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A rede e o cotidiano em Laboratory Life

1994

Resenha de Latour, B., & Woolgar, S. (1986). Laboratory life. The Construction of scientific facts. New Jersey: Princeton University Press. O texto examina as estratégias etnográficas do livro e possível aplicação dos princípios metodológicos desenvolvidos no texto em outros contextos de pesquisa.

Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. Flavio Fava de Moraes Vice-Reitora: Profa. Dra. Myriam Krasilchik Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira Vice-Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Departamento de Antropologia Chefe: Profa. Dra. Paula Montero Vice-Chefe: Profa. Dra. Eunice Ribeiro Durham Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Coordenadora: Profa. Dra. Aracy Lopes Pádua da Silva Comissão Editorial: André Pinto Pacheco Andréa Bueno Buoro <[email protected]> Luiz Henrique de Toledo <[email protected]> Piero de Camargo Leirner <[email protected]> Yara Schreiber Consultoria Editorial: Profa. Dra. Dominique Tilkin Gallois • Edilene Coffaci de Lima Prof. Dr. José Francisco Quirino dos Santos • Profa. Lilian De Lucca Torres Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani • Prof. Dr. Kabengele Munanga Profa. Dra. Lilia Katri Moritz Schwarcz • Marta Amoroso Luís Donisete Benzi Grupioni • Profa. Dra. 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Laboratory Life - The Construction of Scientific Facts. [Introdução de Jonas Salk]. Princeton, Princeton University Press. 1986. 294 pp. I n t e i r a m e n t e baseado em dados etnográficos, Laboratory Life é a primeira tentativa de e s t u d a r a ciência a p a r t i r do cotidiano dos cientistas. D u r a n t e dois anos, Bruno L a t o u r conviveu diariamente com os neuroendocrinologistas do laboratório do Instituto Salk de Pesquisas Biológicas. Posteriormente o livro seria escrito com a colaboração do sociólogo inglês Steve Woogar. Na introdução, o dr. J o n a s Salk 1 menciona que os cientistas t ê m aversão àquilo que os não-cientistas dizem a respeito da ciência. Os estudos sociológicos da ciência e a filosofia da ciência, continua, tendem a ser a b s t r a t o s ou a lidar apenas com fatos históricos bem conhecidos que guardam pouca ou n e n h u m a semelhança com a atividade diár i a dos laboratórios. O livro de Latour & Woogar, ao contrário, utiliza, n a s palavras de Salk, "exemplos honestos e válidos da ciência de laboratório", livre, portanto, de "fo- 1. Dr. J o n a s Salk é o virologista americano que, nos anos 50, desenvolveu a vacina contra poliomielite. Na década seguinte, ele tornou-se diretor do instituto que leva seu nome. Cf. José Reis. "Salk busca vacina terapêutica p a r a Aids". Folha de São Paulo. 5 de março de 1995, p.: 6-14. CnAprnns AP Cmnnn Ran Par/In. n° 4 n 175-1R3 focas, insinuações e estórias embaraçosas" freqüentes em outros estudos e comentários da ciência. 2 Mesmo sem concordar corn todos os detalhes do livro e o achando, freqüentemente, desconfortável e, até mesmo, angustiante, Salk afirma que ele é "um passo na direção correta" para dissipar o "mistério que se acredita cercar nossa atividade". Ele v a i mais longe, dizendo que "no futuro, alguns institutos poderiam muito bem incluir algum tipo de filósofo ou cientista 'in-house'". 3 Apesar dos comentários favoráveis, Salk não concorda com o ponto principal do livro, o de que "a sociedade não pode existir, de um lado, e o mundo social, de outro; o reino científico é apenas o resultado de operações que estão presentes no reino social". Diz ele que "no meu próprio trabalho, eu encontro muitos detalhes que não se a d a p t a m a este quadro". 4 A posição de Salk é indicativa de u m a certa percepção da ciência. Nela, a ciência é compreendida a partir da distinção entre fa2. Jonas Salk, "Introduction",: 11-2. 3. Idem: 14. 4. Idem: 13. 