mundo formado a partir de um diagrama de forças próprio do seu
tempo, da sua história: assim a ficção de uma razão essencial do movimento moderno.
A Razão matemática como condição substancial às formas projetuais são claramente
expressas na hierárquica visão do projeto de Cristopher Alexander (1967), atributo que a
expressa como portadora de um sentido da sua época. Se a Idéia de um tempo, vigente nas
formas espirituais, deve estar retratada nos produtos culturais da sociedade moderna, deveria
haver métodos projetuais que conferissem transparência, condição impossível, às fases
processuais do projeto ligadas racionalmente e expressando a hierarquia de síntese deste
processo.
86
O conhecimento de um processo racional, matemático, consequentemente lógico e
hierárquico, permitiria ao arquiteto ter uma “consciência” de seu fazer com novos dispositivos
ligados ao seu tempo, como, a respeito do uso de uma técnica racional frente à tradição
artística da intuição projetual, escreve Alexander em “Note sulla sintesi della forma”:
“[...] desejo declarar com muita franqueza a minha firme convicção a cerca
desta inocência perdida, por que há muitos projetistas, ao que me cabe, não
estão dispostos em aceitar tal perda... Hoje estamos em um outro dilema.
Desta vez a perda da inocência é mais intelectual que mecânica”
(ALEXANDER: 1966, p.18)
Alexander intenta, com isto, definir a mudança de padrões sociais, mudança de novas de
produção e um novo objetivo para a arquiteto e uma nova responsabilidade para os arquitetos.
A perda da inocência mecânica é referente à força das máquinas e da industrialização no
século XIX alterando a forma de produção de objetos feitas por técnicas de artesanato ou
“artísticas”, a perda da inocência intelectual é a alteração de métodos intuitivos para métodos
racionais de projeto. O projeto feito com a clareza da razão transpareceria as causas das
decisões arquitetônicas de tal forma a permitir um processo crítico mais efetivo diante das
definições funcionais da forma arquitetônica.
O projeto como processo claro é a possibilidade de verificar como o ambiente, o contexto que
condiciona a arquitetura, e a sociedade, incide num processo racional que confere qualidade à
forma a partir da representação lógica dos sistemas que prefiguram a forma arquitetônica.
Nova qualidade, para uma nova forma, para um novo tempo:
“Devemos enfrentar a nova situação e reconhecer que estamos à véspera de
uma era na qual o homem estará a ponto de agigantar a sua faculdade
intelectual e inventiva, assim como no século XIX ele aumentou s sua
faculdade física com o uso da máquina. Agora, como então, a nossa
inocência é perdida. E agora, naturalmente, a inocência, uma vez perdida,
87
não pode ser recuperada. A perda exige empenho, não renuncia.”
(ALEXANDER: 1967, p.20)
Uma nova era na qual, com novos métodos e na linearidade das idéias sociais modernas, se
configurava uma arquitetura como linguagem.
Os objetivos das idéias se contorcem dada a fluidez das coisas e dos fatos. A proposição
metodológica de Alexander se encontra na linha de desenvolvimento das idéias modernas, da
construção de um novo mundo qual o pensamento de Corbusier. No entanto, expressa uma
variação na construção da forma arquitetônica. Corbusier entende que a arquitetura é um
“jogo de volumes sob a luz”; superfície, volume e planta são definidos e alimentados por um
traçado regulador, uma intenção formal que determinaria os aspectos particulares, funcionais,
em cada objeto. Mas isto não é suficiente para Alexander: a forma deve resultar de um
processo, porque todo projeto é um processo, que consiste num procedimento lógico,
representativo das condições da sua época, transparente.
Ao mesmo tempo em que Alexander (1967) aprofunda a transparência conceitual pelo
envolvimento do processo lógico de design, “perdendo a inocência” (1967, p.20),
a
arquitetura começa a ser reconhecida com seus atributos linguísticos, revelando a sua
constituição enquanto mensagem. O “dilema” (p.18) da época se avizinhava não pelo advento
da lógica e da clareza de projeto, produtos do cientificismo do século XIX, mas, e
principalmente, pela análise linguística do projeto, a abertura de um problema que seria
crucial no século XX, ao mesmo tempo em que a razão, essência e força deste pensamento,
encontrariam o seu ocaso.
88
A compreensão da relação da semiologia e da arquitetura é verificável no livro de Alexander
(1967) na discussão sobre o método projetual. A partir de uma visão sistêmica que
interagência sistemas e subsistemas dentro do método, o processo projetual é mostrado como
modos de classificação de elementos externos – luz, clima, comportamento – traduzidos pelo
método como categorias representativas das diversidades dentro de uma hierarquia lógica, em
árvore. A permuta dos valores reais de cada sistema é definida pela transmutação dos valores
em sinais matemáticos, o que define que, ao “falar” de algo, a linguagem projetual deixa de
ser mera representação para ser uma interpretação dos sistemas interagentes.
Explica Alexander (1967):
“Qualquer conceito pode ser definido e entendido por dois modos
complementares... Definimos um conceito por denotação quando
especificamos todos os elementos da classe à qual se refere. E definimos um
conceito por conotação quando buscamos iluminar o significado
analiticamente, e nele indicamos a propriedade e os atributos recorrendo a
términos de outros conceitos de mesmo nível.” (ALEXANDER: 1967, p.71)
A definição da classificação por denotação é a representação de classes de atributos
projetuais, como “acústica”, “segurança” e “economia” (p.70), através da sua própria
nomenclatura e da sua inserção de condicionantes projetuais, sem uma tradução que iguale
efeitos dentro do mesmo sistema. O tipo de relação entre a economia e a acústica e a
segurança se faz mais pelo conhecimento que o projetista adquire ao longo de sua vida
profissional, identificando os elementos constituintes do projeto e menos por um método
projetual que os integre e os esclareça: “Assim como estão as coisas, o procedimento da
projetação autoconsciente não fornece nenhuma correspondência estrutural entre o problema e
os meios concebidos para resolve-lo.” (Alexander. 1967, p.73)
A intuição e o conhecimento prático produzem, para Alexander, um “controle sempre maior
sobre o processo de projetação” (1967, p.79), mas como tal procedimento impede a clareza do
89
processo, diante do fato que as simbologias que representam as condições para o projeto são
falhas e “tornam sempre muito difícil que a estrutura real, causal, do problema se exprima no
processo” (p.79).
A esfera da linguagem se encontra definida em Alexander: o projeto arquitetônico é uma
linguagem representativa que necessita de uma clareza, uma razão matemática. Mas, indica
que a representação das classes dos objetos reunidos no processo de design, relacionando
“significados [...] disponíveis na língua que falamos” (ALEXANDER: 1967, p.72), não é
suficiente. A expressão denotativa não é suficiente para o trabalho em arquitetura porque “na
prática, os conceitos não são inventados e definidos por denotação, são gerados por
conotação” (ALEXANDER: 1967, p. 72), pois a comutação de seus valores dentro de um
mesmo sistema de projeto, classificatório, seletivo e ordenado hierarquicamente, deve ser
regida por princípios matemáticos.
A razão de uma utopia fourierista, a Harmonia coletiva, a Harmonia radiante do idealismo
corbusiano e a metafísica contábil do pensamento de Alexander demonstram a trança de
linguagens que evidencia uma mensagem conotativa na arquitetura. A arquitetura é um signo,
ou conjunto de signos, que não é produzida na sua função primeira, na expressão direta da
classe de objetos à qual se refere. Mas a arquitetura é um produto linguístico complexo que
reúne sistemas representativos dos mais diversos.
É real a afirmação que “segurança, economia e acústica” são problemas reais de naturezas
distintas trabalhadas por representação tanto dentro do projeto quanto no próprio objeto final.
A luz da arquitetura corbusiana, a parede vitral de Romchamp, não é a mesma luz física, mas
a escultura metafísica da luz, a expressão de um tempo que se revela na matéria natural do
90
mundo. Técnica e ideologia são inferidas na percepção desta luz. Da mesma maneira o
conceito de economia de meios numa Unidade de Habitação como a de Marselha produziu
um objeto distinto do Pavilhão de Barcelona de Mies.
O objeto final não pode ser identificado com as suas representações, a intenção que ele
representa da ação humana sobre o mundo é única no sentido formal, a forma significativa e
sua substancia. O efeito da circulação sobre quem por ela se orienta, ou a sensação da luz
refletida na matéria formada, são expressões que podem ser calculadas, previstas, mas não
antecipadas.
Assim como técnica e ideologia são inferidas num processo matemático de projeto, abstraindo
o real para uma aproximação dos fatores dentro de um mesmo sistema de representação:
gráficos, diagramas e representações icônicas.
A demonstração de Barthes sobre a estrutura do mito é, essencialmente, a demonstração de
uma fala – processo – conotativa, a qual possibilita que ideologias permutem significações
dos sistemas envolvidos e refaçam o seu significado à “luz” desta ideologia.
Desmembrar as partes e revelar finalidades é produzir uma análise que evidencia o conjunto
de forças significantes no objeto-processo, o objeto arquitetônico como possibilitador de
processos cognitivos, significativos. Uma expressão formada da matéria do mundo que se
reincorpora de significado a cada olhar novo que a envolve, a cada história individual,
microdiagramas do tempo, que a ressignifica.
Não é uma condição necessária usar a nomenclatura “mito” para definir a arquitetura, mas é
necessário compreendê-la como esta trança síginica, uma mensagem conotativa que pode,
91
conforme o seu arranjo revelar ou encobrir, e quase sempre encobrir, as mensagens contidas
dentro do seu polissêmico produto.
A arquitetura não é, necessariamente, uma expressão sintética, pois que os sistemas
envolvidos somente estarão sintetizados na forma por abstração e força ideológica de coesão.
Tal força de coesão aparece na arquitetura moderna na sua busca à síntese ideal, mas, como
retrata Robert Venturi, no livro “Complejidad y contradicción en la arquitectura” (1978), os
arquitetos modernos, pela ideologia, mas não na sua prática, pretenderam objetos sintéticos
que expressassem uma nova condição social, desvinculando seu processo histórico com uma
sociedade ultrapassada:
“Em seu intento de romper com a tradição e começar tudo de novo
idealizaram o primitivo e elementar à custa do variado e sofisticado. Ao
participar de um movimento revolucionário, aclamaram a novidade das
funções modernas, ignorando suas implicações. Em seu papel de
reformadores, advogaram puritanamente a separação e exclusão dos
elementos, no lugar da inclusão de requisitos diferentes e suas
justaposições.” (VENTURI: 1978, p.27)
A exclusão dos elementos de arquitetura, assim como dos vivenciais, foi a marcha reguladora
do traçado simplificador do modernismo ao intencionar as formas puras como ícones basais
das variações tipológicas. A “seletividade de conteúdos e linguagens” (VENTURI: 1978,
p.29) marcam a força desta arquitetura e a sua limitação diante de uma relação linear de
significação e, consequentemente, pouco expressiva da riqueza arquitetônica.
Compreender a contradição dos elementos, como indica Venturi (1978), permite uma leitura
ambígua, cambiante e de maior amplitude da forma arquitetônica.
Compreender a polissemia da forma arquitetônica permite uma leitura aberta a permutas
internas dos sistemas que a compõem. A arquitetura não é uma linguagem de meras
justaposições, mas é, sim, uma mensagem estratificada nas suas formas significantes.
92
O tipo de conectividade dos elementos componentes da forma relaciona sistemas que não
sintetizam. A forma só pode ser significativa se houver um leitor que a interprete, mesmo que
livremente e a pragmática da arquitetura como linguagem só se configura nesta ação
interpretante e atualizadora. O fenômeno arquitetônico, base do entendimento da forma, é
uma ação efêmera diante da matéria sólida do ambiente construído. Mas, é justamente a
efemeridade da percepção e da significação do signo arquitetônico que altera o seu valor de
uso, de história e emoção.
Não é contradição dos elementos, mas é a estratificação das semióticas que compõem a
arquitetura que indica o cenário no qual resulta a possibilidade de permuta entre os valores
dos signos destas semióticas permitindo, nesta permuta, a deriva significante enquanto desvio
ou enquanto tensão. Pois que há uma semiótica conotativa, a trança das semióticas na
arquitetura, a diferença entre o domínio ideológico e a multiplicidade significativa é a exata
diferença entre o desvio semântico e a tensão exibida nos seus elementos materiais.
É assim que uma classificação hierarquizante, em árvore, como a de Alexander desvia, pelo
arranjo ideológico do cálculo matemático, a possibilidade de uma leitura aberta dos sistemas,
ou das semióticas que se relacionam – e dependente do arranjo pelo qual se relacionam – na
esfera da forma arquitetônica.
Tendo por base o conceito de mito de Barthes (Mitologias. 2007), o conceito de rito parte do
significante do mito em movimento, agregando, sem gerar identidades, forças sociais
produtivas e modos de distribuição dos produtos sociais por meio de hábitos.
93
A deriva semiótica e a percepção da articulação dos significantes. O signo arquitetônico como
concepto é o resultado da deriva significante, como processos de expressão, resultando na
significação do ambiente construído. Os dados relativos ao ambiente, enquanto percepção,
permitem constituir equivalências significantes como as imagens da história individual ou da
história coletiva, as quais fornecem de repetição e produção de hábitos: a ocupação política
das ruas, as lutas territoriais da cidade, os aposentos de uma habitação.
O termo rito possui um significado atrelado a encenações e comportamentos originariamente
em cerimônias de caráter sacro, místico, nas quais o rito permite a vivência mítica, a
experiência das forças divinatórias, da percepção do mundo através de um estado de
consciência alterado por esta vivência, mas que dela retira um significado que explica as
condições das coisas da natureza e das coisas do homem.
É possível estender este conceito a situações não religiosas, cotidianas, mas que são sujeitas
às mesmas condições de encenação e significação.
O ritmo de vida de uma sociedade industrial deixa bastante claro e evidencia que mesmo em
situações cotidianas e aparentemente comuns, há uma encenação proposta para a significação
da vida social.
O rito semiológico não se abstém desta prática ou se alija do rito cerimonial como modo de
significação, mas atrela os fatores antropológicos e culturais a uma possibilidade de
expressão, ou a diversas possibilidades de expressão, de tal maneira que, ao mesmo tempo em
que o rito semiológico se confunde com os ritos cerimoniais, é distinto pelo foco linguístico,
semântico e pela análise ideológica, pois o que se pretende é analisar, nas cerimônias da
contemporaneidade, traços ideológicos e composições de forças coletivas.
94
Tais cerimoniais são comportamentais, ou teóricas, como expressa Cauquelin (2005, p.11):
“um dos sentidos de ‘teoria’ está ligado à etimologia theoria, procissão ou cortejo ritual em
honra a um deus, que convoca toda sorte de participantes para uma festa votiva”. O foco
linguístico do conceito de rito é um acompanhamento teórico, um cortejo abstrato das formas
de pensar a arquitetura sob o ponto de vista de suas matérias e expressões.
Acompanhar o significante é historiá-lo, definir sua apropriação pelas significações e métodos
da arquitetura e aprofundar o seu entendimento como elemento analítico de uma atualidade.
Um dos fatores da arquitetura contemporânea, principalmente dos anos 80 até hoje, é buscar
uma forma final que procure não conduzir, ou não revelar, significados indicados pelo
arquiteto, mas que permita a quem a veja, ou a perceba, produzir seu próprio significado. São
traços de uma arquitetura produzida principalmente sobre o significante, sobre as suas bases
materiais ou sobre os registros de ação projetual.
Na arquitetura e sua matéria em movimento, na fluidez dos signos e das possibilidades de
significado e nos seus registros culturais é que se verifica o rito semiológico, o cerimonial das
ideologias e das formas.
Acompanhar o significante não é produzir uma arqueologia do signo e de sua estrutura, mas é
decifrar a sua presença hoje no meio de uma cultura ocidental e global, na qual há uma nova
distribuição de bens, ou dons, ao modo de Baudrillard, uma nova forma de controle de
pessoas e comportamentos pela modificação das sociedades disciplinares e pela reconstrução
de seus ambientes.
95
Este cortejo acompanhamento é sim o caminho de um pensamento sobre as linguagens, que
passa por Saussure, Hjelmslev, Foucault, Deleuze, Baudrillard e Bauman, e também pelas
arquiteturas de Eisenman, Tschumi, Rossi, Morales, Koolhaas.
Conduz pela linha da história o desenvolvimento dos ritos que são produtos de uma cultura e
que independem de uma ciência semiológica, mesmo quando interpretados por ela, e ritos que
são propostos dentro do universo das linguagens.
A história e a linguagem fundamentam as leituras das arquiteturas. Identificam e produzem
estratos teóricos que permitem refletir sobre as condições e as naturezas das coisas e das suas
representações, portanto, não há como fechar um único entendimento sobre a arquitetura,
apenas há a possibilidade de refazer os seus percursos produtivos, especulativos, teóricos.
A história é descontínua, assim como os objetos produzidos nos tempos das sociedades e, por
este viés, é vista dentro desta tese. O conceito de Zeitgeist, tão caro ao pensamento moderno,
não mais fomenta as principais considerações sobre os fatos. Não há uma condição espiritual
coletiva que imante de finalidade as coisas realizadas por uma civilização.
O idealismo hegeliano, no qual a Idéia é condutora das ações coletivas, é contemplado na
noção do homem e da sociedade ideais como proposições modernas, nas arquiteturas puras e
funcionais, sendo justamente o pensamento funcional o grande artífice da eficiência das
arquiteturas modernas.
96
Eficiência análoga às máquinas industriais tidas como modelos de pensamento: por exemplo,
a casa é uma máquina de morar, diria Le Corbusier, a sociedade e a cidade são compreendidas
e produzidas por relações mecânicas, necessárias, racionais.
Não é possível mais historiar os fatos da contemporaneidade por intermédio de uma
concepção finalista baseada nas atribuições de uma Idéia central que a tudo sugere que a tudo
significa.
A diversidade do mundo contemporâneo, e sua efemeridade, não o permitem.
97
CAPÍTULO 2. SIGNIFICAÇÃO
O rito semiológico é um processo de desenvolvimento significativo. Surge da deriva da
relação entre os elementos que compõem o signo, quais sejam: o significante – relativo aos
aspectos materiais da fala (conforme denominado por Saussure de matéria fônica); e o
significado, que é referente ao recorte das idéias e dos pensamentos. O rito semiológico pode
ser compreendido como o acompanhamento do significante em processo.
O signo é a junção destes dois aspectos e pode-se atribuir a este conceito uma possível relação
de identidade entre diversos signos verbais e não-verbais, ao ponto de propor que, a mesma
construção sígnica proposta por Saussure para a língua possa ser transportada para a
arquitetura. Tal conceito exige algum cuidado e explicação devido à efemeridade da língua
diante da permanência e concretude dos objetos, pois que as palavras nunca são as mesmas.
Serão os objetos? Será a arquitetura? As paredes e seus desenhos serão sempre os mesmos
significantes que simplesmente recebem um novo significado com o passar do tempo? São os
mesmos significantes por não alterarem a sua composição material?
O signo é o produto de relação dos termos significante e significado, tanto que não existe sem
um deles, mas o signo não é o entendimento desta relação, o entendimento é denominado
significação. A palavra ‘casa’, signo formado pela relação dos dois termos, é um signo porque
admite a junção do conceito ‘casa’ com a sua expressão, fonética ou gráfica, mas como este
conceito se estabelece numa frase será a significação deste signo. Assim um signo
arquitetônico, a ‘casa’ Ville Savoye de Le Corbusier, admite uma significação na relação com
98
seu contexto ambiental, cultural e histórico. A réplica do Taj Mahal em Las Vegas, como é
possível compreender, pode reproduzir a obra arquitetônica, mas não pode reproduzir a sua
significação.
Ferdinand de Saussure, no Curso de Linguística Geral (s/d) explica que o signo linguístico
não une “uma coisa e uma palavra” (p.80), tal qual a palavra árvore estaria em relação de
substituição do objeto ‘árvore’ - dentro de um sistema de representação de objetos, no
entanto, une o “conceito árvore” a uma “imagem acústica” (p.80), o conceito tido como o
significado e a imagem acústica como o significante. A significação é o resultado da relação
dos dois lados da mesma moeda e ela é o que importa enquanto conhecimento no signo.
Esta primeira condição do estudo da linguagem abre um problema para a análise linguística
para a arquitetura normalmente relacionada com a Semiótica de Charles Sanders Peirce.
No diagrama sígnico, por ele proposto, há um signo enquanto representação que se encontra
em referencia a um objeto, o qual representa para um intérprete, por meio de um interpretante.
A relação triádica signo-objeto-interpretante permitiria a compreensão da arquitetura como
linguagem, sendo seus objetos um conjunto de representações formadas na matéria concreta
do mundo.
A partir desta relação, um edifício, enquanto signo, também reproduziria esta relação. Sua
própria forma seria um signo representando um conceito – uma idéia, história ou função – que
seria seu objeto. O conjunto tipológico, por exemplo, o modernismo, ou o estilo – o barroco –
ao qual o signo em referencia, seria o seu interpretante, o código que forneceria sua
possibilidade de interpretação realizada por uma pessoa, o intérprete.
99
Uma porta enquanto signo indicador da passagem estaria completa no seu uso, na sua
interpretação, no resultado fenomênico do signo.
Peirce, na classificação dos signos indicada no livro “Semiótica e Filosofia” (1993), explica a
natureza do signo:
“Um signo, ou representamem, é algo que, sob certo aspecto ou de algum
modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria
na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor
desenvolvido. Ao signo assim, denomino interpretante do primeiro signo,
seu objeto. O signo representa alguma coisa, seu objeto.” (PEIRCE: 1993,
p.94)
A relação triádica proposta por Peirce estima uma intencionalidade ‘dessa pessoa’ ao entender
que o signo representa algo – o objeto – por meio de algo – o interpretante – nela, a pessoa.
O signo é uma representação inteira que encontra seu significado na relação com o seu objeto.
O objeto árvore encontrará sua representação sígnica, a palavra árvore, dentro de um sistema
que possibilite a sua compreensão, o interpretante, língua portuguesa.
