NOVA ARTE DA MEMÓRIA NO BRASIL
Márcio Seligmann-Silva
O artigo apresenta as obras de alguns jovens artistas brasileiros que servem para
repensar o modo de ver a história e os atuais conflitos sociais. Em um panorama
pontuado por radicalização, sectarismo e fundamentalismo – em uma palavra,
pela violência –, esses artistas vão ativar nas artes seu momento de inscrição
crítica do real. A arte dispõe tanto de sua capacidade de «duplicar» o real, para se
apropriar dele, como também de um momento lúdico-crítico. Nesse seu lado de
«jogo», ela permite um movimento tanto de aproximação do real como de distanciamento irônico.
Nos dois primeiros meses de 2016, duas exposições chamaram a
atenção do público frequentador do ciclo das artes em São Paulo. De
um lado, tínhamos a exposição Empresa colonial, com curadoria de
Tomás Toledo e que ocupou o espaço principal do Caixa Cultural (de
12 de dezembro de 2015 a 28 de fevereiro de 2016). Do outro, pudemos ver na Galeria Leme a exposição Totemonumento, com curadoria
de Isabella Rjeille (de 19 de janeiro de 2016 a 5 de março de 2016).
Em comum, nas duas curadorias, a busca de artistas, a maioria jovens,
voltados para pensar criticamente a nossa história – e o nosso presente. Não por acaso, entre os seis artistas representados na Empresa
colonial e os oito da Totemonumento, dois estavam presentes nas duas
curadorias: Clara Ianni e Jaime Lauriano.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA: é doutor pela Freie Universität de Berlim, pós-doutor por Yale e professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor visitante em
universidades no Brasil, Argentina, Alemanha e México. É autor de Ler o livro do mundo (Iluminuras,
São Paulo, 1999); Adorno (PubliFolha, São Paulo, 2003), O local da diferença (Editora 34, São Paulo,
2005), Para uma crítica da compaixão (Lumme Editor, São Paulo, 2009) e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009). Organizou também varios
volumes, entre ellos História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (Unicamp, Campinas, 2003) e coorganizou, entre otros, Escritas da violência 1. O testemunho e Escritas da violência 2.
Representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina (7 Letras, Rio
de Janeiro, 2012). Atua principalmente nos seguintes temas: romantismo alemão, teoria e história da
tradução, teoria do testemunho, representação da violência nos países pós-conflito, literatura e outras
artes, teoria das mídias, teoria estética do século XVIII ao XX e sobre as obras de Walter Benjamin e de
Vilém Flusser.
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A cada nova exposição, as curadorias traçam novos mapas e perfis do
«estado da arte». Esses desenhos são movediços e se transformam a toda
hora. Com vagar, eles vão construindo e revelando nosso habitat artístico. Vão abrindo caminhos sobre um chão nem sempre tão estável. Para
iniciar esta reflexão sobre essas duas curadorias, permito-me lançar mão
de uma obra apresentada em outra exposição recente. Lembro-me aqui da
impressionante obra de Lucas Simões, «Recalque diferencial» (2015),
apresentada na exposição Jogo de forças, com curadoria de Philipe
Augusto, mostra que também serviu para encerrar as atividades do Paço
das Artes no prédio da Universidade de São Paulo (USP) em 2016.
Nessa obra de Simões, pisamos um solo que arrebenta sob o nosso peso
– e, ao mesmo tempo, nos amortece. A proposta de Augusto era juntar
obras que servissem como dispositivos para refletirmos sobre nosso
mundo e sua teia de poderes. Pois bem, essa obra de Simões nos faz
pensar no solo que pisamos. Nosso andar torna-se errante, pois o pisar,
com o qual raramente nos ocupamos, assim como não pensamos em
nossa respiração, esse pisar toma toda a nossa atenção quando caminhamos tateantes a obra com os pés. Andamos como errantes. E é talvez essa
imagem do «errar refletido» que pode nos servir para pensar quanto ao
acerto dos curadores Tomás Toledo e Isabella Rjeille.
Acerto do relógio das artes – compassado com alguns curadores como o
próprio Philipe Augusto, Priscila Arantes1, Giselle Beiguelmann (com
sua exposição Memória da amnésia, de 2015) ou Moacir dos Anjos, que
com sua exposição Cães sem plumas, na Nara Roesler em 2013, já dera
também poderosas indicações quanto a essa necessária errância das obras
e curadorias pelo campo do «político». Moacir põe lado a lado diferentes
gerações de artistas de peso quando se trata de pensar a arte de inscrever
o esquecimento e a violência (v. tb. Anjos).
O que acontece nas exposições Totemonumento e Empresa colonial?
Ainda me apoiando na referida obra de Lucas Simões, pergunto-me
como o cuidadoso e refletido «pisar» dos dois curadores os levou a um
original percurso, e mesmo a um involuntário encontro, como se uma
exposição continuasse na outra. Impossível pensar nelas sem refletir
sobre o momento político pelo qual passam o Brasil e o mundo. Refirome à chamada grande política e sua «repisada» crise da representação, tão
falada, sobretudo no Brasil, desde junho de 2013. Essa crise ganhou
1. Remeto aqui às curadorias realizadas por Arantes diante do Paço das Artes, que podem
ser vistas também no belo livro Arantes 2015. Recordo em específico da exposição Crossing
[Travessias], de 2010, que contava também com a impactante obra de Alice Miceli, o vídeo
88 de 14.000, de 2004, sobre o massacre promovido pelo Khmer Vermelho na prisão S-21
do Camboja nos anos 1970.