19.94 - As Rpdpji p. o Cotidiano pm Tst.harn.tnrv T.ifp Cadernos de Campo, São Paulo, n° 4, p, 175-183, 1994. tores técnicos e sociais. O acerto científico e a descoberta da verdade estão vinculados aos primeiros; o erro, aos segundos. Mas isso pode ser dito de uma outra forma. A ciência pertenceria ao reino intelectual. O reino social lhe é exterior. A influência do segundo sobre o primeiro é motivo de engano, dirupção do procedimento científico. Segundo Latour & Woogar, não só os cientistas pensam assim, mas também os filósofos da ciência. "E possível que a distinção entre 'social' e 'intelectual', aceita como não problemática pelos observadores da ciência, tenha conseqüências significativas para os relatos sobre a ciência que eles produzem". 5 Os autores enfatizam que o sentido dado pelos cientistas às categorias "técnico" e "intelectual" é uma importante característica de sua atividade. Contudo eles compreendem estes conceitos como parte do fenômeno a ser explicado. Isso, na realidade, é uma conseqüência do velho e bom princípio antro» pológico segundo o qual a análise não deve depender do uso acrítico dos conceitos e terminologias que são parte do objeto estudado. Laboratory Life não se resume a afirmação de que a ciência é fruto de interações sociais. O que está em jogo é a própria oposição entre 'social' e 'intelectual3. Se se aceita que todas as interações são sociais, se se acaba com a dicotomia social - intelectual, qual é o sentido do termo "social"? Com dizem Latour & Woogar no postscript da segunda edição, neste contexto ele possui pouco significado6. O termo 'social' foi retirado do subtítulo desta edição. Aliás, o foco do livro não é a influência de fatores sociais na produção do conhecimento científico, mas o processo pelo qual os cientistas dão sentido às s u a s observações. Um observador externo tende a considerar a ciência como um conjunto de práticas "bem organizado, lógico e coerente". L a t o u r & Woogar partem da constatação contrária: a de que a ciência consiste num conjunto desordenado de observações com o qual os cientistas lutam para produzir ordem. O quarto capítulo 7 (na minha opinião, o melhor do livro) mostra como os fatos são criados a partir de uma série complexa de processos, contingências e circunstâncias. Cientistas estão a todo instante negociando dados, possibilidades de cooperação, informações, percepções da capacidade alheia &c. Afirmações sobre a realidade são feitas para, no decorrer de dias ou mesmo horas, serem transformadas. O processo de experimentação é o resultado de recursos institucionais, das perspectivas de investimento nas respectivas c a r r e i r a s , das e s t r a t é g i a s de maximização destes investimentos, da negociação de informações e instrumentos, dos interesses mais imediatos dos pesquisadores &c. São estas as condições que permitem que uma determinada experiência seja, no meio de t a n t a s outras, realizada. Por exemplo, alguém está trabalhando com duas substâncias e seus análogos. Experimentam-se os seus efeitos em diversos contextos, dentro de perspectivas diferentes e com intuitos variados. Dentre t a n t a s outras coisas, sabe-se que uma substância análoga à substância B tem efeitos semelhantes à substância A, que diminui a temperatura dos ratos expostos ao frio. Embora a substância análoga à B fosse estruturalmente diferente da substância A, por que não experimentá-la nos ratos? Acon- 5. Laboratory Life; 23. 6. Levada às últimas conseqüências, esta crítica pode render desdobramentos interessantes, como a segunda p a r t e do livro de Latour The Pasteurization of France, Cambridge! Harvard University Press, 1988. O original de 1984 chama-se Les Microbes: guerre et paix suivi de irréductions, P a r i s : Editions A. M. Metétailié. 7. "The Microprocessing of Facts". 