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HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES

2015, HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES

What is the role of art exhibitions in the constitution of a History of Art in Brazil? The initial idea for this publication came from the premise that exhibitions play a central role in the field of Brazilian visual arts, taking on different formats or privileging certain frameworks, which significantly affect the way of viewing and thinking about art and its history. The exhibition space also provokes a written reaction (criticism) to the presence of selected and situated works. From 1829 to 2009, the book covers outstanding exhibitions in the history of art in Brazil, with the contribution of several Brazilian professors and researchers. The essay "Exhibition as an interpretive machine", by Jean-Marc Poinsot, opens the volume.

1ª Edição 2015 Editores Denise Corrêa e Daverson Guimarães Capa Romulo Matteoni // 2mL Design Projeto gráfico e diagramação Romulo Matteoni + Amanda Pierantoni // 2mL Design Av. Pedro Calmon 550 – Térreo Rio de Janeiro – RJ Telefone: 2252-0084 CAIXA POSTAL 68544 – CEP 21941-972 RIO DE JANEIRO [email protected] www.riobooks.com.br _________________________________ Cavalcanti, Ana; Dionisio, Emerson; Couto, Maria de Fátima Morethy; Malta, Marize Histórias da Arte em Exposições: Rio Book’s / Faperj - 1a. Edição 2015 240p. Formato 16 x 23 cm ISBN 978-85-61556-68-6 978-859497-008-4 1. Urbanismo. 2. Espaço público. 3. Calçada. 4. Cafés - Paris (FR). 5. Bares - Rio de Janeiro (RJ). I. Título. 1. Exposições de arte 2. Modos de ver 3. Modos de exibir 4. Histórias da arte 5. Brasil CDD: 711 __________________________________ Todos os direitos desta edição são reservados a: Editora Grupo Rio Ltda. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocopias e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do editor. Os artigos e as imagens reproduzidas nos textos são de inteira responsabilidade de seus autores. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Sumário 7 Apresentação Ana Cavalcanti, Emerson Dionisio, Maria de Fátima Morethy Couto e Marize Malta 11 A exposição como máquina interpretativa Jean-Marc Poinsot 29 1829-1830. Jean Baptiste Debret e os conflitos das primeiras exposições do Brasil Elaine Dias 37 1879. Realizações e dilemas de arte brasileira do século XIX Sonia Gomes Pereira 49 1884. Dos velhos mestres à nova geração Ana Cavalcanti 61 1901. Exposição (de Visconti) na ENBA: artes e decorativas Marize Malta 77 1922. Semana de arte moderna: uma revisão crítica Annateresa Fabris 91 1944. Do pincel à Gilete: a arte moderna em Belo Horizonte Rodrigo Vivas 105 1949. A fotografia moderna chega ao museu: os Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas Helouise Costa 123 1951. Arte e internacionalização: a I Bienal Internacional de São Paulo Maria de Fátima Morethy Couto EXPOSIÇÕES 139 1965. Propostas para uma crise Paulo Reis 147 1967. IV Salão de Arte Moderna de Brasília: os últimos modernos Emerson Dionisio 157 1970. Do Corpo à Terra: exposição-limite Artur Freitas 175 1974. A rede em exibição: Walter Zanini e o MAC USP Cristina Freire 185 1978. A Bienal de São Paulo torna-se latino-americana Isobel Whitelleg 199 1984. Como vai você, Geração 80? De Orwell ao Parque Lage Ivair Reinaldim 213 1997. Bienal do Mercosul: Reescrever a História da Arte na América Latina Bianca Knaak 227 2009. Sobre a mostra Olhar e Fingir: Transtemporalidades na trilha da ficção fotográfica Fernando de Tacca 236 Referências 256 Sobre os autores Apresentação Ana Cavalcanti, Emerson Dionisio, Maria de Fátima Morethy Couto e Marize Malta O colóquio “Histórias da arte em exposições: modos de ver e exibir no Brasil” foi organizado pelo Grupo de Pesquisa História da Arte: modos de ver, exibir e compreender, que conta com docentes de diferentes instituições de ensino superior do país, juntamente com o Museu de Artes Visuais da Unicamp. Realizado entre os dias 23 a 25 de maio de 2014, no Auditório do Instituto de Artes da Unicamp, com o apoio da CAPES, da FAPESP, do FAEPEX/UNICAMP, o evento reuniu mais de trinta pesquisadores, entre conferencistas e comunicadores, devotados a compreender o lugar das exposições de arte para a história da arte. As conferências aqui reunidas trouxeram uma variedade de abordagens que ampliaram as possibilidades metodológicas de pesquisar a exibição da obra de arte frente às tradições de encenação e às historiografias autorizadas. Qual o papel das exposições de arte para a constituição de uma História da Arte no Brasil? O objetivo inicial deste projeto (colóquio e publicações) partiu da premissa de que as exposições desempenham um papel central no campo das artes visuais brasileiras, ao assumir diferentes formatos ou privilegiar determinados enquadramentos, que afetam de forma significativa o modo de visualizar e pensar a arte e sua história. Como indica Rosalind Krauss, o espaço de exposição, além de ser constituído como superfície contínua de parede para expor arte, é o lugar de uma reação escrita (a crítica) perante a presença de obras em seu contexto específico. É também o lugar implícito da escolha, em que tudo que é dele excluído acaba sendo marginalizado no plano do estatuto artístico. Essa prática passou a constituir um elemento tão fundamental do “pensar arte” atual, que as recentes narrativas historiográficas buscaram selecionar mostras cruciais para a representação do lugar e do papel de coleções e museus nas comunidades que os administram. Todo um modo de ver e de exibir foi constituído após a modernidade para sustentar as narrativas elementares da História da Arte e seus nexos com a cultura de massa, os jogos e as trocas simbólicas tão caras à manutenção do estatuto do artístico que herdamos. Da mesma forma que as exposições de arte ocuparam um papel crucial na escrita da História da Arte e nos delineamentos das políticas de gestão de acervos, o modo de estudar a exposição também se alterou. Nos anos de 1980, segundo Jean Davallon, no- HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES vos trabalhos passaram a considerá-la uma prática não aleatória, que utiliza estratégias e técnicas próprias para apresentar e dar a conhecer obras de arte e outros artefatos. Essas abordagens transformaram a exposição numa produção cultural específica, dotando-a de uma genealogia e destacando sua intencionalidade ideológica. A exposição tornou-se um “palco” privilegiado para a reapresentação das obras, em arranjos curatoriais distintos e novas hierarquias. A partir das primeiras exposições da Academia Imperial de Belas Artes, instituiu-se lentamente um espaço público para a arte produzida no Brasil, e que lhe conferiu uma finalidade social: para apreciar arte não era mais preciso encomendá-la ou comprá-la. Se o caráter instrutivo da exposição é evidente nos oitocentos, no século XX agregam-se outras possibilidades a esses eventos: o desejo de ruptura (Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922); a internacionalização (I Bienal Internacional de São Paulo de 1951); ou, ainda, uma demanda do mercado de arte (Como vai você, Geração 80? de 1984). Longe de querer consolidar os cânones, uma vez que, por relações indiretas, eles já estão dados, desejamos revê-los, discuti-los e ressignificá-los, desenvolvendo outras narrativas, a partir de formas de ver e exibir, que provoquem um olhar crítico sobre a história da arte que contribui para nossos modos de compreender a arte no Brasil. Campinas, setembro de 2014. Ana Cavalcanti, Emerson Dionisio, Maria de Fátima Morethy Couto e Marize Malta. 8 A exposição como máquina interpretativa* Jean-Marc Poinsot Com suas revistas (Manifesta Journal, The Exhibitionist), seus estudos monográficos (coleção Exhibitions Histories, after all1) e obras de síntese (como as de Bruce Altshuler), suas antologias (Die Kunst der Ausstellung, 1991, Thinking about exhibitions, 1996), suas re-encenações (de Stationen der Moderne, Berlin, 1989 à When attitudes become form, Venise, 2013), suas monografias sobre instituições (O MoMA segundo Marie Anne Staniszewski, A Documenta, A Biennale de Veneza, Os Kunsthallen), os escritos ou falas de curadores (Harald Szeemann, Arnold Bode, Jean-Hubert Martin, Hans Ulrich Obrist, Walter Zanini),2 a história das exposições tende a se impor como um novo campo ligado à história da arte, mas com um uso social e científico parcialmente diferente. Em função dos grandes museus que organizam seminários e colóquios, dos curadores de exposição que se preocupam com questões curatoriais, dos cursos universitários que preparam profissionais para este métier, a história das exposições parece ter encontrado uma legitimidade e uma dinâmica que outras grandes questões ou sub-campos da história da arte ainda não conheceram. Mas deve-se reduzir a história das exposições aos acontecimentos excepcionais que algumas vanguardas puderam imaginar ou organizar, grandes etapas da história da arte moderna, como testemunham algumas manifestações ou livros? Essas produções trazem certamente consigo esta convicção, mas seus objetos de estudo foram quase inteiramente produzidos sem curadores, enquanto que o que nutre atualmente a atenção consagrada a essa história parece ligar-se à emergência do que chamamos de curators,3 às apresentações por eles organizadas e que eles reivindicam como um discurso que teria regras próprias, ao lado das narrativas dos historiadores da arte ou das análises dos críticos. Se o conjunto do campo parece dar uma certa impressão de homogeneidade, ele é na verdade bastante diversificado. Não mencionei os estudos propriamente monográficos, nem certas abordagens sociológicas, comunicacionais ou educativas, tampouco setores inteiros da história cultural que se focam na história das grandes exposições com vínculos muito distantes com a história da arte, como as exposições universais, os salões comerciais temáticos, as exposições coloniais. Negligenciei ainda os trabalhos sobre a crítica institucional, que não devem ser deixados de lado. A verdade é que ainda se levou a cabo uma reflexão epistemológica sobre a extensão do campo entre a história cultural, em sentido alargado, e as tomadas de posição muito HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES específicas, desenvolvidas em uma prática não muito distante da ação de um curador em relação com um ou mais artistas, apesar da abundância de textos teóricos e dos novos estudos monográficos. Essa reflexão situa-se, no momento, entre a reflexão estética, da “estética institucional” de Georges Dickie4 à “partilha do sensível”, tão cara a Rancière, e as tentativas de novas abordagens que vêm transformando significativamente a história da arte. Inegavelmente, houve um momento na história no qual passamos de uma narrativa bastante convencional sobre os salões, sua organização institucional, a análise das obras expostas e da recepção crítica, para uma abordagem totalmente diferente do objeto exposição. Deve-se esta evolução tanto ao próprio objeto em questão – a exposição ou obra cujos parâmetros foram profundamente modificados em função da adoção do tempo, do espaço e da sociabilidade da exposição como formato de trabalho –, quanto à maneira pela qual interagem todos os atores da arte, profissionais ou não, e à abordagem sincrônica, que foi encorajada pela perda das referências de periodização e de enquadramento cultural, consequência da crise pós-moderna e da globalização. Enfim, as exposições, graças ao desenvolvimento do arquivo, que a desmaterialização torna ainda mais acessível, transformaram-se em discursos reproduzíveis e em memórias mutantes de tudo aquilo que elas estimulam como experiências humanas e valores culturais. Sem renunciar a esta reflexão epistemológica, gostaria de discutir a maneira pela qual a exposição tornou-se o lugar e a moldura das transformações de nossa maneira de ver e de compreender, na mesma medida em que a exposição é um aparato interpretativo complexo, que interage com todos os componentes sociais envolvidos na arte. Esta primeira proposta, no entanto, ainda não está suficientemente caracterizada, pois poderíamos considerar igualmente as exposições universais e os salões temáticos como máquinas interpretativas e didáticas que permitem introduzir na sociedade objetos, usos sociais e outros fenômenos solicitados de maneira intencional ou não. Assim, por exemplo, vimos, no âmbito das exposições universais, e em seguida, nos salões especializados, a introdução do alumínio nos utensílios de cozinha ou um conjunto de objetos e eletrodomésticos transformando a vida das famílias e, paralelamente, iniciar-se o aprendizado do valor simbólico dos objetos do quotidiano que Barthes, Eco, Baudrillard e outros analisaram em seu tempo. Em Malaise dans l’esthétique, Jacques Rancière procura demonstrar a passagem de uma estética de classe para uma partilha do sensível para todos. Como ele explicita, “a distância estética servia para dissimular uma realidade social marcada pela radical separação entre os ‘gostos de necessidade’ próprios ao habitus popular e a problemática da distinção cultural reservada somente àqueles que tinham recursos”.5 Ele invoca em seguida a Revolução, que teria acelerado a “constituição de um público novo, indiferenciado”, passando rapidamente sobre a afirmação da autonomia da arte, a qual manteve separados, por um longo período, o registro das utilidades e da alta cultura, até que a indústria cultural as juntou de novo. Rancière não tinha por objetivo pensar em termos de história, mas é evidente que a separação dos regimes da estética do consumo e da estética do deleite, que Clement Greenberg claramente tentou manter, constituiu 12 JEAN-MARC POINSOT um modelo de observação daquilo que era dado a ver. Bem antes de Greenberg, Lafon de Saint Yenne, autor da primeiríssima obra crítica sobre um salão, em 1747, intitulada Réflexions sur quelques causes de l’état présent de la peinture en France, afirmava, já na introdução, sua intenção de avaliar as obras e de ajudar o público ignaro a formar julgamentos menos bizarros. Tal empreitada, como assinalaram diversos historiadores da arte, traduziu-se em um boicote ao salão de 1749 pelos artistas que não gostariam de ser avaliados. O que o poder que instaurou os Salões com o objetivo de supervisionar o trabalho dos artistas não previu inicialmente é que o único fato social da exposição foi o de convidar qualquer um a se aventurar na apreciação estética, mesmo se uma delegação autoproclamada da crítica de arte tivesse desejado reservar para si esta prerrogativa. Este simples fato permite mensurar a dinâmica própria que a exposição engendra, excedendo muito rapidamente sua finalidade inicial e justificando assim o interesse que temos pelo objeto exposição. Sem me deter sobre as etapas dessa história, gostaria de voltar a um exemplo bastante comentado, aquele da Documenta 5 de 1972, cujo programa, formulado por Harald Szeemann, pareceu inaceitável e suscitou as reações de Robert Smithson e Daniel Buren. “A dominação cultural, escreve Robert Smithson, surge quando um curador impõe seus próprios limites a uma exposição de arte, ao invés de pedir ao artista que coloque seus limites. Espera-se que os artistas se adaptem a categorias fraudulentas”.6 Neste texto, o artista resolvia de forma mais abrangente seus conflitos com o conjunto de instituições artísticas e culturais, da galeria ao parque de esculturas: “uma vez que a obra de arte é totalmente neutralizada, ineficaz, abstrata, segura, e lobotomizada politicamente, ela está pronta para ser consumida pela sociedade”. Há nessa fala muito de ingenuidade, como se a obra pudesse existir em um “espaço infinito” e sem coerção, ao qual Smithson assimilava a natureza. Nesse sentido, ele retomava a posição dos pintores do século XVIII, ultrajados pelas afirmações de Lafont de Saint Yenne, e exprimia sua recusa em ver seu trabalho ser assimilado por um dispositivo de interpretação constrangedor. A Documenta 5 era efetivamente uma pesada máquina interpretativa, construída sobre um modelo quase antropológico, mas no qual os trabalhos propriamente artísticos não se encontravam presos em um dispositivo mais conceitual do que aqueles de outras manifestações contemporâneas. Não se pode dizer que “Idée+Idée/lumière”, seção na qual figurava Smithson, tenha sido uma coerção “estilística” ou uma denominação crítica exigente, a não ser na escolha seletiva e valorativa dos artistas. Além disso, a delegação da curadoria desta seção, e de seu acompanhamento crítico, a Konrad Fischer e Klaus Honnef, distanciou-se razoavelmente do enquadramento conceitual de Szeemann. Ou seja, o que pareceu inaceitável foi a reivindicação de Szeemann em ser um super intérprete, um produtor intelectual em sua concepção geral da exposição, que incluía um número significativo de categorias mais culturais do que artísticas. A apresentação, em uma mesma exposição, de imagens de cédulas de dinheiro, de propaganda política ou ainda de objetos kitsch ao lado de obras recentes de uma seleção mundial dos artistas os mais representativos do momento, ou seja, utilidades e “arte” lado a 13 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES lado, parecia mais intrusiva do que as temáticas reservadas à arte contemporânea. Na realidade, antes de Szeemann vários críticos e curadores tinham reunido, sob denominações criadas por eles, uma seleção de artistas e obras que contribuíram a inscrever estes mesmos artistas em categorias reconhecidas como estilísticas, isto é, dotadas de qualidades compartilhadas a serem identificadas prioritariamente, antes de qualquer leitura ingênua e indeterminada. Ora, se nos referimos à lista de exposições coletivas que Harald Szeeman estabeleceu com grande cuidado para cada artista exposto, e para Smithson em particular, encontramos diversas outras categorias, como Focus on light, Minimal art, Earthworks, Conceptual art/Arte povera/Land art, Information, When attitudes become form, que induzem cada uma a diferentes leituras possíveis. Lawrence Alloway, ex-curador do museu Guggenheim de Nova Iorque, em seu texto dedicado ao declínio da curadoria de exposição, diagnosticou essa crise como a consequência da pressão dos artistas, dos marchands e dos colecionadores sobre os diretores de instituição. Ele denunciava o abandono de qualquer ponto de vista crítico. Em sua opinião, a expressão deste ponto de vista devia ter lugar em um ensaio de introdução ao catálogo, catálogo este que, além disso, parecia-lhe mais durável que a exposição. Escrito em 1975, seu texto não incorporava os debates em torno da Documenta, mas se concentrava apenas nas práticas norte-americanas. Alloway se queixava em particular de Dan Flavin, que havia imposto a seu curador em Toronto a renúncia a qualquer interpretação, e exprimia nesses termos sua concepção do papel do curador de exposição: Uma grande exposição não é simplesmente um espelho voltado a um artista que é assim revelado objetivamente. O curador está presente, seja como intérprete, com um ponto de vista crítico, ou como agente de outra pessoa. Se ele encontra-se na segunda posição, ele pode ser considerado um servidor do artista ou escravo do mercado (por crítica, entendo um ponto de vista que é pensado, fortemente argumentado e comparativamente verificável).7 Portanto, não foi sem motivo que citei sucessivamente os críticos, os artistas, os curadores e implicitamente os marchands e os colecionadores. Eles todos têm algo a dizer em uma exposição que é, ao mesmo tempo, a apresentação de obras de arte, uma proposta curatorial e/ou crítica e um jogo de influência do marchand e de seus colecionadores, face a um público que está sempre lá e que tem também algo a dizer. A dificuldade para o observador é que o conjunto desses protagonistas age por conta própria e contribui para a produção de sentido e de valor da proposta. Enquanto máquina interpretativa, a exposição transforma ao mesmo tempo as obras, os olhares e a sociedade, e essa operação, relativamente incontrolável, adquiriu no curso do século XX a capacidade de ter continuidade sob a forma da re-encenação. Voluntária ou involuntariamente, o artista tira suas consequências disso e os mais hábeis são aqueles que sabem produzir obras resistentes à interpretação rápida e unívoca demais sem desencorajar o exercício interpretativo. Como primeiro exemplo dessa dinâmica própria da exposição, gostaria de retomar a contribuição de Malevitch à exposição 0,10, última exposição futurista, de 1915. Ela aparece como um exemplo emblemático daquilo que poderíamos chamar de mais 14 JEAN-MARC POINSOT valia da exposição, a tal ponto que, provavelmente, sua interpretação excedeu aquilo que poderia ser normalmente deduzível de uma atenta abordagem comparativa das montagens de Malevitch. Não vou refazer a ofegante narrativa desta exposição em suspensão, na qual Tatlin e Malevitch esperaram até o último momento para pendurar seus trabalhos e surpreender o público e os colegas. Gostaria somente de colocar em evidência, baseando-me no livro que Linda S. Boersma, em 1994, dedicou à exposição de Petrogrado, o questionamento sobre o Quadrado Negro8 tomado na perspectiva da multiplicidade de possibilidades de interpretação. Sua informação bastante precisa e rica em fontes de arquivo se apoia em um recorte de imprensa que reproduzia uma vista bastante parcial, na qual o quadrado negro estava cortado em três quartos. Atualmente, todos os livros sobre a história das exposições reproduzem o que foi provavelmente o clichê original, com enquadramento muito maior e onde o quadrado negro aparece com grande destaque. Linda Boersma assinala que Malevitch, nos textos que preparou para a exposição, não menciona explicitamente este Quadrado Negro. Ela afirma igualmente que tudo leva a crer que a colocação deste quadro correspondia bem ao ângulo interior direito da sala principal da casa na qual os russos tinham por hábito colocar o ícone, mesmo que essa não tivesse sido necessariamente a intenção de Malevitch ao pintar o Quadrado Negro. Ela cita a crítica que Alexandre Benois publicou no início de 1916: Pendurado no alto em um ângulo, abaixo do teto, em um lugar sagrado, encontra-se a ‘criação’ sem sombra de dúvida do mesmo Sr. Malevitch que representou um quadrado negro sobre fundo branco. (...) Quadrado negro sobre fundo branco não é uma simples piada, uma provocação, não se trata somente de uma anedota que foi produzida no Champ de Mars. É um ato de afirmação – um princípio de vil desolação. Por sua frieza, sua arrogância e sua dessacralização de tudo o que amamos e cultivamos, este quadrado exibe sua aspiração que leva à desconstrução.9 O texto de Linda Boersma condensa, como o fazem numerosos historiadores da arte, o contexto cultural no qual se encontra esta montagem, as leituras críticas e as tomadas de posição de Malevitch antes, durante e bem depois da exposição, em uma análise que parece se focar e se tornar mais complexa sem insistir sobre o caráter inconciliável do espaço tradicional da casa e o da parede de exposição, que era então menos qualificado na Rússia do que, por exemplo, em Colônia, quando da exposição do Sonderbund de 1912. Ora, foi no horizonte do caráter inconciliável desses espaços, entretanto condensados em uma única imagem de arquivo, que artistas como David Diao viram uma ocupação sintomática do “cubo branco” modernista avant la lettre, onde o Quadrado Negro não é senão um detalhe em uma constelação de formas espalhadas no conjunto das paredes, detalhe que contribuiu para transformar esta agregação em um signo organizado. Mas esta mudança de foco do olhar não foi somente consequência da exposição tal como Malevitch a montou. Se é em seu espaço social e sensível (uma competição na ocupação do espaço de um ângulo) e sua memória registrada pela fotografia, conside15 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES rada sob o aspecto da montagem e não mais apenas do único registro das obras presentes, que se dão as leituras que mudaram o olhar do particular (um Quadrado Negro) ao conjunto das pinturas suprematistas, é também nas releituras bem mais tardias, em sua relação com as montagens do quadrado negro feitas por Malevitch em outras circunstâncias, que se operou uma espécie de transubstanciação. A montagem do quadrado no lugar do ícone fez esquecer que, à diferença das montagens modernistas, a de Malevitch era ainda baseada sobre o modelo dos quadros inclinados para o espectador e não sobre o modelo que iria se impor com a montagem diretamente sobre a parede. Assim, o que nos parece o início da montagem modernista é provavelmente o resultado de uma série de sobreinterpretações de uma montagem bastante tradicional, mas judiciosamente utilizada. O próprio modelo de uma mutação do olhar pela exposição se inscreveria em uma espécie de deriva teleológica que deveria ser corrigida. A exposição 0,10 era uma exposição sem curador, no sentido de um responsável por um discurso curatorial, não foi este o caso da exposição When attitudes become form, de 1969, mas ela também se beneficiou de candidaturas múltiplas à sua reinterpretação, induzidas por seu próprio sucesso. Gostaria apenas de assinalar o caráter paradoxal da situação engendrada por sua retomada, sob a curadoria de Germano Celant, no âmbito da Bienal de Veneza de 2013. Com efeito, entre as exposições que aconteceram com alguns meses de intervalo, com contribuições de artistas assimilados desde então à arte conceitual, à land art e à arte povera e outras tendências que haviam surgido há alguns anos, ou mesmo alguns meses, ocorre que lembramos mais de When attitudes become form do que de Op Losse Schroeven, preparada em paralelo em Amsterdã, e de Conceptual art arte povera land art, organizada no ano seguinte por Germano Celant em Turim.10 Somente porque a exposição de Berna agrupava em um mesmo conjunto uma série de trabalhos que Szeemann não queria julgar ou qualificar a forma final. Ele escrevia em seu curto prefácio: “Até o presente, os líderes e as montagens não fazem falta a esse fenômeno complexo (...) As denominações propostas: ‘Anti-forma’, ‘Arte micro-emotiva’, ‘Possible Art’, ‘Impossible Art’, ‘Concept Art’, ‘Arte povera’, ‘Earth Art’, tocam sempre em um único aspecto: a aparente oposição à forma, o grau elevado de engajamento pessoal e emocional, a designação das coisas enquanto arte”. Adiante, ele justificava o título de sua exposição: “na arte de hoje, o tema principal não é a realização, a moldagem do espaço, mas sim a atividade do ser humano, do artista, o que explica o título da exposição (uma frase e não um slogan). É a primeira vez que a atitude intrínseca do artista é apresentada, e de modo preciso, como obra”.11 A inteligência de sua abordagem, que mudou verdadeiramente os olhares, estava em sua recusa em enquadrar os trabalhos em denominações e classificações estilísticas em um momento no qual a inflação desses termos testemunhava o fracasso desse modelo. Colocar a ênfase sobre as atitudes permitia também agregar os artistas mais atentos aos processos do que aos objetos finais. As escolhas de Celant, mais restritivas e mais enquadradas – ele próprio havia forjado o termo de arte povera – não davam lugar a artistas como Franz Erhard Walther, por exemplo, que animou tão especialmente o 16 JEAN-MARC POINSOT vernissage de When attitudes become form e cujo trabalho soube até hoje manter o foco na atitude mais do que no objeto. Não acredito que o conjunto das obras expostas em Berna, acrescido de adições de Celant no palácio veneziano da Fundação Prada, pôde restituir a dimensão aberta dos trabalhos apresentados e seu entrelaçamento no espaço razoavelmente atravancado por esta invasão desrespeitosa. No catálogo de 2013, Celant responde a uma série de questões em um texto introdutório e em uma montagem de perguntas/respostas. Ele afirma especialmente que “A exposição é um ‘remake’ que é ao mesmo tempo uma homenagem a Szeemann e uma proposta autorreferencial, se não autobiográfica, a implicação em uma situação que eu havia pessoalmente compartilhado”.12 Em outros termos, Germano Celant, ao interpretar a partitura de Szeemann, não pôde escapar, apesar da reivindicação de um trabalho didático e documental elaborado, da tentação que consiste em retocar um pouco a história. Assim, por exemplo, ele destaca o esquecimento cometido pelos historiadores e comentadores dos trabalhos expostos no Schulwarte - prédio situado em face da Kunsthalle e diante do qual, por ocasião da inauguração, havia sido colocada a tribuna onde foram pronunciados os discursos –, para justificar a inclusão das obras de Emilio Prini, Pierpaolo Calzolari, Pino Pascali, e Janis Kounellis, figuras maiores da arte povera, que haviam sido retidas na alfândega. Mesmo se em um projeto de reconstituição fiel, é sempre difícil refazer a lista completa dos artistas, pois enquanto alguns foram apresentados somente na documentação, outros estiveram ausentes por razões independentes do curador, outros, enfim, participaram naquele momento como clandestinos. A verdade é que, na reencenação de Celant, a retomada mais parecia um palimpsesto. A convocação no catálogo de uma série de historiadores, curadores e teóricos que não estavam presentes em Berna em 1969 não foi suficiente para mascarar as liberdades tomadas em uma re-escritura que se queria objetiva. Assim, para além das questões de fundo da remontagem de When attitudes become form que Celant levanta com razão, é verdade que toda curadoria de exposição é um trabalho de interpretação e aqui o historiador não pode se esquivar de mostrar seus limites. As adições, na realidade, contribuíram mais para um “melhor” conhecimento da contribuição de Celant à história do final dos anos 1960 do que melhoraram o conhecimento profundo da obra de Szeemann. Em sua versão inicial, a dinâmica de When attitudes become form era o resultado de um modo de leitura aberto, desejado e reivindicado por Szeemann, modo este que não encontrou na história daquele momento, entre os críticos, adversários capazes de competir com ele. A força dessa exposição consistiu na escolha de um “conceito curatorial” que mais abria a interpretação do que a canalizava em categorias limitadoras; a reencenação de Celant, embora tenha sido inquestionavelmente positiva para um grande público, revela as dificuldades e os limites inerentes a este tipo de exercício. Em defesa de Celant, deve-se reconhecer que esta curadoria, realizada após o falecimento de Szeemann, não lhe permitiu esquecer totalmente sua posição de ator e de concorrente, passado e presente, e de resistir à tentação de fazer pequenas alterações à história. Sua atitude é 17 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES compreensível e não abusou completamente do espectador, como me parece ter sido o caso em dois exemplos igualmente recentes. O primeiro concerne à reconstituição duvidosa realizada por ocasião de uma exposição sobre escultura inglesa na Royal Academy de Londres, em 2011. Ao entrar no hall da Royal Academy, o visitante encontrava em seu caminho uma construção em pedra que trazia sobre um de seus lados uma placa em que se lia: Merzbarn, at Cylinders, Elterwater, Cumbria, 1947, replica created for the exhibition, 2011 The original Merz Barn at Cylinders is maintained by the Littoral Trust, for more information visit www.merzbarn.net. Ora, o que nos propõem os organizadores desta exposição é apenas uma reconstituição nova e sem interesse de uma granja cuja parede interior, trabalhada por Kurt Schwitters em 1947 com uma bolsa do MoMA, fora retirada em 22 de setembro de 1965 para ser conservada na Hatton Gallery, em Newcastle, sob a iniciativa de Richard Hamilton, que descobrira esta granja abandonada. A granja original foi restaurada com uma parede nova a fim de ser visitada, sem que nada ali houvesse para ver além da construção. Em outros termos, é uma construção sem interesse nem valor, que foi colocada ali, no hall, sem nada mostrar do trabalho de Schwitters que permaneceu na galeria Hatton, onde está definitivamente instalado. Exemplo lamentável da confusão entre o recipiente e o conteúdo, que demonstra que se a história da arte soube recuperar um lugar para trabalhos que haviam desaparecido ou que não são mais acessíveis, não se tem certeza de que isto tenha mudado a maneira de ver de alguns curadores fetichistas, provavelmente muito orgulhosos de sua proeza. Para completar meu florilégio de erros monumentais, parece-me indispensável evocar a reconstituição e exposição do atelier londrino de Francis Bacon em Dublin. O atelier, ocupado por Bacon de 1961 até sua morte, em 1992, foi doado em 1998 à Dublin City Gallery The Hugh Lane. Bacon havia ali acumulado papéis, obras que lhe serviam de documentação, obras em curso ou destruídas. O conjunto daquilo que se encontrava nesse local, incluindo-se o solo, foi piamente inventoriado em uma base de dados de 7.000 referências. Barbara Dawson, diretora do museu, afirmou, no texto de apresentação da exposição realizada em 2009 sobre o atelier, que “ele (o atelier) compreendia pinturas recentemente descobertas, que se acreditava terem sido destruídas pelo artista. Tais descobertas exigiam uma reavaliação do artista e de sua prática”.13 A exposição de Dublin compreendia, portanto, obras acabadas ou inacabadas ainda desconhecidas, numerosas páginas de imagens em péssimo estado de conservação que haviam sido recortadas por Bacon de livros ou jornais para servir de modelo ou por diversas outras razões, fotografias dobradas, rasgadas, manchadas de pintura, e um conjunto de telas cujo motivo principal havia sido recortado com um estilete para indicar claramente a sua destruição. Todos estes elementos figuravam em salas conjugadas à reconstituição do atelier que podíamos apenas entrever por pequenas aberturas envidraçadas. Compreende-se a problemática da obra de um artista que figura entre os valores de mercado mais altos do século XX, admite-se também que o investimento realizado pelo museu em sua arqueologia da “bagunça” acumulada pelo artista encontre alguma 18 JEAN-MARC POINSOT espécie de retribuição, mas me parece inadmissível expor sistematicamente uma sala inteira de quadros destruídos como se fossem obras-primas ausentes a reinventar. Os curadores poderiam limitar sua apresentação a um ou dois exemplos, a título de documentação e não a uma sala inteira. Um artista morto, um detentor de direitos autorais, marchands e críticos “escravos”, como teria dito Lawrence Alloway, contribuíram amplamente para tornar possível esta interpretação complacente dos restos materiais do atelier. A exposição atualmente permite mostrar tudo e é claro que há um mercado que se beneficia deste exibicionismo excessivo. Também em nome do direito à crítica, ou seja, a uma interpretação, a uma maneira de ver diferente, eu defenderia que esquecêssemos este exemplo de exposição ou, de preferência, que fizéssemos dele o modelo do que convém evitar, mesmo na cidade natal do artista. Após ter colocado em destaque exemplos cuja maneira de ver é contestada ou contestável entre os diferentes protagonistas devido à irrupção de atores não solicitados no processo de organização da exposição – críticos rejeitados pelos artistas; marchands e os interesses que eles representam denunciados pelos curadores de exposição; ou a interiorização de uma lógica de economia turística abusiva; a apropriação mistificadora pela retomada de uma exposição apresentada como homenagem –, gostaria de abordar vários exemplos nos quais as diferenças de ponto de vista, tanto no sentido próprio como no sentido figurado, são solicitadas pelos autores da exposição. O primeiro exemplo é o de uma exposição que continua ainda hoje a causar polêmica, tamanha foi sua intenção em propor um novo paradigma ao mesmo tempo cultural e estético. Trata-se de Magiciens de la terra, organizada por Jean-Hubert Martin em 1989 na Grande Halle de la Villete e no Centro Pompidou em Paris. Esta exposição adquiriu uma notoriedade recente com duas publicações: em 2013, a monografia organizada por Lucy Steeds, na coleção Exhibitions Histories; e em 2012 a coletânea de escritos de Jean-Hubert Martin, intitulada L’art au large, que antecipava a releitura do evento de 1989. Solicitado a assumir a Bienal de Paris, cuja última edição, em 1985, fora um relativo fracasso, Jean-Hubert Martin concebeu um projeto atípico que consistia em sair dos modelos dominantes em curso no domínio da arte contemporânea e da arte em geral. “A ideia comumente aceita de que só há criação no campo das artes plásticas no mundo ocidental ou fortemente ocidentalizado deve ser atribuída aos resquícios da arrogância de nossa cultura”,14 escreveu ele no prefácio. Passar dessa convicção profunda a um conceito de exposição se deu na base de uma escolha de artistas não ocidentais (e não uma simples seleção de objetos) aos quais estavam associados um número igual de artistas ocidentais. Ao fazer isso, ele insistiu sobre uma particularidade de seu projeto, que consistia em tratar os artistas não ocidentais, dos quais um grande número não havia jamais saído de seu contexto tribal, da mesma maneira que os artistas ditos contemporâneos. Assim, a maioria dos artistas foi convidada para ir a Paris, para ali elaborar sua contribuição. Magiciens de la terre se inscrevia na sequência das reações muito negativas e procedentes suscitadas pela exposição Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and 19 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES the Modern realizada em Nova Iorque em 1984. Sally Price, em Arts primitifs, regards civilisés (1989), e James Clifford, em Malaise dans la culture (1988), evidenciaram o modo como os artistas africanos ou tribais haviam sido ignorados como criadores individuais e como os objetos que eles produziram foram então tratados sem seu consentimento. Apoiando-se nos escritos desses artistas, Jean-Hubert Martin defendia posição inversa à de William Rubin, buscando restituir o direito deles à palavra, integrando-os na comunidade da arte contemporânea. Essa tomada de posição levou-o a efetuar sua escolha de artistas em um registro baseado na mais forte alteridade, escolha que ele preservaria nas numerosas exposições das quais foi curador de 1989 até hoje. Ele também disse no debate que teve com Benjamin Buchloh a respeito da exposição: “eu quero mostrar tanto quanto possível o máximo de fenômenos divergentes, a fim de que a exposição manifeste uma riqueza heterogênea”.15 Com o propósito de respaldar seu golpe contra os cânones implícitos da arte contemporânea, ele associou à redação do catálogo um certo número de personalidades que se fizeram notar por suas posições, tais como Jamis Cliffort e Sally Price, dois antropólogos já citados, Rasheed Araeen, fundador de Third Text, primeira revista consagrada à desconstrução dos paradigmas estéticos ocidentais, entre os primeiros divulgadores das teorias pós-colonais em arte, Pierre Gaudibert, curador de arte contemporânea que focara suas atividades sobre artistas à margem do mundo ocidental, Hohmi Bhabha, teórico então situado entre os estudos culturais e pós-coloniais, Thomas Mc Evilley, crítico e conhecedor da arte indiana da Ásia, autor de uma crítica virulenta a Primitivism. Estes autores de textos para o catálogo e para a publicação paralela de dois números do Cahiers do musée national d’art moderne e de Third Text estavam longe de ter análises idênticas, mas a força de Jean-Hubert Martin foi a de associá-los à reflexão da qual ele era o porta-voz. O debate crítico que acompanhou a exposição, embora tenha sido aberto por autores bastante qualificados, acabou também por exprimir um conjunto significativo de posições reacionárias baseadas em ideias preconcebidas e em clichês que a própria exposição desmentia. Jean-Hubert Martin, que havia conseguido mobilizar meios excepcionais, sabia o que o esperava e havia antecipado, em sua entrevista com Buchloh: esta exposição, como veremos, suscitará um grande número de questões, que já foram algumas vezes levantadas no plano teórico. Elas serão aqui abordadas de modo real e prático. O teórico e o pragmático deverão se equilibrar e resolver sua contradição na própria exposição.16 Uma das primeiras críticas, publicadas no jornal parisiense Le Monde assimilava Magiciens de la terre a uma exposição colonial: Isso se deu há um século, na exposição universal de 1889. Os visitantes passavam, entusiasmados, do pavilhão javanês à aldeia do povo canaco, do acampamento touareg à cabana da África. Moldagens dos Borobudur, “fetiches” papuas e guineenses, povos de “nossas colônias”: em todo lugar, bizarrices e novidades, reconstituições e simulacros dispostos de maneira a compor um agradável passeio para o flâneur. A geografia, a etnografia, a história das religiões e das artes foram bastante prejudicadas. Ninguém tentava compreender os objetos e costumes, mas o pitoresco conquistava 20 JEAN-MARC POINSOT sua apoteose. Sucesso imenso, afluxo de visitantes. Uma bela exposição, de verdade... Podemos visitar Magiciens de la terre sem pensar que a exposição de hoje reproduz aproximadamente o sistema de um século atrás?17 Outras reações foram ainda mais virulentas, sintoma do estado das mentalidades, desinteressantes na essência, mas se vários críticos, observadores atentos da arte contemporânea para além do mundo ocidental, denunciaram uma ausência de consciência política da exposição, Rasheed Araeen, organizador de uma das primeiríssimas exposições que colocaram em evidência a contribuição dos artistas não ocidentais para a história da modernidade, fez comentários bastante ponderados. Minha decepção com a exposição não foi devida à qualidade do trabalho, ou da apresentação. A exposição parecia na realidade bastante atraente; um espaço equivalente era dado a quase todas as obras e elas estavam dispostas de modo que, em alguns casos, era difícil distinguir visualmente o “moderno” do “tradicional”. Dito isto, devo também declarar minha admiração por algumas belíssimas obras, em particular as dos artistas da China, do Chile e do Brasil.18 De uma maneira geral, cada um dos críticos e observadores atentos, isolou, dentre as obras expostas, uma seleção pessoal de trabalhos inéditos no mercado parisiense. Diferentemente de Rubin em Primitivism, Jean-Hubert Martin evitou intencionalmente aproximações estilísticas e comparações estridentes, mas era claro que suas escolhas, complexas por outras vias, abrangeram um campo bastante amplo, até então inexplorado em uma única exposição. Pode-se compreender, ao ler a posteriori o diário de seus deslocamentos na China, na África, no Afeganistão, que seu olhar evoluía progressivamente pela experiência da visita a tão numerosos artistas em tantos contextos muito diferentes. Compreende-se seu desejo de excluir os trabalhos muito próximos da estética ocidental, mas ao revisitarmos hoje a exposição no papel reconhecemos sua capacidade em reter ao mesmo tempo artistas ainda completamente imersos em um universo tradicional e artistas em ruptura, como os russos como Kabakov ou, entre os sul-americanos, Cildo Meireles. Ao agir desta forma, Jean-Hubert Martin colocou uma questão que ainda não terminou de agitar as mentes: Você é capaz de abraçar com seu olhar a diversidade de trabalhos reunidos na exposição e para os quais eu reivindico a arbitrariedade de minha escolha pessoal? Descobriu-se que ninguém era capaz de assumir tamanha diversidade de escolhas, mas no momento em que os teóricos africanos e asiáticos, e em seguida os sul-americanos, elaboravam ferramentas para pensar sua diferença estética, Jean-Hubert Martin aboliu muitos tabus e com eles uma segmentação do mercado de arte internacional, que, até então, apenas rendia lucros às metrópoles ocidentais. Numerosos artistas no mundo, dos quais alguns já haviam emigrado para os mercados centrais, puderam assim reivindicar particularidades, sensibilidades e referências culturais consideradas até então como desinteressantes ou de uso local. Nenhum modelo estilístico se impôs na sequência de Magiciens, mas uma vasta produção só se tornou visível, observável, em função da violência que Jean-Hubert Martin cometeu contra equívocos e compartimentações. Foi devido à sua capacidade de escolha, de arranjo não hierarquizado nem classificado, à sua solicitação às mentes 21 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES mais afiadas e diversificadas, que a abertura do direito à interpretação pôde se dar, não apenas para o benefício de observadores especializados mas também de todo público presente na exposição parisiense ou nas que em seguida ocorreram como respostas ou outras interpretações. Penso, por exemplo, nas Documenta de Catherine David (1997), de Okwui Enwezor (2002) ou de Roger Buergel e Ruth Noack (2007), as quais respondiam, cada uma à sua maneira, às questões levantadas em 1989. Terminarei minha análise com a escolha de uma exposição sem curador-intérprete, já que ela foi preparada por Daniel Buren juntamente com Marc Sanchez, que invalidou certas restrições impostas ao formato da exposição que é Monumenta. Poderia, evidentemente, escolher na história das exposições recentes outros exemplos, organizados por artistas como Kosuth em torno de Wittgenstein em 1989 ou Jeremy Deller em uma série de manifestações que alteraram as fronteiras entre a cultura do quotidiano e o domínio especializado da arte contemporânea, mas veremos que o exemplo de Buren nos permitirá discutir com mais vagar o lugar do espectador. Monumenta é uma exposição organizada anualmente em Paris no hall principal do Grand Palais a partir de um programa definido cujo financiamento, em sua origem, 2007, advinha principalmente do mecenato e que, portanto, tinha relação direta com o mercado. A primeira edição se fez com Anselm Kiefer com o objetivo de restaurar o lugar de Paris na cena artística internacional, a partir de uma realização espetacular de um artista renomado. O Grand Palais des Beaux-Arts, construído entre 1897 e 1900 para a exposição universal que teve a maior afluência na Europa desde a criação de tais manifestações (50.000.000 visitantes, ou seja, quase duas vezes o conjunto da população francesa da época), faz-nos recordar de sua história em função da restauração pela qual passou entre 2004 e 2007. O fechamento do prédio ao público durante vários anos levou à revisão completa da programação inicialmente dedicada a numerosos salões artísticos ou comerciais. Hoje, as Feiras de Arte substituíram os Salões e, no meio da programação, bastante eclética e nem sempre artística, foi incluído este projeto de Monumenta, com o objetivo de suscitar a vinda de um público de massa. A título indicativo, a exposição de Daniel Buren foi vista por mais de 250.000 visitantes. A proposição de Daniel Buren, após as de Kiefer, Serra, Boltanski e Kapoor, consistiu, pela primeira vez, em tentar compreender o edifício e não apenas em realizar a performance a mais espetacular possível. Ao trabalhar sobre a planta do edifício, Buren reparou que a imensa galeria sob a cobertura de vidro havia sido concebida segundo um esquema de círculos concêntricos, a partir do eixo da cúpula central. Além disso, decidiu não utilizar a entrada principal. O esquema circular da planta arquitetônica resultou na escolha do círculo como estrutura dos 383 filtros coloridos, azul, amarelo, vermelho alaranjado e verde, de diâmetros variados, dispostos de modo a ocupar a maior parte do espaço disponível. Na apresentação da exposição, Buren escreveu: Minha segunda convicção muito forte (a tal ponto que eu a coloquei como uma das primeiras condições para minha participação) era que, qualquer que fosse a obra realizada neste lugar, ela deveria 22 JEAN-MARC POINSOT ser apreendida percorrendo-se o prédio longitudinalmente, ou seja, entrando pela porta sul ou pela porta norte. Sobretudo, não se deveria entrar pela porta principal, aquela que se encontra no centro da nave e que está muito perto da cúpula central da cobertura de vidro, cerne desta arquitetura. Essa entrada principal torna extremamente difícil a utilização de todo este espaço, sobretudo para realizar uma exposição pessoal, pois tudo é dado a ver imediatamente.19 Segundo Daniel Buren, a entrada é uma grandiloquência do fim do século XIX que leva ao interior de um compartimento ridiculamente pequeno comparado à entrada majestosa. Buren expõe o ponto fraco do traço arquitetural do lugar, a saber a oposição radical entre a arquitetura neoclássica inspirada da colunata de Perrault no Louvre, programa completamente deslocado em relação à arquitetura metálica, que marcara um avanço decisivo na construção moderna, quando das precedentes exposições universais parisienses. Siegfried Giedion, tão elogioso em relação às realizações de 1855, 1867, 1878 e 1889, passa complemente em silêncio sobre esta nave de 240 metros de comprimento e 45 metros de altura e suas 6.000 toneladas de metal, liberando um espaço de 13.500 m2 sem coluna nem tirante. Em 1900, a galeria principal do Grand Palais já não era mais de vanguarda, mas acontece que ela é um dos raros exemplos desta arquitetura metálica ainda de pé e tão fascinante “pela luz notável e extraordinária” e a “imensa praça pública” que ela cria oferecendo o espetáculo da chuva, das nuvens, do céu e do sol. O contraste entre a arquitetura de pedra com sua fachada desproporcional, por um lado, e, por outro, o domínio total do olhar sobre todo o espaço, que a realização de engenheiros tornou possível, certamente constituiu um programa que visava fornecer o espetáculo simultâneo de inúmeras obras expostas em conjunto neste mesmo espaço. Não por acaso, as vistas antigas reproduzidas privilegiam a apresentação de esculturas, as quais não exigem a construção de cimalhas dividindo o espaço. Dito de outro modo, a entrada no Grand Palais visava a dar a ver a multiplicidade de obras e a instrumentalizar a cobertura de vidro sem a mostrar, e inserir instantaneamente na oficialidade todos os objetos expostos, na diversidade de suas singularidades. O espaço público ao abrigo das intempéries observado por Buren não foi efetivamente concebido para um único artista; nem David, nem Courbet ou mesmo Manet não teriam podido sonhar com isso. Contudo, o argumento de que este espaço não convém a uma exposição individual é um eufemismo, pois o que Buren propõe é, nem mais nem mesmo, dispensar a confeitaria “escola de belas artes”, tão bem exportada neste período para todos os continentes. Mesmo que seja necessário voltar por esta entrada condenada, é pela entrada norte, enquadrada por algumas listras que alternam preto e branco que Buren nos faz aceder ao local de exposição. O túnel escuro que atravessamos visa a nos fazer esquecer de onde viemos e por onde passamos, a fim de descobrir bruscamente as ondas de luz que atravessam a imensa cobertura de vidro. Depois de alguns passos, o visitante se depara com uma floresta de pilares encimados por círculos coloridos transparentes a apenas alguns centímetros de sua cabeça. Produz-se então uma espécie de decepção sob este teto rebaixado acima dos visitantes, que se dispersam procurando uma nova saída, uma forma, um acontecimento. 23 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Contrariamente a Kiefer, Serra ou Kapoor, que quiseram competir com o gigantismo do lugar, Daniel Buren aceita-o em sua desproporção e organiza um dispositivo para que o visitante o avalie por si mesmo. Com efeito, no centro do Grand Palais, sob a cúpula central, ele criou um espaço liberado do teto de círculos coloridos e no qual dispôs, no solo, espelhos circulares ligeiramente levantados, sobre os quais os visitantes são convidados a subir. Fortalecido por suas numerosas experiências, especialmente a dos deux plateaux, sua realização perene no interior do Palais Royal, Buren soube fazer uso desta tendência geral dos indivíduos a se avaliar em relação aos monumentos que visitam. Aqui, ele lança mão desta necessidade de subjetivação específica das nossas sociedades atuais, ou seja, esta pulsão de se construir em permanência em todas as interações com outras pessoas ou com objetos. Assim, ao subir nos espelhos, cada um vê a princípio sua própria imagem e, ao fundo, a imensidão do lugar onde ele se encontra. Cada espelho é razoavelmente pequeno para que os efeitos de grupo não se substituam maciçamente à ação individual. O visitante, assim solicitado, torna-se ainda mais ativo porque também dispõe, frequentemente, dessas máquinas de subjetivação que são os celulares e as câmeras fotográficas digitais. Ele não tem como não tomar ciência de sua relação com a cobertura de vidro em função da diferença de funcionamento de seu olhar e daquele de sua câmera, cuja profundidade de campo resulta de seus julgamentos. Quando seu olhar apreende adequadamente sua presença e a malha estreita da estrutura da cobertura de vidro em uma série de adaptações e de movimentos rápidos de seus olhos, a imagem que lhe é restituída em sua tela lhe proporciona uma visão seletiva que não lhe convém. Além disso, a experiência direta de seu olhar imerso no espelho produz um questionamento sobre a luz, pois o espectador que se olha faz sombra a si próprio sobre o fundo superexposto. A apreensão da exposição, do prédio que a acolhe e do espectador que observa se dá sob a exclusiva responsabilidade deste último e se choca a cada etapa com efeitos de transparência e opacidade, de observação e interrogação sobre as condições desta apreensão e a responsabilidade de levá-la adiante. Para compreender a operação em questão, é necessário continuar a visita. A interrogação sobre o que é dado a ver é um pouco perturbadora. Em alguns aspectos, a relativa monotonia de ocupação do espaço pelos pilares em preto e branco e pelos círculos coloridos que lhe são sobrepostos pode levar o espectador a tentar, rapidamente, se excluir do dispositivo para obter uma visão distante, exterior, crítica. Exceto se buscar um ponto de vista em perspectiva, do alto das escadarias e das galerias superiores, distanciarse produz apenas decepção e tende a tornar insignificante a proposta. Na realidade, o prédio parece quase banal quando as colunas intercaladas e suas placas coloridas tendem a se tornar imperceptíveis, assim que nos aproximamos muito das margens. Para ser novamente solicitado pela proposta de Buren, deve-se entrar de novo no dispositivo, tentar rastrear as projeções coloridas no solo, observar os recortes que os círculos de filmes plásticos projetam sobre a cobertura de vidro, desde que nos demos ao trabalho de nos movimentar, de deslocar, de enquadrar ou ainda de misturar as cores. Sem uma ação orientada, nada se passa, sem um olhar movido pela intenção de notar alguma coisa o 24 JEAN-MARC POINSOT espetáculo se torna quase banal. Por outro lado, se o visitante se torna ativo, ele se dirige rapidamente ao encontro das outras pessoas envolvidas em um processo similar e ocorre então uma inversão, que relança a observação como interação social. A multidão de sujeitos isolados é revelada em sua ação coletiva nesta praça pública que só os massifica e os absorve enquanto eles forem voluntários e engajados. Ressalte-se que a indústria do entretenimento coloca em ação um processo inverso, isolando o mais frequentemente o espectador de uma atração em um carrinho, por exemplo, ou imergindo-o na escuridão. Ao escolher este último exemplo baseado na observação dos visitantes e na particularidade da proposta de Buren, pode-se apreender a força da partilha do sensível. Entretanto, deve-se constatar que esta liberdade do espectador só se constrói limitando o papel do curador ao de um técnico ou de um assessor de imprensa. Aqui, o curador foi levado a renunciar a seu direito à interpretação, não para se tornar escravo do artista ou do mercado, mas precisamente para libertar seu olhar das exigências da indústria cultural. Buren evitou uma sobrevalorização espetacular; evitou também a obrigação de recorrer a um mecenas e fez isso em um prédio que foi concebido no auge da afirmação burguesa da autonomia da arte. Essa mesma autonomia foi a garantia da privatização do modelo de direito de autor e, por extensão, da propriedade industrial, objeto principal de valorização na exposição universal de 1900. Ora, não é anedótico que neste exato templo do liberalismo econômico e artístico, de glorificação da propriedade privada, Buren, o artista que se recusa a assinar suas obras, devolva a todos os públicos o direito de olhar e de interpretar de novo. Parece-me que como as outras exposições que evoquei, excêntricas, a contribuição de Buren para Monumenta encontrou toda sua força e seu interesse na capacidade de estimular o direito à interpretação, ao propor uma leitura política do lugar e do enquadramento institucional da exposição. A história das exposições não pode prescindir de sua sociabilidade, como já notaram numerosos historiadores, mas ela não pode se construir unicamente sobre o fato público, sem analisar como a experiência estética que é ali proposta se dá em dispositivos interpretativos abertos e transformadores. Uma exposição que fecha a máquina interpretativa não é susceptível de tornar-se um objeto histórico, somente pode pretender a este status a exposição que renova de forma aberta e contraditória o olhar compartilhado em sua experiência. Para resumir os questionamentos epistemológicos levantados no início deste texto, parece-me que o historiador das exposições deve distinguir entre o sentido e o valor delas. O sentido está ligado ao discurso e qualidades sensíveis daquilo que é proposto. O valor se relaciona aos usos sociais mas também estéticos que emergem da própria dinâmica da exposição. Assim, por exemplo, quando na Documenta 5, Szeemann, ao ser confrontado à amplitude do projeto, sentiu a necessidade de pensar a atualidade da arte no âmbito do sensível e do imaginário geral da sociedade no início dos anos 1970, por isso este alargamento antropológico que respondia à extensão do domínio da arte. No entanto, ele não confundia os registros e devia à sua capacida- 25 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES de de pensar a cultura visual a acuidade de seu olhar sobre a arte. Apesar dos fortes protestos de alguns artistas, ele impôs muito menos seu conceito curatorial do que outros. Como por exemplo Germano Celant, que, em sua reconstituição de When attitudes become form, não conseguiu resistir à tentação de acrescentar algumas obras de Pascali, falecido há vários anos, o que lhe permitiu, entre outras coisas, de reforçar o lugar – já significativo – dos artistas da arte povera e o sistema de interpretação estilística que ele induzia. Outros exemplos analisados colocaram em evidência um desequilíbrio de valor, ou seja, de uso social, e de sentido. Foi o caso dos exemplos de Bacon e de Schwitters mencionados, onde inegavelmente prevaleceu uma lógica mais econômica do que propriamente artística. Quanto a Malevich, a interpretação que tendemos a fazer hoje mistura usos sociais e valores estéticos incompatíveis, porque oriundos de tempos diferentes da história. Estes poucos exemplos nos ajudaram a dar destaque ao que a exposição mobiliza como dinâmica da interpretação em um funcionamento que induz à formação de valores e, indiretamente, de práticas sociais. Nesse sentido, a exposição de arte não funciona fundamentalmente de modo diferente de qualquer outra exposição e como tal ela também é o teatro de todas as questões que as obras trazem, sejam aquelas relacionadas às suas próprias qualidades ou às práticas sociais que lhes são associadas. A própria abertura da exposição a todos é o que torna possível estes reinvestimentos, o pensamento crítico pode assim permitir atribuir às diferentes histórias aquilo que se produz na própria cena dessas exposições. 26 Notas * Tradução: Maria de Fátima Morethy Couto e Ana Maria Tavares Cavalcanti. 1 RATTEMEYER, Christian et al. Exhibiting the New Art: ‘Op Losse Schroeven’ and ‘When Attitudes Become Form’ 1969, Londres: After all, 2010 ; WEISS, Rachel et al. Making Art Global (Part 1) The Third Havana Biennial 1989, 2011; BUTLER, Cornelia et al. From Conceptualism to Feminism Lucy Lippard’s Numbers Shows 1969-74, 2012; STEEDS, Lucy et al. Making Art Global (Part 2): Magiciens de la Terre, 1989, 2013. 2 Ver também a série de entrevistas com curadores publicada por Baltic. The Center for Contemporary Art, Newcastle, no início dos anos 2000. 3 NT : O autor utiliza o termo “commissaire d’exposition” em francês para referir-se ao que chamamos de curadores. Nesta passagem, porém, ele emprega o termo em inglês. 4 Ver também COMETTI, Jean-Pierre. Art et facteurs d’art, Rennes: PUR, 2012. 5 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique, Paris: Galilée, 2004, p.9. 6 SMITHSON, Robert. “Cultural confinement”. In: HOLT, Nancy Holt (ed.). The Writings of Robert Smithson, New York: New York University Press, 1979, p.132-133. 7 ALLOWAY, Lawrence. “The Great Curatorial Dim-out”, Artforum, vol.13, nº 9, maio 1975. 8 NT: Mantivemos a grafia utilizada pelo autor ao referir-se ao quadrado negro, ora em itálico e maiúscula, como referência explícita ao quadro de Malevitch, ora sem itálico e em minúscula. 9 BOERSMA, Linda. 0,10. La dernière exposition futuriste. Paris: Fernand Hazan, 1997, p. 71. 10 Germano Celant recorda, no catálogo da Fondazione Prada, como reencontrou Harald Szeemann em 9 de Janeiro de 1969 na casa do editor Mazzotta com quem preparava o livro que deveria ser lançado em coedição em Londres, Nova Iorque e Túbigen. Relata sua presença em Berna para a montagem da exposição e o convite de Szeemann para que pronunciasse um dos discursos da inauguração. 11 SZEEMANN, Harald Szeemann. Prefácio de When Aittudes Become Form . In: Écrire les expositions. Bruxelles: La lettre volée, 1996, p. 24/25. 12 CELANT, Germano. “A readymade: When Attitudes Become Form. In: When Aittudes Become Form Bern 1969 Venice 2013. Venise: Fondazione Prada, 2013, p. 390. 13 DAWSON, Barbara e HARRISON, Martin. Francis Bacon: a Terrible Beauty. Dublin City Gallery The Hugh Lane/ Steidl, 2009, p. 7. 14 MARTIN, Jean-Hubert. Prefácio do catálogo Magiciens de la terre. In: L’art au large. Paris : Flammarion, 2012, p.16. 15 “L’exposition de la terre entière: une entretien de Benjamin H.D. Buchloh et Jean-Hubert Martin”. In: MARTIN, Jean-Hubert. L’art au large, op. cit., p.40. 16 Idem, p.23. 17 DAGEN, Philippe. “L’exposition universelle”. Le Monde, 19 maio 1989, p. 28. 18 ARAEEN, Rasheed. “Our Bauhaus Others’ Mudhouse”. In: Third Text, n° 6, spring 1989, p.7. 19 SANCHEZ, Marc. “Entretien avec Daniel Buren”. In: Daniel Buren Monumenta 2012 Excentrique(s), Paris: CNAP, RMN, p.11. 1829-1830. Jean-Baptiste Debret e os conflitos das primeiras exposições no Brasil Elaine Dias Em seu álbum iconográfico Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil publicado na França entre 1834 e 1839, Jean-Baptiste Debret relata, entre as imagens relacionadas aos usos e costumes brasileiros, os fatos históricos, sociais e artísticos ocorridos, principalmente, no Rio de Janeiro. Entre estes relatos, Debret informa todo o processo de origem e desenvolvimento da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, contando-nos também sobre as primeiras exposições ocorridas naquela instituição e todos os problemas enfrentados para que estes eventos fossem realizados. Debret comenta inicialmente as ações do deputado e ministro do interior José Clemente Pereira, responsável pela autorização de exibição pública dos trabalhos de professores e alunos: Ele sentiu e paralisou ao mesmo tempo as manobras hostis do diretor da Academia, ordenando, em nome do Imperador, a primeira exposição pública dos alunos da Academia de Belas Artes, e sem relação com a responsabilidade do diretor, ele nos deixou livres para dispor as salas segundo o modo das exposições francesas. Vindo nos visitar nas vésperas da abertura da exposição, ele reconheceu a inferioridade evidente do diretor como professor da classe de desenho, enquanto que ao contrário, ele aplaudiu os nossos cuidados e o sucesso de nossos aluno1. A frase de Debret aponta várias questões que procuram explicar e justificar os conflitos vividos entre os artistas franceses e o diretor português Henrique José da Silva, intensificados durante as primeiras exposições de arte na Academia. Há claramente uma intervenção do ministro Clemente Pereira para a abertura da mostra, que deixava de lado a autoridade do diretor Silva, considerado por Debret como inferior aos demais artistas em sua atribuição, isto é, a classe de desenho. Este ponto é importante para entendermos os problemas que surgirão na Academia, especialmente para a abertura das exposições, evento que tinha por objetivo principal mostrar o desenvolvimento de todas as classes. As primeiras exposições de arte na Academia seriam também um meio de solucionar, para Debret, os obstáculos que afligiam o corpo de docentes da instituição desde sua abertura, em 1826, concentrados sobretudo HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES na gestão de Silva, diretor nomeado ainda em 1820, um ano após a morte de Joachim Le Breton, designado anteriormente para ocupar este cargo. Uma das questões mais problemáticas para os docentes era a regra prevista nos Estatutos Gerais da Academia, que indicava a frequência de três anos aos alunos matriculados nas aulas de desenho ministradas por Silva. Uma vez que os alunos permaneciam todo este período neste curso, tal regra terminava por anular o trabalho dos demais professores por este tempo. De certo modo, isto explica as palavras de Debret ao relatar, segundo ele, a inferioridade de Silva na classe de desenho, reconhecida por Clemente Pereira, visando claramente demonstrar que a mesma não fazia sentido, tentando demonstrar sua ineficiência com vistas a posterior exclusão de tal regra, tentando beneficiar, assim, os demais professores e também seus alunos, que já apresentavam bons trabalhos. Silva posicionava-se declaradamente contra a atuação de Debret e Grandjean de Montigny na Academia Imperial de Belas Artes. Ele ainda mantinha uma posição de maior destaque junto ao Imperador D. Pedro, realizando os retratos oficiais do período da Independência e usufruindo das funções de pintor da corte. Debret tentava, desde 1816, uma posição de maior reconhecimento, procurando concentrar-se, cada vez mais, no funcionamento efetivo da Academia, tentando comprovar sua importância e a de Grandjean em uma história complicada, que remonta a chegada do grupo de franceses ao Brasil. Naquela época, os jornais do período já discutiam sobre a chegada dos artistas, considerando que eles estavam aqui por conta própria e que D. João VI não os convidou para o feito. Além disso, é preciso dizer que Le Breton, o chefe da Missão Artística, trocou de fato correspondências com a corte portuguesa ainda na Europa, oferecendo o projeto de ensino para D. João VI no Brasil, e recebendo como respostas do Cavaleiro de Brito posições imprecisas e sem comprometimento sobre a vinda do grupo ao Rio de Janeiro e a implantação de tal projeto no Brasil. Após esta troca de correspondências, Brito apoia o plano de Le Breton e a ida de seu grupo ao Rio de Janeiro, pagando as passagens para os artistas e recomendando ao Conde da Barca a proteção dos franceses em sua chegada, em 1816.2 Muitos foram os fatos que impediram a implantação do projeto de ensino em sua chegada – e não é nosso escopo retomar esta discussão –, mas é importante ressaltar que, uma vez estabelecidos no Brasil, estavam protegidos pelo Rei D. João VI, que aceita implantar tal projeto na cidade, na corrente das inovações promovidas desde 1808. Dez anos depois, a fundação da instituição em 5 de novembro de 1826 – data que celebrava também os dez anos da chegada da Imperatriz Leopoldina ao Brasil – era o resultado do empenho pessoal de Debret e Grandjean de Montigny junto ao Imperador, sendo os dois artistas os “sobreviventes” do projeto inicial de Le Breton, uma vez que os demais membros do grupo haviam já retornado a França ou mesmo falecido. Debret e Grandjean já ofereciam, há alguns anos, aulas em ateliês particulares - dado que o edifício projetado por Grandjean ainda não estava pronto e a Academia não havia sido de fato fundada - comprovando o interesse dos alunos e a frequência efetiva aos cursos. Outros eventos juntam-se a este complicado contexto do desenvolvimento do sistema artístico no Brasil. Ainda em 1824, Debret havia elaborado um “Projecto do Plano para a Imperial Academia das Bellas-Artes do Rio de Janeiro” 3, a pedido do Ministério dos Ne30 ELAINE DIAS gócios do Império. Segundo Debret, o Ministro estava interessado nos serviços prestados pelos franceses em seus ateliês, no mesmo ano em que são retomadas as obras do Palácio da Academia projetado por Grandjean.4 Ali, Debret estabelecia estatutos diversos para o funcionamento da instituição, dentre os quais uma junta de direção composta por membros honorários a fim de destituir qualquer autoritarismo por parte do diretor, o português Silva: He entre os Membros Honorários, que iremos buscar as pessoas que devem formar este corpo, nomeando para este empregos os Directores dos differentes Estabelecimentos Scientificos, que embellecem a Capital, isto he, o Director da Bibliotheca Imperial, e Pública, o do Jardim Botânico, e o do Muzeo. Com effeito, que garantia mais segura se pode ter para a prosperidade da Academia, do que ser esta dirigida por huma Junta composta de Membros, cada hum dos quaes appresenta hum Chefe revestido da confiança pública, e esta adquerida pelos seus trabalhos scientificos? Huma Academia das Bellas Artes dirigida desde o seu princípio por huma Sociedade Scientifica em breve chegará à sua perfeição.5 Previa-se, ainda, a separação do curso de desenho da Academia, vinculando-o à criação de uma Escola Pública de Desenho, visando, por um lado, destituir esta classe de qualquer supremacia perante as demais, e evitar que qualquer professor tivesse plenos poderes sobre ela. Debret, que conhecia os entraves propiciados pelos Estatutos de 18206, apresentava soluções para o funcionamento da Academia ao vinculá-la aos membros das principais instituições científicas do Rio de Janeiro, valorizando o caráter iluminista que já configurava como característica principal do primeiro projeto dos tempos de Le Breton, assegurando o incentivo ao ensino das artes e ao conhecimento, ao mesmo tempo em que destituía o poder de qualquer professor da instituição. Contemplava claramente o trabalho proposto pelos franceses, desde a origem do projeto, e colocava Silva em uma posição isolada nesta nova configuração. O plano de Debret foi abandonado à custa de conflitos com o próprio diretor Silva, que declarava ao Ministério o seu caráter privado e ameaçador ao seu posto de diretor da instituição.7 Após diversos comunicados e aprovações do governo, o próprio Silva encarrega-se da redação dos novos Estatutos a partir daqueles já redigidos em 1820. Entre seus artigos, havia um em especial que confirmava as relações de animosidade e acirrava os conflitos existentes entre os professores, conforme já indicamos acima. Baseado nas leis de Aula Régia de Desenho e Arquitetura Civil de Lisboa, o curso de desenho da Academia Brasileira apresentava a famigerada duração de três anos, o qual impedia o aluno de frequentar as aulas de pintura, arquitetura e escultura por todo esse tempo. Com isso, os franceses viam seus esforços oficialmente anulados pela regra e pela classe de desenho que também era ministrada por Silva. O diretor português confirmava, assim, o caráter lusitano da instituição, vinculando-a ao modelo lisboeta das escolas de desenho, contrapondo-se ao modelo francês iluminista preconizado antes por Le Breton e continuado por Debret. Os jornais O Império do Brasil - Diário Fluminense (5 de fevereiro de 1828) e o Echo (26 de janeiro de 1828) promovem o debate entre Silva e Debret, incendiados, sobretudo, por um tal “Hum Cidadão Brasileiro”, que escreve no Diário a defesa de 31 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Silva contra Debret na questão da aula de desenho, legitimada pelos estatutos aprovados e ordenados por D. Pedro I. Ele diz: “Quem chama abuso à observância da Lei, toma por acato justo a sua violação”. Debret e Grandjean praticam, de fato, o ato de violação das leis de ensino para colocar suas aulas em prática, como bem demonstram alguns ofícios enviados por Silva à secretaria de Negócios do Império já em 1830: [...]Entrou aquelle discípulo [Joaquim Lopes de Barros], no anno pretérito de 1829, para se applicar ao desenho, mas era tal a sua conducta que no fim de dois meses me vi na necessidade de o repreender, foi isto bastante para não comparecer mais na minha aula, e procurar os professores Grandjean e DeBret, que o admitirão nas suas, à semelhança do que tem feito a outros de igual comportamento, procedendo assim com manifesto desprezo dos Estatutos, como se não estivessem ligados à sua observância.8 [...] cumprime informar a V. Exa que o suppl. [Antonio Pinheiro de Aguiar] foi admitido na aula de desenho por aviso de 11 de junho de 1828 onde freqüentou alternadamente até agosto de 1829, e sem me participar passou para a aula de pintura, talvez por se persuadir que estava corrente em desenho, e o professor da quella classe não duvidar aceita-lo praticando assim continuadamente abusos contrários à lei que devia cumprir com exactidão [...]9 Debret e Grandjean já haviam, porém, contornado os Estatutos ao solicitar do governo a autorização para a realização da Primeira Exposição Pública da Academia. A mostra seria uma estratégia certeira de evidenciar à população e, sobretudo, ao governo, que as demais classes já funcionavam plenamente, a despeito do curso de Silva. A realização da primeira exposição era, portanto, consequência direta deste problema vivido pelos professores franceses na Academia, sendo chave fundamental para mudar os rumos da instituição e provar a produção efetiva dos alunos. Manoel de Araújo Porto-Alegre, aluno de Debret desde 1827, solicita ao Ministro José Clemente Pereira – usufruindo também de sua influência familiar, uma vez que o ministro era seu tio – a devida autorização para o evento, o que lhe é concedido em ofício de 26 de novembro de 1828. Embora esta não seja normalmente citada como a primeira exposição de arte no Brasil, talvez em razão da menor frequência e tempo para preparação, tivemos sim em 1828 a organização da primeira mostra. O jornal Diario Fluminense, de 29 de novembro de 1828, publica, a esse respeito: S.M. o Imperador há por bem que no dia terça-feira dois do próximo mes de dezembro, se faça na Imperial Academia das Belas Artes uma exposição pública de todos os trabalhos mais perfeitos, que os alunos das respectivas aulas tiverem desempenhado no corrente ano.10 Poucos dias depois, em 1 de dezembro de 1828, o diretor Silva também publica uma nota sobre a exposição: Em virtude da Portaria de 26 de novembro, que me foi dirigida pela Secretaria d’Estado dos Negócios do Império (em que S. M. O Imperador há por bem que no dia terça-feira 2 de dezembro se faça na Academia Imperial das Bellas Artes uma exposição publica com todos os trabalhos mais perfeitos, que os alunos das respectivas aulas tiverem desempenhado no corrente ano) se participa ao público que a dita exposição terá lugar no referido dia desde as 10 horas da manhã até as 5 da tarde do mesmo dia. Imperial Academia das Bellas Artes. 