Todo representamem, o signo, estaria relacionado a um fundamento, que pode ser associado
ao conceito que representa o objeto, o próprio objeto e o interpretante. Apóia-se numa
grammatica pura que “tem por objetivo determinar o que deve ser verdadeiro [...] para que
possa incorporar um significado” (PEIRCE: 1993, p.94), na lógica para definir “condições de
verdade das representações” (PEIRCE: 1993, p.95) e numa “retórica pura, imitando à
maneira de Kant” (PEIRCE: 1993, p.95) para determinar leis pelas quais os signos processam
uma sequência semiótica.
100
O signo denota um objeto, ou objetos, podendo os signos ser compostos. Por exemplo, “a
sentença ‘Caim matou Abel’, que é um signo, refere-se pelo menos tanto a Abel quanto a
Caim” (PEIRCE: 1993, p. 96).
O signo aparece por inteiro mesmo quando composto, o que indica que a arquitetura possa ser
um signo constituído por fundamentos que representam um, ou mais objetos, definidos por
um processo de pensamento lógico – dedutivo, indutivo ou retrodutivo – dentro de um
sistema que “legisla” sobre as possíveis interpretações e implicações sígnicas.
A integridade do signo em Peirce o constitui como representação, mas não adquire a
configuração da dinâmica que Saussure propõe na relação significativa, e suas consequentes
fluidez e mobilidade. A matéria e o pensamento, os corpos e as funções implicam-se no sutil
contato do momento, definindo o signo como o resultado efêmero, embora positivo, diante de
possibilidades inumeráveis.
A produção sígnica em Peirce, se constrói diferentemente nos níveis de implicação, outras
tricotomias denominadas por Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, que têm por
finalidade recolher a idéia do conjunto de semelhanças dos objetos e, por determinação de
classe, elevá-la ao ponto do entendimento das leis.
A tricotomia em Primeiridade implica nas relações das qualidades e das possibilidades abertas
definindo, por intermédio de comparação e analogia, a possibilidade de existência de um
objeto. Em Secundidade, a existência se torna singular pela possibilidade de identificar
qualidades e processos, às vezes estruturas, podendo denominar os objetos e determinar sua
realidade. Em Terceiridade, as leis se revelam na condição da existência abstrata do objeto.
101
Tais tricotomias estruturam classes sígnicas que dirigem o conhecimento, notadamente o
científico, como um conjunto de classificações dos fenômenos para um entendimento real,
equivaleriam a uma fenomenologia do conhecimento científico.
O signo, representamem, recebe outra denominação na sua presença nos níveis de classe,
sendo ícone, índice e símbolo os signos em Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
Nisto se estabelece uma nomenclatura que envolve a significação arquitetônica com a
intenção de semantizar as formas da arquitetura.
Numa explicação primeira, toda arquitetura seria um ícone por ser um objeto perceptível,
índice pela sugestão de um segundo ou da sua singularização enquanto significado, e um
símbolo quando significasse ou representasse uma idéia abstrata.
Dois exemplos em “Semiótica da arte e da arquitetura” (1981), de Décio Pignatari:
“Um exemplo simplificado: o ícone da suástica. Em primeiridade, uma
configuração (Gestalt), variedade da cruz inscrita nos quadrantes de um
quadrado. Em secundidade: ‘símbolo’ do nazismo. Em terceiridade: cruz,
racionalidade de uma construção, nazismo, figura designada elo vocábulo
suástica, cuja raiz vem do sânscrito svasti, que quer dizer ‘bem-estar’, ‘estar
numa boa’, etc.” (PIGNATARI: 1981, p.91)
O mesmo signo estabelece seus três modos de entendimento do ícone ao símbolo, dependendo
da sua constituição (é mesmo a suástica nazista?) ou da retenção do código interpretante por
conta de quem interpreta.
Ao ler o Arco do Triunfo, Pignatari exercita um código de interpretação do objeto ‘Arco’
inserido num bloco que nos remete a uma muralha. Admitindo ser o ‘Arco do Triunfo’ uma
‘parte que representa o todo’, uma metonímia, expõe o caráter comunicativo da obra por
102
permitir uma representação que transpõe o caráter da passagem triunfal do arco na sua porta
passagem. Explica assim:
“Assim como na semiótica o paramorfismo (na lingüística, a paronomásia e
a metáfora) caracteriza o eixo paradigmático, da similaridade ou de
substituição, a metonímia caracteriza, na lingüística, o eixo sintagmático, da
contigüidade ou combinatório, isto porque, num certo sentido, a metonímia
nega o paradigma ou os elementos paradigmáticos, transnominando-os num
signo de complexidade maior” (PIGNATARI: 1981, p.124)
O mesmo exemplo desenvolvido por Pignatari é citado por Elvan Silva (1985, p.83) que
discute a proposição da existência de um ‘Arco do Triunfo’ numa intenção “declaradamente
comemorativa”, compreendendo a condição sígnica e comunicacional do ‘Arco’, e enquanto
signo afirma que o “arco do triunfo é um elemento que pretende exercer o papel de símbolo”
- ao transparecer a sua condição histórica, significativa.
A semiótica aplicada à arquitetura, ao especular a natureza do signo arquitetônico, abre um
paradoxo do uso da linguagem, pois na “tentativa de ‘deslinguistizar’ a semiótica”
(PIGNATARI: 1981, p.124) envolve a arquitetura na mesma linguagem da qual propõe
separar.
O significante, nem sempre declarado, é entendido como a matéria formada no objeto
arquitetônico, a matéria da qual é feito o ‘Arco’ e a forma pela qual se revela toda
intencionalidade da significação. Quanto ao significado exacerba Pignatari (1981, p.127):
“Quando o deus hegeliano habita a pedra, anima-a, dá-lhe uma alma, um conteúdo”. A pedra
que dotada de uma forma carrega um conteúdo é a própria relação significativa de Saussure.
A linguagem verbal que ‘explica’ a natureza dos signos arquitetônicos não os revela, apenas
os envolve, na mesma medida que uma semiótica conotativa, ou uma metalinguagem.
103
Saussure (s/d) admite que a palavra símbolo normalmente é utilizada para designar um
significante, visto que , ao contrário do princípio que significante e significado mantém uma
relação de arbitrariedade, um símbolo “tem como característica não ser jamais completamente
arbitrário” (p. 82). Como o “símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um
objeto qualquer” (s/d, p.82) indica que há um vínculo não arbitrário entre significante e
significado. Mas fica por aí.
O signo em Peirce define um entendimento e não uma identidade, assim como em Saussure, o
signo é uma convenção que interfere no sistema de representação e não o próprio objeto
representado, resultando que em todo processo de semiose os signos estão desligados um em
relação ao outro.
A mutação do signo, inerente à sua atualização no processo da fala, como explica Saussure,
pode ser associada à desvinculação da continuidade da cadeia semiótica em Peirce. A cadeia
semiótica entendida no sistema crença-hábito-reflexão abre um acesso ao processo de
significação como entendimento e vontade e estabelece uma condição de tempo, interrupção e
memória, porque o “pensamento em ação tem por único motivo possível levar ao repouso do
pensamento” (PEIRCE: 1993, p. 56).
O exemplo da suástica em Pignatari auxilia nesta explicação. A passagem da leitura de uma
figura em cruz, em Primeiridade, para uma forma em cruz que se relaciona com o nazismo em
Secundidade, para uma figura em cruz, que se relaciona com o nazismo, vocábulo em
sânscrito ‘bem-estar’, em Terceiridade demonstra não uma continuidade do processo sígnico,
mas um ‘deslizamento’ do entendimento – o repouso da ação do pensamento, uma crença –
104
em Primeiridade para o pensamento em ação no processo sígnico em Secundidade, e assim
em Terceiridade.
A figura cruz em cada signo não é a mesma figura, mas a memória da figura do signo ulterior,
desconectado no tempo pela alteração do diagrama triádico.
A cada desconexão na reconfiguração do diagrama, a memória que é o elemento de ligação
não continua entre os processos sígnicos, pois a dinâmica de significação se encontra alterada
pelo interpretante, no mínimo.
Relação semelhante encontra-se em Saussure quanto à transformação do signo no tempo.
Duas forças que agem em conjunto, uma de manutenção e de tradição – o espírito de
campanário, de grupo de freguesia – outra o intercurso – a troca, as relações horizontais entre
as diferenças, atualização – e definem que “sejam quais forem os fatores de alteração, quer
funcionem isoladamente ou combinados, levam sempre a um deslocamento da relação entre o
significado e o significante.” (SAUSSURE: s/d, p. 89)
A memória, estado fenomênico individual, pode ser estendida na compreensão do tempo, da
história, da memória coletiva e da tradição. A percepção do continuum do tempo advém da
acepção da memória no fluxo de um processo em mutação.
Um signo realmente contínuo não admitiria sua ressignificação ou sua transformação no
passar ininterrupto do tempo, ou não admitiria um entendimento por permanecer o
pensamento eternamente em ação. O repouso do pensamento em ação pode ser comparado
aos momentos de sublimação, nos quais o entendimento do momento, uma sensação ou uma
emoção, é a sua interrupção, gerando uma representação deste momento, ou seja, um signo.
105
A ulterioridade do signo, na Semiótica, ou a sua mutação, na Semiologia, indicam claramente
a memória como sentido de permanência e a contingência do presente como sua atualização:
“a metonímia nega o paradigma ou os elementos paradigmáticos, transnominando-os num
signo de complexidade maior” (PIGNATARI: 1981, p.124). A transnominação do ícone porta
– local de passagem – para o índice ‘Arco’ – expressão de vitória – indica que do ícone ‘porta
na muralha’ para o índice ‘Arco’ em um suporte ‘pedaço de muralha’ há uma manutenção dos
aspectos formais (como a cruz na suástica), com alguns arranjos na forma – eliminação do
resto da muralha – em um novo contexto ambiental e cultural.
O processo de reflexão, ou entendimento de um signo, se estabelece numa ação de
pensamento produzindo um hábito, enquanto possibilidade de repetição e memória, diante de
um estado de compensação de manutenção e alteração da forma. Tal estado de manutenção e
alteração é a mutação de um signo que mantém uma forma repetida, mesmo que com alguma
alteração dessa forma. Explica Peirce na ‘Classificação dos Signos’ (1993) quanto ao sentido
da ‘idéia’ de um pensamento, um signo:
“O signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar desse
objeto [...] com referencia a um tipo de idéia... a que nos referimos quando
um homem se recorda do que havia pensado anteriormente, relembrando a
mesma idéia [...] digamos por um décimo de segundo, na medida em que o
pensamento se mantém conforme consigo mesmo durante esse tempo, ou
seja, mantém um conteúdo similar, sendo a mesma idéia e não, a cada
instante desse intervalo, uma idéia nova.” (PEIRCE: 1993, p.94)
No capítulo sobre a ‘Mutabilidade’ do signo linguístico, Saussure (Curso de Lingüística
Geral, s/d) também discute a alteração do signo no tempo concomitante à sua continuação, os
efeitos conjuntos da mutabilidade e imutabilidade do signo:
“Em ultima análise, os dois fatos são solidários: o signo está em condições
de alterar-se porque se continua [...] Sejam quais forem os fatores de
alteração, quer funcionem isoladamente ou combinados, levam sempre a um
deslocamento da relação entre o significado e o significante”. (SAUSSURE;
S/D, p. 89)
106
A mutação verifica-se numa nova regência de forças, por um novo diagrama do conjunto das
forças significativas. Há diferença entre os diagramas um movimento diacrônico, uma
interrupção ou alteração sistêmica no tempo.
Este novo diagrama contém um novo contexto para as mesmas formas, a possibilidade de um
novo interpretante, ou de um novo código, que na relação com a forma sígnica possibilita a
alteração e atualização de novo significado.
A compreensão do signo, ou seja, a sua significação, é o resultado de um hábito de uso, a fala,
que atualiza os signos mutáveis, que admitem seu entendimento baseados na memória de seu
uso. Alterando a relação entre as suas partes, admite-se um novo diagrama que possui a
duração do momento da experiência que se tem ao usá-lo, que “se mantém conforme consigo
mesmo” (PEIRCE: 1993, p.94), determinando um fluxo semiótico no conjunto das forças
sincrônicas que compõem o diagrama.
As forças sincrônicas da língua são estabelecidas pelo arranjo que se faz de seus elementos
num determinado tempo tal como uma gíria que, num intervalo de tempo, significa uma ação
ou pensamento, alterando ou decompondo na mudança de fatos sociais. Mesmos significantes
são associados aos novos significados, reconstruindo uma condição de significação e valor.
Enquanto possibilidade do pensamento, signos levam a signos relacionando massas amorfas
de pensamento e massas amorfas de significado, os “reinos flutuantes” (BARTHES: 1977,
p.58) de Saussure ou a associação sígnica de Peirce.
107
No texto sobre a ‘divisão dos signos’, em “Semiótica” (1977), Peirce debate a relação signo,
objeto, interpretante como já visto. Ao apoiar o conceito de Signo numa grammatica pura
indica que por ela “determina o que é verdadeiro [...] a fim de que possam incorporar um
significado qualquer” (p.46). O Objeto está apoiado na lógica, condição essencial para
produzir um elemento formal de tal maneira que para que “algo possa ser um signo, esse algo
deve ‘representar’, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto.” (p.47)
Na proximidade – semelhança e não igualdade – dos dois pensamentos (Peirce e Saussure),
além das noções de tempo e memória, é possível relacionar mais duas condições que serão
importantes na aplicação dos elementos de significação, de base linguística, na arquitetura: a
relação significante-significado com Signo-Objeto, e a percepção de fluxo sígnico pelos
diagramas.
O Signo é algo que incorpora um significado, pelo uso da gramática, assim como o Objeto
recebe da lógica “condições de verdade das representações” (p.46). O objeto não é um objeto
real, mas é uma ‘forma’ produzida pela lógica, ou seja, pela definição do que é essa forma na
sua diferença do que não é, condicionada pelo papel da representação do signo – o que
confere significado – e condicionando a representação às denominações do possível do objeto.
Ivo Assad Ibri, no texto “Semiótica e Pragmatismo: Interfaces Teóricas” editado pela Revista
Cognitio (2004), discorre sobre a relação Signo-Objeto quanto a “alteridade entre signo e
objeto” enquanto “o ser do objeto é totalmente constituído pelo signo”:
“É, na verdade, o ponto fulcral para a distinção entre realidade e criação do
espírito: a primeira tem permanência e alteridade diante da mente; a segunda
tem a evanescência da fantasia [...] Nessa distinção se funda a possibilidade,
segundo o autor, do conceito de verdade, estruturado, como bem recomenda
seu realismo, numa relação de correspondência, imperfeita que seja, entre
representação e realidade ou entre signo e objeto.” (IBRI: 2004, p. 170)
108
O Objeto define, pela observação e arranjo do real, uma situação, uma possibilidade pela qual
o Signo o expressa. É o resultado de uma relação fenomênica que relaciona uma situação de
formalização do real e sua capacidade de exprimi-lo, representar. O signo expressa um objeto.
A forma do objeto pode estar determinada logicamente ao ser racionalizada cientificamente –
exemplo: saber a quantidade de feijões brancos dentro de um saco por um método indutivo –
pelo arranjo de probabilidades de seus atributos, ou pode estar determinada pela observação
‘simples’ de um fato:
“Dois homens estão na praia, olhando para o mar. Um deles diz ao outro
‘Aquele navio não transporta carga, apenas passageiros. Ora, se o outro não
estiver vendo navio algum, a primeira informação que ele extrai da
observação do outro tem por Objeto a porção do mar que ele está vendo [...]
para a pessoa em questão , a frase tem por Objeto apenas aquele (navio) com
o qual ela já está familiarizada. (PEIRCE: 1977, p. 48)
O Objeto é uma abordagem do real, concreto ou abstrato, por meio de um conjunto de
atributos reunidos, sensoriais e pensamentais, definindo um conteúdo que poderá, por
“correspondência imperfeita” (IBRI: 2004, p.170) ser representado, exprimível, por um signo.
Embora não seja possível alinhar os conceitos de base, os conceitos de realismo de Peirce não
coadunam com a metafísica de Saussure, os aspectos de linguagem se tornam mais
evidentemente próximos: um Signo que exprime um Objeto que racionaliza o real, e um
Significante que expressa um Significado que obtém seu conteúdo da matéria do mundo.
Os aspectos de linguagem se tornam elementos de conteúdo e de expressão numa relação de
solidariedade, ou de correspondência imperfeita, que não admitem uma identidade com o
mundo que representam, mas produzem uma linguagem que intermedia a possibilidade de seu
entendimento.
109
Mas os signos, relação entre conteúdo e expressão, não são estanques, estão em movimento
pelos seus estados de desenvolvimento, pelos níveis de suas formas de compreensão, uma
Significação em Saussure e uma Explicação em Peirce.
O ‘Arco’ ou a ‘suástica’ são signos: uma forma de expressão em relação a uma forma de
conteúdo. São formas porque resultam de seleção e arranjo tanto em expressão quanto em
conteúdo. Expressão e conteúdo são, ambos, forma e substância: a expressão, como condição
do exprimível, formaliza ‘a massa fônica’, o conteúdo formaliza a matéria do mundo.
Aparente paradoxo para a arquitetura, pois que é da própria matéria do mundo que se produz a
forma arquitetônica. Um edifício é a expressão concreta de um conteúdo racional – nazismo
ou vitória – ou poderá ser o próprio edifício um conteúdo, ou uma fala própria de funções e
matérias que se formalizam na arquitetura?
Conteúdo e expressão são duas faces da mesma moeda que juntas formam o signo, o seu
entendimento é a significação.
Um signo ‘significa’ para estabelecer seu valor diante de outras significações para efeito de
equivalência entre coisas que são semelhantes e não semelhantes:
“Para que haja signo (ou valor econômico) é preciso, portanto, poder
permutar coisas dessemelhantes (um trabalho e um salário, um significante e
um significado) e, por outro lado, comparar coisas similares entre si: podese trocar uma nota de Cr$ 5,00 por pão, sabão ou cinema, mas pode-se
também comparar essa nota com notas de Cr$ 10,00, de Cr$ 50,00, etc.; do
mesmo modo uma ‘palavra’ pode ser trocada por uma idéia (isto é, o
dessemelhante), mas pode ser comparada com outras palavras (isto é, o
similar) [...] (BARTHES:1977, p.57)
O signo produz um entendimento, a significação, que permite produzir valores de
equivalência nas mais diversas formas de linguagem. A permuta entre objetos através da
110
equivalência de seus valores torna possível compreender as formas de linguagem em
interação, como a suástica, ícone nazista, incorpora um significado proveniente de uma
ideologia. Mesmo sendo um ícone, a suástica exibe a junção da enunciação do pensamento
nazista ao mesmo tempo em que o faz visível por meio de expressão. Uma forma de base
geométrica quadrada fica aproximada da forma de enunciação do nazismo.
Comportamentos, política, ideologias, arte e arquitetura se associam na deriva de significação
de um conceito, de um pensamento.
A Explicação procede em maneira semelhante na relação Signo-Objeto no mesmo sentido que
resulta da ação do pensamento que os associa e torna possível um entendimento, uma
explicação, um ‘repouso’ do pensamento. A explicação resulta num outro signo, noutra
explicação e noutro signo, o que resulta num ‘caminho’ pelo qual um processo de
entendimentos se encadeia como expõe:
“Se um Signo é algo distinto de seu Objeto, deve haver, no pensamento ou
na expressão, alguma explicação, argumento ou outro contexto que mostre
como, segundo que sistema ou por qual razão o Signo representa o Objeto ou
conjunto de Objetos que representa. Ora, o Signo e a Explicação em
conjunto formam um outro Signo, e dado que a explicação será um Signo ela
provavelmente exigirá uma explicação adicional que, em conjunto com o já
ampliado Signo, formará um Signo ainda mais amplo, e procedendo da
mesma forma deveremos, ou deveríamos chegar a um Signo de si mesmo
contendo sua própria explicação e as de todas as suas partes significantes...
(PEIRCE: 1977, p. 47)
O Signo e a Explicação geram um fluxo evolutivo, pensamento caro a Peirce, pelo qual um
pensamento produzido por uma sensação, signo de pura qualidade, pode chegar a um
pensamento de razão ‘pura’ – à maneira de Kant – que determina um estado de produção do
conhecimento cientifico.
111
O pensamento e o exprimível aproximam-se de maneira ‘imperfeita’ ou se solidarizam por
possuírem especulações próprias e particulares num processo linguístico. A trança produzida
por esse processo define as condições diagramáticas que produzem os entendimentos na
duração do tempo, ou na sua alteração.
É possível refletir sobre dois movimentos do tempo nas linguagens: o fluxo sincrônico e a
força do hábito; a mutação diacrônica e o apoio da memória. Pois que a cada mudança se
poderá verificar uma pequena alteração das condições sociais – compreendidas como as mais
amplas: geográficas – ou a sua radical mudança.
Cada diagrama determinará uma condição possível no tempo sincrônico, nas relações que são
estabelecidas dentro de um mesmo registro de forças e, por estarem ‘no mesmo tempo’,
regem os lugares dentro deste diagrama. O diagrama no tempo evidencia as funções que
enunciam e agem sobre as expressões, tanto quanto as matérias que são formadas pelo
conteúdo. O diagrama se encontra espacializado na matéria e organizado pelas funções.
Escreve Deleuze sobre o diagrama no livro “Foucault”:
“O diagrama, ou a máquina abstrata, é o mapa das relações de forças, mapa
de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias nãolocalizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos, ou melhor, em
toda relação de um ponto a outro.” (DELEUZE: 1998. p.45)
O diagrama exerce sua força sobre as possibilidades de formar as matérias, ou seja, definir o
Objeto, dar forma a uma possibilidade da matéria, ou seja, dar forma ao conteúdo, fornecer a
condição do significado. Exerce sua força também sobre as condições do exprimível, do
significante, do signo. Define as funções pelas quais são regidas as expressões que
determinam as ações.
112
As leis são os enunciados expressos que determinam os controles sobre os corpos. A prisão é
o conteúdo de visibilidade que evidencia e dá existência aos corpos a serem controlados.
O diagrama é mais que regime de signos, é um regime de forças, de tensões.