17G As Redes e o Cotidiano em Laboratory tece de a substância análoga ser muito mais eficiente do que a substância A. Contudo, ao publicar a "descoberta", a ordem do processo de construção é invertida. Todos a s circunstâncias e processos que a t o r n a r a m possível d e s a p a r e c e m . Por um lado, a experiência passa a ser o resultado do raciocínio lógico, i. e., aquele experimento foi tentado por conta de uma conexão lógica que o antecede. Por outro, as circunstâncias locais q u e t o r n a r a m possível aquele experim e n t o particular dão lugar à intuição, ou seja, ao invés de se dizer que o pesquisador tentou muito e, por um acaso, conseguiu algo significativo, diz-se que ele teve uma intuição O senso comum imagina que a racionalidade científica é diferente daquela empregada noutras esferas da vida social, constituindo-se um domínio à p a r t e . Latour & Woogar argumentam que, se tais diferenças existem, elas devem ser demonstradas empiricamente. 8 Ao contrário do senso comum, os a u t o r e s verificam etnograficamente que a racionalidade científica é a mesma que está presente nas atividades cotidianas. Eles sugerem que a "tentação" de classificá-la à parte é causada pelo emprego de termos como hipótese, prova e dedução, cujo uso é tautológico em relação as práticas de interpretação das atividades cotidianas. Mais do que suas observações perspicazes a respeito da ciência, o livro de Latour & Woogar sugere caminhos p a r a o estudo antropológico das sociedades "complexas", tanto pelo seu tema, quanto pela sua abordagem. Mas, antes, é preciso contextualizá-lo no debate teórico da disciplina. 8. Laboratory Life A repatriação da antropologia Em Anthropology as Cultural Critique, Marcus & Fischer classificam Laboratory Life como um exemplo de "repatriação da Antropologia", i. e., cia aplicação do instrumental analítico da Antropologia às sociedades ocidentais. Segundo eles, há Um interessante esforço de descrever o dia a dia de cientistas experimentais, baseado totalmente em dados etnográficos. Latour & Woogar chegam a comparar repetidamente sua relação com os cientistas a u m a situação de campo clássica. Esse movimento chega, algumas vezes, à c a r i c a t u r a , m a s é salvo p e l a s suas reveladoras observações. Um exemplo são as estratégias utilizadas para converter statements cuidadosamente cercados por citações de dados, estudos e probabilidades em ''fatos científicos" incontestes. 9 A repatriação é, no livro de Marcus & Fischer, u m a forma de "crítica cultural". Esta idéia não é nova para o leitor de Cadernos de Campo. E m e n t r e v i s t a à r e v i s t a , George Marcus dizia "Sempre que um trabalho está lidando com o outro, estamos fazendo uma crítica implícita à nossa sociedade. 9. George Marcus Sc Michael Fischer. Anthropology as Cultural Critique. Chicago: University of Chicago P r e s s . 1986, p. 154. No segundo capítulo - An Anthropologist Visits The Laboratory - Latour & Woogar comparam o laboratório a uma "clássica" situação de campo. Os autores de Laboratory Life criam um ente fictício - chamado "o observador" - que tenta produzir algum sentido do 'comportamento absurdo e errático dos seus objetos de estudo''. E difícil não concordar com a crítica de Marcus & Fischer; de fato o movimento chega à caricatura. Felizmente, o recurso retringe-se a este capítulo, onde é uma estratégia de e s t r a n h a m e n t o , exotização. Curiosamente, esta estratégia está bem de acordo com o espírito de Anthropology as Cultural Critique, O seu objetivo é justamente desorientar o leitor, alterando sua percepção da vida cotidiana. Life: 153. 