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novos contornos com o caminhar das investigações da Polícia Federal e
dos juízes da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, vivemos desde
2015 uma crise mundial migratória sem precedentes, com milhões
de pessoas expulsas de suas casas e países, criando uma população de
milhões de deslocados errantes, sendo barrados, rechaçados e jogados ao
mar. O início de 2016 foi também o momento de início das operações
da mega-hidrelétrica Belo Monte, que, com a violência que exerceu e
exerce sobre a população local, provocou milhares de expulsões e, novamente, de errâncias involuntárias, sem contar um dos maiores ataques
que a floresta amazônica e suas populações indígenas já sofreram. Sem
esquecer também dos atentados terroristas na França (2015) e da resposta nacionalista e xenófoba... Novos muros são erguidos a cada dia. O
político parece reduzido a essa arte de barrar e separar de modo violento.
Enfim, a grande política estava em verdadeiro colapso quando essas
exposições aconteceram.
Curiosamente ambas, já em seus títulos, que indicam de modo eloquente as balizas curatoriais, voltam-se para um pensamento histórico. Elas
colocam o tempo e a história no centro de suas atenções. Toledo procurou apontar para as continuidades entre o passado colonial brasileiro e
suas violências atuais (incluindo as da última ditadura civil-militar).
Rjeille retoma a forte imagem dos monumentos (que ela, inspirada em
Cildo Meireles, associa à do totem) para pensar as transformações de
nossos parâmetros acerca de «o que» e como devemos nos lembrar. As
artes sempre foram tomadas como dispositivos mnemônicos, desde a
Antiguidade. Um totem, lembremos com o Freud de Totem e tabu, é
uma figura substitutiva de uma imagem paterna (recalcada, porque originariamente vencida, assassinada e devorada). O totem é a memória do
esquecimento, mas que guia, como no caso do recalcado, nossas ações
presentes. Já o monumento, que vem do latim monere, que significa
«advertir, exortar, lembrar», serviu desde muito àquela modalidade artística equivalente ao discurso panegírico: à eternização dos «grandes
heróis» e de seus «grandes feitos». Tudo é grandioso, épico, na cena do
monumento. E foi essa estética do monumento que se impôs também
na Modernidade industrial, quando no século XIX a Europa ficou
banhada de sangue pelas batalhas de unificação nacionalistas. E monumentos continuam a ser elevados em nossa era de catástrofes.
Como artistas e curadores intervêm em um panorama como esse, pontuado por radicalização, sectarismo e fundamentalismo – em uma palavra, pela violência? Eles vão ativar nas artes seu momento de inscrição
crítica do real. A arte dispõe tanto de sua capacidade de «duplicar» o real,
para se apropriar dele, como também de um momento lúdico-crítico.
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Nesse seu lado de «jogo», ela permite um movimento tanto de aproximação do real como de distanciamento. E amplia aquilo que Walter
Benjamin chamou de Spielraum, ou seja, campo de «jogo», espaço de
ação: campo de forças lúdico. Com isso, ela permite também, como
Freud já notara ao descrever o jogo do bebê que brinca de jogar para
depois puxar para si seu brinquedo, um apoderamento do trauma.
Aquele que joga com a dor cava o leito para que ela escorra. O artista
que nos ensina a ver a realidade de outro modo, deslo(u)cando-a, cria
esse espaço de ação. Ele nos torna passíveis de lidar com a dor e suas
causas. Nesse sentido, é importante lembrar o parentesco entre o jogo
e uma figura de linguagem, a ironia. Com Thomas Mann, Anatol
Rosenfeld afirmou que a «ironia é distância» e arrematou: «Distância é a
situação do estranho e marginal» (1967, p. 17). Esse estranho vive sem
casa. E já um outro imigrante no Brasil, Vilém Flusser, formulou em um
texto ainda do início dos anos 1960, «Für eine Philosophie der
Emigration» [Para uma filosofia da emigração]: «Quando o homem se
coloca na ironia, ele pode observar o que o determina» (1994, p. 31). É
a revolta que nos leva à ironia. O ironista afasta as coisas para poder
reaproximá-las e iluminá-las de modo crítico. Ele, a partir de seu jogo,
revela um outro mundo. A arte é agente revelador (fotográfico) do
mundo; ao mostrá-lo em desvio de paralaxe, abre-nos para outras possibilidades de construção do real. Suas heterotopias nos libertam do nosso
espaço de submissão. Assim, quanto mais crise, quanto mais violência,
mais necessidade temos tanto da ironia (jogo) como da arte, desse mergulho no virtual-real que as artes conseguem criar. Observemos, então,
mais de perto as obras dessas duas exposições.