Os diagramas em Peirce são evolutivos baseados no sentido de Natureza e sua relação com os
signos formados, a Natureza se transforma em concomitância à evolução dos signos, ou das
linguagens pelas quais se expressa o seu entendimento. Mas todo signo ‘repousa’ e admite
continuidade baseado na memória. Os signos não são contínuos como produção do
entendimento. Um signo não se forma na sua anterioridade, o que não há, mas na sua
ulterioridade: memória da ‘idéia’ a ser ressignificada.
Os efeitos de sincronia, como desenvolvimento horizontal num plano contínuo, e de
diacronia, como desenvolvimento vertical pela mutação, são resultados da homologia sobre
todos os pontos do diagrama, e da fluidez e instabilidade das suas regências de força.
As linguagens são construções sobre um mundo e não sua identidade, a expressão (palavra ou
desenho) ‘árvore’ não é nenhuma árvore real, mas sua representação; e o conteúdo como
conceito atribuído à expressão é retirado de um código e não da essência especular da árvore
real.
Mas toda linguagem está relacionada a uma sociedade assim como o diagrama é inferido nas
suas relações já que “todo diagrama é intersocial, e em devir” (DELEUZE: 1998, p.45),
atuando em todo o conjunto social, em todos os seus espaços a partir de novos sentidos de
realidade, um novo sentido de tempo – sua mutação – e, consequentemente, um novo sentido
de história:
113
“Faz a história desfazendo as realidades e as significações anteriores,
formando um número equivalente de pontos de emergência ou de
criatividade [...] duplica a história com um devir. Toda sociedade tem o seu
ou os seus diagramas” (DELEUZE: 1998, p.45)
O diagrama interage aos sistemas sígnicos: ‘o barco de carga’ ou o ‘Arco’ ou a ‘suástica’: são
processos de significação que abrem o entendimento do mundo, do ser humano.
O símbolo da suástica é um ícone pela sua materialidade – incorpora o sentido da mensagem
no próprio objeto – e define um estado social no qual se apóia.
A suástica não é uma forma que expressa um conteúdo, mas uma forma de expressão e uma
forma de conteúdo que se solidarizam pela regência de um novo diagrama. A geometria
quadrada que num diagrama histórico significa ‘bem-estar’ passa a ter outra significação na
sociedade nazista, mais, no diagrama mundial da primeira metade do século XX. O
exprimível suástica se solidariza com um conteúdo de controle, de definição de Estado, de
terror.
A trança semiótica reproduz o fluxo de significações-explicações: a figura simples e austera
que é envolvida por uma semiótica de controle e terror, uma semiótica conotativa que gera
comportamentos, pensamentos, sentimentos. A arquitetura nazista exprime as mesmas
condições da suástica: modulação, racionalidade, controle.
A modulação exprime uma razão formal, limpa e monumental que possibilita a significação
da força do Estado, aglutina emoções de grandiosidade e orgulho e esconde, inicialmente, não
o futuro de um Estado controlador, mas o presente de uma expressão que se solidariza com o
determinável, com a forma racional que dobra sobre si como definindo os lugares de seus
vazios, da mesma maneira que uma arquitetura racionalista determina lugar e comportamento
114
de pessoas, da mesma maneira que as forças do Estado controlam os lugares e os
comportamentos nas cidades: cidades formadas por guetos, do lado de dentro e do lado de
fora. Porque as linguagens estão sempre apoiadas em estados da sociedade e em seus
pensamentos, concretos ou abstratos, em ação:
“É o conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem uma pessoa compreender e
fazer-se compreender. Mas essa definição deixa a língua fora de sua realidade social
[...] é mister uma massa falante para que exista uma língua. Em nenhum momento, e
contrariamente à aparência, a língua existe fora do fato social, visto ser um
fenômeno semiológico.” (SAUSSURE; s/d, p.92)
Uma suástica indica o caminho pelo qual um signo se desenvolve das impressões mais
qualitativas até às simbólicas. Indica a solidariedade de suas formas na trança das semióticas
de conotação e o fluxo de suas significações dentro do regime de forças do seu diagrama.
Os diagramas sofrem uma mutação quando alteram radicalmente suas relações de força,
visíveis na sua atuação nos corpos sociais e no controle do tempo, e determinam um fluxo
pela passagem das significações signo a signo derivando, às vezes reforçando, o valor que as
significações estabelecem.
O valor de uma arquitetura se configura no seu contexto, na possibilidade de organizar um
sistema de trocas de informação que qualificam o objeto e sua relação com os demais. Prédios
‘trocam’ informações com prédios e ruas definindo estilos ou historicidades ou ambiências.
Prédios modernos se conectam e produzem uma mensagem que flui pelas suas formas, a de
expressão e a de conteúdo, configurando um estado de leitura e compreensão na
horizontalidade do diagrama, no seu tempo ‘mesmo’, na sua forma de atualização de leitura
dos objetos.
115
Um centro urbano como o da cidade de São Paulo demonstra esta relação na sua condição de
densidade, de intensidade, das variações de fluxos e mensagens, na continuidade física e na
descontinuidade linguística de seus edifícios. Estilos e tipologias dão sentido de lugar à
geografia do centro. Prédios ecléticos mais ao meio, prédios modernos mais às bordas.
Centro e periferia permitem a visualização tanto da permanência do significado quanto da sua
alteração, sem perder os valores como conceitos. Para uma cidade medieval, base da
construção física e territorial da maior parte das cidades ocidentais, o significado de centro e
periferia urbanos é claro e devidamente atrelado às instituições que representam, pelos
castelos e pelas igrejas.
Para uma cidade no século XIX, as construções das casas burguesas são realizadas em áreas
periféricas das cidades, de maneira a aproximar as construções do campo e produzir uma
condição estética própria de uma aproximação com o natural. Embora alterado o significado
do lugar enquanto periferia ou centro, não há uma quebra no valor de conceito. O sentido de
centro é social e cultural, e permanece mesmo na inversão das cidades pelo crescimento e pela
industrialização. O centro da cidade perde seu valor de ambiente, mas não o sentido de lugar e
de ambiente histórico. E a elite é o centro social, mantenedora e produtora dos valores
culturais.
Os regimes de força, e poder, se verificam na alteração das linguagens oferecidas para ler a
cidade sob novas condições, novos arranjos. Os gritos dos ambulantes se misturam com os
produtos expostos nas barracas de venda. O ritmo das vozes que anunciam os produtos se
mescla aos arranjos paradigmáticos dos produtos: gritos que anunciam repetidamente com
blusas ou discos que são dispostos em série não produtiva ou mercadológica, mas linguística.
116
Vozes que enunciam ações – compre, venda – e visibilidades que tornam existentes os seres
os quais são ordenados segundo um novo sentido, a espontaneidade na relação dos diversos
grupos no centro.
Pois o diagrama se exerce por ligações “não localizáveis e que passa a todo instante por todos
os pontos” (DELEUZE: 1998, p.45) de tal maneira que não é possível encontrar o seu centro,
a sua fonte. As sociedades disciplinares, que racionalizaram o corpo como território abstrato
do poder, expandem as relações de forças na relação entre quaisquer dois pontos de seu
território. A cidade, enquanto novo campo de superprodução da indústria contemporânea, é o
cenário no qual se exerce o diagrama contemporâneo.
A mudança das relações de significação, a partir de sistemas semióticos cada vez mais
elaborados e de sistemas técnicos de produção cada vez mais abstratos, desvinculou o sentido
do espaço urbano, ou mesmo de espacializações menores, como duplo do corpo e construção
de uma identidade a partir desta relação de representação, alterando e noção de território e da
capacidade dessa espacialização representar uma condição clara e homogênea da nossa
sociedade.
A complexidade da nossa cultura se evidencia na complexidade e multiplicidade dos sistemas
semiológicos que nos envolvem cotidianamente no sistema de trânsito, nas notícias
econômicas ou no comportamento. A extensão desses sistemas semiológicos provém da
intensidade da produção técnica que a nossa sociedade necessita para se reproduzir, para se
manter vigente. Os campos semiológicos são cada vez mais abrangentes e pontuam as
diferenças de identidade através de especificidades dos sistemas. O próprio movimento de
globalização apregoa a inter-relação de culturas e, na realidade provoca um amontoado
117
cultural que controla valores e dificulta a construção e manutenção de identidade e enviesa
leituras genuínas da realidade.
A construção da identidade individual e coletiva se dá a partir da articulação entre três
dimensões: a biológica (que envolve características genéticas e hereditárias da espécie), a
social (que envolve os dados próprios de cada sujeito ou cultura) e a individual (que permite
ao sujeito articular o biológico e o social de maneiras personalizadas). Quando estas
dimensões perdem as fronteiras semiológicas, as identidades podem tornar-se frágeis e
suscetíveis comprometendo a capacidade de simbolização uma vez que a fragmentação das
informações promove a sensorialização dificultando o desenvolvimento de processos
racionais.
Representação e significação são ações mentais que se retroalimentam e, quando esta
dinâmica é interceptada a referência social e o instrumental cultural que caracteriza cada
território são atingidos na sua essência. Os valores nos quais se fundam ambientes sociais
perdem o seu poder de conectividade direta (o lenhador e a árvore) e se verifica a ação de
mensagens escondidas nas interagências de objetos, de pessoas.
Os nossos produtos semiológicos perderam a relação de central-marginal, característico nos
movimentos de vanguarda ou na produção de valores sociais. Produtos semiológicos podem
ser entendidos como objetos industriais, sentimentos, visão de si – mesmo, cidades, arte. A
integração dos sistemas os amplifica e permite uma intertextualidade nos seus produtos e uma
mescla nos seus significados, quase todos voltados para uma mesma noção de prazer sensual e
individual.
118
Iuri M. Lotman, em seu livro ‘A Semiosfera’, debate aspectos semióticos na construção da
cultura como sistema informativo e da natureza de seus códigos ou sistemas semióticos.
Define que a cultura se constrói sobre duas linguagens primárias, a língua natural e cotidiana,
e a espacialização e suas formas de construção. A cultura é um campo poliglota, composto de
diversas linguagens com identidades particulares que se comunicam entre si, ou se misturam,
ou se transformam. A música, o gestual e a fala são expressões que constituem linguagens
particulares que se misturam e geram a dança, o canto. Outras formas de linguagem, como a
artes de guerra, geram linguagens diversas, como o esporte. As expressões artísticas são
condicionais intensas desses modos de transformação linguística.
As expressões espaciais são maneiras dessas expressões artísticas que a partir de uma
linguagem específica e particular, a espacial, constrói linguagens complexas como a
arquitetura. Sobre a constituição da espacialidade:
“[...] todos os tipos de divisão do espaço formam construções homomórficas.
A cidade (= área povoada) se opõe ao que se constrói além de seus muros (o
bosque, a estepe, a aldeia, a Natureza, o lugar onde habitam seus inimigos),
como o próprio, o fechado, o culto e seguro ao alheio, o aberto, o inculto.
Desde este ponto de vista, a cidade é parte do universo dotada de cultura.
Mas, em sua estrutura interna, ela copia todo o universo, tendo seu espaço
próprio e seu espaço alheio”. (LOTMAN: 1996, p. 84)
Para Lotman, a palavra é a possibilidade de duplicação do mundo no universo simbólico da
linguagem verbal, enquanto o espaço é a duplicação do corpo e a possibilidade de suas
variantes e representações de maneira a constituir base para as representações das artes
plásticas:
“Graças à divisão do espaço, o mundo se duplica no ritual, da mesma maneira que se
duplica na palavra. Conseqüência disto são as representações rituais (as máscaras, as
pinturas sobre os corpos, as danças, as imagens colocadas sobre as tumbas, os
sarcófagos, etc.) – origens das artes plásticas. A representação do corpo só é possível
depois de se começar a ter consciência do próprio corpo em tais ou quais situações
como representação de si mesmo. Sem uma divisão primária do espaço em esferas
que exijam condutas diferentes, as artes plásticas seriam impossíveis”. (LOTMAN:
1996, p. 85)
119
Os diversos tipos de espaços produzidos, dos simples aos complexos, permitirão, assim,
evidenciar sua constituição como esfera do duplo humano, abrindo sua condição de
linguagem e arte. A cidade contém as bases linguísticas de sua formação como duplicação das
representações do corpo no espaço e admite a extensão da complexidade cultural pela própria
complexidade de sua constituição como pela complexidade dos sistemas semióticos que estão
junto a si, dentro da cidade, paralelos ao sistema linguístico espacial.
O conjunto dos espaços urbano possui a mesma matriz da duplicação do corpo e constituem
um objeto aparente que instiga quanto a condição de sua origem como representação, o
quanto se vincula a essa matriz material corpórea e como se constitui enquanto sistema
linguístico e determinante de sua própria representação. Pois se a um momento, temos ainda
diversas formas de espacialização que correspondem à condição da representação do corpo e
seu comportamento, a outro momento temos outras formas de espacialização, com a mesma
base linguística, que se desconecta das relações corpóreas mais próximas pela intermediação
de sistemas técnicos abstratos.
O espaço como duplo do corpo nele expresso se faz pela ritualização dos espaços que
permitem identificar suas particularidades e identidades pelo comportamento que encerram,
sejam espaços cotidianos ou eventuais, de natureza vulgar ou religiosa. Estabelecem
condições para a permanência de aspectos ritualísticos no espaço que carregam a memória
social e cultural nos seus diversos sistemas semióticos, permitindo diferentes profundidades
do ambiente simbólico por eles produzidos.
Estruturas linguísticas simples como encima-embaixo, dentro-fora, são ainda existentes e,
vários programas espaciais e são continuamente codificados pelos mesmos ou outros códigos
120
de representação. Como já visto acima, o próprio sentido de centralidade e marginalidade são
modificados não apenas pela modificação de condicionais culturais, mas pela interagência de
sistemas abstratos que alteram fundamentalmente o significado dessas situações espaciais e
simbólicas.
Como Lotman escreve, a cidade permite representar o eu social na sua relação com o outro
externo, seja cultural ou físico, seja uma ameaça de guerra ou aculturação. Embora os valores
do que é centro e margem podem ter se alterado ao longo de séculos, não havia se perdido o
sentido desta relação espacial de um centro cultural, estruturador da identidade social e um
direcionamento contrário quanto ao marginal. O centro reflete a idéia da lei e de uma
metafísica da sociedade, determinante de seus valores mais caros que indicam o sentido de
sua existência e a produção de sua identidade. A cidade, por meio de sua constituição
espacial, possui, assim, a condição de representação desses valores sociais.
Os hábitos são memórias repetitivas e mecânicas, possivelmente técnicas. Podem ser
verificados nos comportamentos dos grupos sociais que habitam ou trabalham uma região
como podem ser verificados na concretude das formas arquitetônicas, na polifonia urbana, na
semelhança e dessemelhança dos volumes e intenções tipológicas.
Edifícios de períodos e tipologias diferentes são aproximados na leitura de um momento. A
história torna-se uma condição da leitura do real, do ideal, pelas formas que se envolvem e
promovem uma significação, ou várias significações, dos diversos momentos da cidade.
As relações diacrônicas e sincrônicas na cidade são refletidas por Aldo Rossi no livro “A
arquitetura da cidade” (1995), ao comparar alguns elementos urbanos, como o edifício
121
monumento, com raízes linguísticas ao modo de Saussure: os edifícios que permanecem e
estruturam o desenvolvimento da cidade frente às mudanças urbanas que se realizam nos
tempos da cidade:
“O significado dos elementos permanentes no estudo da cidade pode ser
comparado com o que eles têm na língua. É particularmente evidente que o
estudo da cidade apresenta analogias com o da lingüística, sobretudo pela
complexidade dos processos de modificação e pelas permanências. Os
pontos estabelecidos por Saussure para o desenvolvimento da ciência
linguística poderiam ser transpostos como programa para o desenvolvimento
da ciência urbana: descrição e história das cidades existentes, pesquisa das
forças que agem de maneira permanente e universal em todos os fatos
urbanos.” (ROSSI: 1995, p. 5)
O espaço como duplicação do corpo encontra em Rossi uma de suas expressões. A articulação
estruturada da cidade é percebida na hierarquia formada pelas lutas de classe e pelos valores
de história dos lugares, como o estudo dos elementos primários e como elementos
permanentes são condicionais estruturadoras diante do universal da cidade.
A visão estruturalista não inibe, no entanto, a percepção do diagrama no conjunto de relações
que envolvem os fatos urbanos, na “identificação das forças principais que agem sobre as
cidades, entendidas como forças que estão em ação de modo permanente e universal”
(ROSSI: 1995, p.5).
A percepção de um regime de forças não é fato exclusivo da pesquisa de Rossi, mas, neste
livro, se evidenciam os fatos urbanos retratando as forças políticas que existem numa
sociedade. Mas o poder se revela no domínio dos corpos e suas matérias, como os edifícios, e
no enunciado das funções, das leis, dos tratados e dos ideais de construção.
Porque o diagrama é “uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar”
(DELEUZE: 1998, p.44) por meio de leis que enunciam deveres e fazeres e por meio de
122
matérias formadas: o que torna o mundo visível. Os edifícios, na solidariedade com seus
argumentos, são campos de visibilidades dentro do regime diagramático. A extensão dos
diagramas é exposta por Deleuze em “Foucault”:
“Se há muitas funções e mesmo matérias diagramáticas, é porque todo diagrama é
uma multiplicidade espaço-tempo. Mas, também, porque há tantos diagramas quanto
campos sociais na História.” (DELEUZE: 1998, p.44)
Cada período histórico, cada estrato histórico, terá um diagrama pelo qual matérias e funções
ganham formas que significam, produzem valor.
Não há um espírito do tempo no diagrama, a metafísica de uma Idéia é substituída por uma
“causa imanente não-unificadora” (DELEUZE: 1998, p.46), um princípio que se estende
sobre todos os pontos do diagrama.
O pensamento da cidade moderna exerce estes princípios de focalizar a ação de cada
indivíduo sobre todos os lugares onde este pode se encontrar. Isto se revela no seu próprio
projeto, um desenho que organiza racionalmente da residência aos lugares públicos, todos
com o sentido integrador do pensamento social.
Françoise Choay, no livro “O Urbanismo” (1979), abre a extensão do desenho no pensamento
moderno e a base geométrica que lhe confere a junção entre o belo e o verdadeiro. A
geometria, o pensamento geométrico é um enunciado sobre as condições da natureza e do
homem. A geometria é um enunciado que se solidariza com uma tipologia: funções
formalizadoras e matérias formadas.
Choay cita Le Corbusier de seu livro homônimo:
“A geometria é a base [...] Toda a época contemporânea é, pois, de
geometria, eminentemente; ela orienta seus sonhos para as satisfações com a
123
geometria. As artes e o pensamento moderno, depois de um século de
análise, procuram para além do fato acidental e a geometria os conduz a uma
ordem matemática.” (LE CORBUSIER, in Choay: 1979, p.23)
A geometria utilizada pelo modernismo, o que conduz uma ordem matemática, é realizada de
forma elementar por meio de cubos e paralelepípedos simples, tornando a ortogonalidade uma
característica essencial. Não apenas os projetos de Le Corbusier apresentam tal característica.
Uma geometria de simplificação transparece nos trabalhos de Mies Van der Rohe, Walter
Gropius, Hannes Meyer. Os projetos de edifícios habitacionais abriram a forte tendência dos
edifícios laminares.
A indústria é fator causal na produção das tipologias e do uso da geometria, ponto de encontro
e equilíbrio entre o belo e o verdadeiro. Na relação da calocagatia platônica afirmada, a
verdade se encontra expressa na forma arquitetônica. Mas não é a mesma geometria simples
dos trabalhos de Aldo Rossi? A geometria como ponto de encontro e equilíbrio não é a
mesma busca dos trabalhos de Mario Botta?
A sociologia moderna instrui a significação das tipologias enquanto a indústria instrui a
significação da geometria. A tipologia dos edifícios corbusianos, como a Unidade de
Habitação de Marselha, encontra a geometria de repetição da indústria e a plástica do concreto
armado e a sociologia da idealização do homem.
Ao aproximar o pensamento corbusiano ao de Fourier, Choay (1998) expõe a essencialidade
de uma arquitetura que ‘tudo vê’:
“Mas a célula ou alojamento familial, que o sistema de Fourier deixava
deliberadamente indeterminado (a pessoa encontra onde se alojar segundo
sua fortuna e seus gostos), torna-se, pelo contrário, em Le Corbusier, um
apartamento-tipo, de funções classificadas num espaço mínimo,
intransformável [...] A ordem material que acabamos de definir por sua
124
projeção no espaço contribui também para criar um clima mental particular.”
(CHOAY: 1998, p.25)
A cidade moderna exibia a mecânica causalidade da repartição, do módulo ideal e da
produção industrial, através de classificação de áreas urbanas – setores organizados – e da
classificação das áreas internas das habitações e, consequentemente, das pessoas e seus
comportamentos.
A sociedade disciplinar citada por Michel Foucault em “Vigiar e Punir” (2008) é claramente
apresentada por Choay nestes parágrafos sobre o pensamento de Le Corbusier. O
“apartamento-tipo de funções classificadas” (CHOAY: 1998, p.25) se assemelha ao concurso
destas idéias na análise das sociedades clássicas e seus produtos de controle como os quartéis,
as escolas e as prisões. Escreve Foucault em “Vigiar e Punir” (2008):
“A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições
disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre
e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer
não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas
também de criar um espaço útil. O processo aparece claramente nos
hospitais militares e marítimos [...] O hospital marítimo deve então cuidar,
mas por isso mesmo deve ser um filtro, um dispositivo que afixa e
quadricula; tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobilidade e
esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegalidade e do mal [...]
Donde a necessidade de dividir o espaço com rigor [...] Pouco a pouco um
espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a
individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as vidas e as mortes [...]
Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico.”
(FOUCAULT: 2008, p.123, 124)
Escreve Le Corbusier em “Por uma arquitetura” (1977):
“Questão de moralidade. A mentira é intolerável [...] A arquitetura é uma das
mais urgentes necessidades do homem, visto que a casa sempre foi o
indispensável e primeiro instrumento que ele forjou [...] O instrumento é a
expressão direta, imediata do progresso... O velho instrumento é jogado ao
ferro velho [...] este gesto é uma manifestação de saúde, de saúde moral,
também de moral [...]” (LE CORBUSIER: 1977, p.5)
125
A semelhança não é casual. Os distúrbios da industrialização no século XIX levaram a este
entendimento de higienizar as cidades e as sociedades, as casas e os homens para realizar o
intento de construir uma civilização com um novo ‘espírito’, melhor, um novo diagrama com
novas relações de força e instruções de poder sobre onde alcançaria a ‘luz’ da razão e da
moral: “as ‘Luzes’ que inventaram as liberdades inventaram também as disciplinas”
(FOUCAULT: 2008, p.183).