177 Cadernos de Campo, São Paulo, n° 1, p. 175-183, 1994. Esta seria uma tradição crítica da Antropologia que estaria precisando ser desenvolvida".50 Do ponto de vista de urna teoria do conhecimento, a "critica c u l t u r a l " é, na r e a l i d a d e , o f u n d a m e n t o do princípio de conhecimento sobre o qual a disciplina se a s s e n t a . Estou p e n s a n d o no texto em que Lévi-Strauss chama Rousseau de "Fundador das ciências do homem". A piedade rouss e a u m a n a implicaria, p a r a Lévi-Strauss, num duplo princípio: a identificação com o "outro" - fazendo do "outro" um "eu" - o a recusa à identificação consigo mesmo - fazendo do "eu" um "outro". "Estas duas atitudes se completam, e a segunda chega mesmo a fundar a primeira: na verdade eu não sou 'eu', mas o mais fraco, o mais humilde dos 'outros'", diz L é v i - S t r a u s s . Segundo ele, o princípio de identificação da piedade rousse a unia na é para o homem no estado de natureza um princípio da sensibilidade; para o homem em sociedade, o fundamento da moral; e para o homem civilizado, um princípio de conhecimento.' l É fácil observar que a recusa à identificação consigo mesmo contém a idéia de "crítica cultural". Portanto, desenvolver a "tradição crítica em Antropologia" como querem Marcus & Fischer implicaria em transformar este princípio de conhecimento num instrumento político. Mas, por que escolher a antropologia como um veículo de ação política, se existem outros meios mais apropriados? A escolha se baseia numa certa percepção da política. "A questão para nós é se a sociedade tem uma política íntima, onde o âmbito pessoal é político. Este é o tipo mais importante de política, é a política que muda as condições de vida. Não sei se este tipo de visão da política é relevante para o Brasil ou para Europa", acrescenta Marcus na entrevista. 12 Dentro desta perspectiva, agir politicamente implica na t e n t a t i v a de m u d a r a maneira como os indivíduos pensam. Observe-se que Marcus não se refere à opinião de um leitor de jornal sobre as notícias do dia. Ele se dirige aos v a l o r e s s o b r e os quais as pessoas erigem s u a s certezas cot i d i a n a s , aos f u n d a m e n t o s do s e n s o comum. Por isso, a intervenção política implícita em Anthropology as Cultural Critique é a dos trabalhos antropológicos e não a da mídia. Ora, o meio específico à disposição do antropólogo é a palavra escrita. Assim sendo, a intervenção política reduz-se a um conjunto de estruturas textuais mais ou menos eficientes - ou "corretas" —, segundo seus significados implícitos ou explícitos. Há, porém, três argumentos contra a eficácia desta forma de intervenção. Primeiro, há questões concretas que exigem uma atenção imediata. A alteração da "política íntima" que fosse pertinente ao problema exigiria que um número suficiente de pessoas mudasse sua forma de pensar. Quando - e se - isso acontecesse, a situação já teria se transformado para outras bases. Como conseqüência, este tipo de intervenção política é mapropriado para solução de dem a ndas e sp ecífica s. Depois, os antropólogos brasileiros, principalmente os que lidam com comunidades "indígenas", possuem uma larga experiência na atuação política em defesa dos direitos dos índios. Eles a r g u m e n t a r i a m , com razão, que a 'política íntima" é apenas uma faceta do problema, nem sempre a mais relevante. Mesmo (pie um número suficiente de pessoas pensasse diferente, isso não sig- 10. Cadernos de Campo, n" 3. L993. p. L38. 1 1. ('lande Lcvi-Strauss. "Jean Jacques Rousseau, Fundador das Ciências do Homem", in Antropologia Estrutural Dois, Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro. 1976. 1.2.. Cadenos de Campo. op. eit. 178 As Redes e o Cotidiano em Laboratory nifica que elas se dispusessem a algum tipo de ação política. E, mesmo que elas se dispusessem a agir, não há nenhuma garantia de que elas conseguissem sucesso. Por fim, é possível que ler a respeito de costumes e de sociedades "exóticas" ponha em perspectiva os valores do leitor. Porém, isso se reduz à comparação com uma sociedade distante. Muito mais eficaz seria dirigir a visada antropológica aos costumes do próprio leitor. Marcus concordaria com este último argumento. Na entrevista a Cadernos de Campo, a relação entre repatriação e crítica cultural aparece invertida. Ali, a crítica cultural é um resultado da repatriação. Nas p a l a v r a s de Marcus: "Acho que em nosso livro, Fischer e eu fomos um pouco ingênuos e tentamos rec u p e r a r u m a tradição crítica da Antropologia....