EMPRESA COLONIAL: O PRESENTE DO PASSADO
Ao adentrar a exposição na Caixa Cultural São Paulo, o visitante logo se
deparava à sua esquerda com a obra de Jaime Lauriano «Quem não reagiu está vivo» (2015). Trata-se de uma série de dez pranchas com folhas
enquadradas sob material transparente, cada qual com uma imagem na
parte superior, um título no meio e um texto em português e inglês na
metade de baixo. Essa forma lembra, não por acaso, a forma barroca do
emblema, que era caracterizada pelo jogo entre um título, um texto em
forma de poema ou de prosa e uma imagem. O título portava a «moral»
do emblema. Aqui nessa obra de Lauriano, os títulos assumem mensagens que visam rever a história do Brasil, orientando-a agora do ponto
de vista dos vencidos e espezinhados. Ele concretiza a necessidade de se
«escovar a história a contrapelo», na expressão de Benjamin (2012, p. 245).
Como Benjamin nota na mesma tese «Sobre o conceito da história», o
historiador crítico, o materialista histórico, deve recuar (distanciar-se)
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criticamente da noção de história tradicional, poderíamos dizer com
Friedrich Nietzsche (1988), monumentalista, que vê na história um
cortejo de vencedores e se identifica com ele. Benjamin escreve:
os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes.
A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo
para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo
triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados
no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que
chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento.
Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os
criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento
da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. (2012, pp. 244-245)
Assim, acompanhamos nas pranchas de Lauriano a reescritura de uma
história que parecia familiar e conhecida, mas que é transformada e
revelada em seu fundo de violência recalcada. A primeira prancha recorda a resistência da população africana escravizada no Brasil que construiu o Quilombo dos Palmares. A ilustração, imagem muito reproduzida de Manuel Vítor de 1955, «Guerra dos Palmares», retrata a repressão
ao quilombo, e o texto enfatiza que esse massacre significou a perpetuação «do direito do homem sobre o homem». A segunda prancha reproduz o conhecido mapa «Terra Brasilis» (1519), cujas imagens comemoram a conquista lusitana, no estilo da empatia com os vencedores que
lemos criticamente com Benjamin. No caso, o mote/título da prancha
(«exploração escrava da mão de obra dos povos nativos») e o texto descontroem a imagem do mapa (e uma determinada imagem triunfalista
da história). Se a primeira prancha leva a uma empatia com as populações africanas escravizadas e massacradas, nessa prancha o olhar se volta
para o sofrimento das populações autóctones.
O famoso mapa «Terra Brasilis» – encomendado por Dom Manuel I,
realizado pelos cartógrafos Lopo Homem, Pedro Reinel e Jorge Reinel e
ilustrado por António de Holanda – glorifica a invasão portuguesa ao
«novo mundo». Neste exemplar, podemos notar como os autores descrevem, e ilustram, o novo continente exaltando a exploração do solo «brasileiro», a partir da colonização e escravização dos corpos de dezenas de
povos indígenas.
A terceira prancha enfoca o «extermínio e dissolução de comunidades
auto-organizadas». No caso, a foto é dos seguidores de Antônio Conselheiro
em Belo Monte (Canudos). O texto enfatiza que essa população que resistia à «lógica latifundiária que estruturava o solo e a sociedade brasileira»
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foi massacrada, com um saldo de mais de 25.000 mortos. A quarta prancha também se volta para o conflito no campo, mas enfatiza a «concessão
da exploração territorial para empresas estrangeiras». É como se o
século XX desse continuidade ao tipo de exploração já apresentada no
mapa «Terra Brasilis». A quinta prancha estampa o retrato de uma placa
erigida em 9 de outubro de 1970 em Altamira, ou seja, em plena
Amazônia e na ditadura civil-militar, que serviu de marco para o início
da construção da via Transamazônica. O mote enfatiza a «devastação de
florestas e extermínio de povos indígenas» e a explicação conecta as
«obras faraônicas» da época da ditadura ao desejo de eternização dos
presidentes militares, que acarretou a morte de «milhares de povos indígenas». A sexta prancha retoma o tema atual da «repressão policial como
tática de genocídio» que, na explicação, é exemplificada pela Chacina da
Candelária de 1993 no Rio de Janeiro: «o episódio revelou a política,
genocida, de higiene social». A prancha seguinte, desdobrando também
ideias das pranchas três e seis, foca o «massacre como tática de dispersão
de manifestações sociais». O texto recorda outro massacre de resistentes.