O Panoptismo de Jeremy Bentham, filósofo e jurista inglês (1748 – 1832), é a peça chave do
pensamento disciplinar e objeto da crítica de Foucault em “Vigiar e Punir” (2008).
Sinais dos tempos e sutil ironia: Leonardo Benévolo, no seu livro “História da arquitetura
moderna” (1976) descreve sobre os socialistas utópicos no século XIX e, entre estes, Robert
Owen com sua ‘aldeia de harmonia e cooperação’. Encerra um dos parágrafos – que trata da
utilização de uma fábrica-modelo com maquinaria moderna e bons salários – assim:
“Esses melhoramentos não impedem que ele tenha grandes lucros,
permitindo-lhe enfrentar com sucesso os protestos dos sócios, os quais mais
tarde, em 1813, são substituídos por outras pessoas com maior abertura
mental, entre os quais conta-se o filósofo J. Bentham.” (BENEVOLO: 1976,
p. 173)
126
CAPÍTULO 3. POÉTICA
Michel Foucault proferiu, em 1967 no Círculo de Estudos Arquitetônicos (publicado em
“Architecture, Mouvement, Continuité, nº5, de outubro de 1984), uma conferência a respeito
do que chamou de heterotopias, ou outros espaços e iniciou esta conferência debruçado sobre
uma das questões que Foucault considerou como um dos pontos centrais da nossa época: o
espaço.
O tempo histórico é um estrato temporal de tal maneira que, a exemplo dos estudos de
linguagem e das condições de produção sígnica, é o resultado de uma mutação. O tempo,
conceito de percepção interna, se encontra nas formas de distribuição dentro da
horizontalidade do plano espacial, os lugares onde as coisas estão e, por elas, se multiplicam.
As percepções fantasmáticas de Bachelard, como os diversos conceitos – o sótão e o porão no
lugar do imaginário – que discutiu no livro “A poética do espaço”, não são desconsideradas,
mas não pertencem a esta abordagem.
O espaço é a condição do múltiplo, das inúmeras possibilidades de arranjo da matéria, dos
corpos da natureza e dos homens. A exemplo de Bergson, o espaço não é uma representação
do múltiplo, é uma multiplicidade, como explica Deleuze no seu livro “Le bergsonisme” ao
discutir ‘a duração como dado imediato’:
“O importante é que a decomposição do mixto (tempo e espaço) nos revela
dois tipos de ‘multiplicidade’. Uma é representada pelo espaço (sobretudo se
temos em conta todas as nuanças, pela mistura impura dos tempos
homogêneos): é uma multiplicidade de exterioridade, de simultaneidade, de
justaposição, de ordem, de diferenciação quantitativa, de diferença de grau,
uma multiplicidade numérica, descontinua e atual. Outra se apresenta dentro
127
da duração pura; é uma multiplicidade interna, de sucessão, de fusão, de
organização, de heterogeneidade, de discriminação qualitativa ou de
diferença de natureza, uma multiplicidade virtual e continua, irredutível ao
número.(DELEUZE: 2004 ,p.31)
A multiplicidade do espaço da organização dos sons e dos signos é um arranjo na
simultaneidade, na extensão da horizontalidade do diagrama que passa por todos os pontos no
espaço, da sincronia dos valores dos signos no exercício das relações de força. Defronta-se à
multiplicidade virtual do entendimento na sua duração configurando a consistência dos
valores nesta simultaneidade.
Essas multiplicidades se organizam na elaboração dos lugares e nas solidariedades das
significações, pois que sempre haverá um tipo de relação de formas de conteúdo e formas de
expressão.
Os colégios e suas salas que organizam fileiras e alunos, assim como presídios que organizam
celas e presos, objetos de solidariedade sígnica, foram tratados por Foucault em “Vigiar e
Punir”.
Estes espaços são as heterotopias, os contra-lugares, a contrapartida dos lugares ideais: as
utopias. Estão separados os lugares de uso comum, de relaxamento, das utopias e das
heterotopias.
Os lugares de uso comum são os bares, os cafés, as casas e dentro delas salas e os quartos, que
são formas de arranjo das multiplicidades fortemente associados ao cotidiano, à noção de um
tempo que se realiza nas ações pequenas e diferentes entre si, ações que se multiplicam nas
variações dos dias. Estão nestes lugares as ruas com seus afazeres de ir e vir, seu sistema
128
aberto de trocas e fluxos diversos: pessoas, anúncios, carros, dinheiro, comportamentos e
idéias.
É um sistema-mundo em rede, pois que não há diferença na topologia das relações entre estes
lugares, ou entre as multiplicidades que habitam estes lugares. O espaço é múltiplo porque
descontínuo, variado e fragmentado no conjunto dos seus corpos, e atual porque existe sem a
noção de tempo. Pois, será na relação de tempo e espaço que se produzirão os tipos de lugares
e suas diferenças: os lugares comuns, os lugares ideais e os lugares outros.
O arranjo das multiplicidades do espaço, a sua realização na matéria por uma técnica, é feito
pelos costumes dos povos e pela agregação de suas funções e valores: a acrópole ateniense é
um arranjo dos mais complexos, pois ao articular as matérias do mármore às da terra, articula
os valores das matérias formadas: os blocos de mármore pelos quais se constroem os templos
– expressão humana – diante do solo pouco aplainado no qual se enraízam as expressões da
natureza. A dicotomia homem-natureza é a condição de valor do homem grego na dicotomia
solidária de Apolo e Dioniso.
O múltiplo espacial ‘arrumado’ pela razão incorpora as noções de tempo no fluxo da
expressão dos estilos na matéria e na memória dos tempos micênicos da cidadela fortaleza
real. O sentido dos lugares que surgem desta complexidade deriva da técnica de formação e
articulação de elementos singulares, heteróclitos, e da possibilidade de formalizar as funções
políticas e religiosas. A subjetivação do homem grego é um resultado desta complexidade que
organiza matérias e funções. Em “Foucault” (1998), explica Deleuze:
“Talvez fosse mesmo preciso voltar aos gregos [...] A formação grega apresenta
nova relações de poder, bem diferentes das velhas formações imperiais e que se
atualizariam à luz grega como regime de visibilidade, no logos grego como regime
de enunciados [...]A novidade dos gregos aparece posteriormente, aproveitando-se
de um ‘descolamento’ duplo: quando ‘os exercícios que permitem governar-se a si
129
mesmo’ se descolam ao mesmo tempo do poder como relação de forças e do saber
como forma estratificada como ‘código’ de virtude [...] É como se as relações do
lado de fora se dobrassem...[...] ‘é um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do
poder que se exerce sobre os outros’[...] É a versão grega do rasgão e do forro:
descolamento operando uma dobra, uma reflexão.” (DELEUZE: 1998, p.107)
As pedras talhadas do templo grego se elevam ao vazio do pensamento na relação entre as
matérias – os entrecolúnios – e na razão fundamental na técnica da construção pelo módulo; e
descolam o racional do natural pelo estilobasto. Não bastante, a arquitetura grega apresenta a
dobra-reflexão do ser individual diante do ser coletivo na simetria do poder exposto na ágora
e na acrópole.
A ágora-assembléia-falante é a expressão do indivíduo que reconhece como em domínio de si,
assim como a acrópole é a expressão do coletivo que se reconhece como forma de poder. A
subjetivação do homem grego está inscrita na sua arquitetura e no seu urbanismo, ou nas
“heterotopias de crise, lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos.” (FOUCAULT: 2009).
São lugares nos quais a vida comum e cotidiana se desfaz e refaz no arranjo, político ou
religioso, das multiplicidades das gentes ‘desorganizadas’ e das matérias ‘insignificantes’.
Um novo arranjo solidário das formas de expressão e de conteúdo arregimenta significações
particulares, singulares, pivôs da subjetivação das mentes e argumenta história e consciência
social nos articuli materiais.
As duas formas se configuram nas tranças das pedras e das palavras: as pedras talhadas são,
em si, formas de conteúdo e formas de expressão já que são matérias formadas que se
conectam a outras matérias formadas através de uma memória técnica: o estilo e os tipos. Ao
mesmo tempo, se entrelaçam com os enunciados de dever político e social que são atualizados
no tempo da sociedade grega e formalizam as funções que determinam os sentimentos, os
130
deveres políticos, a honra: matérias formadas e funções formalizadas enredam o sutil
acontecimento da arquitetura.
A arquitetura é uma semiótica conotativa que trança, entrelaça semióticas distintas que se não
se identificam, mas se solidarizam, admitem um significado por aproximação das formas e
não por leituras consequentes. Disto se constrói a sua poética. As linearidades proposicionais
dos sistemas utópicos são apenas um estreitamento desta solidariedade formal e não a sua
eliminação.
Foucault (1967) distancia os lugares do cotidiano das utopias – os lugares irreais e críticos das
sociedades – e das heterotopias – os lugares reais e sua ruptura temporal. O tempo configura
os sentidos de lugares ao darem-lhes a possibilidade de serem algo a ser percebido em um
momento, um acontecimento; e se associa ao lugar para fornecer sua condição de presente e
de existência.
A utopia é uma imagem de lugar e tempo ‘congelados’, construída na busca da Idéia e da
perfeição a exemplo da arquitetura moderna e seu sentido de atemporalidade. Sua arquitetura
ideal realizada na referencia de harmonia de um espírito do tempo tornou concreto, na
possibilidade da matéria, a imagem de uma sociedade mecânica e socialmente adequada. A
fluidez do tempo cessa na imagem imóvel da utopia assim como cessa as mudanças inerentes
aos lugares, e é da relação do tempo com lugar que se verifica a diferença entre as utopias e as
heterotopias.
Foucault as contrapõem e define suas características, a partir de um texto de Borges, em “As
palavras e as coisas”:
131
“As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham,
contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas
avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas
seja quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida solapam
secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque
arruínam de antemão a ‘sintaxe’. E não somente aquela que constrói as
frases – aquela menos manifesta, que autoriza ‘manter juntos’ (ao lado e em
frente umas das outras) as palavras e as coisas.” (FOUCAULT: 2002, p.
XIII)
A linguagem solapada na heterotopia de Borges é a própria linguagem escrita, expressão de
“uma certa enciclopédia chinesa” (FOUCAULT: 2002, p. IX) que classifica seres, mas indica
um dos mistérios destes outros lugares:
“No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos, o que,
graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso.”
(FOUCAULT: 2002, p.X)
Das palavras e das coisas é possível alterar para as palavras e os lugares: as heterotopias são
lugares de denominação estranha, de solidariedade aberta, às vezes mística, às vezes
multiforme: os cemitérios, os jardins, as feiras e os mercados.
As palavras dos lugares são as denominações, a incorporação de uma substancia pela
possibilidade da expressão como a ação dos incorporais.
Porque os tipos de lugares e de estes outros lugares, arranjos de solidariedades formais,
podem ser explicados pela relação dos quatro incorporais estóicos: o tempo, o vazio, o lugar,
o exprimível.
O aprofundamento nos incorporais permite o entendimento da fluidez dos corpos e das
linguagens, dos fluxos e das mutações. Os estudos de linguagem, como o feito por Saussure
com a relação ao significante-significado, recebem uma herança provinda do pensamento
132
estóico sobre a expressão, diante da possibilidade dos corpos, integrados e desintegrados nos
fluxos dos tempos, dos lugares e dos vazios, serem nomeados e abertos à sua representação,
ao seu entendimento.
De Rachel Gazzola, no livro “O ofício do filósofo estóico”:
“O Pórtico pretendeu inovar na ontologia quando nomeou os quatro
incorpóreos – o tempo, o lugar, o vazio, e o exprimível – como ‘quaseseres’, em contraste com os corpóreos (estes, sim, seres reais porque físicos).
Tal inovação deixou ao Ocidente a abertura para a reflexão sobre
significantes e significados, estes nada mais sendo que os exprimíveis (lékta)
estóicos”. (GAZZOLA: 1999, p.13)
De Michel Foucault ,em “As Palavras e as coisas”:
“Desde o estoicismo, o sistema dos signos no mundo ocidental fora ternário, já que
nele se reconhecia o significante, o significado e a ‘conjuntura’. A partir do século
XVII, em contrapartida, a disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será
definida, com Port-Royal, pela ligação de um significante com um significado.”
(FOUCAULT: 2002, p.58)
De Anne Cauquelin, do livro “Frequentar os incorporais”:
“Mas qual é, então, esse corpo que cerca o lekton, o exprimível? Crisipo nos
diz que é o som vocal, a voz, a palavra: todos os corpos, pois eles agem; a
voz, o som, emitido pela boca, toca meus sentidos, penetra o ouvido [...] mas
‘difere da linguagem, porque a linguagem (logos) tem um sentido
(semantikos), mas existem palavras desprovidas de sentido (asemos) como
blituri, o que não é o caso da linguagem.” (CAUQUELIN: 2008, p.41)
Análise possível: ver a herança em Peirce e Saussure: em Peirce há um signo que está em
relação a um objeto, a forma ‘realidade’ que se revela na forma ‘signo’, sendo o signo o
incorporador de uma Representação, em Saussure a relação exprimível e linguagem se
destacam, o lekton não é a palavra, é o significado expresso por ela.
A trança das formas recebe elementos de impulso vital como a in-temporalidade do tempo, a
evanescência do vazio e o acontecimento do lugar.
133
Os corpos, a matéria do mundo, são movidos fluidicamente pelos incorporais físicos e pelo
incorporal linguístico, pois exprimir o mundo é revelá-lo pela tradução das linguagens. Uma
análise sugere as forças que movem as representações: o exprimível se desmembra na palavra
e no sentido, nas formas de expressão e de conteúdo; o vazio que é além dos corpos – as
coisas e as palavras inclusive – e que se torna lugar ao ser abarcado por um corpo; e o tempo e
a sucessão de momentos.
A implicação destas idéias está na leitura da cidade contemporânea, no comparecimento do
pensamento filosófico na interpretação de uma realidade urbana cada vez mais marcante,
como as megacidades. A analogia de um mundo caótico se associa ao caos estóico, o lugar
onde não há uma ordem, uma organização, a megacidade é um corpo, matéria do mundo, sem
organização e, consequentemente, sem forma única do dizível, a megacidade é Babel, um
corpo sem órgãos.
Carlos Garcia Vasquez, no livro “Ciudad Hojaldre” (2004) - ‘hojaldre’ é um doce de massa
folhada, uma metáfora urbana – escreve no capítulo ‘A cidade dos corpos’ da referencia
quanto ao pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari e sua denominação de um ‘corpo
sem órgãos’. Associa o conceito de um corpo sem órgãos, como as esponjas e os corais, há
agrupamentos que se caracterizam “pela ausência de uma estrutura essencial, de uma
hierarquia de órgãos com funcionamentos diferentes” (VASQUEZ: 2004, p.130).
Assim é possível entender a massa construída e informe, caótica, na qual se percebe a
horizontalidade de elementos dispostos em sincronia no tabuleiro do espaço da cidade:
“A cidade contemporânea poderia assemelhar-se a um corpo sem órgãos que
realizara suas funções, não mediante a coordenação de elementos
especializados, como defendia a Carta de Atenas, mas sim graças a
processos de inspiração, evaporação e transmissão de fluídos, processos que
estão em permanente atividade e evolução.” (VÁSQUEZ: 2004, p.131)
134
A Carta de Atenas e suas funções urbanas estruturavam hierarquicamente o ambiente urbano
ao modo analógico de um corpo humano, o centro de decisões como a cabeça da cidade, a
circulação como evolução do pensamento matemático fazendo carros e pessoas passarem
pelas vias como o sangue passa pelas artérias. O motor social é colocado em seguida nos
centros de comércio e serviços. Corpos funcionais e formalizados – as residências corbusianas
– participando de um corpo organizado na sua hierarquia antropomórfica.
As cidades contemporâneas, as megacidades, não são assim organizadas, formam uma massa
extensa de elementos fluídicos ao modo dos lugares comuns de Foucault, dos bares, cafés e
cinemas onde as gentes se passam, cruzam, entretêm. No distanciamento das utopias e das
heterotopias, os lugares comuns são os momentos fluídicos da vida cotidiana por onde circula
um sistema de trocas – comercial, intelectual, sentimental – sem que aja um poder de retenção
neste sistema de trocas, de dons e contradons. Este ambiente dos dias foi crescido
vertiginosamente pelo moderno sistema de fabricação e possibilidade inumerável de
produção.
O mundo infindável dos objetos, das canetas multicoloridas, e dos novos carros que são os
mesmos, se confunde com a massa de habitações de ‘estilo’, com as ruas de transitoriedade –
sem a intencionalidade das passagens de Benjamin – e com os edifícios que desmontam as
perspectivas e propiciam ao cenário urbano uma dramaticidade babélica, um fluxo
interminável de formas que se associam a cada novo instante, a cada momento, como a cada
momento o tempo envolve um corpo e lhe conta o sentido de acontecimento, de um lugar.
135
Este não é o lugar das memórias coletivas como desenvolve Aldo Rossi em “A arquitetura da
cidade”, mas é o momento no qual um corpo penetra o vazio, o lugar é sua consequência, e o
tempo a sua condição de experiência.
Deste corpo sem órgãos:
“Nenhuma totalidade é perceptível neste corpo sem órgãos, na há claras
centralidades sequer estáveis superestruturas, mas isto não significa o caos.
Como nos agrupamentos de organismos que acabamos de citar, também aqui
existem estruturas débeis, parciais e instáveis que permitem um
funcionamento complexo. A cidade dos corpos sem órgãos está articulada
por uma frágil armação cujos nós são ‘pontos singulares’: aeroportos,
centros comerciais, centro culturais, etc.” (VÁSQUEZ: 2004. p. 131)
Os aeroportos e os centros culturais, estruturas débeis e instáveis, são condensações dos
fluxos dispersos na cidade. A não centralidade das megacidades é uma intensidade que abarca
a rede montada pela topologia disjunta das inúmeras construções que estão nesta rede
inseridas. A cidade é um arranjo de fragmentos, e não mais elementos que se estruturam em
conjunto.
A rede à qual pertencem os pontos múltiplos – espaciais – é a condição do fluxo significante,
o encontro de pequenas subjetivações que se ligam pela repetição de elementos de expressão
como as geometrias dos edifícios. Dentro de um sistema de igualdades, a desigualdade
produzirá um estado de subjetivação peculiar:
“Deleuze e Guattari utilizam o exemplo da cristalografia para explicar seu
proceder: quando um germe de cristal é introduzido em uma matéria amorfa
e instável comunica sua estrutura a uma molécula vizinha e esta, por sua vez,
a outra, e assim sucessivamente até que a substancia cristaliza em uma forma
estável. Algo similar ocorre na cidade contemporânea: quando em um
domínio aparece um ponto singular, o espaço que o rodeia cristaliza e se
converte em destino de multitudes de fluxos que o conectam com outros
pontos singulares da cidade. (VASQUEZ: 2004. p.131)
A cidade de corpos alterna estabilidade e instabilidade pelo fluxo das noções de tempo e
entendimento e de vazio e lugar, à semelhança da fluidez sígnica.
136
Os fluxos são pura intensidade no corpo sem órgãos, mas o que é um corpo sem órgãos?
“Hjelmslev tinha conseguido elaborar uma grade com as noções de matéria,
conteúdo e expressão, forma e substância. Esses eram os strata, dizia
Hjelmslev [...] Chamava-se matéria o plano de consistência ou o Corpo sem
Órgãos, quer dizer, o corpo não-formado, não-organizado, não estratificado
[...]” (DELEUZE e GUATTARI: 2004, p.57)
Um Corpo sem Órgãos é a própria matéria do mundo sem um estado de organização ou sem
uma forma; e é sobre este conceito que Vásquez (2004) associa as multiplicidades da cidade
contemporânea a um estado de corpos sem organização, enfim há corpos e modos de sua
organização, de sua territorialização e desterritorialização: a agência dos incorporais.
A relação que é feita com a cristalografia – um germe de cristal que migra gerando outros
cristais – à fluidez dos signos que geram signos é o fluxo semântico que perpassa os corpos
tal como quando os olhos de um viandante envolvem e significam as paisagens que desvelam
a cidade nos interstícios de seus blocos, pois os olhos de quem vê quando anda não invadem
os corpos, apenas os transformam, mudam a sua forma pela possibilidade de sua nova
dizibilidade. O dizível, o exprimível, é a emergência do conteúdo pela solidariedade da
expressão.
É uma ação conjunta do tempo, do vazio e do lugar diante de sua condição de expressão.
O vazio e o lugar são solidários, porque um lugar existe quando um corpo ocupa o vazio,
como explica (CAUQUELIN: 2008, p.31) citando Diógenes: “Incorporais, o lugar e o vazio
são uma mesma coisa, que é chamada ‘vazio’ quando nenhum corpo a ocupa, e ‘lugar’
quando é ocupada por algum corpo”.
137
O tempo, como o vazio, é entendido pela sua infinitude e não-direcionabilidade, sem antes,
depois ou agora, mas admite sua dimensionalidade no contato com os corpos.
Os incorporais estóicos vão, pouco a pouco, e não sequencialmente, dando condição aos
arranjos dos corpos. A matéria, o corpo sem órgãos, é incorporada por condições naturais,
físicas, que permitem que estes corpos se organizem e desorganizem, territorializem e
desterritorializem. São arranjos descontínuos não porque altera a matéria do mundo, que é
sempre a mesma, mas porque são alterados os arranjos a cada momento.