1 de dezembro de 1828. Henrique José da Silva, Director.11 32 ELAINE DIAS A exposição parece de fato ter durado pouco, mas foi noticiada pelo Aurora Fluminense de 10 de dezembro de 1828, que relata “a primeira exposição de salão dos trabalhos das Bellas Artes, cimento da sociabilidade pelo regozijo do aniversário do Príncipe Imperial também Brasileiro”, parabenizando os trabalhos de Debret e Grandjean. Porto Alegre também relata a existência desta exposição de 1828, comentando-a em seu “l’Etat des Beaux-Arts au Brésil”, publicado no Journal de l’Institut Historique em Paris e republicado por Debret em sua Viagem Pitoresca: “três exposições aconteceram. A primeira foi pouco frequentada”.12 Os conflitos publicados nos jornais e vividos na Academia por portugueses e franceses levaram, possivelmente a partir da influência de Porto Alegre, em nome de Debret, à sua aprovação rápida em 1828, esperando a sua continuidade já acertada nos anos seguintes. É provavelmente por esta razão que pouco se comentou sobre a exibição de 1828, nascida em meio aos conflitos que certamente continuariam no ano seguinte, mas que dava mais tempo aos franceses para articularem suas estratégias de demonstração da evolução das classes, provando que não dependiam dos três anos da aula de desenho de Silva. Em 1829, foram expostos 115 trabalhos dos professores e seus discípulos, dos quais 47 de pintura, 60 de arquitetura, 4 de paisagem e 4 de escultura, recebendo a visita de mais de 2000 pessoas, de 2 a 14 de dezembro de 1829. Teve um pequeno catálogo impresso às custas de Debret, como nos informa Adolfo Morales de los Rios Filho em sua obra sobre o ensino artístico, e teve como título oficial: Exposição da classe de Pintura Histórica na Imperial Academia das Belas Artes. No ano de 1829. Quarto ano de sua instalação. É bastante provável que o título impresso no catálogo seja uma resposta direta a Silva em razão dos conflitos vividos, evidenciando que a regra do ensino do desenho não havia afetado sua classe de pintura histórica, comprovando, assim, sua importância e eficácia dentro da instituição. Além disso, confirmar a excelência da pintura de história sob a chefia de Debret poderia também leva-lo diretamente à corte de D. Pedro I, garantindo seu lugar e de seus alunos na produção de grandes telas históricas. Nesse sentido, os trabalhos de Debret demonstram, assim, sua autoafirmação como professor e pintor e o claro desejo de futuras encomendas. Destacaram-se, nesta exposição de 1829: “Uma alegoria dedicada ao casamento de SS.MM.II.; Esboço, representando a feliz aclamação de S.M.I., no campo de Santa Ana; Quadro representando um monumento de escultura levantado à memória de Frei Veloso, autor da Flora Brasileira: obra de botânica, a qual foi mandada gravar por graças de S.M.I.; [...] Esboço para ser executado no teto da sala das Assembleias na Academia das Belas Artes; Múmia de um cacique de coroados; Cabeça de mulher de um cacique de coroados; Cabeça de um selvagem, índio Puri; Cabeça de um selvagem, índio das Missões de São José.; Desenhos do quadro da Sagração de S. M. I, para ser gravado.”13 Debret parece fazer uma escolha dos fatos históricos contemporâneos e ainda uma provável indicação de um programa iconográfico para o governo de D. Pedro I, onde o indígena tem um lugar de destaque. Isto pode ser visto ao mostrar, sobretudo, o cacique coroado e sua esposa. Embora não tenhamos evidências desta associação, Debret mostra estes trabalhos juntos, demonstrando também sua relação entre o caráter histórico e as raízes brasileiras, associando a aclamação de D. Pedro ao cacique coroado, dando pistas 33 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES iconográficas que simbolizam a afirmação de seu poder americano, uma vez que foram mostrados conjuntamente na classe de pintura histórica. Porto Alegre envia sobretudo retratos de figuras importantes e da corte, como o bispo capelão-mor, do médico Claudio Luiz da Costa, dos políticos Estevão Matos Brocardo e Jeremias Luiz da Silva, entre outros retratos e estudos de anatomia. Também apresentaram trabalhos José dos Reis Carvalho, Francisco de Souza Lobo; Grandjean de Montigny apresentou seus projetos arquitetônicos, como a fachada da Academia Imperial de Belas Artes, o plano de um projeto de fórum imperial no campo da Aclamação e a fachada da Catedral de S. Pedro de Alcântara ou o Panteão Brasileiro, assim como seus discípulos mostraram os avanços da classe, entre eles Job Justino de Alcantara e o mesmo Porto Alegre. Marc Ferrez mostrou três bustos, com destaque para aquele do Príncipe Eugênio Beuaharnais, pai da princesa Leopoldina. Félix-Émile Taunay expusera os únicos trabalhos de pintura de paisagem, a saber: Vista de São Cristóvão, Tomada da Praia Formosa, Paisagem Histórica Representando um Desembarque na Praia de D. Manuel; Vista do Barro Vermelho, Vindo de Catumbi e Vista da Cidade, Tomado do Morro de Santa Teresa. Vêse também aqui na pintura de paisagem a relação entre a natureza e a história com a tela sobre o desembarque que, embora típico como tema da pintura de paisagem, demonstra sua inclinação para as encomendas oficiais e aproximação com a pintura histórica. O sucesso da exposição causaria ainda mais conflitos às relações entre franceses e portugueses. Morales de Los Rios nos informa que o Visconde de São Leopoldo, protetor da Instituição, envia uma deliberação para que os alunos que expuseram seus trabalhos na exposição tivessem a dispensa do curso de desenho ministrado por Silva. Além disso, permite a realização da segunda exposição pública em 1830. Debret parecia atingir seus objetivos e acertado ao mostrar os trabalhos dos alunos, possibilitando um futuro menos atribulado para o andamento das classes dos franceses. Nesta exposição de 1830, foram apresentados 126 trabalhos dos professores e seus discípulos. Aparentemente, há uma repetição de trabalhos de alguns professores, como Debret e Taunay. Porto Alegre apresenta novamente diversos retratos, como dos deputados Paula Souza e Costa Carvalho, de Martim Francisco e Lino Coutinho, e há obras de todas as outras classes com seus professores e discípulos, de modo a demonstrar para a sociedade e ao governo a continuidade dos trabalhos. Pela variedade de obras, vemos que um mesmo artista estava já frequentando aulas distintas, como José Correia de Lima e Porto Alegre, com trabalhos na classe de pintura histórica e de arquitetura, contrariando, provavelmente e mais uma vez, os Estatutos. A realização das duas exposições culmina, novamente, no problema da frequência às aulas de desenho. Um trecho da Viagem Pitoresca revela outra vez a opinião de Debret a respeito do fato: Nestas exposições, a classe de desenho proferida pelo diretor, provou o mau gosto de sua escola, e desacreditada progressivamente a cada ano, ela não matriculou que um só aluno na abertura do curso de estudo em 1831.14 Em seu álbum, ele também menciona que, depois do sucesso destas exposições, os professores deveriam tentar junto aos ministros a mudança efetiva da situação legitimada 34 ELAINE DIAS pelos Estatutos, isto é, a frequência às classes e a impossibilidade do recebimento dos prêmios, uma vez que estavam impedidos de se matricularem nas classes oficialmente. Foi, assim, no final de 1830, que o ministro recebeu as reclamações individuais por parte dos professores, incluindo também aquela de Debret, conforme vemos em uma manuscrito conservado na Biblioteca Nacional.15 Ele inicia sua carta reclamando a participação e reconhecimento de seus alunos como efetivos nos concursos, exposições e prêmios, e comparando a escola de Desenho de Silva àquela de Lisboa, não deixando de enfatizar que a classe do português é inferior à portuguesa, ainda que obedecesse seu modelo. Segundo Debret, Silva tinha o privilégio exclusivo de matricular discípulos, paralisando o trabalho dos demais professores que eram obrigados a estar na Academia todos os dias, durante as três horas de aula fantasma ministrada para nenhum aluno. Debret defende que o ensino do desenho deveria ser dado por cada professor de sua classe: porque o princípio do desenho por um mecânico difere inteiramente daquele do pintor de retratos, assim como os outros, etc, neste caso, seria mais natural e mais cômodo deixar cada professor ensinar em sua classe, mas seria abrir uma Academia, e não uma pequena escola de desenho como em Lisboa.16 Debret é irônico em seus argumentos e novamente cita o sucesso de seus alunos e de Grandjean nas exposições de 1829 e 1830, os quais foram admirados também por espectadores estrangeiros, sendo estes elementos fundamentais para a mudança dos estatutos. Segundo Debret, estes mesmos alunos não eram dignos do título de alunos efetivos, porque deveriam obedecer as atuais regras. Diz que estas pequenas subdivisões foram inventadas pela “mediocridade”, que os entraves são sugeridos pelo “egoísmo” que só produz “medíocres artistas” que se tornarão “estúpidos pantógrafos copiadores”. Ele relata: a classe de pintura oferece hoje temas dignos de ser utilizados, como tradutores perfeitos, seja dos produtos do gênero da história natural, que podem servir às sociedades sábias, que se forma entre nós, seja como gênero de história, para transmitir às gerações futuras os traços dos diferentes personagens bem feitores cujo nome reste inseparável da Glória Nacional!17 Ao final, Debret ainda anexa à sua carta o plano da academia organizado por ele e pelo corpo docente em 1824, sugerindo, assim, uma nova organização para a Academia, em total discordância, portanto, com Henrique José da Silva. A estratégia de Debret parece clara para mudar sua situação e dos demais franceses na Academia. Desde a elaboração do plano em 1824, inutilizado pelo diretor, até a busca pela exibição dos trabalhos nas exposições, eram meios de consolidar seus esforços e de seus colegas, de buscar um lugar melhor para ele dentro da instituição e, consequentemente, ao lado do Imperador, anulando a atuação de Henrique José da Silva na Academia. As discussões colocadas nos jornais deixam clara a situação tensa vivida na instituição. Já sabemos o final desta história e a partida definitiva de Debret para a França, alegando problemas de saúde, parece ter sido apenas uma forma de camuflar seu fracasso neste contexto, ainda que as exposições de 1829 e 1830 sejam um marco fundamental do desenvolvimento das belas artes no Brasil. 35 Notas 1 DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831, p. 209. Fonte: Gallica, BNF. 2 Ver DIAS, Elaine. “Correspondências entre Joachim Le Breton e a Corte Portuguesa na Europa. O nascimento da Missão artística de 1816”. Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 14, p. 301-316, 2006. 11 Império do Brasil – Diário Fluminense, 1 de dezembro de 1828. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 12 DEBRET, Jean-Baptiste. Op. cit., p. 86. 13 MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. O ensino artístico. Subsídio para a sua Historia. Um capítulo 1816-1889. RJ: Imprensa Nacional, 1942, p.129. 14 DEBRET, Jean-Baptiste. Op. cit., p.98. 3 Projecto do Plano para a Imperial Academia das Bellas-Artes do Rio de Janeiro. Por ordem de S. E. O Ministro dos Negócios do Império. Foi feito pelos professores da mesma Academia, no anno de 1824. Rio de Janeiro, Imperial Typografia de P. Plancher, impressor de S. M. I., 1827. Jean-Baptiste Debret – redator do original. Bibliothèque de l’Institut de France; Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 15 DEBRET, Jean Baptiste. Representação à Imperial Academia das Belas Artes, sobre a necessidade de sua organização definitiva. [S.l.: s.n.]. 03 f, 31,5 X 21,5. Disponível em: <http:// objdigital.bn.br/acervo_digital/ div_manuscritos/mss1245292_94/ mss1245292_94.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2014. 4 O titular da pasta do Império teria sido substituído neste mesmo período em que é encomendado a Debret um novo plano. Ao mesmo tempo, o Palácio das Belas Artes projetado por Grandjean teria suas obras retomadas pelo arquiteto Pedro Alexandre Cravoé, nomeado novo arquiteto oficial da corte de D. Pedro I. 17 Idem. 5 Projecto do Plano para a Imperial Academia das Bellas-Artes do Rio de Janeiro. Idem. 6 Memória das Belas Artes. Memorial sobre a Academia de Belas Artes, 1838. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Arquivo Privado Félix-Émile Taunay. 7 A esse respeito, ver também LIMA, Valéria A. E.. A Academia Imperial das Belas Artes. Um projeto político para as artes no Brasil. Campinas: Dissertação de Mestrado IFCH/Unicamp, 1994. 8 Ofício do diretor em 29/04/1830. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Série Educação. 9 Ofício do diretor em 7/07/1830. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Série Educação. 10 Diário Fluminense, 29 de novembro de 1828. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 16 Idem. 1879. Realizações e dilemas da arte brasileira do século XIX Sonia Gomes Pereira As Exposições Gerais da Academia Nunca será demais insistir na importância das Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes para a arte brasileira do século XIX. Criadas pelo diretor Félix-Émile Taunay em 1840, foram ao todo 26 Exposições durante o Império, sendo a última em 1884. Serviram, naturalmente, como instrumento de emulação para professores e alunos da Academia, com a concessão de prêmios, contribuindo para a concretização dos objetivos da instituição: de um lado, nivelar-se com a pintura europeia contemporânea; por outro lado, ser um parceiro importante na construção da imagem da nação recém-independente. Além disso, como eram abertas a artistas de fora, brasileiros ou estrangeiros, essas Exposições conseguiram dinamizar um campo próprio para as artes visuais, diversificando a apresentação de gêneros, técnicas e linguagens artísticas para muito além do espaço mais restrito do ensino. Assim, técnicas – como a fotografia, que a Academia não praticava – ou gêneros – como a paisagem e a natureza-morta, que ela parecia praticar pouco – são amplamente expostos em suas Exposições. Até a participação feminina, que era vedada no corpo discente, durante o Império, aparece com frequência nesses eventos, mesmo que na condição de amadora.1 Assim, apesar das críticas – mesmo contemporâneas – às dificuldades e à estreiteza da atuação da Academia, é importante destacar a sua eficácia na realização desse projeto cultural em um país saído das restrições da arte colonial e em uma sociedade tradicionalmente mais afeita à literatura e à música e marcada pela escravidão. A Exposição Geral de 1879 Em 1879, realizou-se a 25ª Exposição Geral da Academia, com um recorde de visitação – 292.286 visitantes em 82 dias de abertura – e enorme repercussão na imprensa da época, especialmente pelo confronto crítico entre as suas duas obras de maior desta- HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES que: as duas batalhas – Guararapes e Avaí – dos dois maiores pintores produzidos pela Academia na época – Victor Meirelles e Pedro Américo. O catálogo da mostra apresenta a divisão em quatro seções: pintura, escultura, arquitetura e fotografia. Estas três últimas são pequenas, mas a de pintura é bastante extensa: ao lado do grande número de concorrentes, ainda foram apresentadas três coleções privadas – de E. Callado, Gérard e Frederico Antônio Steckel – além da chamada Coleção de quadros nacionais formando a Escola Brasileira. Aqui, vamos nos deter na seção de pintura e especialmente nos expositores concorrentes e na Coleção da Escola Brasileira.2 Os Concorrentes da Seção de Pintura São 43 concorrentes, sendo nove mulheres, 15 expositores de dentro da Academia – onze alunos e quatro professores – e onze estrangeiros – nove com endereços no Rio de Janeiro na época e dois membros correspondentes, ambos de Nápoles. As premiações são 24 no total: seis dentro da Academia – as mais importantes – e 18 para artista de fora, sendo seis para mulheres.3 Vamos, agora, examinar mais de perto essas premiações, especialmente as mais altas. Dois artistas tornam-se dignatários da Ordem da Rosa. São eles: Victor Meirelles – que expõe a Batalha de Guararapes – e Pedro Américo – que apresenta a Batalha do Avaí. [Figura 1] Ambos foram formados pela Academia, depois pensionistas na Europa – um pela Academia, o outro graças ao Imperador –, chegaram a professores – um de Pintura Histórica e outro de Desenho –, sendo, nesse momento, os dois maiores pintores – responsáveis pelas encomendas oficiais de maior responsabilidade. A enorme polêmica pela imprensa – tão analisada em bibliografia recente – evidencia a atualidade e a sintonia que suas linguagens artísticas mantinham com o público e a crítica da época. No caso, não se tratava de oposição entre passado e futuro, mas sim a oposição entre diferentes maneiras pictóricas, que, no passado, já haviam se confrontado, refletindo a maior ou menor adesão ao desenho ou à cor. São, portanto, querelas dentro da tradição. As três primeiras medalhas de ouro são dadas a dois ex-alunos – Antônio Araújo de Souza Lobo e Augusto Rodrigues Duarte – além de um artista francês, Jules Balla, que havia estudado em Paris e viveu alguns anos no Rio de Janeiro. Não consegui localizar nenhuma das obras expostas, mas sabemos um pouco sobre Souza Lobo e Rodrigues Duarte. Souza Lobo expõe retratos: é mesmo sempre citado como retratista. Augusto Rodrigues Duarte, que estudara em Paris, apresenta retratos, cópias e uma obra denominada Pedinte. É interessante observar que a premiação nessas Exposições Gerais segue frequentemente a carreira do artista e seu progressivo amadurecimento. É o caso de Rodrigues Duarte, que, tendo recebido a 1ª medalha de ouro nesta Exposição de 1879, vai ganhar a comenda de Cavaleiro da Ordem da Rosa na Exposição de 1884, quando apresenta Exéquias de Atalá. 38 SONIA GOMES PEREIRA FIGURA 1 Em cima: Batalha dos Guararapes, Victor Meirelles, 1879, o/t, 494,5 x 92,3 cm, MNBA. Embaixo: Batalha do Avaí, Pedro Américo, 1877, o/t, 600 x 1100 cm, MNBA. São concedidas seis segundas medalhas de outro: a quatro alunos ou ex-alunos da Academia – Antônio Firmino Monteiro, Décio Vilares, Francisco Vilaça e Leôncio da Costa Vieira – e a dois artistas de fora – uma mulher, Francisca Breves, e Adolfo Cyrilo de Souza Carneiro. Não consegui localizar nenhuma das obras expostas de Francisca Breves; nem de Francisco Vilaça, que expôs pintura de gênero e paisagens; nem de Leôncio da Costa Vieira, que apresentou retratos e Catequese, Paisagem Histórica – obra ligada ao indianismo; e nem mesmo de Décio Vilares, então ainda em seus anos de formação em Paris: retratos e um S. Jerônimo. Mas é possível falar do que expuseram os dois outros artistas: Adolfo Cirilo de Souza Carneiro e Antônio Firmino Monteiro. Cirilo, nascido em Pernambuco, foi ainda crian39 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 2 Deposição de Jesus Cristo, Adolfo Cirilo de Souza Carneiro, 1878, o/t, 210 x 266 cm, MNBA. ça para Portugal. Estudou na Academia do Porto e em Paris, onde residiu muito tempo, em seguida em Florença. Expôs apenas uma obra feita em 1878 – Deposição de Jesus Cristo – que nos parece muito distinta das linguagens pictóricas em voga no Brasil da época: marcada por grande geometrização e economia narrativa, faz pensar na revalorização dos artistas italianos do Quattrocento, que então se processava na Europa. [Figura 2] Firmino Monteiro apresentou a pintura indianista Exéquias de Camorim, inspirada no poema Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães, que é apresentada no catálogo como paisagem histórica. Realmente, sua composição dá destaque maior à paisagem, com as figuras humanas diminutas e quase que desaparecendo na natureza. As demais premiações foram: Antônio Alves do Valle, Augusto Off, Cornélia Ferreira França e Francisco da Cruz Antunes – medalha de prata; Alexandre Biagini, Emília Labourdonnais Gonçalves, Guilherme Tollstadius, Julia Labourdonnais Gonçalves Roque, Numa Haring e Raquel Haddock Lobo – menção honrosa; Gustavo James, Pedro Peres e Bernhard Wiegandt - distinção honorífica.4 Não vou poder me deter aqui nesses demais premiados. Vou, apenas, destacar um caso. Entre as distinções honoríficas está Pedro Peres, ex-aluno da Academia, com Elevação da Cruz – mais um exemplo de pintura histórica de cunho indianista, seguindo a mesma solução compositiva da Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, o que indica a importância dessas tipologias compositivas entre obras de temáticas próximas. Entre os artistas não premiados, observo os nomes de dois professores da Academia - Zeferino da Costa e José Maria de Medeiros –, mas ambos já haviam ganhado medalhas em situações anteriores: Medeiros recebeu medalha de ouro na Exposição Geral de 1876 com Iracema; Zeferino tirou medalha de prata na mostra de 1859, medalha de ouro em 1860, medalha de prata em 1866 e finalmente Prêmio de Viagem em 1868. Entre os não premiados também está o nome do pintor Estêvão da Silva, que expôs retratos. Cita-se sempre que Estêvão rebelou-se contra o resultado no dia da premiação, 40 SONIA GOMES PEREIRA inclusive na presença do Imperador, o que lhe valeu a punição de um ano na Academia, de onde era aluno. Este episódio tem sido muito comentado na historiografia, dando ênfase ao fato de o pintor ser negro. Mas é preciso lembrar que o já citado Firmino Monteiro, ganhador de segunda medalha de ouro, era também negro. Também entre os artistas não premiados está o então jovem Rodolpho Amoedo, expondo retratos. Na verdade, esse ex-aluno da Academia, sendo vencedor do Prêmio de Viagem em 1878, foi para Paris exatamente no ano dessa Exposição, 1879. Podemos, assim, tirar algumas conclusões sobre os concorrentes e as premiações da Exposição de 1879, em relação à seção de pintura. Em primeiro lugar, olhando o conjunto das obras apontadas acima, verificamos o que era considerado melhor em 1879. Em relação aos assuntos, predominam os chamados temas nobres: pintura histórica, pintura religiosa, retratos e pintura indianista (tanto pintura histórica quanto paisagem histórica) – sempre guardando o tom retórico. Em termos formais, é notória a filiação à grande tradição pictórica europeia desde o Renascimento, renovada pelo romantismo – com a exceção do Adolfo Cirilo de Souza Carneiro, que aponta para uma concisão formal – excepcional nessa época aqui no Brasil e anunciadora das pesquisas pictóricas futuras de muitos artistas independentes europeus do final do século. Em segundo lugar, se a Exposição de 1879 foi capaz de exibir o apogeu de uma trajetória da Academia em prol da excelência artística no padrão europeu tradicional – bastante evidente na produção dos dois maiores pintores do período, Victor Meirelles e Pedro Américo – ela é, também, o limite e o esgotamento desse modelo. O passo seguinte já estava sendo iniciado pela nova geração – alguns inclusive presentes nesta mostra como Amoedo e Décio Vilares – em busca de outra linguagem pictórica, livre da retórica e comprometida com a realidade contemporânea. É este dilema que a arte brasileira terá de enfrentar na década seguinte. A Coleção da Escola Brasileira Qualquer exposição encerra, explícita ou implicitamente, uma concepção própria de escrita da história da arte. No caso da chamada Coleção de quadros nacionais formando a Escola Brasileira, apresentada pela primeira vez na Exposição de 1879 e reapresentada na mostra de 1884, essa ligação entre exposição e historiografia é bastante evidente. Desde a sua criação, a Academia empenhara-se na constituição de seu acervo de arte europeia, com o objetivo imediato de constituir uma coleção de caráter exemplar para seus alunos. Para tanto, reuniu obras de diferentes procedências: algumas oriundas da Coleção de D. João VI, outras compradas por Lebreton, outras ainda doadas ou adquiridas pela Academia, além das cópias feitas pelos pensionistas na Europa. Dessa forma, conseguiu reunir, ainda no século XIX, um conjunto representativo de todas as mais importantes escolas pictóricas europeias. 41 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Mas havia, também, outra proposta em curso: a construção de uma escola brasileira de arte. Discutida teoricamente dentro da Academia – como evidencia a documentação de seus diretores Félix-Émile Taunay e Manoel de Araújo Porto Alegre –, essa ideia está em consonância, de um lado, com as ideias nacionalistas da chamada Geração de 1830 no Brasil; por outro lado, a própria historiografia da arte na Europa voltava-se nesse momento para as questões de identidade cultural. Assim, antes de estudarmos a Coleção da Escola Brasileira diretamente, é preciso analisar essa mudança de paradigma na historiografia europeia, examinando mais de perto esse modelo de história da arte que, partindo do legado de Vasari, organiza a grande tradição pictórica europeia em escolas regionais. Sabemos que Giorgio Vasari havia lançado, no século XVI, um padrão de escrita da história da arte, baseado no método biográfico. Ligado ao esforço geral do Renascimento em lutar pela elevação do status das artes plásticas – de mecânicas a liberais – e ligado, ainda, a um conceito de História, que se entende construída pela ação de homens notáveis, o interesse de Vasari está focado, especialmente, na vida dos artistas e suas formação, trajetória e excelência. No século XVIII, mudanças importantes aparecem na historiografia da arte, movidas por ideias contemporâneas, tanto do iluminismo francês quanto do romantismo alemão: a preocupação com as sínteses enciclopédicas, os conceitos de povo e cultura, o interesse em caracterizar as identidades coletivas, a relativização dos padrões artísticos de acordo com as circunstâncias geográficas e históricas, a influência do desenvolvimento da Arqueologia e seus métodos centrados em objetos e o interesse em dar maior suporte científico à História da Arte, transferindo o estudo do sujeito – o artista – para o objeto – a obra de arte. Sabemos da enorme repercussão do trabalho de Johann J. Winckelmann em seu próprio tempo, mudando o enfoque no estudo da arte grega – entendida, agora, como expressão do espírito de um povo, sujeita a uma geografia específica, e estudada a partir de suas obras, analisadas em sua realidade formal. Tão importante quanto Winckelmann foi o padre Luigi Lanzi, em termos de repercussão para a História da Arte posterior. Realiza em sua obra mais importante – Storia Pittorica dell´Italia – uma vasta síntese da extraordinária produção italiana desde o Renascimento, que, até então, só havia sido estudada fragmentariamente. Retoma a historiografia anterior (inclusive o próprio Vasari) e avança criticamente esses estudos, só que numa abordagem diferente: de um lado, centra-se na análise das obras e não na vida dos artistas; por outro, agrupa obras e artistas, segundo as regiões geográficas, tentando extrair desses conjuntos – as escolas – características comuns que possam ser indicadas como próprias da identidade artística regional. Apenas para dar um exemplo, é já clássica a caracterização da escola de Florença pela sua adesão ao desenho, em contraste com a preferência da escola de Veneza pela cor. Em Storia Pittorica dell´Italia, Lanzi segue a configuração, que Plínio já havia estabelecido de Itália superior e inferior. Assim, começa pelo que é apresentado como origem 42 SONIA GOMES PEREIRA – Florença e Siena –, parte para Roma e acrescenta a escola napolitana para constituir a Itália inferior: este é o primeiro volume. Em seguida, trabalha no segundo volume dedicado à Itália superior: as escolas de Ferrara, Veneza, Gênova, Mântua, Módena, Parma, Cremona, Milão, Bolonha e Piemonte. A edição completa, em dois volumes, foi publicada em 1796. Mas aqui é importante destacar um aspecto que o diferencia de Winckelmann. O objetivo de Lanzi é definir estilos de artistas e escolas, mas entendendo que o artista é verdadeiro criador dos estilos, independente do ambiente e da situação política. Faz remontar cada escola aos mais antigos pintores conhecidos e divide a sua trajetória em vários períodos, conservando a ideia tradicional de evolução cíclica, envolvendo origem, progresso e decadência. Tendo de enfrentar a mobilidade de muitos artistas – o que complica sobremaneira a incorporação dos artistas às escolas –, decide-se pelo critério de tempo de permanência e importância do trabalho dos artistas em determinados lugares – o que faz com que incorpore estrangeiros (Poussin, Claude Lorrain entre outros) às escolas italianas. É interessante observar que Lanzi tinha a formação de arqueólogo, tendo antes trabalhado com a arte etrusca: tinha, portanto, o hábito de trabalhar com objetos anônimos e de olhar para eles a partir de suas características materiais.5 Por outro lado, trabalhou na Galeria dei Uffizi em Florença, onde recebeu a incumbência de organizar a exposição. Seu método de organização da produção italiana em escolas regionais será a base para reorganização posterior de inúmeras coleções particulares e de museus públicos. Só para citar um exemplo, é interessante assinalar a nova organização do Museu do Louvre durante a 2ª República. O decreto de março de 1848 pretendia transformar o Louvre em Palácio do Povo. Liderado por Philippe-Auguste Jeanron e Frédéric Villot, é realizada uma grande reorganização do acervo de pintura. A exposição das obras estrangeiras passa a ser feita por cronologia e escolas. E a escola francesa fica separada numa galeria à parte – a Galerie des Sept Cheminées –, configurando um panorama sem precedentes da pintura francesa, desde suas origens até Géricault. O propósito de tal iniciativa é evidente: a convicção de que a trajetória da arte francesa era densa o suficiente para ser exposta num museu, em contraponto com as grandes escolas estrangeiras do acervo, especialmente a italiana. Além disso, apontava para a importância contemporânea da arte francesa – insinuando que “a França seria o único país onde a chama divina não havia cessado de brilhar”. Essa nova disposição das pinturas do Louvre foi aberta ao público em agosto de 1848, com grande debate e polêmica. Mesmo Délacroix se mostrava reticente quanto a essa nova compreensão da pintura europeia.6 Assim, desde os discursos de Félix Taunay e os estudos de Porto Alegre sobre a arte brasileira, e ao expor, em 1879, uma coleção de quadros sob a legenda de escola brasileira, a nossa Academia mostrava-se bastante atualizada com as discussões e debates da Europa em termos de historiografia da arte e organização de acervos pictóricos. A Escola Brasileira, apresentada na Exposição de 1879, constava de 83 obras, que hoje se encontram no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) e no Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da UFRJ (MDJVI). 43 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES É apresentada no catálogo pelo nome dos artistas, em ordem cronológica. Começa por artistas ainda coloniais (Manoel de Oliveira, o Brasiliense, e Antonio Alves). Passa, então, à trajetória da Academia, com os primeiros diretores da Academia (Henrique José da Silva, Félix-Emile Taunay e Manoel de Araújo Porto Alegre); em seguida professores de diversas disciplinas (Manoel Joaquim de Mello Corte Real, José Correia de Lima, Joaquim Lopes de Barros Cabral e Augusto Muller); reúne alguns dos primeiros pensionistas (Francisco Antônio Nery e Agostinho José da Mota – este também professor); passa por outro professor (João Maximiano Mafra – então Secretário da Academia); indica outro pensionista (Leão Pallière Grandjean Ferreira); expõe um pintor que não tinha nenhuma ligação com a Academia, mas se destacara nas Exposições Gerais (Arsênio da Silva); destaca os dois grandes pintores formados pela Academia, ambos tendo gozado de pensões de estudos na Europa e ambos atuais professores (Victor Meirelles e Pedro Américo); e termina com dois outros ex-alunos e então professores (Zeferino da Costa e José Maria de Medeiros). Fica bastante clara, aqui, a vontade de ressaltar o papel da Academia – e todo o seu investimento na formação de alunos, na concessão de prêmios, na contratação de professores e na realização das exposições – na construção de um campo artístico próprio, capaz de se reproduzir através do ensino e já perceptível como um conjunto coerente, capaz de atender às demandas – na época, sobretudo do Estado –, exatamente no sentido que Lanzi dá à caracterização de uma escola pictórica. Nessa construção, interessam realmente as pessoas que atuaram, independente da naturalidade, o que explica a presença de estrangeiros. É evidente, ainda, a intenção de destacar a trajetória da arte brasileira num arco evolutivo, indicando as origens relativamente modestas (duas obras ainda coloniais) e o progressivo amadurecimento no domínio do vocabulário e da técnica da pintura europeia da época, chegando mesmo ao nivelamento (é o caso de Victor Meirelles e de Pedro Américo, com as duas batalhas Guararapes e Avaí), em que o tal sonhado nível de excelência europeu é certamente alcançado. [Figura 1] Examinado as obras expostas, é possível verificar que predominam a pintura histórica, incluindo a indianista, e os retratos, e em número bem menor a paisagem e a naturezamorta, mas os estudos são numerosos. Na pintura histórica, evidencia-se a temática voltada para a história do Brasil – confirmando a participação da Academia no projeto de construção da nação – desde Nóbrega e seus Companheiros, de Manoel Joaquim de Melo Corte Real, Magnanimidade de Vieira de José Correia de Lima, até chegar às obras de Victor Meirelles – Primeira Missa no Brasil, Batalha de Guararapes e a Passagem de Humaitá – e Pedro Américo – com a Batalha do Avaí. [Figura 1] Está muito presente na Coleção a questão da formação de um pintor histórico, com a presença de inúmeros estudos – tanto de Victor Meirelles quanto de Zeferino da Costa – e as típicas provas de concurso para concessão de Prêmios de Viagem – como o Lavrador em Campos de Farsália e Telêmaco Ouvindo as Aventuras de Filóctelos, 44 SONIA GOMES PEREIRA de Francisco Antônio Nery; Sertório com a sua Corsa, de Leão Pallière Grandjean Ferreira, S. João Batista no Cárcere de Victor Meirelles, Moisés Recebendo as Tábuas da Lei, de Zeferino da Costa – ou provas para magistério – como Caim Amaldiçoado, de João Maximiano Mafra, Sócrates Afastando Alcebíades do Vício, de Pedro Américo e A Morte de Sócrates, de José Maria de Medeiros. Nos retratos, há vários sem identificação, mas entre os identificados, verificamos alguns retratos dos monarcas – D. João VI (de Antônio Alves), D. Pedro I (Manoel de Araújo Porto Alegre), D. Pedro II (Félix-Émile Taunay) – e também retratos de caráter moral, em que os personagens, pessoas humildes, desempenharam ações humanitárias com bravura – como Retrato do Intrépido Marinheiro Simão, de José Correia de Lima e Retrato do Mestre de Sumaca, de Augusto Müller. Entre as paisagens, há algumas paisagens históricas com temática local. É o caso de obras de Félix Taunay: O caçador e a Onça, Descoberta das Águas Termais de Piratininga e Vista de um Mato Virgem que se Está Reduzindo a Carvão. Nessas pinturas, a especificidade da natureza brasileira é destacada – atitude que corresponde ao discurso de Porto Alegre em suas famosas Teses apresentadas à Congregação da Academia, em que expõe a sua ideia de que o caráter nacional em pintura deveria vir da pintura de paisagem e do estudo da nossa natureza. Nesse vetor, pode ser incluída a naturezamorta Frutas do Brasil, de Agostinho José da Mota. [Figura 3] As demais pinturas são paisagens estritas. Há algumas vistas do Rio de Janeiro – tais como Vista da Mãe d´Água, de Félix Taunay, Paisagem do Rio de Janeiro, de Augusto Müller e Vista da Fábrica em Petrópolis, de Agostinho José da Mota. Há, ainda, vistas FIGURA 3 À esquerda: Descoberta das águas termais de Piratininga, Félix-Émile Taunay, s/d, o/t, 178 x 137 cm, MNBA. À direita: Frutas do Brasil, Agostinho José da Mota, s/d, o/t, 54 x 66 cm, MNBA. 45 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES europeias, como Paisagem da Itália e Vista de Roma, Tirada do Natural, de Agostinho José da Mota e Arredores de Paris, Vista Tirada do Natural, de Arsênio da Silva. Aqui, também, fica enfatizado o processo de formação do pintor de paisagem, pelo destaque dado à expressão “tirado do natural”, evidenciando os estudos preparatórios feitos ao ar livre e depois terminados no ateliê. Embora eu esteja evitando a leitura da coleção apenas com a preocupação de encaixá-la em nichos estilísticos, ao analisar as obras da coleção do ponto de vista estritamente formal, é evidente a oscilação entre composições estáticas e dinâmicas e entre coloridos mais restritos e outros mais fluidos. Essa oscilação indica não apenas a influência dos estilos contemporâneos – o neoclassicismo e o romantismo –, mas também a tradicional querela entre o desenho e a cor, que sempre esteve presente na trajetória da pintura ocidental desde o Renascimento. Assim, a oposição entre as duas batalhas Guararapes e Avaí [Figura 1] – polêmica que tanto ocupou a imprensa da época – significa que, mesmo convivendo com estilos hegemônicos e mesmo dentro do universo acadêmico, o artista sempre teve margem para suas escolhas pessoais. Portanto, a Coleção da Escola Brasileira, apresentada na Exposição Geral de 1879, representava o ponto culminante da trajetória da Academia na construção de um tipo de pintura, a partir de vários elementos: a vontade de atingir o grau de excelência da pintura europeia contemporânea; o desejo de criar uma escola pictórica brasileira, no modelo de Lanzi – a produção consistente de artistas num determinado local e, se possível, com características formais próprias; o comprometimento com o esforço de construção da nação; a persistência da abordagem retórica, que aparece especialmente na pintura histórica e nos retratos. É importante assinalar que, tal como ficou evidente na premiação dos concorrentes de pintura, essa realização se concretizava em 1879, às vésperas da década de 1880 – época de crise e de vontade de grandes mudanças para o Brasil e para a arte brasileira em geral e para a Academia em particular. Daí em diante, algumas das premissas sobre as quais se estruturara a Coleção serão questionadas, especialmente a ligação com o objetivo didático e exemplar de uma pintura marcada pela retórica. As lutas, agora, serão outras. Mas o campo artístico – que havia sido um dos grandes objetivos da Academia – já estava construído e era até possível à nova geração desafiá-lo: é sobre esse solo que os novos pintores – Rodolpho Amoedo, Almeida Júnior, Eliseu Visconti entre outros – vão operar. 46 Notas 1 Nos catálogos das Exposições Gerais, os nomes dos expositores masculinos são sempre acompanhados de endereços profissionais, o que não acontece com os nomes femininos. 2 Seria muito interessante a análise das demais seções, mas impossível aqui pelos limites de espaço. Na arquitetura, expuseram Francisco Caminhoá (antigo aluno da Academia e estudante em Paris) e Luiz Schreider (alemão, que, mais tarde, em 1884, em meio a severas críticas, propõe a transferência do curso de arquitetura da Academia para a Escola Politécnica). Em escultura, surpreende a presença de Caetano de Almeida Reis, depois dos episódios da década anterior: ganhador do Prêmio de Viagem em 1866, foi estudar em Paris com Louis Rochet; mas teve sua pensão suspensa, depois da má repercussão de seu envio – Rio Paraíba do Sul –, assim como atritos com o professor de Estatuária – Francisco Chaves Pinheiro. Tanto na seção de arquitetura quanto na de escultura, aparecem projetos decorativos ligados às construções: é o caso de Francisco de Almeida Costa, com armas imperiais e balaústres da Fazenda Santa Mônica em Valença – evidenciando a atuação (ainda muito obscura) dos artistas nas fazendas de café do Vale do Paraíba fluminense. O já citado Francisco Caminhoá expôs alguns projetos de decoração de interiores: de salão, de sala de jantar e de um salão de objetos de arte para um palácio real. A própria presença de Fotografia já é notável, se levarmos em consideração as polêmicas contemporâneas na Europa, mas esta convivência pacífica entre pintura e fotografia, na minha opinião, não deve ser superestimada do ponto de vista conceitual: muitas vezes, o país culturalmente periférico consegue fazer, até por conta do menor vulto das lutas artísticas, o que nos países centrais seria impensável. Na seção de fotografia, expõem, entre outros, José Ferreira Guimarães – um dos maiores fotógrafos retratistas da época –, e Marc Ferrez – apresentando inúmeras vistas e técnicas. Finalmente, a presença de coleções privadas é significativa. No caso de E. Callado, trata-se de colecionador particular, mas os outros dois – Gérard e Steckel – devem ser negociantes de objetos de arte, uma vez que aparecem com seus respectivos endereços. Frederico Steckel fazia pintura decorativa no Rio de Janeiro, participou do Grupo Grimm e, mais tarde, é contratado para trabalhos de decoração nos prédios públicos em Belo Horizonte, então em construção. 3 LEVY (1990): p. 283. 4 LEVY (1990): p. 283. 5 Germain Bazin, ao tratar da historiografia da arte europeia, enfatiza muito a diferença entre pesquisadores ligados a museus daqueles universitários, destacando no primeiro grupo a maior adesão à análise da obra. Nesse grupo, inclui Lanzi. BAZIN (1989): p. 63-72. 6 GUÉZAN (2012/2013): p. 77-96. 1884. Dos velhos mestres à nova geração Ana Cavalcanti Contar a história da arte brasileira através das exposições que marcaram época e formaram opinião foi a proposta apresentada aos participantes do encontro “Histórias da arte em exposições”. Dentre as várias mostras discutidas, três foram realizadas no século XIX e aconteceram na Academia Imperial das Belas Artes (AIBA), verdadeiro catalisador do movimento artístico entre nós nesse período. Aqui trataremos da Exposição Geral de 1884. Antes de mais nada, porém, é importante dizer algumas palavras sobre o significado e o impacto dos Salões organizados pela Academia, oficialmente conhecidos como “Exposições Gerais”. A cada vez que um Salão era realizado, o ambiente se tornava propício ao debate artístico. As obras criadas no segredo dos ateliês ou nas salas de aula eram enfim expostas aos olhares alheios e se tornavam públicas. Vistas e comentadas, pinturas e esculturas passavam a ser assunto de conversas e artigos especializados que multiplicavam sua repercussão. As obras bem avaliadas eram por vezes adquiridas, integrando-se a coleções privadas ou à Pinacoteca da Academia, porta de entrada para ingressarem a seguir na história da arte. Além da produção individual de cada artista, a atuação da própria Academia de Belas Artes estava exposta no Salão. Ali a instituição prestava contas ao governo, financiador de seus serviços, e era avaliada pelo público que podia julgar seu desempenho na formação dos artistas. Os visitantes, por sua vez, assim como os artistas e a Academia, também se expunham ao percorrer os espaços do Salão, local de convívio onde exibiam erudição e bom gosto em busca de prestígio social. Como se vê, pode-se contar essa história a partir de vários enfoques, pois o Salão de 1884 foi simultaneamente uma produção da Academia Imperial das Belas Artes, um evento cultural da cidade do Rio de Janeiro e espaço de construção da história da arte brasileira. As fontes de pesquisa imprescindíveis para estudá-lo como produção da Academia se encontram no Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da UFRJ. Para abordá-lo como evento cultural da cidade, devem ser consultados os periódicos conservados na Biblioteca Nacional. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Finalmente, pensar o Salão como espaço onde se esboçaram as narrativas da história da arte requer do pesquisador que o estude sob os aspectos acadêmico e social, deixando-se impregnar pelas obras, observando-as, comparando-as, lendo os comentários críticos, entrando em contato com os debates em voga. O Salão como realização da Academia Imperial das Belas Artes Para começar, vejamos o Salão como resultado da atuação dos professores. Os registros nas atas das sessões do corpo acadêmico da AIBA informam que a exposição se realizou no prédio da Academia após uma reforma do segundo pavimento, e teve a duração de três meses e uma semana1. Mas o trabalho de organização, montagem e avaliação do evento durou bem mais que isso. Seis meses antes da abertura, a exposição foi mencionada em ata de 15 de fevereiro de 1884: Consta o expediente de dois avisos da Secretaria d’Estado dos Negócios do Império, a saber: de 5 de janeiro declarando que logo que sejam concluídas as obras a que se está procedendo no edifício desta Academia, pode efetuar-se uma exposição geral de Belas-Artes, contanto que esta se realize sem prejuízo das aulas.2 Vê-se que as condições não eram ideais, o Salão não possuía um espaço próprio e ocuparia as salas da Academia, o que explica a preocupação com o andamento das aulas. A exposição foi aberta em 23 de agosto e se encerrou em 30 de novembro de 1884.3 Duas semanas após seu encerramento, o parecer sobre as obras expostas, assinado pela comissão formada por João Maximiano Mafra, Victor Meirelles de Lima e Pedro Américo de Figueiredo, foi lido na sessão do corpo acadêmico em 17 de dezembro de 1884. Os professores afirmavam: A presente exposição geral é, sem nenhuma dúvida, a mais abundante, mais variada, e talvez mesmo mais importante de quantas se tem feito na Academia das Belas Artes. Setenta e cinco artistas concorreram a ela, expondo 399 trabalhos, [...]. Além destes 399 trabalhos próprios só da exposição anual, havia na galeria ocidental, também em exposição 98 produções da nossa Escola, elevando-se por isso a 497 o total das obras expostas.4 Após essa introdução eloquente e informativa, a comissão observava: Folga a Comissão em reconhecer que os expositores em geral são dignos de louvor; porque não é sem grande esforço, sem sacrifício de tempo e de dinheiro, sem abnegação mesmo, que se trabalha para uma Exposição de Belas Artes, a que infelizmente não corresponde o apreço do público.5 Os professores elogiavam a participação dos artistas, salientando a dedicação e os custos de tempo e dinheiro empreendidos por cada um, e se queixavam da falta de atenção do público. Explicavam em seguida que a frequência de visitantes caíra muito quando comparada ao público da exposição precedente, a de 1879.6 50 ANA CAVALCANTI O parecer continua apresentando a análise das obras que a comissão considerou “mais importantes, quer por sua perfeição, quer pelas esperanças de talentos notáveis”7 de que seriam a revelação. Em diversas passagens, nota-se a importância atribuída à pintura histórica. Escrevendo sobre Augusto Rodrigues Duarte (1848-1888), por exemplo, após mencionarem que o artista expusera quatorze telas, os professores afirmavam: A sua obra capital da atual exposição é o quadro histórico designado com o n.o 60, e que representa em figuras de grandeza natural = As Exéquias de Atalá =. […] Para um artista, como o Sr. Augusto Rodrigues Duarte, que necessita ganhar o pão cotidiano, é um ato de verdadeiro amor da arte, e de própria abnegação lançar-se em trabalho de tão longo fôlego sem a certeza de qualquer compensação.8 Esse quadro de Augusto Duarte hoje se encontra no Museu Nacional de Belas Artes. Por suas dimensões de 190 x 244,5 cm e seu tema retirado do romance Atalá publicado por François-René Chateaubriand em 1801, a tela cumpre os requisitos para ser admirada na categoria de pintura histórica e os professores reconheciam o mérito do artista e seu esforço para executá-la. Veremos adiante que este foi um dos quadros indicados por Victor Meirelles para ser adquirido pelo governo e integrar a Pinacoteca da Academia. Vale lembrar que a romântica e triste história de amor de Chactas e Atalá já inspirara outros artistas, entre os quais o francês Girodet de Roussy-Trioson, cuja pintura de 1808 se encontra no Museu do Louvre onde deve ter sido vista por Duarte. Ainda como exemplo dos elogios à pintura de história, vejamos a passagem na qual a comissão se refere aos trabalhos de Aurélio de Figueiredo (1854-1916): [...] sua obra porém mais importante é a = Francisca de Rimini =, quadro histórico de figuras de grandeza natural [...]. Nesta composição revela-se o Sr. Aurélio de Figueiredo artista capaz de produzir obras valiosas na difícil arte da pintura histórica. [...] merece certamente encômios pela coragem de haver empreendido tão colossal trabalho, num país onde quase tudo falta ao artista = bons modelos, atelier, conselhos de mestres, e principalmente = o apreço e a animação do público.9 Novamente se repete a valorização tanto da pintura histórica quanto do artista que a ela se dedica, e por outro lado o descontentamento com a falta de apreço do público e a ausência de condições adequadas à atividade artística no Brasil. A insatisfação com FIGURA 1 Augusto Rodrigues Duarte (18481888) – As Exéquias de Atalá, 1878 óleo s/tela, 190 x 244.5cm – Museu Nacional de Belas Artes 51 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES a carência de bons modelos era comum, mas chama a atenção a referência à falta de “conselhos de mestres”, já que os autores do texto eram, eles mesmos, mestres... Analisando ainda os quadros que mereceram destaque no parecer, observa-se que os professores foram igualmente generosos quando trataram da pintura de paisagem. Fizeram muitos elogios aos quadros desse gênero, como se vê na avaliação dos trabalhos de Garcia y Vasquez (1859-1912), por exemplo: O Sr. Domingos Garcia y Vasquez expôs cinco paisagens bem desenhadas e pintadas com talento e observação conscienciosa do natural [...] = Restinga em Niterói =, e [...] = Pesca = tem merecimento superior às outras três: é seu autor um aluno da Academia, que deve continuar a cultivar a pintura de paisagem, para a qual tem reconhecida aptidão, […].10 Portanto, a comissão estimulava o artista e reconhecia o valor das pinturas de paisagem. Além disso, o quadro Pesca, aqui mencionado, consta da lista de obras indicadas por Victor Meirelles para aquisição do governo. Reproduzimos na tabela a seguir essa “Relação dos quadros que podem ser comprados pela quantia de 8:289$288 réis” apresentada por Meirelles e aprovada pelos professores em sessão de 7 de fevereiro de 1885:11 ARTISTAS ASSUNTOS AVALIAÇÃO Abigail Cesto de compras 300$000 Bandeira Paisagem 150$000 Bernardelli Vista de Roma 300$000 Caron Praia da Boa Viagem 250$000 Castagnetto Porto do Rio de Janeiro 470$000 Driendl Cena da Baviera 700$000 Duarte Atalá 1:000$000 Estevão R. da Silva Quadro de frutas ou pequena 160$000 paisagem Fachinetti Lagoa Rodrigo de Freitas 500$000 Frati “Do Céu à terra” – Pintura a 189$288 fumaça Grimm Vista do Cavalão 500$000 Hilarião Enxoval de boneca 160$000 Medeiros Iracema 2:000$000 Monteiro Pedreira 300$000 Pagani Parasita 160$000 Peres Fugida para o Egito 900$000 Vasquez Pesca 250$000 Total: 8:289$288 Nota-se a inclusão de numerosas paisagens entre os dezessete quadros propostos para compra, sendo ao menos cinco de pintores ligados ao “grupo Grimm”, a saber: Thomas 52 ANA CAVALCANTI Driendl, Caron, Castagnetto, Garcia y Vasquez e o próprio Georg Grimm. Devemos lembrar que a passagem de Grimm como professor de pintura de paisagem na AIBA foi interpretada pelos historiadores da arte brasileiros como um momento de transformação e atualização da prática de nossos pintores, contrapondo-se aos preceitos vigentes na Academia.12 Mas o fato de o corpo acadêmico aprovar a compra de vários quadros realizados por membros do grupo indica que ali também se reconhecia a qualidade de seus trabalhos. É verdade que a soma de oito contos e duzentos e oitenta e nove mil réis destinada à aquisição de obras no Salão foi considerada insuficiente pelos professores. É o caso de se perguntar: se a quantia fosse maior, teriam sido tão numerosos os quadros de paisagem na lista? A hipótese de que as indicações não refletiam as preferências dos professores, sendo mero resultado das circunstâncias, parece convincente se lembrarmos que Pedro Américo chegou a declarar que: não lavrou “parecer” porque entende que com a pequena quantia concedida pelo Governo, não se pode fazer uma escolha justa e acertada dos trabalhos mais dignos pelo seu merecimento de ficarem nas galerias da Academia.13 De todo modo, a escolha de Victor Meirelles foi aprovada, e hoje quadros adquiridos nessa ocasião integram o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Nas atas das sessões da Academia, também consta o registro das receitas e despesas do Salão de 1884:14 Receita: Produto das entradas pagasw 6:469$900 D. da venda do catálogo da Exposição 918$000 D.o d.o do catálogo ilustrado 364$500 Gratificação paga ao bilheteiro Adalberto Pin- 522$664 o Despesa: 7:752$400 to Miz; 3 meses e 8 dias, à razão de 160$000 mensais D.o ao 1o porteiro Candido Galdino de Maga- 310$000 lhães, 2 meses e 25 dias à razão de 110$000 mensais. D.o ao 2o dito Joaquim Pes.a Duarte; 12 dias à 39$784 razão de 100$000 mensais D.o ao do Cunha; 18 dias à razão de 100$000 60$000 mensais D.o ao do Melquiades José da Fon.ca, 2 meses e 226$664 8 dias. idem D.o ao Vigia Affonso Gonzaga; 2 dias a 2$000 4$000 A Pereira Braga; importância de sua conta de 1:300$000 2:463$112 typographia e lytographia Saldo em poder do Secretário 53 5:289$288 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O saldo arrecadado, acrescido de verba especial do governo, foi utilizado para a compra das telas listadas anteriormente. As atas trazem ainda informações sobre divergências entre os membros da comissão encarregada de escolher os artistas que receberiam medalhas e distinções, episódio do qual tratei com mais detalhes em artigo publicado em 2011.15 Do exposto até aqui, conclui-se que era grande a importância que os professores atribuíam ao Salão. São sinais dessa atenção privilegiada o cuidadoso julgamento das obras, as discussões em torno da distribuição dos prêmios, os elogios aos artistas que enviaram seu trabalhos e até mesmo as queixas referentes à escassez do público. O Salão era o ponto alto das atividades da Academia. Embora a formação dos artistas se fizesse no cotidiano das aulas, era na exposição que esse trabalho encontrava sua justificativa. Os esforços do dia a dia não fariam sentido se não houvesse um público interessado naquilo que os artistas produziam. A arte era feita para ser vista e discutida. Quanto ao Salão de 1884, de fato despertou o interesse do público, como atestam os comentários divulgados na imprensa que veremos a seguir. O Salão de 1884 comentado nos jornais e revistas O Salão foi assunto tratado em diversos periódicos. Vejamos o que se disse em alguns deles, começando pela Revista Illustrada16 que, de agosto a novembro, publicou uma série de desenhos e críticas ao evento.17 A abertura da exposição recebeu grande destaque na primeira página do número 388 com o desenho de uma imensa palheta da qual saíam em ramalhete telas e mais telas pintadas. Na legenda, abaixo da figura, se lê: “Grande Exposição Geral das Belas Artes. Ficaremos certamente deslumbrados diante dos inúmeros quadros que nascem das palhetas. Talento e óleo de linhaça, e viva a pintura!” Os cinco números que se seguiram traziam charges e textos sobre o Salão e, após um pequeno intervalo, novos desenhos foram publicados nos números 396 e 397. Tanto nas charges quanto nos artigos assinados por “X.” nota-se o tom jocoso de Angelo Agostini (1843-1910). Uma das “vítimas” de suas caricaturas foi o quadro As Exéquias de Atalá, de Augusto Rodrigues Duarte, o mesmo que fora elogiado pelos professores da Academia, como vimos. Agostini reproduz a composição realizando pequenas mudanças nas atitudes dos personagens. Desenha o religioso tapando o nariz, enquanto Chactas segura as patas do cachorro, gesto “explicado” na legenda: “Chactas, imerso em profunda dor pela perda da sua formosa Atalá, dispõe-se, antes de deixá-la para sempre, a atirar na cova o seu cão, para que este a defenda contra os ataques dos micróbios.”18 Quando trata da Francesca da Rimini, tela de Aurélio de Figueiredo, Agostini brinca inventando um diálogo entre os personagens da história: Quem teria colocado ali aquela cortina preta? Pergunta Paulo. Parece-me que não é cortina... responde Pedro. – É cortina. – Não é. – É. – Não é. Para certificar-se, Paulo manda a ver o pagem, o qual, depois 54 ANA CAVALCANTI de ter bem examinado, volta-se dizendo: É uma mulher, e muito comprida. Esta, ouvindo falar, volta-se e então Paulo ficou sabendo que [a] dita cortina era D.a Francisca de Rimini.19 Há alguns anos, comentei o mesmo diálogo interpretando-o como uma interação entre os visitantes da exposição e os personagens do quadro.20 Observando melhor, compreende-se que as falas são atribuídas às figuras pintadas. De todo modo, é interessante perceber como as obras estimularam a imaginação do crítico. Agostini não poupou artistas de nenhuma tendência, porém seus ataques mais ferinos se dirigiram a Pedro Américo e Victor Meirelles. Sob o pseudônimo de “X.” escreveu: Duas grandes vítimas de louvores imerecidos são justamente os dois principais professores da nossa Academia, considerados gênios pelos seus amigos e admiradores. [...] O resultado foi uma tremenda decepção, pois que hoje muitos já reconhecem que os dois gênios não passam, perante a verdadeira arte, senão de duas mediocridades. Eles pararam quando deviam ainda estudar e estudar sempre. Mas pouco a pouco o gosto vai se desenvolvendo entre nós e os admiradores dos dois mestres já vão esfriando o seu entusiasmo.21 Em contraste com essa crítica aos mestres, Agostini se entusiasma com a participação de Almeida Junior e Rodolpho Amoedo, artistas da nova geração, sobre os quais afirmou: O Sr. José Ferraz de Almeida Junior e Rodolpho Amoedo são os que maior sensação tem causado nesta exposição. Ex-alunos e pensionistas da Academia, foram para a Europa estudar o que esta não lhes podia ensinar, e pelos quadros que mandaram, vê-se que eles não perderam o seu tempo. Estudaram bastante, estudaram muito até em razão do pouco tempo que lá estiveram. Por isso não se pode deixar de admirar os seus grandes progressos.22 FIGURA 2 Angelo Agostini. Revista Illustrada n. 391, p. 4. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1884 (detalhe). 55 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Almeida Junior expôs quatro telas: A Fuga para o Egito, O Descanso do Modelo, O Remorso de Judas e O Derrubador Brasileiro. Rodolpho Amoedo, um total de quinze trabalhos, dentre os quais se destacaram O Último Tamoio, Marabá, A Partida de Jacob, Estudo de Mulher e um esboço para a tela Jesus Cristo em Cafarnaum. Em sua crítica, Agostini toma partido e não disfarça sua preferência pelos novos artistas. Nisso não esteve isolado, ao contrário, o apoio aos jovens que começavam a aparecer foi frequente entre os jornalistas contemporâneos. No mesmo sentido escreveu Gonzaga Duque, atacando os antigos e estimulando os novos. Ao fazer o balanço da participação de Pedro Américo nos Salões de 1879 e 1884, afirmou que “o decurso de cinco anos foi estéril para o artista, ele ainda é o mesmo, o mesmíssimo. David, Judite, Virgem Dolorosa, Jacobed, Heloísa, são os assuntos das suas telas”.23 O pintor lhe parecia parado no tempo, sobretudo pelos temas de seus quadros. O grande artista do Salão, segundo Gonzaga Duque, era Almeida Junior, “aquele que acusava, por suas obras, maior originalidade e mais nítida e moderna compreensão da arte […]. Almeida Junior vale por grande parte dos expositores que ali figuravam” disse o crítico.24 Também Rodolpho Amoedo recebeu comentários entusiasmados de Gonzaga Duque, em especial por seu Estudo de Mulher que teria sido, dentre os quadros do Salão, “o mais bem pintado, o que resumia mais conhecimento de modelado e maior savoir faire, isto é, espontaneidade, segurança e elegância de toque”.25 Vejamos agora os comentários que Félix Ferreira publicou no periódico Brazil, em 1884, artigo reproduzido no ano seguinte em seu livro Belas artes, estudos e apreciações: Incontestavelmente, esta é a Exposição mais rica e variada de quantas se tem feito na Academia das Belas Artes desde 1840, em que ali se organizou a primeira. Nem mesmo a de 1873, a qual concorreram as grandes telas do Combate naval de Riachuelo e Batalha do Campo Grande, ou a de 1879, em que figuraram as Batalhas de Avaí e dos Guararapes, foram superiores à atual, quer em número, quer em variedade; é que, a despeito da indiferença do público e descuramento do Governo, as artes progridem entre nós.26 Félix Ferreira enaltece a qualidade da exposição pela quantidade e variedade de obras, e se queixa da indiferença do público. Compartilha assim a opinião manifesta pelos professores da Academia no parecer que mencionamos anteriormente. O crítico acrescenta uma acusação ao governo imperial por seu “descuramento”. Em todo caso, afirma que a Exposição Geral de 1884 fora a mais importante até então realizada no Brasil. De seu longo artigo, destaco alguns trechos. Chamam a atenção seus comentários sobre os benefícios da disputa entre os artistas. Para ele, uma “exposição tão bela e tão numerosa” era resultado do “natural antagonismo entre moços e velhos, entre mestres e discípulos”. É o que explica na passagem a seguir: Com os nossos artistas dá-se o mesmo que com os escritores: há entre eles umas tantas rivalidadezinhas que os segregam em pequenos grupos, os quais, infeliz e exatamente como nas Letras, combatem mais pela personalidade que pela escola ou ideias que abraçam. Porém dessa desunião, cumpre reconhecerse, nasce a emulação que inspira o artista e o impele mais fortemente à conquista do aplauso; vem daí 56 ANA CAVALCANTI FIGURA 3 lpho Amoedo (1857-1941) – Estudo de Mulher, 1884 – óleo s/tela, 150.5 x 200 cm – Museu Nacional de Belas Artes um isolamento, é certo, mas que, se, por um lado, o deixa sem conselho, muitas vezes necessários [sic] à correção de defeitos que passam despercebidos aos olhos do próprio autor, por outro lado como que duplica-lhe o alento e renova-lhe as forças para o combate. A rivalidade na arte é mais produtiva que a chamada confraternidade, que, no fundo, não pode existir.27 Aqui outro aspecto da exposição fica explícito, o da competição. Ver as obras em conjunto permitia ao público compará-las, fazer suas escolhas, exercitar seu gosto e juízo estético. Foi o que Félix Ferreira fez, ao comentar: Notamos com prazer que nesta Exposição predomina a paisagem; que os nossos pintores voltam-se à natureza e começam a compreendê-la e admirá-la. Exceção feita ao Sr. Pedro Américo, que, há anos retirado à Itália, deu preferência à pintura bíblica, histórica e de costumes.28 Tal como Angelo Agostini e Gonzaga Duque, Ferreira não esconde suas opiniões. É clara sua defesa da pintura de paisagem, que julga ser o ponto alto do Salão: Chegamos a uma das seções mais interessantes e mais belas da Exposição: a de paisagens, vistas e marinhas. Campo vasto, mina inesgotável, que a nossa natureza tão variegada e formosa nos faculta com tanta prodigalidade, quanta arte.29 Era a natureza que permitiria, segundo ele, desenvolver uma “escola brasileira” na arte. Por isso elogiava os alunos de Georg Grimm, ao mesmo tempo em que constatava o desinteresse crescente diante das pinturas de batalha de Pedro Américo e Victor Meirelles: Quanto mais nos vamos afastando do período da Guerra do Paraguai, mais se vai extinguindo o entusiasmo popular por essas heroicidades de Riachuelo e de Avaí; eis porque os quadros dos Srs. Pedro Américo e Victor Meirelles, que tratam de tais assuntos, vão, pouco a pouco, caindo no olvido e na indiferença.30 Aos artistas que buscavam o sucesso no Salão, cabia perceber para onde se dirigia o “entusiasmo popular”. Que temas interessariam ao público? Essa questão passou a moldar a produção artística. Por vezes, para atrair os olhares, recorria-se à sensualidade. Nesse caso, podemos incluir o Estudo de Mulher, de Rodolpho Amoedo, que tanto 57 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES agradara Gonzaga Duque; ou A Faceira, de Rodolpho Bernardelli, obra que causou sensação em 1884. Sobre ela, Oscar Guanabarino escreveu no Jornal do Commercio: Falaremos em primeiro lugar do Sr. Rodolpho Bernardelli que, por conta da Academia estuda atualmente em Roma. É de caso pensado que encetamos o estudo das nossas impressões pela estátua, original em gesso, denominada A Faceira. Impossível seria ocultar que de tudo quanto vimos foi o que mais nos impressionou.31 Igualmente impressionado ficara Félix Ferreira, como se vê no comentário: A Faceira é uma concepção inspirada e executada com maestria e facilidade. Vê-se nela que a mão que moldou essas formas donairosas e cheias de vida [...] de uma mulher sedutora, é tão adestrada quanto ardentemente artístico é o cérebro que ditou as curvas graciosas dessa estátua helênica. A posição, a cabeça, o tronco, o todo, enfim, revelam estudo sério e bem-encaminhado, ciência da arte, savoir faire, e talento real de quem a produziu. A Faceira tem sido considerada e aclamada a obra-prima do Sr. Bernardelli nesta Exposição […].32 Uma “obra-prima” aclamada na exposição... Será que algo novo estava acontecendo? Por mais que os artistas se queixassem do desinteresse do público, a leitura do material veiculado na imprensa carioca sobre o Salão de 1884 nos ajuda a perceber que o meio artístico local já apresentava consistência e complexidade. A exposição estimulava o debate e os críticos se posicionavam fazendo escolhas entre tendências e gerações. O levantamento das críticas publicadas nos jornais evidencia que a situação estava mudando. O Salão e a história da arte brasileira Partindo da premissa de que as exposições alimentaram as narrativas da história da arte, uma pergunta se coloca: que interpretação sobre a arte brasileira se impôs com o Salão de 1884? Ou, para usar uma linguagem mais corriqueira: Que imagem, que “retrato” daquele momento essa exposição nos legou? Talvez não se aplique aqui o singular, mas devamos falar de “interpretações”, “retratos”, “imagens”. Afinal, diversos personagens participaram na elaboração dessa história: os professores que selecionaram obras, distribuíram prêmios e determinaram aquisições; os críticos que fizeram escolhas, deplorando fracassos ou exaltando conquistas; o público que interferiu com suas opiniões; e os artistas que testaram sua produção. De fato, o Salão de 1884 funcionou como laboratório em que diferentes projetos se chocaram, misturaram e produziram ideias sobre a arte nacional. Vimos como a exposição projetou a nova geração de artistas, com destaque para Rodolpho Amoêdo, Almeida Junior e Rodolpho Bernardelli, que conquistaram a pre58 ANA CAVALCANTI ferência do público, recebendo amplo apoio da crítica nos jornais cariocas. A exposição também consagrou a pintura de paisagem, em especial a dos alunos de Georg Grimm, enquanto a pintura de história dos mestres Pedro Américo e Victor Meirelles foi questionada com veemência. Para entender essa mudança no gosto, é útil pensá-la em relação ao mundo da arte internacional, verificando o que ocorria na arte europeia no decorrer desse período. Nesse sentido, vale citar Oskar Bätschmann que, em seu livro sobre o artista no mundo moderno, identificou uma mudança no padrão da carreira dos artistas profissionais: A mudança ocorreu na segunda metade do século XVIII, principalmente na França e na Inglaterra. O artista de exposição se estabeleceu como o novo tipo principal, substituindo tanto o artista da corte quanto o artista que mantinha um ateliê comercial, aceitando encomendas de vários patronos ou pintando para o mercado. A mudança só se tornou possível quando as exposições se institucionalizaram e o público emerge como o novo destinatário das obras de arte e o novo poder no mundo da arte.33 Propiciando espaço para o debate crítico, o Salão de 1884 favoreceu a definição de mudanças no projeto para as artes no Brasil do final do século XIX. De todos os elementos que atuaram nesse processo, é possível que os espectadores, visitantes da exposição, tenham sido o ingrediente determinante. No decorrer do século, o público interessado nas artes foi ganhando cada vez mais visibilidade, passando de espectador a espetáculo, ocupando pouco a pouco o centro da cena. Acompanhando essa mudança, as obras expostas passaram a funcionar como “espelhos” em que os visitantes gostavam de reconhecer a si mesmos e a seu mundo. Alheios às transformações, Victor Meirelles e Pedro Américo foram impiedosamente criticados em 1884, pois representavam naquele momento o papel de artistas da corte a serviço do governo imperial. Victor Meirelles ainda não iniciara suas pinturas de panoramas, projeto do qual se ocupará a partir de 188634 e que podemos compreender como sua adesão ao novo mundo da arte. Mas os jovens artistas que começam a se destacar na década de 1880, especialmente Almeida Junior, Rodolpho Amoedo e Rodolpho Bernardelli, aos quais se juntará em seguida Henrique Bernardelli que obterá grande destaque no Salão de 1890, passam a atuar como “artistas de exposição”, inteiramente conscientes da importância do público. Para concluir essas reflexões, resta notar que os cinco anos que separam as Exposições de 1879 e 1884 foram suficientes para essa mudança que terá desdobramentos. Os últimos anos do século verão os conflitos internos à Academia se acirrarem, culminando com a reforma da instituição em 1890, vitória da nova geração e de seu desejo de virar a página do período imperial. 59 Notas 1 Atas das Sessões em 15 de fevereiro e 17 de dezembro de 1884. In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http://docvirt.com/ MuseuDJoaoVI/ 2 Ata da sessão em 15 de fevereiro de 1884. In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http://docvirt. com/MuseuDJoaoVI/ 3 Essas datas constam tanto nas atas das sessões do corpo acadêmico da AIBA quanto nos artigos publicados nos jornais da época. 4 Ata da sessão em 17 de dezembro de 1884, p. 11 (verso). In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http://docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 5 Idem, ibidem. 6 O intervalo de cinco anos entre as duas Exposições (1879 e 1884) não era previsto no regulamento. Deu-se, mais uma vez, pelas dificuldades financeiras da instituição que dependia das verbas do governo para realizar os Salões. Conforme consta no parecer citado, em 1879 o público chegara ao total de 292.296 visitantes, ou seja, um número mais de quatorze vezes superior ao público de 1884 que fora de 20.154 pessoas pagantes. A explicação para a redução drástica seria o fato de pela primeira vez o ingresso à exposição não ser gratuito. 7 Ata da Sessão em 17 de dezembro de 1884, p. 11 (verso). In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http://docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 8 Ata da Sessão em 17 de dezembro de 1884, p. 12 (verso). In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http://docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 9 Idem, p. 13. 10 Idem, p. 12 (verso). 11 Ata da Sessão em 7 de fevereiro de 1885, p. 20. In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http:// docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 12 Cf. LEVY, Carlos Roberto Maciel. O Grupo Grimm, paisagismo brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1980. 