[uma vez que] Ela implica em dizer que o trabalho crítico está na 'repatriação'". 13 Mas, a repatriação levanta uma complicação teórica. A Antropologia utiliza-se de conceitos desenvolvidos para o estudo de sociedades não ocidentais; é preciso considerar que eles não são necessariamente aplicáveis à nossa. E m uma palavra, não basta transferir os conceitos de uma sociedade para out r a . Ao contrário, é necessário refletir sobre os i n s t r u m e n t o s analíticos, sobre as bases teórico-metodológicas da disciplina. Aliás, Marcus enfatiza a questão teórica, dizendo que a chave para revitalizar a Antropologia é trabalhar um pequeno grupo, mas, no fundo, falar de coisas mais amplas. O problema, prossegue, é falar de coisas pequenas e não saber como colocá-las em contextos mais amplos. Note-se que este problem a é p e r t i n e n t e apenas ao estudo de uma sociedade ocidental. 14 É neste sentido que o livro de Latour & Woo gar pode contribuir mais expressiva- Life. mente. Por uma lado, ele introduz uma crítica ao objeto da Antropologia na sociedade ocidental Por outro, propõe i n s t r u m e n t o s metodológicos que são capazes de falar de pequenas coisas em grandes contextos. As críticas de Latour Laboratory Life possui uma crítica implícita à aplicação da Antropologia às sociedades ocidentais, explicitada nos trabalhos posteriores de Latour. Segundo ele, a Antropologia - ou uma certa Antropologia — pensa que só pode aplicar seus métodos quando os ocidentais misturam, confundem coisas e signos da mesma maneira como o "pensamento selvagem faz". Dessa forma, a Antropologia mantém sua "distância crítica" estudando somente as m a r g e n s e f r a t u r a s da racionalidade, ou os "reinos" para além dela. Ent r e t a n t o , continua o autor, nos trópicos o antropólogo não se satisfaz com os aspectos marginais das outras culturas. Ao contrário, ele pretende reconstruir o centro destas culturas, a totalidade da sua existência. 15 Neste caso, toma-se o caráter marginal destas sociedades "selvagens" frente às sociedades ocidentais como a natureza - por excelência - do objeto antropológico. É neste sentido a crítica de Latour ao trabalho de Marc Auge sobre os grafites nos corredores do metrô. Para o primeiro, o segundo se limitou a estudar os aspectos mais superficiais. Se Marc Auge tivesse feito o que faz noutros lugares, completa Latour, teria estudado a própria rede sócío-tecnológica do metrô, seus engenheiros, motoristas, diretores, clientes e o Estado. 1G 15. Latour, Bruno. We.' Have Newer Been Modern Cambridge: Harvard University Press, 1993: 100. 16. Idem ibidem. 13. Idem ibidem. 14, idem ibidem. 17Q Cadernos de Campo, São Pau.lo, n° 4, p. 175-183, 1994. Em Laboratory Life, os autores estudam a rede dos neuro-endocrinologistas, uma rede menor da rede mais a m p l a dos endocrinologistas. Rede é, neste caso, um conjunto de práticas, instrumentos, interesses, instituições, referências simbólicas comuns &c. Aqui, o uso mais importante deste conceito é o que Latour & Woogar chamam de "rede de validade" (network of validity). A network of validity 6 rede formada pela reprodução das práticas, instrumentos &c dos próprios laboratórios em outras arenas da realidade social, tais como hospitais ou i n d ú s t r i a s . Não há, em n e n h u m a inst â n c i a , a verificação de u m a proposição produzida pelos laboratórios segundo métodos c técnicas diferentes daquelas empregadas pelos próprios laboratórios. Network of validity é, então, o que permite que a ciência seja considerada universalmente válida. 