No caso, os camponeses de Eldorado dos Carajás, assassinados barbaramente pela Polícia Militar do estado do Pará em 1996. A oitava prancha
é dedicada ao lema «devastação de comunidades para assegurar o progresso da nação». Ela se volta para a construção de uma das mega-hidrelétricas do norte do país, que gera destruição socioambiental e destrói
comunidades locais, tudo isso sob a batuta de um conglomerado violento composto pelo Estado brasileiro e seus aliados empresariais nacionais
e internacionais. A nona prancha novamente destaca a resistência contra
a aliança do capital com o Estado. O mote é uma citação das palavras do
governador do Estado de São Paulo da época do massacre da comunidade
paulista de Pinheirinho, durante mais um ato bárbaro de reintegração
de posse: «quem não reagiu está vivo». Lema cínico de um governo que de
modo escancarado assume a sua política de extermínio dos que resistem
às imposições do Estado-capital. A política de moradia se revela aqui
também como higiene social. A última prancha destaca: «segregação e
racismo institucional transfigurados de medidas de segurança social», ou
seja, ela quer desvelar a hipócrita política racista da polícia, no caso, do
Rio de Janeiro. As fotos dos emblemas empregadas por Lauriano destacam as imagens dos resistentes: a população de Canudos, o enterro após
a Chacina da Candelária, os membros do Movimento Sem Terra (MST)
de Eldorado dos Carajás, a comunidade indígena, vítima das barragens
das hidrelétricas, a população armada de Pinheirinho pronta para
enfrentar o batalhão da Polícia Militar paulista. Com esse foco nas lutas
de resistência e na violência da repressão, ele trabalha no sentido de
construir uma nova imagem para a história de um país que ainda costuma
cultuar seus «heróis» vindos de suas elites.
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Lais Myrrha estava representada em Empresa colonial com uma obra
intrigante chamada «O tempo corre para o norte» (da série Insólitosestáveis). Trata-se de uma ampulheta, na qual, de modo desconcertante
e antinatural, o lado cheio está na parte de cima e não escorre para a
metade de baixo, apesar de o canal entre as duas metades da ampulheta
estar desobstruído. Lendo a descrição da obra, entendemos sua física: ela
é feita com pó de ferro e ímãs. Mas a imagem desconcertante desafia
nosso olhar. Trata-se de um «insólito estável», tal como o é a continuidade da violência neste sul esvaziado de tempo... Por que o tempo corre
para o norte? Poderíamos responder, porque a mais-valia (o tempo-trabalho) também corre para o «norte», para os detentores do capital... Ou
mesmo a temporalidade do ócio, o ter tempo para não ter falta de
tempo, cada vez mais é uma qualidade do «norte», a qual a maior parte
das populações do «sul» não pode se dar ao luxo. Também, como vimos,
o tempo histórico é apanhado, apropriado e inscrito pelo «norte», restando ao «sul» a luta pela contra-inscrição de seu «tempo perdido». A
própria lei da gravidade é posta em suspenso por essa obra, ou seja: no
«sul», os direitos mais básicos são negados e suspensos para a maior parte
de suas populações. De modo sutil, Lais Myrrha mostra uma sobreposição entre violência e modernidade em suas obras. Sua recente exposição
individual na galeria Jaqueline Martins, O instante interminável (2015),
também confirma isso. Ela tinha como centro uma obra que consistia
em um disco de vinil no qual podia-se ouvir tanto o texto «O caráter
destrutivo» (1931), de Walter Benjamin, como o texto de Lina Bo Bardi
«Na Europa, a casa do homem ruiu» (1947). Ambos os textos tratam da
destruição e da violência como marcas da Modernidade. Esse mesmo
aspecto, de resto, também sustentou sua forte exposição Projeto
Gameleira 1971, que ela apresentou no Pivô, em 2014, que reconstituiu
o acidente ocorrido durante a construção de um prédio em Belo
Horizonte, assinado por Oscar Niemeyer, um dos maiores desastres da
história da construção civil no Brasil, e cuja narrativa também foi apagada dos anais da nossa história.
Empresa colonial, de resto, também possui uma obra que pode ser aproximada a esse Projeto Gameleira 1971 de Myrrha. Trata-se de «Brasília
Broadcast», de Beto Shwafaty. Novamente trata-se de uma estética de
ruínas feita para nos lembrar de obras faraônicas e da violência normalmente recalcada que envolve as suas construções. A obra consiste em
fragmentos de tijolos, concreto, pedra, ferramentas e um mastro de
madeira com um megafone em diagonal, meio de ponta-cabeça. Estamos
na cena de uma «construção», ou, mais precisamente, da desconstrução
dessa construção. Do megafone saem as palavras do último discurso que
Juscelino Kubitschek fez como senador, em 1964. Kubitschek já
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pressentia que a ditadura caçaria seus direitos políticos. É como se a
criatura engolisse seu criador: a lógica da grande política sendo sempre
a lógica da violência. Brasília surge como metáfora de uma política que
serve apenas aos próprios donos do poder. O grande símbolo da
Modernidade se revela alegoria da destruição.
Recordo que a arqueologia da violência de Brasília foi feita de modo primoroso por Rosângela Rennó em «Imemorial», de 1994. Nessa obra, ela
reuniu 50 fotografias a partir de um enorme arquivo abandonado que ela
encontrou no Arquivo Público do Distrito Federal referente à construção
de Brasília. Sabe-se que inúmeros trabalhadores, os chamados «candangos», morreram de modo trágico durante a obra, que pontuou o governo
do presidente Kubitschek: uma cidade construída em menos de quatro
anos, com explotação abusiva dos trabalhadores (com jornadas de 14 a 18 horas)
e repressão a bala das suas tentativas de organização e revolta. Com relação
a essa violência contra as lutas dos «candangos», é interessante notar que
na referida exposição no Paço de 2016 Jogo de forças, a obra de Clara Ianni,
«Forma livre» (2013), retoma as conhecidas e tristes entrevistas realizadas
com Niemeyer e Lúcio Costa em 1989 sobre um massacre ocorrido
durante a construção de Brasília em 1959, que ficou conhecido como
«chacina da Pacheco Fernandes» e teve o saldo de mais de 100 operários
assassinados pela polícia após uma greve. Lúcio Costa diz na entrevista que
esse evento é sem importância, apenas «espuma», que não dá a menor
importância ao fato e que ele ocorreu por conta de «excesso de liberdade».