13 Ata da Sessão em 7 de fevereiro de 1885, p. 20. In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http:// docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 14 Ata da Sessão em 17 de dezembro de 1884, p. 17. In: Atas das sessões do Corpo Acadêmico da Academia Imperial de Belas Artes. Museu D. João VI, arquivo 6153. Disponível em http:// docvirt.com/MuseuDJoaoVI/ 15 CAVALCANTI, Ana M. T. Tradição, originalidade e formação de artistas na Academia Imperial das Belas Artes. In: Anais do XXXI Colóquio do CBHA [Com/ Con] tradições na História da Arte. Campinas, 2011. Disponível em http:// www.cbha.art.br/coloquios/2011/ anais/pdfs/ana_cavalcanti_artigo_anaiscbha2011.pdf 16 A Revista Illustrada foi fundada por Angelo Agostini no Rio de Janeiro em 1876 e circulou até 1898. 17 A Revista Illustrada publicou charges e textos sobre o Salão em todos os números do 388 ao 393, e nos números 396 e 397. 18 AGOSTINI, Angelo. Salão de 1884 n. 3. In: Revista Illustrada n.391. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1884, p.4. 19 Idem, p. 4-5. 20 CAVALCANTI, Ana. A crítica de arte ilustrada: Angelo Agostini e o Salão de 1884. In: KNAUSS; MALTA; OLIVEIRA; VELLOSO. Revistas Ilustradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X / Faperj, 2011, p. 128. 21 AGOSTINI, A. Salão de 1884. Revista Illustrada n. 390. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1884, p.6. 22 AGOSTINI, Angelo. Salão de 1884 III. In: Revista Illustrada, n. 392. Rio de Janeiro, 11 de outubro, p. 3. 23 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 161-162. 24 Idem, p. 180. 25 Idem, p. 187. 26 FERREIRA, Félix. A Exposição Geral de 1884. In: Belas artes, estudos e apreciações. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 177. [A primeira edição é de 1885]. 27 FERREIRA, Félix. A Exposição Geral de 1884. In: Belas artes, estudos e apreciações. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 177. 28 Idem, p. 223. 29 Idem, p. 222. 30 Idem, p. 198. 31 GUANABARINO, Oscar. A Exposição de Belas Artes. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884, p. 1. 32 FERREIRA, Félix. Belas artes, estudos e apreciações. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 192. 33 BÄTSCHMANN, Oskar. The artist in the modern world: the conflict between market and self-expression. Cologne: Dumont, 1997, p. 9. 34 Cf. FRANÇA, Cristina Pierre. Victor Meirelles e os Panoramas. In: Anais do 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Panorama da Pesquisa em Artes Visuais. Floriqnópolis: 19 a 23 de agosto de 2008. Disponível em http://www.anpap.org.br/anais/2008/ artigos/014.pdf 1901. Exposição de Visconti na ENBA: artes e decorativas Marize Malta FIGURA 1 Composição com as imagens da capa do catálogo da exposição E. Visconti – pintura e arte decorativa, ocorrida em 1901 na Escola Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, de autoria do próprio Eliseu Visconti, e a pintura Dança das Oréades (1899), presente na mesma exposição. A exposição “E. Visconti – pintura e arte decorativa”, realizada em 1901 na Escola Nacional de Belas Artes, após retorno de Eliseu Visconti (1866-1944) de seu estágio na Europa, fruto do 1º Prêmio de Viagem na República, talvez seja a única exposição, dentre as que iremos refletir nesse livro, que trata da tentativa de justapor duas categorias de arte entendidas como diferentes e, por vezes, opostas ou contraditórias – daí o nome artes e decorativas, um jogo de palavras que busca criar ruído em acomodações “artes decorativas” ou “artes e decoração”. A distinção ou aproximações entre elas ou a busca por anulação de seus limites ainda é um desafio para a historiografia da arte no Brasil. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O próprio termo “artes decorativas” não é imune a controvérsias. Pelo contrário. Historicamente datado, cuja epistemologia se configura no século XIX, o termo é equiparado a outras designações como artes aplicadas, artes industriais, artes utilitárias, artes mecânicas, cujas nuances mereceriam maior atenção, mas nas quais não nos deteremos no presente texto. John Ruskin, em 1859, já sentenciava: “Por mais que se discuta o assunto, o próprio sentido do termo ‘artes decorativas’ permanece confuso e indeciso”.1 O fato é que após a classificação das belas artes em cinco modalidades de criação (pintura, escultura, arquitetura, poesia e música), tudo aquilo diferente delas estaria fadado a ser visto como outras-artes, ou, em contraposição, como feias-artes, ou seja, algo realmente diverso e aquém delas. Para além dos efeitos das ideias disseminadas pela Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, lugar privilegiado em que a classificação foi germinada,2 a dicotomia existente entre a tríade plástica das belas-artes e as demais criações se fazia tão arraigada que vozes se manifestaram a favor das artes decorativas.3 Se hoje o termo artes decorativas é considerado ultrapassado, a discussão entre o que é artístico ou decorativo, ou as várias formas de arte e de decoração, ou quais suas aproximações e distanciamentos, está longe de dispensar atenção por não ser mais necessário ou não fazer mais sentido. O termo design não substituiu nem supriu lacunas acerca dos objetos decorativos e os estudos em design e cultura material não deram conta de muitos objetos e questões antes encampados pela história das artes decorativas. Aliás, o termo continua confuso e indeciso, como Ruskin aludiu. Portanto, essa aproximação com a exposição “E. Visconti – pintura e arte decorativa” é uma oportunidade especial, senão única, para pensar na justaposição de formas de arte variadas, consideradas diferentes, e procurar compreender os embates e acomodações que ocorreram no campo da arte no entresséculos. O próprio Visconti é exemplo de um artista que conciliou a produção pictórica com a decorativa, não de maneira pontual, como alguns artistas de sua geração, mas como dois ramos de um mesmo tronco, interpretado no desenho da capa do catálogo [Figura 1] da exposição e que tão bem sintetizou a carreira do artista. Sua geração passou a olhar de forma diferente para as coisas do decorativo, atuando em campos mais amplos do que a pintura, carro-chefe da formação nas academias. Os pintores formados pela Academia/Escola de Belas Artes não viviam só de pintura de cavalete ou painéis em prédios públicos, mostrando o quanto as práticas artísticas se relativizavam conforme as chances de mercado. Visconti e os irmãos Bernardelli também atuavam como decoradores, demarcado na Gazeta de Notícias: Simplesmente imponente e bella foi a festa que hontem o pessoal do nosso venerando collega Jornal do Commercio offereceu ao seu director, Dr. José Carlos Rodrigues, commemorando o 12º anniversario da sua entrada para a grande empreza jornalística. Foi uma festa inesquecível. O valor dos artistas encarregados da ornamentação dos salões, que foram os Srs. Rodolpho e Henrique Bernardelli e Visconti, e o bom gosto que presidiu à sua decoração, fizeram com que aquella tenda de trabalho ficasse transformada em um céo aberto numa região maravilhosa desconhecida.4 [grifo nosso] 62 MARIZE MALTA Voltar o olhar para as artes decorativas, no seio da Escola Nacional de Belas Artes, é encontrar uma história oculta ainda por ser escrita, capaz de anunciar outra dimensão dessa instituição, que o título e estudos a seu respeito não levaram muito em conta.5 De um modo geral, a formação em uma academia era pensada para habilitação de artistas. Quanto aos artífices, cabia-lhes adquirir suas habilidades por meio da orientação de um mestre, cujas normas eram regidas por corporações de ofício ou no chão das oficinas. Sua formação estava eminentemente ligada ao fazer. Por outro lado, na França, desde o século XVIII, cogitava-se prover os artesãos de aptidões até então adquiridas pelos artistas, como o desenho. Da primeira escola aberta em Rouen, em 1741, outras se seguiram, ofertando modalidades diferenciadas de desenho (geométrico, artístico, de ornamentos, de arquitetura, de animais, figuras e flores, etc.). Em 1821 fundava-se na Alemanha um instituto para as artes aplicadas; em 1826, na França, a Escola Técnica La Martinière era direcionada às artes industriais; na Grã-Bretanha, em 1837, surgia a Escola Governamental de Design que daria origem às escolas de South Kensington, “talvez a mais importante experiência do século XIX no âmbito da educação artística popular”.6 Vários outros estabelecimentos foram aparecendo para dar conta da formação do então esthéticien industriel. Uma dessas escolas se tornaria em 1877 a École Nationale des Arts Décoratifs.7 Contudo, esse esforço partia do pressuposto de que as artes e os ofícios eram dois campos separados. Os ecos desses movimentos se fizeram ouvir no Brasil que congraçava a ideia de que as belas artes eram o alicerce e fundamento para “perfeição manufatureira e que, consequentemente, o atraso de nossa indústria devia-se à falta de conhecimento do desenho na educação de nossos artífices”.8 Lembremos que os estatutos de 1855 da Academia Imperial de Belas Artes criaram a figura do “aluno artífice”, diferenciando-o do “aluno artista”, e que alcançaria o diploma de mestre mediante a aprovação em determinadas disciplinas e no exame prático do seu ofício perante uma junta de mestres nomeada por professores da AIBA. Como lembra Rafael Cardoso, Apesar da separação entre belas-artes e ofícios prevista nos estatutos de 1855, estes eram até bastante inclusivos para os padrões da época, pois abriam ao artífice a possibilidade de freqüentar a AIBA em um momento quando várias academias europeias discutiam meios de impedir o ingresso de qualquer aluno formado em escola de cunho técnico-artístico.9 Mesmo com a exoneração de Araújo Porto-Alegre, grande responsável por essa transformação, durante quase três décadas, aprendizes de artistas e artífices conviveram na mesma instituição, embora seus estudos fossem diferenciados. Porém, a iniciativa mais bem-sucedida foi o surgimento da Sociedade Propagadora das Belas Artes, em 1856, responsável pela edição da revista O Brasil Artístico e, principalmente, pela criação do Liceu de Artes e Ofícios, inaugurado em 1858, que contou com o esforço de muitos docentes da Academia em lecionar aulas gratuitamente a futuros artífices, incluído o próprio diretor Francisco Joaquim Béthencourt da Silva.10 Esse perfil diferenciou o liceu de outras instituições de ensino direcionadas a artífices. Muitos dos futuros alunos da Academia começaram a aprender seus primeiros traços no liceu, como o próprio Eliseu 63 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Visconti, cujo ingresso foi em 1883. Talvez essa experiência em um lugar de formação de artífices tenha entusiasmado Visconti a aderir ao curso de Grasset na École Guérin quando gozou de seu Prêmio de Viagem em Paris. Nos seus cadernos,11 as linhas e manchas que impressionam as páginas dançam ao sabor da imaginação e do cadenciado do aprendizado que procura compreender melhor os meandros do decorativo sem se esquecer do pictórico. Os traços ligeiros e seguros vão criando personagens, poses, ornamentos e composições, potentes imagens predestinadas a telas, vasos, candelabros, cartazes... A Exposição Universal de 1851, em Londres, foi o evento decisivo para que centenas de manufaturas de diversos países estivessem reunidas e fosse possível perceber visivelmente as diferenças qualitativas em termos técnicos e estéticos entre elas.12 Em meio a tecidos, vidros, louças e máquinas, esculturas e pinturas disputavam atenção de futuros consumidores. Para alguns, era evidente que umas peças eram mais belas que outras e, para aquelas consideradas inferiores, parecia faltar-lhes o toque mágico da arte. A arte deveria se integrar à vida e a diferença entre artes e ofícios precisava ser suprimida. John Ruskin, na Inglaterra, foi uma das primeiras vozes a conclamar que “Não existe arte de primeira categoria que não seja decorativa”. Em seguida, o movimento Arts & Crafts consolidou os ideais ruskianos e ampliou o número de adeptos na Grã-Bretanha e em outros países. O artista não se dedicaria apenas a criar belas pinturas, soberbas esculturas e impressionantes arquiteturas. Sua criatividade e habilidade deveriam ter sua ação alargada, impregnando aquilo que era normalmente da alçada dos artífices. Visconti, em sintonia com os ideários da unificação das artes em prol da melhoria das condições de vida das pessoas, atuou em várias frentes da produção artística, dirigindo seus esforços não só para a pintura de cavalete e decorativa, mas para estampas, cartazes, peças cerâmicas, painéis de marchetaria, peças com apelos cotidianos e serializados. Como profetizava Ruskin, “Estamos prestes a ingressar em um período da história mundial em que a vida doméstica, auxiliada pelas artes da paz, irá suplantar gradativamente, mas enfim por inteira, a vida pública e as artes da guerra”.13 A arte não estaria mais a cargo dos reis, mas acessível aos mais humildes, na medida em que estaria impregnada nos objetos banais do dia a dia. As pessoas, na trivialidade de suas vidas, deveriam compartilhar do prazer da arte. Do capitalista endinheirado ao condutor de bonde, todos desejavam estar circundados com belas imagens, ambientes aprazíveis, peças esteticamente agradáveis. Para isso, era necessário que do papel de parede ao quadro pendurado, do relevo da moldura da porta ao busto do músico admirado, tudo se desfizesse de sua condição ordinária, passando ao status visual de extraordinário. Visconti atuou em uma época em que os apelos ao decorativo estavam presentes nos debates e orientações de críticos e demais agentes do sistema da arte, e nas propostas de algumas tendências artísticas, como a arte nova, os pré-rafaelitas e simbolistas. No Brasil, Félix Ferreira14 e Gonzaga Duque15, por exemplo, não se furtaram a orientar donas de casa para introduzirem a arte em suas casas, dando a ver o quanto as aproximações entre crítica de arte e consultor para assuntos do lar e da decoração estavam sendo negociadas. Pessoas passaram a desejar ter arte em casa, uma arte decorativa: um canapé encostado à parede, ladeado por dois pedestais com cachepôs, encimado por quadros de paisagens em 64 MARIZE MALTA diversas dimensões, um espelho oval ao centro e quadros de retratos acima, em disposição escalonada para fugir da composição monótona. As coisas da arte se justapunham às coisas de uso, promovendo convivências alastradas. Situação semelhante também pôde ser vista nos ateliês dos pintores. Os objetos circundavam suas visualidades e seus apelos decorativos podiam ser referenciados nas telas. Nos ateliês, vasos, tapeçarias, tapetes, tecidos, luminárias, divãs e cadeiras, relógios, pedestais acomodavam-se junto aos quadros, aos modelos de estudo, aos esboços. Acessando alguns quadros e fotografias de fins do século XIX que expõem os ambientes interiores dos ateliês – um tema, aliás, muito expressivo do período – podemos encontrar essas justaposições. Impossível não nos remetermos ao delicioso O Descanso da Modelo, de Almeida Junior, que a pretexto de registrar aquele momento descontraído de pausa, descortina todos os apetrechos decorativos, texturas e cores que seduzem os olhos e vibram no espírito, mostrando o encantamento do artista pelas coisas do decorativo. Um objeto decorativo, como elemento de composição formal de um quadro, estabelecia uma tensão provocada pela transposição do mundo tridimensional da realidade material para o mundo bidimensional da representação da tela. O mundo sólido dos ambientes de vida e trabalho transformava-se em representação. A pintura podia ser decorativa e a decoração se fazia pintura. Os limites estavam esgarçados. Foi diante desse cenário que Visconti rumou para Paris em fevereiro de 1893, retornando em 1900. De 1894 a 1898 frequentou a École Guerin, cursando desenho e artes decorativas com Eugène Grasset. Lá pôde experimentar o processo da criação de repertórios ornamentais a partir da estilização de elementos da natureza e a introjetar as premissas da composição decorativa, na pintura, inclusive. Atualizou suas tendências artísticas e pôde usufruir a experiência da fartura de oferta das mercadorias apresentadas em feiras, exposições e lojas, e do panorama artístico oferecido pelos salões. Estava no lugar certo, na hora certa e soube aproveitar as oportunidades para divulgar suas propostas. Visconti, em 1900, ao participar da Exposição Universal em Paris, recebeu medalha de prata por suas telas (Gioventù e Oréadas) e menção honrosa na seção de Artes Decorativas e Artes Aplicadas. O feito foi repetido mais a frente na Exposição Universal de Saint Louis, em 1904, quando Visconti arrematou medalha de ouro em Pintura (Recompensa de São Sebastião) e medalha de bronze na seção de Arte Aplicada à Indústria. Ao observarmos a fotografia da seção de belas artes, as pinturas e os objetos de arte decorativa estavam em salas próximas, mas ocupavam espaços próprios ou compartimentados em lugares diferentes: pinturas na parede, objetos na vitrine. Na prática, o lugar de exibição do que deveria ser unificado nos discursos e na criação do artista permanecia do lado, mas separado. Os sistemas de exposição frente a uma arraigada tradição de expor a arte e principalmente de colocação de quadros na parede pode nos dar pistas de como se desenrolava o embate entre artes e decorativas. Vejamos com o que Visconti convivia em termos de práticas, proposições e recepções de exposições. O sistema de exposição se tornou um poderoso meio de propagação e sociabilidades, em diversas áreas, no século XIX. Do mesmo modo que era preciso educar artífices, acredita65 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES va-se que era preciso educar o gosto do público, pouco sensível aos efeitos das belas artes. Era necessário criar público para as artes e divulgar seus principais expoentes e promissores artistas. No âmbito da Academia, poderíamos dizer que sempre houve interesse em tornar público os trabalhos de alunos e professores. Debret promoveu a primeira exposição, em 1829, passando para a prática de apresentar ao fim do ano letivo os avanços dos alunos e o nível dos mestres. Contudo, foi somente em 1840, ao se constituir a primeira Exposição Geral de Belas Artes, quando a prática passou a se sistematizar e a absorver artistas não vinculados à Academia. Ampliavam-se, assim, os personagens relacionados ao sistema da arte, tanto do ponto de vista da produção quanto da recepção. A arte possuía uma missão redentora. Levá-la a público e ao público garantiria alçar patamares desejáveis de civilização, o que facilitaria a promoção do progresso em todo o país. Ao almejar burilar gostos, refinar modos, potencializar amadores (amateurs), educar famílias, estimulava-se a formação de um público curioso, interessado em arte e, aos poucos, seu conhecedor. Olhares interessados constituíam ecos fundamentais para a manutenção do sistema e, assim, perceber os detalhes, valorizar a qualidade, incentivar as inovações. Costumamos estar familiarizados com imagens de galerias de pinturas, com disposições de esculturas e telas nos salões, e não nos damos conta de que não eram as únicas categorias artísticas que se apresentavam nos espaços expositivos. Nos ambientes do Champs-de-Mars, bem como em pavilhões de exposições universais, onde Visconti circulou, costumava-se organizar os setores a partir de uma grande área central, ladeada de galerias e salas menores, demarcando subdivisões. Nos catálogos, as hierarquias eram reproduzidas, com a apresentação dos setores obedecendo a ideia da categoria da mais importante primeiro e em maior quantidade, decrescendo para a de menor status. No catálogo ilustrado da Exposition Nationale des Beaux-Arts de 1894,16 explicitavase as categorias artísticas existentes: pintura, escultura, desenhos, gravura, objetos de arte e arquitetura. Começando com Pintura, seguia para o grupo intitulado Desenhos: aquarelas, pastéis, miniaturas, esmaltes, porcelanas, faianças. Em seguida, vinha Escultura, depois Gravura e os Objetos de Arte, para finalizar com Arquitetura. Na categoria Objetos de Arte, havia uma infinidade de peças, materiais e técnicas envolvidas: relógio, vasos, para-vento, taça, painéis, cadeira, vitrine, conjunto de móveis, capa de catálogo, timbre, vitral, cartaz, tapeçaria, cenário de teatro, etc. Portanto, não havia indiferença ao decorativo. Ao acessarmos o álbum com fotografias de obras adquiridas ou encomendadas pelo Estado Francês,17 a partir dos Salões, além das indefectíveis telas e esculturas, estão presentes, claro que em menor número, vasos, pratos, painéis, esculturas decorativas, sugerindo que os objetos de arte, normalmente direcionados para os locais privados e domésticos, também eram apropriados ao domínio público. No Brasil, as exposições gerais acolhiam obras para além da pintura, escultura e arquitetura, com seções de Fotografia, Gravura (de medalhas e pedras preciosas e de água forte), 66 MARIZE MALTA Litografia e Artes Aplicadas à Indústria. Na Exposição de 1895, por exemplo, houve um único representante de artes aplicadas – Benedicto Filho (R. da Silva) que, conforme registrado, era nascido no Rio de Janeiro, “discipulo da ex-Academia de Bellas-Artes, professor do Instituto dos Surdos-Mudos”18 e residente em São Cristóvão, na travessa do Coronel Souza Valente, nº 8. Seus três trabalhos envolviam duas almofadas e uma palheta suja19. No ano seguinte, expuseram duas molduras de fantasia (em terracota), de autoria de Adelaide Umbelina da Silveira (nascida do Rio de Janeiro, residente à rua Pau Ferro, nº 15, São Cristóvão) e, no apêndice do catálogo, registrava-se “Henrique Bernardelli – decoração da cúpula do salão principal do Instituto Nacional de Música”20. Demarcada como última seção ou como apêndice, a arte decorativa mesmo que timidamente e em condição desnivelada se fazia presente nos salões cariocas de arte. Uma questão a ser considerada é o fato de que nem sempre obras decorativas restringiam-se à sua seção, podendo ser encontradas em outras modalidades, como na seção de Arquitetura. No ano de 1898, João Ludovico Berna, brasileiro, discípulo de Mayeux, Maucheri, Cuger e Blondel, ex-pensionista do Estado e à época professor da Escola Nacional de Belas Artes, apresentou na seção de arquitetura o seguinte: 256. Apparelho de bronze para illuminação electrica, tamanho natural; 257. Decoração de janella e tecto no estylo de Luiz XIV. 258. Decoração mural no gênero denominado japonez. 259. Gabinete de trabalho decorado no estylo de Luiz XIV (Pertence ao Sr. C. A. dos Santos). (...) 263.Vitraux decorados no estylo de Luiz XVI. 264. Vitraux no gênero japonez21. Da mesma forma, Adolfo Morales de los Rios, arquiteto premiado com medalhas de bronze e de prata em diversas exposições e também professor da Escola, apresentou: 265. Composição decorativa, estylo renascimento hespanhol para ser executada em cerâmica (Casino de San Sebastian – Espanã). 266. Composição de estylo japonez para ser executada em tapeçaria (Cadiz - Espanha)”22. As artes decorativas estavam mais presentes do que se imagina Outro ponto importante a ser destacado é que as outras artes mantiveram-se presentes nas exposições, mesmo após a divisão em geral e moderna nos salões nos anos de 1940, e que a designação da seção como Arte Aplicada ou Arte Decorativa (por vezes, aparecia no plural) mostrava-se completamente arbitrária, apontando para a fragilidade dos conceitos relacionados aos sentidos aplicado e decorativo, tomados como sinônimos. 67 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES As práticas das exposições de arte, contudo, não ficavam restritas às instituições de ensino no século XIX. A cidade do Rio de Janeiro oferecia exposições de outras naturezas, como exposição de história (ocorrida na Biblioteca Nacional em dezembro de 1881)23 e da industrial nacional (ocorrida na secretaria de agricultura).24 Nelas, certamente não concorriam os mais renomados artistas, mas havia convivências e contiguidades possíveis. Vejamos a síntese de uma visita à exposição da indústria nacional ocorrida em 1881: Mas, vejamos, sem outras considerações, o que a exposição exhibe de mais saliente em arte. É preciso subir direto, ao primeiro andar, e caminhar em frente. Se se volta á direita ou á esquerda, vae-se ter á exposição de moveis dos Srs. Diego Santos ou J. Martins e corre-se o risco de lá ficar. O primeiro, sobretudo, expõe um quarto de dormir, mobiliado em mosaico, onde se dormiria a eternidade! Caminhae em frente. Uma mesa, bem servida vos attrahe, entrae. (...) Ha n’num canto próximo á janella duas telas, assignadas M. F. d’Almeida, que realmente merecem ser vistas. (...) Entre estes dois quadros está ainda uma paisagem a óleo, assignada. (...) São ainda desta distincta amadora algumas gouaches tocdas com muita arte, destacando-se pela graça e pela frescura a paisagem sobre um leque de seda. D’entre os trabalhos da Exma. Sra. D. Zeferino C. Leão, notámos uma aquarella sobre seda (...). A Exma. Sra. D. Amelia C. de Albuquerque expoz três photographias coloridas (...). Mas é sobretudo em bordados de todas espécie, flores e fructos de todas as estações, rendas, crivos, bordados de todos os pontos (...). Do lado dos homens quase todas as telas já são conhecidas: as Exequias de Camorim do Sr. Monteiro; a Degolação de S. João Baptista do Sr. Victor Meirelles.25 De modos diferentes, as exposições lidavam com os desafios de procurar encontrar o melhor lugar para cada objeto, uma sequência ideal de visita, uma composição que evidenciasse a particularidade de cada obra e os diálogos possíveis que as circunvizinhanças e grupamentos poderiam provocar. Não sabemos como estavam expostas as obras e em que situação geográfica específica se estabeleceram as relações entre as representantes das artes visuais e aplicadas na exposição de 1901 de Visconti no velho prédio da Academia/Escola de Belas Artes. Conforme o catálogo distribuído na exposição, estavam listadas duas categorias de trabalhos artísticos: “pintura, pastel e desenho”, em primeiro lugar, seguida de “arte decorativa, aplicada às industrias artísticas”. 60 obras no primeiro caso, 28, no segundo (Anexo 1).26 Com 35 anos incompletos, o papa-medalhas, como era chamado nos idos tempos do Liceu de Artes e Ofícios, não encontrou a repercussão pretendida de sua visionária exibi68 MARIZE MALTA ção, logo em uma instituição onde, anos antes, abrigara querelas entre “conservadores”, “novos” e “positivistas” e parecia ter se aberto a novos ares ao acolher em sua direção os Rodolphos - Bernardelli e Amoedo, representantes das ideias progressistas e, como vimos, adeptos do decorativo. São de Visconti as seguintes palavras: Quando regressei da Europa, como pensionista dos cofres publicos, fiz uma exposição de arte applicada, na certeza de que a arte decorativa era o melhor elemento para caracterizar a industria artistica do paiz. Olharam-n’a como novidade, e nada mais. Cheguei a fazer cerâmica á mão, – apontando – aquellas que estão alli, guardadas com carinho, – para ver se attrahia a attenção das escolas, das officinas, do governo. Tudo perdido. Ninguem notou o esforço. Em nossa terra não existe ainda preoccupação pela arte.27 Das notícias levantadas nos periódicos, não há nada que remeta a observações que tenham percebido algum procedimento expográfico inédito ou fora do comum. O que chamava a atenção de alguns articulistas era a ousadia de Visconti em apresentar o processo de criação. Na coluna de Arte da Gazeta de Notícias, de 27 de maio de 1901, intitulada Exposição Visconti, ficava claro o impacto causado em alguns: Entre os trabalhos expostos, desenhos e pinturas a oleo e a pastel, vêem-se estudos diversos desde alguns que enviaram como pensionista, até os que executou para os seus quadros mais notáveis), manchas ligeiras, paizagens, esboços e projetos de composição decorativa, até as obras de folego, como o S. Sebastião, a Deusa das Oreades e outras. Mas o que mais impressiona, o que deve ser visto por todos e visto com attenção profunda, são as suítes diversas, em que Visconti nos mostra o modo por que faz as suas obras de maior folego. Por exemplo, na Deusa das Oreades, pode-se ver primeiro o esboço, a idéa lançada na tela para o quadro futuro: seguem-se os estudos numerosos, feitos para cada figura, os desenhos e pinturas de modelos, trabalhados com afinco e cuidado esforçado, para conseguir o effeito certo e o desenho perfeito; por fim na obra completa é curiosíssimo observar o resultado de tanto estudo, a transformação da academia su..a, aprofundada severamente, com a forma castigada, na realisação da idéa. Assim poderiam comprehender todo o valor de Elyseu Visconti, o seu escrupuloso trabalho, a sua honestidade artistica, acompanhando-o passo a passo no combate com a matéria afim de dominar a idéa.28 Visconti explicitava anotações visuais, esboços, esquisses, fragmentos de ideias que anunciavam a potencialidade poética da obra final. Visconti expunha outras questões: os artistas faziam escolhas, experimentavam formas, alcançavam uma solução plástica capaz de ganhar vida própria. A manifestação do modos fazendi aproximava o artista Visconti do artífice Visconti, na medida em que mostrava o quanto o exercício do fazer lapidava o pensar. A arte se configurava como um modo de agir, independente do meio em que se tornava fato – pintura ou cerâmica, papel ou metal. Nos diálogos possíveis, as imagens na tela remetem a algumas visualidades decorativas de entresséculos. Em Giuventù, como mencionou Ana Cavalcanti: “O fundo é realizado 69 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES como um papel de parede pintado e representa bosque estilizado. As cores são, uma vez mais, pálidas, e dão ao conjunto o aspecto de um afresco antigo”.29 Assim, o olhar de Visconti para as coisas do decorativo transpunha-se para a pintura. Os exercícios de estilização e planificação, comuns aos vitrais, às marchetarias e estampas de tecido, auxiliavam o artista a rever as faturas de sua pintura. Resgatando um de seus cadernos de esquisses, encontramos a seguinte anotação: “O que dá aspecto de papel pintado são as superfícies que não vibram, isto é, que não jogam”. Visconti sabia ser decorativo. Em seus cadernos estavam as premissas: “En décoration la ligne a plus d’importance que la masse. En peinture, le contraire”. Contudo, após passar anos lidando com a natureza do decorativo, Visconti foi adotando certas particularidades do decorativo no campo pictórico, planificando as massas e atenuando as passagens gradativas. Ao ladear as experiências decorativas com as pictóricas em sua exposição, Visconti oferecia ao visitante pistas para compreender o processo de seu pensar artístico-decorativo. FIGURA 2 Composição realizada a partir das imagens de obras pictórica (Recompensa de São Sebastião) e decorativas (paisagem em marchetaria e papel pintado) que estiveram presentes na exposição E. Visconti e as possíveis permeabilidades entre as plásticas das duas instâncias. Se a justaposição de artes e decoração já se fazia presente nas práticas curatoriais, como vimos em algumas exposições e salões e na Escola/Academia de Belas Artes, Visconti não apenas propôs ladeá-las, mas confrontá-las, apresentando diálogos e intercâmbios de linguagens, não como tradução ou como uma reunião de idiomas particulares de cada setor de criação artística, estruturados e fechados em si mesmos mas que se dispunham a conversar. Eram intercâmbios passíveis de interações íntimas, contaminações, promiscuidades, a ponto de não saber onde começava o artístico e terminava o decorativo. Arte e decoração não mantinham mais laços próximos e respeitosos de parentescos, assumiam posição de amantes, em que a mútua sedução produzia prazer de corpos unificados. Nesse sentido, a exposição de 1901 de Visconti, apesar de conter arte e decoração, o ar70 MARIZE MALTA tístico e o decorativo, seria a encarnação da utopia de uma verdadeira artedecorativa (isso mesmo, tudo junto), em que a conjunção aditiva ‘e’ do arte e decorativa era suprimida na medida em que uma já havia sido adicionada à outra e misturara o que antes estava separado, fundindo-se em única palavra. Pelo olhar de Gonzaga Duque, foi uma das mais completas, das mais importantes exposições de arte aqui franqueadas ao público. A exposição de 1901 seria, assim, a primeira exposição em que a arte se fazia decorativa e a decoração se mostrava artística, e, cá para nós, talvez tenha sido uma das poucas genuínas exposições de artedecorativa. 71 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Anexo 1 Transcrição do teor do catálogo da 23. Crepusculo – Novembro. exposição E. Visconti 24. Canto do Luxembourg – Outono. p.1 Pintura, Pastel e Desenhos 1. S. Sebastião martyr (a recompensa). - Salon de 25. >> >> >> 26. >> >> >> no dia dos mortos. 27. >> 1898. – Primavera. >> Jardim Del Retiro – Madrid. 2. Sonho mystico. – Salon de 1897. p.2 3. Giuventù. – Salon de 1899 e Exposição Universal. 28. Pavilhão real d’Italia da Exposição Universal, – MEDALHA DE PRATA. Paris. – Face lateral. 4. Commungantes. – Salon de 1895. 29. Manhã de primavera. 5. A Convalescente. – Salon de Paris de 1895 e de Munich 1896. 30. Academia de mulher. – Trabalho de pensionista. 6. Dansa das Oreadas. – Exposição Universal. – 31. >> MEDALHA DE PRATA. 32. As duas irmãs. – Trabalho de pensionista. 7. Pedro Alvares Cabral guiado pela Providencia. – 33. Cabeça de Indiano. – Trabalho de pensionista. Exposto pela primeira vez. >> homem. – Trabalho de pensionista. 34. Jardim del Retiro – Madrid. 8. Primeiro estudo para S. Sebastião. 35. Esquisse para a Dansa das Oreadas. – Pastel. 9. Estudo para o Anjo coroando S. Sebastião. 36. Gros-chat – Cabeça. – Estudo. 10. Cabeça de Florentina. 37. Camponeza Italiana. – Estudo. 11. A toilette do busto. 38. Da minha janella. – Pastel. 12. Pattinhos. 39. Georgette – Cabeça. – Estudo. 13. Canto do Luxemboug – Primavera. 40. A leitura. – Pertence ao Dr. Domingos Goes. – 14. O beijo. – Salon de 1899. Salon de 1894. 15. Melancolia. 41. Marguerite. – Pertence ao Sr. Candido 16. En attendant. Fernandes. 17. Paizagem de Picardia – Setembro. 42. No verão. – Pertence ao Estado. – Salon de 1894. 18. Cabeça de menino. 43. Parc Montsouri – Outono. 19. Telhados de Paris ao sol. 44. Jardim do Luxembourg – Abril. 20. Estudo de mulher. – Tronco. 45. Torre de Belem – Lisbôa. 21. Uma Madrilena. 46. Hespanhola. 22. Mulher dormindo. – Trabalho de pensionista. 47. Marcelle. 72 MARIZE MALTA 48. Meninos brincando – (Jardim do Luxembourg). ceramica. Figurou na Exposição Universal. – Dezenho. 5. Le tre vergini. – Cujo effeito é obtido por meio 49. Lembranças de viagem: Londres, Amsterdam, de panos recortados e unidos entre si. – Exposição Paris, Bruxellas, etc. Universal. 50. Cartão para o quadro: A dansa. – Fusin. 6. A Musica. – Vitrail d’appartamento. – Exposição 51. “ “ “ “ “ 52. “ “ “ “ “ 53. “ “ “ “ “ Universal. 7. Email cloisonné. – Paysage rocheux estylizado. 8. Paysage. – Marchetaria. 9. Papel pintado. – Cavallo estylizado. 54. Cabeça para o estudo da Providencia. – Fusin. 10. Vitrail. 55. Esquisse para o quadro de Cabral. 11. Papel pintado. – Gui estylizado. 56. Tronco nú de mulher. – Trabalho de pensionista. 12. Ex-Libris. – Trabalho sobre couro. 57. Dante e Virgilio sahindo da vida peccaminosa. – Esquisse. – Pertence á Escola. 13. Bas de portière. 58. Manhã brumosa – Paizagem. 14. Jarro para ser executado em grês. 59. Ida. – Cabeça de perfil. 15. Ladrilho de ceramica. 60. A Rendição de Breda ou as Lanças. Quadro de 16. Prato email cloisonné. Velasquez copiado do mesmo tamanho do original 17. Jarro de porcellana. existente no Musêo del Prado, Madrid. 18. Renda para cortinado. 19. Vitrail. p.3 20. Lampada electrica. Arte Decorativa 21. Papel pintado. APPLICADA ÀS INDUSTRIAS ARTISTICAS 22. Tenture. – Motif: chène. Cours do Mr. GRASSET 23. Frise au pauchoir. – Figura estylizada. Cuja escola foi classificada hors-concours na Exposição Universal de Paris de 1900 e o seu director Mr. Guerin Membro do Jury. p.4 GUACHES 24. Vaso em grès. 1. Projecto para um Sello da Republica. 25. Étoffe en soi. – Motif: Anémone. 2. O mesmo colorido. 26. Frise para entalho de madeira. 3. Tenture imprimée. – Figurou na Exposição 27. Vaso para centro de mesa representando O Amor. Universal. 28. Capa para o presente Catalogo. 4. Primavera. – Prato para ser executado em 73 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES LISTA DE PREÇOS Nº 1 .................... 7:000$000 Nº 2 .................... 2:000$000 Nº 3 .................... 3:000$000 Nº 4 .................... 2:500$000 Nº 5 .................... 1:200$000 Nº 6 ................... 10:000$000 Nº 7 ................... 6:000$000 Nº 8 ................... 800$000 Nº 9 .................. 700$000 Nº 10 ................. 300$000 Nº 11 ................. 450$000 Nº 12 ................. 300$000 Nº 13 ................. 150$000 Nº 14.................. 1:800$000 Nº 15 ................. 150$000 Nº 16 ................. 300$000 Nº 17 .................. 200$000 Nº 18 .................. 400$000 Nº 19 .................. 300$000 Nº 20 .................. 500$000 Nº 21 .................. 300$000 L. DE RENNES & Cª. Rua dos Ourives, 31 – Rio de Janeiro 74 Notas 1 RUSKIN, John. A manufatura moderna e o design. In ______. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.155-186, p.156. 2 Cf. LAVEZZI, Elizabeth. A autora trabalha com a hipótese de que a Encyclopédie, principalmente pelos escritos de Diderot, preparou as condições para a conceituação das artes decorativas. 3 A reunião de textos que discutem e potencializam a importância das artes decorativas, de 1750 a 1940, pode ser encontrada em uma antologia organizada por Elizabeth Frank. 4 “Jornal do Commercio”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 1, 18 outubro de 1902. 5 Encontra-se em fase de finalização a pesquisa de tese de Marcele Linhares Viana, no PPGAV-UFRJ, na linha de pesquisa de História e Crítica da Arte, sobre a presença das artes decorativas na Escola Nacional de Belas Artes entre 1930 e 1960, o que permitirá trazer à tona uma história ainda desconhecida sobre a relação das belas artes com as chamadas artes utilitárias no seio de uma instituição de formação de artistas. 6 CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial de Belas Artes e o Ensino Técnico. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www. dezenovevinte.net/ensino_artistico/ rc_ebatecnico.htm>. 7 Sobre a história da atual Escola Nacional Superior de Artes Decorativas há duas publicações editadas pela própria instituição. A primeira engloba o período de 1766 a 1941 e a segunda, o de 1941 a 2011. 8 MURASSI, Celina Midori. Industrialização e educação: a origem do liceu de artes e ofícios. I Congresso Brasileiro de História da Educação – Educação no Brasil: história e historiografia. Anais... Campinas: Sociedade Brasileira de História da Educação, 2000, p.1-10. p.3. iniciativas, como menciona Rafael Cardoso: a escola industrial da SAIN (1871), as escolas-oficinas do Imperador na Quinta da Boa Vista (1868) e em Santa Cruz (1885) e a própria Escola Politécnica, que oferecia um curso de ‘artes e manufaturas’, o menos frequentado dos seus seis cursos especiais. Ibid. 11 Consultamos os cadernos de Visconti que se encontram na coleção Mindlin e outros, bem como folhas avulsas pertencentes a Tobias Visconti, cujos arquivos digitalizados foram gentilmente cedidos por Tobias Visconti, a quem muito agradecemos. 12 Cf. catálogo ilustrado Crystal Palace exhibition, publicado originalmente por The Art Journal, em 1851, e republicado com ensaio introdutório de John Gloag pela Dover Publications, em 1970. 13 RUSKIN, op.cit., p.183. 14 O livro de Félix Ferreira – Noções da vida doméstica – foi adotado pela instrução pública do país e premiado com menção honrosa na Exposição Universal de Paris, de 1889. 15 Gonzaga Duque utilizou o pseudônimo de Sylvinio Junior para assinar o manual intitulado A vida doméstica. 16 Catalogue illustré du salon de 1894. Paris, Societé Nationale des Beaux-Arts, 1894. 17 Cf. Álbum de fotografias de obras compradas pelo Estado francês. Direction des Beaux-Arts. Ouvrages commandés ou acquis par le Service des Beaux-Arts. Salon de 1888. Photographié par G. Michelez. 18 Catálogo da 2ª exposição Geral de Bellas-Artes. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Bellas-Artes, 1895, p.18. 19 Ibid. 20 Catálogo da 3ª Exposição Geral de Bellas-Artes. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Bellas Artes, 1896, p.17. 9 CARDOSO, 2008, op. cit, [sem numeração de página]. 21 Catálogo da 5ª Exposição Geral das Bellas-Artes. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Bellas-Artes, 1898, p.19-20 10 Vale lembrar que existiram outras 22 Ibid., p.20. 23 ALTER. Chronicas fluminenses. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n.276, dez. 1881, p.2. 24 ALTER. Chronicas fluminenses. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n.277 e n.278, dez.1881, p.2. 25 JUNIO. Pelas exposições. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n.279, dez.1881, p.7. 26 Deixamos registrados nossos sinceros agradecimentos a Myrian Seraphim pelo envio dos arquivos digitalizados do catálogo da exposição de Visconti de 1901 e outros em que o artista expôs artes decorativas. 27 COSTA, Angyone. Elysêo D’Angelo Visconti. In: A inquietação das Abelhas. Rio de Janeiro, Pimenta de Mello & Cia., 1927, p.74-82, p.82. 28 C., R. de. Exposição Visconti. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de maio de 1901, p.2. 29 CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Les artistes bresileins et Les Prix de Voyage em Europe à La fin Du XIXe siècle: vision d’ensemble et etude approfondie sur le peintre Eliseu d’Angelo Visconti (1866-1944). Tese (Doutorado em História da Arte – U.F.R. d’Histoire de l’Art et Arqueologie, Université de Paris – Pantheon Sorbone, Paris, 1999, p.220. 1922. A Semana de Arte Moderna: uma revisão crítica Annateresa Fabris Lembrando que os modernistas se debatiam “com o passado recente que não passava e com o novo que já tardava”, Francisco Alambert considera que, por essa característica, a Semana de Arte Moderna é o mais importante fato histórico do Brasil moderno, do ângulo da história da cultura. Por ser esse fato, ela ganha outra existência, uma existência histórica. Ela é assim inventada e desinventada, amada e odiada, reconstituída e desconstruída em todos os momentos em que a história do Brasil moderno, de suas utopias e distopias, precisa ser posta na ordem do dia ou no silêncio da noite.1 Se a Semana “nasceu para ser mito, para ser criada e recriada, para ter caráter marcante e transformador”,2 o que se impõe nesse momento é tentar destrinchar sua história a partir de interrogações sobre sua gênese, seus desdobramentos e seus alcances, pois nesses aspectos reside boa parte das críticas feitas a ela. Com sua notória verve, Oswald de Andrade assim evoca a gênese do evento: Antonio foi à casa de Paulo, que o levou ao quarto de José, que lhe mostrou os versos de Pedro, que lhe contou que João era um gênio e que Carlos pintava. E saíram todos para descobrir Maricota. Apenas, esses indivíduos entre outros chamavam-se Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti.3 Com essas palavras, o escritor reporta-se à rede de amizades e de cumplicidades que estava se articulando em São Paulo desde fins de 1920 (da qual não fazia parte Villa-Lobos), mas elas não são suficientes para determinar como surgiu a ideia de realizar as três noitadas de fevereiro de 1922. Um dos participantes do evento, Yan de Almeida Prado, afirma que a iniciativa foi engendrada na residência de Paulo Prado, durante uma reunião que incluía “escritores, rabiscadores, clubmen e comerciantes” como René Thiollier, Guilherme de Almeida e o “caricaturista Di Cavalcanti, que do Rio de Janeiro viera tentar melhoria de vida na Pauliceia”. Durante a conversa, Marinette, esposa do anfitrião, sugeriu que “a projetada reunião tivesse aspectos dos desfiles de modas femininas em Deauville”. Essa versão, esposada por Aracy Amaral, para quem a HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Semana foi uma versão “agressiva” do festival francês, e Márcia Camargos, que aponta o caráter compósito dos desfiles de Deauville, caracterizados pela associação de moda, música, declamação e mostras de pintura,4 merece ser revista, pois existem outros indícios a apontarem para uma gênese menos mundana. Numa das “Crônicas de Malazartes”, publicada em abril de 1924, Mário de Andrade atribui a ideia a Emiliano Di Cavalcanti, recém-chegado do Rio de Janeiro. De seu contato com o grupo modernista, teria surgido a proposta de “um salão de pintura e escultura, com tardes literárias em que se recitariam versos e conferências”. A primazia do pintor carioca é também defendida por Rubens Borba de Moraes, que lembra a frustração do amigo com os escassos resultados da mostra Os Fantoches da Meia Noite, apresentada nas dependências de O Livro, de Jacinto Silva, em novembro de 1921. Para acabar com a “indiferença do público”, Di Cavalcanti teria manifestado a ideia de organizar “uma grande exposição moderna, um salon des indépendants ou coisa que o valha”.5 A livraria de Silva é também central nas memórias do próprio pintor e de Guilherme de Almeida. De uma conversa entre os dois teria brotado a ideia de um “programa mais vasto, com outras exposições, outras conferências e mesmo recitais de música”, apresentada ao livreiro e possível “germe” da Semana.6 Atribuir a Di Cavalcanti a ideia de uma semana de arte moderna não implica desconhecer o papel exercido por Graça Aranha em sua concretização. Ao visitar a mostra de O Livro, o escritor precipita os acontecimentos, dando ares factíveis ao projeto “sempre adiado. Inexequível, pela fraqueza das nossas forças”, conforme depoimento de Mário de Andrade. Por seu intermédio, o grupo, constituído por Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Guilherme de Almeida, é apresentado a Paulo Prado, que consegue a cessão do Teatro Municipal, além de dar início a uma lista de doações entre os barões do café. O financiamento conseguido por Prado é determinante para a concretização do projeto. Mário de Andrade atribui a este a possibilidade de realizar uma ideia “audaciosa” e “dispendiosíssima”, definindo-o como o “fator verdadeiro” do evento: “E só mesmo uma grande figura como ele e uma cidade grande mas provinciana poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana”.7 Esses aspectos sublinhados por Andrade são fundamentais para entender a realização do evento, já que São Paulo, apesar de moderna em termos materiais, não dispunha de um ambiente cultural à altura do processo de modernização que a estava transformando profundamente. Embora agentes desse processo, a burguesia e o fenômeno da imigração se chocavam com as pretensões de renovação da nova geração. Para atingir seus objetivos, esta necessita da aliança com a fração mais europeizada da aristocracia rural, que se sentia ameaçada pelos novos atores sociais. Os desfiles de Deauville serviram realmente de modelo para o festival de fevereiro de 1922? Ao evocar o nome de Filippo Tommaso Marinetti e ao associá-lo, de saída, a Graça Aranha, sequioso de renovar o sucesso obtido com Canaã (1902), Almeida Prado fornece elementos para propor uma leitura do evento em chave futurista. De sua visão negativa do “esfuziante Marinetti”, brota um quadro malévolo do primeiro pós-guerra, caracterizado por 78 ANNATERESA FABRIS processos publicitários favoráveis a autores desconhecidos, em que forçosamente predominava o simulador de talento. Manifestos revolucionários eram publicados por grupos e grupelhos, revistas se fundavam para “lançar gênios”, exposições se sucediam profusamente anunciadas urbi et orbi no intuito de exibir obras-primas somente compreendidas por “espíritos superiores”, etc... Das emanações vindas de fora não escapariam nossos indígenas também sequiosos de “reclame” e das vantagens que podia proporcionar.8 Prosseguindo em suas considerações, o autor traça um panorama pré-Semana eivado de categorias futuristas. Interessados em “sacudir a modorra provinciana”, os personagens envolvidos no evento apreciavam “um movimento tido por proveitoso, nem que fosse produto de escândalo. (...) Assim sendo, verificava-se nos principais elementos artísticos da Semana tendência sensível ao ‘reclamismo’ dispensador de notoriedade”. Não faltam farpas para os dois principais articuladores do modernismo, que “da sombra emergiam sedentos de estardalhaço, saísse de onde saísse, no intuito de ultrapassar os companheiros na ascensão à fama”. À “dobradinha Marioswald de Andrade” são atribuídos vários traços deploráveis: “simulação de talento, seguida de falsa sabedoria e erudição, subterfúgios, conquista de inocentes úteis, intrujices de todo gênero”.9 De que modo essa visão viperina pode servir de baliza para uma análise da Semana de Arte Moderna? Expurgada de seu viés negativo, ela permite enfatizar uma série de características futuristas que estão na base do festival: escândalo planejado, capitalização dos insultos e das vaias, provocação de um conflito entre artistas e público, ocupação do principal espaço cultural de São Paulo, promoção de um evento coletivo e multidisciplinar, opção por mostrar obras ainda incipientes, mas portadoras de possibilidades de contrastar os códigos artísticos hegemônicos. A carta que Mário de Andrade escreve a Menotti Del Picchia pode ser considerada um resumo eloquente das motivações do grupo. Tendo como mote as vaias que acompanharam a apresentação dos poetas na noite de 15 de fevereiro, o escritor faz referência à armadilha em que caíram os “araras”, cujo resultado não foi o vitupério e sim a “celebridade”. Andrade é bem incisivo e irônico em suas considerações: Somos todos pseudofuturistas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da “Semana de Arte Moderna” e... deixar que os araras falassem.10 O escândalo planejado não reside apenas na confrontação com os “araras”. Ele antecede as três noitadas do Teatro Municipal, tendo em Oswald de Andrade seu agente principal. O escritor, que já se destacara por devolver ao academismo a acusação de falta de força e de personalidade feita contra a nova geração, publica, em 12 de fevereiro, um artigo altamente provocador, cujo alvo é Carlos Gomes. Abrindo mão dos chistes sintéticos aplicados a Rodolpho Bernardelli (“o pior marmorista do mundo”), Oscar Pereira da Silva (“o homem das litografias”), Rosalina Coelho Lisboa (“uma parnasiana de carro estandarte no carnaval dos versos medidos”) e ao próprio Gomes (representante da “decadência melódica italiana, seção cançoneta heroica”), o escritor lança-se numa longa diatribe contra este, por ter percebido que os argumentos esgrimidos 79 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES por Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e por ele próprio não haviam surtido o efeito desejado. O escândalo, planejado desde o primeiro parágrafo do artigo, é guiado pela vontade de estabelecer um contraste entre duas concepções de arte: a “passadista”, representada pelo compositor campineiro, e a “futurista”, emblemada em Heitor Villa-Lobos. O que está em jogo no texto de Andrade é a desconstrução de um valor consagrado, ao qual é oposta a visão superlativa de um Villa-Lobos “filho comovido de seu século”, cuja música revela “uma sensibilidade cantante através de todas as desordens, de todos os choques, de todos os saltos frios, de todas as invasões abismais”. Na contramão dessa atitude simpática à nova música, a abertura do artigo é marcada pelo sarcasmo e por uma vontade explícita de dessacralização: Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeninos. Mas como se trata de uma glória da família, engolimos a cantarolice toda do “Guarani” e do “Schiavo”, inexpressiva, postiça, nefanda. E quando nos falam no absorvente gênio de Campinas, temos um sorriso de alçapão, assim como quem diz: – É verdade. Antes não tivesse escrito nada... Um talento!11 O ataque não se resume à figura do músico, já que o propósito do artigo é mais amplo: pôr em xeque a “ópera convencional, com tenores cheios de rouge e de tombos finais, com sopranos roliças e estranguladas de hipocrisia lírica”. Outro alvo é uma figurasímbolo da nacionalidade, Peri, reduzido a uma caricatura carnavalesca. Os termos usados não poderiam ser mais insultuosos: o protagonista de O guarani é apresentado “a berrar forças indômitas em cenários terríveis”, trajando um “maillot cor de cuia” e usando “vistoso espanador na cabeça”.12 O acerto da estratégia de Andrade pode ser comprovado por dois elementos: • o debate travado por Menotti Del Picchia (Correio Paulistano) e Oscar Guanabarino (Jornal do Comércio) entre 23 de fevereiro e 18 de março, motivado, nos dizeres do segundo, pelo “desrespeitoso artigo” que denegria a figura de Gomes13; • a polêmica criada pela Folha da Noite, a princípio simpática à nova estética, no artigo dedicado à noitada de 13 de fevereiro. O jornal lança uma acusação de homossexualismo sobre Oswald de Andrade, tomando como pretexto o contraponto entre o “olhar de fera americana” de Gomes e os “olhos dos homens que compreendem e amam os homens”, prerrogativa de Villa-Lobos. A partir dessa frase, “que revela tendências que não podem figurar na Arte, mas estariam muito bem e à vontade dentro de um certo capítulo de psicopatologia”, o jornal justifica a própria “prevenção” contra o evento, poupando apenas as figuras de Graça Aranha e Ronald de Carvalho.14 Não contente de ter produzido um fato escandaloso para ampliar o alcance da Semana de Arte Moderna, Oswald de Andrade parece ter usado outra estratégia futurista, se for verdade a contratação de estudantes de Direito incumbidos de conferir um tom belicoso à noitada dedicada à poesia. O primeiro alvo dos ataques é logo ele, que é acolhido por “uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes”, na evocação de Menotti Del Picchia. Uma vaia ainda maior é reservada a Mário de 80 ANNATERESA FABRIS Andrade, o qual, vinte anos mais tarde, lembra que permaneceu no palco “porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim, teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentação espetacular que foi a Semana de Arte Moderna. Com ela ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido”.15 O jornal O Estado de S. Paulo, que compara a atmosfera do segundo festival com “a famosa noite de estreia de Tórtola Valencia”, levanta a hipótese da presença de “uma claque de novo gênero”, cujas “frases e atitudes menos respeitosas atingiram algumas vezes artistas respeitáveis pelo seu talento e o seu passado”.16 Mesmo que mediada por Paulo Prado, a ocupação do eclético Teatro Municipal, símbolo da pujança cultural da cidade desde 1911, é mais uma estratégia futurista, se for lembrado que o movimento italiano buscava uma relação tensa e cheia de contrastes com os espectadores. Utilizar o espaço do teatro era congenial aos objetivos do grupo de Marinetti, já que as noitadas futuristas tinham uma evidente estrutura teatral, alicerçada no contato/choque entre artistas e público. Comícios poéticos e políticos, as noitadas eram abertas por um pronunciamento violento contra o passado. A este seguiam-se declamações poéticas, a execução de trechos musicais, declarações programáticas, num clima cada vez mais violento, para o qual era fundamental a participação da plateia. Ocupar o espaço do teatro tinha um significado simbólico para os futuristas: suas manifestações ruidosas e violentas punham em xeque a estagnação da dramaturgia burguesa justamente no local preferido pela burguesia para celebrar seus ritos culturais. Além disso, as noitadas comportavam uma espetacularização da apresentação artística em virtude do surgimento de um novo tipo de mediador cultural, que não se confundia com as figuras do “ator”, do “conferencista”, do “autor” ou do “diretor”. Tratavase, antes, como escreve Lia Lapini17, de “uma estranha espécie de malabaristas ou de bufarinheiros, ou de eufóricos goliardos”, que viravam pelo avesso os antigos papéis dos que se exibiam no recinto teatral. O fato de só o segundo festival ter um aspecto claramente violento não retira do evento a possibilidade de uma leitura em chave futurista, já que este apresenta uma estrutura próxima daquela das noitadas. Outro aspecto deve ser ressaltado no caso brasileiro: a aliança entre os modernistas e a elite tradicional visava criar um contraste com a burguesia, a qual, embora fosse um dos agentes do processo de modernização de São Paulo, se mostrava retrógrada no plano cultural. A seleção dos nomes para participar do evento tem sido um dos pontos mais polêmicos na bibliografia dedicada ao modernismo. Na conferência-balanço de 1942, Mário de Andrade bosqueja um perfil cultural dos semanistas. Educados “na plástica ‘histórica’, sabendo quando muito da existência dos impressionistas principais, ignorando Cézanne”, os futuros modernistas têm “a revelação” do expressionismo e do cubismo diante dos quadros expostos por Anita Malfatti em 1917. O escritor não deixa de rebater as tentativas de transplante para o Rio de Janeiro das raízes do movimento em virtude das manifestações impressionistas e pós-simbolistas que lá vicejavam, criticando “esse evolucionismo a todo transe, que lembra nomes de um Nestor Vítor ou Adelino Magalhães, como elos ou precursores”. A estes, contrapõe a figura de Manuel 81 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Bandeira, cujo Carnaval (1919) “fora descoberto por um acaso de livraria”, afirmando que os nomes dos demais poetas eram ignorados em São Paulo “porque os interesses imperialistas da Corte não eram nos mandar ‘humilhados ou luminosos’, mas a grande camelote acadêmica, sorriso da sociedade, útil de provinciano gostar”.18 A essa declaração, que demonstra a inexistência de um projeto programático, podem ser acrescentadas outras considerações que corroboram a sensação de um quê de improviso e de conciliação de interesses contrastantes na definição da estrutura do evento. De acordo com Borba de Moraes, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Di Cavalcanti foram incumbidos da elaboração do programa, mas é possível pensar que Paulo Prado e Graça Aranha tenham participado igualmente da definição dos nomes dos convidados. Não deixam de surgir divergências. Borba de Moraes, para quem o evento deveria incluir “exclusivamente modernistas e não uma porção de gente sem importância”, discorda veementemente da presença de Guiomar Novaes, que transformaria o festival num “sarau literomusical de cidade do interior”.19 Uma análise, embora rápida, dos participantes do festival ajudará a traçar um panorama da arte moderna apresentada nas três noitadas de fevereiro de 1922. Em termos literários, nota-se o predomínio de um pós-simbolismo bastante híbrido, que abarcava o decadentismo (Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida), a assimilação de sugestões crepusculares (Manuel Bandeira) e penumbristas (Ribeiro Couto)20, o neossimbolismo (Ronald de Carvalho) e experiências com o verso livre (Mário de Andrade). A mostra de artes visuais é dominada pela presença das duas figuras-símbolo do modernismo paulista: Anita Malfatti e Victor Brecheret. A participação da pintora com parte das obras apresentadas na exposição de 1917 reveste-se de um significado preciso: o reconhecimento, por parte do grupo, de seu papel pioneiro na instauração da arte moderna no Brasil. Se a seleção confirma esse papel, nota-se, ao mesmo tempo, a preocupação da artista com uma arte de caráter nacional, patente nos títulos de duas obras (Baianas e Moemas). Além disso, um quadro como Flores Amarelas evidencia a alteração de rumos de sua poética a partir de 1918, a qual será confirmada com a viagem a Paris em 1923. Brecheret, por sua vez, apresenta doze esculturas, caracterizadas por um naturalismo não isento de sugestões luminosas e pela busca de uma estilização linear, devedora das lições de Arturo Dazzi, Ivan Mestrovic, Medardo Rosso e Auguste Rodin. Tendências variadas podem ser notadas nos demais artistas que participam da mostra. Em Di Cavalcanti predominam o penumbrismo (Retrato, c. 1920), certo romantismo na maior parte dos desenhos e pastéis e “experiências cubistizantes”, como ele próprio afirma, em Café Turco (1921).21 John Graz, recém-chegado da Suíça, expõe quadros realizados em Genebra, nos quais ora demonstra uma derivação da expressão sintética e geometrizante de Ferdinand Hodler, ora a busca de uma construção tectônica de inspiração cézanniana. A participação de Vicente do Rego Monteiro é marcada pela heterogeneidade: no saguão do Teatro Municipal apresenta obras impressionistas, pós-impressionistas, art nouveau, expressionistas e cubistas, além de evidenciar o interesse por um grafismo oriental e a busca de elementos autóctones.22 A Sombra (1922), de Zina Aita, é considerada por Aracy Amaral uma das obras “mais avançadas das presentes na 82 ANNATERESA FABRIS Semana”.23 Composto de manchas coloridas justapostas, que funcionam como notas cromáticas e arabescos, o quadro ressente-se, no entanto, de certo apego ao realismo, visível no tratamento das figuras dos trabalhadores. De outras obras apresentadas em fevereiro de 1922 não existem registros que permitam avaliar sua contribuição a uma definição de arte moderna. Não se sabe quase nada sobre Alberto Martins Ribeiro, que fazia “desenhos de cabeça, de imaginação”, conforme depoimento de Di Cavalcanti, e que morreu jovem, provavelmente na Itália.24 A Natureza Dadaísta, de Ferrignac (Ignácio da Costa Ferreira), perdeu-se, mas é improvável que se tratasse de um trabalho niilista. Não obstante Sérgio Milliet o situasse na “extrema esquerda do movimento paulista”,25 a obra deveria ser uma boutade, já que as estilizações de suas caricaturas nada tinham de dadaísta. Além disso, o radicalismo do movimento europeu não era bem visto, naquele momento, pelos modernistas, os quais à sua tabula rasa opunham a busca de novos instrumentos capazes de celebrar a civilização industrial que estava se configurando em São Paulo. Também foram perdidos os dois desenhos apresentados por J. F. de Almeida Prado (Yan de Almeida Prado), que afirma ter participado da exposição “à guisa de divertimento”. Com a colaboração do ilustrador Antônio Paim Vieira, teria realizado colagens com papéis vermelhos e amarelos, rabiscando sobre eles traços pretos e brancos. As colagens ganharam títulos bizarros – Le faune rassasié, Une anglaise m’a dit e Galippolinaire – para serem coerentes com a poesia “absurda” praticada pelos modernistas.26 Também estiveram presentes os escultores Wilhelm Haarberg, conhecido de Mário de Andrade, que deve ter apresentado peças de teor arcaizante e portadoras de algumas afinidades com o expressionismo, e Hildegardo Leão Velloso, cujo nome não consta do catálogo e cuja trajetória posterior não permite aproximá-lo de uma atitude modernista. A arquitetura é representada por Antonio García Moya, autor de projetos ecléticos e imaginativos, em que predominavam estruturas geométricas, e por Georg Przyrembel, cuja Taperinha traz a marca de “um neocolonial bastante afrancesado”.27 A música, finalmente, injeta uma nota paradoxal no evento, se for levada em consideração a seleção de peças de Villa-Lobos. Foram privilegiadas obras de cunho pós-românticos e/ou impressionista, em detrimento de composições realmente inovadoras como o poema sinfônico atonal Amazonas (1917) e o Trio para oboé, clarinete e fagote (1921), peça polirrítmica e destituída de melodia.28 Essa rápida passagem pelos protagonistas da Semana evidencia a ausência de vários artistas modernos que poderiam ter participado dela. Num artigo publicado em março de 1922, Júlio Freire coloca o evento sob o signo do esquecimento proposital, reportando a atitude do grupo a uma característica da vida cultural da cidade, dividida em rodas literárias: Não faz muito tempo o exclusivismo de um dos grupos fez com que os seus membros resolvessem efetuar em público uma grande sessão de... esquecimento. Não pensem os leitores que a intenção era impor ao público os nomes dos que nela tomaram vaiada a parte: não! Melhor que ninguém eles sabem que para se impor é preciso que o público conheça a obra dos candidatos. Não. A intenção era positivamente fazer esquecer os outros que ali não estavam funcionando!29 83 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Por que os nomes de pintores como Eliseu Visconti, Giovanni Battista Castagneto, Belmiro de Almeida e Artur Timóteo da Costa, de caricaturistas como Voltolino, J. Carlos, Nair de Teffé e Belmonte, de arquitetos como Victor Dubugras e Antonio Virzí, de poetas como Mário Pederneiras e Olegário Mariano, por exemplo, não foram cogitados para o evento? Não existem dados suficientes para compreender esse rol de exclusões, a não ser no caso de Alphonsus de Guimaraens: o poeta, definido por Oswald de Andrade “um lutador da arte nova”, cuja reação contra o atraso nacional seria “rigorosamente continuada” pelos jovens paulistas,30 havia falecido em 1921. Pode-se, porém, aventar uma hipótese: elas foram possivelmente ditadas pelo desconhecimento do campo artístico nacional, pela pouca familiaridade dos semanistas com a arte moderna e por uma visão negativa do impressionismo.31 As “ausências” não justificam, no entanto, a acrimônia de Paulo Herkenhoff em relação a Mário de Andrade e Anita Malfatti. O escritor é acusado de “malandragem” por resumir o Rio de Janeiro ao tradicionalismo, “desvalorizar o ambiente que não conhecia, fingir não conhecer um histórico de atitudes críticas de resistência à Academia (...), não dar relevo ao conservadorismo de São Paulo, negar a grande diversidade do ambiente moderno carioca, mas adotar uma posição de neutralidade com respeito aos acadêmicos de São Paulo”. Mário de Andrade teria projetado sobre a então capital do país o que conhecia da própria cidade, “meio promíscuo entre desejo modernista e conservadorismo”, dominado pelas figuras de três acadêmicos: Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Pedro Alexandrino.32 Quanto à pintora, pode-se ser aceito o argumento de que seu expressionismo não é “qualitativamente superior” ao impressionismo de Castagneto e Visconti, é, no entanto, difícil negar seu papel de desbravadora. Herkenhoff, porém, enfrenta essa tarefa a partir de duas perguntas capciosas: “Sacrificada onde? E por quem?”. Sem dar-se conta, o autor acaba respondendo às próprias perguntas, ao escrever que, em 1922, Malfatti havia dado para trás, “abatida com as críticas severas de Monteiro Lobato, que lhe custaram a pulsão expressionista”. “Expressionista ocasional”, faltaria à artista “a densidade do sujeito expressionista. Teve uma ansiedade do novo, mas nenhuma Angst”.33 Em 1996, eu também havia me perguntado se Malfatti foi, de fato, expressionista. Ou se, no seu caso, o expressionismo não passou de um conjunto de formas sabiamente apreendido, sem que a artista penetrasse em sua essência interior, que poderia ser resumida nas palavras de Roger Cardinal: “confiança irrestrita na expressão direta dos sentimentos que se originam da própria vida do criador, sem a mediação e a interferência da racionalidade.34 Essa interrogação não excluía, contudo, o reconhecimento de seu papel pioneiro em 1917, que denominei “aparição” naquele momento. O termo não me parece exagerado, já que a mostra de dezembro de 1917 enseja um choque declarado entre duas concepções de arte moderna: a de Malfatti, que expõe, ao lado de suas obras, alguns trabalhos de artistas estrangeiros (Floyd O’Neale, Sara Friedman e A. S. Baylinson), para demonstrar a inserção das próprias pesquisas num contexto internacional; a de Monteiro Lobato, o qual, percebendo que tais expressões punham em risco o princípio da fidelidade ao real, apaga toda distinção entre o próprio credo naturalista e o 84 ANNATERESA FABRIS academismo, para constituir uma frente única. O embate parecerá tão mais importante, se for lembrado que a artista enfrenta sozinha a “instituição arte”, emblemada em Lobato, pois, naquele momento, não existia em São Paulo uma crítica moderna para avalizar e defender sua proposta.35 Diante desse quadro de referências, em que Malfatti desempenha o papel de precursora de uma atitude de vanguarda – toma a dianteira, aventura-se no território inimigo, abala os alicerces da “instituição arte”, lança as sementes para uma ação estruturada, que começa a configurar-se em 1920, com a constituição do grupo modernista36 –, a argumentação de Herkenhoff esboroa-se, ganhando foros de uma atitude provinciana. Essas observações não pretendem obliterar o fato de que, em 1917, a artista estava expondo ao lado de obras realizadas nos Estados Unidos alguns quadros pintados no Brasil, portadores de uma visão nacionalista: Tropical, Caboclinha, Capanga, Paisagem de Santo Amaro, A Palmeira e Rancho de Sapé. Tomando Tropical como objeto de análise, Tadeu Chiarelli levanta um conjunto de questões que merecem ser retidas: o título original da obra era Negra Baiana, revelando uma visão de cunho naturalista, que se perde com a nova denominação, de caráter alegórico; ao optar por esse tema, a pintora manifestava preocupações extrínsecas à obra, denotando o desejo de participar do debate sobre o nacionalismo na arte brasileira, que estava sendo travado naquele momento; há uma dessintonia entre o detalhamento das frutas e o realismo sintético da figura, que se distancia do tratamento dado a uma obra como A Boba (1915-1916), construída a partir de valores cromáticos. Essas constatações levam o autor a afirmar que a “negra baiana” de Tropical (1917) “se situa num lugar muito próprio, entre o naturalismo mais minucioso das frutas do primeiro plano (...) e as nervosas sínteses de suas figuras pintadas em Nova York”.37 Bem mais ponderada é a atitude de Monica Pimenta Velloso, que propõe um reexame de 1922 como marco, por detectar na data “um momento de confluência de ideias que já vinham sendo esboçadas pela dinâmica social”. Coerente com esse pressuposto, a autora afirma que a modernidade começa a ser gestada na sociedade brasileira na virada do século XIX para o XX, na qualidade de um processo “que vai acarretando mudanças significativas de percepção do tempo e do espaço, fazendo coexistirem múltiplos valores culturais”. Antes de 1922, o moderno está presente nas “expressões fragmentárias, ambíguas e efêmeras” das crônicas de João do Rio, Lima Barreto e Marques Rebelo; na “mudança dos padrões de percepção e sensibilidade”, trazida pelas inovações tecnológicas e pelos meios de comunicação; na linguagem visual dos humoristas, que colocam em pauta questões relativas à modernidade e à nacionalidade.38 Uma observação da autora sobre o comportamento dos intelectuais cariocas que davam ênfase à rua “enquanto canal de sociabilidade, e mesmo de aprendizagem” ajuda a traçar uma linha demarcatória entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Afirmando que esses autores refutam “a ideia de um movimento literário organizado”, Velloso encontra uma justificativa para tal atitude numa vontade de não associar a literatura “à vida oficial e burocrática”. Elaborar um projeto poderia remeter à institucionalização, “o que significava perda de originalidade e sobretudo comprometimento”.39 85 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O que distingue o modernismo de São Paulo das outras manifestações modernas presentes no país é justamente a existência de um grupo. Insatisfeito com a situação cultural vigente no Brasil das primeiras décadas do século XX, o grupo modernista toma a si a tarefa de uma atuação coletiva, de uma intervenção articulada a partir de alguns dos principais órgãos da imprensa citadina – Correio Paulistano e Jornal do Comércio –, elaborando e divulgando a própria ideia de modernidade, estritamente vinculada às peculiaridades de São Paulo. Reunindo-se na garçonnière de Oswald de Andrade, na casa de Mário de Andrade, nos salões de Olívia Guedes Penteado e João Freitas Valle, os jovens intelectuais paulistas configuram “um compromisso estético coletivo ao redor de um projeto claro de intervenções, trabalhos e transformações práticas no tecido cultural da cidade”.40 De acordo com Frederico Coelho, a vocação moderna de São Paulo “demonstra que, mais do que para o desencadeamento das artes modernas, a Semana foi um episódio central para o desencadeamento da própria modernidade na história brasileira”. A associação de um período de inovações em escala mundial “com uma jovem cidade sem referências próprias (sem memória) e com a predisposição dos jovens dessa jovem cidade, (...) abertos aos influxos das palavras de ordem industriais, como ‘desempenho’, ‘ação’, ‘jogo’, ‘velocidade’ e ‘batalha’, para participar a todo custo do Novo com ímpeto de ruptura do tempo e do espaço em que conviviam” ajuda a rastrear “a fundação do mito da Semana não na sua posteridade, mas ainda no próprio momento de sua realização”.41 Essa afirmação encontra respaldo na conferência “O movimento modernista”, em que Mário de Andrade situa o período “heroico” do modernismo entre 1917 e 1922. A questão do grupo é central nas considerações do escritor: Durante essa meia dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados, achincalhados, malditos, ninguém não pode imaginar o delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos. O estado de exaltação em que vivíamos era incontrolável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial! (...) Mesmo cercados de repulsa cotidiana, a saúde mental de quase todos nós, nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós. Ninguém pensava em sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se imaginava precursor nem mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos. E muito saudáveis.42 Dentro dos limites de uma modernização nascente e de uma sociedade em vias de transformação, o grupo moderrnista adota uma atitude de vanguarda, embora suas obras não sejam vanguardistas e suas ideias a respeito da arte moderna sejam bastante confusas, quando não permeadas de categorias acadêmicas. Atuando como um grupo de pressão, os modernistas, desde fins de 1920, começam a travar um combate sistemático contra as instituições artísticas e seus códigos cristalizados. Inspiram-se, para tanto, no movimento futurista italiano, do qual esposam a proposta ativista, mas não a plataforma estético-artística, demasiado radical para um ambiente cultural como o paulista. Desejoso de conferir destaque ao espaço urbano transformado pela moderni86 ANNATERESA FABRIS zação e aos novos atores sociais e de conquistar o público para a causa da arte moderna, o grupo usa a imprensa como tribuna de uma pregação diuturna43. Apesar de falhas, equívocos e indefinições, o grupo modernista atua de maneira vanguardista também na Semana de Arte Moderna, ao apresentar obras, não raro embrionárias, modernas nas intenções, mas não na forma, a não ser no caso de alguns trabalhos de Anita Malfatti. O que choca público e crítica por ocasião dos festivais de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 não são tanto as obras em si, mas a maneira de divulgá-las. A desfaçatez com a qual os jovens artistas expõem as próprias produções é percebida como um gesto de desafio por parte de uma crítica e de um público ainda apegados a uma concepção acadêmica e naturalista das manifestações artísticas. Nesse contexto, pouco importa que as obras apresentadas “sejam imaturas ou aproximadamente modernas”. O que é de fato importante é a coragem de “desafiar um gosto consolidado, anunciar o porvir a partir de um presente inquieto e interrogador”, de “denunciar a presença do passado na produção de uma cidade materialmente moderna, propor os núcleos possíveis de uma poética urbana, apontar para a necessidade de um código novo no qual a modernização e o modernismo se encontrassem para forjar a modernidade”. Os semanistas, de resto, têm plena consciência dos “frutos verdes” que propuseram ao público paulista, dos “erros proclamados em voz alta”, da pregação de “ideias inadmissíveis”, como se lê no editorial do primeiro número de Klaxon (maio de 1922).44 É nesse gesto consciente de desafio que reside o caráter exemplar da Semana de Arte Moderna. É bem verdade que seus protagonistas legaram para as gerações futuras uma história partidária do evento, obrigando-as a discutir o significado do moderno a partir de uma construção claramente enraizada no mito. Cabe, portanto, a cada geração a tarefa de investigá-la a partir de novas perspectivas, mas não de negá-la in toto, pois ela é uma presença fantasmática, que ganha força toda vez que se discute o significado do “ser moderno” no Brasil. Uma posição lúcida a esse respeito pode ser localizada em Ivan Marques, para quem os pesquisadores que se debruçaram sobre a história dos grupos estaduais “nem sempre conseguiram se livrar dos desvios causados pela mistura de bairrismo com revanchismo. Promover reinterpretações, combater diagnósticos de ausência, lutar contra a ‘exclusão’ – eis a preocupação fundamental dos estudos sobre os modernismos de província”. O trabalho de pesquisa em fontes primárias teria como resultado a “mera constatação de que existiram ‘igrejós regionais’ (a expressão é de Mário) com desejos de atualização e características próprias, sem a investigação das razões de tal singularidade e tampouco das limitações desses grupos modernistas, mais vultosas que seu vanguardismo”.45 Se bem que referido aos “modernismos de província”, o diagnóstico de Marques pode ser aplicado à postura de Herkenhoff, interessado tão somente em desqualificar o modernismo paulista e, sobretudo, a Semana de Arte Moderna, com um rol de constatações, mas não com uma argumentação sólida e convincente. Não basta afirmar que, no Brasil, “ainda se finge que o ‘Modernismo’ de 1922 foi uma atitude diferente com relação ao próprio país e do processo de atualização da linguagem no século XIX”, 87 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ou que a Semana de Arte Moderna “se configura como sintoma do limite”, já que seus promotores não conheciam direito as linguagens modernas,46 para fazer uma crítica efetiva dos alcances da proposta do grupo paulista. Esta era, sem dúvida, embrionária e, até mesmo, contraditória, mas conseguiu criar um choque no público e na crítica, abrindo caminho para a emergência de novos grupos e para a discussão do significado da modernidade na segunda década do século XX, quando a Europa se via às voltas com o fenômeno da volta à ordem. São essas questões que deveriam ser levadas em conta para compreender como uma situação periférica engendrou a Semana de Arte Moderna, a qual adquiriu um caráter paradigmático não apenas por determinação de seus participantes. A busca de prioridades, legítima por si, não exclui interrogações sobre os motivos da não existência de um fenômeno semelhante no Rio de Janeiro, por exemplo. Por que não houve uma Semana de Arte Moderna na capital federal, apesar da presença de indubitáveis núcleos modernos? Afinal, lá existiam alvos bem mais ponderáveis – Academia Brasileira de Letras e Escola Nacional de Belas-Artes, entre outros – do que em São Paulo. Mesmo falando de maneira hipotética, Angela de Castro Gomes fornece uma resposta a essa interrogação, ao fazer referência às disputas travadas nesse campo, que deveriam ser tomadas como “um sólido indicador da competição entre projetos de modernidade com acentos estéticos e políticos distintos e não, como algumas vezes pode ocorrer, como um sinal de fúteis e estéreis bairrismos”47. Os bairrismos, infelizmente, ainda existem, pois a questão moderna entre nós parece mais uma tentativa de negar que algo aconteceu num determinado lugar do que o reconhecimento da existência de múltiplas acepções e de múltiplas temporalidades48 para o termo “modernismo”. 