18 A crítica de Latour é relevante tanto para o objeto da Antropologia, quanto para o seu tema de pesquisa. Por um lado, seria preciso dirigir o nosso instrumental teórico a objetos centrais da sociedade ocidental (a política, o mercado, as corporações privadas, a ciência &c.). Por outro, é preciso recortar o objeto naquilo que ele possui de mais relevante, tendo em vista as particularidades da sociedade na qual ele se insere. Na contramão desta crítica, funciona a máxima antropológica de que o antropólogo não estuda a política da aldeia, mas a política na aldeia. É perfeitamente possível estudar aspectos centrais dentro de objetos marginais, diriam. Ninguém pretende negar este fato. Mas por que não estudar também temas centrais dentro de objetos centrais? Laboratory Life propõe duas soluções metodológicas para os problemas suscitados por um projeto como este: o conceito de redes e o uso do cotidiano como instrumento analítico. Uma anedota de Latour ilustra a proposição acima: "Prove-me que esta substância que funciona bem em Paris funcionará igualmente nos subúrbios de Timbuktu", ' M a s para quê? Há uma lei universal'. "Eu não quero ter de acreditar, quero vêlo". "Então, espere enquanto eu construo um laboratório, e eu provarei a você." As redes L a t o u r & Woogar não dão ao leitor uma definição de r e d e . A p e n a s n a p r o d u ç ã o s u b s e q ü e n t e de L a t o u r , a i m p o r t â n c i a analítica deste conceito se torna mais clara. T a n t o em Laboratory Life, quanto em The Pasteurization of France c We Have 1 Never Been Modem ', o conceito de redes é utilizado nas redes científicas e tecnológicas, i. e., as redes que constróem a ciência e suas derivadas (e. g., as redes dos laboratórios experimentais, de comunicação, industrial, médica, de computadores &c). Mas, nos dois últimos livros, o conceito ganha outros contornos. Alguns anos e milhões de dólares depois, no laboratório recém construído, eu vejo prova com meus próprios olhos. Eu saio do laboratório, viajo umas poucas milhas e digo: "Prove-me que..."11' Em The Pasteurization of France, Latour caracteriza a rede como um conjunto de elementos - ou forças - dominados por uma força que define sua associação. 20 Esta afir18. Laboratory Life: 182-3. 19. The Pasteurization of France: 4.5.7.1. 20. Idem: 170-2. 17. Idem ibidem. 180 As Redes e o Cotidiano em Laboratory "The Concept and Use of Social Networks". 22 Neste último, redes é um conceito tomado de empréstimo da matemática. 2 3 Na sociologia, ele significa um conjunto de indivíduos conectados de alguma forma, cuja representação analítica pode ser um d i a g r a m a . Em Mitchell, portanto, a rede é u m a forma de mapear as ligações entre diversos indivíduos dentro de uma sociedade qualquer. O tipo de ligação e os critérios de inserção dependem dos interesses específicos do pesquisador. Em Laboratory Life, a rede não é definida pela associação de indivíduos. Dois indivíduos podem p e r t e n c e r a u m a mesma rede sem, no entanto, terem qualquer tipo de relação (direta ou mediata por terceiros). Além disso, uma rede não se limita a uma sociedade ou um país, mas, ao contrário, expande-se por várias deles. A rede é, aqui, um espaço social específico que reproduz elementos sociais (interesses, práticas, ritos &c), simbólicos (mitos de origem, valores, sistemas coerentes de categorias &c) e morfológicos (instituições, alocação de recursos &c) comuns. Neste sentido, a rede aproxima-se do conceito de totalidade maussiano, u m a vez que "põe em movimento" todos estes elementos, integrados num sistema específico.24 mação se baseia em premissas cuja explicação fugiria muito dos propósitos desta resenha. Apenas é necessário dizer que Latour está criando uma teoria válida tanto para a relação dos homens entre si, como para relação dos homens com as coisas. Em We Have Never Been Modern, Latour aponta que, por todo o lado, o mundo é composto de redes: o exército vermelho, o ministério francês da educação, o mercado, a IBM, os cartões de crédito &c. Diz ainda que a rede representa o meio do caminho entre o local e o global. A metáfora do autor é a est r a d a de ferro. Ele se pergunta, "uma estrada de ferro é local ou global?" Nenhum dos dois, responde. Por um lado, ela é local em todos os seus pontos, uma vez que em todos eles é possível e n c o n t r a r t r a b a l h a d o r e s , trens, carros dormitórios, máquinas que vendem tíquetes &c. Por outro, ela é global, uma vez que o leva de Madri a Berlin ou de Roma a Viadiwostok. Entretanto, ela não é universal o suficiente para levá-lo a todo lugar. 