Já Niemeyer nega terminantemente que o evento tenha acontecido. As
entrevistas, realizadas por Vladimir Carvalho, são apresentadas em off
enquanto vemos imagens do desenho do plano piloto de Brasília e fotos
da época da construção. Essa relação em rede dessas obras e curadorias
aponta para a virada mnemônica que se dá em nossa cena artística-cultural
(e Rennó, sem dúvida, sempre foi uma figura de ponta nesse movimento,
apesar de – ou justamente por – sempre insistir que é uma artista do esquecimento e não da memória).
Beto Shwafaty possuía outra expressiva obra na exposição do Caixa
Cultural. Refiro-me a seu «Aculturação (não) é integração I» (2015).
Essa obra lembra um totem (mais um canal de comunicação com a
exposição de Isabella Rjeille na galeria Leme) composto por um «pedestal» (um tubo de concreto desses que se usam em canalizações) sobre o
qual pousava um «vaso cerâmico» com a impressão de símbolos em
verde e amarelo, estilizados, que remetem ao logotipo da Vale do Rio
Doce. Essa sobreposição, somada ao nome da obra, sugere novamente
o apagamento dos rastros, a diluição das diferenças sob o signo da
monotonia do logotipo, que impõe um tipo, «o» tipo, em um país
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multilíngue e multiétnico. A Modernidade ganha ares de empresa fáustico-fascista – que deve ser enfrentada e desconstruída. E essa tarefa está
sendo enfrentada em grande estilo por esses artistas que, sem medo,
podemos chamar de neovanguardistas, por seu posicionamento explícito no campo de batalha sociocultural.
Outra obra de Shwafaty, que ficou ao lado da obra de Myrrha e no
mesmo corredor de «Quem não reagiu está vivo», como que dá continuidade a esse repaginamento da história feito por Lauriano. Shwafaty,
em «Anhanguera/Bandeirantes» (2015), coloca lado a lado as imagens
de dois monumentos, o que está no início da rodovia dos Bandeirantes
e o monumento a Anhanguera, diante do parque Trianon, em São Paulo
(obra de Luiz Brizzolara, de 1924). No texto que acompanha as imagens, ele explica a importância do sistema de estradas Anhanguera/
Bandeirantes para a economia do estado e, em outro texto, desmistifica
o culto dessas figuras históricas que dão nome às estradas. Shwafaty
também mostra, portanto, a continuidade entre a violência colonial e
nossa modernidade capitalista selvagem. Estamos, assim, novamente,
em plena cena literal do antimonumento, o contramonumento, e de
desconstrução e dessacralização dos mitos nacionais. Os Bandeirantes,
além de serem figuras centrais no mapa da memória de São Paulo, ao
nomearem duas de suas principais estradas, de serem homenageados por
esse monumento a Anhanguera e, entre tantos outros, pelo que homenageia o Borba Gato (talvez um dos mais terríveis documentos da nossa
produção estética fascista do século XX, de Júlio Guerra, 1963), de
serem figuras centrais comemoradas nos livros didáticos e em vários sites
na internet, estão também homenageados no maior monumento brasileiro, o «Monumento às Bandeiras», de Brecheret, inaugurado simbolicamente em 1954, no aniversário do quarto centenário da cidade. Ele
será abordado mais adiante.
Mas voltemo-nos agora para uma outra obra que é o exato oposto desse
peso descomunal do monumento às Bandeiras. Refiro-me às delicadas e
sutis obras de Clara Ianni, «Desenho de classe 4» (2014) e «Desenho de
classe 7» (2015). Essas obras são compostas, cada uma delas, por dois
quadros que consistem em uma folha de papel vegetal emoldurada. Nessas
folhas vemos o traçamento de tênues linhas. Em cada par de pranchas,
uma linha em meio ao branco da folha leva como «assinatura» uma informação sobre a «Renda Mensal». Ao inquirir sobre a obra ficamos sabendo
que ela tem como origem a pesquisa da artista em residências de São
Paulo. Os traços no papel vegetal reproduzem os trajetos que o patrão ou
a patroa e a empregada daquelas residências fazem ao se deslocarem para
ir ao trabalho. Em uma prancha vemos o trajeto de quem emprega e sua
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renda mensal, na outra o trajeto da empregada e sua renda mensal. A
relação que se percebe é que os salários mais baixos correspondem a trajetos de 10 a 20 vezes maiores que o dos habitantes da casa (os patrões) que
fazem percursos curtos. Essa inscrição literal dos traços e marcas das diferenças sociais, essa simbolização das diferenças e das fronteiras de classe
– um verdadeiro «desenho das classes» –, essa busca arqueológica das
linhas divisórias que constroem o Brasil, também estão no centro de outra
obra de Ianni, que está na exposição Jogo de forças, chamada justamente
de «Linha» (2013). Nessa obra, composta também por páginas predominantemente brancas com molduras em madeira, acompanhamos as linhas
identitárias do Brasil, ou seja, as marcas de sua história da violência, em
uma reductio ad absurdum. As linhas emblemáticas da história (natural da
violência) desse país eleitas por Ianni, como lemos também nas «assinaturas», são: Transamazônica, 1972, Brasília, 1960, República, 1889, Capitanias
Hereditárias, 1534 e Tratado de Tordesilhas, 1494 – esse último sendo uma
espécie de anúncio ou corte avant la lettre da futura Terra Brasilis. Dignos
de nota, como nessa história natural da violência dessa Terra, certos
topoi tornam-se paradigmáticos para esses novos artistas da memória do
esquecimento: a Transamazônica, a bandeira nacional, os Bandeirantes e
sobretudo Brasília.