88 Notas 1 ALAMBERT, 2013: 167-168. 2 ALAMBERT, 2013: 168. 3 ANDRADE, 1992: 99. 4 PRADO, 1976: 11; AMARAL, 1976: 123; CAMARGOS, 2002: 76. 5 Criado em 1884, por iniciativa de Georges Seurat, Odilon Redon, Paul Signac e Albert Dubois-Pillet, integrantes da Sociedade dos Artistas Independentes, o Salão dos Independentes opunha-se aos critérios acadêmicos e restritivos do Salão oficial. Para participar dele, os artistas só deveriam pagar uma taxa, pois não havia júri de seleção. Principal divulgador do neoimpressionismo, sofre, no começo do século XX, concorrência do Salão de Outono que, embora liberal, era mais seletivo. O Salão de Outono foi fundado em 1903 por iniciativa dos arquitetos Frantz Jourdain, Hector Guimard e dos pintores Eugène Carrière, Félix Vallotton, Édouard Vuillard, entre outros. Acolhia todas as técnicas artísticas, inclusive a fotografia, a partir de 1904. 6 Cf. GONÇALVES, 2012: 254, 258. 7 Cf. GONÇALVES, 2012: 254; ANDRADE, 2005: 238. 8 PRADO, 1976: 12. 9 PRADO, 1976: 14. 10 HÉLIOS, 23 fev. 1922. 11 Cf. FABRIS, 1994: 149-150; ANDRADE, 12 fev. 1922. 12 ANDRADE, 12 fev. 1922. 13 Para dados ulteriores sobre a polêmica, ver: FABRIS, 1994: 175-179. 14 “No mundo da arte: Semana de Arte Moderna”, 14 fev. 1922. 15 Cf. GONÇALVES, 2012: 297; ANDRADE, 2005: 236. 16 “Arte e artistas: Semana de Arte Moderna”, 16 fev. 1922. A bailarina Carmen Tórtola Valencia, que se distinguia por combinar elementos fantasiosos do Oriente com aspectos do folclore espanhol modernista e por conferir grande sensualidade ao corpo, apresenta-se no Teatro Municipal de São Paulo em 21 e 26 de maio de 1921. Os cartazes que divulgam as duas apresentações paulistas devem ter criado uma grande expectativa, já que ela é definida “a dançarina da raça e da emoção”, “a dançarina dos pés dourados”, “a dançarina da alegria e da morte” e a “emocionante artista da cor e do ritmo”. De acordo com a resenha da noite de estreia publicada pelo Correio Paulistano, a um começo morno, que não decepcionou nem entusiasmou o público, seguiu-se o bailado A cigana com os pés descalços, que provocou as primeiras manifestações das galerias, enquanto a claque batia palmas. No fim da apresentação da primeira parte, que decepcionou o público, ouviram-se “algumas galhofas irreverentes e a arte de Tórtola Valencia começou a ser posta seriamente em dúvida”. Na segunda parte, que teve momentos “lamentáveis”, a bailarina “perdeu de vez a compostura”, julgando conquistar a simpatia do público culto, na apresentação da Valsa Danúbio Azul. Na terceira parte, dedicada às danças orientais, Tórtola Valencia “esforçou-se, quis mostrar-se à altura do renome de que vinha precedida, mas foi em vão. Essa parte, mais do que as outras, decorreu entre galhofas e aplausos irônicos”. A avaliação do cronista não poderia ser mais irônica, pois ele conclui que a dançarina espanhola tinha um “riquíssimo guarda-roupa”. Considerando que Tórtola Valencia era uma representante da dança moderna, tendo como fontes de inspiração Isadora Duncan, Vaslav Nijinski, Anna Pavlova, Maud Allan e a Bela Otero, não é improvável que o público paulistano tenha ficado chocado com sua apresentação, daí as manifestações de desagrado e as palmas “de pura cortesia”. Cf. “Teatros: Municipal”, 22 maio 1921. 17 LAPINI, 1977: 38. 18 ANDRADE, 2005: 236, 238. 19 Apud: GONÇALVES, 2012: 269-270. 20 BOSI, 1970: 376-377. 21 AMARAL, 1976: 178. 22 ZANINI, 1997: 62, 107, 112. 23 AMARAL, 1976: 180. Num artigo publicado na revista belga Lumière, em abril de 1922, Sérgio Milliet define Aita “mais bizarra que original, amando sobretudo a cor e moderna sobretudo nisso, pois ela conservou um certo realismo no desenho que não é de bom quilate”. Cf. MILLIET, 2008: 131. 24 GONÇALVES, 2012: 43. 25 MILLIET, 2008: 132. 26 AMARAL, 1976: 187-188. Ruth Sprung Tarasantchi (1988: 103) apresenta outra versão da participação de Paim Vieira. Não convidado por ser um “desenhista comercial”, o artista teria participado da mostra graças à colaboração de Almeida Prado. Este teria apresentado como próprios dois desenhos realizados pelo amigo, um dos quais representava um casal dançando maxixe. 27 AMARAL, 1976: 156. 28 KIEFER, 1981: 44, 52, 56, 93. 29 FREIRE, 2008: 303-304. 30 Apud: MARQUES, 2011: 37-38. 31 A questão das “lacunas” do evento assume contornos sui generis em A ausência lilás da Semana de Arte Moderna: o olhar pós-moderno. Tomando como parâmetro a produção de Daisy, “que se apresenta sob a forma de fragmentadoras manifestações de escrita que jamais foram sistematizadas em obra e jamais mantiveram deliberada relação com as instituições do sistema literário”, Tereza Virgínia de Almeida afirma que ela se configura “como a ausência da Semana de Arte Moderna somente na medida em que o próprio evento possa vir a ser pensado como algo cuja importância pode vir a ser relativizada a ponto de ser apagado da historiografia”. Esse ponto de vista singular, que pretende “desnaturalizar o consenso estabelecido em torno do evento”, a fim de lançar sobre ele um olhar pós-moderno, assenta-se na constatação de que o nome de Daisy – a qual usava os pseudônimos Cíclone, Miss Cíclone, Tufão e Gracia Lohe – não consta das análises do diário coletivo O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918), redigido por Oswald de Andrade e pelos frequentadores de sua garçonnière, situada na rua Líbero Badaró. Daisy, no entanto, participa ativamente da obra coletiva com suas “letras grandes e agudas”, grafadas em tinta roxa, “que se destacam entre as irregulares caligrafias dos rapazes”. Personagem principal de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, ela é também autora de um diário pessoal, entre 17 de agosto e 24 de dezembro de 1918, em que comprova o próprio “amor à escrita, cultivada diariamente com o cuidado da escolha das palavras que se repetem nas cartas que escreve à garçonnière”. Ao destacar a presença de uma escrita fragmentária em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo e no diário íntimo da jovem, Almeida sugere um paralelo com a estrutura de Memórias sentimentais de João Miramar (1923). Lançando mão de um trecho da autobiografia de Oswald de Andrade, em que este lamenta a perda das “‘memórias’ inteiramente fantásticas ” de sua primeira esposa, conferindo-lhe um papel pioneiro no conto policial, a autora apresenta Daisy como uma escritora escrita por um outro, como uma “escritora impossibilitada de inscrição na Semana de Arte Moderna”. Ao mesmo tempo admite que a jovem “não se reconhece como escritora e não estabelece relações deliberadas com o sistema literário, tal como então estava estruturado”. Apesar do vasto arcabouço teórico utilizado no livro, Almeida não consegue propor uma visão diferente da Semana de Arte Moderna e, muito menos, demonstrar como Daisy seria “um incidente da trajetória modernista que pode ser lido como falta, espaço vazio” das três noitadas de fevereiro de 1922, relativizando, a partir da garçonnière, “a forma como se concebe o ‘modernismo brasileiro’”. Cf. ALMEIDA, 1998: 42, 53-54, 57-58, 66, 99, 116, 118. 32 HERKENHOFF, 2002: 26-27. 33 HERKENHOFF, 2002: 18, 27-28, 30. 34 FABRIS, 1999: 179. 35 FABRIS, 1999: 171-174. 36 FABRIS, 1999: 174. 37 CHIARELLI, 2009: 136-138. É possível que a artista não tivesse consciência dessa mudança de orientação antes da viagem a Paris, como comprova uma carta de 1924, endereçada a Mário de Andrade: “Vou dar uma notícia ‘bouleversante’ – Estou clássica! Como futurista morri e fui enterrrada”. Para justificar o novo rumo, a pintora escuda-se no clima de volta à ordem, dominante na capital francesa desde 1918: “Não posso forçar-me para agradar a ninguém. Nisto sou, fico e serei sempre livre. Aliás todos ou quase todos os grandes artistas daqui estão enfrentando este tremendo problema. Matisse, Derain, Picasso. Todos passam atualmente esta reação. Andava apreensiva com isto, mas estive hoje com diversos artistas que me afiançaram ser esta fase atual em Paris. Voltamos à mãe Natureza”. Cf. GONÇALVES, 2012: 116. 38 VELLOSO, 1996: 31-33. 39 VELLOSO, 1996: 29. Um fenômeno semelhante pode ser detectado em Belo Horizonte antes de 1924: inexistia na cidade um “grupo arregimentado”. Como escreve Ivan Marques (2011: 16-17), havia descompromisso e pouca ambição em relação ao projeto moderno, “como se tudo tivesse acontecido sem cálculo nem consciência, apenas como ‘expansão natural da mocidade’ – um arroubo romântico de quem viveu a aventura de ter ‘vinte anos nos anos 20’”. 40 COELHO, 2012: 39. 41 COELHO, 2012: 39. 42 ANDRADE, 2005: 240-241 43 Cf. FABRIS, 1994: 21. 44 FABRIS, 1994: 23; A Redação, maio 1922: 1. 45 MARQUES, 2011: 23. 46 HERKENHOFF, 2002: 17. 47 GOMES, 1999: 25. 48 Poderia ser lembrado o caso de Florianópolis, em que o modernismo nas artes visuais data da década de 1950. Cf. LEHMKUHL, 2006: 59-88. 1944. Do pincel à gilete: a arte moderna em Belo Horizonte Rodrigo Vivas No ano de 1944 a imprensa mineira se manteve atenta à cobertura do que foi considerada a “maior exposição de Arte Moderna já realizada no Brasil”. (Estado de Minas, 6 de maio de 1944, p. 3). É necessário esclarecer que a Exposição foi um dos componentes de uma série de acontecimentos, contando com palestras, apresentações musicais e caravanas envolvendo personalidades de elites intelectuais. Durante três meses, mais de 140 notícias entre matérias, notas e análises do evento foram publicadas. A partir do acompanhamento da cobertura da imprensa, é possível fazer uma cronologia dos eventos: 1) a apresentação do artista Alberto da Veiga Guignard; 2) o anúncio da exposição; 3) a cobertura geral do evento; e 4) as disputas intelectuais após os “atentados” contra a arte moderna. A Revista Alterosa, em abril, anuncia a criação do Instituto de Belas Artes, que estaria associado à Escola de Arquitetura. A criação do referido Instituto seria uma resposta ao IV Salão de Belas Artes, que atenderia “à revelação da existência de numerosas vocações em Minas”.1 Em correspondência à fundação do Instituto de Belas Artes, está a apresentação do jovem artista Guignard, recém chegado em Belo Horizonte. Na matéria “Guignard exporá brevemente seus novos trabalhos realizados em Minas”, o artista é denominado como representante da “nova geração de artistas brasileiros que, deixando de lado o sentido clássico, tomaram o caminho de novas expressões artísticas”.2 Guignard seria um “artista de visão moderna”, mas obedeceria “no entanto, ao rigor do desenho absoluto, justo e sincero, não admitindo excentricidades abstratas. Possui uma paleta de cores muito vivas, tornando-se conhecido como pintor de retratos, paisagens, flores e decorações murais a sêco.” De modo a promover a integração entre a visão construída sobre o artista veiculada pelo jornal e a sua figura, a matéria é feita sob o formato de uma entrevista e a seguinte passagem é aqui representativa de sua posição: “Todas as obras de arte consistem na segurança absoluta do desenho cientificamente sentido e estudado. A arte moderna, como a do mestre Salvador Dalí na pintura surrealista, não é mais nada do que um esforço para se integrar de novo na arte clássica do passado”.3 Para explicar sua argumentação, Guignard faz menção aos artistas “ultra- HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES modernos” Giotto e Botticelli. O autor da “Nascida de Vênus” é um puro “exemplo de surrealismo no ano de 1500”. A matéria foi encerrada com o anúncio da exposição: “em breve, também por esforço do prefeito, teremos pela primeira vez uma exposição de arte moderna brasileira, com representantes cariocas e paulistas”.4 No mês de maio, de modo a ressaltar a relevância do evento em meio à sociedade mineira, os jornais passam a noticiar as “figuras importantes que abrilhantaram o evento como: Jorge Amado e senhora, Valdemar Cavalcanti e senhora (Folha Carioca); Millôr Fernandes (Revista Brasileira); Geraldo Freitas (O Cruzeiro); Milton Dacosta; Djanira Pereira, Carlos Poty, Ivone Bressane, Lígia de Morais, Else Marie, Silvia Amorim, Luís Macaíba, de Instituto Brasil-Estados Unidos; Sebastião Zaque Pedro. Foram ainda realizadas as conferências: Santa Rosa (sobre arte moderna), José Lins do Rego (sobre o senso de humor dos nordestinos), Sérgio Milliet (sobre os fundamentos da arte moderna), Luis Martins (sobre a evolução da arte brasileira), Oswald de Andrade (sobre o desenvolvimento do Modernismo no Brasil, em arte e na literatura, assinalando o seu papel e de outros companheiros, através das várias fases do movimento) e Di Cavalcanti, que veio depois da mostra encerrada e discorreu sobre o tema: “Mitos do Modernismo”. Uma visita à Exposição: um Galo no meio do caminho A Exposição parecia vitoriosa e o consenso instaurado. O público em geral demonstrava ansiedade pela salvação da “arte moderna”. Na entrada da exposição, os visitantes eram recebidos por três obras: Cabeça de Galo, Preto, de Cândido Portinari e pelo Retrato de Juscelino Kubitschek, do artista Guignard. A pintura de Guignard não havia sido concluída e “curiosamente, tinha afixada o seguinte aviso: ‘retrato inacabado’”.5 É interessante notar que as telas de maior aceitação e rejeição pertencem ao mesmo pintor: Cândido Portinari. Preto [Figura 1] representa um negro no primeiro plano, posicionado diagonalmente em relação à paisagem. A representação neutra, sem valorização dos traços de personalidade, sem heroísmo, força, marginalidade ou opressão. O posicionamento da figura assume um papel fundamental na produção da distância entre figura e paisagem. O direcionamento do olhar do personagem cria uma correspondência com as linhas de ponto de fuga construídas pelos postes que conduzem ao fundo do quadro e adentram a paisagem. O mesmo acontece com as cercas que também atuam na estruturação do espaço. A neutralidade observada nas expressões do negro se estende à composição da paisagem, que não possui ponto específico capaz de destacar-se com relação ao todo ou possibilidade de identificação regionalista, contendo apenas os mínimos elementos característicos de qualquer panorama brasileiro que assumem, desse modo, um apelo universal. Somente um único elemento produz relação emotiva com a tela, no caso, a imobilidade do olhar que coincide com o efeito produzido na paisagem. Observa-se uma pequena igreja ao fundo, pássaros que descansam nos fios de energia elétrica e urubus 92 RODRIGO VIVAS FIGURA 1 Candido Portinari. Preto (cabeça de negro), 1934. Óleo sobre tela. 70 x 50 cm. Coleção Particular, Rio de Janeiro. congelados no céu. Quando analisados em conjunto, parecem utilizar-se do equilíbrio térmico de modo a manterem-se inertes, como se esses existissem em um tempo anterior, sem ao quadro se submeter. A sensação de rigidez, resultado da distribuição das figuras no espaço figurativo da tela, está indissociável das percepções das cores e da conformação do cenário. No caso específico do Preto, a repetição das tonalidades na camisa, na estrada, na montanha, nos postes, no telhado da casa e no céu, reforça tal compreensão ao dotar a totalidade da cena com a mesma nota. Por um esforço investigativo, é possível imaginar a obra Preto, com seu tom decorativo, sendo exposta ao lado da Cabeça de Galo. A facilidade de reconhecimento do tema, as cores harmoniosamente produzidas e distribuídas, não podem, contudo, ser encontradas nesta segunda obra do mesmo pintor. Realmente, induzem ao questionamento se de fato pertencem ao mesmo autor, motivando a indagação por parte não só dos visitantes, bem como a dos participantes da exposição. Jair Silva adotou a costumeira entonação irônica ao afirmar que “diante daqueles que exigem o indecifrável, ou quase esfinge, eis o Sr. Cândido Portinari com seu galo de cabeça para baixo (um galo muitíssimo sem vergonha)”.6 Seria a posição do galo para “espiar as pernadas das galinhas boas?” Jair Silva propõe que no catálogo deveriam ter escrito: “Olag” e “diante dele os entendedores da arte moderna ficam sérios, estudando a originalidade”.7 Cabeça de Galo [Figura 2], efetivamente coloca no limite a dificuldade de “decifração” da figura. Não é uma busca pelo abstracionismo, sendo antes, um exercício formal capaz de sinalizar em direção a esse movimento. Ernest Fromm aconselhara aos 93 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 2 Candido Portinari. Cabeça de Galo (O olho), 1941. Óleo sobre tela. 55 x 46 cm. Coleção Particular. Renato Whitaker. indignados com o quadro que percebessem que, se o título atribuído fosse “estudo em branco e vermelho”, não faria a menor diferença. Fromm tinha consciência de que tal tela de Portinari deveria ser compreendida mais em seus caracteres formais do que com sua relação com a realidade. O estranhamento oriundo da observação do quadro Cabeça de Galo ocorre principalmente pela tentativa de reconhecimento da imagem evocada pelo título e na forma como está apresentada. No primeiro contato visual com a tela, o observador é direcionado até o olho do galo, facilmente reconhecível, diferentemente de seu entorno, no qual não se percebe rapidamente o fato de que a cabeça do galo está virada. Isso certamente acontece porque, independentemente da posição da cabeça do animal, a representação do olho permaneceria a mesma. Um sentido em espiral formado pelas cores branca, vermelha e preta conduz o olhar para o interior do quadro. O movimento, entretanto, não se constrói de forma homogênea, tanto pela distribuição das cores quanto pelas grossas pinceladas que se apresentam como cortes. Os questionamentos acerca da composição do quadro se desdobram em outros momentos. O primeiro se refere ao posicionamento invertido da cabeça do galo e o segundo, tem origem na percepção da ausência do restante do corpo. O galo parece executar um imenso esforço para se libertar de um espaço que o aprisiona, por isso se contorce na procura por maior mobilidade. Outra interpretação possível é conceber que, na parte inferior do quadro, está representado o pé do galo, o que possibilitaria uma visualização da ação circunscrita ao mesmo ambiente, como se o animal estivesse de pé e movimentasse apenas a cabeça. Portinari, com a execução desse trabalho, é capaz de materializar as 94 RODRIGO VIVAS oposições entre “conservadores” e “progressistas” que caracterizam os comentários críticos sobre a obra dividindo Belo Horizonte em “dois partidos políticos”.8 Os comentadores da época se referiram ao evento ironicamente, sem entenderem o porquê de um “galo”, nem galo vivo, nem morto, mas um galo pintado consegue chamar tanta atenção. No Rio de Janeiro, Gibson Lessa afirmou que nunca ninguém pensou que um quadro, “um simples quadro a óleo, fosse capaz de dividir uma população. Pois dividiu”.9 Belo Horizonte havia se transformado em um campo de batalha “cindida em duas facções declaradamente irreconciliáveis: a dos amigos e a dos inimigos de um galo”.10 Na década de 1940, Portinari fez uma série de estudos para a obra Galo11, sendo possível observar o caminho para a realização do quadro participante da Exposição. É interessante verificar a carta de Portinari a Carlos Drummond de Andrade relatando o envio das obras para a Exposição de Belo Horizonte12. Há tempos, de Minas, realizei quadros para uma exposição – achei que o preto seria uma boa contribuição – não é espécie moderna, mas é bom companheiro para o outro quadro que mandei (cabeça de galo). A maior parte das críticas se concentrou na obra Cabeça de Galo, porém, algumas se dedicaram a analisar mais genericamente a exposição. Santa Rosa noticiou a Exposição Moderna em Belo Horizonte, no artigo A arte moderna reflete a angústia e os desencontros da época, publicado no jornal Folha de Minas em 1944. A Exposição pode contar, segundo ele, com três tipos de espectadores. Primeiramente, os mais exigentes no gosto e julgamento artísticos, os quais podem ser considerados ignorantes ao produzirem “juízos artísticos” que não entendem, sendo desonestos com eles e com os artistas. O segundo tipo, aquele capaz de gostar dos quadros apresentados na exposição, sem, contudo, explicar o motivo pelo qual as obras agradaram. Por fim, apontou os que não entendem, sendo condescendente com os que se creem sem a capacidade de julgar. Excluiu, ainda, os que detestam a priori, que seriam ignorantes e representam “as forças reacionárias, os fósseis”.13 Ao continuar sua análise, Santa Rosa discutiu a emergência da arte moderna no Brasil, cujo estágio de desenvolvimento poderia ser comparado ao de uma criança. Os poucos artistas modernos estariam lutando para modificar esse tipo de situação, mas “desde a vinda de Graça Aranha em 1922, passando pela famosa semana de arte moderna de São Paulo, até hoje, quase que o clima é o mesmo”.14 Com relação à Arte Moderna, Menegale fez algumas observações sobre a realização da Exposição Moderna de 1944. O grande problema seria um descompasso entre o “povo” e a arte moderna, produzindo uma injustiça no julgamento dos artistas. Todavia, ninguém poderia ser culpado do desconhecimento. Para Menegale, “o povo desinteressa-se porque ‘não entende’. Se assim é, que outra solução ocorre, senão a de vulgarizar o mais possível a nova arte, pondo-a, o mais difusa e freqüentemente que se possa, sob os olhos da multidão?”15 Milton Pedrosa interpretou as polêmicas geradas na Exposição Moderna de Belo Horizonte como um “dos mais interessantes objetivos de iniciativas dessa natureza”. 95 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Para Pedrosa, a discussão sobre a Cabeça de Galo está na incapacidade do público em perceber o teor abstrato da pintura. É a mesma falta de contato com a pintura que leva a achar no Preto, do mesmo pintor, mais arte do que naquele quadro, quando o que se dá é justamente o contrário.16 O atentado O jornal Folha de Minas apresenta, em 13 de junho, a seguinte notícia: “Revoltou profundamente a cidade a inexplicável ocorrência verificada anteontem no recinto da Exposição de Arte Moderna. Numa atitude lamentável, certo indivíduo, que não pôde ser ainda identificado, retalhou a gilete oito das telas expostas”.17 Não foi possível entender o motivo do atentado, se a intenção do autor do selvagem ato foi fruto de um adversário da arte moderna ou apenas um “débio mental”.18 A listagem completa dos quadros atingidos comporta: Mendigos, de Santa Rosa, oferecido ao prefeito da cidade, Cacho de Bananas, de Marta Lonoch, No Estúdio, de Da Costa, Flores, de Mário Levy, Natureza-morta, de Waldemar da Costa, Natureza-morta de Oswald de Andrade Filho, Lenhadores, de Hilda Campofiorito, Natureza-morta e Cabeça de mulher, de José Morais. Com o título “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”, foram reunidos comentários sobre o acontecido, dentre eles o de Lasar Segall, que afirmou na ocasião: “Já conheço essa gente. Quando fiz minha exposição no Museu Nacional de Belas Artes fui vítima de uma campanha em que as expressões ‘arte degenerada’ e ‘russo’ (como se fosse uma ofensa...) caracterizavam os seus autores. Essas são as mesmas pessoas, certamente, que depredaram nossos quadros na exposição belorizontina.” Para Portinari, “Foi uma selvageria. Um quadro não faz mal a ninguém. Foi um atentado estúpido de intransigente amante do passadismo, de reacionários, reacionários que não admitem nossas ideias e concepções e querem a todo custo evitar o progresso, evitar a evolução”.19 Oswald de Andrade dedicou o texto “A Gilete e o Pincel” ao “incidente” ocorrido durante a exposição. Para ele, “O que o pincel amoroso dos artistas modernos fizera para mostrar a Minas um trecho do esforço contemporâneo foi destruído pela gilete insidiosa dos retardatários”.20 Registra, também, uma importante observação feita por Anita Malfatti: “porque se borra de amarelo ou de vermelho um pedaço de pano ou de tela, saem pedradas e apodos, insultos e brigas”. O autor coloca-se contra a pintura técnica com “efeitos das linhas e dos tons, em que ainda hoje se regalam certos contemplativos dobrados de virtuose”.21 Oswald, apesar de reconhecer o mérito artesão das folhinhas de Portinari, é contra as “proezas exteriores do pincel que aqui em São Paulo têm como líder o simpático Paulo Rossi e fizeram a fortuna recente de Volpi.” Seu texto se desenvolve por meio da comparação entre os debates relacionados ao evento e a violência de um campo de batalhas. 96 RODRIGO VIVAS Na palestra de Sérgio Milliet, na Biblioteca Municipal, tinha “relativamente mais gente do que o estádio do Pacaembu nos grandes jogos.” Sem questões com árbitro nem resultados duvidosos, havia uma invasão de campo que apinhava curiosos e debatentes de flanco, atrás e quase que por cima do conferencista. (...) Escolhera Sérgio como sua tropa de choque a Luis Martins e ao boxeur Lourival Gomes Machado, ficando eu, como de hábito, com minha metralhadora por conta própria. Rebatemos na possível medida e força a invasão interpelativa que de todo lado se apresentava. Num cenário menor, mas não menos passional, presenciei a um reprise vivaz da Semana de Arte de 22.22 A cultura do apagamento: Por uma história da arte em Belo Horizonte A Semana de 1944 é um evento fundamental para a compreensão da história da arte brasileira. A riqueza da mesma pode ser observada na congregação de grande número de especialistas e, principalmente, em erigir uma memória sobre o passado recente. O vocabulário definido a partir da clareza das conquistas e a necessidade da arte moderna, aqui vinculada à chancela progressista, não podem mais ser ignorados. Para tanto, foi necessário um corte ou um “apagamento” da memória anterior, um ato seletivo de articulação das temporalidades através de uma história da arte. Denise Mattar realizou um importante estudo que teve como resultado a “remontagem” da exposição em 2006. É indispensável esclarecer que a exposição de 2006 não contou necessariamente com as mesmas obras que foram expostas em 1944, tendo em vista a dificuldade existente em localizá-las, sendo que não é incomum a utilização de títulos genéricos para nomeação de obras. No texto introdutório, Mattar buscou justificar a relevância da Exposição que ficou conhecida como “Semaninha”. A autora, imbuída de uma concepção progressista, “construiu” a história da arte moderna brasileira através da demarcação de três momentos: a Semana de 1922 como o início, o Salão Revolucionário de 1931 como estágio intermediário e a consolidação com a Semaninha. Antes de aceitarmos o posicionamento indicado pelo estabelecimento desses três momentos, há a indagação: como o historiador da arte seleciona os eventos que devem figurar na narrativa da história da arte? Para o pesquisador que estuda a história da arte em Belo Horizonte, tal questionamento é de grande relevância. Existe somente a possibilidade para uma única história da arte, que seria a brasileira, ou é também possível analisar inúmeras histórias como componentes relacionais? Alguns pesquisadores da história da arte em Belo Horizonte tentaram escrever sua narrativa como parte integrante de uma história da arte no Brasil. Todavia, o problema decorrente dessa iniciativa foi a busca desenfreada de comprovação de originalidade com o objetivo único de encontrar elementos capazes de antecipar outras produções 97 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES nacionais; pois o risco de não pertencimento à história da arte se configura na inexistência de vinculações. Esse tipo de perspectiva converge para uma ideia geral que identifica uma história da arte europeia como superior e original, reconhece sua passagem pelo Brasil nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo e que finalmente se difunde sem a mesma energia para outras capitais como Belo Horizonte. Parece existir um “querer artístico” que dota os artistas de determinada capacidade criativa e, como em uma representação escalonada, esse “querer” se manifestaria, naturalmente, como atraso ou ressonância, dependendo da lacuna temporal para aceitar ou recusar a “capacidade criativa” em questão. Essa relação pode ser denominada como o “mito da irradiação” ou “ressonância”. Mas como a historiografia analisa a Exposição de 1944 em associação à história da arte de Belo Horizonte? Segundo a visão corrente, a Primeira Exposição Moderna de Belo Horizonte realizada por Zina Aita teria acontecido em 1920 e anteciparia em dois anos a exposição de arte moderna paulista. A argumentação de uma “originalidade” mineira foi defendida por Ivone Vieira Silva.23 Ivone percebe na Exposição Moderna de Zina Aita, ocorrida em 1920, um dos “mais significativos momentos modernistas do período”.24 Aita teria sido responsável por abrir a modernidade estética em Belo Horizonte e sua trajetória equivaleria à de artistas como Anita Malfatti e Rego Monteiro.25 Aníbal Mattos nasce no Arraial do Comércio, em Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro aos 26 de outubro de 1886, vindo a falecer em Belo Horizonte em junho de 1969. Além de pintor, foi conhecido como escritor, historiador da arte e professor. Dois de seus cinco irmãos tornaram-se artistas: Antonio, escultor, e Adalberto, pintor e gravurista. Aníbal Mattos fez seus primeiros estudos de desenho no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, posteriormente, estudou na Escola Nacional de Belas Artes na mesma cidade, tendo sido aluno de João Batista de Costa, Daniel Bérard e João Zeferino da Costa. Foi reconhecido pela Escola Nacional de Belas Artes com três menções honrosas, uma medalha de ouro em 1912 e uma de prata em 1916. Aníbal se transfere para Belo Horizonte em 1917, mas a cidade já conhece suas exposições desde 1913 devido às suas notícias publicadas no Diário de Minas. Na capital mineira, Aníbal realizou seguidamente, durante 15 anos, 15 Exposições Gerais de Belas Artes sem o auxílio governamental. Zina Aita nasce em Belo Horizonte em 1900. Esteve na Itália por seis anos, onde se dedicou ao desenho e à pintura nas cidades de Roma, Florença, Milão e Veneza. A cidade de Belo Horizonte conhece Aita pela exposição realizada no Conselho Deliberativo em 1920. A necessidade de definição da oposição entre uma arte “acadêmica” e outra “moderna” encontra nos dois artistas um quadro “ideal”. Aníbal Mattos seria o representante da “cultura acadêmica”, “elitista” e “articulada ao sistema dominante”26 e Zina Aita a artista de vanguarda capaz de “rebelar-se contra as normas e convenções da arte das elites conservadoras, que repudiavam o fascínio dos emergentes pelo primitivismo e pela busca de traços arcaizantes da tradição cultural do país”.27 98 RODRIGO VIVAS O enfrentamento dos dois protagonistas se deu na única exposição realizada por Zina Aita em Belo Horizonte e, segundo Ivone Vieira, teria sido “supreendentemente patrocinada pela Sociedade Mineira de Belas Artes”. Como se sabe, tal sociedade tinha como responsável o próprio Aníbal Mattos. Desse modo, como sustentar a hipótese de Vieira, segundo a qual Mattos é um artista conservador que mantém o domínio das elites belorizontinas? Não haveria, portanto, justificativas para Mattos convidar, organizar, financiar, elogiar e divulgar nos jornais a jovem artista revolucionária moderna que viria libertar Belo Horizonte de seu próprio monopólio. A proposta interpretativa de Cristina Ávila ainda é mais frágil. A autora descontextualiza trechos das fontes jornalísticas, cria uma situação ilusória de confronto a partir de uma superintepretação desses e trata como escritos por autores diversos trechos da mesma matéria. Tal situação pode ser percebida na passagem em que, segundo Cristina Ávila, a Primeira Exposição Moderna28 é “considerada bizarra pela crítica; obtém, no entanto, comentários positivos no jornal Diário de Minas em matéria assinada por FLY (pseudônimo de Aníbal Mattos)”.29 O único que escreveu sobre a exposição de Zina Aita foi o próprio Aníbal Mattos. Ávila, mesmo sabendo que Fly é o pseudônimo de Mattos, ainda cria um cenário de discursos distintos que nunca existiu. Por fim, apesar da importância da exposição de Zina Aita, a mesma não é catalisadora de outras do gênero. Representou o “primeiro (e isolado) impulso de modernidade no Estado, registraram-se esparsos esforços de renovação do ambiente, enrustido e apegado à rotina”.30 O Salão Bar Brasil 1936 e a XII Exposição da Sociedade Mineira de Belas Artes A Exposição do Salão Bar Brasil, em 1936, foi a primeira a questionar a produção artística de Aníbal Mattos. Realizara-se na mesma época do 2º Congresso Eucarístico Nacional, que seria “mais do que um ato religioso, era uma demonstração do poder hegemônico-conservador da Igreja, a nível nacional”.31Aníbal Mattos promoveu em setembro de 1936 a XII Exposição da Sociedade Mineira de Bellas Artes “Commemorativa do II Congresso Eucharístico Nacional” (Catálogo da XII Exposição da Sociedade Mineira de Bellas Artes, 1936). Os artistas do Bar Brasil, para “subverter a ordem escolheram o ‘Salão do Bar Brasil’, situado no porão do então Cine Brasil, (...)”.32 “Inaugurou-se ontem, brilhantemente, a exposição de arte do Bar Brasil organizada por Delpino Júnior e um grupo de artistas modernos”.33 Dessa forma é apresentada nos jornais da capital mineira a Exposição de 1936. Estavam presentes o “representante do governador do Estado, Major Eudoxio dos Santos, Aníbal Mattos e vários intelectuais, jornalistas, pintores e figuras de destaque em nossos meios artísticos e social”.34 O Salão Bar Brasil foi financiado pela Prefeitura de Belo Horizonte que, na visão de Cristina Ávila, constitui-se uma situação irônica, pois Aníbal Mattos “já havia tentado 99 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES inúmeras vezes, sem conseguir, o efetivo apoio governamental para suas exposições (...)”.35 Para um artista atrelado ao poder governamental, como caracterizado por Ivone Vieira, é difícil compreender tal situação. Alberto Delpino, Djanira Seixas Coutinho, Genesco Murta, Renato Lima, Franciso Rocha, J. J. Neves e Delpino Júnior são alguns dos artistas então participantes. Apesar da presença de vários artistas conservadores, os discursos possuem um tom de inquietação, conclamando os mineiros a trabalharem para o engrandecimento das artes plásticas de Belo Horizonte. O momento seria de reação “ao cabotinismo que de longos anos vem explorando a deficiência e pobreza de nosso ambiente artístico e incumbindo aos chefes desse movimento combater, por todos os meios lícitos, esse estado de coisas”.36 Entretanto, os quadros eram também apresentados com etiquetas de valor, revelando ainda objetivos referentes a ganhos financeiros e não somente como propagado, de subversão à ordem. Conforme a nota feita pelos organizadores do evento, seria função dos artistas mineiros desejosos de trabalhar pela grandeza e progresso do estado unirem-se com coragem e paciência para “remover todos os obstáculos e arrastar corajosamente todas as dificuldades as quais as artes plásticas enfrentariam em Belo Horizonte”.37 Para os organizadores do Salão Bar Brasil, seria necessário que a cidade de Belo Horizonte despertasse do seu velho marasmo “disposta a prestigiar os seus autênticos valores”. São premiados os seguintes quadros: Igreja do Rosário e Observatório, de Genesco Murta; e a Fazenda do Leitão, de Renato Lima; além dos desenhos de Fernando Pierucetti, Miséria [Figura 3] e Jornaleiros [Figura 4] Conferem-se, também, menções honrosas aos trabalhos de Delpino Júnior e Érico de Paula. Enquanto no Bar Brasil os artistas percebem que é chegado o momento de se desvencilhar de todos os entraves para a consolidação de novas propostas artísticas, a imprensa da capital mineira recebe as reivindicações ironicamente. Como Aníbal Mattos inaugurou uma exposição no mesmo período em que acontece o Salão Bar Brasil, as comparações nos órgãos de divulgação tornaram-se inevitáveis. Segundo Jair Silva, um homem saiu cambaleando da Exposição de Pintura. “O Bar Brasil está enfeitado de quadros e de escultores. A pessoa entra, observa e vai repetindo os chopps. Depois de algumas horas, a impressão do visitante é magnífica, tornando-se excessivamente precário o seu equilíbrio”.38 Fernando Pierucetti foi um dos premiados no Salão Bar Brasil com as obras Miséria e Jornaleiros. O trabalho do artista traz a público os desconhecidos do cotidiano, que são representados tanto em forma como matéria. A forma contorcida pelos sofrimentos da mãe que segura sem conseguir proteger o filho mais novo e dos jornaleiros, que precisam encontrar nas ruas um abrigo inexistente. As cenas são de uma capital em crescimento, de um presente encoberto pelas promessas de um futuro de modernização. A análise dessas obras é importante por divergir da produção executada na capital mineira. Há a negação dos temas tradicionais escolhidos pela pintura na capital: os 100 RODRIGO VIVAS carros de boi, as igrejas de Ouro Preto e o passado glorificante e idealizado. Pierucetti prefere observar os rostos que, geralmente, os habitantes da cidade moderna preferem não ver, sendo o primeiro a abandonar as imagens consensuais do passado da antiga capital e buscar no presente, na nova capital, os temas para composição da sua obra. Nesse sentido, revelam-se as contradições de um projeto que se apropria do termo moderno para legitimar a exclusão e a mudança autoritária. Pieruccetti tinha consciência do potencial de ruptura estética e política existente em sua obra, por isso elegeu um pseudônimo para apresentá-la ao público. Ao fazer isso, homenageou ironicamente o seu possível repressor, o delegado responsável por caçar os subversivos, os comunistas. Jair Silva achou desnecessário o uso do pseudônimo. Segundo este colunista, (...) Luiz Alfredo é o pseudônimo de Fernando, rapaz de talento. Apesar disto, conseguiram-lhe passar um trote. Fernando pintou algumas cenas atualíssimas e comovedoras das ruas de Belo Horizonte. Mas foi advertido do perigo de ter de ajustar contas com a polícia, que poderia considerá-lo comunista. O pseudônimo de Luiz Alfredo é assim uma homenagem ao delegado Orlando Morethson.39 Infelizmente, permaneceu desconhecida a relação da escolha do pseudônimo Luiz Alfredo para homenagear o delegado Morethson. Geraldo Magalhães, no levantamento da exposição comemorativa do Salão Bar Brasil, afirma que no início de sua pesquisa procurou Pieruccetti para convidá-lo a expor seus desenhos. Pieruccetti não sabia onde sua obra se encontrava por tê-la deixado com o “intelectual Fritz Teixeira Sales, que pretendia não só divulgar o evento, como também ajudar o jovem artista”. Diferentemente do que é informado por Jair Silva, o desaparecimento dessa obra é motivado pelo “clima político-ideológico que se instaurou no país a partir do Estado Novo; e as ameaças ao artista, pelo conteúdo social de seu trabalho, facilitaram o desaparecimento de sua obra”.40 FIGURA 3 Fernando Pierucetti. Miséria. 1936. Carvão/Papel. 58 x 70 cm. Museu Mineiro. Belo Horizonte. FIGURA 4 Fernando Pierucetti. Jornaleiros. 1936. Carvão/Papel. 75,5 x 60 cm. Museu Mineiro. Belo Horizonte. 101 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O Catálogo da Exposição Salão Bar Brasil A análise do Catálogo da Exposição do Salão Bar Brasil permite perceber a rejeição ao artista Aníbal Mattos, tornando evidente que este não foi um evento de discussão artística entre acadêmicos e modernos. Na capa do catálogo é possível ler: Exposição de Bellas Artes organizada pelos artistas modernos de Belo Horizonte. Estado de Minas Geraes – Brasil. O catálogo apresenta a lista dos trabalhos expostos e dois pequenos textos: “Arte e Imaginação”, de J. Guimarães Menegale, e “Arte Moderna”, de David Jardim Junior. Menegale discute em seu texto as relações entre arte e imaginação criadora. Não existe nenhuma menção direta à arte moderna. O curto texto de David Jardim Junior é iniciado com o seguinte questionamento: “Pode-se falar em Arte Moderna? Não será a Arte alguma coisa de eterno, como a própria Belleza que procura?”41 Como é possível perceber, apesar da indagação, David não debate a arte moderna, mas passa a relacionar a arte com a “beleza” e seu caráter de imutabilidade. “A Belleza tem, é certo, um padrão immutavel em todos os tempos. O corpo harmonioso de Venus de Milo, a graciosidade indefinível da Gioconda continuam a ser, para os nossos sentidos, os pontos culminantes da esthesia”.42 David Júnior não parece conhecer as referências da arte moderna e seu texto culmina de forma desconcertante: “Expondo – o singelamento aos olhos do público a Arte Moderna traça o roteiro para uma região onde a Arte Eterna possa, dentro da Paz e da Harmonia, trazer os rumos da Belleza Eterna”.43 A frase final do texto aproxima-se mais de um discurso religioso, conciliatório, que de uma proposta de ruptura artística ou social. No livro de presença constam alguns comentários e se destaca o de José Bezerra Gomes: “Quem estava atravancando a arte em Minas era o senhor Aníbal Mattos. Era preciso reagir. E Delpino e Fernando e outros reagiram direito” (LIVRO DE ASSINATURAS, 1936). Esse comentário confirma a rivalidade em relação ao artista Aníbal Mattos. A consulta ao livro de assinaturas permite perceber que Aníbal Mattos compareceu à exposição. Como se sabe, após o Salão Bar Brasil uma medida institucional de fato foi construída: a criação dos Salões de Arte no calendário anual da capital mineira. No ano de 1937, inaugurou-se o 1º Salão de Belas Artes da cidade de Belo Horizonte. Interessante notar que, independentemente dos termos utilizados e a consciência ou não dos embates entre a arte moderna e acadêmica, os artistas vencedores do salão ainda foram os “conservadores”. É inquestionável que a Exposição de 1944 produziu modificações para a arte de Belo Horizonte, mas por qual razão os artistas da capital não são convidados a participarem de tal transformação? Um exemplo refere-se à atuação de Menegalle. O grande articulador – assim referenciado pelos pesquisadores – participou como jurado do Salão Bar Brasil de 1936, e teve o texto escrito no catálogo, considerado pelos mesmos pesquisadores como importante manifesto da arte moderna. Então, por que em 1944 Menegalle não referencia a exposição ou os artistas? Tendo Menegalle participado e escrito o texto do catálogo, não seria possível esquecer esses eventos. Talvez as considerações sejam de fato uma disputa entre “artistas clássicos” e “artistas modernos”, ou seja: artistas 102 RODRIGO VIVAS já atuantes na capital e os novos artistas. A partir desses elementos de contextualização, não é incorreto mencionar que o circuito de Belo Horizonte ainda na década de 1940, é praticamente inexistente. Podemos destacar apenas a atuação de Aníbal Mattos que foi um dos únicos artistas que continuaram sua produção, assim como Genesco Murta. Prosseguindo nas investigações sobre a Exposição de 1944 e tomando as inferências acima realizadas, as palavras de Luis Martins publicadas no jornal Folha de Minas em matéria intitulada “Uma caravana representativa da inteligência e da cultura de São Paulo” parecem bastante adequadas: Vinte e sete horas consecutivas de bandeirismo ferroviário foram bastante para nos trazer à grande cidade central onde o espírito de iniciativa e a inquietação intelectual de uma geração de jovens administradores realizam a mais empolgante experiência já tentada no país. É curioso e paradoxal o caprichoso destino que nos traz da ‘capital artística do Brasil’ para vir aprender arte moderna em Belo Horizonte. Estamos aqui para ver a Exposição de Arte Moderna. Vimos. Mas não vimos ainda de maneira suficiente. Seria impossível iniciar hoje uma série de referências mais detalhadas sobre os participantes do grande certame, que são quase todos os bons artistas do Rio e de S. Paulo.44 O texto de Luis Martins não é considerado exceção. As matérias jornalísticas tendem a apontar para a ausência de produção artística na cidade de Belo Horizonte distinguindo o intelectualismo de São Paulo e o de Minas Gerais, como observado na matéria supracitada. É clara a separação realizada entre a “inteligência e cultura” paulista para aquela presente na capital mineira, atuante apenas na via receptiva. Martins parece não compreender quais critérios poderiam legitimar o deslocamento feito da “capital artística do Brasil” à cidade de Belo Horizonte, principalmente ao ressaltar que os artistas presentes na Exposição Moderna não são mineiros, e sim, “quase todos os bons artistas do Rio e São Paulo”. A viagem feita a Minas Gerais seria uma mera questão de alteração de cenário e não propriamente dos protagonistas envolvidos. A mesma reportagem destaca as palestras realizadas com os “artistas e intelectuais bandeirantes”, no intuito de promover a compreensão do que seria o movimento moderno e a definição de suas características. A resposta que aqui mais interessa é a dada pelo crítico e escritor Sérgio Milliet: “A única tendência geral é a oposição ao classicismo”. A qual classicismo Milliet poderia estar se referindo? A resposta dada pelo escritor considera a realidade dos movimentos brasileiros ou apenas aceita e repete eventos externos? O que se percebe, portanto, é a opção por grande parte dos pesquisadores em recontarem uma história da arte já escrita a partir da seleção de momentos e eventos não condizentes ao quadro brasileiro e, principalmente, mineiro. É necessário compreender as condições específicas de cada região através de suas produções artísticas e não pela transposição mecânica e direta, o que não significa, contudo, um esforço por uma história da arte deslocada e avulsa, e sim, em constante diálogo. E é nesse diálogo que se determina a importância da Exposição de 1944 para a História da Arte em Belo Horizonte. A compreensão de sua inserção e aceitação em um circuito ainda incipiente ou quase inexistente e as discussões provenientes do que poderia ou não ser considerado como arte moderna: a cabeça invertida de um negro ou um galo na paisagem? 103 Notas 1 Revista Alterosa, abril de 1944, p. 110-111. Após essa pequena nota, nenhuma referência particular à arte de Minas será feita, pois excetuando-se trechos aludindo às montanhas e à culinária – o queijo –, os textos poderiam estar relacionados a uma exposição em qualquer outro lugar do país. 2 Estado de Minas, 2 abr. 1944, p. 3 3 Idem 4 Ibidem 5 MATTAR, 2004, p. 17 6 SILVA, O Olag de Portinari. Estado de Minas, 21 mai. 1944 7 Idem 8 MARTINS, Diário de São Paulo, 1º jun. 1944 9 LESSA. Belo Horizonte e o galo de Portinari. Barulho na capital mineira. Vamos Ler, Rio de Janeiro, 6 jun. 1944 10 Idem. 11 É possível relacionar os seguintes desenhos: Galo. 1941. Desenho a carvão/papel. 45 x 62 cm. Coleção Particular. Rio de Janeiro. [FCO 900); Galos. 1941. Pintura a óleo/tela. 101 x 81 cm. Brodowski, SP. Localização no Projeto Portinari. 2545; Galo. 1941. Pintura a têmpera/tela. 38 x 46 cm. Rio de Janeiro. Localização no Projeto Portinari. 1729. 12 CO-4329.1: Portinari, Candido. [Carta] 1944 mar. 6, Petrópolis, RJ [para] Carlos Drummond de Andrade, [Rio de Janeiro, RJ]. pincel”. Diário de S. Paulo, coluna Feira das Sextas, 16 jun. 1944. 21 Idem. 22 Ibidem. 23 VIEIRA, 1997 24 VIEIRA, 1986, p. 134 25 Idem. 26 VIEIRA, 1997, p. 119. 27 VIEIRA, 1997, p. 126 28 O termo “Primeira Exposição Moderna” ou “Exposição Moderna” será mantido apenas para construir o diálogo com os trabalhos produzidos sobre o tema. É necessário ficar clara a discordância dessas terminologias. 29 ÁVILA, 1991, p. 8. 30 ZANINI, 1991, p. 28. 131 VIEIRA, 1986, sem página. 32 Idem. 33 Folha de Minas, 11 set. 1936. 34 Idem. 35 ÁVILA, 1991, p. 15. 36 Nota distribuída aos jornais pelos organizadores do Salão Bar Brasil. Folha de Minas, 15 set. 1936. 37 Idem. 38 SILVA, Subterrâneos dos Artistas. Folha de Minas, 18 set. 1936. 39 Idem. 40 VIEIRA, 1986, p.9. 13 SANTA ROSA, Folha de Minas, 21 mai. 1944 41 JUNIOR, Catálogo da Exposição Bar Brasil. 14 Idem. 42 Idem. 15 MATTAR, 2006, p.16. 43 Ibidem. 16 PEDROSA, Apud: FABRIS, 1996, p. 94 44 MARTINS, Luis. Uma caravana representativa da inteligência e da cultura de S. Paulo. Folha de Minas, 28 mai. 1944. 17 Folha de Minas, 13 jun. 1944 18 Idem. 19 PORTINARI, Cândido. “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”. Estado de Minas, 14 jun. 1944, p. 2. 20 ANDRADE, Oswald. “A gilete e o 1949. A fotografia moderna chega ao museu: os Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas Helouise Costa No ano de 1949, Thomaz Farkas (1924-2011) apresentou a exposição Estudos Fotográficos no Museu de Arte Moderna de São Paulo, poucos meses após a fundação da instituição. Estudos Fotográficos reuniu um apanhado da produção do fotógrafo até aquele momento e constituiu-se na primeira mostra de fotografia, considerada como manifestação artística, realizada em um museu brasileiro. Imagens de cunho documental e experimentações formais foram apresentadas por meio de uma expografia arrojada, assinada pelos arquitetos Jacob Ruchti (1917-1974) e Miguel Forte (1915-2002). Tratava-se de uma proposta muito distinta do que se fazia nas exposições fotográficas realizadas na época no Brasil, restritas até então ao ambiente fotoclubista. Este artigo irá problematizar o trânsito de Thomaz Farkas entre o fotoclubismo e o circuito de arte, buscando situar o contexto de realização da mostra Estudos Fotográficos e suas repercussões. Exposições de fotografia como objeto de estudo A história das exposições de arte constitui-se hoje em uma área de pesquisa consolidada que conta com pesquisadores pioneiros, ainda atuantes, como Jean Marc Poinsot, Bruce Altshuler e Mary Anne Staniszewski.1 Uma das premissas desses estudos reside em considerar as exposições como eventos efêmeros que marcam momentos de visibilidade pública das obras em sua materialidade, segundo determinadas chaves interpretativas, e que têm importante papel na construção das narrativas da história da arte. Não se trata, portanto, de abordar as obras como entidades autônomas descontextualizadas e muito menos considerá-las portadoras de sentidos estabelecidos a priori. Ao invés disso, busca-se colocar em evidência a complexa rede de relações que as constitui enquanto artefatos culturais, especialmente no que se refere à sua circulação, recepção e consumo. Em que pese o fato de esta área encontrar-se em plena expansão, ainda são poucos os estudos voltados às exposições de fotografia.2 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Para traçarmos um panorama histórico da constituição das exposições de fotografia como objeto de interesse acadêmico, devemos retornar aos anos de 1980. Foi no contexto de emergência da chamada crítica pós-moderna, que a fotografia tornou-se elemento importante da crítica ao modernismo, tendo sido utilizada para colocar em xeque noções como autoria, originalidade e autonomia. Os teóricos engajados nessa discussão lançaram a hipótese de que a entrada da fotografia no museu de arte teria sido um momento fundamental para a explicitação das contradições do sistema de arte decorrentes da passagem do moderno para o contemporâneo. Dentre eles podemos citar Christopher Phillips, Rosalind Krauss e Douglas Crimp.3 Cada um defendeu, a seu modo, que dada a existência social múltipla da fotografia – no arquivo, nos meios de comunicação de massas, nos sistemas de vigilância, etc – ela não poderia ser assimilada pelo discurso da autonomia da obra de arte sem que as contradições a ele inerentes fossem explicitadas. Esta hipótese continua presente nas reflexões de Jorge Ribalta e Olivier Lugon,4 dois dos autores que vêm se dedicando a pesquisas sistemáticas no campo da história das exposições de fotografia nos últimos anos5. Segundo Ribalta, “o ponto de partida inevitável para qualquer estudo sobre a visibilidade pública da fotografia nos espaços institucionais de exposição” encontra-se nas reflexões de Krauss, Crimp e Phillips, assim como em Benjamin Buchloh e Allan Sekula.6 Esse é o quadro teórico de fundo dos estudos que venho realizando sobre a assimilação da fotografia pelas instituições museológicas do campo da arte na cidade de São Paulo.7 Trazer essa problemática para o contexto brasileiro, no entanto, exige que se estabeleçam parâmetros de análise específicos, na medida em que a fotografia, como modalidade artística, começaria a passar por um processo de institucionalização no país somente a partir da fundação dos primeiros museus modernos, ou seja, a partir do final da década de 1940.8 Isso significa dizer que, ao acolherem a fotografia, essas instituições ainda eram muito frágeis no que tange à sua força legitimadora enquanto museus, não apenas em relação à fotografia, mas à própria arte moderna. Diante desse contexto, é possível afirmar que a fotografia no Brasil não teria exercido um papel desestabilizador em relação ao discurso modernista local, uma vez que este ainda encontrava-se em vias de legitimação. Cabe-nos, então, perguntar: qual teria sido a peculiaridade da assimilação da fotografia pelas instituições museológicas entre nós? Que papel a fotografia teria exercido no debate artístico mais amplo da época? Este artigo pretende lançar foco sobre a exposição Estudos Fotográficos, de Thomas Farkas, com o intuito de inseri-la neste debate. Um fotógrafo de calças curtas no Foto Cine Clube Bandeirante9 A fotografia moderna no Brasil foi uma experiência tardia em relação à Europa e aos Estados Unidos e manifestou-se em três frentes principais. A primeira abarcou uma produção documental de caráter humanista produzida por fotógrafos imigrantes entre 106 HELOUISE COSTA as décadas de 1930 e 1940; a segunda materializou-se na renovação do fotojornalismo, segundo o modelo transnacional das grandes revistas ilustradas a partir do início dos anos 1940, e a terceira traduziu-se na experiência fotoclubista que em meados dessa mesma década passou por um processo de questionamento da herança pictorialista. É nesse último segmento que se situa a trajetória de Thomaz Farkas. Nascido na Hungria, de origem judaica, Farkas chegou ao Brasil com a família em 1930, fixando-se na cidade de São Paulo. Começou a fotografar quando criança e “ainda usava calças curtas” no momento em que passou a frequentar o Foto Cine Clube Bandeirante, segundo declarou em entrevista.10 Essa informação é reiterada em um texto, não assinado, publicado no boletim do Clube por ocasião da mostra Estudos Fotográficos. Lembramo-nos perfeitamente de quando o jovem Thomaz, mal saído dos seus quinze anos, apresentouse, timidamente, na sede do Bandeirante, munido da competente autorização paterna para ingressar em nosso quadro social. No Clube fez Farkinhas o seu aprendizado, revelando-se, desde cedo, uma das promessas da arte fotográfica brasileira.11 O Foto Cine Clube Bandeirante constituiu-se em um espaço de discussão, ensino, exibição e fomento à produção fotográfica de cunho modernista no Brasil entre as décadas de 1940 e 1950. O Clube buscava a afirmação da fotografia como meio de expressão autônomo e investiu na ocupação de espaços institucionais estratégicos para atingir seus objetivos.12 Além disso, mantinha atividade regular, organizando debates, exposições, salões fotográficos nacionais e internacionais, bem como publicações e intercâmbios com associações fotográficas nacionais e estrangeiras.13 Foi nessa atmosfera de circulação de ideias que Thomaz Farkas conviveu com fotógrafos que, como ele, buscaram romper com os padrões da fotografia clubista de herança pictorialista, tais como Geraldo de Barros e German Lorca. A produção que Thomaz Farkas apresentou nos diversos salões e publicações do Bandeirante caracterizou-se pelo rigor formal, pela ênfase em enquadramentos atípicos e pela forte geometrização, muito embora na mesma época ele também estivesse produzindo imagens com características documentais. Podemos apontar ainda outros fatores importantes no processo de formação do jovem Farkas, além de sua filiação precoce ao Foto Cine Clube Bandeirante. Ele mesmo conta ter sido fundamental em seu aprendizado o acesso a publicações estrangeiras, tais como livros e revistas que comprava na Livraria Italiana e na Kosmos, ou os que consultava na Fotoptica, loja de equipamentos e materiais fotográficos de sua família. Além da fotografia, ele tinha já na época um forte interesse por cinema, tema que também passou a estudar por conta própria. Outro dado, pouco explorado em sua biografia, foi a amizade que cultivou com José Medeiros, com quem entrou em contato por admirar as fotografias que via publicadas na revista O Cruzeiro. Esse vínculo possibilitou a Farkas viajar com frequência à então capital do país e transitar por locais ligados à cultura popular, onde realizou registros da vida simples das ruas, das praias de Copacabana, Botafogo e Paquetá e de momentos de lazer em bares e rodas de samba. Foi também no Rio de Janeiro que ele produziu diversas imagens de detalhes de edifícios modernistas do centro da cidade e as séries sobre balé.14 Por fim, não se pode deixar de mencionar a troca de correspondência, iniciada em 1946, com o fotógrafo norte-ame107 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ricano Edward Weston, a quem visitou quando esteve nos Estados Unidos em 1948. Weston incentivou o trabalho de Farkas, fazendo comentários e dando conselhos sobre suas fotografias em diversas ocasiões.15 Estudos Fotográficos: a exposição e suas representações A exposição Estudos Fotográficos, de Thomaz Farkas, foi apresentada na chamada “sala pequena” do Museu de Arte Moderna de São Paulo, destinada a exposições individuais.16 Aberta ao público em 21 de julho de 1949,17 juntamente com a exposição de Cícero Dias instalada na “sala grande” do museu, a mostra reuniu inúmeras fotografias, tendo sido a montagem de responsabilidade dos arquitetos Jacob Ruchti e Miguel Forte.18 Poucas exposições realizadas no período inicial de funcionamento do Museu de Arte Moderna de São Paulo foram tão bem documentadas como a individual de Thomaz Farkas. O fotógrafo preocupou-se em documentar a mostra de maneira sistemática por meio de registros fotográficos que hoje constituem a fonte de pesquisa mais importante para quem deseja estudá-la.19 Nesse ponto, cabe um breve comentário sobre metodologia de pesquisa. A documentação fotográfica como fonte para o estudo da história das exposições tem se colocado como uma ferramenta das mais úteis, mas ao mesmo tempo como uma das mais desafiadoras para o pesquisador. A credibilidade normalmente atribuída ao registro fotográfico é capaz de criar a ilusão de estarmos sendo transportados, no tempo e no espaço, para a exposição que nos interessa através de um pedaço de papel. Com isso, muitas vezes nos esquecemos de que a fotografia é uma forma de representação e que nos cabe sempre perguntar quem produziu os registros, com que objetivos, se foram tomados espontaneamente ou se teriam sido fruto de um trabalho comissionado20. Tomaremos essas indagações como ponto de partida de nossa análise dos registros da exposição Estudos Fotográficos. O fato de Thomaz Farkas ter sido o autor da documentação fotográfica sobre a sua própria exposição é um dado fundamental para tentarmos compreender a lógica de produção dessas representações. Além de oferecer um trajeto linear de visitação, por meio de uma sequência de fotografias panorâmicas, Farkas buscou evidenciar, em tomadas mais próximas, os efeitos resultantes dos recursos expográficos utilizados. A documentação demonstra ainda a preocupação do fotógrafo em retratar os responsáveis pela viabilização da mostra, que aparecem sempre no espaço expositivo em poses cuidadosamente ensaiadas.21 Vemos, assim, ele próprio, bem como os arquitetos Ruchti e Fortes, posando em diversas situações, geralmente em duplas. Tal recurso possibilitou introduzir a escala humana nos registros e, ao mesmo tempo, valorizar a autoria compartilhada do projeto. 108 HELOUISE COSTA Farkas não deixaria de registrar a figura de Lourival Gomes Machado na exposição [Figura 1]. O então diretor do MAM SP era um conceituado crítico de arte e sua presença nos registros pode ter sido pensada não só como uma forma de atestar o seu aval à exposição, mas também como reconhecimento de seu papel em viabilizar espaço para a fotografia no museu. Tomemos, então, o retrato de Machado, posando na entrada da exposição. Essa imagem nos permite identificar, à direita, a foto de uma bailarina que integra a série fotográfica sobre o ensaio do Balé Russo de Montecarlo, que o fotógrafo produziu no Rio de Janeiro. A mulher encontra-se diante de um pano de fundo claro, com ripas de madeira em destaque.22 Por meio de uma estrutura, especialmente projetada para o local, as ripas parecem avançar para além das margens da foto, provocando um surpreendente efeito de expansão dos elementos internos da imagem fotográfica que parecem transbordar para o espaço expositivo23. Ao fundo, é possível ver algumas fotos fixadas sobre uma grade de cor clara e, para completar, à esquerda vê-se a reprodução ampliada do convite da exposição fixado sobre um painel.24 A grade que se pode entrever parcialmente da entrada da exposição ocupa, na verdade, a parede principal da sala. Em um dos registros da exposição tomado do alto – não reproduzido aqui – , vemos que se trata de duas réguas de madeira, fixadas entre a parte superior da parede e o chão, guardando um afastamento em relação ao rodapé.25 Entre elas foram fixadas faixas, paralelas entre si, que parecem ser de material flexível e servem de suporte para inúmeras fotografias. Um outro registro, tomado da altura dos olhos, de um ponto bem mais próximo, permite-nos observar melhor os detalhes da montagem dessa grade [Figura 2]. Aí os arquitetos Fortes e Ruchti aparecem, respectivamente, de frente e de perfil e podemos ver que a maioria das fotografias foram fixadas entre duas das faixas e dispostas em diferentes alturas de maneira esparsa e irregular. É possível observar também que nessa mesma estrutura foram instalados quadrados e retângulos, alguns claros e outros escuros, de formato semelhante às fotografias e que de longe podem ser confundidos com elas. A estrutura gradeada confere leveza às fotografias e faz com que pareçam flutuar devido à distância que guardam da parede e às sombras que projetam sobre ela. Ao que tudo indica, além da preocupação em registrar um percurso de visitação, Farkas buscou também evidenciar os efeitos resultantes dos recursos expográficos. Não parece casual, por exemplo, que Miguel Fortes encontre-se estrategicamente posicionado em um local que torna mais evidente o efeito de sombras dado pelo afastamento da grade em relação à parede. Diferentemente dos demais, os registros da grade foram realizados à noite, com o auxílio de iluminação especial, de modo a evidenciar os contrastes entre claros e escuros, presentes não somente nas fotografias expostas, mas também na relação delas com os suportes e com os quadrados e retângulos anteriormente mencionados.26 Ao focar no jogo de sombras projetado na parede, Farkas chama atenção para o caráter eminentemente gráfico da montagem e explicita sua filiação aos princípios construtivos.27 Um outro elemento expográfico importante na mostra do MAM SP são os dois suportes prismáticos, de corte retangular, distribuídos no meio da sala [Figura 3]. Fixados 109 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 1 Exposição Estudos Fotográficos. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1949 [Retrato de Lourival Gomes Machado]. Fonte: Estate Thomaz Farkas. FIGURA 2 Estudos Fotográficos. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1949 [Retrato de Miguel Fortes e Jacob Ruchti]. Fonte: Estate Thomaz Farkas. FIGURA 3 Exposição Estudos Fotográficos. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1949. Fonte: Estate Thomaz Farkas. 