Uma praça pode ser territorializada e desterritorializada conforme pessoas diferentes a
invadam nos tempos dos dias e das semanas, fazendo com que as ‘matérias vazias’ da cidade
se preencham de significado e vida. Da mesma forma, uma feira produz a mesma sensação de
alteração, de presença e ausência, ao se deslocar e transmutar os lugares da cidade com a sua
presença efêmera: um tipo de heterotopia porque “a heterotopia consegue sobrepor, num só
espaço real, vários espaços, vários lugares, que por si só seriam incompatíveis”
(FOUCAULT: 1967)
Bernard Tschumi, no livro “Architecture and disjunction” permite avançar nesta relação dos
corpos e suas mutações – pelas quais se produzem as disjunções – no tempo, no capítulo
“Violência da arquitetura”, começando com dois princípios: “não há arquitetura sem ação,
não há arquitetura sem eventos, não há arquitetura sem programa e, por extensão não há
arquitetura sem violência” (TSCHUMI. 2001, p.121)
A violência não é compreendida como uma força brutal destrutiva, destruindo uma
integridade física ou emocional, mas é vista “como uma metáfora da intensidade das relações
138
entre indivíduos e os espaços circundantes” (TSCHUMI: 2001, p. 122), interação que torna a
arquitetura um acontecimento a cada momento, a cada instante:
“Ora, se o vazio incorporal vem a ser lugar a partir do momento em que ele
recebe corpos, o tempo, ele também, e pela mesma operação, vem a ser
temporal desde quando momentos lhe são fixados em sucessão.”
(CAUQUELIN: 2008, p.93)
Mas não se trata de uma sucessão contínua que pudesse ligar o passado e o futuro como ‘uma
estrada sem fim’, mas é a sensação presente a cada momento, é a memória do tempo e da
incorporação dos lugares que dão a sensação de continuidade, uma ilusão da apreensão do
indivíduo na duração de cada momento.
A força da arquitetura como evento é a convergência das ações do tempo e do lugar na
solidariedade das formas e da interveniência dos corpos dos indivíduos e das arquiteturas.
A experiência arquitetônica se dá na duração da percepção do espaço como evento e dos
fluxos significantes pelos quais a intenção do espaço se esconde, ou se revela. Cada momento,
na condição da duração da sua experiência, permite o entendimento do conteúdo da memória,
mas “sobre a forma na qual ele se dá – o presente – até fazer desaparecer grande parte (ou,
mais radicalmente, o todo) do conteúdo para preservar apenas o seu signo.” (CAUQUELIN:
2008, P.99)
A significação que resulta da experiência, deste momento presente, que torna a arquitetura um
evento, é o exprimível que se associa ao tempo, na duração da experiência, e ao fluxo vaziolugar.
139
A experiência no tempo se dá no encontro dos corpos dos indivíduos e das arquiteturas, a
violência que dá interação e dá alteração dos sentidos dos corpos, a ação dos corpos é
condição da arquitetura.
Tschumi explora duas formas de violência, da significação resultante da inter-ação, a dos
corpos violando os espaços e o seu contrário:
“Adentrar a um edifício pode ser um ato delicado, mas isto viola o equilíbrio
de uma geometria precisamente ordenada [...] Mas se corpos violam a pureza
dos espaços arquitetônicos, alguém pode surpreender-se sobre o reverso: a
violência infligida a grandes multidões por apertadas galerias de passagem, a
simbólica ou física violência dos edifícios sobre os usuários [...] Arquitetura,
então, é apenas um organismo comprometido no constante intercurso com o
usuário [...] O lugar que o corpo de alguém habita está inscrito na sua
imaginação, seu inconsciente, como um espaço de possível deleite [...] Cada
espaço arquitetônico implica (e deseja) a intrusa presença de quem irá
habitá-lo [...] (TSCHUMI: 2001, p. 123-124)
O desconforto aberto por este conjunto de violências recíprocas é definido por assemelhação a
alguém que vai a um show de rock, multidões apertadas e som alto, mas o som excessivo é
exigido por um espaço excessivo. Desta violência em excesso, entende Tschumi, pode surgir
o prazer da arquitetura.
Um prazer que nasce da percepção da geometria do espaço e, muitas vezes, do seu rigor, ou
do conjunto de espécies espaciais descontínuas ligadas por um espaço envolvente, imanente.
O prazer de uma arquitetura de excessos e descontinuidades pode ser observado no projeto do
Parque La Villette e no Studio National des Arts Contemporains Le Fresnoy. Em La Villette,
Tschumi desintegra os conceitos de elementos urbanos de Kevin Lynch e faz com que a
região, os caminhos, os nós e os marcos, sejam estratos justapostos, retirando desta interação
a dinâmica da forma do parque, com passarelas coberturas que abrem ao caminhante a
140
possibilidade do exercício de seu desejo, da ‘violência’ do corpo ao alterar a rota do espaço e
a violência do espaço ao impedir seu fechamento formal ao usuário.
A descontinuidade das formas justapostas não produz uma integração, mas uma interação de
partes com a cumplicidade dos indivíduos, que alteram a ‘rota determinada da passarela’ e a
alteram ao transformá-la em caminho. Mas ao transformar a passarela, o conjunto todo
mudou, houve uma permuta de valores espaciais que alteraram pela nova percepção que não
se circunscreve pela ‘altura’ de posicionamento do corpo e consequente alteração de visão,
mas o valor do corpo perceptivo também mudou, porque a transgressão alterou seu caráter
‘normal, e a perda do comedimento abre a sensação do excesso, cria uma imagem fluídica
numa mente que perdeu o sentido de simetria e abriu-se às portas da percepção do espaço em
excesso: de formas em estratos, de cores fortes e singulares, da transgressão da normalidade
que encerra aprisionada a fluidez dos tempos e dos lugares e a denominação instável dos
corpos.
O indivíduo altera o espaço como leitor poeta, ‘transgredindo’ o rito original engendrado pelo
arquiteto, caminhando numa poiesis do espaço descontínuo e abrindo, ao prazer da
arquitetura, o rito-fluxo purificador dos hábitos e dos dias.
Em Le Fresnoy, a instigante circulação abraça em pinça, com uma cobertura, um conjunto de
casas que não foram demolidas. Entra-se pelo teto: diz a passarela metálica que indica esta
possibilidade ao indivíduo leitor, as portas dos térreos das casas tiveram seu valor
transmutado juntamente com as antigas janelas, são apenas aberturas por onde perpassa o
desejo de quem anda.
141
A cobertura envelopa e desloca o conjunto de casas de sua região, são agora pedaços de textos
colocados ao acaso, porque é esta a (im)possibilidade da leitura correta. O prazer de ler o
espaço em fragmentos é o mesmo que Barthes demonstrou em seu livro “O prazer do texto”,
ler apenas o que dá prazer, fazer com que um momento novo permita chegar a um estado de
invenção, de criação poética. Cumplicidade de uma intenção poética das formas disjuntas com
a intenção caminhante que poetiza ao acaso da escolha. Não é apenas ler nas entrelinhas, mas
é ler no vazio disjunto, no diagrama da relação presença-ausência, é ler o não-escrito.
A cada intenção se produz um novo espaço da efemeridade das imagens e das formas de
exprimir e a cada indivíduo que entra, e a cada momento que dure uma experiência, um corpo
se transforma porque se reconstrói nas suas formas.
Le Fresnoy e La Villette são arquiteturas que possuem uma forma de conteúdo pelas matérias
que abarcam e uma forma de expressão pelas funções que agregam, não as funções do fazer,
mas a determinação de cada lugar no conjunto semântico de seu espaço. Talvez os vazios
sejam a sua matéria-prima, não os tijolos dos prédios, mas os espaços que circundam estes
tijolos, as aberturas que permitem que as casas módulos sejam ‘violentadas’, porque ao ser
exprimido, mesmo que pela imaginação de quem anda e vê, o vazio se torna corpo na
expressão da palavra-corpo-imagem.
A poética de um espaço, de uma arquitetura, se delineia na relação de alguns fatores: a
solidariedade entre as formas de expressão e de conteúdo, o tempo e seus sentidos de duração
(fluxo) e memória (mutação), os corpos e a matéria do mundo.
142
A cobertura e a circulação de Le Fresnoy formam um novo arranjo da matéria da cidade, deste
corpo sem organização, as casas ‘insignificantes’, permitindo dar forma a uma matéria não
formada.
143
CAPÍTULO 4. MATERIALIDADE
Os conceitos de forma de expressão e forma do conteúdo foram definidos por Louis Trolle
Hjelmslev, em um texto de 1943, chamado “Prolegomenos a uma teoria da linguagem” no
qual discute diversos aspectos da linguagem a partir da referência de Saussure: “Aderimos
explicitamente ao passado em certos pontos a respeito dos quais sabemos que outros
conseguiram resultados positivos antes de nós. Um único teórico merece ser citado como
pioneiro indiscutível: o suíço Ferdinand de Saussure”. (HJELMSLEV: 1978, p. 182)
O “Prolegomenos a uma teoria da linguagem” é termo para a leitura, como visto, de Deleuze e
Guattari em “Mil Platôs” no capítulo “10.000 A.C. – A geologia da Moral (quem a Terra
pensa que é?)”, do qual são retirados os conceitos de forma e substância tanto de expressão
quanto de conteúdo. Não menos, Deleuze em “Foucault” (1998), indica, sem citar Hjelmslev,
os mesmos conceitos:
“Foucault ataca particularmente o Significante, ‘o discurso se anula em sua
realidade em sua realidade colocando-se na ordem do significante’. Vimos
como Foucault descobriu a forma da expressão numa concepção bastante
original do enunciado [...] Mas uma operação análoga é necessária para a
forma do conteúdo, pois assim como a expressão não é um significante, este
também não é um significado. Não é também um estado de coisas, um
referente.” (DELEUZE: 1998, p.60)
A desmontagem desta linhagem se processa na desvinculação do signo, uma forma,
representando um objeto, um conteúdo. A solidariedade entre o significante e o significado é
uma condição de não-identidade entre os elementos do signo, mas é um contato sutil, no
tempo e no espaço que os une e os desune a cada sentença, palavra ou pensamento. O
significante passa a ser chamado de expressão, e o significado passa a ser chamado de
conteúdo.
144
Das ações no tempo, resultam os fatos de diacronia e sincronia é da diacronia linguística que
se entende o conceito base para a compreensão dos estratos, definidos por Hjelmslev em outro
texto: “A estratificação da linguagem” (1954).
São quatro os ‘strata’ de base de Hjelmslev (1954), pois que se baseia no fato que expressão e
conteúdo não estão em relação identitária, mas solidária, portanto cada uma tem uma forma
pela qual se produz a relação entre eles, mas também cada forma ‘formaliza’ substâncias,
resultando os quatro ‘strata’: substância de expressão, forma de expressão e substância de
conteúdo, forma de conteúdo.
As formas podem ser entendidas como instrumentos de linguagem, não psicológicos, que
produzem formas, ou arranjos, pelos quais se possa ‘ver’ e ‘falar’, entender pelas formas
visíveis as substâncias do mundo e enunciar pelas formas dizíveis, sendo que as formas
visíveis são solidárias às formas de enunciado: uma faz ver o que a outra diz: como a forma
visível prisão (conteúdo) se solidariza com o enunciado da Lei que define o crime
(expressão).
A expressão não representa o conteúdo, mas é da junção das duas formas que se produz uma
significação. Não há sentido no Panoptismo, como enunciado e expressão de um dispositivo
de classificação e ordem se, por contrapartida, não houver um conteúdo real que se mostre a
esta evidencia como o distúrbio das massas populacionais. À ‘desordem’ das populações
corresponde um enunciado de ordenação.
145
A matéria do mundo, nos arranjos de suas inúmeras possibilidades, fornece as substâncias que
o pensamento abarca: as formas do visível são formalizações das matérias do mundo, não os
próprios objetos, mas estados de visibilidade:
“As visibilidades não se confundem com os elementos visuais ou mais
geralmente sensíveis, qualidades, coisas, objetos, compostos de objetos [...]
As visibilidades não são formas de objetos, nem mesmo formas que se
revelariam ao contato com a luz e com a coisa, mas formas de luminosidade.
(DELEUZE: 1998, p. 61)
“Chamava-se conteúdo as matérias formadas que deviam, por conseguinte,
ser consideradas sob dois pontos de vista: do ponto de vista da substância,
enquanto suas matérias eram ‘escolhidas’, e do ponto de vista da forma,
enquanto eram escolhidas numa certa ordem (substância e forma do
conteúdo)” (DELEUZE e GUATTARI: 2004, p.58)
“Cada uma dessas línguas estabelece suas fronteiras na “massa amorfa do
pensamento” ao enfatizar valores diferentes numa ordem diferente, coloca o
centro de gravidade diferentemente e dá aos centros de gravidade, um
destaque diferente. É como os grãos de areia que provém de uma mesma
mão e que formam desenhos diferentes, ou ainda como a nuvem no céu que,
aos olhos de Hamlet, muda de forma de minuto a minuto, Assim como os
mesmos grãos de areia podem formar desenhos dessemelhantes e a mesma
nuvem pode assumir constantemente formas novas, do mesmo modo é o
sentido que se forma ou se estrutura diferentemente em diferentes línguas,
São apenas as funções da língua, a função semiótica e aquelas que dela
decorrem, que determinam sua forma. O sentido se torna, a cada vez,
substância de uma nova forma e não tem outra existência possível além da
de ser substância de uma forma qualquer. (HJELMSLEV: 1978, p. 200)
A arquitetura reúne matérias físicas como o concreto, o vidro ou o aço, e matérias não físicas
como o vazio e o tempo, que se tornam corpos ao admitirem uma forma de serem exprimidos.
Um desejo, o do arquiteto, se pronuncia no arranjo destas possibilidades, na técnica de
agrupamento das multiplicidades materiais: o desejo da geometria de um espaço, da simetria
entre as partes, da educação do olhar e do espírito na arquitetura moderna ou da existência das
gentes na arquitetura e na cidade como em Aldo Rossi para quem as construções ou áreas da
cidade, que tenham relevância, fatos urbanos, possuem uma singularidade que “depende mais
da forma que da matéria, ainda que esta tenha um papel importante; depende também de a
forma ser a sua forma complicada e organizada no espaço e no tempo”. (ROSSI: 1998, p. 16)
146
A fenomenologia de Rossi (1998), como a percepção da ‘alma’ da cidade, não distancia a
preocupação do que considera os grandes temas para a arquitetura: a individualidade, ou a
capacidade de um fato urbano pronunciar-se como organização isolada; o lugar, ou a
capacidade de um edifício ser visto como elemento de identidade cultural; o desenho e sua
força de intencionalidade que transparece na forma e a memória, substrato dos tempos da
cidade e produtora de sentimentos e comportamentos ligados a valores culturais.
Volta-se à matéria como a possibilidade dos arranjos no mundo através de uma intenção, ou
força criadora, e as noções de tempo e lugar, o tempo na memória e no reconhecimento da
população, o lugar como projeção da existência única daquele objeto.
No “A arquitetura da cidade”, não há proposições como multiplicidades ou diagramas ou
sociedades disciplinares, talvez, mesmo, seja uma das últimas estações projetivas das
sociedades disciplinares inauguradas no Iluminismo e vindas a nós pelas utopias e pelo
modernismo. O racionalismo em Rossi (1998) ainda exerce uma forte carga sobre elementos
de composição e simetria, mas não esconde a influência das teorias da linguagem, da
arquitetura como coisa fabricada e da variação tecnológica na produção projetual.
Os fatos urbanos, num espectro que abarca os edifícios às cidades, não são mais pensados
feitos à razão industrial, com uma tecnologia de projeto similar à de Christopher Alexander,
mas são manufaturas, artefatos, que fabricados no tempo pelo homem, incorpora valores desta
passagem do tempo. Os tempos das cidades são sentenças fabricadas no tempo, que se limita e
define os espaços da cidade como lugares, como signos de representação dos momentos
ritualizados na configuração da forma.
147
Porque nem todos os ambientes da cidade podem ser considerados fatos urbanos, mas
somente aqueles que possuem uma individualidade, aqueles ‘lugares’ que se destacam no
meio do múltiplo da cidade.
Sem precisar inferir a lógica identitária das permanências, é possível perceber a leitura das
estruturas que possibilitam as formas dos edifícios ou dos bairros. No mapa de uma
multiplicidade estruturas de linguagem inferem o caráter da cidade, pois que a cidade se faz
entre ‘as obras de engenharia e de arquitetura’ e as construções da vida cotidiana: os modelos
que são referências estilísticas e, normalmente, produto dos poderes de uma sociedade; e os
tipos com suas invenções de momento, sua imagem de iconicidade imperfeita, sua finalidade
de ser matéria de transformação da cidade.
Os movimentos da cidade são vistos como similares aos da linguagem, e os tempos que se
movem nas contradições da dialética possuem saltos transformadores: a alteração da cidade
antiga para a cidade medieval, ou da cidade burguesa para a cidade moderna.
Vida e política se inserem na existência das cidades assim como as cidades são o cenário da
existência humana.
A matéria organizada substancializa uma forma, um fenômeno, uma visibilidade, que se
estabelece pelo traço dos arquitetos ou das populações e trança sua informação de
solidariedade imperfeita aos enunciados políticos e sociais do seu tempo e da sua gente.
As formas das arquiteturas correspondem às visibilidades do inextricável do nosso mundo e
dos arranjos de força que cada estrato histórico exerce sobre os enunciados sociais e políticos
148
e sobre os conteúdos formados das matérias. As formas são dispositivos de linguagem pelos
quais é possível associar matérias e funções. Tanto permite que as matérias do mundo sejam
‘escolhidas’ quanto permite que as funções sociais, os enunciados para Foucault – educar,
punir, fazer trabalhar –, sejam formalizados ou finalizados, tenham uma finalidade dentro de
um contexto de solidariedade de formas.
Para Hjelmslev (1978), a toda forma corresponde uma substância, mesmo que os estudos da
linguagem sejam estudos formais e não substanciais, pois é a forma que escolhe as matérias
ou finaliza as funções. As utopias, ou os pensamentos ideais, correspondem, no universo da
arquitetura, aos processos legais e às novas disposições médicas. As formas projetuais
correspondem às formas da visibilidade.
As formas tornam evidentes tanto as matérias quanto as funções:
“Um regime de luz e um regime de linguagem não são a mesma forma, e não
têm a mesma formação. Nós compreendemos melhor porque Foucault não
parou de estudar estas duas formas [...] encontra em Vigiar e Punir sua
forma positiva [...] a forma do visível, em contraste com a forma do
enunciável. Por exemplo, no começo do século XIX, as massas e populações
se tornam visíveis, vêm à luz, ao mesmo tempo que os enunciados médicos
conquistam novos enunciáveis (lesões de tecidos, orgânicos e correlações
anatomofisiológicas [...]” (DELEUZE: 1998, p. 42)
O Panóptico de Bentham é uma visibilidade que torna evidentes os corpos disciplinados, e
dóceis, de presos, escolares, soldados; mas torna evidentes também a matéria do mundo
formada nos objetos. Não há linguagem que não possua uma forma de ‘ver’ (as visibilidades e
a forma de conteúdo) e uma forma de ‘falar’ (os enunciados e a forma de expressão).
Uma arquitetura se torna uma forma quando ‘escolhe matérias não-formadas’, sendo a matéria
é uma massa plástica que se organiza por meio de uma técnica que a escolhe e define sua
149
função no arranjo que a forma produz deste conjunto de multiplicidades: o presídio, a casa
moderna, o monumento pós-moderno.
A matéria das arquiteturas, escolhida conforme seu tempo, é mais ampla que os corpos físicos
do concreto e do vidro e da luz, e que os corpos dos homens e da sociedade, pois ao serem
expressos se tornam corpos materiais a serem formados, os incorporais como o tempo, o vazio
e o lugar e suas conseqüências.
A trança semiótica das arquiteturas associa a sua matéria, uma multiplicidade de corpos, numa
possibilidade de formas de conteúdo e de expressão. A formalização da matéria arquitetônica
se produz em relação com as finalidades de seu tempo como a luz reveladora do sol na
arquitetura de Le Corbusier, a luz fenomênica de Barragán, a luz metafísica de Louis Kahn.
A luz é matéria tanto quanto o tijolo e o concreto que ele revela, e abre a possibilidade, no
encontro–desencontro, da percepção da sombra e do vazio, da intermitência do tempo, e da
presença do lugar. As arquiteturas terão estas matérias escolhidas como ‘os grãos de areia na
mão e as nuvens de Hamlet’ conforme o diagrama de seu tempo, não como sua identidade,
mas como solidariedade sígnica,
Um dos princípios das heterotopias é a condição que ela possui de rearranjar o tempo,
produzir um tempo outro, uma heterocronia, como uma igreja desvincula o tempo mítico do
tempo vulgar, como um cinema desvincula o tempo cotidiano e nos leva ao tempo de sua arte.
Há uma ruptura com o tempo tradicional, diz Foucault (1984), produzindo uma nova condição
de leitura e percepção, do lugar e de si, e no estancamento do movimento fluídico e aberto do
150
‘tempo das ruas’, dirigir ações e sentimentos: “podemos avançar que o tempo também é um
incorporal e só assume corpo – isto é, só se torna corpo realmente – quando uma ação se dá
nele” (CAUQUELIN: 2008, p. 93): e que ao contato com o vazio tornado corpo, no sentido de
lugar, abre a condição da experiência no período de sua duração: como um cemitério.
É isto que vemos no cemitério de San Cataldo, projetado por Aldo Rossi, em Modena e em
1971, ampliando um projeto já existente, o tempo é matéria da arquitetura tanto pelo apelo
histórico das tipologias neoclássicas renovadas, quanto pelo apelo fenomenológico do
encerramento do ossuário numa geometria pura. O projeto, premiado em 1971, relê o
fechamento do cemitério num columbário contínuo por meio de uma forma retangular
trabalhada com colunatas.
No eixo central, encontra-se um cubo que articula vazios dispostos de forma extremamente
regular que, junto à geometria do edifício, compõem um cenário de racionalidade delatora dos
mistérios da morte e da sua impostação como afirmação positiva, presente.
A geometria do cemitério de San Cataldo, culminando no ossuário, é uma organização dos
caminhos, das matérias de construção, das noções de tempo e do respeito à história.
Os módulos das colunatas do columbário, e os módulos em cheios e vazios das paredes do
ossuário dão valor positivo às intermitências dos vazios. Suas sombras se materializam na
dizibilidade racional. Assim os caminhos, e junto a estes os pensamentos e os sentimentos de
que neles entra, indicam claramente o ingresso a um mundo interior.
Espaço outro da relação vida e morte, um cemitério, como o de San Cataldo, é uma
heterocronia porque produz uma reorganização das formas percebidas numa linearidade de
aprofundamento pessoal e espacial.