21 E n t e n d e r que a realidade é formada por redes a Latour implica em enfatizar a associação de um espaço especifico com outros espaços específicos. Aí, fica fácil verificar que o conceito de redes é uma maneira de solucionar o problema de colocar as pequenas coisas em contextos mais amplos. Estudando etnograficamente uma rede - qualquer que seja ela - , o pesquisador estará analisando, do ponto de vista local, o conjunto de forças (práticas, interesses, instituições, instrumentos, referências simbólicas comuns &c) que definem sua associação, do ponto de vista global. O leitor pode observar que o conceito de redes de Laboratory Life e os seus desdob r a m e n t o s em The Pasteurization of France e We Have Never Been Modern são diferentes das redes do artigo de J. Clyde Mitchell, 21. We Have Nerver Been Modem: Life. 22. In J. Clyde Mitchell (org.) Social Netwoeks in Urban Situations, Analyses of Personal Relationships in Central African Towns. Manchester: Manchester University Press. 197 L pp.: 1-50. 23. "In graph theory a finite set of points linked, or partly linked, by a set of lines (called arcs) is called a net, there being no restriction on the number of lines linking any pair or on the direction of those lines... A network ... is a relation in which the lines connecting the points have values ascribed to them, which may or may not be numerical. In sociological writings the word 'network' may be applied indiscriminately to any of htese somewhat different structures distinguished in graph theory." Idem: 2-3. 24. Of. Claude Lévi-Strauss. "Introdução a obra de Marcel Mauss". In Marcel. Mauss Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP. 1974. p.: 14 117. 181 Cadernos de Campo, São Paulo, n° 4, p. 175-183, 1994. O cotidiano como instrumento analítico explicam apenas o ritual, mas são os fundamentos morais de um tipo de sociabilidade. Há uma objeção ao argumento acima. O Ensaio não é um exemplo de etnografia, no sentido da tradição antropológica. Embora baseado em dados etnográficos, ele não foi escrito a partir de um trabalho de campo realizado pelo autor. Todavia, o que está em "jogo" não é se Mauss foi ou não a campo, mas a estratégia textual e teórica de construção da totalidade. Malinowski também utiliza-se de est r a t é g i a s e m e l h a n t e . Nos Argonautas, os quatro primeiros capítulos referem-se, respectivamente, ao tema, método e objetivo da pesquisa; aos habitantes e região; aos nativos das ilhas Trobriand; e a uma descrição mais geral do Kula. A partir daí, etnografia é ordenada segundo as diversas etapa s de uma expedição do Kula: as canoas e a navegação; a construção de uma waga; o seu lançamento cerimonial; a partida de uma expedição; &c. E preciso enfatizar que esta estrutura textual está vinculada a própria formulação teórica da totalidade. Como nos lembra Eunice Durham, é por meio do Kula que Malinowski consegue apreender a "ação resultante integral do todo", i. e., a integração entre regra, atitude e a representação "cuja síntese nos dará afinal esta visão que o nativo possui do 'seu mundo'" 26 . Segundo a autora, "Este movimento que une as partes ao todo é apreendido pelo investigador à medida que constrói a instituição a p a r t i r das suas manifestações" 27 . Por toda Antropologia clássica, encontra-se a mesma estratégia, com formulações teóricas algo diferentes. Nos Coral Gardens de Malinowski. Nos Azande e nos Nuer de Evans-Pritchard. Nos trabalhos de Florestan F e r n a n d e s sobre a sociedade Tupinambá. 