110 HELOUISE COSTA no chão e no teto por meio de fios, eles abrigam fotografias dispostas de maneira irregular, sendo um deles de fundo claro e o outro de fundo escuro. Esses suportes também conferem a sensação de leveza e flutuação às fotos, contribuindo para aumentar a diversidade dos modos de aproximação do observador em relação às imagens expostas. O que se pode depreender, por meio da análise dos registros, é que esses suportes foram projetados especialmente para apresentação das fotografias de balé, de modo a enfatizar a ideia de movimento.28 Podemos concluir que a expografia buscou estabelecer um novo tipo de experiência na fruição da imagem fotográfica. As fotos têm formato e tamanho variados e o visitante é convidado a assumir uma posição ativa caso queira realmente observar cada uma delas. Na grade da parede principal, por exemplo, há fotos posicionadas em alturas consideradas inadequadas: muito abaixo ou muito acima da altura dos olhos. Convém lembrar, ainda, que a palavra “Estudos” no título da exposição traz subentendida a ideia de que ali estavam sendo apresentados os resultados de uma pesquisa visual em curso. No que se refere à seleção das fotografias presentes na exposição, parece ter havido uma preocupação em fornecer um apanhado da diversidade de interesses do fotógrafo, materializada nos variados temas e abordagens aos quais ele havia se dedicado até então.29 Havia fotografias de arquitetura com acentuado rigor geométrico; tomadas em contra-luz e outras com ênfase em ângulos inusitados; fotos quase abstratas de objetos ou elementos da natureza em close, além de fotografias de cunho documental, como as cenas de balé. É possível identificar uma certa preocupação em apresentar agrupamentos de imagens sobre um mesmo tema e/ou enfoque ao invés de privilegiar imagens isoladas, mesmo que isso não ocorra de maneira rigorosa. Boa parte das fotografias que viriam a se tornar amplamente conhecidas na produção de Farkas está lá apresentada. Outras vieram a público só recentemente, a partir da abertura dos arquivos do fotógrafo, havendo ainda algumas poucas fotos visíveis nos registros que não puderam ser identificadas até o momento.30 Estudos fotográficos: referenciais e invenção A ausência de molduras, a distribuição dinâmica das imagens e os contrastes de claro e escuro entre suportes contíguos são apenas alguns dos muitos recursos empregados na mostra Estudos Fotográficos, que ainda hoje surpreendem pelo impacto visual e pela subversão radical do padrão das mostras de fotografia organizadas naquela década no Brasil. A excepcionalidade da mostra deve-se ao repertório de referências artísticoculturais dos agentes envolvidos em sua execução, bem como à inventividade que demonstraram nas soluções expográficas adotadas. É realmente notável que a expografia tenha sido elaborada por dois arquitetos, já que a montagem de exposições no Brasil ainda era uma área pouco profissionalizada.31 Um dado relevante para tentarmos desvendar os possíveis referenciais de Ruchti, Fortes e Farkas é o fato de os três terem viajado aos Estados Unidos pouco tempo antes da 111 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES montagem de Estudos Fotográficos. Jacob Ruchti e Miguel Fortes empreenderam uma viagem de estudos aos Estados Unidos entre março e agosto de 1947. O objetivo imediato de ambos era conhecer a arquitetura norte-americana, mas a viagem acabou por colocá-los em contato com as mais diversas manifestações culturais do país, ampliando enormemente seus horizontes.32 A visita a museus, galerias e instituições artísticas funcionou como uma oportunidade de atualização, seja nas artes, na fotografia, no design de objetos, móveis e peças gráficas, assim como no design de exposições.33 Thomas Farkas, por sua vez, viajou aos Estados Unidos em 1948, tendo visitado as cidades de Los Angeles, São Francisco, Chicago, Detroit, Cleveland, Buffalo e Nova York.34 Durante sua estada no país, encontrou-se pessoalmente com Edward Weston, com quem trocava correspondência, e reuniu-se com Edward Steichen, então diretor do Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York. Na ocasião, Farkas visitou as exposições em cartaz no museu, tendo, inclusive, fotografado alguns de seus espaços. Curiosamente, dois desses registros foram incluídos na exposição do MAM SP [Figura 14].35 O contato com Steichen resultaria na incorporação de sete fotografias de Farkas no acervo do MoMA.36 A viagem de Thomaz Farkas aos Estados Unidos lhe despertou a atenção para a importância da legitimação artística da fotografia no circuito de arte. Ao retornar, ele assinou a ata de fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e passou a integrar a Comissão de Fotografia da instituição. O forte impacto causado pelo que viu nos Estados Unidos foi expresso por ele na correspondência que enviou a Edward Steichen, em janeiro de 1949, após o seu retorno ao Brasil. Ontem eu despachei pelo correio aquelas fotografias pelas quais você se interessou em minha visita aos Estados Unidos. Espero que você as considere aceitáveis tecnicamente. Provavelmente eu devo ter esquecido enquanto estive aí de dizer o quanto fiquei impressionado com tudo no museu e como foi gentil de sua parte me receber. Eu apenas lamento não ter podido participar mais intensamente das atividades do museu em Nova York. O que eu vi nos Estados Unidos foi excelente e foi como uma ducha fria em um dia quente: refrescante e revigorante.37 Na sequência da carta, Farkas pergunta se poderia enviar a Steichen, de tempos em tempos, algumas fotografias apenas para que ele pudesse ver seus trabalhos e aproveita a oportunidade para falar da iminente inauguração do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Há mais uma coisa: em São Paulo haverá um Museu de Arte Moderna abrindo no dia 25 de janeiro. Talvez me coloquem no Comitê de Fotografia e eu gostaria de perguntar a você extra oficialmente se haveria meios para empréstimo de algumas fotografias ou para fazer algum tipo de intercâmbio de atividades. Se você achar que sim, então eu escreverei oficialmente.38 Essa correspondência dá conta de como se deu a escolha das fotografias de Thomaz Farkas que hoje fazem parte do acervo do MoMA e do modo como chegaram ao museu.39 A carta demonstra também o envolvimento do fotógrafo com o processo de implantação do MAM SP e sua preocupação em incluir a fotografia na programação da instituição.40 Farkas antecipa ao diretor do MoMA a possibilidade de vir a integrar a 112 HELOUISE COSTA Comissão de Fotografia do museu brasileiro, o que de fato se concretizou. Tal comissão, no entanto, teria vida curta: em correspondência datada de outubro de 1949, Lourival Gomes Machado comunica ao fotógrafo a dissolução de todas as comissões instituídas por ocasião da abertura do MAM SP e o convida a assumir a função consultiva de “conselheiro artístico”.41 As trocas que Farkas estabeleceu com importantes fotógrafos norte-americanos, bem como a abrangência das informações a que tinha acesso em plena década de 1940, fazem cair por terra em definitivo a ideia de que a instauração da fotografia moderna no Brasil, no ambiente fotoclubista, teria ocorrido unicamente a partir de referenciais próprios42. Um artigo escrito por Farkas na revista Iris, no ano anterior à realização da exposição no MAM SP, vem apenas corroborar essa nova versão dos fatos. Intitulado “Fotografia – caminhos diversos”, o artigo nos fornece subsídios importantes para o entendimento de seu pensamento no final da década de 1940.43 Segundo Annateresa Fabris, o fotógrafo demonstra “(...) estar atento a uma definição da fotografia como linguagem complexa e dotada de especificidades próprias”.44 Ainda de acordo com a autora, nesse texto, Farkas aproxima-se das categorias da chamada Nova Visão estabelecidas por László Moholy-Nagy, o que atestaria sua sintonia com um certo debate vanguardista em torno da fotografia, que tinha naquele momento repercussão internacional.45 * O que se depreende das trajetórias de Ruchti, Forte e Farkas é que havia ideias, vivências e interesses culturais compartilhados entre eles, que teriam norteado a preparação da exposição Estudos Fotográficos. As visitas, então recentes, dos três a museus e galerias de arte norte-americanos deixariam marcas profundas na mostra do MAM SP. Os recursos por eles empregados parecem ter fundido soluções expositivas adotadas na época pelo Museu de Arte Moderna de Nova York com outras, utilizadas nas exposições da galeria de arte pertencente a Peggy Gugenheim que funcionou na mesma cidade entre 1942 e 1947.46 Do primeiro podemos identificar semelhanças na utilização de fotografias sem molduras fixadas de modo irregular diretamente sobre painéis de diferentes cores ou tonalidades. Essa foi uma solução adotada na retrospectiva de Henri Cartier-Bresson, realizada no museu em 1947, bem como na mostra In and out of focus, apresentada em 1948.47 É possível estabelecer paralelos também na utilização de estruturas em forma de grade presentes em mostras educativas ou de design em cartaz no museu norte-americano naquela década.48 Já em relação à galeria The Art of this Century, de Peggy Gugenheim, os suportes expositivos fixados por meio de fios, projetados por Frederick Kiesler, parecem ter sido um modelo inspirador.49 Em que pesem as semelhanças entre as soluções adotadas na mostra do MAM SP e os recursos expográficos das mostras norte-americanas empregados na mesma época, defendo que o projeto dos arquitetos brasileiros não se pautou pela simples cópia. A meu ver, as soluções propostas por Ruchti e Fortes basearam-se, em grande parte, em um 113 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES profundo entendimento da produção fotográfica de Thomaz Farkas e estabeleceram um estreito diálogo com o rigor formal de parte significativa de sua obra. Podemos facilmente identificar vínculos formais entre o design dos suportes prismáticos presentes na exposição Estudos Fotogáficos e diversas das fotografias expostas no MAM SP. A foto Ministério da Educação é exemplar nesse sentido.50 Fixada diretamente em um dos painéis no início da mostra, ela apresenta formas que de certo modo são rebatidas nos volumes prismáticos suspensos por fios [Figura 3]. Muitas outras relações entre as fotografias de Farkas e os suportes expositivos da mostra podem ser apontadas, já que a presença de figuras geométricas e linhas bem demarcadas era recorrente na produção de Farkas e, não por acaso, são elementos empregados em toda a expografia. Do mesmo modo, as sombras projetadas na parede principal da sala parecem reverberar os efeitos obtidos pelo fotógrafo em muitas de suas imagens. Embora as fotografias não tenham sido produzidas especificamente para a mostra, os arquitetos buscaram integrá-las espacialmente, sem deixar de ressaltar aspectos próprios a cada conjunto, como no caso das fotos de balé, comentadas anteriormente. Estudos Fotográficos: contexto e repercussão A recepção do trabalho de Thomaz Farkas pode ser avaliada, em parte, pelas matérias veiculadas na imprensa. Ao contrário da maioria de seus colegas do Foto Cine Clube Bandeirante, Thomaz Farkas teve duas de suas fotos comentados em um jornal de grande circulação por ocasião da quinta e sexta edições do Salão Paulista de Arte Fotográfica, respectivamente em 1947 e 1948. Além destas, recebeu no mesmo veículo uma crítica mais alentada sobre a sua mostra individual realizada no Museu de Arte Moderna em 1949.51 Na edição de 30 de agosto de 1947, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma nota sobre a foto Telhas, imagem que dois anos depois seria incluída na mostra do MAM SP.52 Thomas J. Farkas é, dos “novos” da arte fotográfica paulista, um dos que mais vem evoluindo para os modos abstratos de expressão em Fotografia. “Telhas”, de sua autoria, provocou em 1945, no Salão Paulista de Arte Fotográfica, anualmente promovido pelo Foto Cine Clube Bandeirante, os mais desencontrados comentários, críticas ácidas de uns, aplausos francos de outros. Por ambos os grupos, entretanto Thomas J. Farkas é admirado, bem como pelos centros internacionais de arte fotográfica, principalmente nos da América Latina e nos da do Norte, em cujas revistas especializadas vem colaborando intensivamente.53 No ano seguinte, um texto bem mais longo, sob o sugestivo título “Apenas uma fotografia”, voltaria a utilizar o exemplo de Telhas para discutir o caráter abstrato de parte da produção de Farkas e a pretendida autonomia que esse tipo de registro teria em relação ao referente. Segundo o autor, “(...) não se tratava de procurar as telhas, mas de apreciar uma notável amostra de arte fotográfica”. O objeto principal da crítica desta vez, no entanto, foi a fotografia Luzes que, em 1949, também seria apresentada na mostra do MAM SP.54 114 HELOUISE COSTA Diante do “clichê” que acompanha esta nota, talvez o leitor não se contenha e pergunte: - Que é isso? Isso, caro leitor, é apenas uma fotografia. Seu autor, Tomas J. Farkas, vive entre nós e os meios especializados em arte fotográfica o conhecem como um ótimo técnico e um arrojado experimentador de novas formas em branco e preto. Não se creia, contudo, que Farkas é daqueles tímidos artistas que procuram simplesmente, maneiras inéditas de tratar velhos temas. Sua ambição é maior. Procura, quase sempre, conseguir com a câmera fotográfica um resultado que, partindo embora de um pedaço de realidade, o permita transcender dessa entidade palpável e compor uma forma, uma composição, cuja existência só começa ao revelar-se o negativo no laboratório.55 Ao final, o autor adverte que aquela fotografia não visava representar nada e que a eventual identificação do seu referente não contribuiria para sua boa apreciação por parte do público. Segundo ele, a imagem deveria “(...) ser julgada como um arabesco, uma frisa grega ou um ‘abstrato’ moderno. Ou então, apenas como uma fotografia...”. Os dois artigos tomam exemplos da produção de Farkas para tentar esclarecer aspectos do abstracionismo que vinha ganhando adeptos nas sucessivas edições do Salão Paulista de Arte Fotográfica. A defesa desse tipo de proposta deve ser contextualizada em relação à grande polêmica entre figurativismo versus abstracionismo na arte que ganhou força no final da década de 1940 no Brasil. Na verdade, a própria exposição individual de Farkas deve ser pensada nesse contexto. Realizada poucos meses após a exposição inaugural do MAM SP – denominada “Do figurativismo ao abstracionismo” –, Estudos Fotográficos mostrou o trânsito da produção de Farkas entre os dois polos dessa polêmica a partir das questões específicas levantadas pela fotografia de cunho modernista. A mostra individual de Thomaz Farkas ganharia espaço na mesma coluna do jornal O Estado de São Paulo em agosto de 1949. O autor, desta vez, no entanto, afirma que, embora Farkas não seja mais um simples amador e já apresente a “consciência profissional de um artista”, ainda não domina completamente o seu meio.56 Para ele, haveria discrepâncias de qualidade entre os diferentes conjuntos de fotos apresentados. Ele critica o registro direto “da miséria dos bairros populares”, elogia a série de balé que lembraria “as fitas surrealistas da americana Maya Deren”57 e comenta que um dos “estudos abstracionistas” do fotógrafo aproxima-se das formas sinuosas de Hans Arp.58 O texto ainda trata dos ângulos audaciosos e dos contrapontos entre movimento e imobilismo que seriam, para o autor, o melhor resumo das pesquisas de Farkas “cuja sensibilidade e acuidade junto à objetiva, tanto prometem”.59 Duas outras publicações abordaram a exposição de Thomaz Farkas no Museu de Arte Moderna de São Paulo: a revista Iris e o Boletim do Foto Cine Clube Bandeirante. A primeira publicou uma nota breve acompanhada de diversas imagens e remeteu os leitores para uma de suas edições anteriores que trazia matéria de capa sobre o trabalho de Farkas.60 Já o Boletim optou por um texto de cunho afetivo que começava com o relato do episódio do ingresso de “Farkinhas” no Clube, já citado aqui, para em seguida tecer inúmeros elogios à sua produção fotográfica no estilo pomposo que caracterizava boa parte dos artigos da revista. 115 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Inconformado com o convencionalismo reinante, rompeu as grilhetas, atirando-se ousadamente na pesquisa de ritmos mais candentes e dinâmicos, fugindo por uma questão temperamental ao romantismo prevalescente. Desde cedo denotou a coragem de infringir os cânones do classicismo, emprestando em sua obra, mais destaque ao conteúdo do que à forma. Obedecendo ao impulso de sua juventude estuante e ao seu temperamento cerebral, exauriu com sofreguidão os recursos extremos na utilização dos grandes contrastes, das luzes gritantes e das sombras profundas. A gama tonal do material negativo e positivo, foi por ele dedilhada, do grave ao agudo, com o maior desassombro. Logrou esquivar-se do figurativismo que lhe impunha a objetiva, derivando para os arrojadíssimos ângulos de tomada que constituem um traço característico nos seus trabalhos. Nem sempre compreendido, impôs-se, contudo à admiração do meio artístico-fotográfico, tanto do país como do estrangeiro, firmando sua marcante e inconfundível personalidade. Sua exposição individual, por isso mesmo, está despertando invulgar interesse, atraindo ao Salão Pequeno do Museu de Arte Moderna, numeroso público e estudantes de fotografia.61 Chama atenção em todas essas críticas a ausência completa de comentários sobre a expografia.62 Os autores consideraram as fotos de maneira isolada, como entidades autônomas, o que denota falta de entendimento da proposta geral da exposição e de sua atualidade. Do mesmo modo, ignoraram o fato de ter sido ela a primeira mostra de fotografia realizada em um museu de arte no Brasil, o que por si só colocava em questão o estatuto da fotografia enquanto arte moderna e sua institucionalização. A repercussão da mostra de Thomaz Farkas na mídia não nos dá pistas de como foi a sua recepção por parte do público em termos de visitação. O número de visitantes é um dado que raramente se encontra disponível na documentação das exposições da época. De qualquer modo, a carta de agradecimento do diretor do Museu de Arte Moderna, Lourival Gomes Machado, endereçada a Farkas, embora não traga dados precisos, faz menção a um grande número de visitantes. (...) A exposição Estudos Fotográficos – Thomas Farkas constituiu autêntico êxito e o grande número de visitantes que atraiu ao Museu comprova amplamente o poder de sugestão que exerceram sobre o público as notáveis fotografias que compunham aquela mostra. As apreciações por todos expendidos nesse sentido, unânimes nos aplausos, ainda mais firmaram nossas impressões e, ademais, asseguraram-nos que a sua contribuição à evolução da fotografia moderna do Brasil é das que contam em primeira plana.63 Em que pese o caráter protocolar do texto, Machado demonstra familiaridade com as discussões do campo da fotografia ao mencionar a contribuição de Farkas para a evolução da fotografia moderna no Brasil. A fotografia em campo expandido Se em relação à história da fotografia no Brasil a exposição Estudos Fotográficos constituiu-se na primeira mostra de fotografia, considerada como manifestação artís116 HELOUISE COSTA tica realizada em um museu brasileiro, no âmbito da trajetória de Farkas materializou o final de sua fase de formação e seu ingresso num momento de pleno domínio do fazer fotográfico.64 Na exposição, Farkas, juntamente com os arquitetos Ruchti e Fortes, abdicou de uma abordagem estética da fotografia ao abolir o aparato das molduras e passe-partouts que, nas mostras dedicadas à chamada fotografia artística, visavam garantir à imagem o estatuto de obra de arte. A exposição situou a fotografia em um campo expandido em meio a um diálogo interdisciplinar com outras áreas do conhecimento. Em sintonia com experiências contemporâneas inovadoras, Estudos Fotográficos afirmou a exposição como uma mídia em si mesma, capaz de mobilizar recursos espaciais próprios para redefinir o sentido das obras. A radicalidade da mostra individual de Thomaz Farkas só encontraria paralelo na exposição “Fotoforma”, realizada por Geraldo de Barros no MASP, pouco tempo depois.65 Thomaz Farkas e seus colaboradores não pleiteavam para a fotografia o lugar tradicional da arte, muito menos o da propaganda ou da comunicação, tão em voga nas exposições do pós-guerra no exterior. O que eles reivindicavam era um novo lugar para a fotografia, dinâmico e instável. A mostra individual de Farkas foi uma aposta na plena expansão da fotografia para além das regras fechadas do fotoclubismo, dos usos aplicados da imagem fotográfica e das categorizações estanques da arte moderna. Aposta um tanto quanto arriscada que parece não ter sido bem compreendida em sua época. 117 Notas 1 Ver: POINSOT, 1995; ALTSHULER, 1998; STANISZEWSKI, 1998. Esses autores atuam na Université Rennes 2, na New York University e na Rensselaer Polytechnic-New York, respectivamente. 2 Em fevereiro de 2014, estes pesquisadores integraram o comitê científico do colóquio internacional “Histoires d’Expositions”, realizado em Paris durante três dias e organizado por Jérôme Glicenstein e Bernadette Dufrêne, da Université Paris 8, juntamente com Catherine Grenier do Centre George Pompidou. Este colóquio, que tive oportunidade de assistir, privilegiou comunicações de jovens pesquisadores selecionados a partir de convocatória aberta. Pude observar que apesar de inúmeros palestrantes se utilizarem de registros fotográficos como fonte de pesquisa não houve nenhuma apresentação que tratasse de exposições de fotografia. 3 PHILLIPS, 1982; KRAUSS, 1990; CRIMP, 1993. 4 Ver: RIBALTA, 2009; LUGON, 2009. 5 Recentemente foi publicada uma coletânea de textos sobre exposições de fotografia, consideradas exemplares, que cobre desde o século XIX até o início da década de 1910. Ver: MAURO, 2014. 6 Ver RIBALTA, 2009, p.12. 7 Ver COSTA, 2008 e 2014. 8 Sobre o processo de assimilação da fotografia pelas instituições museológicas da cidade de São Paulo, ver COSTA, 2008. 9 Parte do conteúdo desse item foi publicado originalmente em COSTA, 2013. 10 FARKAS, 2014, p.75. 11 Ver: FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE BOLETIM. Exposição Thomaz J. Farkas. n. 39, julho de 1949, p. 14. Consta na biografia do último livro do fotógrafo, publicado em vida, que ele teria ingressado no Foto Cine Clube Bandeirante em 1942, aos 18 anos. Ver: FARKAS, 2011, p. 290. 12 O Foto Cine Clube Bandeirante, enquanto entidade, ou por meio de seus associados, marcou presença pontualmente em diversas instituições artísticas, entre as quais no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAMSP); na Bienal de São Paulo, no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Ver: COSTA, 2008. 13 O Foto Cine Clube Bandeirante estabeleceu intercâmbio com várias associações fotográficas estrangeiras, entre as quais o Groupe des XV (França), o La Bussola (Itália), o La Ventana (México) e o Fotoform (Alemanha). Em relação a esse último, o Clube promoveu a vinda ao Brasil da exposição “Otto Steinert e seus discípulos”, apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1955. Ver: COSTA, 2008. 14 Ver FARKAS, 2011. 15 Ver FARKAS, 2006, p. 136 e FARKAS, 2014, pp. 81 e 83. 16 Em 1949 o MAM SP contava com duas salas expositivas: a sala grande (20 m x 15 m) e a sala pequena (9m x 7m). A primeira era destinada prioritariamente a exposições coletivas e a segunda a individuais. Além delas o corredor também funcionava como espaço de exposição. Ver: NASCIMENTO, 2002. Ver: Jornal de Notícias, 21/07/1949, p.7. 17 Ver: Jornal de Notícias, 21/07/1949, p.7. 18 Ambos haviam sido colegas na Escola de Arquitetura da Universidade Mackenzie e estabeleceram parceria profissional nos anos seguintes. Infelizmente, não foi possível localizar a lista de obras nem o projeto expográfico da mostra. Na verdade, nem mesmo se sabe se os suportes e a distribuição especial das obras chegaram a ser elaborados por meio de plantas e desenhos. Sobre a parceria entre Ruchti e Fortes, ver: FORTE, 2001 e RUCHTI, 2011. 19 A autoria dos registros é comprovada pela presença dos negativos no arquivo Thomaz Farkas, pertencente à família do fotógrafo. Agradeço a Ana Paula Nascimento pela colaboração na localização e reprodução dos registros fotográficos que utilizei inicialmente nesta pesquisa que encontram-se no arquivo do MAM SP. 20 Indagações de diferentes naturezas devem ser postas pelo pesquisador, caso a caso. A ausência delas, bem como de uma postura crítica em relação aos documentos visuais, pode comprometer seriamente a interpretação das exposições estudadas. 21 Não foi possível levantar se Farkas tinha alguma intenção maior em relação a essas imagens para além do simples registro da exposição. Não sabemos se elas chegaram a ser publicadas ou ficaram restritas apenas ao arquivo do fotógrafo e do MAM SP. 22 Trata-se da bailarina Nathalie Philippart. Ver: FARKAS, 2014, p.180. 23 No verso dessa estrutura há um quadrado branco que parece abrigar um texto sobre a exposição. Ver: Fig. 14. 24 O convite tem um design bem simples. Sobre um fundo claro há apenas um quadrado vazado acompanhado do nome do fotógrafo, do título da exposição, do nome do museu, da cidade, mês e ano da mostra. O convite da exposição mede 15x12 cm e pode ser consultado no Arquivo Histórico Wanda Svevo na Fundação Bienal de São Paulo, Fundo MAM SP. 25 Este registro tomado do alto da sala e mais um outro, da entrada da exposição, podem ser consultados em: FARKAS, 1997, s.p. 26 Na ocasião, o horário de funcionamento do museu era de 13h00 às 22h00, segundo consta na programação divulgada nos jornais diários. 27 Jacob Ruchti já havia manifestado seu interesse pelo pensamento das vanguardas construtivas ao apresentar uma escultura abstrato-geométrica, em alumínio, no III Salão de Maio em 1939. Segundo Aracy Amaral, esse trabalho destacou-se por se tratar de uma manifestação pioneira em nosso meio. Dois anos depois ele iria publicar o texto “Construtivismo”, na revista Clima, no qual buscaria traçar um histórico dessa vertente e esclarecer seus princípios. Ver: AMARAL, 2006, p.112. 28 A análise dos registros fotográficos da exposição nos permite afirmar que foram utilizados ao todo cinco tipos de suporte para as fotografias: 1. painéis modulados situados nas duas paredes de menor extensão; 2. grade inclinada instalada na parede de maior extensão; 3. dois suportes prismáticos de corte triangular, suspensos por fios; 4. um suporte prismático fixado em um dos painéis em frente às janelas; 5. parede falsa que fecha a sala, separando-a da escada do museu e que permite ampliar a superfície disponível para fixação de fotos. 29 Não foi possível identificar o responsável pela seleção e edição das fotografias integrantes da exposição, mas supõe-se que tenha sido o próprio Thomaz Farkas e que ele, eventualmente, tenha contado com a colaboração dos arquitetos. 30 O trabalho de checagem de todas as fotos apresentadas na exposição ainda está por ser feito de maneira sistemática. Seria preciso comparar os registros da exposição com as imagens e negativos do arquivo Farkas e publicações de época. De qualquer modo, não parece ser possível chegar a uma lista completa, tendo em vista que os registros fotográficos apresentam alguns “pontos cegos” que impedem a visualização de todas as fotos expostas. 31 É importante considerar o envolvimento dos arquitetos modernos de São Paulo no projeto de implantação do MAM SP. Naquele momento, a arquitetura moderna brasileira já contava com reconhecimento internacional e era do interesse desses agentes estabelecer alianças com as instituições museológicas nascentes para ampliar o seu campo de atuação. Um estudo aprofundado sobre essas relações pode ser encontrado em NASCIMENTO, 2003. 32 A viagem é descrita detalhadamente no diário escrito por Miguel Fortes, no qual ele relata os encontros que tiveram com arquitetos e artistas importantes como Frank Loyd Wright, Richard Neura, Alexander Calder, entre outros. Ver: FORTE, 2001. 33 Depois da experiência com a exposição Estudos Fotográficos, os dois arquitetos trabalharam conjuntamente em outros projetos expográficos, como o do Pavilhão Trianon, construído para a I Bienal de São Paulo, em 1951, e o da exposição da Secretaria de Agricultura no Horto Florestal de São Paulo. Ver: CAMARGO, 2001. Em 1950 Jacob Ruchti passou a integrar o quadro docente do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), fundado por Pietro Maria Bardi no MASP. Tratava-se de uma escola de design na qual Ruchti atuou como responsável pela disciplina de “Composição”. Ver: LEON, 2014, p.38-44. 34 Em depoimento, Farkas conta que costumava viajar ao exterior para aquisição de equipamentos e materiais para a Fotóptica. Consta que em 1948 viajou para os EUA na companhia de um tio (Landislau), mas não foi possível confirmar se o motivo da viagem foi mesmo profissional. Ver: FARKAS, 2006. 35 Vê-se na Fig. 15 uma foto da entrada do MoMA (na altura do cotovelo direito de Miguel Fortes). Há ainda outra imagem de um dos espaços expositivos do museu norte-americano em que aparece uma escultura em primeiro plano (na altura do ombro esquerdo de Fortes). 36 O MoMA é reconhecido por seu pioneirismo na assimilação da fotografia pelos museus de arte, tendo criado um departamento específico para esta mídia em 1940. As sete fotografias de Farkas, selecionadas por Steichen para o MoMA, foram incorporadas oficialmente ao acervo somente em 2014, tendo passado a integrar o banco de dados online da instituição. Todas elas estiveram presentes na exposição Estudos Fotográficos no MAM SP. Ver: http://www.moma.org/search/collection?query=thomaz+farkas [consultado em fevereiro de 2015]. 37 “Yesterday I dispatched by air mail those pictures you were interested in my visit in the States. I hope that you will find them technically suitable. Probably, I must have forgotten, while I was there, to tell how impressed I was with everything in the museum, and how nice it was from you to receive me. I am only sorry that I cannot take part more fully in the museum’s activities in New York. What I saw in the States was excellent and it was like a cold shower in a warm day: refreshing and revigorating. And while it lasts I would like to ask you if, from time to time, I could send in one or two prints for you, just to look at”. Fonte: Estate Thomaz Farkas. 38 “There is something else: in S. Paulo there will be a Museum of Modern Art, opening on jan. 25. Somehow they put me on the photography commitee and I would like to ask you extra-officially if there would be any means to loans some pictures or do some kind of exchange activities. If you think so, then I will write XXX fully and officially”. Fonte: Estate Thomaz Farkas. 39 Há informações sobre a possível participação das fotografias enviadas por Farkas em uma exposição sobre fotografia latino-americana no MoMA, em 1949, que não conseguimos confirmar. 40 Não foram localizados documentos sobre um possível retorno por parte de Edward Steichen a essa correspondência. 41 Lourival Gomes Machado. Correspondência datada de 18/10/1949. Datilografada. Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo, Fundo MAM SP. Documento consultado no trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Estudo de Museus de Arte do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo de autoria de Mariana Esteves Martins. 42 Os depoimentos que tomei de alguns dos fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante, quando realizei a pesquisa que resultou no livro sobre a fotografia moderna no Brasil por volta de 1985, davam conta de um suposto isolamento do grupo em relação à produção fotográfica internacional. Ao que parece, havia o receio, por parte deles, de terem seus trabalhos desvalorizados caso fosse revelado o acesso que tinham a esse tipo de informação. Ver: COSTA, 2004. 43 FARKAS, 1948. 44 FABRIS, 2012. 45 Cabe mencionar o fato de que, em dezembro de 1948, Carleton Sprague Smith, antigo adido cultural do Consulado Americano em São Paulo, tenha entrado em contato com Yolanda Penteado para oferecer a itinerância da exposição retrospectiva da obra de Moholy-Nagy, organizada pela viúva do artista, e que incluía desenho, pintura, escultura e fotografia (L. Moholy-Nagy Memorial Exhibition). Por motivos desconhecidos, essa iniciativa não chegou a se concretizar. A documentação referente a essa proposta encontra-se Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo, Fundo MAM SP. Documentação consultada no trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Estudo de Museus de Arte do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, de autoria de Mariana Esteves Martins. MARTINS, 2005. 46 Sobre a galeria The Art of this Century, ver: O’CONNOR, 2005. 47 A exposição The Photographs of Henri Cartier Bresson, primeira individual do fotógrafo, foi apresentada na sede do MoMA em Nova York entre 4 de fevereiro e 6 de abril de 1947, período que coincide com a viagem de Ruchti e Fortes aos EUA. Uma vista do espaço expositivo pode ser consultada em: CHÉROUX, 2013, p.219. Já a mostra “In and out of focus” esteve em cartaz entre abril e julho de 1948, ano da viagem de Farkas. Uma vista dessa mostra pode ser encontrada em: Museum of Modern Art Bulletin, vol. XIX, n.4, 1952, p.2. 48 Ver registro da exposição “Entrance to Chidren’s Holiday Circus of Modern Art”, 1943-1945. In: Museum of Modern Art Bulletin, vol. XIX, n.1, fall 1951, p.2. 49 Irene Ruchti, esposa de Jacob Ruchti, que chegou a trabalhar em diversos projetos em colaboração com o marido, cita a admiração que o arquiteto nutria pela proposta da Endless House, de Kiesler. Esse dado nos permite supor que a solução dos suportes desenhados para a exposição de Farkas tenha, de fato, referências no trabalho de Kiesler. RUCHTI, 2011, p. 256. 50 Imagem sintética, situada nos limites do abstracionismo, essa fotografia é fiel aos princípios da Nova Visão, que pregava o estranhamento como estratégia de educação visual do público a fim de familiarizá-lo com os desafios perceptivos impostos pela modernização. Uma análise detida desta imagem pode ser encontrada em um outro ensaio da autora sobre Thomaz Farkas. Ver: COSTA, 2013. 51 Todos esses artigos foram publicados na coluna “Arte e Artistas”, que não era assinada. Não foi possível descobrir a autoria dos textos. 52 Ver reprodução dessa foto em: FARKAS, 2011, p.67. 53 OESP. Sem título. 30/8/1947, p.8. Tran- scrição integral do texto publicado junto com a reprodução da foto “Telhas”. 54 Essa foto, nomeada como “Luzes” em publicação de época foi renomeada recentemente como Luminária do Cine Ipiranga”. Ver: FARKAS, 2014, p.56. 55 O ESTADO DE SÃO PAULO. Apenas uma fotografia. Arte e Artistas, 17 mar. 1948, p.8. Publicado junto com a reprodução da fotografia. 56 “Farkas não tem ainda a depuração de um artista já realizado, mas a ousadia de suas pesquisas dá um extremo interesse a todas elas. Farkas joga justamente com a exposição da chapa tentando todos os seus recursos. E se ainda não domina muito bem o imprevisível, talvez porque parte de alguns princípios de certo modo falsos – às vezes fáceis, às vezes de um gosto um pouco duvidoso – ele já é, na fotografia, mais do que um simples amador, e a realiza com a consciência profissional de um artista”. Transcrição parcial. In: O ESTADO DE SÃO PAULO. Fotografias de Thomaz Farkas. Arte e Artistas, 6 ago. 1949, p. 6. 57 De fato, Farkas tinha grande interesse no trabalho experimental de Maya Deren, cineasta de origem russa radicada em Nova York. Farkas trocou correspondência com ela e encontrou-a pessoalmente quando esteve nos EUA em 1948. Em 1949 ele iria apresentar alguns de seus filmes em salas alternativas de cinema em São Paulo. FARKAS, 2006, p.137. 58 “Se acompanhamos os Estudos Fotográficos expostos no Museu de Arte Moderna, vemos nitidamente grupadas experiências diversas e de importância diferente. Comecemos pela série de estudos realistas de ambiente, em que a objetiva focaliza de maneira quase direta a miséria dos bairros populares, com algum simplismo no arranjo dos grupos, que procura ser natural sem chegar a ser. Nelas a limpidez fotográfica é sem dúvida muito boa, porém parecem trabalhos de concessão, ao lado das outras fotografias do artista. Já na série de ‘ballet’ o ângulo de visão e os recursos da exposição se conjugam para dar essa impressão ao mesmo tempo de movimento e de profundidade, de lonjura. E aí o preto e o branco são utilizados com um quase luxo no exagero de sua exploração. Num dos estudos é a figura do primeiro plano que ressalta em preto, enquanto se esbate o fundo. Noutro, o fundo escuro parece distante em relação à figura clara, no plano da frente. As barras de ferro, em duas outras, formam um complemento abstrato no equilíbrio geral da composição”. Transcrição parcial. Idem. 59 “Nos estudos abstracionistas, isto é, nos apanhados de muros com tijolos ou agrupamentos e pedras, ou ainda naquela fotografia de calçada com arabesco em mosaico, que tanto se aproxima de uma forma de Hans Arp, de novo aparece a ousadia jovem de Farkas, portanto composições em que procura dar muito de sua personalidade. Mas é nos ângulos ainda mais audaciosos dos prédios talvez tanto quanto no esboçamento das figuras que, na série do ballet, contrapõem o movimento e posição estática, que melhor resumem alguns dos aspectos das pesquisas fotográficas desse Thomas Farkas, cuja sensibilidade e acuidade junto à objetiva tanto prometem”. Transcrição parcial. Idem. 60 IRIS, Exposição Thomas Farkas. Iris, n.29, jun. 1949, pp.17, 18 e 20. 61 FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE BOLETIM. Exposição Thomaz J. Farkas. n. 39, julho de 1949, p. 14. 62 Há apenas uma crítica indireta à expografia no texto Thomaz Farkas e a Fotografia no trecho em que o autor reclama da posição de uma foto que, segundo ele, dificultava a sua observação por parte do visitante. In: O ESTADO DE SÃO PAULO. Fotografias de Thomaz Farkas. Arte e Artistas, 6 ago. 1949, p. 6. 63 Lourival Gomes Machado. Diretor. Carta de Lourival Gomes Machado endereçada a Thomaz Farkas, 9/9/1949. Datilografada. Arquivo Histórico Wanda Svevo; Fundação Bienal de São Paulo, Fundo MAM SP. Documento consultado no trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Estudo de Museus de Arte do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo de autoria de Mariana Esteves Martins. MARTINS, 2005. 64 A partir da década de 1950, Thomaz Farkas iria se envolver cada vez mais com a área de cinema documentário e deixaria de se dedicar de maneira sistemática à fotografia. Logo depois da mostra do MAM SP, no entanto, seu nome iria constar em uma lista, produzida por Pietro Maria Bardi, com os nomes dos profissionais integrantes da congregação do Instituto de Arte Contemporânea. Não se sabe se ele chegou a ministrar cursos regulares, mas Ethel Leon afirma que em depoimentos de ex-alunos ele é citado como professor colaborador da Escola, onde Ruchti ministrava disciplina. Uma das hipóteses é que Farkas tenha ministrado aulas para os alunos do IAC no Laboratório Fotográfico do museu que ele coordenava junto com Geraldo de Barros. Ver: LEON, 2014, pp. 38-44. 65 Sobre a exposição “Fotoforma” ver: ESPADA, 2014, pp.12-35. 1951. Arte e internacionalização: a I Bienal Internacional de São Paulo Maria de Fátima Morethy Couto Em texto publicado na imprensa carioca logo após a inauguração da primeira Bienal de São Paulo, Mário Pedrosa destacou três pontos que, a seu ver, justificavam a importância da realização de uma mostra de tal porte no Brasil: a atualização artística interna, a valorização do país no exterior e seu caráter mais arrojado em relação às manifestações de Veneza. A Bienal paulista, afirma o crítico de arte, trouxe assim ao mundo artístico e culto do país uma verdadeira revisão de valores. Nisto consistiu a primeira lição que o certame do Trianon veio dar aos artistas brasileiros. A pintura e a escultura ditas modernas no Brasil retardavam de trinta anos. Pararam nos arredores de 1920. (...) Para o mundo, um grande certame internacional de arte moderna realiza-se pela primeira vez fora de Paris ou dos velhos centros artísticos europeus. Os elementos mais intrinsecamente modernos da arte tiveram na nossa Bienal mais destaque, uma representação mais decisiva, do que na organização modelar de Veneza.1 Em sua opinião, ninguém saiu indiferente daquele evento, já que “pela primeira vez tivemos contato com o que se convencionou chamar de arte moderna”: O impacto foi terrível e direto. Em muitos esse impacto produziu indignação, em outros perplexidade. (...) Até guardas-civis que mantêm a ordem do Trianon têm perdido a imperturbabilidade funcional para explodir em invectivas, imprecações irônicas ou furiosas diante das manifestações mais vanguardeiras ou audaciosas ali expostas.2 Exageros postos de lado, Pedrosa reiteraria sua afirmação a respeito dos novos ventos trazidos pela Bienal poucos meses mais tarde: A Bienal veio mostrar pelo confronto com o que se faz no estrangeiro como o nosso movimento artístico se acha em fase primária. (...) A Bienal mostrou que a fase do modernismo temperamental, das improvisações e surpresas gostosas do inacabado, passou. Hoje, exige-se do artista que vá ao fim de suas lucubrações”.3 Mário Pedrosa foi testemunha-chave e agente ativo das transformações culturais do período. Defensor de primeira hora das correntes abstratas no Brasil, Pedrosa acre- HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ditava na relevância daquele tipo de mostra naquele momento específico de nossa história e não hesitou em louvar publicamente uma iniciativa que considerava capaz de refrear o isolamento cultural do país e a exaltação do estritamente nacional que ainda imperava de maneira generalizada. Certamente não foi o único; várias vozes de uma geração comprometida com os valores modernos se uniram com o propósito de apoiar o empreendimento, exaltando necessidade de um choque renovador. Sérgio Milliet, por exemplo, parece concordar com Pedrosa, ao declarar que: Ante a representação internacional, rica de soluções novas e de confirmações das soluções antigas, embora também com grandes falhas, temos que pensar seriamente e com humildade recomeçar tudo. (...) Se outro resultado não devesse alcançar a I Bienal de São Paulo, esse de forçar o paralelo entre estrangeiros e nacionais bastaria para justificá-la. A Bienal será uma escola de modéstia para os artistas nacionais e uma fonte de informação para o grande público. E, para a crítica, a oportunidade de aferir mais uma vez seus julgamentos pelos pesos da balança universal.4 A seu ver, a Bienal promoveria “a elevação da pequena e provinciana cidade de 30 atrás à categoria de capital artística do país”, sonho, como veremos, nutrido por muitos dos artífices desta empreitada. Milliet, que fora um dos grandes articuladores da criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e fundara, em 1945, a Sala de Arte da Biblioteca Pública Municipal, atual Biblioteca Mário de Andrade, atuava então como Secretário do MAM. Ele considerava, portanto, “que a arte moderna era de suma importância para o desenvolvimento de uma cultura urbana e liberal no Brasil” e para a formação de sujeitos modernos, mas jamais se mostrou um entusiasta do abstracionismo, chegando a escrever que via na abstração “uma evasão sem eco, uma pintura morta, embora com algum encanto e fantasia”. Assim, a respeito do caminho a seguir após o cotejo com a arte contemporânea internacional, ele dirá que cumpre-nos tentar um esforço para alcançar uma expressão nossa, de nosso momento e de nossa gente, o de que nos preocupamos pouco até agora. Temos que chegar porém, à nossa expressão sem nada abandonar do que nos podem oferecer, como lições técnicas aproveitáveis, os artistas do velho mundo. Não sou contra o abstracionismo, como não sou contra nenhuma escola contemporânea, mas que não seja a atitude de nosso pintor a exploração de uma fórmula. Não fiquemos em Teuer–Arp [sic], Bazaine ou Feininger. Nossos petiscos precisam sair de outra cozinha.5 De todo modo, apesar das divergências conceituais, Milliet e Pedrosa ansiavam pela renovação, ou pelo “alargamento das fronteiras criadoras artísticas” no país, como afirmou o segundo, e supunham essencial um choque cultural.6 Mas o coro a favor da Bienal não era uníssono, e havia aqueles que se mostravam contrários à sua realização, por diferentes razões. O diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo à época, Lourival Gomes Machado, embora igualmente afeito à causa moderna, temia que a Bienal viesse a prejudicar as atividades do museu recém-fundado e opôs-se à sua realização, mas acabaria participando de sua organização: Era eu então o diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e não quero esconder que, ao lançar Francisco Matarazzo Sobrinho a ideia de levar o Museu a realizar uma Bienal, fui dos mais acirrados 124 MARIA DE FÁTIMA MORETHY COUTO opositores. Realmente, o museu começava. (...) Fazer a Bienal era em verdade arriscar a bela e positiva experiência do museu, atirando-a a um plano desconhecido, em que poderia ter êxito ou não. Acontece, porém, que a insistência do pai da ideia se baseava exatamente nos mesmos argumentos, colocando uma inquietante interrogação acerca das possibilidades de manter-se indefinidamente o museu no mesmo ritmo, porém nas mesmas dimensões que até então se confinava. Venceu o entusiasmo de Francisco Matarazzo Sobrinho. O que não quer dizer que não restassem em aberto todas as minhas dúvidas.7 Os partidários da arte figurativa, de cunho realista, em sua maioria ligados ao Partido Comunista, julgavam, por outro lado, que eventos francamente internacionalistas, como a Bienal de São Paulo, levariam à perda de uma concepção nacionalista da arte. Como observa Walter Zanini, a mostra “foi desde logo alvo da acusação de servir a um cosmopolitismo contrário aos interesses da cultura nacional, [sendo] responsabilizada por interromper abruptamente o desenvolvimento de um processo artístico doméstico, de escasso contato com o meio internacional”.8 Como pano de fundo a esta crítica encontrava-se o receio da difusão generalizada da arte abstrata no país, uma corrente que, segundo Fernando Pedreira, editor da revista Fundamentos, “negava o valor social e humano da arte, transformando-a num jogo frio e sem vida de cores e formas”.9 Um exemplo deste pensamento é a declaração do arquiteto Villanova Artigas, publicada na mesma revista quando da realização da I Bienal: E que fiquem sossegados os senhores da classe dominante, porque os artistas são um setor do povo que não oferece mais perigo, porque de agora em diante (vitória da Bienal) estarão voltados para as pesquisas da arte abstrata, longe do perigo de agitarem em suas produções artísticas os problemas do povo, a revolta popular, contra a miséria e o atraso em que vivemos. Não vibrarão com o povo odiando uma classe dominante sócia do imperialismo americano, vendida, incapaz. O caminho que tomarão é o de uma arte que não cogita de cousas objetivas, de realidades e dela não se desviarão; os prêmios da Bienal são a certeza do milagre.10 A organização da primeira edição da Bienal de São Paulo se deu, portanto, em um meio tensionado, e até mesmo dividido, e esta divisão se faria evidente no debate sobre a escolha dos artistas convidados ou sobre a premiação de melhor pintor nacional, como veremos. Mas, como relembra Aracy Amaral, o desejo de Francisco Matarazzo Sobrinho imperou: Ele se dizia, claramente, e o ouvi dizer textualmente farto de polêmicas de artistas, manifestos, debates e discussões: “Faço a Bienal de qualquer jeito, com críticos ou sem críticos, com os artistas ou sem os artistas”. Ele detinha o poder, o contato com as esferas que tornavam possível a preparação das Bienais, e exercia esse poder com a aisance de um administrador experimentado frente a seus empreendimentos. Mesmo que no fundo não tivesse interesse pela arte dita moderna.11 Figura-chave na criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, instituição responsável pela realização das primeiras Bienais, Ciccillo Matarazzo fazia parte do novo tipo de empresariado brasileiro, formado em grande parte por descendentes de imigrantes, que “buscava se projetar no mundo econômico através de empreendimentos culturais de cunho internacional”.12 Na análise de José Carlos Durand, 125 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES A família Matarazzo, embora lendária na sociedade paulista e mesmo brasileira pelo mito do imigrante bem-sucedido que envolvia a pessoa de seu fundador [Francisco Matarazzo, tio de Ciccillo], e bem cotada no interior da colônia italiana, não tinha feitos a reivindicar no terreno da promoção cultural. (...) É plausível também que, com o fim da guerra, tenha engrossado a facção dominante da comunidade italiana em São Paulo, com a chegada de famílias e grupos aristocráticos e derrotados com a queda do fascismo. Se de fato isso se deu, a manutenção do prestígio da família no interior da comunidade italiana no Brasil estava a exigir feitos de repercussão no domínio da cultura.13 Em sua busca de “capital simbólico”, Ciccillo contou com o apoio decisivo de empresários, de sucessivos prefeitos e governadores de São Paulo (Armando de Arruda Pereira, Adhemar de Barros, Lucas Nogueira Garcez, entre outros), como também com a articulação internacional promovida por sua esposa Yolanda Penteado, originária da oligarquia cafeeira paulista e considerada por muitos a “embaixadora cultural do Brasil” naquele momento.14 Aracy Amaral afirma que é indubitável que a presença sedutora, a seu lado, de uma figura como Yolanda Penteado foi fundamental. Apesar de sua evidente frivolidade, ele lhe deve (...) seu interesse pelas coisas da cultura, sua facilidade comunicativa com o meio artístico nos primeiros anos do MAM, e na implantação das Bienais Internacionais. (...) Era um tempo sem curadores, de contatos pessoais menos complicados, mas de personalismos, como dona Yolanda visitando a Europa e expressando as vontades de Ciccillo Matarazzo com a ajuda dos embaixadores do Brasil em cada país, graças à apresentação de Getúlio Vargas.15 Em seu livro de memórias, Yolanda Penteado descreve algumas de suas muitas passagens pela Europa dedicadas ao “assunto bienal” e seus variados encontros com embaixadores, artistas, diretores de museu e personalidades do mundo da cultura e das artes. Segundo seu depoimento, “a Bienal surgiu de uma maneira completamente imprevista”: Morava na Avenida Paulista. Um dia, o Ciccillo estava conversando com Arturo Profili e me fez essa pergunta: - Você não quer experimentar fazer uma bienal? Fiquei muito espantada porque nem sabia direito o que era uma bienal. Aí, eles me disseram: - Já escrevemos a diversos países, sugerindo essa ideia, mas não veio resposta. Você quer tentar? (...) Antes de partir, falei com Maria,16 casada com o Embaixador Carlos Martins; éramos muito amigas e ela sempre me ajudou. Maria me disse: - Olhe, você tem que ir em caráter semi-oficial, porque você não é do Itamarati. Vamos falar com o Getúlio. Ela tinha grande intimidade com ele, pois Carlos era rio-grandense e eles eram amigos de sempre. Getúlio telegrafou às Embaixadas, dizendo que me dessem todo atendimento.17 A rede criada em função de relações pessoais influentes, tecida com o apoio de figuras da diplomacia brasileira no exterior, não ficaria imune a pressões e promessas de cunho comercial. Ao rememorar seu encontro com o Presidente do Conselho [Federal] em Berna, para tratar da participação da Suíça na I Bienal, Yolanda relata sua reação à hesitação do presidente, que “não via vantagem da Suíça em enviar uma exposição para tão longe”: Respondi que realmente seria um grande esforço, pois culturalmente não mantínhamos ainda intercâmbio com a Suíça. Acrescentei que havia sabido, por membros da família de meu marido, que eles estavam indecisos entre a Inglaterra e a Suíça para fazer uma encomenda de teares. Se os suíços continuassem inflexíveis com a arte, talvez seus teares não se materializassem. Ele me olhou por sobre seu pince-nez e 126 MARIA DE FÁTIMA MORETHY COUTO tornou-se mais acessível. Ao sair, dei-lhe meu endereço em Paris e disse que, se mudasse de ideia, poderia escrever. Quando, no fim da viagem, voltei a Paris, o telegrama anunciando a adesão da Suíça me aguardava. Como bons negociantes, os suíços viram na Bienal uma oportunidade para capitalizar interesses junto aos Matarazzo, no momento o maior grupo industrial da América do Sul.18 A “cruzada” de Ciccillo e Yolanda encontrou boa acolhida junto aos poderes públicos municipais e estaduais, já que havia no horizonte a expectativa de que ações dessa natureza e envergadura levariam a cidade de São Paulo a ocupar lugar de destaque no cenário nacional e internacional, conferindo-lhe visibilidade ímpar. A célebre declaração de Lourival Gomes Machado, que, como vimos, opusera-se inicialmente ao projeto de realização das bienais em São Paulo, destaca o sentido coletivo e de grande alcance dessa ousada iniciativa: por sua própria definição, a Bienal deveria cumprir duas tarefas principais: colocar a arte moderna do Brasil não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial.19 Embora o segundo objetivo jamais tenha sido plenamente atingido, a Bienal promoveu de fato uma expressiva – e inédita – circulação de obras, artistas e agentes culturais no Brasil, a qual auxiliou no trânsito de informações, tendências e gostos em uma época em que o número de revistas de arte publicados no país era reduzido e viajar com frequência ao exterior era ainda difícil, a menos que se pertencesse à classe abastada. Deve-se ressaltar, porém, que fazia-se necessário fomentar uma circulação desse porte para obter reconhecimento internacional para o evento. Com esse intuito, foram convidados para compor o júri de premiação nomes de destaque na área e que ocupavam postos de poder no panorama cultural internacional daquele momento. Tomando-se as três primeiras edições das Bienais como parâmetro, citamos os exemplos de Bernard Dorival, Jean Cassou, Jacques Lassaigne, James Johnson Sweeney, Jorge Romero Brest, René d’Harnoncourt, Umbro Apollonio e Rodolpho Pallucchini, entre outros.20 Alguns desses jurados haviam participado da seleção de suas representações nacionais, o que, se por um lado, facilitava sua presença no evento, por outro, poderia colocar em questão sua imparcialidade. Retomando a discussão sobre o papel das Bienais de São Paulo no contexto nacional dos anos 1950, deve-se ainda registrar que sua realização insere-se em um projeto mais amplo de modernização da sociedade brasileira que estava sendo implementado pelo governo federal, o qual procurava infundir, interna e externamente, a imagem do Brasil como uma das futuras potências mundiais, inclusive no campo das artes e da arquitetura. O lema do governo Kubistchek, “cinquenta anos em cinco”, ilustra com perfeição a ideologia desenvolvimentista, voltada para o futuro, que triunfaria no país na segunda metade da década e que culminaria com a construção de Brasília. Recordemos ainda que, no imediato pós-guerra, o Brasil, que participara timidamente da Segunda Guerra Mundial, vivia um período de forte crescimento econômico, movido por uma nova elite econômica, urbana e industrial, da qual fazia parte não apenas Ciccillo Matarazzo mas também Assis Chateaubriand, no caso de São Paulo. Sob a iniciativa de alguns membros deste grupo social são criadas instituições culturais de primeira 127 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES importância, como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1947, os Museus de Arte Moderna de São Paulo (1948) e do Rio de Janeiro (1949), o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948, a TV Tupi, primeira cadeia de televisão da América Latina, e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Embora esta nova transformação cultural estivesse sendo conduzida, uma vez mais, por parte de nossa elite econômica, é importante observar, conforme o faz Rita Alves Oliveira, que, à diferença que ocorrera no anos 1920, entrávamos em uma nova era, na qual “a atmosfera dos salões era deixada de lado em nome da criação de uma série de instituições artísticas bastante internacionalizadas”. Estavam sendo deixadas para trás as décadas fundamentadas no desenvolvimento nacional, com um projeto nacional e por uma burguesia também nacional. No pós-guerra, o jogo das forças internacionais tem suas regras alteradas e o capitalismo passa a propor o desenvolvimento transnacional ou associado. (...) Naquele momento, realizar uma bienal significava colocar a cidade de São Paulo no patamar das práticas sociais vividas pelas nações modernas. (...) Essas práticas sociais envolvem a vida econômica, o cotidiano da metrópole, a formação de uma nação tipicamente moderna e a intenção de acompanhar as práticas metropolitanas internacionais.21 A cidade de São Paulo destacava-se do restante do país por sua intensa atividade industrial, como aponta a mesma autora: No início da década de 50 a cidade já registrava a maior concentração de brasileiros vindos de outros Estados e também já abrigava expressivo contingente de imigrantes, inclusive daqueles estrangeiros que para cá se dirigiam para instalar seus negócios, fábricas e empresas, fugindo das catástrofes econômicas e sociais do pós-guerra europeu. Com o surto de industrialização impulsionado pela substituição de importações, a população urbana teve um brutal crescimento e a população operária mais que dobrou entre 1940 e 1950. São Paulo acelerava sua ascensão econômica e industrial como síntese do Brasil e vitrine do mundo. (...) Os novos empreendimentos culturais na capital paulista foram sustentados por um novo mecenato, proveniente dos setores emergentes da sociedade: a indústria e as organizações da imprensa.22 Mas havia um hiato entre a intenção de transformar a cidade – que na época contava com um milhão e meio de habitantes – em um polo cultural internacional e a real possibilidade de concretização desse desejo. A primeira Bienal será considerada por muitos como “a Bienal do ensaio, da improvisação, da experiência” e (...) que não obrigava necessariamente a seguimentos”.23 Em sua crônica do período, Paulo Mendes de Almeida destaca o qual difícil, “difícil realmente”, foi organizar a primeira exposição desse porte no país: Descobrir, improvisar, instituir, enfim, o modus faciendi, organizar-se internamente, estabelecer os primeiros contatos e compromissos externos, foram dos mais difíceis encargos, estes couberam à exposição inaugural. Daí por diante, tinha-se uma trilha. (...) Aos organizadores da I Bienal, coube a abertura da picada em plena mata.24 E ele relata ainda: Como é sabido, por muito tempo o Museu de Arte Moderna de São Paulo esteve instalado em algumas salas de um dos andares do prédio nº 230 da Rua 7 de Abril. Pois foi ali, em acanhadas dependências, 128 MARIA DE FÁTIMA MORETHY COUTO que se preparou a I Bienal, a ser inaugurada em 1951, e cuja montagem se faria no antigo edifício do Trianon, à Avenida Paulista, em vias de reforma e adaptação especial para este fim. Era o único local viável disponível na cidade, e malgrado as soluções de emergência (e de urgência) diligentemente buscadas pelos arquitetos Luís Saia, Eduardo Kneese de Mello e Jacob Ruchti, não se conseguiu obter senão um espaço útil com a superfície total aproximada de 5000 metros quadrados – desde logo considerada exígua.25 Guimar Morelo, que comandou a montagem das obras da I Bienal, auxiliado por Aldemir Martins, Frans Kajcberg, Carmélio Cruz e Marcelo Grassmann, conta que tudo para nós era novo e delirante, embora eu já tivesse montado exposições no MAM. Não havia cronograma na I Bienal e as coisas poderiam começar pelo fim para chegar ao meio ou ao início. O prédio do Trianon ainda estava sem portas e, com isso, eu e o Aldemir não podíamos ir para casa, revezávamo-nos dormindo entre as obras.26 De todo modo, apesar do reduzido tempo empregado para a efetiva organização do evento – entre lançamento, divulgação, planejamento, contato e providências gerais –, a I Bienal contou com a participação de 19 delegações estrangeiras (Alemanha, Áustria, Bélgica, Bolívia, Canadá, Chile, Cuba, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Haiti, Holanda, Itália, Japão, Panamá, Portugal, República Dominicana, Suíça e Uruguai) e reuniu aproximadamente 1800 obras, segundo dados constantes no catálogo.27 Em sua cerimônia de abertura, estiveram presentes o Presidente da República, o Governador do Estado e o Prefeito da Capital, além de embaixadores e representantes diplomáticos dos países envolvidos.28 A participação dos brasileiros se deu por meio da submissão espontânea de trabalhos ao júri ou por meio de convite. Para compor as salas especiais do pavilhão brasileiro foram convidados artistas de renome nacional: Lasar Segall, Di Cavalcanti e Cândido Portinari, para a seção de pintura, Maria Martins (que, como vimos, ajudara Yolanda Penteado em seus contatos com Getúlio Vargas e no exterior), Victor Brecheret e Bruno Giorgi para a de escultura, e Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo para a de gravura. A escolha dos artistas convidados foi alvo de questionamentos e críticas no período. Geraldo Ferraz, por exemplo, demonstrou sua insatisfação em relação aos “critérios do convite”, declarando em sua coluna do Jornal de Notícias: é inegável que foram convidados os artistas mais suscetíveis de darem ‘importância’ à Bienal, preferidos àqueles que poderiam lhe acrescentar outra significação artística, embora todos a tenham. A exclusão dentre os convidados de Flávio de Carvalho e de Roberto Burle-Marx não merece outra consideração senão a de que, sem estes dois nomes, fica ‘empobrecida’ a representação brasileira, e esta deveria ser, ao contrário, acrescentada com todas as suas possibilidades mais vivas.29 Anos mais tarde, Aracy Amaral consideraria um “pecado injustificável da parte da direção artística da Bienal” a não inclusão, no rol dos convidados, de alguns dos protagonistas do movimento modernista, criticando o interesse dos organizadores do evento em alinhar-se com o gosto em voga no exterior: para a escolha dos convidados, Lourival Gomes Machado mostra a preocupação, em seu texto de introdução ao catálogo, de buscar nomes que possam interessar ao exterior, sem o empenho da projeção de nomes valiosos 129 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES para o público nacional e do aspecto didático da exposição, ao dizer que se buscou ‘um punhado de artistas brasileiros cujos nomes e cujas obras tivesse por qualquer forma atraído a atenção da crítica estrangeira.30 Os prêmios nacionais foram concedidos a artistas que, em sua maioria, já tinham carreiras estabelecidas, como Brecheret para a escultura e Goeldi para a gravura. A atribuição mais surpreendente, e que causou grande polêmica, foi a de melhor pintor nacional para Danilo Di Prete, artista italiano que se estabelecera no Brasil em 1946. O teor dos artigos publicados na época a esse respeito intercalava frustração pela não premiação de nenhum dos pintores convidados, irritação quanto à escolha de um artista estrangeiro que vivia há apenas cinco anos no país e que, portanto, não era representativo da “escola nacional”, e críticas quanto à pouca qualidade técnica da pintura premiada (a tela Limões). Já os prêmios internacionais, outorgados a Roger Chastel (pintura), e Max Bill (escultura), não provocaram maiores controvérsias na imprensa.31 Vale, porém, ressaltar que figuraram igualmente entre os premiados dois artistas abstratos brasileiros da nova geração, Ivan Serpa – eleito melhor jovem pintor com sua obra Formas, hoje no MAC/ USP – e Abraham Palatnik, que recebeu menção especial do júri internacional por seus Aparellhos Cinecromáticos.32 Antônio Maluf, outro jovem artista que se interessava pela abstração, venceu o concurso de cartazes para a mostra. Quanto às críticas à premiação de Danilo Di Prete, elas nos revelam a decepção do meio artístico e intelectual local pela não consagração de um representante do modernismo brasileiro. Antônio Bento relata em sua coluna do Diário Carioca o desapontamento geral: Mas não há dúvida que a maior de todas as surpresas resultou do desfecho das premiações referentes à seção de pintura brasileira. Esperava-se que triunfasse um dos três artistas convidados. E, no dia da inauguração, correu mesmo, com insistência, o boato de que a Portinari havia sido dado o 1º prêmio. Mas, já no domingo seguinte, começaram a surgir rumores desencontrados. Dizia-se que Portinari fora afastado e que a maioria do júri não gostara da Primeira Missa. Por motivo idêntico, Segall foi posto de lado. O tríptico dos Condenados desagradara à comissão julgadora, que logo resolveu desclassificar o artista. Di Cavalcanti foi a seguir eliminado por outros motivos, sendo também considerada fraca a sua tela de maiores dimensões. Não foram examinadas detidamente as qualidades dos outros quadros desses artistas. A maioria do júri considerou desde logo que nenhum deles merecia o grande prêmio, tendo resolvido passar do pavimento de cima para o de baixo, onde se encontrava o grosso da representação brasileira. Examinando o conjunto dos trabalhos expostos, os delegados estrangeiros consideraram igualmente baixo o nível da produção artística ali exposta, segundo a versão corrente, confirmada pelas declarações feitas através da imprensa e pela votação final.33 Quirino Campofiorito, por sua vez, censurou severamente a atuação do júri internacional, poupando, porém, os representantes brasileiros, que, em irrisória minoria, “nada poderiam decidir”: Desde já, porém, podemos dizer que a maioria dominante desse júri, além de desmascarar-se, como melhor não podia, marcou indelevelmente a ‘Bienal’, oferecendo o inaceitável julgamento do maior prêmio nacional de pintura, cuja preferência recaiu sobre um estrangeiro, autor de uma obra incipiente, modesta 130 MARIA DE FÁTIMA MORETHY COUTO imitação de abandonadas formas usadas em seu país, enquanto foram desprezados os grandes pintores brasileiros autênticos, indiscutíveis ‘pioneiros da arte moderna.34 Geraldo Ferraz foi igualmente severo, referindo-se à premiação como uma escarmentadora provação para os que trabalham em artes plásticas no país e têm alguma noção de um quadro” e à obra em questão como “um pequeno quadro, mal pintado, sobre tela mal preparada (...) uma paleta incrível pela falta de limpeza da tinta, combinou alguns tons totalmente degradantes para o objetivo em vista. Desenho e colorido se consumiram em pura perda para uma negação inteira da pintura: o quadro de Danilo Di Prete é um dos piores que a Bienal nos oferece.35 Segundo Leonor Amarante, Di Prete confessou que sua premiação “foi uma das experiências mais azedas de sua vida”: Minha candidatura partiu do crítico Jorge Romero Brest. E a pintora Maria Leontina, que concorria comigo, era indicação de Sérgio Milliet. Como empate, o voto de Minerva coube a Milliet, que surpreendeu e escolheu o meu quadro, sob os protestos da imprensa. A Bienal não me ajudou a vender, porém me deu mais prestígio. Sem dúvida, trata-se do acontecimento mais importante que já houve no Brasil.36 A segunda edição da mostra, em 1953, e que seria realizada sob o comando de Sérgio Milliet, consolidará, tanto interna quanto externamente, o papel estratégico das Bienais de São Paulo na difusão do pensamento moderno entre nós. Ao trazer obras marcantes de autoria de grandes nomes da arte moderna internacional, a II Bienal “converteu as práticas da vanguarda em arquivo, isto é, informação disponível aos artistas locais”.37 Como assinala Mário Pedrosa, um de seus organizadores, esta foi “a maior exposição de arte moderna que se fez no mundo durante a década”: A primeira Bienal foi uma pura jogada de improvisação. A sorte ajudou, como é costume acontecer aos grandes capitães da indústria (...) ao seu fundador. A realização tocou a imaginação dos paulistas, e o resultado é que Francisco Matarazzo Sobrinho é chamado a presidir as comemorações do IV Centenário da fundação de São Paulo, em 1953. Ora, entre os projetos da comemoração se ia inserir, com toda naturalidade, a realização de uma segunda Bienal: a ideia vingava.38 Para Aracy Amaral, a grandiosidade da II Bienal, “verdadeiro museu moderno vivo”, assegurou a continuidade das mostras pois aplacou a ira de seus oponentes e aumentou o entusiasmo de seus defensores. “A Bienal, enquanto iniciativa, evento, tinha vencido a parada” e sua segunda edição seria difícil de ser superada em termos de qualidade, afirma.39 Apesar de todas as críticas que, em diversas ocasiões, teceu à estrutura das Bienais de São Paulo, à sua vinculação e submissão ao modelo da Bienal de Veneza, a seu desinteresse em estabelecer conexões mais profícuas com outros países da América Latina e romper com os centros hegemônicos, Amaral também considera que as primeiras Bienais provocaram uma mudança fundamental em nosso meio artístico pois “começávamos a ver, em casa, o que se passava na cena do mundo”.40 Em sua opinião, elas foram a “vitrine, para os artistas do Brasil e da América Latina que para cá vinham, do que se passava no mundo”. E a II Bienal, a seu ver 131 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES revestir-se-ia de imponência que só os que assistiram a essa manifestação grandiosa podem ter registrado. E, por algum tempo, breve espaço, silenciaram um pouco, em alguns espíritos, as queixas contra a implantação das bienais, embora seu internacionalismo continuasse incomodando e revoltando os artistas preocupados com a questão social e a atuação do artista no meio social.41 Interessados em integrar a II Bienal às comemorações do IV Centenário da capital paulista, seus organizadores conferiram-lhe proporções gigantescas, promovendo sua mudança para o Parque do Ibirapuera, em dois novos edifícios projetados por Oscar Niemeyer, o pavilhão das Nações, reservado aos artistas da Europa e do Oriente, e o pavilhão dos Estados, destinado às representações das Américas, do Brasil e à Mostra Internacional de Arquitetura. Cabe lembrar que a construção do parque, em tempo recorde e em local que até então não contava com nenhuma estrutura urbana, atestava o desejo imperante de negar “o passado provinciano da cidade das décadas precedentes” e afirmar sua modernidade, a qualquer custo.42 Ciccillo, como mencionado, presidiu a Comissão do IV Centenário, responsável por uma série de atividades e eventos ligados à efeméride. A II Bienal, que ocorreu de dezembro de 1953 a fevereiro de 1954 (para coincidir com os festejos), contou com vinte salas de exposição a mais do que a primeira, dispostas em um espaço quase cinco vezes maior. Em depoimento, Wolfgang Pfeiffer, então diretor técnico do Museu de Arte Moderna de São Paulo, relata que “a construção do Ibirapuera esteve intimamente ligada a Ciccillo”: Ciccilo pretendia criar um espaço definitivo para a Bienal, mas suas ideias exigiam um local nobre, que harmonizasse os conceitos contemporâneos das artes plásticas, arquitetura e paisagismo. Portanto, encomendou a Oscar Niemeyer um projeto arrojado, a ser construído no parque.43 As delegações europeias trouxeram, para suas salas especiais, obras de alguns dos maiores nomes das vanguardas históricas, como Kokoschka (Áustria, 20 obras), Mondrian (Holanda, 20 obras), Klee (Alemanha, 65 obras), Ensor (Bélgica, 26 obras) e Munch (Noruega, 50 obras), enquanto dos Estados Unidos vieram trabalhos de artistas já consagrados, como Alexander Calder (45 obras em sala especial), assim como de pintores em ascensão, como Baziotes, de Kooning e Motherwell. Itália e França organizaram salas especiais dedicadas aos mestres do futurismo e do cubismo no pós-guerra, sendo que a delegação francesa, montada por Bernard Dorival, diretor do Museu Nacional de Arte Moderna de Paris, reuniu em sua sala geral os artistas continuadores do cubismo no pós-guerra, como Bazaine, Chastel, Estève e Manessier. Ressalte-se ainda a sala dedicada a Walter Gropius, um dos fundadores da Bauhaus, e que veio ao Brasil para receber o Prêmio Internacional de Arquitetura pelo conjunto de seu trabalho. Mas certamente um dos maiores destaques da mosra foi a sala especial Picasso, com cinquenta obras do artista catalão, entre elas a tela Guernica.44 A representação nacional, que contou com a participação de mais de 100 artistas, deu-se, dessa feita, sem convites por parte dos organizadores. Todos os interessados submeteram seus trabalhos ao crivo do júri de seleção, o que também gerou insatisfações. Portinari e Segall, por exemplo, decidiram não enviar obras à II Bienal, suscitando com isso grande celeuma.45 Foram organizadas duas salas especiais, de caráter históricodidático, dedicadas a Eliseu Visconti e à Paisagem Brasileira até 1900. Quanto às premiações nacionais, 132 MARIA DE FÁTIMA MORETHY COUTO não houve grandes surpresas nem ousadias, à parte a decisão do júri de dividir o prêmio de melhor pintor nacional entre Di Cavalcanti e Volpi, o que, segundo Mário Pedrosa, representou “uma última tentativa de conciliação dos membros brasileiros do júri entre a geração dos grandes veteranos e a nova geração em ascensão, ainda que, no fundo, representada por um artista que em idade pertencia à primeira, Alfredo Volpi”.46 O Grande Prêmio (Prêmio do IV Centenário), concedido pela primeira vez, foi entregue a Henri Laurens, escultor francês que havia sido um dos grandes favoritos ao prêmio máximo da Bienal de Veneza de 1950 e fora preterido em favor de Matisse. Rufino Tamayo (México) e Alfred Manessier (França) dividiram o prêmio de pintura, em atribuição que também gerou críticas. José Gomez Sicre, que atuou como chefe da Divisão de Artes Visuais da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 1948 a 1976, declarou, anos mais tarde, sobre esta premiação: Num dos certames [da Bienal de São Paulo], Tamayo ganhou o primeiro prêmio de pintura. No final dos debates, quando o prêmio estava praticamente concedido, uma tese, quase secreta, surgiu no júri: um latino-americano não deveria obter um galardão assim. A tese francesa prevaleceu e o prêmio foi dividido com um pintor hoje esquecido, Manessier.47 Embora seus palmarès evidenciem escolhas que hoje nos parecem conservadoras e que pouco diferem das de Veneza, sabemos os quanto as primeiras Bienais de São Paulo forçaram uma revisão de valores no meio local, sendo especialmente responsáveis pela difusão das correntes abstratas nos meios de vanguarda, como temiam alguns de seus detratores. A este respeito, o depoimento de Alexandre Wollner é esclarecedor: Eu tive contato com Sandberg, [crítico] holandês (...) e todas essas cabeças, Bill, Herbert Read, a coisa mais importante que aconteceu foi a segunda Bienal neste pais, abriu uma janela, a gente começou a ter contato com Calder, com Klee, Kandinksy, Malevitch. De repente, tudo isso foi um soco na cara da gente. Então o pessoal do grupo de arte concreta, principalmente, nós discutíamos muito, visitávamos a seção deles lá e ficávamos discutindo intensamente (...) porque até aquele momento você não tinha notícia daquelas pessoas, você não sabia quem era Klee, Kandinsky. Então, essa II Bienal, todas essas pessoas, eram, assim, um estouro.48 Outra função exercida pelas primeiras Bienais de São Paulo a médio prazo foi a de deflagrar o interesse por esse tipo de mostra em diferentes instâncias públicas e privadas de outros países latino-americanos. É Damián Bayón quem assinala: Seguindo o exemplo tentador de São Paulo podemos dizer que há alguns anos as bienais – melhor ou pior organizadas – proliferaram sobre o território da America Latina. Seu mais terrível defeito consistiu e consiste sempre em sua falta de estabilidade no tempo. Assim, houve bienais no México em 60, 62; as duas últimas consagradas respectivamente à pintura e à escultura. Também houve bienais em seu momento em Quito, em Montevidéu, em Porto Rico (dedicadas à gravura). Todas elas se deveram à iniciativa pública. Ao contrário, as bienais dependentes do setor privado parecem ter sido um pouco mais regulares em suas apresentações.49 Nesse último caso, Bayón dá como exemplos: as duas propostas distintas da Bienal de Córdoba – organizadas primeiramente pela empresa Pipino y Márquez e que teve 133 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES apenas duas edições (1958 e 1960) e, em outro contexto, pela fábrica de automóveis Kaiser, de matriz americana, a partir de 1962 –; a Bienal de Medellín, de responsabilidade da fábrica de têxteis Coltejer (iniciada em 1968); a Bienal Americana de artes gráficas de Cali (1970) e a Bienal Armando Reverón, na Venezuela (1961). Diferentemente da Bienal de São Paulo, várias das iniciativas acima mencionadas tiveram vida curta, mas isso não diminui sua importância e repercussão no contexto regional e internacional; em muitos casos, elas tiveram o propósito explícito de tornar-se um espaço de legitimação e de promoção de arte da América Latina no campo internacional e/ou de estabelecer conexões mais profícuas com outros países da região. Deve-se ressaltar que as Bienais de São Paulo jamais tiveram este perfil, que viria a ser assumido fugazmente pelas Bienais do Mercosul, realizadas em Porto Alegre a partir dos anos 1990. Ressalte-se, contudo, que, em 1978, em seguida a quatro edições das chamadas Bienais Nacionais, organizou-se uma Bienal Latino-Americana em São Paulo. Segundo relato de Aracy Amaral, a intenção de dar continuidade a mostras dessa natureza, em substituição à proposta das Bienais Internacionais de São Paulo e em face à crise pela qual atravessava a mostra nos anos 1970, não encontrou boa acolhida. O modelo “Bienal” propagou-se velozmente, ao redor do mundo. Conforme observou Ivo Mesquita em artigo de 2001, existem hoje mais de quarenta bienais ao redor do mundo, que visam “alimentar o turismo cultural, ao mesmo tempo em que desenham uma nova geografia do mundo das artes, integrando regiões distantes e internacionalizando a cultura”: Na verdade, o que se percebe com esse fenômeno e o fato de que diversas cidades em diferentes partes do mundo adotam essa estratégia como meio de ganhar visibilidade e inscrever-se no circuito internacional da economia e da cultura. Se o modelo é positivo no sentido de demarcar um território para o diálogo e o intercâmbio entre diversas práticas artísticas e culturais, ele também tem se mostrado uma eficiente estratégia no sentido de articular e consolidar uma economia internacional da arte, constituindo-se num setor específico dela.50 Algumas dessas mostras procuram afirmar valores locais ou regionais e renegar os interesses hegemônicos; seus interesses diferem, portanto, daqueles que moveram parte de nossa elite a organizar as Bienais de São Paulo, em um contexto internacional adverso, mas propício, internamente, a investimentos culturais modernizantes, pontuais, mas de grande vulto. Não se falava ainda em globalização, mas almejava-se a introdução de práticas cosmopolitas que fossem capazes de nos levar além de nossas contradições e indecisões, em busca de um lugar de destaque no panorama internacional e de um futuro glorioso, que jamais seriam alcançados. Naquele contexto, coube à burguesia paulistana tomar a frente da cena para reiterar, em outra chave de leitura, marcadamente internacionalista, o desejo de modernidade e progresso que seduzira a geração de 22. Seis décadas mais tarde, a Bienal de São Paulo resiste ao tempo e às intempéries, reinventando-se constantemente. Enquanto evento, logrou transbordar a esfera da cultura elevada ou erudita para se transformar em um produto cultural de massa, de apelo midiático e características espetaculares. 