151
O bloco marcantemente material encerra um vazio no seu interior, transformando-o, como ao
tempo, numa positividade espacial, um vazio sólido e concreto porque carregado de
dizibilidade, de significados. São conectadas as matérias resultando numa forma, numa
condição do exprimível, em algo – a geometria de módulos e intercalações – que se relaciona
com os seus enunciados; um cemitério judeu, introspecção, a relação metafísica com o corpo.
Formas de enunciado e formas de visibilidade são claras nesta leitura, as matérias da
arquitetura - como o vidro e o tempo, o concreto e o lugar – se conectam com as funções com
as quais se solidarizam, e, na leitura de Deleuze e Guattari, se constroem e destroem, se
territorializam e desterritorializam nos fluxos do diagrama instalado.
Mas não são em todas as arquiteturas que esta solidariedade é clara.
O lado de fora, a exterioridade e suas multiplicidades, é a diversidade de todos os sentidos e a
explosão de matérias e enunciados dispostos ao acaso nas ruas, no espaço.
O diagrama das cidades altera o arranjo destas multiplicidades nas casas, condomínios,
museus, shoppings: a mesma areia na mão que gera formas diferentes com tempos diferentes
e funções específicas.
A cidade contemporânea – representante de uma sociedade ocidental – é uma mescla de
corpos simples que se agregam a corpos complexos – indivíduos e sociedade, casas e bairros
– articulando formas diversas em solidariedade com as funções do diagrama contemporâneo,
ligadas à efemeridade e ao presenteísmo.
O diagrama é o jogo de forças que atua numa época na extensão dos estratos existentes numa
sociedade, é uma relação de forças. Segundo Deleuze (1998), é “a apresentação das relações
152
de força que caracterizam uma formação [...] este seria uma emissão, uma distribuição de
singularidades.” (p.81)
A sociedade ocidental se multiplicou pelo seu extremado poder de produção e industrialização
de bens de consumo ao excesso, dando forma a uma sociedade de excessos que alterou o valor
referencial dos produtos, que passou a ser condicionado pela possibilidade de satisfação
momentânea, efêmera.
A efemeridade dos universos de linguagem está associada à efemeridade dos valores voltados
à satisfação do desejo, como explica Lipovetsky (2005):
“O ciclo pós-moderno se deu sob o signo da descompressão cool do social
[...] No momento em que triunfam a tecnologia e a genética, a globalização
liberal e os direitos humanos, o rótulo pós-moderno já ganhou rugas, tendo
esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia [...]
Hipercapitalismo,
hiperclasse,
hiperpotência,
hiperterrorismo,
hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper?”
(LIPOVETSKY: 2005, p. 52-53)
O crescimento das cidades não é uma evolução quantitativa da produção industrial no tempo
dos arquitetos modernos, mas é uma mudança radical da relação entre grupos sócias, do
sistema de produção de bens e do seu sistema de distribuição.
Mutação diagramática: não há mais uma elite que estabeleça significação e valor a produtos,
gestos, pensamentos. Os ambientes estéticos em que se desenvolvem as formas de arte são
diversos, não é mais possível determinar um ambiente erudito e um comum, pois que os
grupos sociais ganharam força e autonomia.
153
A liberdade pretendida pelos modernos, baseada num sistema de produção industrial que
expandiria um bem-estar comum sob a bandeira ética do pensamento social, encontra a
liberdade do individualismo da hiperprodução.
É uma revolução do cotidiano diante que enfrenta as grandes utopias modernas que dispõe
Narciso diante da oposição nietzscheniana Apolo – Dioniso. A oposição razão-emoção se vê,
agora, confrontada pelo desejo de si e da força do universo do inconsciente e, pela perda dos
limites e das noções de valor, explosão do desejo infundado de si, pois que à imagem do ‘eu’
refletido na sociedade se superpõe a imagem de um poder pontual, descentralizado,
singularizado.
O controle centralizador das sociedades disciplinares – o panoptismo e as cidades modernas –
se encontra reconfigurado no sujeito que controla a si mesmo porque não se percebe solitário
dentro do seu pequeno mundo, iludido pela possibilidade de atender um desejo domesticado
por imagens múltiplas de valor igual e de um poder disseminado em cada indivíduo,
descentralizado, sem um rosto com o qual lutar:
“No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, temos: (1) a
passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de
comunicação de massa; e (2) a substituição de uma sociedade rigorísticodisciplinar por uma ‘sociedade-moda’ completamente reestruturada pelas
técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes [...] O universo
do consumo e da comunicação de massa aparece como um sonho jubiloso
[...] a neofilia se apresenta como paixão cotidiana e geral [...] Foi o poder
dos dispositivos subpolíticos do consumismo e da moda generalizada o que
provocou a derrota do heroísmo idológico-político da modernidade [...]
(LIPOVETSKY: 2005, p. 60 e 61)
O pensamento de construir uma sociedade futura do modernismo e o pensamento
tradicionalista e histórico do pós-modernismo foram transformados em objetos de consumo e
154
turismo: indústria digital e centros históricos restaurados: instaurados na construção narcísea
do presente.
O museu é um dos espaços outros, coletor e amontoador de história, de uma coleção de
tempos que são vistos por olhares rápidos, narcíseos, digitais. Da coleção múltipla dos tempos
que se atualizam no diagrama, o museu os seleciona e os classifica, para um olhar de etiquetas
e iconicidades. Encerramento e organização de tempo e espaço:
“Um museu, um estádio, um centro comercial, um teatro de ópera, um
parque temático de entretenimento, um edifício histórico protegido para ser
visitado ou um centro turístico, são contêineres.” (SOLÁ-MORALES: 2002,
p.99)
A trança semiótica passa a ter mensagens escondidas, a exemplo dos mitos de Barthes (2007),
e a arquitetura torna visível dois níveis de enunciados, um que diz veja, compre, more; outro
que diz como ser, agir, pensar, mas como escreve Deleuze (1998) em “Foucault”: “O segredo
só existe para ser traído” (p.63)
As multiplicidades de tempo e espaço existentes no espaço externo das ruas configuram
fluxos sígnicos abertos de informação referentes a objetos, construções e pessoas, através de
placas e painéis informativos, estilos arquitetônicos e regras de comportamento. Os fluxos
abertos das ruas são organizados dentro dos contêineres, e por essa organização, se realizam
processos de seleção, segregação e condicionamento.
Os contêineres são “os cenários nos quais o ritual de consumo se produz, onde a distribuição
de bens desejados encontra seus adoradores” (SOLÁ-MORALES: 2002, p.99), um ambiente
de trocas – compra e venda – que são “nem sempre públicos, tampouco privados”.
155
Os fluxos múltiplos e organizados são ligações sígnicas em que as relações solidárias de
expressão e conteúdo são tecidas com outras relações de expressão e conteúdo: as semióticas
trançadas na cidade são também seus sistemas técnicos de produção e distribuição: uma placa
é um produto industrial ao mesmo tempo em que distribui funções: parar, andar etc.
Os fluxos são produzidos pela interconexão dos múltiplos pontos que existem dentro de um
diagrama como a relação tipológica entre edifícios, a relação funcional das áreas de comércio,
a constituição dos sistemas de infra-estrutura e dos sistemas de comunicação.
São os grãos de areia que formam figuras por como a mão os despeja no chão, sempre os
mesmos grãos de areia, os mesmos elementos de linguagem e as mesmas matérias do mundo,
formadas pelo agrupamento de elementos heteróclitos, significadas e valoradas, dentro das
forças de um diagrama: a megacidade: mas a solidariedade das formas não é clara nos
contêineres.
A crítica de Solá-Morales (2002) sobre estes elementos da contemporaneidade urbana analisa
sua falta de transparência, uma opacidade própria dos tempos de uma sociedade estabelecida
no presente, a transparência da arquitetura moderna – na qual o conceito era reconhecido na
relação forma/função – perde a sua validade diante de uma sociedade que eliminou seus
pensamentos essencialistas, moldada pela configuração de uma comunicação cada vez mais
fragmentada e pelo presenteísmo do individualismo narcíseo. Está baseado em Baudrillard
(1996) e em seu livro “A troca simbólica e a morte”, no qual é feita a crítica sobre os novos
sistemas de produção e a perda dos valores referenciais:
“Acabaram-se os referenciais de produção, de significação, de afinidade, de
substância, de história, toda a equivalência a conteúdos ‘reais’ que ainda
lastravam o signo com uma espécie de carga útil, de gravidade – a sua forma
156
de equivalente representativo. Prevalece o outro estádio do valor, o da
relatividade total, da comutação geral, combinatória e da simulação.
Simulação, porque todos os signos se trocam doravante entre si, sem se
trocarem em absoluto pelo real [...]” (BAUDRILLARD: 1996, p. 20)
Reflete-se sobre a noção de Saussure (s/d) a respeito da economia política do signo, na qual
elabora os valores de equivalência do signo – uma moeda de R$ 1,00 tem um significante e
um significado que dão a sua significação sígnica e um valor que permite sua comutação com
coisas de outra natureza, qual uma maçã – e sua relação com os objetos, as substâncias de
conteúdo, a possibilidade de o signo estar em referência a uma possibilidade do real.
Para Baudrillard (1996), os signos perdem a sua referência com o real, a possibilidade de
comutar salário por trabalho por bens que possuam equivalência pela comutabilidade dos seus
valores, e passam a definir trocas sem fatores de equivalência: os produtos perdem sua
condição de valor, todos são estabelecidos com valor único no sentido do atendimento a um
estado de desejo presenteísta.
O fluxo das linguagens e dos sistemas de trocas perde, neste modo, a sutil solidariedade das
formas de conteúdo e de expressão, ou porque se distanciam, ou porque não se encontram, ou
porque há informações que são passadas dentro das formas.
As formas de expressão e de conteúdo se solidarizam para produzir significação e valor, fator
de equivalência entre objetos heteróclitos, mas é possível que uma forma de expressão seja
constituída por uma relação de expressão e conteúdo, como um mito, formando uma
semiótica conotativa; e é possível que uma forma de conteúdo também seja constituída por
uma relação de expressão e conteúdo, formando uma metasemiótica, ou uma metalinguagem:
157
“Na realidade, como toda articulação é dupla, não há uma articulação de
conteúdo e uma articulação de expressão sem que a articulação de conteúdo
seja dupla por sua própria conta e, ao mesmo tempo, constitua uma
expressão relativa no conteúdo – e sem que a articulação de expressão seja
dupla por sua vez e, ao mesmo tempo, constitua um conteúdo relativo na
expressão. É por isso que entre o conteúdo e a expressão, entre a expressão e
o conteúdo há estados intermediários, níveis, trocas, equilíbrios pelos quais
passa um sistema estratificado.” (DELEUZE e GUATTARI: 2004, p.59)
A estratificação das mensagens forma as tranças semióticas produzindo signos que possuam
mais de uma interpretação, mais de uma função, dentro do seu regime de solidariedade.
Um contêiner – um museu, um shopping – é uma semiótica conotativa, uma trança semiótica,
possivelmente com mais de um estrato significativo dentro do seu sistema de mensagem: uma
arquitetura com tecnologia contemporânea realizada com elementos copiados de arquiteturas
clássicas produzindo uma informação de centro de compras que indica graus de segregação
social e seletividade econômica e que estabelece uma condição de submissão de aspectos de
seu desejo a um estado coletivo de domesticação de corpos e vontades.
Não é possível definir esta configuração como uma regra, a cada mensagem os estratos se
desmontam e se remontam em novos estados de solidariedade, pois se as agulhas de uma
catedral são uma forma de conteúdo – uma visibilidade – diante de seus enunciados de
religião no pensamento de Foucault, as mesmas agulhas serão uma dizibilidade de sua altura,
uma expressão de suas proporções, um conjunto de enunciados da dizibilidade construtiva,
arquitetônica, diante do conteúdo das matérias, das pedras. São as mesmas pedras e as
mesmas figuras, porém com outro rito de solidariedade.
A estratificação da mensagem é a condição de ser possível o conjunto informativo que existe
num contêiner. Mas, não é uma informação livre para ser interpretada, é um condicionamento
dos hábitos, das ações do pensamento, e do anuviamento da experiência.
158
A deriva significante é pertinente ao diagrama, pois as informações organizadas num objeto
arquitetônico estão espalhadas em todo o conjunto. A leitura da perda do valor referencial não
se encontra apenas no ‘templo do consumo’, mas disseminado em todo o conjunto
informativo, político, social, pois que “a relação de poder é o conjunto das relações de força,
que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo
singularidades” (DELEUZE: 1998, p.37), e se um arranjo de forças como um shopping center
ou um condomínio de alto luxo puder determinar ‘forças dominantes’, e se as ruas e
ambientes periféricos da cidades – das bordas urbanas ou nas áreas centrais – puderem
determinar ‘forças dominadas’, o fato é que ambas estarão sujeitas ao mesmo diagrama e
submetidas ao mesmo estado social, submetidos ao mesmo arranjo político, e os contêineres
não poderão ser compreendidos como centros de controle, mas apenas como organizações
espaço-temporais, nos quais se exercem o mesmo tipo de submissão de uma situação social,
sendo, hoje, uma busca sem finalidade da manutenção de uma satisfação no momento
presente, uma ilusão de um paraíso de prazeres.
Os fluxos semióticos seguem as disposições das forças do diagrama social, político,
econômico; estabelecidos dentro dos estratos sociais através de suas formas de expressão, de
suas formas de conteúdo, de seus signos.
Uma deriva significante invade linguagens: os corpos se violentam e se alteram: semióticas
comportamentais são alteradas por semióticas arquitetônicas que são alteradas por semióticas
econômicas; produzindo, na relação dos fluxos há uma deriva de forças que some diante das
mensagens opacas de semióticas ‘míticas’, conotações de uma ideologia que submete – além
de uma sociedade central e disciplinar – corpos e enunciados, arquiteturas e pessoas.
159
Escreve Sola-Morales (2002) sobre o contêiner como shopping-center:
“Se trata de um gasto não desinteressado. É basicamente um dom, um
intercâmbio. Seguindo, assim, a Baudrillard, os objetos que intermedeiam
este ritual de consumo são gratificantes porque estão inseridos em uma
economia de permuta, da gratificação. O sacrifício que significa o trabalho é
oferecido, através da mais abstrata e cada vez mais imaterial das mediações,
do dinheiro, pela troca dos objetos do consumo” (SOLÁ-MORALES: 2002,
p.99)
Um sistema de dons e contradons, que Baudrillard (1996) descreve em “A troca simbólica e a
morte” baseado em Mauss (2007) e seus estudos na Polinésia – “Ensaio sobre a dádiva”, em
Année Sociologique de 1923/24 – sobre um sistema de trocas de presentes, síntese e
representação de sistemas de lutas e de poder.
Um ciclo que detém significações de passado e futuro na representação das trocas, pois que
receber alguém em sua casa significa que já foi recebido antes, e que será recebido depois. As
honras das trocas medem esforços e poder: a dádiva estabelece o alcance da contra-dádiva,
formando um ciclo de presentes representativos dos lugares sociais de anfitriões e hóspedes:
representação de um sistema de forças, um poder que se exerce no ciclo das representações.
“De todos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas
sócias em movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços,
profundo mas isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente
livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações.Elas
assumiram quase sempre a forma do regalo, do presente oferecido
generosamente [...] essas prestações e contraprestações se estabelecem de
uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas
sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou
pública. Propusemos chamar tudo isso o sistema das prestações totais [...]
Mas nessas duas últimas tribos do noroeste americano e em toda essa região,
aparece uma forma típica, por certo mas evoluída e relativamente rara dessas
prestações totais. Propusemos chama-la potlatch [...] Potlatch quer dizer
essencialmente ‘nutrir’[...] (MAUSS. 2007, p. 187-191)
160
Nutrir o sistema é também mantê-lo, fazer permanecer as trocas pelas quais as relações de
forças não são imóveis ou apaziguadas, mas estão em ação dentro de um sistema de produção
das máquinas culturais e localizadas corporalmente na sua distribuição.
Distribui-se a dádiva nas logísticas dos lugares, na concentração de seus favores, na
representação dos símbolos que determinam os lugares de concentração de forças. Nisto se
apóia Solá-Morales (2002) para revelar os contêineres como ‘templos do consumo’,
assumindo o conceito de consumo como árbitro de um novo diagrama.
Os contêineres são semióticas conotativas que concentram um ‘sistema de prestações totais’,
formas de poder que vige em sua intensidade por meio de suas visibilidades arquitetônicas e
dos enunciados de troca, fabricar e comprar são instruções para a roda de um sistema que se
mostra na aparência opaca de arquitetônicas cujas formas se encontram em tramas complexas,
“uma separação física que nega a permeabilidade, a transitividade, a transparência.” (SOLÁMORALES: 2002, p.100)
Como os shoppings são lugares de ofertas de compra, os museus são lugares de oferta de
exposições permanentes ou temporárias, merchandising. Para uma sociedade de excessos, há
uma arquitetura de excessos, neste caso de excesso de artificialidade e perda dos valores de
referência das coisas pela contemplação inexata da vida em comum estimulada por um
enunciado de consumo.
Há uma resposta em Mauss (2007), no começo do “Ensaio sobre a dádiva” lêem-se estrofes
do Havamál, do Eda escandinavo:
161
“Com armas e vestimentas
os amigos devem se obsequiar;
cada um o sabe por si mesmo
Os que as dão mutuamente presentes
são amigos por mais tempo
se as coisas conseguem se encaminhar bem.
Deve-se ser um amigo
para seu amigo
e retribuir presente por presente;
deve-se ter
riso por riso
e fraude por mentira.
Os homens generosos e valorosos
têm a melhor vida;
não sentem temor algum.
Mas um poltrão tem medo de tudo;
O avarento sempre teme os presentes.
Mais vale não rezar (pedir)
Do que sacrificar demais:
Um presente dado espera sempre um presente de volta.
Mais vale não levar oferenda
Do que gastar demais com ela. (Havamál, In: MAUSS: 2007, p.185-187)
Desenvolver os conceitos de Mauss (2007) ao excesso define, em Baudrillard (1996), pensar a
desconfiguração de um sistema de trocas, no qual o ‘sistema de prestações totais’ perde a sua
conexão com o real, com o histórico, com os conteúdos sígnicos; um tempo em que não é
mais possível exercer o poder da contra-dádiva. A dádiva é fornecida constantemente pelo
sistema de produção industrial, matéria formada que constitui objetos em todos os sentidos
nos sistemas de comunicação, nas lojas, nas cidades. Pouco a pouco as multiplicidades dos
conteúdos perdem seu estado de conexão com as multiplicidades de expressão, constituindo
um discurso vazio:
“A homologia introduzida por Saussure entre trabalho e significado, por um
lado, salário e significante, por outro, é uma espécie de matriz donde se pode
irradiar para toda a economia política. Hoje, verifica-se, mas de forma
inversa: desconexão entre os significantes e os significados, desconexão
entre o salário e o trabalho [...] Saussure tinha razão: a economia política é
uma língua, e a mutação que afecta os signos da língua, quando perdem o
seu estatuto referencial, afecta também as categorias da economia política.”
(BAUDRILLARD: 1996, p. 43, 44)
162
Lógica que leva a uma arquitetura de discurso sem referência aos conteúdos de realidade:
contêineres, arquiteturas opacas cenários do exercício da perda referencial de valor histórico,
ou de uma condição de existência, através da conotação da mensagem.
As cidades contemporâneas são também, abordadas por Koolhaas (2006) em texto de 1997,
chamado “A cidade genérica”, no qual começa por uma analogia entre a falta de identidade
das cidades contemporâneas – as megacidades – e a falta de identidade dos aeroportos
contemporâneos: são todos iguais.
Desenvolve o texto pela perda da força dos centros históricos diante do explosivo crescimento
das cidades – está focalizado nas cidades asiáticas, mas as estende internacionalmente – e do
isolamento das construções, edifícios construídos na pós-linguagem de conteúdos perdidos:
“É um lugar de sensações tênues e distendidas, de contadíssimas emoções, discreto e
misterioso como um grande espaço iluminado por uma lamparina à noite.” (KOOLHAAS:
2006, p. 15)
Os conteúdos materiais e as formas do pensamento – formas de conteúdo - são desconectados,
em sua solidariedade, de uma proposição enunciável. Toda arquitetura é conotativa, mas nem
toda conotação está apresentada claramente nas tranças semióticas.
Os conteúdos históricos, que organizam formas do pensamento, estão fundados em fatos que
suscitam solidariedade, na condição social em que se apresentam, das dizibilidades das
formas de expressão. A trança conotativa que se apresenta no cemitério de San Cataldo se
esgarça na cidade contemporânea: a cidade busca apenas uma dizibilidade, um discurso em si:
163
“A cidade genérica sempre está fundada por gente que vai de um lado a
outro, está colocada para seguir adiante. Isto explica a insubstancialidade de
seus fundamentos [...] A escritura da cidade pode resultar indecifrável e
defeituosa, mas isso não significa que não haja escritura; pode ser que nós
tenhamos criado um novo analfabetismo, uma nova cegueira. (KOOLHAAS:
2006, p. 22 e 27)
A clareza da mensagem de San Cataldo não elimina o fato de haver mais de uma forma que o
constitua como arquitetura, assim como a cidade pensada por Rossi (1998), não elimina o
entendimento que os fluxos semióticos se organizem nas áreas urbanas, ou que fortes
alterações sociais evidenciem mutações diagramáticas no conjunto de suas forças, no arranjo
das formas de seus corpos e na funcionalização de seus enunciados de observação dos tempos,
das formas, da história.
Na trança das semióticas do pensamento pós-moderno, uma informação é passada na deriva
dos significantes, na reelaboração das formas de conteúdo e de expressão. As solidariedades
formais se combinam a cada possibilidade, pois a forma arquitetônica é uma forma que torna
o conteúdo dos corpos visíveis, mas é uma dizibilidade de sua própria linguagem, de sua
geometria, de sua espacialização. Será lugar enquanto possibilidade de ser exprimível.