0 uso do cotidiano como instrumento analítico é diferente do seu uso como espaço de observação e coleta de dados etnográficos, Se o primeiro é uma característica do trabalho de Latour & Woogar que convém ressaltar, o segundo é bastante familiar ao antropólogo. O trabalho etnográfico à Malinowski exige a permanência do pesquisador por um longo período na sociedade estudada, vivendo dia a dia dos seus "objetos de estudo", O problema da investigação é, j u s t a m e n t e , como construir a totalidade de uma sociedade a partir dos comportamentos e motivações individuais cotidianos, necessariamente particulares e fragmentários. Antes de Geertz, imaginava-se - inclusive - que seria possível chegar ao "ponto de vista nativo". 25 Contudo, a ordem do conhecimento é invertida n a s etnografias escritas. O autor não descreve o cotidiano e, a partir dele, explica o ritual, a prática ou o que quer que tenha lhe chamado atenção. Ao contrário, ele descreve, e. g., o sistema político como uma forma de desvendar a sociabilidade. O Ensaio sobre a dádiva de Mauss é um bom exemplo. Ele começa estudando um ritual, o potlacht, prossegue descrevendo rituais semelhantes em várias sociedades, até que, em referência ao Kula, menciona: "todas as relações individuais de troca, ao que nos parece, são desse tipo". Na realidade, o potlacht põe em relevo p r á t i c a s que permeiam todo o tecido social; são, neste sentido, "'todos', sistemas sociais inteiros cujo funcionamento tentamos descrever". Portanto, as obrigações de dar, receber e retribuir não 26. Eunice Ribeiro Durham. A Recoiistituição da- Realidade. São Paulo: Editora Atica, 1978. p: 53. 27. Idem: 59. 25. Geertz, Clifford. "From de Native's Point of View", in Local Knowledge. NY.: Basic Books. 1983. 182 As Redes e o Cotidiano em Laboratory Portanto, não é só em Mauss que centrar a descrição em um fato etnográfico de u m a outra sociedade é uma estratégia textual e teórica de reconstrução da realidade. Porém esta estratégia pode não ser a mais apropriada para as sociedades ocidentais. Se, nas etnografias "clássicas", o antropólogo tinha de mostrar a coerência atrás da aparente incoerência de uma sociedade alienígena; na sociedade ocidental, ele parte de u m a coerência dada: o objeto de estudo e familiar tanto para ele quanto para seu leitor. Se, no primeiro caso, os antropólogos tinham de construir uma compreensão que inexistia; no segundo, talvez eles tenham de desmontar u m a compreensão preexistente. Em Laboratory Life, a inversão da estratégia clássica é bastante evidente. Teoricamente, os autores analisam a prática da ciência do ponto de vista de sua prática cotidiana. Isso lhes permite discutir toda uma série de questões, como o status do fato, descrito acima. E s t e princípio teórico r e q u e r outros artifícios textuais. Latour & Woogar não baseiam sua descrição em nenhum fato particular. A ordem dos capítulos não segue Life. uma lógica descritiva ou etnográfica. Eles obedecem a u m a organização estabelecida pelo problema teórico. Em resumo, um dos caminhos possíveis para Antropologia das sociedades ocidentais é adotar a estratégia textual e teórica contrária à da Antropologia clássica. Ou seja, partir do cotidiano - da sociabilidade para falar de um fato qualquer. É possível descobrir que fenômenos sociais como instituições, a política, o mercado &c. são constituídos a p a r t i r de práticas absolutamente comuns e cotidianas. Por exemplo, ao invés de entender a política como uma esfera com regras próprias de funcionamento que estão em oposição às práticas cotidianas, seria preciso verificar como que ações absolutamente comuns nas práticas cotidianas, em contextos específicos, podem causar efeitos ou ter implicações entendidas como "políticas". Evidentemente, o conceito de redes (à Latour) e o uso do cotidiano como instrumento analítico não são as únicas possibilidades abertas p a r a Antropologia. Mas são caminhos que parecem bastante promissores. 1SQ