134 Notas 1 PEDROSA, Mário. “A Primeira Bienal”. In: Dos Murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981 (org. Aracy Amaral), p. 42. Artigo publicado pela primeira vez no Jornal do Brasil de 27 out. 1951. 2 Idem, p. 40. 3 PEDROSA, Mário. “A representação brasileira”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1º dez. 1951. 4 MILLIET, Sérgio. Diário crítico. São Paulo: Livraria Martins Editora e Edusp, s/d, vol. VIII (1951-1952). Texto de 23 out. 1951, p. 99-103. 5 Idem. 6 A expressão é de Mário Pedrosa, presente em seu artigo “Época das Bienais”. In: Mundo, Homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986 (org. Aracy Amaral), p. 287. Texto escrito em 1970 e publicado originalmente in GULLAR, Ferreira (org.). Arte brasileira hoje: situação e perspectivas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, como parte do estudo “A Bienal de cá para lá”. 7 Apud ALMEIDA, Paulo Mendes. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 221. Depoimento concedido em 1959 para a revista Il Progresso Ítalo-Brasiliano. Lourival Gomes Machado ocupava o cargo de Diretor do MAM/SP desde a saída de Léon Degand. A crise provocada pela realização da I Bienal e os desentendimentos com Ciccillo Matarazzo levaram Machado a solicitar sua demissão, sendo substituído no cargo por Sérgio Milliet, que, por sua vez, permaneceria à frente do Museu e da organização das Bienais até 1957. Ressalte-se, porém, que Lourival Gomes Machado integrou a Comissão Artística da II Bienal. 8 ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, Fundação Djalma Guimarães, 1983, vol. 2, p. 647. 9 O ponto culminante do debate entre nacionalistas e internacionalistas talvez tenha sido o tumultuado debate promovido pelo Clube dos Artistas e Amigos da Arte no Instituto dos Arquitetos do Brasil em 1951. Ver a esse respeito AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira. 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1987, pp. 255-259. 10 ARTIGAS. “A bienal é contra os artistas brasileiros”. In: Fundamentos, São Paulo, set. 1951. Apud AMARAL, Aracy. Idem, p. 247. 11 AMARAL, Aracy. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo”. In: Textos do Trópico de Capricórnio. Vol. 3. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 90. 12 OLIVEIRA, Rita Alves. “Bienal de São Paulo: impacto na cultura brasileira”. In: São Paulo em perspectiva, 15 (3), 2001, p. 20. 13 DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Ed. Perspectiva/Edusp, 1989, p. 133. 14 Sobre o apoio recebido por Ciccillo do poder público estadual, assim comenta Francisco Alambert: “Sua amizade com o prefeito Armando Arruda Pereira rendeu-lhe o empréstimo da área do Trianon, na avenida Paulista, para a realização da primeira edição da Bienal, em 1951. Do contato com o governador Lucas Nogueira Garcez, viria, três anos depois, o importantíssimo convite para que Ciccillo presidisse a organização do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954. Então, Ciccillo pôde escolher um local para construir os pavilhões que serviriam às comemorações do IV Centenário e também abrigariam as Bienais”. In: ALAMBERT, Francisco e CANHETE, Polyana. Bienais de São Paulo. Da era do museu à era dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 28. 15 AMARAL, Aracy. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo” e “Grandiloquência e marketing”. In: Idem, p. 88 e 90. 16 Trata-se de Maria Martins, escultora. 17 PENTEADO, Yolanda. Tudo em cor de rosa. São Paulo: Ed. da autora, 1976, p. 178. 18 Idem, p. 181. Yolanda Penteado ocupou-se ainda, no Brasil, da preparação da recepção oficial dos convidados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Sobre isto, ela comenta: “consegui, graças à Central do Brasil, vagões especiais para trazer os convidados a São Paulo. Eles recebiam um envelope com o bilhete para o noturno e o número da cabina, além do nome do Hotel em que pernoitariam em São Paulo e o número do quarto. Ficaram no Hotel Claridge, inaugurado com a Bienal e cedido pelos proprietários, meus amigos Fraccaroli. (...) Na noite da inauguração, foi oferecido um grande baile, em homenagem à I Bienal, na casa de Irene e Raul Crespi. (...) O baile só terminou às 6 da manhã”. Idem, pp. 182-183. 19 MACHADO, Lourival Gomes. Catálogo da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo (introdução). São Paulo, 1951, p. 14 e 22. Sobre esta questão, assim se posiciona Ivo Mesquita, em artigo publicado em 2001: “Embora a paisagem natural ou aquela criada pelo homem não fizessem de São Paulo um ponto privilegiado para o turismo, um dos objetivos declarados dos organizadores da Bienal era transformar a cidade em um novo polo cultural, um novo centro internacional para as artes, uma referência para o mundo, durante o período de reconstrução que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial e nos primeiros estágios da guerra fria. (...) Em cinquenta anos de atividades regulares, ela representou a possibilidade de renovação e mobilização sistemática da comunidade artística brasileira, uma oportunidade de intercâmbio cultural com o cenário artístico mundial”. MESQUITA, Ivo. “Bienais bienais bienais bienais bienais bienais”. In: Revista USP, nº 52. São Paulo, dez-fev 2001/2002, p. 75. 20 Contudo, o convite nem sempre garantia um efetivo reconhecimento do valor do evento. A esse respeito, o comentário depreciativo de Lawrence Alloway, em texto no qual compara a Bienal de São Paulo à de Veneza, é bastante elucidativo: “A posição da Bienal de São Paulo é mais complexa. O espaço de exposição parece uma fábrica abandonada, e sua localização, fora da cidade, é desconhecida da maioria dos moradores; a exposição é frequentada apenas por pessoas diretamente envolvidas em sua realização. Não é, no sentido pleno do termo, uma exposição pública de todo; parece mais uma convenção em um lugar remoto. Evidentemente, o prêmio pode ser um episódio desejável na carreira ascendente de um artista, e os catálogos circulam como evidência, após a realização da mostra. Contudo, como uma exposição, é uma espécie de ficção com extensões na realidade na forma de catálogos e prêmios. (...) Harold Rosenberg, que participou da abertura de sua 6º edição, deixou registradas sua desorganização e a ausência de arte substancial. Ele agrupa ‘as Bienais de São Paulo e de Veneza’, mas a comparação é absurda. Ela serve, na verdade, para sublinhar a acessibilidade de Veneza, a solidez de sua organização, e o alto calibre de algumas de suas mostras bem como do efeito total, o qual serve, muitas vezes, como um perfil das tendências atuais”. In: ALLOWAY, Lawrence. The Venice Biennale: 1895-1968. From salon to goldfish bowl. Greenwich/ Connecticut: New York Graphic Society, 1968, p. 15. 21 OLIVEIRA, Rita Alves. Op. Cit., pp. 18-19. 22 Idem, p. 19. 23 Cf. ALAMBERT, Francisco e CANHETE, Polyana. Op. Cit., p. 43. 24 ALMEIDA, Paulo Mendes. Op. Cit, p. 226. 25 Idem, p. 227. Luis Saia e Eduardo Knesse de Mello projetaram a reforma do pavilhão no Trianon, onde hoje se encontra o MASP. A prefeitura de São Paulo cogitou a cessão do Trianon por mais 20 anos para a concretização da mostra, mas, como veremos, a II Bienal já foi realizada em outro espaço, construído para esse fim. 26 Apud AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo / 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989, p. 19. 27 Na primeira edição do catálogo da Bienal, constam as participações das delegações da Argentina e do Equador. Essas delegações serão excluídas da segunda edição do catálogo. Na primeira Bienal participaram apenas 7 países da América Latina (Bolívia, Chile, Cuba, Haiti, Panamá, República Dominicana e Uruguai), com envios bastante diferenciados e em sua maioria modestos, na segunda este número subiu para 11, com destaque para a inclusão da Argentina (que trouxe diversos artistas abstratos), Peru, México (que apresentou uma sala especial dedicada a Rufino Tamayo, que ganhou o prêmio de pintura, juntamente com o francês Manessier) e Venezuela. Nas quarta e quinta edições, havia 15 países participantes da região, entre eles a Colômbia. Podemos inferir que, à medida que a Bienal de São Paulo adquiria ares mais profissionais e menos personalistas, ela se consolidava institucionalmente e conquistava, assim, um maior número de adesões. 28 A constante presença de autoridades máximas da política brasileira em diferentes edições da mostra revela a confluência de interesses de diversas ordens evento. 29 FERRAZ, Geraldo. “Sobre a I Bienal de São Paulo”. In: Jornal de Notícias, São Paulo, 26 out. 1951. 30 AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira. 1930-1970, p. 245. 31 Max Bill expusera com sucesso no MASP em 1951. Na I Bienal, ainda não havia sido instiuído o Grande Prêmio. Segundo depoimento de Jorge Romero Brest, ele foi o responsável pela premiação de Max Bill: “Chegando ao Trianon, o júri já trabalhava há dias e então pedi algumas horas para ver as obras. [No subsolo] encontrei uma obra sensacional, Unidade Tripartida. Voltei correndo à sala do júri e disse: Senhores, acabo de descobrir um trabalho que deve ser, sem dúvida premiado. (...) Fiz o possível para deixar de fora todos os artistas consagrados, de Picasso a Portinari. Com isso, houve uma terrível reação por parte dos brasileiros. Maria Martins, por exemplo, ficou sem falar comigo durante bom tempo. Só anos mais tarde nos reconciliamos”. Apud AMARANTE, Leonor. Op. Cit., p. 25. 32 A obra de Abraham Palatnik havia sido recusada, sob a alegação de que ela não se encaixava em nenhuma das categorias indicadas. Mário Pedrosa dedicou um artigo elogioso a Palatnik, “Intróito à Bienal”, no qual procurou ressaltar a extrema originalidade de seu trabalho, “uma das contribuições mais interessantes da exposição”. In: PEDROSA, Mário. Dos Murais de Portinari aos espaços de Brasília, pp. 35-38. 33 BENTO, Antônio. “Surpresas da Bienal de São Paulo”. In: Diário Carioca. Rio de Janeiro, 26 out. 1951. 34 CAMPOFIORITO, Quirino. “Declaração do júri da Bienal”. In: O Jornal. São Paulo, 27 out. 1951. 35 FERRAZ, Geraldo. “Sobre a I Bienal de São Paulo: Os pintores admitidos pelo júri”. In: Jornal de Notícias. São Paulo, 27 out.1951. Em análise posterior aos fatos, Francisco Alambert lança a hipótese de que “a importância do assessoramento de Di Prete e a proximidade entre esse pintor e o mecenas talvez sirvam para explicar o encantamento e a generosidade que a Bienal teve para com esse pintor recém-chegado. Pois é fato que as constantes premiações dadas a Di Prete dividiram a crítica desde sempre, servindo de matéria para debates e desconfiança”. In: ALAMBERT, Francisco e CANHETE, Polyana. Op. Cit, p. 38. 36 Apud AMARANTE, Leonor. Op. Cit., p. 24. 37 FREIRE, Cristina. “O inconsciente moderno do museu contemporâneo no Brasil”. In: FABRIS, Annateresa et alii. Atas do Colóquio Internacional História e(m) movimento. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2008, p. 41. 38 PEDROSA, Mário. “A Bienal de cá para lá”. In: Mundo, homem, arte em crise. Op. Cit., p. 260. Artigo escrito em 1970. Neste momento, Pedrosa se mostrava descrente do poder efetivo de transformação da arte em uma sociedade de consumo de massa e denunciava que as “grandes manifestações coletivas de arte por toda a parte estão em crise”. 39 AMARAL, Aracy. “Bienais ou da impossibilidade de reter o tempo”. In: Textos do Trópico de Capricórnio. Vol. 3. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 95. 40 Em mais de uma ocasião, Amaral relembrará os dizeres de Paulo Mendes de Almeida para afirmar a relevância do evento em nosso contexto: “o mal que elas causaram à arte brasileira é equiparável ao bem que trouxeram ao nosso ambiente artístico”. 41 AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira. 1930-1970, p. 258. 42 No ano de 1951, o prefeito Armando de Arruda Pereira implantou o Plano de Melhoramentos Públicos com o objeto de organizar os festejos dos 400 anos de sua fundação. Ciccillo foi convidado a presidir a comissão no final desse mesmo ano. Ver. ARTIGAS, Rosa. São Paulo de Ciccillo Matarazzo. In: FARIAS, Agnaldo et alli. 50 anos da Bienal de São Paulo: 1951/2001. São Paulo: Fundação Bienal, 2001, p. 61. 43 AMARANTE, Leonor. Op. Cit., p. 34. 44 Leonor Amarante comenta que a obra de Picasso chegou ao Parque do Ibirapuera enrolada num enorme cilindro, com mais de quatro metros de comprimento, sob uma lona desgastada, em um velho caminhão. In: Idem, p. 36. 45 Em entrevista concedida ao jornal Tribuna da Imprensa na época, Mário Pedrosa afirma que “nem Segall nem Portinari haviam feito falta à Bienal”, o que causou debate. Pedrosa relata o episódio e reafirma suas convicções em “Dentro e Fora da Bienal”, artigo publicado no Diário Carioca em 14 de março de 1954. Em sua opinião, era “preciso acabar com a noção de que os artistas mais consagrados do país devem todos, sem exceção, fazer parte de cada mostra internacional que se realize, de dois em dois anos, em São Paulo. Em Veneza, nosso modelo, de cada vez variam os artistas que representam a Itália, conforme a orientação que a cada Bienal imprima a sua direção. A tendência é alternar os artistas, sobretudo os grandes nomes”. In: PEDROSA, Mário. Dos Murais de Portinari aos espaços de Brasília, pp. 47-54 46 PEDROSA, Mário. “Época das Bienais”. In: Mundo, homem, arte em crise, pp. 292-293. O prêmio de melhor escultor foi concedido a a Bruno Giorgi e o de gravador a Lívio Abramo. 47 Apud AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo / 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989, p. 43. 48 Apud HOFFMANN, Ana Pimenta. A arte brasileira na II Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo: o prêmio de melhor pintor nacional e o debate em torno da abstração. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002. Citado por ALAMBERT, Francisco e CANHETE, Polyana. Bienais de São Paulo. Da era do museu à era dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 60. 49 BAYON, Damián. “Los organismos difusores y la movilidad de los artistas”. In: Idem (org.). América Latina en sus artes. Paris (UNESCO): Siglo Veintiuno Editores, 1974, p. 68. 50 MESQUITA, Ivo. “Bienais bienais bienais bienais bienais bienais”. Op. Cit, p. 74. 1965. Propostas para uma crise Paulo Reis Em 14 de dezembro de 1965, foi aberta na cidade de São Paulo a exposição Propostas 65, com organização do artista Waldemar Cordeiro e dos artistas e arquitetos Sérgio Ferro e Flávio Império. Ela reuniu nos espaços da Fundação Armando Álvares Penteado os seguintes artistas, publicitários e poetas: Abraham Palatnik, Adriano de Aquino, Alex Periscinoto, Alice Brill, Angelo de Aquino, Aníbal Guastavino, Antonio Dias, Antônio Maluf, Bernardo Cid, Carlos Vergara, Décio Bar, Décio Pignatari,1 Dileny Campos, Eduardo Riedel, Efízio Putzolu, Egas Francisco, Enéas Dedeca, Fábio Magalhães, Flávio Império, Geraldo de Barros, João Parisi, Jarbas José de Souza, João Rossi, José Roberto Aguilar, Judith Lauand, Luigi Zanotto, Luiz Sacilotto, Maria do Carmo Secco, Maurício Nogueira Lima, Mira Schendel, Miriam Chiaverini, Mona Gorovitz, Nelson Leirner, Niobe Xandó, Pedro Escosteguy, Renato Landim, Roberto Magalhães, Rodrigo Barrientos, Ruben Martins, Rubens Gerchman, Samuel Szpigel, Sérgio Ferro, Sílvio Oppenheim, Tomoshige Kusuno, Ubirajara, Vera Ilce, Vera Sangicolo, Waldemar Cordeiro, Waldomiro de Deus Souza e Wesley Duke Lee. Acompanhava a exposição um catálogo, editado como um jornal no formato tabloide, no qual constavam relação de artistas, obras e textos críticos e, um ano depois, no jornal Artes, revia-se a exposição em cinco textos críticos. E mesmo não tendo recebido muito público e divulgação na época,2 Propostas 65 é uma das exposições mais representativas para se refletir sobre a produção de arte dos anos 1960 no Brasil. Propostas 65, um ano e dez meses depois do golpe militar, apresentou uma configuração abrangente da produção brasileira da época, vista nas transformações do projeto construtivo brasileiro, notadamente o neoconcretismo e o concretismo paulista, e nas ideias e conceitos então presentes no meio artístico do país, em especial a arte pop, o novo realismo e a nueva figuración argentina. Ela consolidou três posicionamentos fundamentais na arte do período que permaneceram presentes até o final da década. Esses posicionamentos diziam respeito ao comprometimento crítico dos artistas frente ao golpe militar, a uma contribuição ao debate da cultura nacional dos anos 1960 e, por último, à apresentação do termo “realismo” como estratégia para a garantia da complexidade e diversidade da produção da época. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Num contexto turbulento, a exposição Propostas 65 se configurou como uma resposta crítica e comprometida dos artistas visuais e da crítica da época ao Golpe de Estado de 1964 e à nova ordem nacional imposta. Três meses após a precursora exposição Opinião 65, ocorrida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e que, no dizer de muitos críticos (Frederico Morais, Wilson Coutinho, Mário Pedrosa, Ferreira Gullar), foi a primeira manifestação efetiva das artes plásticas com relação ao Golpe, Propostas 65 reafirmava o posicionamento dos artistas visuais com relação à situação política. Sua resposta estava evidenciada mais fortemente em algumas propostas, entre outras, de Carlos Vergara, Bernardo Cid, José Roberto Aguilar, Rubens Gerchman, Flávio Império e Décio Bar, cuja obra “foi retirada da exposição, sob risco de ser considerada ‘subversiva’ pelos censores do regime recém-instalado, a pedido do então diretor da FAAP”.3 Além disso, como se verá posteriormente, o texto Pintura nova, de Sérgio Ferro, publicado no catálogo, apresentou um tom politicamente comprometido da arte pós Golpe de Estado. Outra das contribuições da exposição Propostas 65 foi dada em relação ao debate nacional sobre a questão do experimentalismo na arte, ou, como já se colocara criticamente, a da vanguarda no Brasil nos anos 1960. A problematização estava matizada por elementos presentes no mundo da economia, da sociedade e da cultura e que gravitavam em torno dos termos e conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento do país, da dependência cultural, do imperialismo cultural norte-americano; pelo nacionalismo ou internacionalismo na constituição da cultura e pela possibilidade, ou não, de uma arte de vanguarda num país subdesenvolvido, como dito à época.4 Propostas 65, com suas obras e textos críticos, respondeu a esse debate ao não estabelecer oposições fechadas entre nacionalismo e internacionalismo, vistos na perspectiva da construção de uma produção visual de vanguarda nacional de caráter experimental. Um dos maiores méritos da exposição foi o fato de avançar criticamente na reflexão do período ao buscar novas relações da produção artística com o contexto social da época. O fato de Propostas 65 ter sido organizada por artistas talvez tenha trazido para a mostra paulista um aprofundamento nas discussões das variadas poéticas visuais e não uma mera vitrine de tendências. Além disso, como constatou Waldemar Cordeiro (1966), tratava-se de uma exposição que foi idealizada e orientada por artistas e que nesse sentido revelou uma atitude ético-crítica que transcende a atividade estritamente criadora para assumir uma responsabilidade mais vasta em face do desenvolvimento histórico-cultural da arte. Sintomaticamente, seu catálogo trazia uma discussão densa e diversificada da arte do período em seus doze textos: Sobre a vanguarda (Ângelo D’Aquino), Abraham Palatnik (Clarival do Prado Valladares), Na multidão (Ubirajara), Realismo ao nível da cultura de massa (Waldemar Cordeiro), Pintura de Ângelo D’Aquino (Hélio Oiticica), Paz mundial (Jorge Mautner), Pintura nova (Sérgio Ferro), Um novo realismo (Mário Schenberg), Porque o feminino (Mona Gorovitz), No limiar de uma nova estética (Pedro Escosteguy), Propaganda: educação ou deseducação visual em massa (Roberto Dualibi) e Posição (Ruben Martins). 140 PAULO REIS A diversidade e imbricação de pesquisas artísticas já referidas através de diferentes linguagens e movimentações é um dos dados marcantes de Propostas 65. Expuseram na FAAP artistas ligados ao ideário concretista como Antônio Maluf, Judith Lauand, Luiz Sacilotto, Abraham Palatnik; artistas que estabeleceram novas trajetórias a partir do concretismo, como Waldemar Cordeiro em suas apropriações de imagens fotográficas e Maurício Nogueira Lima em sua nova figuração pop; artistas que trabalhavam com assemblages ou objetos de caráter crítico e/ou irônico como Nelson Leirner, Mona Gorovitz, Pedro Escosteguy, Wesley Duke Lee; artistas jovens com uma figuração pop como Antônio Dias, Carlos Vergara, José Roberto Aguilar; artistas com poéticas declaradamente comprometidas politicamente, como já descrito anteriormente e, finalmente, peças publicitárias de Alex Periscinoto, Ruben Martins, Jarbas José de Souza e Aníbal Guastavino. Como dito anteriormente, a exposição respondeu ao panorama político e a um dos debates de base da cultura nacional. Mas, e esse é um de seus pontos conceituais mais evidentes, para constituir essas respostas, Propostas 65 arquitetou uma síntese da produção brasileira sem cair na equação redutora de arte formalista de vanguarda versus arte engajada5 ou de arte figurativa versus abstrata, como bem salientou por Waldemar Cordeiro (1965) – “hoje as antinomias do conflito histórico abstracionismo versus figurativismo estão superadas”. E esta nova chave de entendimento da arte brasileira deu-se com a discussão do chamado realismo, ou mais apropriadamente realismos, um conceito operacional discutido pelos textos do catálogo e que constituiu o subtítulo da mostra, apontado na capa do catálogo: “Exposição e debates sobre aspectos do realismo atual do Brasil”. O realismo não seria apenas uma resposta ao contexto histórico ou ao debate cultural, mas, de forma mais complexa, um conceito estratégico para pavimentar, dali para a frente, a arte brasileira mais experimental e comprometida politicamente. Visto nos termos da vanguarda brasileira, possuía um caráter crítico que o colocava frente às questões sociais e políticas. O texto do poeta e músico Jorge Mautner, ao fazer um elogio do trabalho do artista Pedro Escosteguy, salientou o caráter participativo e reflexivo de sua obra. Esta característica, dada pela opção por um novo realismo, obrigava o “espectador a assumir uma posição crítica” frente à realidade figurada na obra, portadora “de uma lucidez e de uma consciência histórica terríveis” (Mautner, 1965). Localizando a poética de Escosteguy, construída não apenas na figuração (representação reconhecível de pessoas ou situações), mas no entremeio da força poética da palavra, numa linguagem entre o bidimensional e a escultura e através de imagens visuais sintéticas, o realismo apontado por Mautner conjugava subjetividade e consciência social, em detrimento de uma subjetividade excessiva, vista negativamente como romântica. O artista Sérgio Ferro, um dos organizadores de Propostas 65 e artista participante da exposição, fez algumas reflexões sobre o realismo e sua função crítica. Em seu texto, Pintura nova, a pintura representava um meio, ou uma arma, nas palavras do artista, para a conscientização social e o posicionar-se frente às forças bloqueadoras (de processos de libertação) subjacentes a uma ideologia autoritária. Ferro via a produção artística nacional formada criticamente pelas vanguardas internacionais, pois que a “plástica ‘de importação’ e a local são analisadas, depuradas de seus compromissos de origem ou tradição e incorporadas em nosso arsenal”6 notadamente a arte pop e a abstração informal, 141 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES além da nova figuração, realismo fantástico, neodadaísmo. Ferro talvez tenha sido o único artista naquele contexto que, ao refletir sobre uma arte comprometida, valorizou a abstração informal no Brasil ao afirmar que “o informalismo surgiu para evidenciar o mal-estar, a alienação e o desencanto generalizados que atingiram o Ocidente”.7 Ao ligar-se a seu tempo, a pintura nova configurava-se na “responsabilidade de uma posição”8 pois que identificada com os problemas “do subdesenvolvimento, imperialismo, o choque direita-esquerda, o (bom) comportamento burguês, seus padrões, a alienação, a ‘má fé’, a hipocrisia social e a angústia generalizada”.9 A partir desse corolário de problemas sociais e políticos nacionais, Ferro (1966) criou uma tipologia de posições críticas do realismo: realismo do fato significativo (Gerchman e Szpigel), um realismo de crítica das instituições sociais (Flávio Império, d’Aquino e Chiaverini), um realismo psicológico (Ubirajara e Campadello) um realismo do absurdo (Antônio Dias e Tomoshige), um realismo técnico (Cordeiro e Efízio) e um realismo estrutural (Wesley). Para ele, as questões não artísticas de cunho social e político faziam parte das questões poéticas da nova pintura. A análise de Sérgio Ferro deu-se unicamente no campo da expressão pictórica, da mesma maneira que fez Ferreira Gullar em seus textos da época, em especial no livro Cultura posta em questão. Não importaram ao artista as transformações do período nas expressões artísticas em direção à quebra de fronteiras das linguagens (pintura, desenho ou escultura), fato que o neoconcretismo já havia apontado como a emergência da questão do objeto na arte brasileira. Para o crítico e renomado astrofísico Mário Schenberg, o surgimento de um novo realismo estava ligado a outra dimensão crítica. O “novo humanismo” de Schenberg (1965) estava relacionado a suas pesquisas sobre a cultura Oriental. Há uma convergência interessante entre algumas tendências do novo realismo e certas predileções da arte do Extremo Oriente influenciada pelo Zen. O Zen também leva à apreciação artística da simplicidade, da pobreza artesanal, do aspecto quotidiano das coisas, da irregularidade e dos objetos envelhecidos pelo uso. Este “novo humanismo” também se caracterizava, de forma filosófica, por ser uma síntese “do individual, do social, do existencial e do cósmico [...] numa nova visão sintética do biológico e do espiritual”.10 Para o crítico, o humanismo, dito individualista e burguês, seria substituído por um humanismo democrático e social, a existência ganharia uma amplidão cósmica e não haveria separação entre corpo e alma, ou corpo e espírito. Mais do que a realidade imediata, contextual, o “novo humanismo” ligava-se a um projeto visionário de futuro pois que “afetaria todos os aspectos da vida social e espiritual do homem no último terço deste século”.11 Havia talvez no crítico um reflexo das posições, algo grandiosas, de Pierre Restany, quando este afirmou que o Novo Realismo francês encarnou, em dez anos de humanismo tecnológico, “a única garantia racional e razoável de um segundo renascimento”.12 142 PAULO REIS Nas artes visuais, o novo realismo concebido por Schenberg dialogava com as novas mídias (cinema, propaganda, vídeo, quadrinhos) ao mesmo tempo que agregava materiais pobres e uma despreocupação com a artesania artística. Ele se caracterizava também por ser arte comprometida, por se definir como uma arte participante, ampliando sua influência para fora do circuito artístico e, assim, tornando-se um “instrumento de conscientização nacional em todos os sentidos”.13 No artigo Cinco arquitetos pintores, escrito em 1966 para a exposição dos artistas Ubirajara Ribeiro, Maurício Nogueira Lima, Flávio Império, Sérgio Ferro e Samuel Szpigel, Schenberg salientou mais uma vez o comprometimento artístico daqueles pintores, considerado como uma contribuição às novas tendências realistas. E apontou que o desenvolvimento pujante de uma arte de crítica social e política desempenhará indubitavelmente um papel relevante em toda a vida nacional, não limitado ao campo puramente artístico e cultural. Tenderá a se tornar um fator significativo para a elevação da consciência de amplos setores da nossa população e a influir cada vez mais no debate e na solução dos grandes problemas nacionais.14 Finalmente, para o crítico, o novo realismo no Brasil, naquele momento, não representava um movimento, mas talvez uma estratégia artística unificadora ao afirmar que em Propostas 65 encontramos artistas vindos do informalismo, do expressionismo, do surrealismo, do concretismo e de outras tendências. Isto mostra claramente que o realismo atual constitui uma efetiva síntese dialética das principais correntes da arte do séc. XX.15 O realismo para Schenberg, como o realismo para Ferro, buscava um comprometimento social e político, assim como se configurava também numa síntese poética de linguagens artísticas. Uma discussão artística enfrentada por Propostas 65, inédita naquele momento, foi a da inclusão de peças gráficas de publicidade juntamente aos trabalhos dos artistas plásticos. A mostra fez uma leitura específica da sociedade de consumo, contexto no qual aparecem a figuração pop e a movimentação do novo realismo. No catálogo, dois textos enfocaram a presença da publicidade no debate trazido pela exposição, o de Roberto Dualibi, que abordou a publicidade como dado de informação ligado a um fundamento de qualidade visual, e o de Ruben Martins, que traçou um paralelo entre o artista e o criador publicitário, ambos como manipuladores de símbolos visuais, juntos num compromisso de “influenciar e transformar a vida”.16 Outra discussão, de caráter precursor na arte brasileira, foi tratada no texto Por que o feminino, de Mona Gorovitz. Ao fazer uma síntese do novo realismo, como definido por Restany, Gorovitz apontou algumas poéticas de artistas mulheres, entre outras, de Marisol Escobar, Niki de Saint-Phalle e Marta Minujin, nas quais as questões do feminino em suas obras e experiências tinham um caráter crítico.17 O realismo, de forma ampliada, trazia também outras formas de pensar a visualidade. A visão complexa de realismo elaborada por Waldemar Cordeiro acrescentou um dado problematizador muito próprio de países ditos, à época, periféricos e modificou radicalmente a própria visão “neutra” do que era um ready-made. Escrevera Pierre Restany (1979, 143 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES p. 31), inspirador de muitas operações estéticas do período: “no manifesto de Milão enfatizei a ideia central de apropriação do real e sua consequência: a constatação sociológica se torna linguagem e até poesia da linguagem”. Cordeiro buscava essa “constatação sociológica” nas condições econômico-estruturais do consumo e da produção ao entender que a arte, “enquanto consumo, enfoca criticamente a relação entre os recursos da produção e o fato de que essa produção não beneficia igual e simultaneamente a todos”.18 O elemento de realidade trazido pela apropriação de objetos materiais do cotidiano e a ação de coleta do ready-made não estava desvestido de significações, pois ocorria dentro de um contexto geral das condições de produção desses materiais. Apropriar-se de materiais, em sua fisicalidade, não bastaria a Cordeiro, pois eles continham uma significação social e econômica. Assim se completava a ideia do realismo como vanguarda brasileira para Cordeiro – partindo da produção da arte pop, formada no contexto da sociedade de consumo, realizava-se a apropriação de objetos “reais” da cultura de massas, e não representações, conforme discutido pelo Novo Realismo francês. Tais elementos, vistos na operação duchampiana do ready-made, trariam em si uma possibilidade de consciência social e política, pois que mergulhados num contexto de produção de país subdesenvolvido, na estratégia do artista ítalo-brasileiro. Ao afirmar que o “realismo atual terá que tomar em consideração todos os dados do problema, e, numa síntese superior, contribuir para devolver as esperanças ao homem moderno”,19 o artista encerrou seu texto do catálogo e deixou em aberto seu projeto artístico engajado, síntese das preocupações de vanguarda ao dialogar com a cultura de uma sociedade de massas. A aposta de Cordeiro evocava a questão, que mais se assemelhava a um dilema incontornável, colocada por Ruben Martins, a de que “o problema é o da revolução humanista ‘dentro’ da revolução industrial”.20 O contexto social e político nacional, pós Golpe de 64, viu surgir uma produção artística ligada conceitualmente aos anos 1950, ao mesmo tempo que carregando a ansiedade própria daquele momento. A trajetória de discussões e pesquisas de mais de 10 anos juntava-se à necessidade de “opinião” sobre os fatos recentes. A propalada volta à figuração mostrava-se menos como contraponto à abstração e mais como tentativas diversas de absorver criticamente a arte pop e tomar partido frente à sociedade nacional. Os artistas figuraram um rico episódio de embates no mundo da arte nos termos da tradição construtiva, pop e novo realismo com a realidade imediata. A exposição Propostas 65 colocou de lado a questão da figuração e da abstração em função de um conceito mais abrangente que desse conta da inquietação dos artistas, o realismo. O realismo da exposição partia da necessidade da “apropriação do real”. Para isso, os artistas e críticos propuseram uma “forma de arte participante” e com “ponto de vista brasileiro dentro de um ‘novo humanismo’” (Mário Schenberg), a “pintura como fator de consciência social” (Sérgio Ferro) e a “realidade da cultura de massas como contraponto da arte” (Waldemar Cordeiro). Propostas 65, que só pode construir-se sobre as discussões que já haviam sido abertas por Opinião 65, formulou outra forma de olhar as manifestações artísticas nos anos 1960, bem mais consistente que a “volta à figuração”. Essa forma de olhar agrupava trajetórias artísticas distintas e, ao não opô-las, fornecia um conceito mais operatório aos artistas. 144 PAULO REIS Uma última questão que pode ser sublinhada em Propostas 65 relaciona-se à herança concreta e neoconcreta na arte brasileira em meados dos anos 1960 e no contexto do regime ditatorial que se iniciava. Se em Opinião 65 apareceram dois importantes artistas dos anos 1950 que viviam um momento de crise e transformação em seus projetos artísticos com raiz construtiva, Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica, suas participações não reverberaram no contexto da exposição carioca. O primeiro não conseguiu espaço de debate mais amplo de sua proposta dos Popcretos e o segundo não conseguiu nem espaço físico para apresentar seus parangolés no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro21. Assim, é importante notar o quanto Waldemar Cordeiro, à frente das discussões de Propostas 65, abriu um novo campo semântico para toda a arte brasileira do momento. Hélio Oiticica, à frente da exposição Nova Objetividade Brasileira, em 1967, e autor do texto “Esquema geral da Nova Objetividade”, publicado no catálogo, construiu uma trajetória crítica da arte brasileira ao trazer como balizas, justamente, Waldemar Cordeiro e Mário Schenberg, além de Mário Pedrosa e Ferreira Gullar. Assim, o conceito de realismo, como posteriormente o conceito da nova objetividade, buscou uma síntese da arte brasileira e a garantia da pluralidade de posições estéticas, críticas e poéticas. 145 Notas 1 Décio Pignatari estava presente na exposição como redator da peça publicitária Literatura médica, de Ruben Martins. 2 MOURA, 1965. 3 RIBEIRO, 2003 p. 136. 4 REIS, 2006. 5 REIS, 2006. 6 FERRO, 1965. 7 Idem. 8 Ibidem. 9 FERRO, 1966. 10 SCHENBERG, 1965. 11 Idem. 12 RESTANY, 1979, p. 2. 13 SCHENBERG, 1965. 14 SCHENBERG, 1989. 15 SCHENBERG, 1965. 16 MARTINS, 1965. 17 GOROVITZ, 1965. 18 CORDEIRO, 1978, p. 55. 19 CORDEIRO, 1965. 20 MARTINS, 1965. 21 Censurados, os parangolés e os passistas de samba fizeram sua apresentação nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1967. IV Salão de Arte Moderna de Brasília: os últimos modernos Emerson Dionisio As quatro edições do Salão de Arte Moderna de Brasília, realizadas entre 1964 e 1967, foram tentativas da recém inaugurada capital do Brasil de iniciar um processo de constituição de uma cena artística dedicada às artes visuais. Naquela década, praticamente todo o aparato artístico-cultural sob a responsabilidade do governo federal havia optado por permanecer na cidade do Rio de Janeiro. Nenhum museu, nenhum salão, nenhuma escola de artes plásticas migrou para Brasília. Coube à cidade iniciar um longo período de consolidação de suas bases culturais. O salão era uma oportunidade de atrair artistas de todo país e garantir as bases iniciais de uma coleção para um futuro museu da capital federal. E as quatro edições foram ambiciosas nesse sentido. Trouxeram nomes jovens que despontavam em diferentes regiões, com obras que oscilavam entre os ecos do vocabulário modernista e novas experimentações contemporâneas. Obras selecionadas por críticos renomados e polêmicos, como Quintino Campofiorito, Walter Zanini, Geraldo Ferraz, José Geraldo Vieira, Mário Pedrosa, Frederico Morais, Geraldo Ferraz, entre outros. Críticos recrutados dos principais centros culturais do país e que possuíam dois pontos comuns importantes na época: o acesso aos meios de comunicação e a Bienal Internacional de São Paulo. Todos eram responsáveis por colunas-críticas, mais ou menos estáveis ou ligados a projetos editoriais específicos. Da mesma forma, o vínculo entre eles e a Bienal é marcante e decisivo ao longo dos anos de 1960 (e mesmo antes). Na 6ª Bienal, em 1961, estavam envolvidos na seleção, organização ou julgamento José Geraldo Vieira (ligado ao evento desde 1954), Geraldo Ferraz, Mário Pedrosa e Quintinho Campofiorito. Nos eventos seguintes, em 1963 e 1965, Walter Zanini se juntou a Vieira, Ferraz e Pedrosa. Em 1967, Frederico Morais é incluído como corpo jurado da nona Bienal, ao lado de Campofiorito e de Ferraz. Acesso ao principal evento de artes visuais da América Latina e capacidade de conferir visibilidade em todo país eram ambições que quase todos os salões almejavam.1 Nomes importantes da crítica, artistas renomados, jovens talentos, debates políticos e problemas estruturais caracterizam a história do salão. Das quatro edições, uma foi mais HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES marcante justamente pelo seu desfecho que encerrou, naquele período, as ambições da capital de organizar um grande evento dedicado às artes visuais. O salão como exposição-evento É certo que a história dos salões e sua relação com as narrativas da história da arte são demasiadamente heterogêneas para uma compreensão ligeira das implicações desses eventos tipificados e instaurados como exposições coletivas de eminente caráter competitivo. Competição que nos coloca diante de um paradigma perturbador, na medida em que nos perguntamos como a história da arte de diferentes comunidades artísticas têm se comportado diante de uma instituição tradicional como o Salão. Tradicionalmente, os valores operados nestes eventos funcionavam como filtros que, na realidade brasileira, acabaram como instrumento de relacionamento entre instituições de ensino, a crítica especializada, o mercado incipiente e as instituições museais com a produção de arte, em que seleção, crítica e premiações transformaram-se em balizadores poderosos de mediação. A reputação de um artista era valorizada ou abalada por colecionadores e instituições que possuíam seus trabalhos. Até recentemente, um salão podia definir o acesso do artista a um sistema em que a legitimação institucional era cada vez mais necessária2. Todavia, os corpos jurados, sobretudo naqueles anos de 1960, pareciam conscientes da fragilidade da nova arte e da vulnerabilidade dos artistas. Eles sabiam que suas decisões seriam sentidas profundamente, e raramente aceitas sem debate. Decisões que começaram a ser refutadas não apenas dentro de um quadro tradicional de referências críticas – como ocorria nos tradicionais salões oficiais oitocentistas3 –, mas também pelo enfrentamento da própria instituição-evento4. Um exemplo pontual da dimensão memorial e historiadora do salão tem sido, até recentemente, sua utilidade para a história das coleções de arte como mecanismo de política aquisitiva ativa. É certo que salões não dependeram das coleções para existir. Todavia, funcionaram como mecanismos que davam a ver obras que poderiam ser assimiladas por diferentes sistemas de colecionamento. Como ocorrera com algumas das obras premiadas naqueles anos em Brasília, muitos trabalhos artísticos migraram das exposições-evento, promovidas pelos salões, para acervos públicos e privados do país. Evidentemente, utilizamos uma simplificação ligeira para designar um processo extenso e contraditório. Não obstante, os salões têm mostrado uma capacidade ímpar de adaptabilidade e sobrevivência, mesmo com os ataques diretos e o evidente desconforto diante de um sistema competitivo que tem medido bens artísticos díspares. Nesse tocante, o salão pode ser tomado em duas dimensões. Enquanto dispositivo, cujas características competitivas nos fazem refletir sobre um conjunto de ações indissociáveis: a seleção, a distinção, a concorrência, o acervamento, a visibilidade e a exposição de uma obra de arte e seu criador. Numa outra dimensão, mais estrita, o salão sempre resulta na comunicação expositiva de uma obra, selecionada a priori, que pode ser pre148 EMERSON DIONISIO miada por um júri. Portanto, em última instância, ele é para o público não especializado uma exposição-evento. Os salões de diferentes geografias e extensões, nas últimas décadas, estiveram marcados pela diversidade. E, geralmente, diante de uma independência relativa, dispostos a realizar escolhas e apostas abertas, pois, salões, muitas vezes, apostam no talento de artistas emergentes que nem sempre se perpetuam no difícil cenário da arte contemporânea. Por outro lado, salões atraem artistas emergentes que acabam se perpetuando, que têm suas obras assimiladas por coleções num momento em que as instituições podem acessá-las. Obras que logo não estarão acessíveis graças à voracidade do mercado de arte e à falta de recursos e políticas aquisitivas ativas da maioria das instituições museológicas brasileiras. Os júris, muitas vezes, parecem ler a sorte; tentar reconhecer antecipadamente o que será significativo. Certamente, o salão é um dispositivo polêmico. Geralmente porque expõe a gramática do mercado e das trocas simbólicas que ativam uma hierarquia entre as obras e os discursos críticos que as acompanham. Emblemático, nesse sentido, foi o IV Salão de Arte Moderna de Brasília (SAMB), em 1967. O salão dos encontros Organizados pela Fundação Cultural de Brasília, instituição criada em janeiro de 1961, os SAMBs miravam a arte em plena metamorfose dos grandes centros do país. As obras premiadas e adquiridas refletem a importância que os salões brasilienses tiveram imediatamente ao seu surgimento. Nomes emergentes na cena artística nacional, como por exemplo, os premiados Marcelo Grassmann, Cildo Meireles, Tomie Ohtake, Maria Bonomi, Farnese de Andrade, João Câmara, Anna Bella Geiger, Marcelo Nitsche e José Resende. Como vimos, os organizadores apoiaram-se em profissionais gestores e críticos vindos do Rio de Janeiro e de São Paulo para alçar o evento. Contudo, as ambições naufragaram muito rapidamente, e episódios que marcaram o IV SAMB podem nos ajudar a entender a dinâmica entre salões e o sistema “vigiado” das artes no período. Do conjunto de obras apresentadas para seleção da quarta edição, nada sabemos sobre aquelas que não foram selecionadas para a exposição de premiação. Reunidos nessa seleção estavam vertentes que disputavam em outros centros culturais do país, espaço e visibilidade, tanto da crítica especializada quanto do público. Obras de caráter construtivo ou abstrações identificadas como informais estavam presentes. A experimentação de novos materiais encontrava-se com a pintura figurativa de contornos contemporâneos e regionais. Do ritmo regular das linhas de Aberlado Zaluar, premiado por sua obra Sem Título na categoria desenho, às formas orgânicas do trabalho de Anna Bella Geiger, premiada em gravura, passando pelos bois de Humberto Espíndola e os bólides de Hélio Oiticica, o salão participou de uma longa lista de exposições que paulatinamente foi consolidando o que hoje chamamos de arte contemporânea, e ao mesmo 149 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES tempo, acolheu os “últimos modernos”, artistas dedicados à manutenção do vocabulário modernista, vigente em muitas regiões do país. Embora a variedade de encontros estéticos no salão expressasse as diferentes temporalidades visuais que afetavam a produção artística brasileira, o salão, aberto em 14 de dezembro de 1967, ocupando as galerias do Teatro Nacional Cláudio Santoro, não deixou de expressar os debates em torno da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada em abril daquele mesmo ano, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A mostra carioca fora um marco importante para compreensão de como artistas e críticos visualizavam as heranças construtivas diante da ascensão das novas vanguardas, cujo dilema estético voltava-se para um contexto político adverso, para a industrialização e urbanização crescentes e para as amarras promovidas pelo subdesenvolvimento. Meses depois, a exposição do IV SAMB estava afetada pelas questões colocadas pela mostra do MAM-RJ. Em especial, sobre as necessidades de pensar uma arte potencialmente revolucionária, em sua dimensão político-social, e a reorientação do lugar do espectador como elemento ativo, participador direto da obra de arte. Os nomes comuns às duas exposições nos oferecem uma pista do quanto o debate presente nos centros culturais hegemônicos de então (Rio de Janeiro e São Paulo) haviam desembarcado no salão brasiliense: Helio Oiticica, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Carlos Zílio, Anna Maria Maiolino, Marcelo Nitsche, Antonio Manuel, Maria do Carmo Secco e Gastão Manuel Henrique. A este grupo podemos incluir artistas que comungavam das mesmas preocupações, embora com soluções plásticas distintas, como Claudio Tozzi, Teresinha Soares, José Roberto Aguilar, Luiz Alphonsus, Antonio Henrique Amaral, entre outros. É nessa perspectiva, que diferentes “realismos”, então matizados pelas influências da arte pop estadunidense e das novas figurações europeias chegaram a Brasília em obras de artistas ideologicamente tão diferentes quanto Marcelo Nitsche, com sua obra de acrílica e espuma de borracha sobre PVC, chamada Mão (1967), e Henrique Leo Fuhro, com sua pintura acrílica, sem data e sem título, de um caráter pop mais intimista. Numa outra parte do salão tínhamos artistas oriundos de outros centros ex-cêntricos do Brasil que estavam mais ou menos próximos aos problemas debatidos em Nova Objetividade Brasileira, ou exposições emblemáticas anteriores, como Opinião 65, também no MAM-RJ, e Propostas 65, na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. Ambas de 1965. Artista como Clodomiro Lucas, Juarez Paraíso, Helena Wong, Vera Chaves Barcellos, Humberto Espíndola, Eli Heil, Emanoel Araujo, Rubem Valentim, Jorge Carlos Sade, entre outros. Neste hemisfério mais difuso, no qual encontramos a pintura primitiva, a abstração informal e um forte vocabulário modernista, os artistas oriundos de Pernambuco se destacaram. Não apenas pela presença, quantitativamente relevante, mas pelo acesso aos prêmios e pelas configurações históricas que os levaram ao IV SAMB. Wellington Virgolino, Montez Magno, Anchises Azevedo e João Câmara participaram do salão e os dois últimos foram premiados. Ao lado de Maria Carmem, Jorge Tavares, Jamie Delano e Liedo Maranhão, o grupo estava ligado ao Ateliê+10, um importante 150 EMERSON DIONISIO espaço-grupo criado em Olinda, em 1965. A presença dos artistas no salão coroava um ano de circulação de suas obras para além das fronteiras pernambucanas. Em maio de 1967, juntamente com Abelardo Hora e Gilvan Samico, os artistas expuseram no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo num projeto chamado “Oficina Pernambuco”, a convite de Walter Zanini. O mesmo Zanini que comporia no segundo semestre o corpo jurado do salão e que, portanto, conhecia de perto o trabalho dos artistas. A premiação de Anchises para pintura e João Câmara para o Grande Prêmio pode ter tido em Zanini um defensor particular, mas não explica por que os jurados, intimamente ligados aos debates das novas vanguardas, preteriram artistas mais conhecidos dos grandes centros. Uma aproximação cuidadosa dos argumentos instituídos pelo júri lembra-nos, por exemplo, que as Propostas Suprasensoriais, três bólides, de Hélio Oiticica foram preteridos em favor de João Câmara: O júri do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, ao deliberar sobre a concessão do Grande Prêmio regulamentar, deparou-se com alguns nomes de artistas que se impuseram, de imediato, ao seu julgamento. De um lado, Hélio Oiticica; de outro, o grupo de pintores pernambucanos, João Câmara Filho e Anchises Azevedo. Hélio Oiticica, artista carioca de profundas raízes urbanas, representa a vanguarda, em suas intervenções mais originais e aberturas experimentais mais desinibidas, sendo também considerado, hoje, um dos pioneiros do mundo da arte ambiental e sensorial. O júri não podia deixar de cogitar de seu nome para o Grande Prêmio. Em face dele, a representação pictórica de Pernambuco traz uma nota nova ao Salão: Câmara, contribuindo para a pintura brasileira com um elemento que lhe faltava: o rigor descritivo do protesto social. Anchises, com seus rolos de papel pintado é a transcrição pictórica poética, numa linguagem mais depurada, ambiência da paisagem nativa e mental de Pernambuco. Da perspectiva de Brasília, o Júri terminou por fixar-se na contribuição pernambucana que assim se integra no ecúmeno da arte brasileira.5 O prêmio de pintura a Azevedo e o Grande Prêmio a Câmara – além da menção especial a Welington Virgolino – estão matizados por um sutil sentido do que venha ser a “pintura brasileira”, particularmente diferente das “profundas raízes urbanas”. Mesmo passando pela VIII Bienal de São Paulo, em 1965, estranhamente Anchises parecia ser uma aposta na pintura que conciliava o primitivo e as reverberações da tradição construtiva da década anterior. Enquanto Câmara fora tratado como um jovem artista cuja carreira era evidentemente promissora, ele havia deixado de ser uma promessa. Câmara vinha de duas bem sucedidas participações em eventos importantes. Contrariando críticos e artistas como Antônio Dias e Rubens Gerchman, o jovem artista de Pernambuco, com apenas vinte e dois anos, fora escolhido para representar o Brasil na III Bienal Americana de Córdoba, na Argentina, em 1966.6 Premiado naquela bienal, o artista, ainda, recebeu o prêmio aquisição na I Bienal de Arte da Bahia, no mesmo ano. Sua obra, portanto, já havia sido diretamente bem avaliada por críticos como Clarival do Prado Valladares, Mário Schenberg, Arnold Bode, Aldo Pelegrini, Mário Pedrosa, e o todo poderoso diretor fundador do Museu de Arte Moderna de Nova York, Alfred Barr. Mais que um nome reconhecido, Câmara mandara para o salão uma obra excepcional: Exposição e Motivos de Violência, um tríptico de 190 x 480 cm, de óleo sobre 151 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES madeira com elementos em relevo. Para a mídia da época, era uma evidente, porém sutil, crítica à ditadura militar. Sensível à obra, o júri havia decidido premiá-la “pela violência e agressividade de sua mensagem pictórica, em si mesma de autêntica plasticidade, conferindo à pintura brasileira um elemento novo, ou seja, o vigo descritivo do protesto social”. E confirmava o duelo que havia se estabelecido dentro do salão, “preterindo assim, a trilogia suprassensorial, apresentada por Hélio Oiticica, agraciado com uma referência especial7”. Visto de outra forma, além de responder às demandas de uma arte crítica e politicamente orientada, Exposição e Motivos de Violência cumpria outros critérios artísticos naqueles anos. Tratava-se de uma obra que correspondia perfeitamente às ansiedades das novas figurações, com elementos expressivos oriundos do vocabulário fantástico de matrizes populares, com a presença de uma maquinaria urbana, mas que, ao mesmo tempo, apresentava “o valor autônomo da arte regional brasileira”, como bem definiu Ferreira Gullar na época.8 Ou seja, a obra unia de alguma forma as discussões de vanguarda oriundas dos grandes centros culturais e uma tradição “regional” reconhecível pelo resto do país. Por outro lado, a inquietação permanece. Não é simples compreender o porquê de o júri ter preterido Oiticica, visto que, sob a orientação de Frederico Morais, o IV SAMB foi uma exposição-evento que se dedicou a discutir o limite da escultura abertamente com um seminário dedicado ao assunto. E mais, foi o primeiro evento desta natureza a incluir em seu regulamento a presença da categoria “objeto” no Brasil. Categoria na qual os bólides de Oiticica poderiam confortavelmente ser aceitos, assimilados e, talvez, premiados. O Salão dos confrontos Uma semana após a abertura da exposição com obras selecionadas e premiadas no Salão, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) solicitou a Alexandre Torres, organizador do evento, que retirasse obras com mensagens políticas e apelo sexual. Embora o pedido tenha sido oficialmente genérico, as obras que causaram desconforto retratavam Che Guevara. Eram quatro pinturas: Vivo ou Morto, de Cláudio Tozzi; Ele, de José Roberto Aguilar; Só e 1.000.000.000,00, de Rubens Gerchman; todas produzidas no mesmo ano do salão. Representar o guerrilheiro-herói, ícone das esquerdas, dois meses após sua morte, certamente, era uma mensagem incômoda para o Regime Militar da época. A exposição não foi fechada, nem as obras foram retiradas oficialmente. Todavia, duas semanas após a abertura da mostra, um grupo de ativistas de direita invadiu as galerias do Teatro Nacional e danificou as obras, num ato que demonstrava a tensão existente um ano antes da instituição do AI-5. Embora importante para compreender as adversidades políticas daqueles anos, o evento que marcou a história da arte no salão possui elementos mais cômicos e estéticos que necessariamente estritamente políticos. Graças a um porco empalhado, enviado 152 EMERSON DIONISIO ao júri do 4º SAMB pelo então jovem artista Nelson Leirner, o evento tornou-se um dos exemplos da difícil relação entre a produção artística contemporânea e o sistema de distinção oferecido pelos salões. A inscrição de O Porco Empalhado, como explica o artista, tinha uma finalidade provocativa. Contudo, o corpo jurado, chefiado por Mário Pedrosa, aceitou-o, o que levou o artista a questionar, em uma nota publicada em 21 de dezembro do mesmo ano pelo Jornal da Tarde de São Paulo, os critérios adotados pelos jurados para incluí-lo9. O jornalista Ivan Angelo perguntava: “O artista Nelson Leirner quer saber por que o porco foi aceito como obra de arte”. Pelo modo como o fato é recorrentemente lembrado pela história da arte brasileira, a polêmica foi suficientemente conhecida para colocar na defensiva uma considerável parte dos críticos aligeirados como jurados de salões num momento em que muitos desses eventos foram extintos ou passaram por crises debatidas com timidez em pleno regime militar. Exemplo pontual disso é que na curta história dos SAMBs, as críticas realizadas em Brasília foram, em geral, conservadoras: É um tal de artista colecionar tampinhas de cerveja, plásticos coloridos, objetos inusitados como máscaras contra gases (vide III salão) e outros sem valor como molas velhas, rolhas, etc. Tudo isto muito bem disposto em tela para se ter a impressão de que se trata de Pintura. E nós que apreciamos arte moderna, chegamos a dar razão àquele refrão popular do ‘assim até eu faço’. Mas o III Salão trouxe uma vantagem: se 99% não entendiam de arte, podemos ter certeza de que, agora, já 100% não a entendem.10 A pesada crítica de Laet, dedicada ao salão anterior, mostra-nos que, embora houvesse um esforço de alguns segmentos das artes visuais na cidade para transformar o SAMB numa referência nacional, alinhado às prerrogativas das neovanguardas que surgiam em outras capitais do país, o caso do “porco” deixou evidente que em poucos “guetos” no Brasil estavam claros os limites das experimentações em arte. O Porco Empalhado era um objeto em que literalmente o público poderia se deparar com o animal empalhado dentro de um engradado de madeira. Segundo o artista, o problema surgiu quando a obra foi exposta incompleta. Deveria constar um pernil defumado amarrado no pescoço do porco, pernil este que não sobreviveu à viagem até a capital federal. A obra pertencia à série de trabalhos que discutia a transformação dos materiais em arte e suas experimentações. Para o salão, Leirner enviou, além do porco, outro trabalho que “consistia em um cepo de madeira onde percebia o desenho de uma cadeira dele retirada. Acoplada do tronco, a cadeira”.11 A relação entre a madeira e a cadeira seria a mesma entre o porco e o pernil defumado, uma relação que evocava dentro da arte as relações de derivação, “Explicitando todo o processo de manipulação que a indústria faz dos elementos da natureza por meio de duas operações sempre presentes em seu raciocínio plástico/conceitual – apropriação e justaposição”.12 Desta forma, para o artista, a apresentação do porco empalhado sem o desdobramento industrial não fazia sentido. O questionamento de Leirner, traduzido por Angelo, nas semanas seguintes ganhara desdobramentos maiores. Como nos esclarece Agnaldo Farias, o artista “tornou-se o 153 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES primeiro não recusado de um salão a indagar ao júri, pelo jornal, sobre quais tinham sido os critérios utilizados para sua seleção”13. Em texto intitulado “Brasília: o júri montou no porco”, assinado pelo crítico Geraldo Ferraz, percebe-se a dimensão do debate nas semanas seguintes a abertura do salão: “Não ocorrera ao juvenil organizador do Salão de Brasília, Sr. Frederico Morais, que aquilo podia ser uma provocação, mas era. E nada tinha a ver com a tal inversão de verbas do povo – sofrido e esquecido povo – em assuntos culturais como essa mirabolante Salão”.14 A reação do júri do IV SAMB gerou um debate que levou meses e, na incipiente cena artística daqueles anos e sob o olhar atento do Regime Militar, instituiu novos parâmetros para a relação entre artistas, críticos, instituições e salões. Os argumentos foram colhidos nas narrativas oficiais da história da arte para refutar os ataques, como demonstra exemplarmente a resposta de Pedrosa: Esperava Nelson Leirner que o júri a tivesse recusado? Por que não tinha valor plástico? Por que não era ‘uma obra de arte’? Por que não fora ‘criada’ ou não tinha originalidade? Mas se trata de um ‘porco empalhado’, alguém o empalhou. Empalhar animais é uma arte reconhecida e apreciada, a taxidermia. É também Nelson perito nela? Mas se ele apenas comprou o porco empalhado engradado e mandou a Brasília, a obra cai na categoria dos ready¬-made à la Duchamp. Queria o jovem artista que o Júri fosse negar validez (ainda reconhecendo seus precedentes) a essa proposição, uma das mais ricas de conseqüências, que se bolaram desde Dada, no mesmo contexto de desmistificação cultural e estética? (...) Na arte pós-moderna, a idéia, a atitude por trás do artista é decisiva15. A resposta de Pedrosa, invocando aquele que seria o “pai” da arte contemporânea, não poupou o SAMB do descrédito e da extinção, vitimado pela censura e pelos difíceis anos pós-1968, sobretudo, na capital federal16. Leirner esclareceu anos depois sobre o evento, que passou a chamar de happening da crítica: Ia ser um trabalho político. Era um porco empalhado numa grade e tinha uma corrente no pescoço e acompanhava um presunto que foi consumido no caminho; comeram o presunto e deixaram só a corrente. Essa era a obra. Mas havia um conceito por trás do trabalho. Era a relação entre o produto industrializado, que era o presunto, e a forma bruta, que era o porco. E a idéia era o porco ir a Brasília. Aceito ou não, ele voltaria, e quando ele voltasse – eu já tinha combinado com um amigo meu – eu iria condecorar o porco por sua ida. Agora, como o porco foi aceito, me bateu aquela luz de falar com o Ivan Angelo (...). Aí causou toda uma polêmica, porque parte do júri começou a justificar por que tinha aceitado, outra parte disse que não tinha compartilhado da decisão. As pessoas começaram a escrever coisas sobre o júri, dizendo que eles não entendiam de arte. E foram três meses de artigos sobre o júri, e eu e o meu trabalho desaparecemos de cena17. Hoje a obra de Leirner, o debate sobre o porco e as implicações estéticas e artísticas desse embate são os elementos basais que explicitam a importância da exposição-evento apresentada na quarta edição do Salão de Arte Moderna de Brasília. De fato, o salão de 1967 pode servir de exemplo para uma série de outros salões que iriam provocar tanto o estado autoritário pós-1964, quanto às instituições de arte. Outras exposições-eventos como a II Bienal de Arte da Bahia (1968) e o III Salão de Ouro Preto (1969), 154 EMERSON DIONISIO censurados pelo regime militar, os polêmicos Salão da Bússola (1969) e II Salão de Verão (1970), ambos no Rio de Janeiro, exemplificam a potência dessas “efemérides” e seu impacto na constituição crítica da recente história da arte. Estas exposições foram criadas dentro de um regime de distinção secular, que serviram de espaço de encontro entre as novas experimentações e os “últimos modernos”. 155 Notas 1 Provavelmente isso explique porque pouco mais de cinquenta por cento dos selecionados para a quarta edição do salão no Distrito Federal também estivessem presentes na nona edição da Bienal de São Paulo. 2 MOULIN, R. O mercado da arte: mundialização e novas tecnologias. Porto Alegre: Zouk, 2007. 128 p. 3 GUARILHA, H. X. A questão artística de 1879: polêmica da crítica de arte o segundo reinado. 2005. Dissertação (Mestrado em História da Arte) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas. 4 No MACC, em 1975, o próprio sentido de salão foi colocado em questão, quando se optou por convidar artistas já renomados para projetar imagens em slides de suas obras e debater com um “júri” de críticos e o público. O salão passou a ser uma aula-crítica. ZAGO, R. C. de O. M. Os salões de arte contemporânea de Campinas. 2007. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. 5 VALADARES, C. do P.; PEDROSA, M.; MORAIS, F.; BARATA, M.; ZANINI, W. Declaração dos princípios do Júri, assinada. Belo Horizonte: C/Arte, 1997. 6 LOPES, A. da S. João Câmara: o revelador de paradoxos políticos-sociais. São Paulo: Edusp. 1995. 7 SALÃO do DF. O Estado de São Paulo, 20 dez. 1967. 8 apud LOPES, A. da S. João Câmara: o revelador de paradoxos políticos-sociais. São Paulo: Edusp. 1995. 9 LOPES, F. A experiência Rex: éramos o time do rei. São Paulo: Alameda, 2009. 10 LAET, R. O rei está nú! Correio Brasiliense, Brasília, DF, 10 nov. 1966. 11 CHIARELLI, T. Nelson Leirner: arte e não arte. São Paulo: Takano, 2002. 12 Idem. 13 FARIAS, A. O fim da arte segundo Nelson Leirner. In: LEIRNER, N. Catálogo da mostra retrospectiva. São Paulo: Paço das Artes, 1994. 14 O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo: Grupo Estado, 28 jan. 1968. 15 PEDROSA, M. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In: FERREIRA, G. (Org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p. 210. 16 MORAIS, Frederico. Artes plásticas – a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.101; LAET, R. O rei está nú! Correio Brasiliense, Brasília, DF, 10 nov. 1966. Para Figueiredo o problema estava na administração precária dos salões: “A Fundação funcionava num pequeno barracão, improvisado no Eixo Monumental. E a carência de instalações apropriadas e alguns problemas com censura, levaram-na a interromper esses salões”; FIGUEIREDO, A. Artes Plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: UFMT, Museu de Arte e de Cultura Popular, 1979, p.19. 17 REVISTA DO SESC-SP. São Paulo: SESC, n. 78, nov. 2003. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/ revistas/revistas_link_home.cfm?Edicao_Id=170&breadcrumb=2&tipo=3>. Acesso em: 14 jun. 2007. 1970. Do Corpo à Terra: exposição-limite Artur Freitas Ocorrida em Minas Gerais no ápice da repressão militar no Brasil, em abril de 1970, Do Corpo à Terra foi, mais que uma exposição de arte, uma experiência-limite: uma manifestação paradigmática que sintetizou as angústias e os desejos libertários de uma geração comprimida pelo Ato Institucional número 5, o AI-5. No âmbito da vanguarda nacional, o evento mineiro radicalizou as articulações entre linguagem experimental e resistência política, dando sequência aos debates já presentes em diversas exposições realizadas entre 1965 e 1969, logo nos primeiros anos de ditadura, como Opinião 65, Opinião 66, Propostas 65, Propostas 66, Nova Objetividade Brasileira, Salão de Brasília de 1967, Salão de Ouro Preto de 1968 e Salão da Bússola. Desde então, semeada pelo criticismo de uma arte conceitualista, performática e comportamental, Do Corpo à Terra se tornou, no imaginário da arte contemporânea brasileira, não apenas um evento-chave para a compreensão de uma época, mas uma verdadeira reserva de utopia para um futuro mais livre e promissor, porque foi baseado na crença de que as escolhas estéticas fossem também escolhas políticas capazes de transformar a existência como um todo. Na origem, contudo, o evento não passava de uma exposição de arte planejada para ocorrer durante a inauguração de uma importante instituição museológica de Belo Horizonte, o Palácio das Artes, em 1970, como parte das festividades cívicas da tradicional Semana da Inconfidência, realizada em memória do movimento político da Inconfidência Mineira. Responsável pela coordenação artística da instituição, a crítica de arte Mari’Stella Tristão, então diretora do setor de Artes Plásticas do próprio Palácio, convidou o influente crítico Frederico Morais, então residente no Rio de Janeiro, para organizar as atividades. Uma vez convidado, Frederico teve liberdade para, entre outras coisas, escolher um pequeno grupo de artistas a fim de participar da inauguração, ainda que alguns deles eventualmente residissem fora de Minas Gerais. Para tanto, o evento teve patrocínio direto da empresa estatal Hidrominas. De acordo com um documento distribuído na ocasião, cada um dos artistas convidados recebeu um valor de NCr$300,00 para a realização de seus trabalhos, e contou com um apoio extra relativo a transporte terrestre – ônibus ou trem – e hospedagem – de HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES cinco dias no máximo1. Para os padrões da época, os valores financeiros disponíveis eram baixos, mas ainda assim significativos: segundo Frederico Morais, Do Corpo à Terra teria sido o primeiro evento da história da arte brasileira em que os artistas convidados receberam passagem, hospedagem e ajuda de custos não para exporem obras concluídas, mas para realizarem ações diretamente no local.2 Com orçamento restrito, a divulgação do programa não contou com nenhum catálogo ou cartaz, e se limitou à distribuição de volantes “nas ruas da cidade, no Mineirão, nos cinemas, etc”.3 Naqueles dias, o texto mais importante a circular entre os participantes do evento foi o “Manifesto Do Corpo à Terra”, de Frederico Morais. De acordo com o crítico, o texto, escrito em Belo Horizonte no dia 18 de abril de 1970, circulou inicialmente entre artistas e jornalistas por meio de cópias mimeografadas, tendo sido publicado em seguida no jornal Estado de Minas, por intermédio de Mari’Stella Tristão.4 Escrito em tom polêmico e libertário, o manifesto não apenas defendia a aproximação entre arte e vida, tema central para as vanguardas, como inclusive cobrava dos museus de arte uma postura ativa no processo de alargamento da experiência estética. Além disso, como veremos em várias ocasiões, o texto dialogava direta ou indiretamente com parte considerável das ações artísticas realizadas em Belo Horizonte, revelando assim uma notável partilha de ideias e desejos entre crítico e artistas. Intitulado Do Corpo à Terra, o evento mineiro, como hoje se sabe, foi na realidade a soma de duas ações simultâneas, ambas coordenadas por Frederico Morais entre os dias 17 e 21 de abril de 1970. A primeira delas, nomeada justamente Do Corpo à Terra – e por isso mesmo muitas vezes confundida com o evento como um tudo –, consistiu numa rede de manifestações poéticas radicais efetuadas sobretudo no Parque Municipal de Belo Horizonte, situado logo ao lado do Palácio das Artes, no centro da capital mineira; ao passo que a segunda ação, intitulada Objeto e Participação, foi uma exposição coletiva montada nas dependências do próprio Palácio. Assim, tendo em vista as diversas dimensões institucionais, ideológicas e poéticas de Do Corpo à Terra, dividirei a análise da exposição em três tópicos fundamentais, cada qual dedicado às principais linhas de força das ações realizadas em Belo Horizonte, começando com a mostra Objeto e Participação, de teor museológico, passando pelas obras de viés cartográfico, situadas em espaços externos ao Palácio das Artes, para em seguida finalizar com as intervenções mais radicais do evento, baseadas numa estética guerrilheira, característica da chamada geração AI-5. Objeto e Participação: a anti-arte no museu Em linhas gerais, a mostra Objeto e Participação teve origem em uma curiosa convergência de fatores. No final dos anos 1960, a crítica de arte Mari’Stella Tristão acumulava funções de destaque no campo institucional da arte em Belo Horizonte. 