No arranjo dos mistérios das sombras de San Cataldo e na positividade dos módulos e da luz,
uma informação é passada que remete o cemitério a seus conteúdos históricos. A geometria
por um lado, e os mistérios de vida e morte por outro, mostram, na poética de San Cataldo um
tema das derivas de expressão, dos fluxos significantes, pois que sua geometria se apóia em
outras, a ela ulteriores, pois que suas sombras se ligam a mistérios da religião também
existentes em outras formas de espacialização, destas outras espacializações.
164
Uma palavra-tema, uma expressão-tema, que remete o fluxo semiótico a suas expressões
ulteriores, um hipograma, como na leitura do texto “As palavras sob as palavras – os
anagramas de Ferdinand de Saussure” feita por Baudrillard (1996).
As formas de expressão e de conteúdo se relacionam por solidariedade para produzir uma
significação que, por ela, permutam valor entre signos de diferentes modalidades associados a
um código comum que defina seu equilíbrio, mesmo na sua dessemelhança. Na comutação
sígnica ou na permuta de valores, entremeia-se o hipograma, a palavra que está sob as
palavras, o exprimível sob o exprimível. Assim o valor de uma residência estabelece
equivalências sígnicas como lar, como valor econômico, cultural, técnico, arquitetônico.
A cada um destes valores se associará uma semiótica repleta de seres geométricos,
comportamentais. As tipologias não são formas sintéticas, mas possibilidades de associações
e equivalências sígnicas que permutam suas significações finais, seus valores.
As arquiteturas que buscaram a história e a tradição, como as dos movimentos pós-modernos
na Itália e nos Estados Unidos, são exemplares nestes modos de comutação e permuta, da
passagem fluídica de tipologias históricas em arquiteturas novas para sociedades outras.
A permuta significante depende que as relações de solidariedade formais indiquem valores
que aproximem dessemelhantes: a lei econômica do valor. Diante do esgarçamento destas
relações, dois conceitos que se desmancham na trama da hipermodernidade pela desconexão
das formas: os anagramas da sociedade disciplinar e o potlatch moderno.
165
CAPÍTULO 5. TÉCNICA
“É o rosto que dá a substância, é ele que faz interpretar, e que muda, que
muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua
substância. Veja, ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado. A
rostidade reina materialmente sobre todo este conjunto de significâncias e de
interpretações [...] A máscara não esconde o rosto, ela o é. O sacerdote
manipula o rosto de deus.” (DELEUZE e GUATTARI: 2004, p.66)
“É dentro deste espírito que abordamos qualquer problema de lenda, porque
cada um dos personagens é um símbolo do qual se pode variar [...] Se um
nome é transposto, pode ocorrer que uma parte dos atos seja transposta, e
reciprocamente ou que todo o drama mude por acidente.” (SAUSSURE:
1978, p.5)
“O poeta deve, então, nesta primeira operação colocar diante de si, tendo em
vista seus versos, o maior número de fragmentos fônicos que ele pode tirar
do tema [...] Deve, então, compor seu trecho introduzindo em seus versos o
maior número possível de fragmentos fônicos”. (SAUSSURE: 1978, p.9).
“Quando o tomarmos mesmo no sentido mais difundido, ainda que mais
especial, de sublinhar por meio da pintura os traços do rosto [...] pois trata-se
ainda no ‘hipograma’ de sublinhar um nome, uma palavra, esforçando-se por
repetir-lhe as sílabas, e dando-lhe assim, uma segunda maneira de ser,
fictícia, acrescentada, por assim dizer, à forma original da palavra.”
(SAUSSURE: 1978, p.14)
“Platão explica-se com mais precisão. Para cada objeto existem três espécies
de arte: de sua utilização, de sua fabricação, de sua imitação. Pertencem ao
usuário, ao artesão, ao pintor. O pintor, como todos os outros imitadores, não
sabe nada do objeto, salvo sua aparência exterior, da qual se servirá por
‘artifícios’ para dar ilusão da realidade. O artesão fabrica efetivamente o
objeto, mas sem conhecer perfeitamente, como artesão, seu eidos, isto é, seu
fim. Só o usuário possui esta competência.” (VERNANT: 2008, p. 347)
O ser humano e o espaço arquitetônico se mesclam e se representam em sistemas estéticos
que definem as relações entre: fenômeno e substância, aparência e essência, corpo e alma,
Homem e arquitetura.
A arquitetura clássica grega , com seu sistema de proporções, ordens e correções, expõe uma
condição estética que remete a um valor do visível e do invisível, do aparente e do essencial;
166
deixando expressa nos números que definem as ordens, a visão de uma relação entre o Belo e
o Bem, e uma relação entre Razão e Natureza.
O Homem, representado na racionalidade do módulo e de suas proporções, está em simetria
com a caixa simples que dramatiza com o ambiente natural. O natural e o ideal não são apenas
regras estéticas, mas são também esferas da educação grega que definem o comportamento do
homem grego clássico. Encontra-se uma forma de psicologia nesta esfera trágica que define a
estranha unidade desta época, integrando mito, filosofia, trabalho e separa a técnica do objeto
em função da diferença do valor final, sendo a diferença entre o modo pelo qual se faz o
objeto e o objeto como resultante de expressão, portanto, a exprimibilidade do objeto, ou seja,
sua possibilidade de ser expresso, pertence a uma conjuntura das linguagens, das tranças
formais e das relações de solidariedade.
A poética de um espaço arquitetônico se realiza na tensão entre as formas solidárias como,
por exemplo, o contato da luz com as superfícies, das ideologias com as geometrias, ou das
visibilidades com os enunciados. Desta maneira, a arquitetura deve ser lida na conjuntura das
linguagens: o ‘rosto’ da arquitetura se dobra nas viradas conjunturais: assim, a pedra talhada
será expressão ou conteúdo conforme o campo de leitura no qual será inserida.
Será visibilidade no campo das histórias, será expressão na violação dos corpos. Na
experiência da violação do corpo humano no da arquitetura e o seu reverso, a arquitetura
revela a sua finalidade como objeto, uma finalidade condicionada e incorporada ao objeto, por
meio da técnica.
167
Se a poética se implica na tensão das formas, a técnica é o conjunto dos modos de fabricação,
que engloba desde os métodos matemáticos de Alexander até os diagramas de Eisenman.
A técnica é a ação de uma máquina humana que se alicerça nas ações diagramáticas e define
modos de produção sobre as matérias e os corpos. Surge como modos dos enunciados de uma
situação no tempo, numa época, num estrato histórico, ou no arranjo de estratos de
enunciação.
Em duas destas condições, há uma reciprocidade: o arranjo de enunciados. Uma técnica, ou
seja, um modo de procedimento, permite a aproximação e a relação de coisas singulares: a
condição da matéria do concreto e do aço; a condição dos pensamentos-sentimentos de
política e sociedade.
Deleuze (1998), em ‘Foucault’, define um enunciado como: “a curva que une os pontos
singulares” e desta curva resulta um modo de fabricar o arranjo de coisas singulares. Uma
técnica está sempre imersa nas condições de seu tempo, estabelece contatos e trocas entre os
indivíduos de uma sociedade, incorpora valores nos objetos-produtos e expande as condições
do diagrama de forças nos fazeres sociais: o ‘canteiro e o desenho’, a arquitetura e as
engenharias: estratos sociais se conectam por ligações transversais.
Há um uso da técnica no método, e um uso do produto na experiência, por esta razão, a fala é
técnica e produto ao mesmo tempo, e a arquitetura-processo proposta por Eisenman a procura
como um objeto-experiência, um produto que estende a duração da experiência na
possibilidade de ser reincorporado por novos enunciados, quais sejam: um novo tempo, uma
nova pessoa, uma outra maneira de ser expresso.
168
As curvas-enunciados de Deleuze-Foucault (1998) são as duas formas em solidariedade,
assim como a dizibilidade de ‘La Villette’ abre um campo da forma de expressão à espera de
um conteúdo, ou de um novo evento.
Encontra-se eco destas proposições em duas anotações de Tschumi (2001) sobre as relações
entre as seqüências espaciais (como os aposentos dentro de uma residência) e as de eventos
(como o conjunto de atividades organizadas no espaço):
“Indiferença: seqüências de eventos e seqüências de espaços podem ser
muito independentes um do outro [...] Reciprocidade: seqüências de espaços
e seqüências de eventos podem tornar-se totalmente uma ampla condição da
existencia de um para o outro – dizer ‘máquina de habitar’, cozinhas ideais
da Werkbund, são recipientes de espaço-tempo onde cada ação, cada
movimento é desenhado, programado.” (TSCHUMI: 2001, p. 160)
O projeto de ‘La Villette” traduz as mesmas relações entre as sequências diagramáticas, mas
pela indiferença, pelo desmonte de um programa pré-determinado que evidencia a
participação de um sujeito leitor.
Pelos atributos da técnica, condição do fazer, é que se instalam as relações de força de um
tempo, ou das palavras sob as palavras - nos fraseamentos omitidos - ou das semióticas
conotativas, porquê o “poeta deve [...] colocar diante de si [...] o maior números de
fragmentos” (SAUSSURE. 1978, p. 9) para sublinhar os traços do rosto e a exprimibilidade
do poema-objeto, produzindo, assim, a máscara ‘aparente’ que enreda as sequências de
significações – o conjunto de eventos que acontecem no espaço – por meio de sua rostidade e
da marcação dos traços que indiciam realidades e fantasmas. Desta maneira, delineia-se uma
técnica que produz o rosto-máscara e estabelece sequências tendo o programa como base para
a animação de um produto técnico.
169
A técnica que agencia os fragmentos significantes, ou seja, os elementos que constituem a
realidade do espaço, recebe do programa a força dramática que envolve o objeto na sua
potencialidade poética e permite ao sujeito-leitor a experimentação desta espacialidade na
suas diversas dimensões.
Na experiência do espaço se mostra a máscara-traço e se evidenciam os anagramas poéticos,
os desmontes e as inversões dos sistemas técnicos; como, por exemplo, a desmontagem dos
conceitos de Lynch - propostos e alterados em “La Villette”- , a ideologia socialista na cidade
corbusiana, ou mesmo os arquétipos culturais em “San Cataldo”.
O arquiteto poeta fabrica a máscara da sua arquitetura como “o sacerdote manipula o rosto de
deus” (DELEUZE E GUATTARI. 2004, p.66).
Os modos de produção técnica inserem nas articulações das formas, por meio hábito e da
memória, as possibilidades significantes de cada corpo na sua ‘curva de singularidades’.
O programa está para a poética assim como o método está para a técnica. Pois a poética se
dirige aos aspectos íntimos do leitor e fantasmáticos dos lugares assim como a técnica se
dirige aos ambientes produtivos externos e às relações entre grupos e pessoas:
“O interior é também o imaginário, o sonho, a fantasia, a interpretação, ao
passo que o exterior é o cálculo frio da matéria programada, as deduções
sem surpresa. É desse modo que encaramos, na maior parte do tempo, os
campos respectivos das máquinas e de nossa sensibilidade de todo humana.”
(CAUQUELIN: 2008, p.191)
Os ambientes técnicos envolvem a quem produz, o que se produz e para quem se produz, e
desta articulação deriva a sua força cultural e relacional entre seres de todo tipo, desta
170
maneira, a perda dos valores referenciais de produção é também a perda dos valores
referenciais dos lugares sociais dos seres sociais.
As arquiteturas conceitos – ligadas ao desenvolvimento das artes conceituais e da filosofia da
desconstrução – não se evadem deste atributo, já que na organização construtiva da matéria
uma informação se revela. Se no campo das visibilidades uma arquitetura conceito não define
claramente seus conteúdos – deixa-os para a historicidade de quem a vê -, invoca a
exprimibilidade da produção do objeto, uma intensidade tecnológica e uma origem na história
de seu tempo, se não na sua geografia.
Uma arquitetura conceito talvez deseje o máximo da neutralidade técnica buscada pelos
modernos, pois se encontra suspensa no mundo virtual da imaginação, embora carregue a
presença das matérias formadas, a sofisticação das tecnologias empregadas e a instigação das
sequências multiplicadas no espaço. O resultado poético da arquitetura-conceito não esconde
a sua técnica, mas a deixa escondida na estupefação das imagens – uma arquitetura de
aparências -, mas sendo, ainda, o resultado da relação entre as formas, entre as matérias e as
funções.
Diagramar a produção da arquitetura é definir um modo processual que resulta na finalidade
do objeto construído, como é possível verificar nas casas de Corbusier, ou nas casas de
Eisenman. Estas casas têm definidas em si as relações das forças de um tempo, os sistemas
técnicos que o permeiam, o desenvolvimento do pensamento sobre as matérias.
O diagrama como técnica é desenvolvido por Eisenman (2001) no livro “Diagram Diaries”,
em texto de aproximação com os conceitos de Derrida (2009), encontrados no livro
171
“L’écriture et la différence” de 1967 ( www.jacquesderrida.com.ar). Eisenman (2001) escreve
o texto “Diagrama: uma cena original da escrita”, enquanto Derrida (2009) escreve o texto “A
cena da escrita”.
De acordo com Eisenman (2001, p.27), o diagrama é “uma estenografia gráfica [...]
historicamente conhecido de dois modos: como um artifício explanatório ou analítico e como
um artifício generativo”. O diagrama é, portanto, um conjunto de traços que imediatizam as
funções do projeto, constitui-se de traços que representam conjuntos de ações distintas que se
fazem sentir sem estarem presentes, como um ‘aparelho’ de tijolo – e toda a técnica
construtiva que o envolve – é representado por uma linha, um traço.
Portanto, o diagrama é algo entre a representação do concreto e sua abstração, é a
acomodação das forças pensamentais que organizam os conteúdos e das representações que
dão finalidade ao objeto. Um cubo em arestas é um diagrama, assim como as tripartições dos
volumes nas arquiteturas de Palladio também o são.
Como os tempos alteram seus diagramas de força, a alteração de diagramas no tempo
mostram novos estados funcionais, por meio de uma sobreposição de mapas: mapa das
densidades materiais, mapa das intensidades espaciais, mapa dos fluxos de circulação e
significado, mapa das interioridades e das intenções depositadas no diagrama, ou nos
diagramas: “Neste contexto , outra idéia de diagrama pode ser proposta, a qual inicia das
idéias de escrita, de Jacques Derrida, de escrita como uma abertura de pura presença”
(EISENMAN. 2001, p. 31).
172
Eisenman (2001) associa o diagrama a uma escrita na qual os traços inscritos revelam a
conjugação de fatores internos, como os psíquicos, e externos, como os estímulos do mundo
admitidos pela sensorialidade e, da mesma forma, Derrida (2009) em “La scéne de l’écriture”,
admite a analogia do diagrama com o “bloco mágico” estudado por Sigmundo Freud em
1925, no texto “Uma nota sobre o bloco mágico” (wunderblock). Neste texto, a escrita se
revela como traços de impermanência.
O bloco mágico é um brinquedo construído com uma placa de cêra e sobre ela, duas folhas,
uma de cêra e, acima desta, uma de celulóide, de plástico. Ao inscrever traços quaisquer sobre
a folha de celulóide estes ficam marcados como num papel. Ao puxar a folha de cima, a
escrita se desfaz. É um brinquedo no qual:
“Se, após termos escrito algo, destacarmos cuidadosamente a folha de
celulóide da folha de papel de cera, veremos que a escrita aparece com igual
nitidez tanto na folha de celulóide como na folha de cera. Porque então a
necessidade da folha de celulóide sobre a de cera?[...] É como se a folha de
celulóide fosse um invólucro protetor que preserva o papel de cera de
influências danosas de fora. O celulóide seria um ‘escudo protetor contra os
estímulos externos’ e a camada que de fato estaria recepcionando e
abrigando os estímulos seria o papel de cera.” (FREUD: 2007, p.139)
Os traços sobre o celulóide são uma aparência das inscrições, uma escrita que se institui em
camadas diferentes (no aparato psicológico e no método diagramático) e em tempos
diferentes.
A analogia freudiana do bloco mágico com o aparelho psicológico quer indicar que uma
camada de proteção (celulóide) tem uma função de impedir que os estímulos externos sejam
insuportáveis ao sujeito, ao mesmo tempo em que mostra a existência de uma camada na qual
todas as impressões ficam registradas (representada no bloco mágico pela última placa de
cera), ou seja, o inconsciente. Estas impressões guardadas no inconsciente podem ser
recuperadas por algum estímulo, mas normalmente estão imersas num amálgama de dados,
173
sem relação de tempo, sem estrutura de significado. A camada do meio ( folha de papel de
cera relacionada ao sub-consciente) recebe e distribui as inscrições, é o lugar da escrita, uma
“topografia de traços:
“O conteúdo psíquico será representado por um texto de essencia
irredutivelmente gráfica. A estrutura do aparato psíquico será representada
por uma máquina de escrever.. qual aparato tem que ser criado para
representar a escritura psíquica, e o que significa, quanto ao aparato e quanto
ao psiquismo , a imitação projetada e liberada em uma máquina, de uma
coisa tal como a escritura psíquica... Pois se não há nem máquina nem texto
sem origem psíquica, não há, tampouco, algo psíquico sem texto.”
(DERRIDA: 2009, p.297)
O bloco mágico é uma máquina de escritura que representa os processos psíquicos de
formação dos sentidos, da presença da memória alçada do amálgama de dados, da presença
momentânea da escrita, da ausência nos seus momentos de mutação. O bloco mágico/aparato
psíquico, é como uma máquina cujo sentido se configura na fala, na escrita, na conversão dos
elementos recônditos e informados da memória e das possibilidades de serem ditas.
Para Derrida(2009), não há consciência sem fala, não há reconhecimento de fatos e coisas
sem a exprimibilidade das palavras, e as palavras são nada sem as referências de conteúdo
psíquico.
A forma de expressão converge na produção do sentido dos conteúdos de uma memória que
se configura sempre no momento presente, na ação da fala, na continuidade dos hábitos, na
técnicas de fazer e dizer.
“O diagrama age como uma superfície que recebe inscrições da memória do
que ainda não existe, isto é, de um potencial objeto arquitetônico. Isto
fornece traços de função, fechamento, significado, e lugar de condições
específicas.” (EISENMAN: 2001, p. 32)
174
O diagrama/bloco mágico, pode ser compreendido como a inscrição de um objeto em
potencial que reúne condições das mais diversas sem que estas sejam apriori, compreendendo
que a condição psíquica não se representa no objeto, apenas condiciona as ações do diagrama
junto a outras forças que se representam no traço escrita do objeto.
Algumas destas questões envolvem as dimensões particulares do projetista e as peculiaridades
técnicas do método. Envolvem, também, a relação entre psicologia e arquitetura como campos
de ação técnica – estratos técnicos – abordando a presença do arquiteto autor e o
distanciamento de sua representação no resultado de um projeto.
Ressalta-se que psicologia e arquitetura não devem ser confundidos como conhecimentos
complementares, pois são campos distintos e com possibilidades de inter-relação em níveis
diversos , com graduações diferentes.
Cada um destes campos possui suas próprias peculiaridades. Devem ser compreendidos como
construtos humanos que expõe uma expressão social , uma produção coletiva e uma
abordagem individual, como formas de entender a presença do ser humano enquanto ser
consciente, ou responsável, pela natureza da sua ação no mundo.
A arquitetura se estabelece no estreito limite entre o permanente e o contingente, na forma de
concebê-la como campos de possibilidades que se solidarizam por aspectos contingentes, de
uma historicidade moldada pelas dimensões próprias do fato, sem precisar estabelecer
analogias de ordem estrutural e ordenadoras. Ao mesmo tempo em que define uma
compreensão das relações de ação individuais, no que tange à decisão particular de aspectos
175
metodológicos, e à decisão das relações coletivas, no que se entende a natureza dos ambientes
construídos, edifícios e cidade.
O contato entre psicologia e arquitetura se verifica a partir do momento em que a psicologia
estruturou a consciência como um processo pensamental, respaldada na centralidade do
indivíduo como agente, tanto pela compreensão pelas teorias do inconsciente, quanto pela
compreensão das teorias do comportamento. Tais teorias influenciaram sistemas estéticos e
metodologias de projeto, pois ajudam a estabelecer processos de reconhecimento do valor da
arquitetura como arte ou como ciência.
A dimensão estética de um espaço arquitetônico poderia estar relacionada a uma força
psicológica transferida do autor para o espaço ou poderia estar relacionada a um controle dos
processos pensamentais de decisão arquitetônica.
As teorias do comportamento concentram a formação espacial tendo como base a ação
humana, a estrutura social e os rituais enquanto as teorias do inconsciente se concentram na
elaboração da arte como símbolo decorrente de uma sublimação, fixando a idéia de espaço
como esse fator simbólico.
A estética fenomenológica estabeleceu um paralelismo com esta noção ao compreender o
processo simpático do objeto a partir de sua fabricação por um autor, individual ou coletivo.
Ao reconhecer a validade da sublimação como base para a estrutura simbólica da obra de arte
reconheceu, também, esta mesma obra como um objeto autônomo, interrompendo a
possibilidade de uma leitura linear e causal entre a obra e seu autor.
176
No livro A Poética do Espaço, a obra de arte possui uma dimensão própria, é um estado de
‘sublimação pura’ , não possui uma relação necessária com a estrutura psíquica do artista
como escreveu Bachelard (s/d):
“Talvez a situação fenomenológica venha a ser precisada, no que se refere às
indagações psicanalíticas, se pudermos isolar, a propósito das imagens
poéticas, uma esfera de sublimação pura, de uma sublimação que não
sublima nada, que é desprovida da carga das paixões, liberada do ímpeto dos
desejos” (p. 13)
A obra de arte, e consequentemente o espaço construído, admite uma realidade própria que se
expõe na sua natureza formal. A força e constituição das formas de linguagem permitem a
reconstrução de um universo próprio para a obra de arte que “desliga-a” da motivação
proposta pelo autor. Como expõe Bachelard (s/d):
“A sublimação pura tal qual a encaramos a um drama metodológico, porque
o fenomenólogo não poderia desconhecer a realidade psicológica profunda
dos processos de sublimação tão longamente estudados pela psicanálise. Mas
trata-se de passar, fenomenologicamente, a imagens não-vividas, a imagens
que a vida não prepara e o poeta cria. Trata-se de viver o invivido e de abrirse a uma abertura de linguagem.” (p. 14)
A presença simpática da obra pela poética da obra é a base da relação de identidade
pretendida pelo historicismo italiano. A cidade é uma obra de arte porque tem uma relação de
identidade com a população que a constrói, que define a sua poética a partir de uma realidade
complexa e dialética.