E não esqueçamos, dentre esses topoi e agentes da memória (imagines
agens), do próprio traçado do mapa do país, que é reiterado em muitas
dessas obras. Assim, também em outra obra de Lauriano da mostra
Empresa colonial, vemos um mapa do Brasil pintado com giz branco,
mais especificamente, uma «pemba branca», giz utilizado em rituais de
umbanda, sobre «algodão preto». Com esse material, Lauriano fez questão de retraçar essa linha política, como parte de uma política do corpo
e de autoafirmação. Usurpando o poder de traçamento dos agentes
cartógrafos a serviço do poder, ele inscreve com pemba branca limites
ressignificados: o branco da pemba vira agente de inscrição das populações historicamente oprimidas. Seu título estampa em tom irônico:
«República (democracia racial)» (2015). E, novamente tensionando a
imagem com um texto, Lauriano estampa ao pé do mapa do Brasil uma
estrofe do «Hino à Proclamação da República», um verdadeiro monumento ao esquecimento, já que suas palavras (de autoria de Medeiros de
Albuquerque) perpetram: «Nós nem cremos que escravos outrora /
Tenha havido em tão nobre País... / Hoje o rubro lampejo da aurora /
Acha irmãos, não tiranos hostis».
Também dando corpo ao tema da «democracia racial» na Terra Brasilis,
Bruno Baptistelli apresenta em Empresa colonial outras duas obras em
cor preta – ou negra. Uma delas consiste em um retângulo de 150 cm
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x 200 cm em piche que foi depositado no chão, no centro da exposição.
Seu nome, também emblemático, é «Neutralização» (2015). Essa pavimentação, que paradoxalmente interrompia o trânsito dos visitantes
(pedestres) pela exposição, fazia com que o espectador olhasse «para
baixo» e tomasse cuidado por onde andava. Esse recálculo do andar,
como vimos na obra de Lucas Simões, «Recalque diferencial», nos lança
em um trabalho de elaboração de nossos fundamentos, do chão que
pisamos e no qual construímos nossos prédios de tijolos e de concreto e
também os simbólicos. Se a obra de Simões era pensada para se pisar,
essa de Baptistelli explorava ironicamente o «do not touch me» da arte
aurática. O não pisar o asfalto faz pensar que a rua é local perigoso e
feita para carros e não para pedestres, mas também recorda, como
o «Imemorial» de Rennó, os acidentados que jazem sob nossas ruas e
construções. A ausência de cores remete ao luto também, a uma tarja
que pode ser projetada sobre a cidade e a sociedade. Esse recorte de
cidade, como uma fotografia, a parte pelo todo, é índice de um campo
de forças, de um «progresso» que tem por mote a «força da grana que
constrói e destrói coisas belas», o «everybody knows that our cities were
built to be destroyed». No meio dessa paisagem mutante e agressiva, o
indivíduo desaparece e só resta o asfalto como «curativo» e meio de
esquecimento: neutralização das diferenças e das tensões. No trânsito
somos todos iguais – claro, se você possui um carro. Paz e silêncio pavimentando os conflitos. Ao lado dessa obra, o visitante podia observar o
outro trabalho de Baptistelli, chamado «Linguagem» (2015), que consiste em dois quadros (impressão em papel offset adesivada sobre pôster
de madeira). Os dois são inscrições que nos forçam a pensar cada vez
que queremos exprimir a «ausência de cores»: uma estampa a palavra
«NEGRO» e a outra «PRETO». Podemos dizer que a palavra negro está
escrita sobre o fundo preto ou negro e o mesmo valendo para a palavra
preto. Ao explorar a carga explosiva da linguagem, que se manifesta de
modo especialmente agudo sobretudo quando se trata de inscrever os
dramas raciais e de gênero, Baptistelli monta um poderoso des-construtor de linguagem. A afasia que decorre dessa obra (em preto sobre preto,
negro sobre negro, etc.) ecoa o não lugar da pessoa de pele negra/preta
na paisagem simbólica das construções e autoimagens forjadas pelas
elites de Terra Brasilis. O que é ser negro e ser preto? Como pensar as
infinitas gradações de tom? Aqui também vemos uma reductio ad absurdum das artes plásticas. O gesto de pintar com a ausência de cores e
reduzido aos tons de negro/preto é uma espécie de indicação de que
precisamos reaprender a falar, e isso vale também para as artes: linguagem. Essa redução, de resto, não por acaso marcou muitas obras do
expressionista abstrato Ad Reinhardt e foi reapropriada por Art
Spiegelman quando ele teve que fazer uma capa da revista The New
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Márcio Seligmann-Silva
Yorker apresentando o ataque das Torres Gêmeas em 2001. Também
Spiegelman optou naquela ocasião pelo black on black para expressar o
terror de alguém que, como ele mesmo, viveu aquele dia ao pé das torres que ruíam. O sucumbir do aparelho de representação das artes diante do terror exige que ele seja repensado e recriado.