158 ARTUR FREITAS Além de diretora do setor de Artes Plásticas do Palácio das Artes no contexto de sua inauguração, Mari’Stella também era uma das idealizadoras do Salão de Ouro Preto. Criado em 1967, o Salão consistia em um evento artístico anual que, a cada edição, gravitava ao redor de um meio expressivo específico, como o desenho ou a pintura, por exemplo. De acordo com o sistema de rodízio, o IV Salão de Ouro Preto, previsto para ocorrer excepcionalmente em Belo Horizonte, no nascente Palácio das Artes, em 1970, deveria se concentrar na linguagem da escultura. Convidado por Mari’Stella para organizar o Salão daquele ano, Frederico Morais resolveu, de saída, expandir o conceito de escultura, substituindo-o pelo de objeto5. Longe de um capricho individual, a decisão do crítico se orientava, àquela altura, pela tendência geral, típica na vanguarda brasileira e internacional, de questionar os limites estéticos entre os meios expressivos tradicionais. Da “Teoria do Não-Objeto”, de Ferreira Gullar, à exposição Nova Objetividade, de 1967, o conceito de objeto condensava, no âmbito da vanguarda brasileira dos anos 1960, a possibilidade de ampliação dos limites sensoriais e políticos da obra de arte. Para além “do quadro e da escultura tradicionais”, afirmou Hélio Oiticica, em célebre texto de 1968, uma obra de arte era agora um “environment ativo”, que importava “na vivência e nas probabilidades gerais dos comportamentos”6. Dois anos depois desse texto, agora em pleno AI-5, o “Manifesto do Corpo à Terra” teve o efeito de recuperar o objeto como uma categoria estética essencialmente humanista, porque adaptada à urgência existencial e política dos novos tempos. Em convergência com Oiticica, Frederico assim resumiu o momento atual: Não existe mais separação entre a realidade externa e a realidade do quadro. O que deixou de existir foi a estrutura da representação. A tela rompe com a moldura, o suporte vira espaço e ampliandose serpenteia pela parede, até despencar-se no chão, espaço real. [...] É o reino do objeto, que é apresentado e não representado. Objeto modificado, seriado, transformado, acumulado, prensado, acrescentado, aterrorizado, mumificado, destruído, comprimido, reaproveitado, somado, dividido, multiplicado. Objeto enigmático. [...] Trata-se, agora, de uma busca de expressividade em si mesma, de uma linguagem objetiva. Mais do que isso: o objeto corresponde a uma nova situação existencial do homem, a um novo humanismo.7 Nesses termos, é possível dizer que o IV Salão de Ouro Preto, então substituído pela mostra Objeto e Participação, foi fruto de uma resposta particular de Frederico Morais ao problema mais geral do objeto. Ancorada, portanto, num envolvente debate de época, a decisão do crítico de trocar a escultura por um conceito mais abrangente acabou orientando a exposição mineira para um questionamento geral das categorias estéticas tradicionais. Ao invés de esculturas ou pinturas, o que se viu na mostra Objeto e Participação foram propostas artísticas afinadas com o imaginário expansivo das vanguardas, fosse por meio da superação das linguagens específicas, fosse pelo estímulo à participação do espectador, ali incluída a problematização do próprio ato expositivo. Para alguns dos artistas presentes na exposição, a questão do objeto passava pela reelaboração da tradição construtiva brasileira, mais ou menos nos moldes dos pri159 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES meiros momentos do neoconcretismo. Alfredo José Fontes, por exemplo, apresentou engradados de madeira pintados à mão. Nessas obras, a pintura artesanal e a sutil irregularidade das tábuas verticais salientavam, por contraste, a geometria regular dos engradados. Nem pinturas nem esculturas, as estruturas lembravam as grades de uma prisão. Em direção semelhante, Ione Saldanha explorou a ocupação do espaço pela cor por meio de suas conhecidas estruturas cromáticas feitas com bambus. Enquanto Franz Weissmann, por sua vez, construiu uma estrutura geométrica vazada, feita de arestas de retângulos incompletos e ortogonais; uma espécie de “labirinto linear”, nas palavras de Frederico Morais, ápice da ideia de “escultura como um desenho no espaço, mas também a consagração de outro conceito do artista: a escultura habitável”.8 Lidando com a massificação do comportamento humano na sociedade industrial, duas outras obras expostas na mostra inseriram a problemática do objeto no contexto narrativo mais amplo da pop art. A primeira delas, realizada em conjunto por Manoel Serpa e Manfredo Souzaneto, consistiu na apropriação monumentalizada de simples grampos de roupa, em antecipação ao gigantesco pregador pop de Claes Oldenburg, inaugurado em 1976, na Praça Central da Filadélfia. Na outra obra, o artista Carlos Vergara recortou em papelão corrugado seis homens enfileirados em perfil, numa clara alusão a corpos humanos massificados, como se construídos em série. A esse respeito, embora não tenha se referido abertamente à proposta de Vergara, uma passagem do “Manifesto do Corpo à Terra” pode ser bastante esclarecedora. Nela, Frederico destacava “o ser como um objeto, coisa abjeta. O homem como mercadoria na sociedade mercantil. O objeto é a casca, sua imagem, a embalagem. A caixa de papelão, o homem de papelão. Lixo industrial – e é da sobra que vivem os países periféricos, como de resto, frequentemente, o artista”9. Além disso, os homens de papelão de Vergara também se apresentavam como um batalhão de soldados em posição de sentido, talvez em referência indireta à ideologia da segurança nacional, cara à ditadura militar. Como um desdobramento possível da questão do objeto, algumas obras da exposição demandavam a experiência de outros sentidos, para além da contemplação visual. Exemplar a esse respeito foram as caixas olfativas de José Ronaldo Lima, que consistiam em longilíneas estruturas retangulares de madeira repletas de materiais perfumados que convidavam os espectadores a tocá-las e cheirá-las. Estimulado pelas propostas plurissensoriais de Oiticica, o “Manifesto do Corpo à Terra” não deixou de se referir à importância, na experiência aberta da arte de vanguarda, do uso deliberado de “um código tátil-olfativo. Uma gramática gustativa. Uma linguagem acústica”. Para Frederico, a esse respeito, “os demais sentidos determinam espaços circulares, e por isso mesmo dinâmicos. A mão que apalpa, o corpo que anda, o olfato – imaginar. E participar”.10 Em pauta na arte brasileira desde pelo menos o neoconcretismo, a participação do espectador na obra de arte seguia em alta em 1970, e se baseava na crença de que o público estaria disposto a assumir, diante de propostas artísticas abertas, uma postura ativa e criadora. Ao menos foi assim com Terezinha Soares, que convidou os espectadores da exposição para se deitarem sobre três camas dispostas sobre o chão de uma sala 160 ARTUR FREITAS do Palácio das Artes. Em forma de caixa, cada peça tinha um colchão em seu interior e poderia ser utilizada por um visitante de cada vez. Além disso, em alusão, talvez, ao repouso do corpo brasileiro, a obra contrapunha participação à alienação política por meio de referências diretas ao universo futebolístico nacional. Pouco mais de um mês depois de Do Corpo à Terra, em 31 de maio de 1970, teria início a Copa do Mundo do México, que seria vencida pelo Brasil de Pelé, em plena era Médici. Não admira, a esse respeito, que as três camas de Terezinha, de acordo com Frederico Morais, apresentassem “as cores de times de futebol, formas recortadas figurando jogadores e técnicos e um título trocadilhesco: Ela me deu bola”.11 Para outros artistas presentes na mostra, a dinâmica antiartística do objeto serviu para questionar a ideologia do ato expositivo, ali incluídos os dispositivos tradicionais de exposição, como o próprio museu. Umberto Costa Barros, por exemplo, abriu mão das salas de exposição do Palácio das Artes para realizar uma instigante instalação no subsolo da instituição. Como já fizera em outras ocasiões, o artista não transportou uma obra concluída para o interior do museu; ao contrário, servindo-se dos materiais industriais utilizados na construção do Palácio, Umberto recolheu restos de painéis, tapumes, tijolos, pedestais e escadas, para em seguida reordená-los no chão do subsolo. O resultado foi um cenário insólito mas pulsante, feito de materiais precários cuidadosamente equilibrados e distribuídos pelo espaço. Dilton Araújo, por sua vez, realizou duas operações que, no contexto da mostra Objeto e Participação, exigiam uma reflexão crítica acerca da noção de arte implícita na museologia tradicional. Na primeira delas, escreveu a frase “Uma possibilidade” ao lado de uma simples caixa de fósforos abandonada no recinto expositivo, em menção implícita, justamente, à “possibilidade” de queimar o museu e suas tendências conservadoras, como se fosse mesmo preciso atualizar, no contexto de radicalização política do presente, a urgência terrorista dos futuristas de outrora. Mais direta, a segunda operação consistiu na distribuição de um panfleto em que Dilton teorizava sobre o triunfo da vida cotidiana sobre a arte de museu: “Fazer arte ou chutar uma lata velha pela rua. Não que eu menospreze a arte, mas eu dou mais importância a chutar uma lata velha pela rua”.12 Para Thereza Simões, o museu de arte, na qualidade de aparelho ideológico, deveria funcionar como um legítimo veículo de comunicação política – uma espécie de amplificador cultural das vozes das minorias. Por intermédio de carimbos aplicados nas paredes, painéis e vidraças do Palácio das Artes, a artista reproduziu mensagens ideológicas de reconhecidos ativistas negros, como Malcolm X e Martin Luther King, além de palavras em tupi, em evidente alusão às lutas étnicas por direitos civis, típicas no cenário das novas esquerdas. De acordo com um depoimento de Thereza, Para Do Corpo à Terra, preparei uns carimbos com textos de Luther King e outros, de caráter político. [...] Meu objetivo era criar uma situação incômoda. Existia um carimbo maior no qual se lia Fragile e, com ele, eu mostrava a fragilidade que vivíamos naquela época.13 Em alguns casos, como se viu, o museu deveria ser tratado como um signo, ou melhor, como uma estrutura comunicacional que viabilizaria o contato entre os valores 161 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES da arte e os da vida social. Para outros artistas, contudo, a relação entre arte e vida seria ainda mais palpável, pois implicaria na contraposição deliberada entre os espaços concretos do museu e da cidade. George Helt, por exemplo, abordou o museu não como um espaço de separação entre a experiência estética e a vida da urbe, mas, ao contrário, como um lugar de passagem entre a agitação das ruas e a tranquilidade das salas de exposição. Para tanto, o artista desenrolou uma grande bobina de papel sobre o chão de entrada do Palácio das Artes, num movimento que conectava a calçada com o interior do museu. Sobre a faixa, que se estendia como um longo tapete, Helt caminhou com os pés descalços e entintados, deixando para trás uma trilha de pegadas que soava como um convite para que os transeuntes, percorrendo a trajetória sugerida, entrassem nas dependências do Palácio. Em outra obra situada na entrada do museu, Dileny Campos também propôs uma interpretação possível sobre a relação entre arte e cidade. Numa operação bastante simples, a artista apresentou duas placas de sinalização, ambas em forma de seta. A primeira delas apontava para a rua, em direção à avenida Afonso Pena, e continha a palavra “Paisagem”, como se sugerisse para os espectadores que também a cidade, e não apenas o museu, oferecia seus encantos particulares; ao passo que a segunda exibia a expressão “Sub Paisagem” e apontava diretamente para o chão, ou seja, para o próprio território do Palácio das Artes, numa clara avaliação crítica derivada do prefixo “sub” – como se o museu, com suas convenções institucionais, estivesse em desvantagem diante da vitalidade do ambiente urbano. Em todos esses casos, as obras pretendiam ativar o entorno do Palácio, buscando nos pedestres, e não apenas no público de museu, uma possibilidade de ampliação da experiência da arte. A vertente cartográfica: a paisagem como território poético Apresentadas como parte da mostra Objeto e Participação, as obras de George Helt e Dileny Campos indicavam que a questão do objeto, no contexto geral de Do Corpo à Terra, passava também pela possibilidade de recuperação estética do espaço da cidade. Para Frederico Morais, a experiência cotidiana das ruas e das praças deveria ser considerada não apenas pelos artistas de vanguarda, mas pela própria instituição museológica. No “Manifesto do Corpo à Terra”, o crítico defendeu abertamente esta postura, ao afirmar que É tarefa deste Palácio das Artes (verdadeiramente um museu de arte): mais que acervo, mais que prédio, o museu de arte é uma ação criadora – um propositor de situações artísticas que se multiplicam no espaço-tempo da cidade, extensão natural daquele. É na rua, onde o “meio formal” é mais ativo, que ocorrem as experiências fundamentais do homem. Ou o museu leva às ruas suas atividades “museológicas”, integrando-se no cotidiano e considerando a cidade (o parque, a praça, os veículos de comunicação de massa) sua extensão, ou será apenas um trambolho.14 162 ARTUR FREITAS Em julho de 1968, durante as manhãs e tardes dos fins de semana, Frederico já havia proposto a realização de um mês de arte pública no aterro do Flamengo, nos arredores do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Na ocasião, o crítico defendeu que “a arte é do povo e para o povo”, e que “para ser compreendida pelo povo”, ela “deve ser feita diante do povo, sem mistério. De preferência por todos, coletivamente”15. O evento resultante, conhecido como Arte no Aterro, contou com conhecidos artistas cariocas e consistiu num importante precedente às pretensões públicas de Do Corpo à Terra. Assim, como explicou Frederico Morais, da mesma forma que o Aterro do Flamengo havia sido considerado, em 1968, “como uma espécie de extensão do MAM”, também o Parque Municipal de Belo Horizonte, em 1970, situado ao lado do Palácio das Artes, foi considerado como uma continuidade possível do museu mineiro: “duas instituições culturais localizadas em dois grandes parques públicos, estimulando-se mutuamente”.16 Convidado por Frederico Morais para participar de Do Corpo à Terra, Artur Barrio apresentou em Minas Gerais uma proposta convergente com a ideia de ampliação pública dos espaços da arte. Na ocasião, o artista se posicionou em um ponto ermo do Parque Municipal, numa esquina rochosa do Ribeirão Arrudas, e ali desenrolou, solitário, sessenta rolos de papel higiênico. Como um desdobramento de propostas anteriores, a experiência, registrada pelo fotógrafo César Carneiro, foi a expressão direta de uma criatividade radicalmente individual: um balé improvisado em que o corpo e o papel reagiam à imponderabilidade do ambiente, em meio a lufadas de vento e pedras irregulares. Além disso, em concordância com algumas das mais recentes teses de Frederico, o caráter efêmero e precário da ação de Barrio era fruto de uma posição também política, porque ligada à positivação da arte em contextos subdesenvolvidos. De acordo com o próprio artista, suas ações na época se valiam de materiais baratos devido aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu alcance, mas sob o poder de uma elite que contesto, pois a criação não pode estar condicionada, tem de estar livre. Portanto, partindo desse aspecto sócio-econômico, faço uso de materiais perecíveis, baratos, em meu trabalho, tais como: lixo, papel higiênico, urina, etc.17 Eduardo Ângelo, por sua vez, preferiu dar vazão às possibilidades, igualmente imponderáveis, da criação compartilhada. Valendo-se, para tanto, da grande quantidade de frequentadores do Parque Municipal, o artista espalhou centenas de jornais velhos sobre a grama, na esperança de que o encontro do público com o chão de papéis pudesse instigar, por meio do ócio criativo, alguma forma espontânea de manifestação lúdica e, quem sabe, coletiva. Em outras situações, alguns artistas presentes em Do Corpo à Terra optaram não propriamente pelo uso do terreno do Parque Municipal, mas pela sua ocupação, ainda que apenas simbólica e temporária. Lótus Lobo, por exemplo, tomou posse de um pedaço do solo para nele dar início a uma plantação de sementes de milho. Como uma lavradora de ideias, a artista pretendia que sua ação não se esgotasse num gesto fugaz: o propósito inicial era acompanhar, para além das margens temporais do pró163 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES prio evento, o crescimento futuro do pequeno milharal. De acordo com Frederico Morais, entretanto, “os guardas de uma radiopatrulha, desconfiados, ficavam todo o tempo rondando o local pensando tratar-se de outra coisa – um ervanário”.18 Pressionada pelos policiais, Lótus Lobo abandonou seu canteiro poético, interrompendo a plantação. Ao fim e ao cabo, o saldo da ação foi melancólico: “as sementes não germinaram”.19 Outro caso de ocupação territorial frustrada foi o trabalho conjunto de Dilton Araújo – o autor da citada caixa de fósforos – e Luciano Gusmão. Juntos, os artistas cercaram algumas áreas do Parque Municipal, utilizando longas cordas presas em troncos de árvores.20 A ideia inicial, ao que parece, era que a trama resultante sugerisse uma reconfiguração simbólica das áreas isoladas, gerando “espaços de repressão e liberdade, de alienação e contemplação”21. O projeto, no entanto, foi sabotado de imediato: assim que os artistas cercavam uma área do parque, os guardas municipais, na retaguarda, encarregavam-se de desfazer o trabalho, desatando os nós. A ideia de intervenção poética na paisagem também esteve presente em outras obras, como a ação de Lee Jaffe e Hélio Oiticica, que consistiu em esparramar uma espessa trilha de açúcar na margem esquerda do quilômetro 3 da rodovia da Serra do Curral, em Minas Gerais, numa afastada área de extração mineral.22 Em contraste com a terra vermelha da região, o branco do açúcar brilhava a céu aberto, gerando uma faixa feérica de poucos metros, mas ainda assim visível à distância. No contexto de Do Corpo à Terra, esta operação, bastante isolada, foi a única a ocorrer fora do raio de ação do Palácio das Artes e do Parque Municipal. Mas além do autoisolamento, a obra também foi pensada para ser efêmera: o projeto original previa que a faixa de açúcar deveria ser inevitavelmente consumida por formigas. Numa abordagem tropicalista, a ação pretendia ilustrar, de modo irônico, um famoso prognóstico do naturalista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. A frase, que se referia aos estragos causados pelas formigas às lavouras dos antigos colonizadores, tinha o peso de uma referência antropofágica: para Mário de Andrade, em Macunaíma, os males do Brasil seriam, justamente, “muita saúva e pouca saúde”.23 Seja como for, o fato é que os tratores que trabalhavam na área de mineração acabaram passando por cima da trilha de açúcar, destruindo a obra antes de qualquer formiga. Em outro trabalho de caráter geográfico, o próprio Frederico Morais, saindo do papel de crítico de arte tradicional, propôs uma intervenção imagética no Parque Municipal intitulada Quinze lições sobre arte e história da arte.24 Instalada em espaço aberto, a obra de Frederico “consistiu na apropriação de quinze áreas que deveriam ser ‘vistas’ como quadros numa exposição”.25 Para realizá-la, o crítico pediu ao Maurício Andrés Ribeiro que fotografasse determinadas áreas do Parque Municipal. Reveladas, as fotos eram montadas sobre placas de madeira e implantadas bem à frente da área ou objeto fotografado. Cada foto era legendada com um texto que estabelecia um vínculo ou conexão significativa entre o conteúdo da imagem fotográfica e a obra de um artista de minha preferência – Constantin Brancusi, Piet Mondrian, Kasimir Malevich, Marcel Duchamp etc. [...] Na verdade, o que eu estava propondo era ler, na paisagem do parque, a própria história da arte universal e, em ambas, uma parte de minha história de vida.26 164 ARTUR FREITAS Por outras palavras, a obra de Frederico Morais em Do Corpo à Terra era composta de quinze placas fotográficas poeticamente legendadas, cada qual contendo uma imagem, justamente, do local do parque em que a própria placa estava instalada, provocando no transeunte uma reflexão não sobre a experiência estética em geral, mas sobre o lugar preciso em que esta ocorre, à maneira de um site-specific. Na prática, a intervenção do crítico contrastava o conceito de paisagem, de origem iconográfica, com o paisagismo do parque. Além disso, a proposta buscava um diálogo com a tradição artística do século XX, ao associar, com muita liberdade, determinadas “vistas” do parque com a poética de conhecidos artistas modernos. Para o crítico, a ideia da obra era um desdobramento direto das suas aulas de história da arte.27 Como se vê, Quinze lições sobre arte e história da arte ecoava uma série de pressupostos teóricos e ideológicos defendidos por Frederico Morais, como a inseparabilidade entre produção artística e crítica de arte, a superação dos suportes tradicionais por práticas ambientais e, sobretudo, a expansão da arte de museu para além dos limites especificamente institucionais. Este último aspecto, aliás, a que poderíamos chamar de vertente cartográfica, foi sem dúvida uma das maiores contribuições de Do Corpo à Terra, também visível, como vimos, nas ações públicas de Artur Barrio, Eduardo Ângelo, Lótus Lobo, Dilton Araújo, Luciano Gusmão, Lee Jafee e Hélio Oiticica. Desse modo, embora englobasse a mostra Objeto e Participação, o evento mineiro, sob a coordenação de Frederico Morais, pretendeu ampliar o próprio ato expositivo, carregando a experiência da arte, e com ela as exigências museológicas, para o território vivo da cidade. Ou como bem resumiu o crítico, O objetivo do museu é tornar-se invisível – pelo excesso de sua presença. Plano-piloto da futura cidade lúdica, o museu deve ser cada vez mais um laboratório de experiências, campo de provas visando à ampliação da capacidade perceptiva o homem, exercício continuado de seu instinto lúdico. Esta sala [o Palácio das Artes] e, em torno, o Parque Municipal são hoje áreas de liberdade – aqui a vida se faz plenamente.28 Arte de guerrilha Realizada em abril de 1970, Do Corpo à Terra ocorreu durante o auge da repressão militar no Brasil, em pleno governo Médici, um ano e quatro meses depois da promulgação do Ato Institucional número cinco, o arbitrário AI-5, que suspenderia os direitos civis por cerca de dez anos. Coincidindo, portanto, com os chamados anos de chumbo, o evento foi uma das expressões artísticas mais radicais de uma sociedade pressionada, de um lado, pelos ditames da censura, da tortura e do exílio, mas também aberta, de outro, às possibilidades utópicas da resistência política, da luta armada e da contracultura. Entre outros fatores, o radicalismo de Do Corpo à Terra foi um desdobramento direto da politização da arte de vanguarda, tal como se viu nos primeiros anos de ditadura. 165 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Dois meses antes do evento de Belo Horizonte, em fevereiro de 1970, o princípio de uma arte comportamental e politizada, dita guerrilheira, tomou corpo no influente artigo de Frederico Morais intitulado “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da ‘obra’”, publicado na revista Vozes, do Rio de Janeiro.29 Em linhas gerais, o texto defendia duas teses complementares: a positivação do subdesenvolvimento e o engajamento ético e anti-institucional. A primeira tese se resumia no elogio à arte pobre, improvisada e corporal dos artistas de países periféricos, em lugar da arte tecnológica dos países afluentes, ao passo que a segunda, igualmente combativa, defendia a obra de arte como uma manifestação pública e libertária, de caráter extra-museológico, performático e politizado. Para Frederico Morais, em resumo, O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada (pois tudo pode transformarse, hoje, em arma ou instrumento de guerra ou de arte) o artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano. Vítima constante da guerrilha artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos (o olho, o ouvido, o tato, o olfato, agora também mobilizados pelos artistas plásticos), sobretudo, necessita tomar iniciativas. A tarefa do artista-guerrilheiro é criar para o espectador (que pode ser qualquer um, não apenas aquele que frequenta exposições) situações nebulosas, incomuns, indefinidas, provocando nele, mais que o estranhamento ou a repulsa, o medo. E só diante do medo, quando todos os sentidos são mobilizados, há iniciativa, isto é, criação.30 Correndo em paralelo à luta armada no Brasil, a ideia de uma arte de guerrilha, baseada na introjeção do político na formatividade artística, ganhou força na geração AI-5, entre fins dos anos 1960 e início dos 1970.31 De um ponto de vista discursivo, o expediente poético mais agudo dessa geração talvez tenha sido a alegoria, entendida como uma montagem de metáforas sem valor a priori, baseada numa incompletude de sentidos, que, não obstante, reflete um modo individual de interpretação do contexto social. Aguçada pelos interditos da censura e introjetada na estrutura mesma das obras, a estratégia alegórica dos artistas guerrilheiros girou ao redor de três eixos fundamentais: identidade, resistência e liberdade.32 Coordenada por Frederico Morais pouco tempo depois do artigo “Contra a arte afluente”, Do Corpo à Terra acabou se configurando, pela soma de algumas ações pontuais, na mais notável manifestação coletiva da vanguarda guerrilheira no país. Como tal, o evento deu origem a diversas ações deliberadamente anti-institucionais, e por isso mesmo abertas à ocupação do próprio ambiente urbano. Em complemento às disposições da arte pública, há pouco mencionadas, as principais expressões desse viés presentes no evento ocorreram fora do Palácio das Artes, geralmente no Parque Municipal. José Ronaldo Lima, por exemplo, problematizou o conceito de esfera pública ao convergir, numa mesma obra, os espaços do parque, da imprensa e do grafite. Para tanto, em primeiro lugar, o artista mineiro enfileirou inúmeros jornais sobre o 166 ARTUR FREITAS chão de uma das áreas de lazer do parque. Cuidadosamente dispostos uns sobre os outros, os jornais formavam uma longa faixa curva e branca, que se situava no exato encontro entre o fim de uma calçada circular e o início do gramado. Armado de sprays coloridos, Lima aproveitou alguns intervalos na faixa de jornais para grafitar sobre o chão duas palavras pontuais, escritas de maneira singular: “[ver]melha e “[grama]tica”. Como numa poesia concreta, as subpalavras “ver” e “grama”, inseridas em retângulos, invocavam sentidos complementares – ver como um ato reflexivo, o gramado como espaço público ou algo do gênero. Embora sutis, tais invocações compunham a trama semântica de uma expressão política mais geral: a possibilidade mesma de uma “gramática vermelha”, ou seja, de uma língua universal que expressasse um desejo revolucionário, baseado na sempre iminente “ameaça comunista”. Não à toa, de acordo com Frederico Morais, alguns dos jornais enfileirados por José Ronaldo Lima traziam “manchetes sobre a revolução cultural da China e da Guerra do Vietnã”.33 Somados, jornais e grafites compunham uma montagem de mensagens ideológicas que exigia dos visitantes do Parque Municipal uma reflexão sobre as utopias da esquerda brasileira e internacional. Por outro lado, apesar do evidente predomínio de um imaginário de esquerda, a relação entre arte e política no Brasil não deixou de expressar as contradições vividas por uma sociedade militarizada. Caso exemplar a esse respeito foi a participação do artista e tenente-coronel Décio Noviello em Do Corpo à Terra. Como nos lembra Rodrigo Vivas, “Noviello era oficial do exército, fato que provocava a desconfiança tanto dos artistas quanto da corporação de que era membro”. Desse modo, se de um lado “o exército não entendia seu envolvimento com ‘baderneiros’”, de outro, os artistas também “sentiam-se desconfortáveis com a presença de quem pudesse ser um ‘agente da repressão’”.34 Entrevistado por Marília Andrés Ribeiro, o próprio artista esclareceu o teor de sua participação: Na manifestação Do Corpo à Terra eu trabalhei com fumaças coloridas. Fiz um happening de apropriação de toda a exposição, envolvi o Palácio das Artes com fumaça colorida, o que depois repeti no Parque Municipal. Na época, eu era tenente-coronel do Exército e aprendi como trabalhar com fumaça colorida. Essa manifestação foi uma marca profunda nas artes de Belo Horizonte. Houve uma maior aceitação da arte de vanguarda na cidade. Antes, tínhamos que fazer concessões, mas, a partir daquele momento, a crítica e os colecionadores passaram a olhar a vanguarda com bons olhos.35 Como se vê, Décio Noviello valeu-se, justamente, de sua experiência militar para propor uma obra, por isso mesmo, sintomática: utilizando sinalizadores de fumaça, à época de uso exclusivo das forças armadas, o artista explodiu granadas de cor em pleno Parque Municipal. Dispostos na parte superior de canos fixados no gramado, os sinalizadores, quando acionados, disparavam espessas cortinas de fumaça a céu aberto, preenchendo o ambiente com intensas irradiações de azuis e vermelhos. A ação foi acompanhada de perto sobretudo por crianças, o que evidentemente salientava a qualidade lúdica da transfiguração operada pelo artista: na contramão da 167 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES violência de um mundo aquartelado e opressor, Noviello propôs inofensivas bombas cromáticas, extraindo poesia e beleza de instrumentos militares. Em outra ação inusitada, o artista Luiz Alphonsus também se apropriou de materiais explosivos para salientar a violência de um mundo militarizado. Retomando o imaginário da esquerda internacional, o artista incendiou uma faixa de cerca de quinze metros de plástico em pleno Parque Municipal, numa referência alegórica, segundo ele mesmo, ao napalm utilizado na guerra do Vietnã contra as populações civis.36 O plástico, contorcido pelo fogo, grudou na grama e permaneceu queimando por horas a fio.37 De acordo com Luiz Alphonsus, Nossa atuação no evento “Do Corpo à Terra” mexeu não só com a capital mineira, mas com a arte brasileira. Aquela faixa que eu estendi sobre a grama e depois queimei era um acontecimento poético-planetário (marcar o chão, deixar um rastro de arte no planeta). Nós tínhamos uma autorização da Hidrominas, patrocinadora do evento, para trabalhar no parque, isto é, um apoio institucional, então, usei isso para transgredir as regras. Com o fogo apareceram bombeiros, pessoas querendo apagar o incêndio. Quase fui agredido pelo diretor do parque.38 Como se percebe, a ação do artista, por meio de uma notável introjeção política na formatividade da operação, aproveitou-se de um apoio institucional concreto para subverter, como um ato de terrorismo cultural, qualquer expectativa de contemplação e segurança. Próximos da terra ardente, os corpos dos visitantes do parque de fato não podiam se aproximar sem riscos de uma obra literalmente incendiária. Mas como a água ou a terra, o fogo, enquanto elemento natural, era também uma alegoria do medo como parte da existência: uma soma das metáforas vitais inerentes às transgressões de uma arte que se pretendia guerrilheira. Em convergência com o caráter ritualístico da proposta de Luiz Alphonsus, Frederico Morais assim resumiu a urgência da retomada de padrões quase ancestrais de experiência e criação: A terra. O corpo envolvido e envolvendo-se com os elementos naturais, com o estrutural básico da vida. O corpo reaprendendo tudo, como instrumento de uma nova cartilha. Aqui o ar-liberdade, aqui o fogo, o precário e eterno, aqui a água, que como a terra fecunda e procria.39 Para outros artistas, todavia, a interiorização formal de um mundo violento exigia uma leitura política mais localizada e pontual, porque orientada especificamente pela denúncia da repressão militar no Brasil, como no caso exemplar de Artur Barrio. Para Do Corpo à Terra, além da obra feita com papel higiênico, já mencionada, o artista realizou uma segunda ação no Parque Municipal, no dia 20 de abril de 1970. Na ocasião, Barrio arremessou anonimamente quatorze trouxas recheadas de carne bovina, ossos e sangue no Ribeirão Arrudas, dando origem a um evento público que extrapolaria os limites convencionais da própria arte. Boiando na superfície do riacho mineiro, as trouxas sangrentas foram acompanhadas por uma multidão de curiosos e acabaram atraindo a atenção inclusive do corpo de bombeiros e da polícia local. Na prática, ao simular a morbidez de corpos mutilados, a ação de Barrio evocou o abandono de restos humanos num rio, a popular “desova”, provocando uma 168 ARTUR FREITAS encenação pública em que os passantes reagiam ao saldo macabro e contrarrevolucionário dos grupos de extermínio, então atuantes.40 Desse modo, além da negação deliberada da arte como instituição social, as Trouxas Ensanguentadas, como ficaram conhecidas, funcionaram como uma forma de negociação entre as concepções estéticas de Barrio e a urgência de seus julgamentos a respeito da situação política no Brasil. Por outro lado, também é preciso ter em mente que as eventuais implicações éticas da obra não antecediam necessariamente o gesto que lhes dava origem. Longe de ilustrar um posicionamento ideológico a priori, a ação teve o efeito de deflagrar, ela mesma, um fato político, via de regra aberto e imprevisível. De acordo com o artista, o que aconteceu foi algo inesperado, dentro do contexto ligado à arte, porque aquilo ali era um espaço condicionado à arte, só que a repercussão e a ação foi como se não fosse. A repercussão está nos cromos que eu tenho até hoje, estão aí. Houve uma confluência enorme de pessoas no Parque Municipal no centro da cidade, no Riberão do Arruda. Veio a polícia, veio corpo de bombeiro. Foi um negócio completamente inesperado. [...] Depois disso, eu fugi no primeiro ônibus.41 No dia seguinte à intervenção de Barrio, uma outra obra, realizada por Cildo Meireles, também teve o efeito de abordar as atrocidades militares por meio de uma estética da violência, de cunho guerrilheiro. Manejando a morte como matéria-prima, a proposta do artista consistiu numa espécie de ritual macabro: um gesto-limite que, não obstante a perversão, ou talvez por ela mesma, tornou-se de imediato uma das mais impactantes ações da história da arte brasileira. Assim como na proposta de Luiz Alphonsus, a força simultaneamente literal e metafórica das chamas também esteve presente na ação de Cildo Meireles. Posicionandose numa área exterior ao Palácio das Artes, ao fundo do pavilhão de exposições, o artista, depois de derramar gasolina em dez galinhas vivas amarradas em um totem, ateou fogo nos animais, dando início a uma absurda fogueira. Intitulada Tiradentes: totem-monumento ao preso político, a ação, entre outras coisas, foi uma resposta direta ao cinismo político das forças da repressão. Como já se mencionou, Do Corpo à Terra fez parte das comemorações oficiais da Semana da Inconfidência, conhecido movimento revolucionário do século XVIII que teve na figura de Tiradentes, esquartejado pela coroa portuguesa, o seu maior símbolo. No cenário específico da ditadura militar, o clima de confronto entre Estado e sociedade civil acabou dividindo a memória de Tiradentes em duas vertentes simbólicas opostas, sendo uma à direita, como no caso da lei federal que declarava o alferes como “Patrono Cívico da nação brasileira”, e outra à esquerda, como no exemplo do conhecido grupo de luta armada Movimento Revolucionário Tiradentes.42 Diante dessa conjuntura, é compreensível que a ação de Cildo Meireles, realizada justamente no dia de Tiradentes, em 21 de abril, tenha se orientado pela denúncia direta das diversas formas de cooptação histórica da violência de Estado. Para tanto, o artista traçou uma analogia possível entre o tormento do alferes, hipocritamen- 169 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES te apropriado pelos militares, e o martírio sofrido pelos corpos dos opositores da ditadura. Ao encarnar a figura do algoz, Cildo, na prática, precisou violentar a si mesmo para enaltecer, por meio de um ritual de sacrifício, os militantes mortos pela repressão. Entretanto, se no rito tradicional é a vítima, destruída em sacrifício, que se consagra, já no caso de Tiradentes a consagração recaía sobre o “preso político”, como homenagem, e não sobre os animais imolados. Assim, embora violenta, a ação de Cildo Meireles pode ser entendida como uma resposta ritualizada que assumiu a forma de um sacrifício por substituição, ou seja, de uma cerimônia em que as vítimas imoladas substituem simbolicamente vítimas humanas.43 De qualquer modo, apesar da radicalidade ritualística sem precedentes, Tiradentes foi apenas o caso mais proeminente dentre as várias ações politizadas ocorridas em Do Corpo à Terra. Como o desdobramento mais agudo das vanguardas brasileiras, a arte de guerrilha posta em ação em Belo Horizonte consistiu no acirramento estético e ideológico das questões mesmas do objeto e da arte pública – ambas presentes, como se viu, em todo o evento mineiro, fosse na mostra Objeto e Participação, fosse nas ações realizadas no Parque Municipal ou mesmo fora dele. Apontamentos finais Menos de um mês depois de Do Corpo à Terra, no dia 9 de maio de 1970, o crítico de arte Francisco Bittencourt publicou, no Jornal do Brasil, a primeira reflexão abrangente sobre os propósitos gerais do evento mineiro.44 Intitulado “A geração tranca-ruas”, o texto destacou a presença de artistas que, seguindo “uma linha de pobreza e despojamento quase religioso”, entregaram-se “a um trabalho de desmantelamento de todos os cânones que regem as artes plásticas tradicionais”, repudiando “os salões com seus júris e prêmios”.45 Depois de uma rápida apresentação das principais ações realizadas em Belo Horizonte, Bittencourt elogiou a juventude e o radicalismo dos participantes de uma exposição “feroz e vital”, para em seguida dar voz, por meio de uma entrevista, ao próprio Frederico Morais. Perguntado por Bittencourt se Do Corpo à Terra seria uma nova Semana de Arte Moderna, Frederico foi taxativo: Mário de Andrade, 20 anos após a Semana, comentava em conferência que “nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”. Nós somos mais pretensiosos: se a nossa civilização está apodrecida, voltemos à barbárie. Somos os bárbaros de uma nova raça. Os imperadores da velha ordem que se guardem. Nosso material não é o acrílico, bem comportado, tampouco almejamos as “estruturas primárias” higiênicas. Trabalhamos com fogo, sangue, ossos, lama, terra ou lixo. O que fazemos são celebrações, ritos, rituais sacrificatórios.46 O evento mineiro, como se vê, foi apresentado desde muito cedo como a antevisão de uma nova era: o sintoma de um desejo coletivo marcado pelo retorno à liberdade pulsional e aos ritmos vitais, em lugar do racionalismo tecnocrático e repressivo, característico da sociedade industrial. Afinada, portanto, com a imaginação libertária 170 ARTUR FREITAS da contracultura, Do Corpo à Terra foi também a expressão de uma determinada interpretação política e identitária, porque orientada pela positivação das misérias nacionais. Presente em diversas propostas do evento, o dejeto urbano, para Frederico Morais, representava “um problema sócio-cultural – quando não moral”. “O lixo”, entendido como o projeto-síntese da arte guerrilheira em tempos de AI-5, era a “violência política, o Esquadrão da Morte, a tortura, a censura ou a fome”.47 Disso decorre, acredito, que Do Corpo à Terra possa sim ser vista como uma das últimas fronteiras possíveis de uma vanguarda que se queria ao mesmo tempo nacional e militante. Nada que impeça, todavia, e para além do tempo estritamente político da curta duração, que esta exposição, se ainda quisermos chamá-la assim, uma vez afastada da assepsia do próprio ato expositivo, não seja também o limite de um projeto evidentemente inacabado, mas talvez por isso mesmo necessário à imaginação criativa de um porvir somente anunciado. 171 Notas 1 Conforme documento de 1970 citado por ANDRADE, Rodrigo Vivas. Os Salões Municipais de Belas Artes e a emergência da arte contemporânea em Belo Horizonte – 1960-1969. Tese (Doutorado em História), Unicamp, Campinas-SP, 2008, p. 177. 2 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra. In: Do Corpo à Terra: um marco radical na arte brasileira, Itaú Cultural, Belo Horizonte, out. 2001. Catálogo de exposição. Texto republicado em: MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. In: Frederico Morais, organizado por Silvana Seffrin. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. A afirmação do crítico encontra-se na p. 117. 3 Conforme documento de 1970 citado por ANDRADE, Rodrigo Vivas. Op. cit., p. 177. 4 Frederico Morais apud RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”, entrevista com Frederico Morais, Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, jan.-jun. 2013, p. 350. Sobre o próprio manifesto: MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970], publicado em TRISTÃO, Mari’Stella. Da semana de vanguarda (1). Estado de Minas, Belo Horizonte, 28 abr. 1970 e TRISTÃO, Mari’Stella. Da semana de vanguarda (2). Estado de Minas, Belo Horizonte, 5 maio 1970. 5 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 116. 6 OITICICA, Hélio. Objeto: instâncias do problema do objeto, GAM – Galeria de Arte Moderna, Rio de janeiro, nº 15, 1968, p. 27. 7 MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970]. Op. cit. 8 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 123. 9 MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970]. Op. cit. 10 Idem, ibidem. 11 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 122. 12 Dilton Araújo apud MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 122. 13 Thereza Simões apud DEPOIMENTO DE uma geração: 1969-1970. Galeria de Arte Banerj, Rio de Janeiro, jul. 1986, sem paginação. Catálogo de exposição. 14 MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970]. Op. cit. 15 MORAIS, Frederico. Arte no Aterro, folheto, folha única, Rio de Janeiro, 26 a 28 de jul. 1968. 16 Frederico Morais apud RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Op. cit., pp. 344-348. 17 BARRIO, Artur. Manifesto contra as categorias de arte [1969]. In: CANONGIA, Ligia (org). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Modo, 2002, p. 145. 18 Frederico Morais apud RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Op. cit., p. 349. 19 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 120. Morais não se limitou às funções convencionais do crítico ou do curador; ao contrário, ao propor uma intervenção artística no evento, ele pensou a própria experiência estética como uma forma de pensamento crítico e reflexivo. Quinze lições sobre arte e história da arte foi o primeiro trabalho que Frederico Morais “realizou como artista”, dando origem a um posicionamento que ele mesmo definiria, pouco tempo depois, de “nova crítica”, ali entendida como uma crítica de arte não judicativa e essencialmente criativa e visual. No importante texto “Crítica e críticos”, publicado poucos meses depois de Do Corpo à Terra, Frederico chegaria a afirmar que a sua obra no evento mineiro “foi o marco zero da ‘Nova Crítica’”. MORAIS, Frederico. Crítica e críticos, GAM – Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, nº 23, 1970, sem paginação. 25 Idem, ibidem. 20 Frederico Morais apud RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Op. cit., p. 349. 26 Frederico Morais apud RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Op. cit., p. 351. 21 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 120. 27 Idem, ibidem. 22 A autoria da obra é controversa. De acordo com Frederico Morais, Hélio Oiticica foi convidado pelo crítico para apresentar uma proposta em Do Corpo à Terra. Impossibilitado de estar em Belo Horizonte, o artista teria pedido ao seu amigo, o cineasta e músico norte-americano Lee Jaffe, para executar uma obra em seu nome. Pouco tempo depois, entretanto, Oiticica, aparentemente incomodado com uma matéria de jornal referente ao evento mineiro, teria afirmado, “numa das cartas a Lygia Clark”, “que não autorizou” a execução de nenhuma obra, e que, portanto, “não participou” de Do Corpo à Terra. Frederico Morais apud AGUILAR, Gonzalo. Frederico Morais: o crítico criador, entrevista com Frederico Morais, Cronópios, 25 maio 2008. Disponível on-line: cronopios.com.br. 23 MELLO E SOUZA, Gilda de. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 52. 24 Em Do Corpo à Terra, Frederico 28 MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970]. Op. cit. 29 MORAIS, Frederico. Contra a arte afluente: o corpo é o motor da “obra”. Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro, nº 1, jan/fev. 1970. 30 Idem, ibidem, p. 49. 31 FREITAS, Artur. Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013. 32 Para um balanço recente sobre o conceito de alegoria, cf. XAVIER, Ismail. Posfácio – A alegoria segundo a tradição: retrospecto. In: Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 33 MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra [2001]. Op. cit., p. 120. 34 ANDRADE, Rodrigo Vivas. Op. cit., p. 192. 35 Décio Noviello apud RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte – anos 60. Belo Horizonte: C/ Arte, 1997, p. 237. 36 O napalm, espécie de gasolina em forma de gel, é um armamento químico inflamável que foi amplamente utilizado pelas tropas norte-americanas durante a Guerra do Vietnã. Criado durante a segunda guerra mundial pelos Estados Unidos, o uso do napalm sobre civis foi proibido pela ONU em 1980. 37 LIMA, Joana D’Arc de Souza. Trajetória artística e política de uma neovanguarda das artes plásticas no Brasil: 1968-1971. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Unesp, Araraquara-SP, 2000, p. 160. 38 ALPHONSUS, Luiz. Nossa tática: a nebulosidade [5 maio 1986]. In: DEPOIMENTO DE uma geração: 1969-1970. Op. cit., sem paginação. 39 MORAIS, Frederico. Manifesto do corpo à terra [18 abr. 1970]. Op. cit. 40 BITTENCOURT, Francisco. Barrio: criar como viver, um eterno ato de luta, Arte Hoje, Rio de Janeiro, 1978. 41 Artur Barrio apud LIMA, Joana D’Arc de Souza. Op. cit., pp. 170-171. 42 BARROS, Edgar Luiz de Barros. Tiradentes. São Paulo: Moderna, 1985, pp. 79-84. 43 Para o antropólogo Nestor Campos, quando uma vítima menos importante ocupa o lugar, no curso da cerimônia, de uma vítima mais importante, trata-se de um sacrifício por substituição. CAMPOS, Nestor. La substituición en los ritos de sacrifício, Gazeta de Antropologia, Universidad de Granada – Espanha, nº 21, 2005. 44 BITTENCOURT, Francisco. A geração tranca-ruas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 maio 1970. 45 Frederico Morais apud Idem, ibidem. 46 Idem, ibidem. 47 Idem, ibidem. 1974. A rede em exposição: Walter Zanini e o MAC USP Cristina Freire A sociedade em rede, como definiu o sociólogo espanhol Manuel Castells,1 em meados da década de 1990, tornou-se, nos últimos anos, ferramenta conceitual comum para as mais distintas análises da era da informação em que vivemos. Porém, as redes anônimas e impessoais que ligam e mobilizam comunidades virtuais em segundos são, obviamente, distintas daquelas alimentadas por relações pessoais e profissionais bem definidas como as construídas por Walter Zanini, diretor do primeiro museu de arte contemporânea do Brasil, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Entre suas muitas ações para a construção de redes no período em que dirigiu o Museu, entre 1963 e 1978, estão: o impulso para a criação de uma Associação dos Museus de Arte do Brasil (AMAB 1966-77); um ativo programa de exposições circulantes que contabilizou centenas de mostras e que culminaria no Projeto do Trem de Arte (1968) – no qual um trem deveria circular pela rede ferroviária levando exposições pelo interior do Estado –, projeto que nunca saiu do papel. Redes profissionais como o Comitê Brasileiro de História da Arte e a Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas também se organizaram, como sabemos, com a intervenção fundante de Zanini. Estendendo a experiência no MAC USP e no intuito de implementar uma ação estratégica capaz de reunir interesses comuns, Zanini, como curador geral da 16ª Bienal de São Paulo (1981), propõe a criação de uma Associação de Bienais Internacionais. Nesse projeto de ligação entre as Bienais Internacionais, uma secretaria única seria organizada e em função da qual reuniões seriam realizadas no início da década de 1980. Tal propósito atualizava os planos e projetos associativos anteriores. No programa curatorial do Museu, a exposição Prospectiva’74 é exemplar no programa ativo de intercâmbio internacional promovido pelo MAC USP. A ativação de uma rede internacional de artistas é o princípio operativo dessa exposição. Concebida por Walter Zanini, juntamente com Julio Plaza, artista espanhol estabelecido em São Paulo, a exposição ocorreu durante um mês (de 16 de agosto a 16 de setembro) em 1974. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 1 Vista geral da exposição Prospectiva’74. Fonte: arquivo MAC USP. Por meio de exposições como esta, produziram-se mudanças importantes nos canais de circulação e também nos perfis de instituições como o museu, em sua tarefa de conservar, armazenar e expor obras de arte. Desde o ponto de vista das coleções, inclui o índice de contemporaneidade das práticas artísticas multimídia que seguem tensionando as experiências museológicas convencionais. O incentivo dado por Zanini ao sistema de trocas artísticas pela via postal torna-se evidente nas convocatórias para as exposições Prospectiva’74 (1974) e, posteriormente, Poéticas Visuais (1977), que receberam trabalhos vindos pelo correio das mais diversas partes do mundo. Nesse contexto, entende-se o estímulo que deu à arte postal, tornando o MAC USP um ponto de referência internacional nesse circuito de trocas. Mais de cento e cinquenta artistas de distintos países participaram da mostra Prospectiva’74, enviando trabalhos pelo correio ao MAC USP. Dentro do amplo leque de nacionalidades, a maciça presença internacional foi também uma resposta à demanda dos organizadores para que cada participante convidasse outro artista para a exposição. Avalia Zanini no texto “Arte postal na busca de uma nova comunicação internacional” (1977): a arte postal pode ser considerada como um dos fenômenos internacionais mais agudos das novas linguagens e inclui-se entre os aspectos mais sugestivos da tendência ao não objeto e ao anonimato que assinalam muitas das realizações artísticas contemporâneas.2 A rede como geradora de exposições foi um princípio operativo trazido para o Brasil em 1973, pelo artista espanhol Julio Plaza de Porto Rico, onde esteve por anos quatro anos como artista residente, convidado pelo crítico e poeta Angel Crespo. Ali, Julio Plaza lecionou, realizou esculturas no campus, colaborou no projeto gráfico da Revista de Arte e ajudou Crespo com a Sala de Arte, onde organizou várias exposições antológicas. A mostra Creation/Creación (1972), organizada por Julio Plaza na Universidade de Porto Rico, campus de Mayaguez, foi uma das primeiras exposições de arte postal 176 CRISTINA FREIRE que se tem notícia no mundo. Plaza reuniu para aquela mostra uma lista de contatos internacionais e essa lista de nomes e endereços trazida de Porto Rico por ele e Regina Silveira, ao retornar ao Brasil em 1973, foi fundamental para que essa rede internacional se tornasse visível no Museu, em especial com a exposição Prospectiva’74, a primeira delas. O catálogo da Prospectiva’74, também desenhado por Plaza, é modesto e austero. A primeira página da publicação, impressa em branco e preto, reproduz a lista, por ordem alfabética, dos nomes de todos os participantes, indicando seu país de origem. O espaço atribuído no catálogo a cada artista e a produção de sua obra é escrupulosamente o mesmo para todos. Nem jurado, nem honorários, nem prêmios, nem devolução da obra, mas sim um catálogo, uma publicação simples para documentar cada participação. Esses foram os princípios combinados e aceitos entre os participantes. A introdução consistia em uma série de textos breves escrito pelos organizadores. Plaza afirmava que Prospectiva’74 só havia sido possível graças à comunicação entre artistas de muitos países que haviam mostrado sua cooperação à iniciativa, e essa só existe, arremata Plaza taxativo, quando há o conceito de informação e não o de mercadoria. Uma lista de palavras, alternadas em inglês e português, elenca as categorias das propostas reunidas: poesias/signs/comunicação/definations/objetos/graphics/publicações/creativecards/ films/statements/posters/entre outras. Utilizando um tom muito informal, Zanini3 dizia, como se estivesse se dirigindo diretamente aos participantes, que o desafio principal da exposição naquele período ditatorial (o boicote à Bienal de São Paulo seguia em pé desde 1969) era ampliar o diálogo internacional: A repercussão internacional de Prospectiva’74, demonstrada pela presença de artistas procedentes de muitos países, abre, do meu ponto de vista, uma direção importante que, em muitos aspectos, parecia fechada em nosso país nestes últimos anos. Um diálogo profundo pode se iniciar com artistas brasileiros. O Museu tentou facilitar este contato em todo o mundo, tal como mostra esta exposição e as atividades desenvolvidas no exterior... Além disso, também reconhecia que a exposição era uma oportunidade para estimular o diálogo entre tendências conceituais procedentes de distintas partes do mundo, em um contexto mais aberto e democrático. Como resultante, a exposição tornou-se um espaço privilegiado de visibilidade àquelas redes subterrâneas que operavam além da censura e completamente distantes de interesses comerciais. Os envios à Prospectiva’74 permaneceram no Museu e proporcionam ao Brasil uma amostra pública representativa das práticas conceituais internacionais que, na atualidade, seria impraticável reunir devido à crescente mercantilização da arte do período. O caráter documental da obra conceitual foi sublinhado por Walter Zanini em sua reivindicação de um tipo distinto de museu, entre cujas funções elencava o desenvol177 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 2 Vista geral da exposição Prospectiva’74. Fonte: Arquivo MAC USP. vimento de coleções de obras de arte com um caráter híbrido como textos, palavras, mapas e publicações de artistas de distintos tipos. Revistas e publicações de artistas tiveram um lugar especial na exposição, provocando um vívido interesse entre os visitantes. Vale notar que as estratégias de circulação impulsionadas pela arte postal aglutinam exposições coletivas e publicações, em especial as assembly magazines. São formas de produzir e exibir trabalhos articulados à vontade de comunicação para além das barreiras impostas, também, pelas condições políticas opressoras. O método de apresentação e o espaço expositivo na Prospectiva‘74 eram muito simples, quase precários, se compararmos com as normas convencionais modernas do cubo branco. Os trabalhos foram colocados diretamente sobre as paredes, sem moldura, eliminando qualquer alusão à aura do espaço museal. No espaço expositivo foram arranjadas mesas para a consulta das publicações. Todo o projeto atendia à intenção original de transmitir simplesmente informação. Apesar de um público significativo, a crítica, de maneira geral, foi indiferente à exposição. Roberto Pontual, um dos poucos que comentou a mostra em artigo4 publicado no Jornal do Brasil, define-a como “a primeira grande mostra da arte jovem internacional de hoje entre nós”. Pontual, que na época era coordenador das exposições do MAM (Museu de Arte Moderna) Rio, compara a Prospectiva’74 com as mostras When attitudes become form com curadoria de Harald Szeemann realizada em 1969 na Suíça e finalmente Information, realizada por Kynaston McShine no MoMA (Museum of Modern Art), em 1970. Em tom um tanto ambíguo, comenta da proximidade de propósito dos três projetos curatoriais (When attitudes become form, Information e Prospectiva’74) e avalia que “o texto introdutório de McShine no catálogo (Information) daquela mostra poderia servir ainda plenamente para exemplificar a Prospectiva de S. Paulo, quatro anos mais tarde.” 178 CRISTINA FREIRE Talvez naquele momento ainda era prematuro ponderar que Information em Nova York e When atitudes become form em Berna tornar-se-iam referências canônicas na história das exposições no mundo ocidental no século XX. No entanto, na América Latina, assolada por ditaduras, a ativação de uma rede marginal de trocas artísticas na Prospectiva’74 parece desde logo relevante. Hoje, torna-se cada dia mais evidente como o vanguardismo dessa estratégia abriu as portas do MAC USP e do Brasil no debate da arte conceitual e conceitualismos em nível internacional. Isto porque tal exposição angariou para o MAC USP um conjunto de proposições artísticas fora dos padrões modernos, de caráter multimídia, que sustenta a lógica da rede como princípio operatório colocando em paralelo museu e arquivo. Ao verificarmos a lista dos participantes e os trabalhos enviados para Prospectiva’74 nota-se como, naquele momento, Walter Zanini estimulou trocas por outras latitudes, em especial com o leste da Europa (Polônia e ex-Tchecoslováquia) e com a América dos Sul. Criava-se assim uma rota alternativa de solidariedade por princípio, deslocada do eixo hegemônico e do circuito eurocêntrico de exposições. Nessa medida, a exposição Prospectiva’74 desativa a função estética como primordial da arte, tal como fizeram as antológicas e já citadas When atitudes become form (1969) e Information (1970), mas vai além e institui outros princípios, como a curadoria em rede (pré-internet) e a solidariedade abrindo fendas para uma geopolítica dos circuitos artísticos mais inclusivos a despeito dos fluxos do capital econômico. De fato, são possíveis as analogias entre a mostra de Harald Szeemann e a realizada por Zanini, mas é bom lembrar que a Prospectiva’74 no MAC USP foi realizada sem qualquer apoio financeiro e distante dos interesses do mercado, enquanto que a mostra de Szeemann, sedimentada na história das exposições do século XX, ostenta na capa do catálogo sua fonte de recurso; “Patrocinada por Philip Morris – Europa”. Explica Julio Plaza em entrevista na época: Algumas formas artísticas – já estão decodificadas. (...)a pintura, por exemplo, depois de 3000 anos de cultura, torna praticamente impossível criar alguma coisa nova. A meu ver, existe uma redundância, muita repetição. Com esses novos veículos (referindo-se aos trabalhos expostos na Prospectiva’74), então, nós estamos tentando descobrir coisas novas, ver mais para frente do que para trás.5 E a entrevista prossegue com o desassossego do jornalista que indaga ao artista-curador: Mas o próprio caráter desse tipo de arte não seria conflitante com a sua exibição em um museu? Não há uma contradição nisso? Não deveriam essas obras aproveitar-se da própria capacidade de reprodução para furar o circuito normal do consumo de arte? Julio Plaza explica: Aparentemente existe uma contradição. Mas nós usamos o museu como veículo para canalizar a informação. Tudo depende do uso que você faz do veículo. Pode-se dizer que a TV está estandardizada, que ela veicula determinado tipo de informação. Mas pensando abstratamente, a televisão poderia ser usada para uma outra série de coisas. O museu também. A relação arte tradicional-museu existe, mas nós propomos uma nova forma de aproveitar o museu, canalizando essa informação. 179 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 3 Vista geral da exposição Prospectiva’74. Fonte: Arquivo MAC USP. Isidoro Valcárcel Medina, um dos precursores do conceitualismo na Espanha, enviou à Prospectiva’74 um trabalho que intitulou Uma Obra Permanente. Este trabalho consistia em uma caixa-arquivo contendo fichas de identificação onde se lê seus dados pessoais na parte superior. Na obra-proposição, o artista convida a todos que preencham a parte inferior e as envie para o endereço de sua residência na Espanha, a fim de estabelecer um intercâmbio, acionando a obra como rede. Nesse caso, trata-se de uma rede horizontal, sem hierarquia, que reúne pontos aleatórios (artistas e visitantes da exposição) a serem conectados, descaracterizando de maneira definitiva a figura do artista e do público. Entre os participantes da Prospectiva’74 estão também Hervé Fischer, do Coletivo de Arte Sociológica, Mirella Bentivoglio, os argentinos Horácio Zabala, Edgardo-Antonio Vigo, além de vários artistas do leste europeu, como Petr Stembera, Jaroslaw Kozlowski, Krzystof Wodiczko, entre tantos outros artistas ainda pouco conhecidos no Brasil, mas, não raro, considerados pioneiros do conceitualismo em seus países. O potencial disruptivo dos trabalhos enviados para a exposição questiona as práticas museológicas na tensão permanente entre termos antagônicos: museu e arte contemporânea. A Prospectiva’74 contou ainda com uma sessão de filmes e diapositivos. Esse fato parece também revelador, pois naquele momento os diapositivos e os audiovisuais apresentam-se como dobradiças técnicas e conceituais entre a fotografia, o filme de artista e a instalação. Os diapositivos conjugados com áudios, que Hélio Oiticica em seus projetos chamou-os de Quase Cinema, revelam-se um importante índice daquele tempo. Do cubo branco à caixa preta, era o museu em mutação. 180 CRISTINA FREIRE Vale notar que, no mesmo ano da Prospectiva’74, a VIII Jovem Arte Contemporânea, também realizada em 1974, por exemplo, contemplou uma sessão especial de filmes e diapositivos. Os ruídos característicos dos projetores de slides e trabalhos realizados com 80 slides – número máximo que se acomodava num carroussel Kodak, cuja fabricação se inicia em 1961 e seria nas duas décadas seguintes o mais popular entre os artistas – fazem parte da formatação dos trabalhos. Antoni Muntadas enviou para a mostra 80 diapositivos com o tema Reflexões Sobre a Morte. Eles consistiam em oitenta diapositivos que registram as páginas de um catálogo de objetos funerários; um comentário irônico do artista ao impulso de morte que se associa ao consumo irrefletido. Os projetores de slides, que deixaram de ser produzidos pela Kodak em 2004, foram frequentes nas exposições, sendo igualmente fundamentais no ensino da arte até meados da década de 1990, quando é substituído pela tecnologia digital “soft” do PowerPoint. A arte postal, implementada como princípio operatório e curatorial na Prospectiva’74, foi no MAC USP dos anos de 1970 a estratégia principal para internacionalizar, ampliar e atualizar o acervo do Museu a despeito dos escassos recursos financeiros. Tal expediente tornou possível a um museu periférico e praticamente sem recursos financeiros no Brasil angariar, naquele momento, a mais importante coleção pública de arte conceitual internacional da América do Sul. Essa experiência é levada para 16a Bienal (1981), que apresentou um núcleo específico organizado com a colaboração de Julio Plaza. Como resultante destas redes, emerge outra narrativa de práticas conceituais no Brasil. Esta narrativa pertence a um contexto totalmente distinto, fora do panorama da arte neoconcreta do Rio de Janeiro, tão divulgada através da presença contemporânea e hegemônica de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape sobre a arte brasileira nas décadas de 1960 e 70. Há de ser melhor avaliado o fato de que, no princípio dos anos 1970, o eixo das práticas conceituais no Brasil se transfere para São Paulo, e nesse giro, outros aspectos, como vimos, devem ser considerados. Nesse sentido, a história das exposições apresentadas no MAC USP, sob a direção de Walter Zanini, torna-se referencial nessa cartografia internacional que envolve artistas e o museu. Pierre Restany, ao analisar o contexto da produção artística nacional nos anos 70, observa o papel fundamental do MAC USP como ponto difusor e acolhedor das propostas mais instigantes naquele momento. Referindo-se basicamente ao papel das exposições Jovem Arte Contemporânea e mostras como a Prospectiva’74 e Poéticas Visuais, escreve: Faz-se necessário sublinhar o papel de Walter Zanini, diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, que conseguiu conciliar as exigências de duas gerações de uma só vez (...) sua inquietude aliada a um profundo interesse pelas pesquisas dos jovens sempre me pareceu sintomática de uma tomada de consciência. Esses artistas, mais ou menos ligados ao circuito tradicional, são sensíveis a uma crítica radical da arte. Se quiserem escapar do circuito, o circuito da 181 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES produção e da difusão da obra de arte como valor mercadológico, é preciso encontrar uma resposta para a questão: “arte, para que?” Essa questão desemboca necessária e inelutavelmente numa pesquisa sobre linguagem baseada na metodologia das Ciências Humanas. Trata-se do único instrumento disponível aos jovens artistas para tentar reencontrar uma nova relação entre arte e sociedade. A questão “arte, por que?” respondem: “Arte por que não?”6 A demanda pela qualidade, pertinente ao modernismo e ao princípio da autonomia da obra de arte, estava definitivamente abolida dessas exposições onde o pluralismo das propostas, frequentemente de natureza multimídia, em conjunção com as muitas nacionalidades dos artistas participantes, era a expressão acabada da liberdade. Driblava-se também a censura, uma vez que, pela via postal, trabalhos de países assolados por ditaduras de esquerda, nos casos dos países comunistas, e de direita, no caso das ditaduras militares latino-americanas, poderiam tornar-se presentes, sem que os artistas tivessem que viajar, o que em muitos casos era proibido. No texto “Os museus e os novos meios de comunicação”, (1976) observa Zanini [...] Entre as funções (dos museus) está a constituição de acervos como os que abrangem as formas audiovisuais de grande desenvolvimento recente, os múltiplos veículos de comunicação da ideia pelo texto e a imagem ou pelo emprego do corpo. A promoção de exposições é assunto óbvio...mas o museu deverá ativar-se enquanto centro operativo, isto é seus espaços poderão privilegiar-se de outra forma ao converterem-se em núcleos de experimentação, favorecendo e aglutinando disponibilidades criadoras em vários campos da pesquisa. Nestes termos, o campo científico do Museu não se configurará nos limites atuais da museologia, da crítica e da história da arte ou de especialidades que abranjam os campos meramente incorporados. Numa situação cada vez mais endereçada ao desenvolvimento interdisciplinar, o Museu não poderá dispensar a contribuição do antropólogo, do sociólogo, do psicólogo e de outros cientistas.7 De maneira bastante antecipadora nesse texto de 1976, Zanini faz uso de expressões hardware e software – ainda distantes do uso cotidiano atual – para se referir à sede física do Museu e ao seu programa, respectivamente. Assim, esse passado recente revela aspectos relativos à dinâmica de uma outra sinergia que moveu plataformas abertas de intercâmbio. Redes, espaços alternativos, lugares de exibição e arquivos (institucionais e privados) constituem os elementos que tornam possível delinear outros relatos para além dos eixos narrativos canônicos. Com a crescente privatização da cultura no mundo globalizado, e especialmente no Brasil, o museu público é lugar estratégico para uma compreensão mais ampla dos sentidos da produção e circulação artísticos. Torna-se necessário e urgente construir a partir daí outros enquadres críticos para ampliar e rever as análises disponíveis, aprofundando os estudos circunstanciados de casos, envolvendo artistas, obras, exposições e arquivos. No entanto, a tarefa é difícil. Na universidade onde, pelo menos desde o século XIX, domina o paradigma científico na dinâmica que Imanuel Wallerstein8 deno182 CRISTINA FREIRE minou como “sistema-mundo moderno de economia-mundo-capitalista”, o museu de arte está em desvantagem e orbita à margem. Isto porque em uma universidade cindida entre humanistas e cientistas, com frequência, são as humanidades e as artes as mais prejudicadas. Somos instados a uma estratégia de resistência, frente à constatação de que a pressão do mercado global força uma espécie de homogeneização, pois a variedade de imagens circulando pelos meios de comunicação de massas é muito mais limitada do que a variedade de imagens preservada nos museus. Como observa Boris Groys,9 o “global media market” carece de memória histórica e, portanto, não possibilita que o espectador compare o passado com o presente e determine o que é genuinamente novo e contemporâneo no presente. Assim, torna-se necessário manter o museu e as instituições artísticas como lugares onde o vocabulário visual da comunicação de massas possa ser criticamente comparado a outros legados artísticos. Esse pareceme um dos sentidos mais amplos que articulam acervo, pesquisa e exposição num museu universitário. 183 Notas 1 Castells, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 1. A Sociedade em Rede. São Paulo, Paz e Terra, 2001. 2 Zanini, Walter. A arte postal na busca de uma nova comunicação internacional. In: Freire, Cristina. Walter Zanini: Escrituras Críticas. São Paulo: Annablume; MAC USP, 2013, pp. 257-260. 3 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Museu de Arte Contemporânea. Prospectiva’74. São Paulo, 1974. Catálogo de exposição. 4 Pontual, Roberto. Entre o atrás e o adiante. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 de agosto, 1974. 5 Agência Universitária de Notícias. Boletim 115, 9 set 1974. 6 RESTANY, Pierre. L’Art Brèsilien dans les Sables Mouvants. Domus, mar. 1975, n. 554, pp. 17-24. 7 Os museus e os novos meios de comunicação. In: FREIRE, Cristina. Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume; MAC USP, 2013, pp. 123-124. 8 WALLERSTEIN, Immanuel. Como saber a verdade? O universalismo científico. In: O universalismo europeu: A retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 87. 9 GROIS, Boris. Art Power. Cambridge: MIT Press, 2008. 