Os escritos de Argan e Rossi dirigem o sentido da Arquitetura para esta relação existencial da
cidade e de seus edifícios. A dimensão psicológica – lugares, imagens e compreensões – da
cidade é proposta pela própria cidade como expressão autônoma, não permite, portanto, a
leitura da dimensão psicológica de quem a produz.
177
A relação entre as imagens ideal e real da cidade inferem uma condição pensamental do leitor
urbano propondo a cidade não apenas como percepto, mas principalmente como concepto. A
razão é a medida da produção desta leitura que se nutre da memória coletiva e, justamente
pela força da imagem urbana como ação coletivizada, distancia a imagem urbana de uma
produção psicológica e a aproxima de uma obra de arte coletiva que transforma a história em
desenvolvimento mítico.
A abordagem mítica da história a qualifica como uma conotação dentro do sistemamensagem; a obra arquitetônica carrega algo mais que a imagem ingênua de uma tipologia
conhecida, mas carrega, também, os valores sociais de um grupo que as construiu, uma
ideologia de sociedade e de poder.
Estudos sobre análise do espaço e metodologia de projeto, como os desenvolvidos por
Ekambi-Schmidt, em “La percepción del hábitat” (1974) e por Edward Hall, em “A dimensão
Oculta” (1977), inferem as questões do comportamento e desdobram os efeitos desta teoria
psicológica. O comportamento não se constitui no projeto a partir de leitura ou análise do
usuário, mas como uma informação dentro de um sistema de linguagem.
Na análise proxêmica do espaço, Edward T. Hall (1977) propõe que se faça um estudo das
formas de espacialização como linguagem, com base no fato que o ser humano tem uma
forma de ocupação territorial conforme seus dados sociais, sua cultura. Fiel à visão
comportamental, Hall (1977) compreende o espaço construído a partir de suas esferas sociais.
O equivalente ao inconsciente – o fundo de cera no qual todas as impressões são guardadas no
bloco mágico – é dado por um nível infracultural, que estabelece as formações territoriais
como formações de base comportamental primitiva.
178
A produção das formas de espacialização, desde estruturas simples de reação (espaços
pessoais) até estruturas complexas envolvendo níveis de simbolização do espaço como as
arquiteturas, realiza numa única ação momentânea a junção entre uma esfera primordial –
como o território – e uma esfera cultural – como espaços sociais coletivos – que determinam
a complexidade das ações espaciais humanas e suas possibilidades de leitura.
Os modelos antropológicos do espaço arquitetônico, como os de Hall (1977) e EkambySchmidt (1974), associam os estados psicológicos, pessoais e coletivos, à produção das
arquiteturas.
Neste sentido, os diagramas de Eisenman (2001) também supõem que a ação do projeto de
arquitetura recebe informações pessoais do projetista como, por exemplo, suas convicções ou
estados emocionais, no entanto, o uso de uma técnica projetual evidencia o descolamento do
resultado projetual em relação aos estados psíquicos.
Sua observação mais pertinente se configura na multiplicidade dos fatores que estabelecem a
complexidade do espaço arquitetônico e nas relações entre os campos de saber e ciência, que
se justapõem, gerando a trama de formas das arquiteturas em ritos de solidariedade.
Junto aos estudos referidos acima, a Psicologia Topológica de Kurt Lewin, exposta no livro
“Princípios de Psicologia Topológica” (s/d), está estruturada a partir de princípios gestálticos
de tal forma que os processos psíquicos sejam relacionados; evidenciando aspectos
conjunturais e uma estrutura de ação, tendo por base a questão comportamental como meio de
acesso aos sistemas psíquicos e como meio relacional com o ambiente. Lewin define o
179
comportamento humano dentro de uma estrutura situacional que o envolve e oferece
tendências de ação. Lewin, assim, define o comportamento:
“Essa relação pode ficar mais clara mediante a seguinte formulação: Se
representarmos o comportamento ou qualquer espécie de evento mental por
C e a situação total, incluindo a pessoa, por S, então C pode ser tratado como
uma função de S: C= f ( S ). Nesta equação a função f, ou melhor, a sua
forma geral, representa aquilo a que vulgarmente se chama uma lei. Se
substituirmos as variáveis dessa fórmula pelas constantes que são
características no caso individual, obteremos uma aplicação à situação
concreta.” (p. 27)
O desenvolvimento destas funções permite elaborar o comportamento e sua consequente
geração espacial como uma série de conjuntos relacionados a partir de uma ação ou momento.
A expressão diagramática destes conjuntos visualiza tanto o comportamento individual quanto
o em grupo e sua geração espacial levando em conta as forças momentâneas de ambiente ou
as forças condicionais da história do indivíduo ou do grupo que, mesmo estruturadas numa
única relação, não estabelecem uma síntese necessária, apenas uma leitura de conjunto.
A utilização desta teoria permite acompanhar as formas de produção do espaço e sua
complexidade através de uma abordagem que gerencia tanto informações provindas da
psicologia, entendendo o comportamento como resultado de uma ação mental, assim como da
arquitetura e qualificações espaciais como privado ou público e suas derivações, ou, se
necessário, a integração com abordagens como as de Hall (1977) e Ekambi-Schmidt (1974).
Independente das formas e bases teóricas, o edifício e a cidade definem as suas relações
através de sistemas de sinais, ou linguagens, que podem ou não estar sintetizadas, seja por
motivo de suas características próprias , seja por motivo de viés metodológico.
180
Assim, é possível estabelecer uma relação do edifício com a cidade pela estrutura do arranjo
volumétrico no qual este edifício se insere. A dimensão psicológica da forma edifício-cidade
pode ser constatada na estruturação de um ambiente e a estimulação sensorial que oferece na
sua construção como ambiente, a qual não deve espelhar a condição do aparato psíquico de
quem o projetou.
A condição psicológica nos sistemas de decisão de projeto pertence ao arquiteto ou à equipe
que desenha um projeto de Arquitetura, aborda o projeto pela metodologia de projeto e não é
inferencial no projeto como objeto não representacional, e no edifício como ambiente
construído.
Três proposituras se estabelecem a partir disto:
A primeira é que o projeto é um conjunto de ações descontínuas que possuem decisões de
projeto próprias de sua dimensão, ao contrário da visão usual de partido, estudo preliminar e
anteprojeto, que tomam o projeto como um sistema linear de decisão.
A postura inicial de desenvolvimento linear do projeto se configura no encontro de uma idéia
que deve estar subentendida em todas as expressões do projeto e consequentemente do
ambiente construído. Está fundamentada numa estética que valora a idéia como organizadora
da ação projetual e organizadora das ações de projeto, as condições de ambiente, história ou
sociedade devem estar sintetizadas nesta idéia ou conceito.
As fases de produção do ambiente são compreendidas não como uma idéia de que se
desenvolve e valora o ambiente, mas como um conjunto de agenciamentos internos e externos
181
ao autor, ao objeto projetado e à própria arquitetura que trabalham por justaposição no
processo do objeto.
Um projeto pode ser determinado pelo conjunto de decisões de vários grupos envolvidos e
interessados no ambiente a ser construído de tal forma que suas decisões sejam tão
definidoras do espaço como o desenho em Arquitetura, já que as próprias formas de design
do objeto não estão centradas no domínio técnico da representação, mas na possibilidade de
gerenciar as formas como resultado e busca de uma condição de vida.
Ao mesmo tempo, o ambiente construído pode ser o resultado de várias interferências
disciplinares, interesses sociais, ecológicos, arquitetônicos, políticos. Estas interferências
podem também determinar as ações de design do objeto.
Não há como, nem porque sintetizar todas estas interferências e interesses numa idéia
organizadora de um pretenso valor ideal do objeto, mas o projeto de arquitetura deve estar o
suficientemente livre da necessidade da síntese para absorver, da melhor forma possível as
forças de todos estes conjuntos de ação sobre o projeto.
A segunda é que o ambiente construído possui uma condição de realidade que se demonstra
na sua materialidade determinando um objeto como mensagem não representacional , ou seja,
a arquitetura representa a si mesma e a seu próprio sistema de agenciamentos: o volume
inserido na paisagem, suas condições infra-estruturais e atividades de uso.
A possibilidade perceptiva que se estabelece pela realidade do objeto infere uma condicional
psicológica exatamente como ambiente construído pela sua força de expressão e inserção na
182
cidade, seja como marco visual ou como ambiente de bem-estar. O objeto arquitetônico
estabelece-se como condicional momentânea influente na sua relação com seu leitor.
Assim, como proposto por Lewin, as forças determinantes do ambiente serão base de uma
consolidação do comportamento junto às forças determinantes da condicional histórica do
indivíduo. O ambiente fica compreendido como um conjunto de forças não sintéticas que
permitem uma valoração para o sujeito leitor do espaço pela interação com seus próprios
valores. A qualidade própria da arquitetura como ambiente dialoga com a determinante
histórica do leitor pela possibilidade de sua percepção como materialidade.
A terceira é que a arquitetura passa a ser vista como um conjunto de campos técnicos, como
os acima relatados, com suas devidas profundidades, com sentidos e dimensões diferentes. O
entendimento da arquitetura como um conjunto de campos técnicos permite uma ação
descontínua tanto para o desenvolvimento do projeto arquitetônico, quanto para a legibilidade
do espaço arquitetônico enquanto elemento de percepção do sujeito-leitor.
Desta forma, um campo poderá ser compreendido como o binômio edifício-cidade ou
edifício-sociedade, de tal maneira que seja possível estudar as variantes da utilização de um
espaço público sem necessitar definir decisões particulares ao objeto. Legislação como modos
de ocupação ou qualidades espaciais como ambiência poderão ser discutidos dentro de um
âmbito próprio para a conjuntura de um determinado projeto.
Os campos são compostos por elementos inteiros que interagem entre si. Se considerarmos a
cidade como agente dentro de um campo decisório teremos uma estrutura definida para este
agente. Dentro do mesmo campo, teremos o objeto com seus aspectos de formação,
183
atividades, volume. O desenvolvimento atual do projeto propõe o objeto como resposta
sintética da relação objeto-cidade. O desenvolvimento proposto permite o estudo do objeto em
si, e sua inserção urbana como um diálogo com a cidade, o projeto, assim, não é uma resposta
sintética, mas uma trama de justaposições na tecitura da escritura urbana.
Campos críticos permitem desenvolver fluxos sincrônicos que juntem problemas sociais a
técnicas construtivas –como o atendimento ao desenvolvimento técnico de uma região ou a
construção como indução econômica – e inserí-los, com suas profundidades críticas
particulares, na sequência de um projeto que tenha este problema como conjuntura. A
profundidade destes campos pode ser determinada pela integridade de cada elemento
constitutivo e pela consequente, sua resultante complexidade.
A inserção de aspectos psicológicos como agenciadores da produção e leitura do espaço estão
presentes no mesmo grau de aproximação e abordagem que se fará do sujeito autor ou leitor
do ambiente, dentro das especificidades de cada projeto.
A contextualização , a partir desta metodologia, se verifica nas formas de uso da condicional
histórica instalada nas instâncias psicológicas relativas ao projeto. Desta forma, a história
pessoal e coletiva podem estar distribuídas no desenvolvimento do projeto.
Relações de história, como a proposta pelo historicismo italiano ou as atuais relações de
mercado nos modos de globalização, podem passar por processos críticos nas fases de
produção do projeto. A abertura conceitual dos modos de produção permitem inserir noções
de identidade e mercado, tomando-as como elementos constitutivos do projeto.
184
A crítica distribuída nos diversos campos projetuais permite conceber edifícios com acentuada
característica histórica, pelo uso de arquétipos tipológicos, sem precisar reforçar ideologias
moldadas pela acentuação histórica na produção do espaço.
Da mesma forma, uma ideologia acrítica de mercado pode ser minimizada pela participação
social nos modos de agenciamento de projetos que sejam de natureza pública como escolas ou
edifícios públicos.
O projeto como sistema de campos interagentes define uma abordagem metodológica na qual
as partes do projeto não possuem um conteúdo apriori. É possível aproximar estas condições
do desenvolvimento do projeto às condições do rito semiótico justamente pela ausência de um
significado, e também pela presença de um sistema semiótico, um sistema que proporciona as
passagens da construção dos significados, da seguinte maneira:
Primeiro: o esboço como elaboração do sentido dos espaços e das formas está concebido na
sua ação de fazer, na sua fabricação. Para a fabricação desta etapa do projeto, diversos modos
de conhecimento são agregados para a sua consecução. Este esboço, como produto de uma
etapa, guarda um histórico e um significado que se compreende no seu resultado, na extensão
de sua duração e na força do hábito projetual.
Segundo: na passagem desta etapa para a seguinte se encontra uma desvinculação da
continuidade dos sentidos dos produtos e das expressões, pois um novo foco projetivo é
necessário para o desenvolvimento do projeto enquanto processo. Ao contrário do
entendimento de que as etapas são evolutivas, ou mesmo qual parte de uma continua na outra,
185
o que se propõe é que a alteração de foco seja a alteração do processo histórico do projeto, um
processo de maneira que o próprio processo seja formado por etapas discretas.
Esta discreção indica que, de uma etapa para a outra, o que irá se integrar é a representação da
anterior, uma metáfora do produto alcançado, rapidamente reconfigurado num estágio
diferente da fabricação do projeto.
Desta maneira, novos sistemas técnicos interagem, recondicionando as características das
etapas, permitindo que o resultado da etapa passada não fique diretamente relacionado com a
etapa atual, mas se relacione indiretamente pela deriva semiótica, ou pela construção dos
significados pelas estruturas significantes.
O signicado de cada etapa, então, torna-se um significado em si; e o projeto, enquanto
somatória deste conjunto, torna-se um resultado complexo, e não uma síntese. É possível
desdobrar o entendimento do projeto ao focalizar as suas partes e revelar, à luz das críticas –
técnica, conceitual, linguistica – um conjunto de ações que expressem a sua complexidade.
A deriva semiótica atua na desconexão das etapas do processo, e esta deriva permite
relacionar que os significados de cada uma das etapas sejam condicionados a novos sistemas e
ritos reveladores de intenção.
Tem-se então que o desenho, os modelos ou os cálculos são suportes linguísticos que
homogenizam os estudos que compõem as estruturas ambientais, pois desenhar e redesenhar
um projeto é um rito significante no qual se procura a trama de significações daquela
arquitetura e não a manutenção dos significados anteriores.
186
O ambiente-cidade, campo condicional de inserção do volume arquitetônico, é entendido
como um campo de matérias e possibilidades não determinante, mas fornecedora de
condições ambientais e forças estruturais, na relação dos volumes e dos espaços não
construídos e das funções urbanas.
No ambiente-edifício, é possível definir qualidades como sua construtibilidade, intenção dos
lugares e a relação dos espaços particulares do edifício com o espaço coletivo da cidade. Aqui
se encontram os ambientes construídos como condicional psicológica pela sua trama formal.
O objetivo não é compreender o resultado final como um sistema harmônico, mediano, mas
sim, ao tomar o desenvolvimento processual como núcleo, fazer com que concordâncias ou
discrepâncias ambientais consigam seu melhor resultado. A discrição dos elementos e
conjuntos não deve compreender a anulação das linguagens, ao contrário, pois, que o projeto é
o resultado das tramas das formas e representações das linguagens nos campos técnicos.
O método faz com que surjam alterações no projeto ao longo do processo e em todo seu
conjunto, evidenciando a direção dos dados e conjunto decisório. Esta alteração define a
profundidade do projeto como um todo e a possibilidade de estabelecer um processo crítico
constante pelo conjunto de significações obtidas no processo projetual.
O principal resultado a ser estimado é a abertura do caráter metodológico, no tocante ao
conceito de campos técnicos e interagentes, e a presença da condicional psicológica na
arquitetura. A crítica existente, de que o projeto de arquitetura é um processo não-linear pode
ser verificada pela possibilidade de completude de cada uma das fases do projeto desde que
estejam compreendidas dentro de um programa.
187
A existência de um programa não caracteriza, neste caso, uma metalinguagem. Entende-se,
sim, como um conjunto de ações que pode ser modificado conforme a abordagem pessoal do
arquiteto e conforme a abordagem técnica escolhida. Desta forma, um mesmo projeto poderá
ter diferentes abordagens de programa. Os procedimentos de pesquisa, desenvolvimento e
decisão, são fixos num meta-programa (próprio de metalinguagem), e definem a abordagem
como condição a priori.
Uma condicional psicológica, na relação autor-projeto, não deve ser entendida como uma
expressão emocional, mas como uma dimensão do pensamento, um conteúdo, referido ao
processo técnico de projeto e a abordagem projetual, como uma possibilidade pessoal, deve
eximir o projeto de uma influência extremada de ‘psicologismos’, naturais da
falta de
conhecimento técnico da produção do projeto.
A condicional psicológica, na relação projeto-obra, pode ser inserida através de formas
comportamentais ou sensoriais, seja na inserção do comportamento como elemento de um
ritual no espaço, a sua violação, seja no entendimento da obra final como fenômeno, a sua
significação.
Os campos constitutivos da arquitetura indicam a extensa variação programática e sua
natureza complexa e coletiva permitindo a aproximação de vetores de força que expressam a
ação de cada elemento de campo.
A qualidade do projeto é entendida como uma ação crítica constante e que pode determinar a
qualidade específica de cada campo.
188
UMA CONCLUSÃO
A arquitetura se produz por meio de um arranjo de multiplicidades, ou seja, aspectos
singulares recolhidos de diversos campos técnicos. A história e as tecnologias, por exemplo,
fornecem informações diversas que, conforme são arranjadas na leitura de uma arquitetura,
produzirão significações e valores diferentes.
O método, como diagrama interno da arquitetura, recebe e justapõe estas informações, de tal
maneira a proporcionar pela justaposição, e não pela organização dos dados, os intervalos dos
estratos técnicos e a diacronia das etapas.
O entendimento do uso da técnica é a possibilidade que o arquiteto encontra em reconhecer os
processos que atualizam as arquiteturas, como um novo desenho atualiza a história. Pois o uso
correto de uma técnica condiciona o valor comunicacional de uma arquitetura diferenciando
uma arquitetura que busca um valor referencial no seu próprio tempo de uma arquitetura que
perde seus elementos significativos na cópia de elementos retirados de outros exemplos sem
que possuam condição de fornecer maior tensão à significação do lugar.
A técnica distribui os elementos das arquiteturas enquanto a poética os tenciona ao justapor
elementos dentro de um mesmo lugar, assim como a serialidade de elementos singulares –
como as ‘folies’ no Parque “La Villette” – geram uma tensão criativa ao serem opostas a outra
maneira de distribuição – como as passarelas – fornecendo ao usuário-leitor uma significação
aberta.
189
Todas as arquiteturas possuem um regime de tensões exercido sobre os corpos com as quais
elas são formadas, como os corpos de expressão do conjunto de vazios numa galeria em
pórticos ou como os corpos de conteúdo das matérias retiradas do mundo: o tijolo, o concreto,
o aço, o vidro.
A tensão sobre os corpos é a tensão sobre as matérias, as mesmas matérias que se formalizam
no pensamento e fornecem condição de solidariedade à formalização da expressão. Eis a
duplicidade das formas e sua dobra na arquitetura.
A matéria formada é expressão – uma coluna de mármore – quando associada a um enunciado
de sua função no edifício. A matéria formada é conteúdo – a mesma coluna de mármore –
quando associada aos enunciados de seu tempo.
Toda arquitetura, assim, é o resultado do encontro entre formas de expressão e de conteúdo
que não se identificam, mas que, pela relação solidária entre as formas, se torna um signo,
com significação e valor.
Uma poética age sobre as relações solidárias estreitando os processos significativos – uma
ideologia aplicada o edifício – ou abrindo-os e dirigindo-os para os aspectos da arte e das
linguagens.
Mais de uma forma pode estar associada a um edifício ou a um lugar, formando tranças de
formas e alterando significações pela conotação das mensagens.
190
As matérias formadas são arranjadas por uma técnica que as singulariza enquanto objeto, e a
poética abre os campos de valor e significação ao imprimir um programa ao desenvolvimento
técnico.
A linguagem se estabelece na trança das formas e no seu desenvolvimento nos fluxos e nas
mutações, nas sincronias e nas diacronias. Os fluxos, resultado dos tempos sincrônicos, se
verificam na deriva das tipologias num mesmo estrato histórico – como os edifícios de vidro
no modernismo – e as mutações se verificam na alteração dos arranjos das formas de
expressão, na diacronia dos sistemas, como a névoa de significação da arquitetura
contemporânea.
No exercício dos tempos nas arquiteturas se verificam seus ritos de significação, ritos
semiológicos, que permitem aplicar valor tanto às etapas de um método de projeto, quanto a
percepção dos eventos constitutivos do ambiente. A abertura das solidariedades formais das
arquiteturas de nosso tempo evidencia uma reconfiguração das significações.
A busca de eliminação das significações, ou da sua opacidade, reflete um arranjo das formas,
no qual mais de uma mensagem é passada, sendo, às vezes, não percebida.
A opacidade dos edifícios-contêineres reflete esta condição de mensagem enevoada, dobrada
dentro de uma trança, como se não existisse; mas sendo, sim, o resultado de um conjunto de
forças que se estabelece nos enunciados de nossa época como as relações de consumo, o
sistema de troca de produtos sem valor referencial, e a dispersão dos núcleos de exercício do
poder.
191
Sendo uma condição do diagrama das forças da contemporaneidade, esta dispersão indica um
novo estágio das sociedades disciplinares, uma continuação exacerbada em novos ritos
formais, em novos produtos culturais, em novas visibilidades.
A percepção dos ritos é a possibilidade de desmonte das tranças formais e da sua análise e
crítica, pois sendo um conjunto de linguagens, as arquiteturas carregam mensagens de
produção, de poder, de distribuição, de ser.
As arquiteturas carregam as mensagens do nosso tempo, mesmo que não se queira.
Entende-las na sua intensidade é uma das funções do aprofundamento dos seus ritos.
Abri-las na sua complexidade da deriva de suas mensagens e expô-las ao entendimento crítico
é uma das funções deste trabalho.
192
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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