Da exposição Empresa colonial comento, por fim, o trabalho de Rafael
RG «Vestimenta (autorretrato)» (2015). Por se aproximar da body art,
esse trabalho se destaca das linguagens predominantemente conceituais
das demais obras da exposição. Aqui temos uma foto de um falo amarrado em sua ponta e levantado por um cordão de fibra de árvore (buriti). Trata-se de uma vestimenta indígena frequente em muitas tribos
brasileiras. A foto, em close, não apresenta a face do artista, que utilizou
essa vestimenta durante uma semana, como em um ritual para se aproximar da cultura indígena. Esse quadro está colocado sobre um quadrado pintado com uma cor catalogada sintomaticamente com o nome
«pecado original». Sobre esse quadrado em cor, na ponta oposta ao
quadro com o retrato, vemos o próprio «estojo peniano» que o artista
utilizou em sua foto. Podemos apenas especular sobre o que Rafael RG
visou ao se travestir como indígena, representando esse papel, como que
literalmente abandonando as roupas da «civilização» a favor dessa vestimenta com profundos significados nas culturas indígenas. Para além do
papel do artista performer que ele encarnou, uma espécie de Dioniso,
que critica a cultura pela via da sua transgressão e rasura, também sem
contar um certo indigenismo romântico, herança do século XIX, que
reduz o indígena a um papel folclórico, o que vemos aqui é uma montagem de «restos». Tanto o estojo peniano é um resto (pars pro toto) de
uma cultura plural que antes dominava todo o continente americano e
que teve a sua população dizimada em uma proporção estimada de nove
para cada dez, como também um «resto» irônico do indigenismo e da
tentativa dos brancos de «representarem» os indígenas, seja nas artes,
seja na antropologia ou nas ciências. Nessa pequena instalação, Rafael
RG faz ecoar o longo processo de genocídio, de «emasculação» concreta
e simbólica de milhares de populações indígenas. O «pecado original»,
então, é não só o pecado bíblico que explica, nas culturas ocidentais, por
que temos vergonha de nosso corpo e utilizamos vestes, mas também o
pecado original da colonização. A pedra de toque da «empresa colonial»
correspondeu ao início do genocídio das populações indígenas no
momento mesmo em que os europeus «descobriram» a América. Esse é
o «pecado original» encenado nesse continente. Esse «pecado» é realizado sem que o testemunho indígena seja escutado. Eles ficam «sem testemunho», pois a sociedade não os quer ouvir. Em latim, vale lembrar,
testemunho é testis, termo que significa ao mesmo tempo «testículo».
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NOVA ARTE DA MEMÓRIA NO BRASIL
Sem testemunho, essa população tampouco pode ver suas histórias germinarem para viabilizar uma resistência a esse genocídio. As populações
indígenas estão, portanto, duplamente «castradas» e essa apresentação
fálica de Rafael RG, paradoxalmente, nos faz pensar nisso.
Com a participação de Erica Ferrari, Frederico Filippi, Raphael Escobar,
José Carlos Martinat e dos já mencionados Cildo Meireles, Regina
Parra, Clara Ianni e Jaime Lauriano, Totemonumento é uma exposiçãomarco, memento, na paisagem de nossas curadorias. Rjeille colocou o
tema da memória e sua inscrição no centro de sua exposição. Ela procurou refletir, com os artistas e suas obras, sobre o (novo) papel de uma
arte da memória que tem se desenvolvido nas últimas décadas (e, em
especial, muito recentemente no Brasil). Como vimos, o contexto desse
questionamento é o de novas e poderosas querelas que abalam com
sulcos profundos o nosso solo: sem-chão, tentamos caminhar e lançamos mão como apoio das novas modalidades de inscrição memorial das
artes. Sobretudo em um país sem tradição de inscrição da sua história
de violência e acostumado a se manter no paradigma da história monumentalizante, as artes têm um papel fundamental a desempenhar no
trabalho de inscrever criticamente as violências e esquecimentos passados e do presente. Elas devem servir de «tiro», de um projétil cujo
estampido deve nos despertar do sono do conformismo e de nossa história que apazigua e nega os conflitos. Nossos monumentos enfeitam
nossas praças lembrando «grandes» generais, presidentes, governadores,
prefeitos e outros «grandes» que fizeram com que associássemos os
monumentos à ideia de história dos vencedores, de triunfo, como vimos
acima com Benjamin, dando continuidade à tradição clássica da história
e de sua monumentalização como construção de modelos, de vidas
heroicas que deveriam ser cultuadas e mimetizadas. Glória e Fama são
as deusas que enfeitam os pedestais dos «grandes homens» (sim, as
mulheres também são excluídas dos triunfos, a não ser como enfeites e
coadjuvantes)2.
O Brasil é um dos poucos países do mundo a manter como o principal
e maior monumento (memento) de sua última ditadura um mausoléu
em homenagem ao seu primeiro presidente ditador. O mausoléu a
Castelo Branco, no Palácio da Abolição em Fortaleza, assusta aqueles
que procuram, hoje, soletrar questões advindas dos debates em torno
dos direitos humanos e das comissões de verdade. Esse monumento, no
2. Por falta de espaço, não posso comentar aqui cada uma das obras desta singular exposição.
Remeto os interessados ao site <http://galerialeme.com/expo/totemonumento/> (acessado
em 31/1/2017).
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Márcio Seligmann-Silva
entanto, não faz mais do que ecoar os outros tantos em nossas praças,
inclusive os que homenageiam os bandeirantes, como vimos acima. Já
as tentativas de erigir memoriais (e não monumentos) voltados para os
trabalhadores e populações vítimas da história, via de regra, terminam
na vandalização e destruição, total ou parcial desses memoriais. Esse foi
o caso do memorial «9 de Novembro», em homenagem aos três operários da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda,
William Fernandes Leite, Valmir Freitas Monteiro e Carlos Augusto
Barroso, mortos após invasão da usina por tropas do Exército, sendo
que o então presidente José Sarney autorizou os militares a invadirem
a usina. De autoria de Niemeyer (sim, já vimos um pouco as contradições desse senhor), inaugurado em 1 de maio de 1989, com a frase
gravada: «Um monumento àqueles que lutam pela Justiça e pela
Igualdade», no dia seguinte à sua inauguração uma bomba quebrou o
memorial ao meio. Niemeyer fez questão de mantê-lo parcialmente
destruído e acrescentou a frase: «Nada, nem a bomba que destruiu
este monumento, poderá deter os que lutam pela justiça e liberdade».
Também o Massacre de Eldorado de Carajás, recordado por Lauriano
em seu dispositivo de contra-história, quando 19 sem-terra foram
assassinados por membros da Polícia Militar do estado do Pará, teve
seu marco memorial, na cidade de Marabá, destruído poucos dias
após a sua inauguração. Também ele era de autoria de Niemeyer. Por
sua vez, no Rio de Janeiro, o monumento a Zumbi dos Palmares, na
Praça Onze, de 1986, é vandalizado todos os anos no dia da consciência negra... Já, por outro lado, o triângulo da memória de São Paulo, no
Ibirapuera, composto pelo Monumento às Bandeiras, pelo Obelisco
Mausoléu aos Heróis de 32 (de 72 metros de altura, do artista Galileo
Emendabili e do engenheiro Ulrich Edler), de 1970, e pelo monumento a Pedro Álvares Cabral (do arquiteto Agostinho Vidal da Rocha e do
artista Luiz Morrone), de 1988, continua de modo impassível a dar o
tom da autoimagem oficial (e não só) dos paulistas.
Diante dessa nova cena das artes brasileiras, só nos resta especular sobre
as suas potencialidades de renovação da força que marca nossa produção artística contemporânea. Essa novíssima geração, nascida em sua
maioria já em plena era da revolução cibernética e da internet, redescobriu a memória para além de suas próteses. Eles vão ao encontro desses
temas como em uma resposta que dão àqueles que, do passado (que só
existe no presente), voltam-se para nós com um pedido de que estejamos abertos para as suas imagens rasuradas e vozes caladas. Essas obras
são constructos que nos permitem vislumbrar o nosso mundo de forma
crítica, aprimorar a nossa linguagem e, sobretudo, treinar a nossa sensibilidade para os enfrentamentos (bio)políticos de nosso cotidiano. Sua
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NOVA ARTE DA MEMÓRIA NO BRASIL
estética da precariedade coloca em seu centro uma visão do ser humano
como um ser frágil, marcado por suas faltas, vazios e buscas. Ao invés
de ir ao encontro de heróis, ela molda novas sensibilidades a partir de
nosso desamparo fundamental. Também nesse sentido, essa arte
pode ser vista como uma técnica de vida essencial para nossos dias de
errância no precário e movediço campo político.
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prólogo de José Mujica. – 1ª ed . - Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
Nueva Sociedad: Friedrich-Ebert-Stiftung: ADLAF, 2017.
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ISBN 978-987-95677-9-1
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Blanke, Svenja, coord. III. Kurtenbach, Sabine, coord. IV. Mujica, José, prolog.
CDD 303
Primera edición: 2017
Corrección: Germán Conde, Vera Giaconi,
Kristie Robinson y Eduardo Szklarz
Diseño y diagramación: Fabiana Di Matteo
Fotografías de portada: Heinrich Sassenfeld, Shutterstock
© 2017 Fundación Foro Nueva Sociedad,
ADLAF, Friedrich-Ebert-Stiftung
Defensa 1111, 1º A, C1065AAU
Buenos Aires, Argentina
ISBN 978-987-95677-9-1
Queda hecho el depósito que establece la Ley 11.723.
Libro de edición argentina.