1978. A Bienal de São Paulo torna-se Latino-Americana* Isobel Whitelegg Para nós brasileiros (...) a coisa mais importante é definir uma posição em relação ao continente. O perigo da falta de uma política continental bem definida por parte do Brasil é a de levar a arte latino-americana apenas como uma moda, como latino-americanismo. E, desta forma, para jogar o jogo internacional, considerando a América Latina como um tema, como uma abordagem oportunista e que é, naturalmente, superficial. Frederico Morais Em outubro de 1980, Aracy Amaral e Frederico Morais apresentaram propostas para a transformação da Bienal Internacional de São Paulo em uma Bienal Latino-Americana.1 Suas ideias haviam sido bem ensaiadas – produto de uma discussão pan-continental ativa há pelo menos cinco anos. À luz dos modelos curatoriais mais recentes, seus planos parecem premonitórios. Ao colocar em questão o papel das instituições norte-americanas na construção de um campo do latin-americanismo, e ao afirmar a necessidade de que a América Latina reescrevesse sua própria história da arte, suas propostas tornaram-se relevantes para os debates atuais referentes à arte latino-americana como um campo epistemológico diferenciado pelos loci de enunciação, os quais são ordenados por regimes de linguagem, poder e visibilidade. Falar de arte latino-americana no Brasil pode parecer à primeira vista contraditório, a recepção de uma arte da qual o Brasil já faz naturalmente parte. Todavia, há pouco de natural a respeito da noção de uma arte latino-americana. Na região, a construção de uma consciência continental está associada ao esforço de uma geração de críticos, sustentado por uma série de encontros realizados em diferentes locais nos anos 1970.2 As propostas elaboradas por Juan Acha, Damia Bayón, Marta Traba, Amaral, Morais e outros não produziram consenso, mas a rede então estabelecida constituiu-se em um movimento compromissado com o estabelecimento de denominadores comuns ou condições compartilhadas. Foi esse contexto que possibilitou a tentativa de um golpe latino-americano na Bienal Internacional de São Paulo. HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES A proposta de 1980 de Aracy Amaral reordenava as hierarquias entre a América Latina e o meio internacional, refletindo sua antiga crença de que a Bienal de São Paulo havia sido fundada a partir de um erro geopolítico – tendo Veneza como modelo, a Bienal tomou o mundo como seu principal território de projeção, o que colocou o Brasil em relação direta com a normativa internacional, sem nenhuma mediação continental entre ambos. Na sua proposta, Amaral articulou suas convicções: que “devemos, uma vez por todas, parar de observar os outros e olhemos mais para nós mesmos e nossos vizinhos”; “paremos de ser uma alternativa para a Bienal de Veneza”; “a Bienal deve ser a manifestação de uma necessidade”.3 A Bienal Latino-Americana imaginada por Amaral não seria isolacionista, ao contrário, incluiria obras da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia, selecionadas a partir de uma perspectiva latino-americana. Esse realinhamento – ler o Internacional através da lente crítica da América Latina – representou igualmente uma tentativa para servir-se da longevidade e do patrimônio da Fundação Bienal para mudar o mais poderoso locus de enunciação epistemológico sobre a arte latino-americana do norte para o sul: Só assim vai deixar de confiar na metodologia das universidades norte-americanas, para a formação e actualização constante das bibliotecas ou para o processamento de reflexões sobre a América Latina para a arte de todos os tempos.4 Como Amaral, Morais estava convencido de que a bienal deveria atender a uma necessidade, ter uma finalidade. Ao responder a questão sobre qual período deveria ser contemplado pela mostra, ele declara: Após o trauma da vanguarda, a neurose de ser moderno, tendo superado a visão positivista da evolução artística através de uma escalada de ismos, a compartimentação da arte em períodos de pré-colombiana, colonial, republicana, Moderno, Vanguarda, etc. não tem mais sentido hoje.5 A questão, afirma Morais, é de como ler a história – com ênfase na “formação ou na informação”. Para ele, a Bienal Latino-Americana poderia constituir-se em um indispensável projeto de pesquisa para identificar as condições comuns em que os artistas trabalharam sob a opressão da “galeria rejuvenescida de ditadores” da América Latina – os modos de criação e de circulação subterrânea, o uso da metáfora ou do código como uma “arma dos oprimidos”.6 Tal pesquisa revelaria que a noção de “fantástico” não era escapismo, mas sim um “mergulho na realidade social e política” e que tal noção, além do mais, poderia ser utilizada como uma interpretação histórica, remetendo a séculos de repressão, do período colonial ao passado recente. Morais declarou que, como um país colonizado, o Brasil herdou “uma visão do mundo que não é nossa” e, assim como Amaral, defendeu a necessidade de a América Latina reescrever sua própria história da arte, assim como o papel potencial de uma bienal Latino-Americana nesse processo. Esta ideia, quase duas décadas mais tarde, tornar-se-ia a premissa para a primeira edição da Bienal do Mercosul, organizada por Morais em 1997.7 O aparecimento e a realização regular da Bienal do Mercosul em Porto Alegre talvez proporcione um desfecho para a solicitação de 1980 de usar o formato bienal como modo de realinhar e resolver o relacionamento do Brasil com o continente no qual 186 ISOBEL WHITELEGG ele se assenta. Se isso constitui uma solução para a ausência de uma posição definitiva – como assinalou Morais – é um ponto discutível. Resta, na coexistência das duas Bienais, uma ambivalência literal. O foco de São Paulo na América Latina é tão inconsistente e ambíguo que nos momentos em que tal ênfase é anunciada faz-se apropriado perguntar, com curiosidade ou suspeita, o que move a decisão de ser latino-americano. Evocar o relacionamento sem compromisso da Bienal para com a América Latina foi uma provocação para restabelecer a história de seu envolvimento com a ideia de arte latino-americana em um evento pouco lembrado em sua fortuna crítica – bem como a consequente recepção e influência do pensamento latino-americanista por parte de críticos e artistas brasileiros. A Fundação Bienal, em 1978, organizou uma Bienal Latino-Americana. Esse evento, no entanto, não substituiu a mostra internacional de renome de São Paulo, mas sim a série de bienais nacionais que haviam sido realizadas desde 1972, nos anos pares entre as Bienais Internacionais. A segunda edição anunciada foi adiada. Em seu lugar, ocorreu, em 1980, a Reunião de Consulta de Críticos de Arte da América, organizada por Amaral, sob os auspícios da Fundação Bienal, com o objetivo de debater o futuro da iniciativa. A reunião também reativou uma proposta anterior mais radical, de substituir o evento internacional pelo continental, um projeto com o qual Amaral havia se envolvido, em 1975.8 Em 1980, a Bienal estava em maré baixa. Após uma década marcada pela retirada internacional e pela morte de seu fundador, uma proposta de reforma definitiva era tão oportuna quanto necessária. Esperava-se, portanto, que a reunião produzisse mudanças e que não fosse apenas uma discussão entre críticos da mesma opinião. Nove dos críticos presentes à reunião votaram a favor da proposta de ter uma Bienal Latino-Americana; a decisão da maioria (23 votos) foi a favor de uma Bienal Internacional que conteria uma ênfase na América Latina – o que constituiu um “não” a qualquer futura Bienal Latino-Americana.9 A Bienal de 1978 foi um evento catalisador para a reunião de 1980, mas esteve apenas indiretamente relacionada às conversas que Amaral e Morais mantinham com seus pares latino-americanos. Amaral descreveu a negativa como a “traição de uma iniciativa”10 e o registro historiográfico consignou esmagadoramente a Bienal Latino-Americana ao fracasso. O testemunho dos críticos latino-americanos envolvidos em um simpósio realizado paralelamente à Bienal, em 1978, contribuiu igualmente para o veredicto de que a Bienal Latino-Americana estava irremediavelmente comprometida.11 Não tenho a intenção de contestar o veredicto, mas sim de estabelecer como a Bienal Latino-Americana relacionava-se aos debates – que precederam e sucederam à sua realização – sobre o papel de uma bienal brasileira em relação à América Latina. Críticas imediatas focaram-se tanto em seu título-tema, “Mito e Magia”, quanto na insuficiente discussão para instituí-lo em conjunto com uma ordem curatorial antropológica estática (Indígena, Africano, Euro-Asiático, Mestiço). O formato e o título da Bienal Latino-Americana haviam sido decididos pelo Conselho de Arte e Cultura, sob a direção do então presidente da Bienal, Luiz Fernando Rodrigues Alves. Críticos 187 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES latino-americanos – Juan Acha (Peru/México) e Silvia Ambrosini (Argentina) – foram consultados após o fato. É impossível determinar o autor do título “Mito e Magia”. Em uma mesa-redonda organizada pelo jornal O Estado de São Paulo, Rodrigues Alves e Carlos Schmidt – respectivamente crítico de arte e membro da comissão organizadora – engajaram-se em um esforço cômico para escapar da questão.12 Contudo, Schmidt assumiu a responsabilidade para realizar a exposição, enquanto Acha organizou o simpósio paralelo. A crítica dirigida contra Mito e Magia foi acentuada pelo título de um evento colateral: Mitos Vadios, um happening de um dia, organizado pelo artista performático Ivald Granato no domingo após a abertura da Bienal, em um estacionamento da Unipark, embaixo da rua Augusta. O evento envolveu vinte artistas registrados e vários agregados de última hora, incluindo-se o então recém-repatriado Hélio Oiticica; sua participação contribuiu vigorosamente para a persistência historiográfica de Mitos Vadios.13 O contexto no qual Amaral relatou a existência de um projeto diferente, arquivado, para transformar a Bienal em um evento exclusivamente latino-americano é um artigo em que ela revisa suas observações sobre um simpósio organizado por Damián Bayón na Universidade do Texas, Austin, em outubro de 1975.14 O encontro, conhecido comumente como o Simpósio de Austin, foi igualmente significativo para a polêmica defesa de Marta Traba de uma cultura de resistência, como ela discute em seu estudo de 1973, Dos décadas vulnerables en las artes plasticas latinoamericanas, 1950-1970. Na sequência de uma mudança radical de pensamento – provocada por seu exílio político e pela leitura das obras de Karl Marx, Herbert Marcuse e Henri Lefebvre – Traba defende que as nações industrializadas estavam dominadas por uma ideologia da tecnologia e apoiavam uma “estética da deterioração”, de caráter internacionalista, exemplificada por formas experimentais de arte. Para Traba, os novos meios artísticos experimentais não expressavam nem se relacionavam adequadamente com o contexto subdesenvolvido das sociedades latino-americanas. Em termos materiais, resistência significava um retorno deliberado aos meios “não alienados” da pintura, da gravura e do desenho. Além disso, os códigos visuais de tais meios deveriam, idealmente, transmitir elementos míticos atemporais, cumprindo, assim, a “capacidade de retirar a realidade nacional do seu subdesenvolvimento e transpô-la para um nível mágico, mítico, ou puramente imaginativo”, que seria superior “à imitação de tarefas propostas pelas sociedades altamente industrializadas”.15 Assim, o tema eventualmente adotado pela Bienal Latino-Americana de São Paulo era nitidamente Trabiano em sua orientação. O efeito da provocação de Traba sobre as considerações de Amaral e de Morais a respeito da importância do político em práticas mais experimentais é significativo; já a tese da resistência, e sua abordagem prescritiva da forma, foi diretamente contestada pela realização de Mitos Vadios. Escrevendo em 1981, Amaral rejeitou Mitos Vadios como um gesto irracional do individualismo reacionário, que foi insensível aos debates marcados pelo momento de tensão política – entre o processo de “distensão” e um fim conclusivo do regime militar.16 Desde então, o evento transformou-se em uma espécie de mito em si. Com exceção do interesse excessivo sobre o Delirium Ambulatorium 188 ISOBEL WHITELEGG de Oiticica, não há documentação sistemática sobre os propósitos das intervenções individuais do restante dos artistas envolvidos. Um registro do evento, todavia, é um manifesto, de autoria de Artur Barrio, juntamente com os arquitetos Dinah Guimarães e Lauro Cavalcanti.17 Do ponto de vista expresso por esse texto, Mitos Vadios não era simplesmente um protesto contra o sistema da arte em geral, mas uma réplica, para Traba, da parte de um grupo de artistas latino-americanos, cujos meios de experimentação se davam em um campo oposto à sua definição de resistência. Ao invés de relembrar o evento por seus participantes mais famosos, ou desconsiderar sua irreverência como absurda, Mitos Vadios talvez possa ser compreendido como uma retaliação articulada por parte dos artistas contra a negação do potencial crítico de seu trabalho. Como tal, ele antecipa as leituras corretivas do trabalho de Traba que foram feitas por uma geração posterior de críticos, que destacam o potencial político do conceitualismo latino-americano. Traduzindo seu sobrenome para o português, Trava, a fim de realçar o seu significado literal (travar), o manifesto entende o retorno a formas “não alienadas” como um argumento para os meios de comunicação criados pelo academicismo europeu colonialista – um retorno que, ademais, serviria ao mercado de arte, oferecendo novas versões latino-americanas de um meio para o qual já havia ávidos compradores. Esta interpretação, além disso, estava em sintonia com a reação precedente de Morais em relação à apresentação de Traba no Simpósio de 1975 em Austin. Embora de modo mais respeitoso, Morais também manifestara a suspeita de que as formas que Traba defendia politicamente eram as mesmas que seriam capazes de atrair e criar um mercado para a arte latino-americana.18 Os artistas envolvidos em Mitos Vadios viviam e trabalhavam em contextos nitidamente urbanos: Rio, São Paulo e Buenos Aires. As últimas palavras de seu manifesto tentavam transmitir uma realidade brasileira que não poderia ser simplesmente inscrita na oposição entre um cosmopolitismo promíscuo e resistência de áreas “fechadas”, nas quais a preservação da tradição poderia recuperar uma estética de resistência: Na realidade, os mitos e magia são encontrados em seu estado natural nas ruas e /ou na floresta, eles são inseparáveis da ampla realidade brasileira. A tentativa de reduzi-los a uma exposição, de acordo com o enquadramento convencional, resulta em espaço estilo ‘loja de turismo’, uma simples amostra de objetos exóticos, sem reconhecer um verdadeiro aprofundamento radicalismo na América Latina.19 Mitos Vadios, contudo, enfatizou apenas uma dimensão da prática radical, a restrita rede que conectava artistas que trabalhavam principalmente nos centros urbanos e, em alguns casos, pessoas com algum tipo de acesso a instituições simpáticas – Walter Zanini e o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, Morais e o Museu de Arte Moderna do Rio, o Instituto Di Tella (e mais tarde, o Centro de Arte y Comunicación), em Buenos Aires. Considerando que mitos e magia são de fato “encontrados em seu estado natural nas ruas e/ou na floresta”, é possível questionar em que grau as contradições internas do Brasil podem ser resolvidas dentro de uma rede de radicalismo urbano; além disso, como Morais também reconheceu, havia certa verdade na tese de Traba que opunha o aberto e o fechado. 189 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O evento que a Bienal Latino-Americana substituiu – o conjunto de Bienais Nacionais de São Paulo – proporcionou a possibilidade de perceber o Brasil como um microcosmo da dialética de desenvolvimento e subdesenvolvimento que preocupava os críticos de arte latino-americanos naquele momento. Mas ao estender o alcance de um projeto nacional para incluir a América Latina ao invés de apostar na redução ou eliminação da participação internacional, a substituição da Bienal Nacional representou um sacrifício pequeno da parte da Fundação Bienal. Contudo, pensar esta sucessão em termos meramente administrativos – uma simples substituição – tira de foco os efeitos obtidos pelas Bienais Nacionais na estrutura da Bienal internacional e na ampliação da percepção crítica sobre a produção artística brasileira. As Bienais Nacionais não foram insignificantes. Artistas eram escolhidos por júris regionais em exposições “pré-bienal” realizadas em todo o país, e esse processo de seleção conferiu ao evento a capacidade de contestar o eixo dominante Rio-São Paulo. Poderia supor-se que a ditadura militar tornaria inevitável um projeto nacionalista, mas essas exposições colocaram em relevo os conflitos internos do Brasil, ao mesmo tempo em que revelaram o trabalho de jovens artistas e coletivos, cujas propostas muitas vezes expressavam preocupações políticas. Este foi notadamente o caso dos cinco projetos produzidos pelo coletivo baiano Etsedron (a palavra Nordeste invertida), para quem São Paulo representou uma plataforma estratégica para exibir o outro lado do “milagre econômico” brasileiro. Formado em 1969 por alunos de cursos livres e formais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, o Etsedron, durante sua década de existência, desenvolveu um método diferenciado de prática enraizada na coletividade. Seus integrantes produziam suas obras durante uma série de vivências em comunidades rurais no interior do árido sertão nordestino, em um processo próximo dos procedimentos da pesquisa etnográfica. As obras produzidas in situ eram figuras antropomórficas, que ganhavam forma a partir dos materiais estéticos disponíveis: videiras, palha, couro, cabaças, sementes e raízes. Elas foram apresentadas em São Paulo em uma série de “ambientes” nos quais a área ocupada do pavilhão era tipicamente demarcada por um piso bastante sujo. A “animação” de cada ambiente era completada por performances de música e dança, juntamente com projeções de slides e transmissão de sons gravados.20 Ao escrever em 1976 sobre o trabalho do Etsedron, Amaral compreendeu a presença dissonante da combativa estética rural e regionalista do grupo em São Paulo conforme a distinção proposta por Traba entre regiões cosmopolitas-abertas e resistentes-fechadas do continente latino-americano. Além disso, ela interpretou o trabalho coletivo do Etsedron como um alerta dirigido às metrópoles do sul, não necessariamente para chamar a atenção para o norte economicamente depauperado, mas para lembrar o “país-continente” sobre suas raízes. Indicativo de sua preocupação naquele momento, Amaral conclui o artigo clamando uma vez mais por um foco latino-americano para a Bienal de São Paulo: Para apreciarmos despreconceituosamente uma proposta como esta do Etsedron, e duma arte mulata ou sertaneja que nos cai numa Bienal cujo modelo é Veneza – que escândalo! – seria talvez útil que nos 190 ISOBEL WHITELEGG colocássemos (como nos desafia o critico peruano Juan Acha a fazer) dentro de um enfoque crítico latino-americano. Seria possível, e aqui está o ponto crucial, teríamos nós autonomia cultural suficiente para tanto, que existisse uma expressão plástica, uma linguagem plástica brasileira que não aquela decalcada da cultura ocidental?21 Entre 1973 e 1978, e em diferentes encarnações da Bienal, Etsedron manteve uma presença consistente, participando da Bienal Nacional de 1974 (quando o coletivo foi agraciado com o prêmio principal), de três edições consecutivas das Bienais Internacionais (1973-1977) e, finalmente, da Bienal Latino-Americana, de 1978. Etsedron também se viu arrastado para um importante debate sobre a percepção da arte latino-americana no Brasil quando, em 1977, o prêmio do Itamaraty, patrocinado pelo governo, foi atribuído pela primeira vez a um participante da América Latina, o Grupo de los Trece, de Buenos Aires. Ostensivamente colaborativa, a dinâmica do Grupo de los Trece era distinta da dinâmica do Etsedron. A força motriz responsável por sua visibilidade era o empresário, promotor cultural e diretor do Centro de Arte y Comunicación (CAYC) Buenos Aires, Jorge Glusberg, cujas aspirações eram claramente internacionalistas – a ponto de sua promoção do CAYC poder ser vista como o paradigma contra o qual foi baseada a avaliação negativa de Traba sobre as mídias conceituais, tecnologicamente experimentais. Glusberg também possuía um histórico em São Paulo. Para a XI Bienal Internacional (1971), a primeira edição realizada após o boicote internacional, ele havia garantido o apoio da Fundação para a exposição hors concours “Sistemas de arte”, sobre arte conceitual internacional. Sua tentativa de recrutar para a mostra artistas norte-americanos ou latino-americanos baseados nos Estados Unidos foi recebida com uma eficiente campanha de resistência política, e o projeto não concretizado.22 Enquanto alguns viram a conquista do Grupo de los Trece na Bienal Internacional como uma apologia da arte latino-americana, outros consideraram o prêmio uma consequência lógica da ambição de Glusberg e dos fundos consideráveis que ele investiu na realização de seu projeto. Em protesto contra a premiação do grupo, Frans Krajcberg retirou seu trabalho antes do encerramento da Bienal, alegando que o júri atuava sob pressão indevida; ele também se ofendera por ter sido agraciado com um prêmio menor, que entendia como mais apropriado para jovens artistas promissores do que para os de sua idade e experiência, e ofereceu-o para o Etsedron (que por sua vez o recusou). Artigos na imprensa sugerem que Krajcberg não era o único a contestar a premiação, e citam comentaristas anônimos que haviam sugerido que o prêmio fora um favor oficial à Argentina (“país de um regime amigo”) ou questionavam “o que aconteceria se eles o concedessem para o Etsedron, por exemplo, e mostrassem ao mundo inteiro uma visão da miséria brasileira?”23 O precedente criado pelo Grupo de Los Trece em 1977 foi significativo para o debate em torno da Bienal Latino-Americana do ano seguinte, e um marco referencial em uma breve e acirrada polêmica entre Amaral e Morais. Em resposta a um artigo de Morais, Amaral argumenta que a “arte Latino-Americana não está na moda, como Frederico Morais considerou incorretamente, só porque o Grupo de los Trece ganhou um prêmio na última Bienal”.24 Em sua defesa, Morais explicou a nuance de seu argumen191 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES to, afirmando que, pelo contrário, o prêmio foi uma consequência do fato de Glusberg expressar o latin-americanismo em uma linguagem internacionalista (arte conceitual). Em meio a um júri composto em grande parte por estrangeiros, sob a influência do latin-americanismo, seu sucesso era “perfeitamente previsível”.25 Amaral e Morais têm mantido posições distintas em suas avaliações sobre artistas brasileiros e em suas interpretações sobre a crítica latino-americana. A reação de ambos à Bienal Latino-Americana de 1978 convergiu não apenas em uma frustração comum mas também no desejo de que o projeto pudesse continuar, o que se refletiu dois anos mais tarde em suas contribuições para a consulta de outubro de 1980 (Reunião de Consulta de Críticos de Arte da América). Seus comentários minuciosos sobre a mostra de 1978 não são um polêmico diagnóstico de fracasso, mas sim apontamentos sobre correções a serem introduzidas.26 A observação de Morais sobre uma disjunção profunda entre a exposição e o simpósio paralelo organizado Acha – no qual foi sintomática a ausência de análise crítica das próprias obras de arte – é pertinente. Ainda atualmente, os dois volumes distintos do catálogo dão a impressão de conversas separadas e autônomas. “Não sabemos se nosso trabalho possui características latino-americanas, nem sabemos o que isso seria”, comentara Edison de Luz, um dos membros do Etsedron, sobre a presença do grupo na Bienal Latino-Americana.27 Como o manifesto “Mitos Vadios” afirmou, a bienal da América Latina foi uma manifestação de cima para baixo. Em uma entrevista com Lygia Pape, Oiticica somou-se às desconfianças levantadas por outros artistas, a partir de um ponto de vista que, como ele próprio admite, foi informado por sua recente experiência em Nova York: Eu nunca gostei de separar arte latino-americana como coisa isolada, por várias razões. Uma é que eu não gostaria de estar incluído nisso. Outra, é que acho muito provincianismo na maneira como se coloca, além de que América Latina é formada por coisas heterogêneas e tudo isso torna tudo muito problemático. Por exemplo, o Brasil não tem nada a ver com o Peru e outras coisas assim. Acho que fica uma coisa artificial – uma maneira forçada –, aliás é forçada, mesmo. Em Nova Iorque, eu já era contra, porque achava que era uma minoria fabricada; essa arte latino-americana mantinha os artistas separados em uma minoria fabricada, num país que já está cheio de minorias. Então, fica uma coisa reacionaríssima, ao meu ver. Mas tudo isso é em relação à situação de lá, em Nova Iorque, que não tem nada a ver com aqui, mas eu acho que o Brasil tem mais a ver com os Estados Unidos do que com os outros países da América Latina. Ou com algumas tradições europeias. Por exemplo, a Alemanha está mais perto do Brasil do que o Peru, sob um certo aspecto. Em termos de linhagem artística, é verdade. Eu não sei o que as pessoas querem definir aqui quando falam em arte latino-americana. Fica uma coisa muito problemática. Seria a arte feita aqui? Em geral os exemplos que dão é que são coisas importadas – se é que se pode dizer isso – coisas de segunda mão. Também estou ouvindo falar sobre esta Bienal em que o tema proposto seria “mitos e magia”, mas isso já são conceitos filosóficos, e mito e magia não são um privilégio latino-americano, pelo contrário.28 Dado o papel de resistência que Oiticica é chamado a desempenhar em definições mais recentes de arte Latino-Americana, é tentador compreender seu depoimento como um argumento contra qualquer denominador regional. Contudo, o que os seus comen192 ISOBEL WHITELEGG tários parecem de fato revelar é uma atípica falta de eloquência, uma simples falta de familiaridade com a questão em jogo (“Fica uma coisa muito problemática. Seria a arte feita aqui?”). Considerando que sua tomada de posição contra o latin-americanismo, em Nova York, “uma minoria fabricada, num país que já está cheio de minorias”, foi baseada em sua experiência, esta ainda era reduzida para que ele pudesse refletir sobre a emergência do latin-americanismo no Brasil. Conforme Morais afirmou em 1997: a ideia um continente a ser descoberto persiste ainda hoje e mobiliza o imaginário dos próprios artistas latino-americanos que, tanto quanto os cstrangeiros, desconhecem o território no qual vivem, em parte devido à propria extensao e diversidade geográficas.29 O mesmo pode ser verdade para a concepção da América Latina enquanto território crítico; ao identificar o Peru como a antítese do Brasil, Oiticica revela sua pouca familiaridade com o termo não-objetualismo, cunhado pelo peruano Juan Acha, o que contrasta com sua proximidade com a teoria do não- objeto de Ferreira Gullar.30 Sobre a edição da Bienal de 1981, com curadoria de Walter Zanini, Amaral protestou: “Que ênfase pode ser vista nesta Bienal? Nenhuma”.31 No encontro de 1980, Zanini apresentara sua resposta à consulta de Amaral na forma de quatro pontos precisos, colocando-se a favor de “uma única bienal (internacional)” e observando que, se a bienal se focasse em tendências atuais organizadas em linguagens análogas, os artistas latino-americanos estariam, de qualquer modo, relacionados aos artistas de outras partes do mundo.32 Amaral estava correta ao observar a ausência de uma ênfase definida na Bienal de 1981, e, portanto, sua frustração de que o resultado da consulta de 1980 havia sido ignorado era justificada. Mas o projeto de Zanini foi uma interpretação fiel de um aspecto da interação entre o Brasil e as periferias e centros, tanto de seu próprio continente quanto dos outros. Ele também estava em consonância com o desejo de Morais de usar o evento como um meio para que pesquisas e linguagens que assegurassem a prática sobrevivessem à repressão política. Zanini, por outro lado, tinha acesso privilegiado a este tipo de prática, que ainda era uma expressão do internacionalismo, embora em tom menor. Muitos dos artistas latino-americanos e internacionais que participaram da Bienal de 1981 tinham contato com o Museu de Arte Contemporânea da USP, diretamente ou através da circulação de informações na forma de arte postal, vídeo ou documentação de práticas efêmeras.33 Amaral e Morais contribuíram de modo distinto para a problemática da América Latina, oferecendo interpretações contrastantes do papel social e político da prática experimental – uma ponderada resposta com sotaque brasileiro tanto para a hipótese de Traba de resistência cultural quanto para o não- objetualismo de Acha. Essas conversas continentais suscitaram reconsiderações sobre a prática experimental que merecem ser reconhecidas como precursoras de revisões de maior destaque internacionalmente. A proposta de Amaral de que a perspectiva latino-americana poderia substituir a internacional como base normativa para a seleção de obras para a Bienal parece ainda plausível, mas os parâmetros de um olhar latino-americano mais crítico, coerente e indivisível permanecem indefinidos; este continua a ser o trabalho a ser feito. 193 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES A única edição da Bienal de São Paulo a aproximar-se dessa operação – a Bienal Antropofágica, de Paulo Herkenhoff, realizada em 1998 – foi uma normalização de uma teoria brasileira, uma tentativa de reordenar sua relação do Brasil com o mundo, e que novamente evitou a questão continental. No campo anglo-americano, a antropofagia de Oswald de Andrade pode ser percebida como parte de uma panóplia latino-americana (que tem sido certamente canibalizada por artistas e curadores em outros lugares), mas ela é, em sua essência, uma crítica especificamente nacional voltada à posição póscolonial do Brasil em relação à Europa. Em certa medida, a indigestão continental do Brasil pode ser atribuída à resistência inerente (e nem sempre desejada) que sua escala monumental carrega, por razões que são óbvias mas também significativas: o fato de que, como país colonizado por uma nação diferente, o Brasil herdou não somente um idioma diferente, mas distintas geografias relacionais – em particular, seus laços com a África postos em prática não apenas pelo alcance do Império Português, como também pela centralidade da escravidão para o desenvolvimento da sua economia. A profunda ligação com o internacionalismo que está no cerne da bienal impede o confronto entre os conflitos internos e a ilegibilidade inter-regional que o Etsedron expôs – colocando-se ao mesmo tempo no caminho para que se possa alcançar uma identidade continental. E, no entanto, a frase “América Latina” circulou de modo enfático em relação à edição de 2012 da Bienal de São Paulo.* Como o então Diretor da Fundação Bienal afirmou, um evento com curadoria de um latino-americano (Luis Pérez Oramas) que atua em uma plataforma global (curador de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova York) fornece os parâmetros para posicionar a Bienal de São Paulo nos “três domínios” com os quais ela interage: Brasil, América Latina e o mundo. As incursões precedentes da bienal na questão da América Latina revelam em que medida esses três “domínios” são categorias instáveis e inseparáveis umas das outras: o triunfo Grupo de Los Trece de Glusberg como uma cara versão metropolitana da diferença latino-americana criada para e recompensada por um público internacional de passagem; Etsedron em São Paulo como uma manifestação microcósmica das contradições internas desagregadoras da América Latina; a Bienal de Zanini e Mitos Vadios como a conquista de visibilidade para redes transnacionais menores – e, consequentemente, a inviabilidade de confinar artistas e ideias itinerantes em uma estética limitada à resistência da América Latina. Precisamente porque os episódios das bienais em ser brasileiro (1972; 1974; 1976), ser latino-americano (1978) e ser internacional (1951-2010) foram regimes administrados separadamente, mas que produziram efeitos e geraram legados para o evento em geral. São Paulo continua a ser um palco onde estes três modos de caracterizar a posição brasileira são disputados em relações dissonantes entre si – sem que isso tenha sido adequadamente resolvido por uma intervenção curatorial, à exceção das soluções imaginadas por Amaral e postas em prática por Morais na Bienal do Mercosul. Quando a questão latino-americana foi debatida no final de 1970 e início de 1980, o assunto persistentemente em causa era saber se o desejo de solidariedade continental da Bienal 194 ISOBEL WHITELEGG era de fato comprometido e aberto ao debate ou meramente oportuno. Nos dias atuais [2012], a ascendência financeira do Brasil e sua posição de destaque entre as economias emergentes da América Latina também devem ser levados em consideração para compreendê-lo como uma voz nacional falando de dentro do – ou talvez para – seu continente. Um voto de compromisso em 1980 significou a dispersão de uma crítica ainda incipiente, e que somente será retomada com grande esforço. Na ausência de uma posição definida em relação ao continente, uma posição que é – como a história da Bienal tem provado ser – ao mesmo tempo crítica e criativa, permanece o risco da Bienal de São Paulo jogar um jogo internacional no que diz respeito à América Latina. 195 Notas * Tradução do artigo “Brazil, Latin America: The World. The Bienal de São Paulo as a Latin American Question”, publicado originalmente in Third Text, vol. 16, issue 1, Jan. 2012, pp. 131-140. Tradução: Maria de Fátima Morethy Couto. Revisão: Isobel Whitelleg e Michael Asbury. 1 No contexto da Reunião de Consulta de Críticos de Arte da América, MAC USP / Hotel Brasilton, São Paulo, 16-18 de outubro de 1980, organizada por Aracy Amaral, sob os auspícios da Fundação Bienal de São Paulo. Amaral convidou críticos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. (Cuba, El Salvador, Nicarágua, Guiana, Honduras e República Dominicana não puderam comparecer.) Ela concebeu um conjunto de perguntas e solicitou que todos os participantes – entre eles Damián Bayón, Ticio Escobar, Jorge Glusberg, Ángel Kalenberg, Mirko Lauer, Frederico Morais e Marta Traba – as respondessem. 2 Em 1966, a UNESCO tomou a iniciativa de promover encontros sobre a cultura latino-americana, em diferentes cidades do continente e com a participação de críticos interdisciplinares de diferentes países latino-americanos. Cf. Simpósios da UNESCO focados em arte visual incluídos aqueles realizados em Quito, 1970, e Cidade do México, 1974 (organizados por Damián Bayón). 3 Aracy Amaral, declaração inédita, 18 out. 1980, Reunião de Consulta de Críticos de Arte da América, Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. 4 Aracy Amaral, declaração inédita, 18 out. 1980, Op. Cit. 5 Frederico Morais, declaração inédita, 18 out. 1980, Op. Cit. 6 Frase cunhada pelo crítico literário uruguaio Ángel Rama, que Morais cita em espanhol (“una remozada galería de dictadores”). 7 Aspectos da declaração de Morais de 1980 são por ele retomados em “Reescrevendo a história da arte latino-americana”, sua declaração curatorial para a I Bienal do Mercosul. Cf. MORAIS, Frederico. Apresentação. Catálogo Geral da I Bienal do MERCOSUL. Porto Alegre: FBAVM, 1997, pp. 12- 20. 8 AMARAL, Aracy. “Do Simpósio de Austin”. In: Idem. Arte e Meio Artístico: Entre o Feijoada e o X-Burguer. São Paulo: Nobel, 1983, pp. 222-225. Artigo publicado originalmente in Vida das Artes, Rio de Janeiro, jan.–fev. 1976. 9 AMARAL, Aracy. “Críticos da América Latina votam contra uma Bienal de Arte Latino-americana”. In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., pp 358-363. Texto publicado originalmente (em espanhol) in Revista del Arte y Arquitectura, vol 2, nº 6, 1981, Medellín, Colômbia. 10 AMARAL, Aracy. “A Bienal Latino-Americana ou o Desvirtuamento de uma Iniciativa”. In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., pp. 296-300. Texto publicado originalmente in Encontros com a civlização brasileira, Rio de Janeiro, out. 1978. 11 Na opinião de Marta Traba, a Bienal Latino-Americana revelou preconceito – e tratamento favorável – a certos países, como a forte representação brasileira, de 140 artistas. Supostamente, ela teria denominado a mostra de “Bienal racista”, apontando a falha em fornecer legendas para obras do Uruguai, Paraguai, Bolívia e República Dominicana, e a total ausência de artistas do Caribe e Equador. Cf. “Simpósio da Bienal termina com propostas e críticas”. Folha de São Paulo, 7 nov. 1978. Sua resposta in absentia à consulta feita por Aracy Amaral em 1980 expressou seu ceticismo, ancorado na decepção com o evento de 1978. 12 KRUSE, Olney. Mesa Redonda. A Bienal: A pesquisa de arte latino-americana, entre Mitos e Magia. Jornal da Tarde, São Paulo, 28 out. 1978, pp. 2–3. 13 Os 20 artistas registrados foram: Gabriel Borba, Artur Barrio, Mauricio Fridman, Ivald Granato, Claudio Tozzi, Lfer [Luis Fernando], Hélio Oiticica, Antônio Dias, Sérgio Régis, Ubirajara Ribeiro, Ruy Perreira, [Francisco] Iñarra, Genilson [Soares], Olney Kruse, Regina Vater, Gretta, Alfredo Portillos, Ibáñez Ma, Lygia Pape and Rubens Gerchman. Alfredo Portillos (membro do Grupo de Los Trece) participou tanto em ‘Mitos Vadios’ quanto na Bienal, assim como Marta Minujín – que, juntamente com Ana Maria Maiolino, foi um dos vários participantes não anunciados. Cf. PAULA, Arethusa Almeida de. Mitos Vadios: Uma Experiência da Arte de Ação no Brasil. Dissertação (Mestrado Interunidades em Estética e História da Arte), Universidade de São Paulo, 2008. 14 AMARAL, Aracy. “Do Simpósio de Austin”. In: Idem. Arte e Meio Artístico: Entre o Feijoada e o X-Burguer. Op. Cit. 15 BAZZANO-NELSON, Florencia. “Marta Traba: Internationalism or Regional Resistance?” In: Art Journal, winter 2005, pp. 87-89. 16 AMARAL, Aracy. “Aspectos do não-objectualismo no Brasil”. In: Idem. Arte e Meio Artístico: Entre o Feijoada e o X-Burguer. São Paulo: Nobel, 1983, pp. 384-385. 17 O manifesto foi impresso e distribuído durante o evento, bem como na Bienal; seu conteúdo foi reproduzido em artigos de jornal, entre eles BITTENCOURT, Francisco. “Dos Mitos e Magia aos Mitos Vadios”. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 2 nov. 1978 e PONTUAL, Roberto. “Hay Que Hablar”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 nov. 1978. 18 Ver as contribuições de Frederico Morais para o Simpósio de Austin, comentadas por GIUNTA, Andrea. “América Latina en disputa: Apuntes para una historiografía del arte Latinoamericano”, comunicação apresentada in Studies from Latin America. Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM/Rockefeller Foundation, Oaxaca, fev. 1996. Disponível em: http://servidor.esteticas. unam.mx/edartedal/ oaxaca.html 19 Manifesto “Mitos Vadios”, citado por BITTENCOURT, Francisco. “Dos Mitos e Magia aos Mitos Vadios”. Op. Cit. 20 Ver MARIANO, Walter Emanoel de Carvalho. Etsedron. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais), Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005. Mariano fornece uma convincente interpretação dos ambientes figurativos escultóricos do grupo – como uma animação da linguagem visual da xilogravura (meio que todos os membros do grupo haviam praticado na Escola de Belas Artes e que era fortemente associado à pedagogia radical e à política de esquerda no Brasil). 21 AMARAL, Aracy. “‘Etsedron’: Uma forma de Violência”. In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., pp. 247-248. Texto publicado originalmente (em espanhol) in Artes Visuales, México, abr. - jun. 1976. 22 WHITELEGG, Isobel. “The Bienal de São Paulo: Unseen/Undone (1969– 1981)”. In: Afterall, nº 22. Antuérpia – Londres – Sevilha, 2009, pp. 106–113. 23 Citado em diversos artigos de jornal, entre eles “Escándalo en la Bienal”. Punto de vista: Revista de cultura. Buenos Aires, mar. 1978, p 13. 24 AMARAL, Aracy. “O Regional e o Universal na Arte: Porque o Temor pelo Latino-americanismo?” In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., p. 293. Publicado originalmente in Suplemento Cultural, Estado de São Paulo, 8 out. 1978. 25 MORAIS, Frederico. “América Latina não pertence a São Paulo, Aracy”. In: O Globo, Rio de Janeiro, 13 out. 1978. 26 AMARAL, Aracy. “A Bienal Latino-Americana ou o Disvirtuamento de uma Iniciativa”. In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., pp. 296-301 e MORAIS, Frederico. “Bienal de São Paulo: o desencontro da América Latina”. In: O Globo, Rio de Janeiro, 10 nov. 1978, p 33. 27 Edison de Luz, citado em “Desmistificar valores culturais falsos: a proposta do Etsedron”. In: Folha da Tarde, São Paulo, 6 nov. 1978. 28 Hélio Oiticica entrevistado por Lygia Pape. Revista de Cultura Vozes. Rio de Janeiro, vol 72, nº 5, 1978, pp 363–370. Apud LAGNADO, Lisette. “II Seminário Semestral de Curadoria”. Revista Marcelina. São Paulo: FASM, 2009, pp 103–104. 29 MORAIS, Frederico. “Reescrevendo a história da arte latino-americana”. Op. Cit. 30 O termo não -objetualismo (arte não baseada em objeto) foi cunhado por Acha no México por volta de 1973, no contexto de uma abordagem marxista sobre protestos contraculturais, os coletivos de artistas mexicanos conhecidos como los grupos e os processos estéticos populares indígenas. Veja LÓPEZ, Miguel A.; TARAZONA, Emilio. “Juan Acha y la Revolución Cultural. La transformación de la vanguardia artística en el Perú a fines de los Sesenta”. Introdução de ACHA, Juan. Nuevas referencias sociológicas de las artes visuales: Mass-media, lenguajes, represiones y grupos [1969]. Lima: IIMA, Universidad Ricardo Palma, 2008, pp. 1–17. 31 AMARAL, Aracy. “Ainda a Bienal”. In: Idem. Arte e Meio Artístico. Op. Cit., p. 399. Publicado originalmente in Suplemento Cultural, Estado de São Paulo, 20 dez. 1981. 32 Walter Zanini, declaração inédita, 18 out. 1980, Reunião de Consulta de Críticos de Arte da América, Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. Os quatro pontos precisos de Zanini assemelham-se bastante a seu projeto para a Bienal Internacional de São Paulo de 1981 (o que indica que ele já havia sido convidado para a curadoria da bienal seguinte). 33 Ver FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Iluminuras, MAC USP, 1999. * N.T. Deve-se lembrar que este texto foi publicado originalmente em 2012. A autora preferiu manter a estrutura original do texto. 1984. Como Vai Você, Geração 80?: de Orwell ao Parque Lage Ivair Reinaldim Passados 30 anos, em um livre exercício de rememoração, quais acontecimentos ocorridos no ano 1984 – seja no plano local, nacional ou mesmo internacional –, teriam sido mais marcantes? Talvez, como resultado dessa tentativa, evidencie-se naquele ano o lançamento dos computadores Macintosh pela multinacional Apple, por representar, em retrospecto, um momento importante para o desenvolvimento informacional que se ampliará enormemente nas décadas seguintes; ou o boicote soviético às Olimpíadas de Los Angeles, mais um dos muitos atos simbólicos da Guerra Fria, que se prolongava desde o final da Segunda Guerra Mundial; outro dado que poderia ser citado por muitos, a reeleição de Ronald Reagan (1911-2004) nos Estados Unidos, reforçando o predomínio da política neoliberal na década de 1980, que alinhava o presidente norte-americano à primeira ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013), apelidada como Iron Lady (“Dama de Ferro”); ou ainda os comícios realizados em inúmeras cidades brasileiras para divulgar a campanha “Diretas Já!”, ação pública em prol da emenda Dante de Oliveira, que propunha o restabelecimento de eleições diretas para presidente do Brasil – rejeitada logo em seguida pelo Congresso Nacional, explicitando que, mesmo após a Anistia e início do processo de reabertura, os efeitos da ditadura militar ainda se faziam notar na política brasileira. Certamente, outros tantos acontecimentos, tão importantes quanto os aqui explicitados, poderiam e seriam enumerados. No campo mais específico da historiografia da arte, por exemplo, 1984 foi o ano em que o filósofo norte-americano Arthur C. Danto (1924-2013) escreveu seu célebre ensaio “The End of Art”, em que procurou situar a produção de arte contemporânea numa perspectiva histórica, chamando sintomaticamente esse período como “pós-histórico”. O texto é, em suma, uma reflexão a respeito do tempo histórico e dos limites impostos por suas narrativas (os modos de apreendê-lo e narrá-lo), temática que seria ampliada em 1995, com sua participação nas Conferências Mellon. Em uma das palestras proferidas na ocasião, Danto comentou que o principal acontecimento de 1984, para além da retomada da ideia hegeliana de “morte da arte” e mesmo de tudo o mais que possa ter sido registrado em anais, crônicas e relatos HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES históricos, foi predominantemente um “não acontecimento”, a saber, a não concretização do futuro imaginado pelo escritor inglês George Orwell (1903-1950) em seu emblemático livro homônimo: 1984.1 Em verdade, o que chamou a atenção do filósofo foi o fato de que o ano 1984 mostrou-se muito diferente da descrição feita por Orwell, quando em 1948 elaborou o que para ele – e talvez para muitos naquele momento – parecia ser uma inevitabilidade histórica. Danto salienta com essa observação, por um lado, a diferença essencial entre a escrita romanceada da história e aquilo que se entende como a história per se (uma escrita que segue certos parâmetros teórico-metodológicos no trabalho operacional e analítico de fontes documentais variadas); por outro, que a história não se institui apenas a partir do modo como o presente apreende o passado, mas igualmente através do peso que este mesmo presente dá à constatação de que certos passados idealizam sua compreensão particular de futuro. No caso do livro de Orwell, isso encontra-se bastante evidente: a imagem prospectiva do tempo narrado pelo escritor havia sido concebida a partir da experiência dos primeiros anos da Guerra Fria (ou seja, o autor descreveu uma preocupação do presente, em 1948, em relação ao futuro, em 1984). Na adaptação para o cinema, dirigida por Michael Anderson em 1956, a epígrafe de abertura do filme introduz a motivação: “Esta é a história sobre o futuro – não o futuro de naves espaciais e seres de outros planetas – mas o futuro iminente.” Ao criar uma assustadora distopia política, Orwell sugeria que a guerra não havia terminado em 1945, mas se desdobraria numa conjuntura ameaçadora, alertando para os riscos, sobretudo ideológicos, que os regimes totalitários poderiam ocasionar à humanidade. Na visão elaborada por Orwell, a história, mais do que uma entidade conceitual, era importante matéria a ser continuamente manipulada, explicitando que “quem controla o passado, controla o futuro”, a partir do pressuposto de que “quem controla o presente, controla o passado.” Desse modo, se o passado transforma-se em ferramenta fundamental para a manutenção de certas ideologias (no presente e no futuro), a questão de ordem prática é: “onde está o passado?”. A resposta de Orwell não deixa dúvidas: “nos registros e nas mentes humanas”. Sendo assim, “manipular” a história nas condições descritas em 1984 torna-se uma elaborada manobra de alteração das fontes e apagamento dos fatos – nos documentos e nas mentes –, num contínuo processo de reescrita das narrativas. Reescrever a História, enfim, passa a ser conscientemente uma estratégia de poder – algo que poderia ser entendido aqui como uma metáfora para a atitude e a responsabilidade do historiador diante dos fatos e das fontes, colocando-se uma série de questionamentos de ordem prática, política e ética: o que deve ser preservado? O que será recalcado? Qual a motivação dessas escolhas? Que história(s) será(ão) contada(s)? Para quem e a partir de que interesses? A análise de 1984 de Orwell demonstra como as dimensões temporais que constituem as noções de passado, presente e futuro estão intimamente atreladas, não podendo – sem comprometer uma visão mais abrangente e complexa da história – ser separadas. Pode-se, a partir desse caso, tanto na narrativa ficcional quanto na conjuntura política em que foi elaborada, constatar que a experiência do passado não só contribuiu para 200 IVAIR REINALDIM estabelecer uma determinada percepção do presente, como também foi capaz de gerar expectativas, possibilidades de futuro, caracterizando assim uma dimensão algo projetual. A experiência de interpretação (e, nesse caso, de manipulação) das fontes reforça o modo como o presente seleciona aquilo que é entendido como “passado”, construindo uma perspectiva determinada de “futuro”. “Experiência” e “expectativa”, enfim, constituem categorias históricas, e sua pertinência para a compreensão do tempo histórico é descrita pelo historiador alemão Reinhardt Koselleck (1923-2006): A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia. (...) Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.2 É nesse entre-deux experiência/expectativa que se evidenciam os processos pelos quais é possível verificar a permanência, incompatibilidade, apropriação e migração dos discursos, através de manobras para promover a manutenção tanto do “já dito” como do “não dito” (conservação das experiências), mas também as fissuras pelos quais surgem os enunciados e estabelecem-se novos discursos (expectativas capazes de gerar transformação e assim constituir novas experiências). Desse modo, mais do que o simbólico 1984 de George Orwell poderia efetivamente representar em termos políticos naquela ocasião, o ano de 1984 tornou-se invariavelmente diferente das previsões, pois nenhuma experiência é capaz de condicionar a concretização de um desejo, vontade ou escolha. Contudo, experiências podem gerar expectativas, essas sim capazes de moldar e direcionar projetos, prospecções e atitudes, transformando o presente, tanto quanto as experiências acumuladas do passado. A partir desses aspectos, é possível apontar para algumas questões referentes a outro acontecimento ocorrido em 1984, que logo assumiu grande importância na história da arte no Brasil: em 14 de julho, data simbólica da Queda da Bastilha, era inaugurada a emblemática exposição Como Vai Você, Geração 80? na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, sob a curadoria de Marcus de Lontra Costa (1954-), Paulo Roberto Leal (1946-1991) e Sandra Mager (1956-).3 A mostra reuniu 126 jovens artistas, provenientes de diferentes partes do país (embora predominasse os do eixo cultural Rio-São Paulo), que ocuparam os mais variados espaços do palacete eclético construído pelo industrial Henrique Lage (18811941) para sua esposa, a cantora lírica italiana Gabriella Besanzoni (1888-1962), e que desde 1975 abrigava a Escola de Artes Visuais.4 Em 30 dias de duração, realizada no período de férias da Escola, mais de 15 mil pessoas frequentaram a exposição, algo ainda incomum em um país que iniciara seu processo de redemocratização no início daquela década. Além de uma edição especial da revista Módulo como catá201 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES logo, apresentando um conjunto importante de depoimentos e textos inéditos de Frederico Morais e Jorge Guinle Filho, o evento contou ainda com o lançamento do livro Explode Geração!, escrito pelo crítico Roberto Pontual (1939-1994). Ambas as publicações tornaram-se importantes documentos para analisar não só a exposição, mas também a arte e a crítica de arte na década de 1980, e o evento projetou nacionalmente a Escola de Artes Visuais como um espaço experimental de criação e formação de artistas no Rio de Janeiro. A princípio, Como Vai Você, Geração 80? não era uma mostra de ou sobre pintura, e de fato o conjunto de trabalhos expostos era bastante heterogêneo, abrangendo esculturas, objetos, performances, vídeos, instalações, trabalhos processuais, etc. A proposta dos curadores era que os artistas ocupassem todos os espaços do prédio, incluindo os jardins do Parque Lage, em consonância com o clima de euforia pelo qual passava o país com a reabertura política. Contudo, a evidência de que a maior parte do conjunto de trabalhos estivesse abrangida na categoria “pintura” – a partir de uma livre escolha dos artistas sobre o que iriam expor – contribuiu para que essa exposição fosse considerada uma manifestação pública da volta da pintura no Brasil, tanto por parte da crítica de arte quanto pelo jornalismo cultural e pela historiografia posterior. A pergunta retórica que intitulava a mostra pretendia representar uma espécie de recepção cordial para uma nova geração de artistas brasileiros que começava a ganhar visibilidade. A problemática, no entanto, encontra-se no fato da exposição ter sido a principal responsável pela criação, disseminação e rápida repercussão do termo “Geração 80”, transformando-o em uma espécie de etiqueta historiográfica pouco precisa, utilizada para abarcar, se não toda, ao menos parte da produção de artes visuais do período. Compreender o sentido e abrangência dessa expressão-síntese, enfim, apresenta-se como tarefa fundamental para o historiador da arte que se dedique ao período. Em primeiro lugar, no que se refere ao debate acerca da retomada da pintura no Brasil, assim como o que já havia ocorrido na Europa e nos Estados Unidos desde a segunda metade dos anos 1970, várias exposições realizadas no país, entre os anos 1982 e 1983, procuraram dar destaque para a produção pictórica através da aproximação entre artistas de uma ampla faixa etária e cuja produção havia ganhado representatividade na história da arte brasileira em épocas distintas. Entre a Mancha e a Figura, ocorrida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1982, com curadoria de Frederico Morais, é certamente a primeira mostra com esse propósito, apresentando no conjunto obras de artistas de faixas etárias muito diversas, desde modernistas como Ernesto de Fiori (1884- 1945), Flávio de Carvalho (1899-1973) e Ivan Serpa (1923-1973), passando por Flavio Shiró (1928-) e Iberê Camargo (19141994), até nomes de artistas mais recentes, como Artur Barrio (1945-), Luiz Áquila (1943-) e Jorge Guinle (1947-1987). Outras iniciativas no Rio de Janeiro seguiram a mesma linha curatorial, tais como as mostras À Flor da Pele – Pintura e Prazer, curadoria de Marcus de Lontra Costa, e 3.4 – Grandes Formatos, organizada pelo artista Rubens Gerchman, ambas na Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio, em 1983. 202 IVAIR REINALDIM No mesmo ano, Frederico Morais organizaria a mostra Brasil Pintura, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, apresentando uma predominância de jovens artistas sobre os demais participantes, o que começava a reforçar a presença de uma nova geração no meio artístico brasileiro, tanto quanto a percepção de que a pintura tornava-se a linguagem preferencial entre os “artistas emergentes” da década de 1980. Começava, assim, a haver uma diferença no modo como o fenômeno de retomada da pintura era abordado pela crítica de arte.5 Esse contexto é importante, pois, como já dito, é a partir dele que comumente a mostra do Parque Lage é entendida como uma exposição síntese da “retomada da pintura” no país. Por um lado, pode-se ressaltar que de 1984 em diante os discursos engajados na afirmação da pintura como “o estilo dos anos 1980”, indicando o sentimento de um provável “espírito da época”, não mais se comprometiam em assinalar a contemporaneidade existente entre artistas provenientes de diferentes gerações etárias, e que estavam comprometidos com a produção pictórica naquele momento, passando a ressaltar de modo cada vez mais enfático a produção de jovens artistas como “a” manifestação contemporânea por excelência daquela década. Assim, o presente ganhava nova configuração, a partir do modo como as referências do passado eram selecionadas ou ressignificadas. Por outro, se o evento realizado na Escola de Artes Visuais não se resumia a uma exposição de pintura, parece correto afirmar que o termo “Geração 80” representasse essencialmente o modo como artistas compreendidos em uma certa faixa etária apresentavam similaridades de comportamento, mais do que uma escolha eletiva de parte desses jovens por determinado meio artístico. Quando, aproximadamente um ano antes da exposição, o artista Hilton Berredo (1954-) apresentou-se a Roberto Pontual como representante da “Geração pós-Pontual”, o comentário impressionou o crítico de tal maneira, que o mesmo decidiu escrever um livro a respeito das transformações ocorridas na arte brasileira no início da década de 1980, vivenciadas por ele à certa distância, pois havia se transferido para Paris algum tempo depois do incêndio do MAM-RJ – desastre que em julho de 1978 consumiu a maior parte do acervo do museu e também todas as obras da exposição América Latina: Geometria Sensível, por ele organizada. A partir daí, o encontro com artistas jovens, que não tinham conhecimento da influência e posição que Pontual havia assumido no contexto da década anterior, contribuiu para que o crítico retomasse a crença em uma convivência menos conturbada com o meio de arte. O forte “encantamento” que nutriu por essa nova geração, ao mesmo tempo, tornou-se um dos fatores que motivaram Marcus de Lontra Costa a organizar uma grande exposição-mapeamento da jovem arte brasileira, algo que de certo modo já ocorria no Salão Nacional de Artes Plásticas, Snap, também no Rio de Janeiro, mas que ganharia feições menos convencionais na proposta realizada no Parque Lage.6 A partir de uma declaração posterior de Marcus de Lontra Costa, é possível saber que o nascimento da expressão a relacionava com o uso corrente do termo “geração” (como já observado no comentário coloquial de Berredo), que rapidamente migrou do vocabulário publicitário concebido para particularizar o desenvolvimento 203 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES progressista da tecnologia, para a linguagem comum do dia a dia. De modo geral, trata-se de um período em que o contato com a televisão, entre outros aparelhos eletrônicos (videocassete, câmera de vídeo, etc.), e ainda em menor escala, com os computadores pessoais, constituía uma realidade vivencial cada vez mais marcante da população brasileira. Seria, enfim, a primeira geração de indivíduos cuja infância se caracterizou pela constante convivência com um amplo repertório de imagens e conteúdo gerado pelas emissoras de televisão e agências de publicidade.7 A origem do termo remontaria, enfim, tanto à vontade de sintetizar em uma única expressão um sentimento de identidade comum verificado na “nova geração”, uma vez que esses artistas apresentariam vivências supostamente similares, decorrentes de um contexto sociocultural compartilhado, e, ao mesmo tempo, em consonância com a cena de arte internacional (Zeitgeist), quanto por um anseio progressista, embasado em sensações generalizadas de “atualização” e “obsolescência”, desencadeadas por mecanismos mercadológicos, passando a considerar o caráter de atualidade (o que ocorre no presente) como padrão valorativo, em oposição à arte de um passado próximo, experimentada como algo não mais pertinente (obsoleta), e à expectativa temerosa (mesmo que irônica) de uma superação futura.8 Por um lado, temos uma referência quase que meramente comportamental; por outro, uma espécie de rótulo ou etiqueta. Eis aí as principais críticas feitas ao uso do termo, desde então. Se os curadores evitaram ressaltar explicitamente um sentido preciso para o termo Geração 80, bem como delimitar sua esfera de abrangência, isso não significou que outros críticos e artistas não procurassem insinuar algumas questões no exato momento em que o termo começava a ser assimilado pelo meio de arte. Jorge Guinle, por exemplo, no texto publicado no catálogo da exposição, reforçava o sentimento de Zeitgeist (embora não utilizasse esse termo) justamente na grande diversidade que caracterizava os artistas participantes do evento, algo que poderia ser estendido para toda uma geração de artistas que começava a atuar na década de 1980. Assim, a partir desse momento, cada polo cultural regional brasileiro foi capaz de produzir (através dos discursos de seus críticos locais) sua respectiva Geração 80. Essa abrangência esgarçada do termo, uma vez que era preciso incorporar a “pluralidade” característica da época, segundo Guinle, contribuía para que toda tentativa de definição mais sistemática fosse imediatamente transferida para uma “instância futura”, quando, afinal, pudesse ser possível desenvolver uma ideia mais precisa do que teria sido o fenômeno da “nova” geração. Evitava-se, assim, o desenvolvimento de qualquer conceituação ou julgamento antecipado.9 Em Explode Geração!, Roberto Pontual também reconhecia que sua preocupação recaía mais na vontade de reconhecer um fenômeno identificável do que caracterizar um conceito de arte, criando-se para isso naquele momento um termo que pudesse ser definidor, sem, na verdade, muito definir. Embora reconhecesse essa condição, Pontual alertava para os problemas daí decorrentes: A primeira certeza a estabelecer é se existe mesmo algo a que se possa a se chamar, com alguma correção, de Geração 80. Parece que sim, se levarmos em conta o número crescente de manifestações 204 IVAIR REINALDIM (mostras, textos, debates) que a ela se referem, nos últimos tempos, como uma realidade imediata e precisa. Parecerá mais ainda se, para além desses sinais de superfície, descermos até a análise de certos elementos profundos de prova: a reiteração de modelos de pensamento e de conduta, a incidência de idiossincrasias, o paralelismo de gestos e de gostos – enfim, o exercício de preferências. Nesse sentido, uma nova geração está seguramente em campo. Claro que será sempre um ato simplificatório dar a tais aparecimentos uma data fixa, sobretudo se for para nela recair a tendência da conta exata. Geração 80 corre o risco de ser uma figura de retórica como outra qualquer se, para defini-la, não encontrarmos a base concreta da evidência no plano estrito da linguagem. Ou seja, na assunção de um estilo – o seu estilo.10 Aí residiria outro problema: se Geração 80 define um estilo, “o estilo dos anos 1980”, difícil é saber como uma geração marcada pela pluralidade seria capaz de estabelecer uma determinada visualidade, um modo específico de se fazer arte. Devido à ênfase dada à pintura até aquele momento e à grande quantidade de artistas que se dedicavam a esse meio, era praticamente inevitável não concluir que, na fissura dos discursos, o termo viesse a definir nada mais que um “estilo” de pintura, mesmo que muitas das características identificadas na produção pictórica pudessem também ser localizadas em propostas realizadas em outros meios. A partir daí, o uso midiatizado do termo, criando-se grande euforia em torno dessa geração, contribuiu para que críticos e artistas ora o aceitassem ora o rechaçassem, conforme o caráter positivo ou não da situação em que era empregado. O crítico Paulo Herkenhoff (1949-), então diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas, Inap/Funarte, apontava para mais uma questão referente ao termo, ao perguntar retoricamente, no catálogo da exposição, onde estaria “a outra geração 80 fora dos temas e modos hegemônicos.”11 Com isso, alertava para a importância em se considerar a “não contemporaneidade dos contemporâneos”, uma vez que até mesmo indivíduos de uma faixa etária semelhante nem sempre vivenciam e elaboram de maneira comum as experiências decorrentes do contexto em que vivem. Assim, um “conceito” como Geração 80, aliado à força de certos discursos críticos (e midiáticos), ao mesmo tempo em que era capaz de dar grande visibilidade a determinadas tendências da época, inevitavelmente relegaria uma série de pesquisas a uma posição marginal, evidenciando que, apesar de seu caráter abrangente, implicitamente tornava-se um termo excludente. Uma vez assimilado à história da arte brasileira, caberia então às revisões historiográficas a tarefa de problematizar em que sentido um conceito geracional pode ser útil para o entendimento de uma época, sem que as diferenças que a constituem sejam excluídas (recalcadas) em prol do desejo de uma unidade utópica e, quase sempre, esquemática. Essa problemática em torno do termo Geração 80 relaciona-se intimamente a outra: a relação desses jovens artistas com seu passado imediato, isto é, com a arte produzida na década de 1970. A ideia de geração tornou-se uma importante ferramenta crítica para o desenvolvimento de um projeto histórico para a década de 1980, especialmente para aquele calcado no fenômeno da “volta” da pintura, por sua capacidade de se adaptar às diferentes necessidades estratégicas que foram sendo 205 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES delineadas à medida que a década avançava. No entanto, ao mesmo tempo em que o termo constituía-se como instrumento eficaz para esse propósito, estimulava a redução da pluralidade característica daquele período a uma suposta homogeneidade artística, ora negando com ênfase as práticas processuais ligadas ao conceitualismo, ora colocando sutilmente à margem todas aquelas propostas de arte que não se adequassem ao modelo que estava sendo gestado. Essa foi uma das tônicas de certos posicionamentos teóricos. No meio artístico brasileiro, Frederico Morais foi o primeiro crítico a salientar a oposição entre as décadas de 1970 e 1980, estando engajado, de certo modo, com o projeto pessoal de atualização artística, mediante seu contato com o que ocorria no contexto internacional (em termos de teoria e de produção de arte contemporânea). Em 1979, em um ensaio retrospectivo sobre a década de 1970 – tendo como subtítulo a sintomática pergunta “O fim da vanguarda?” –, Morais identificava uma perda de fôlego na arte experimental brasileira, em decorrência tanto da censura imposta pela situação política, quanto pela própria eminência do ocaso da vanguarda, que já vinha sendo anunciado no meio de arte internacional há algum tempo. Além disso, o crítico via em artistas como Waltercio Caldas (1946-) e Tunga (1952-) uma mentalidade menos visceral e empírica que aquela existente nos artistas da chamada “guerrilha artística”, surgida na virada dos anos 1960 para os 1970, e que compreendia Cildo Meireles (1948-), Antonio Manuel (1947-) e Artur Barrio, entre outros. Em seguida, argumentava que os jovens artistas da década de 1970 – mediante um contexto menos repressivo que aquele em torno do AI-5 – assumiram uma postura mais “cerebral”, ligada ao conceitualismo, o que explicaria o “caráter algo frio, metódico, racional da produção”, contribuindo para que ela perdesse em “espontaneidade” e em “generosidade”.12 A partir desse momento, então, tornou-se frequente nos discursos do crítico, a dialética entre a pintura expressiva dos anos 1980 e essa produção conceitual da década de 1970, aproximando-o, assim, do debate igualmente polarizado na cena internacional. Torna-se importante reproduzir aqui uma série de fragmentos de textos de Frederico Morais, escritos em diferentes momentos, e que demonstram a permanência desses discursos de oposição entre as décadas no decorrer dos anos 80. Em 1979, no texto para o Panorama da Arte Brasileira, exposição produzida pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, e naquela edição dedicada exclusivamente à pintura, já afirmaria, em tom hipotético: E na raiz desses novos comportamentos pictóricos pode estar o cansaço das tendências conceituais vigentes nos últimos dez ou quinze anos, a aridez de uma arte hermética, o tédio provocado por linguagens cifradas, quase cabalísticas, que necessitam de explicações, de uma arte paravisual que não se dirige aos olhos ou ao coração, mas à mente: a arte como ideia. Tem algo a ver com a necessidade de reconquistar o espectador com propostas visuais de encher os olhos e aliviar os corações, depois das homeopáticas e micro-emotivas propostas artísticas desta década.13 No catálogo da exposição 3.4 – Grandes Formatos, em 1983, reforçaria o argumento, já enfatizando particularidades da pintura que se produzia no início da década: 206 IVAIR REINALDIM E não por acaso a nova pintura dos anos 80, frequentemente suja e caótica, tem sido definida como ‘antiautoritária’. As novas tendências informais/figurativas, com toda sua carga de violência e emoção, de humor e sujeira, de temas obscenos e desbragada fantasia, surgem, assim, como uma reação à tautologia da arte conceitual, com seu intelectualismo hermético, e à assepsia da arte construtiva, em suas vertentes mais radicais, com seus sistemas, sua lógica e seu rigor purista. (...) Não é art about art, esta tautologia castradora da arte dos anos 70, é arte a partir da arte, uma coisa mais descontraída e aberta.14 Como passagem mais conhecida na historiografia da arte brasileira, no texto para o catálogo de Como Vai Você, Geração 80? procura deixar mais claras as diferenças entre as duas décadas, atacando a “empáfia” de artistas dito conceituais. Para o crítico, em suma, a pintura dos anos 80 é uma reação à arte hermética, purista e excessivamente intelectual predominante nos anos 70. Um retorno do artista a si mesmo, à sua subjetividade, mediante a liberação de uma fantasia não planejada ou controlada, e que se manifesta por uma intensificação do gestual e da cor, quase um neo-informalismo ou neofigurativismo. O que muitas vezes passava por rigor e objetividade na arte da década passada era, na verdade, um excesso de hermetismo, e este, por sua vez, era um álibi que escondia a empáfia dos artistas conceituais tratando de matérias – filosofia, economia, política, matemática – que não eram da sua competência. Contrariamente, quando os novos artistas propõem um retorno à subjetividade e à individualidade, eles estão querendo restabelecer a comunicação com o público, a partir de temas mais próprios ao universo da arte.15 Por fim, já no início da década seguinte, no catálogo de BR/80, exposição que procurou afirmar a importância e a abrangência nacional da pintura da década de 1980 – assumindo uma atitude de avaliação historiográfica –, Morais reforçaria seu ponto de vista crítico, salientando a expectativa em torno dos jovens artistas, após a predominância dos conceitualismos dos anos 70: Depois de uma década de arte assexuada, hermética e fria, que tinha sua correspondência em um discurso crítico que de certa forma introjetava o autoritarismo da vida brasileira, e em face, portanto, da própria evolução política interna (...) e das novas tendências da arte internacional (...), a expectativa em relação à nova geração de artistas brasileiros era muito grande.16 Diferentemente de Morais, Roberto Pontual não via no contexto brasileiro uma oposição intensa entre os dois períodos, afirmando que a “Geração 80” teria sido a “herdeira em linha imediata do que se acumulou nos últimos 20 anos”, isto é, da arte produzida nas décadas de 1960 e 1970. Para o crítico, a princípio, as atitudes artísticas e comportamentais díspares que podiam ser evidenciadas entre as diferentes gerações de artistas decorriam essencialmente das transformações advindas do contexto sociopolítico, em referência direta ao regime militar. Desse modo, considerava o artista dos anos 1970 como “filho adotivo” da ditadura, ressaltando que num primeiro momento, mediante a rejeição, esse filho havia saído às ruas, em antagonismo direto ao pai castrador, para depois, após o “milagre econômico”, mudar gradualmente sua postura. Nesse segundo momento, sob a influência de “Tanatos”, destacou-se a produção experimental, artistas que “eram certamente contra o estado de coisas vigente”, mas o contestavam 207 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES “com os seus próprios meios”, através do uso da metáfora, do retorno ao museu e, por fim, da ênfase na “razão” em detrimento da “emoção”. Já os artistas dos anos 1980, em contraposição, regidos pelo temperamento de “Eros”, eram considerados os “filhos plenos desse pai rude, severo, atrabiliário e manchado de sangue”, cumprindo o “papel histórico positivo do filho que nega com todas as suas forças o pai para firmar-se com individualidade própria”. Nisso, se não evidenciava um caráter radicalmente hostil à produção conceitual propriamente dita, por outro lado, assumia uma posição mais evidente no que tange à política das artes – aspecto que ficava menos explícito em Frederico Morais –, condenando abertamente o chamado “patrulhismo estético” da década de 1970: Nada de patrulhismo, nada de porra-louquice: duas doenças que em geral se excluem mutuamente, mas que às vezes ameaçam investir juntas. E, aí, viram pragas difíceis de controlar. Da primeira, fomos ficando livres desde que as patrulhas estéticas, formadas no caldo favorável da repressão (dos atos institucionais e das artes conceituais), tiveram que baixar suas armas com o advento da abertura e da anistia. Da segunda, que costuma naturalmente preencher o vazio deixado pela primeira, conseguimos o milagre de empurrá-la pela tangente, neutralizando-a, porque a crise passou a exigir algum comportamento, alguma seriedade. A Geração 80 teve sorte, então, de começar pelo exorcismo de seus dois maiores perigos: o de herdar o espírito patrulheiro, castrador e sentinela, que andara tomando conta também da arte ao longo dos anos 70, e o de aceitar o salto-mergulho nas facilidades do “agora tudo ficou sendo possível e permitido”.17 Assim, o crítico reforçava que a problemática não se encontrava na diferença visual ou processual dos trabalhos produzidos em ambas as décadas, mas, particularmente, na atitude de críticos e artistas. Tratava-se mais de um embate sobre diferentes visões críticas sobre arte do que uma emulação de determinado aspecto ligado a um ou outro trabalho de arte. É inegável que havia nos discursos de Frederico Morais e de Roberto Pontual uma euforia pela jovem produção, mas, num sentido mais profundo, insinuava-se também uma luta quase silenciosa contra certos posicionamentos críticos originários da década de 1970 que, sob o ponto de vista desses dois críticos formados no colunismo de jornal, aparentavam assumir enfadonhamente a tarefa de orientação e determinação teórica da verdadeira arte contemporânea brasileira. De algum modo, sob a iniciativa de abordar o fenômeno de retomada da pintura, praticamente esnobado por essa outra vertente crítica, havia uma estratégia de contraposição discursiva. Talvez por isso as ideias de Morais e Pontual tenham repercutido com tamanha força e abrangência – até mesmo por estarem em sintonia com o debate internacional –, encontrando algumas reverberações eventuais e menos saturadas em discursos de outros críticos brasileiros, como, por exemplo, Marcus de Lontra Costa e Aracy Amaral, para citarmos apenas o eixo Rio-São Paulo. Ao analisar-se o debate gerado a partir da exposição Como Vai Você, Geração 80?, assim como a problemática acerca do conceito-síntese (ou rótulo) “Geração 80”, é possível considerar como ambos operacionalizam conceitualmente a percepção do tempo histórico, ressaltando uma identidade temporal bastante precisa (certa apreensão do presente), em contraposição a acontecimentos e posicionamentos decorrentes da 208 IVAIR REINALDIM década anterior (certa seleção do passado), com vistas a destacar-se em uma projeção histórica específica (certo olhar para o futuro). Todas essas dimensões temporais foram concebidas a partir de determinadas escolhas, pessoais e interpessoais, conscientes e inconscientes, às vezes claras outras pouco precisas, que acabavam continuamente redimensionando-se, umas em relação às outras. Por sua vez, as categorias “experiência” e “expectativa” desenvolvidas por Koselleck contribuem para ressaltar a dinâmica e complexidade dessas articulações temporais na análise dos discursos da década de 1980, sobretudo mediante sua dimensão atual, no campo historiográfico. Mais do que explicar o que de fato o termo “Geração 80” pode e deve significar, o interesse aqui é reconstruir, à medida do possível, a trama ideológica em torno de seu surgimento, verificando como, a partir de olhares múltiplos, ele foi considerado na época e em que sentido tornou-se mais ou menos eficaz naquilo que se propôs. Refutá-lo nos dias de hoje seria ingenuamente tentar manipular a história, apagando fatos e fontes – o que se tornaria uma empreitada homérica e sem sentido. Compreendê-lo, naquilo em que guarda alguma coerência – e mesmo em suas incongruências –, na sua abrangência e em seus limites, é a tarefa do historiador da arte. Por ora, é importante considerar que foi utilizado para referir-se a artistas que começaram a produzir mais ou menos na mesma época – em geral na primeira metade da década de 1980 – e que não se dedicavam exclusivamente a um único medium artístico, embora houvesse o predomínio da pintura. Ainda, em segundo lugar, que é possível identificar artistas ou trabalhos que não participaram da mostra realizada no Parque Lage e podem ou não aparecer atrelados ao termo: de um lado, Angelo Venosa (1954-) e os artistas do ateliê Casa 7, compreendendo Carlito Carvalhosa (1961-), Fábio Miguez (1963-), Paulo Monteiro (1961-), Nuno Ramos (1960-) e Rodrigo Andrade (1962-), comumente vinculados a essa geração; por outro, Márcia X. (1959-2005), Alex Hamburger (1949-) e mesmo Adriana Varejão (1964-), aproximados com algumas ressalvas, enquanto artistas como Jac Leirner (1961-), Rosangela Rennó (1962-) e Ernesto Neto (1964-), por começarem a produzir na segunda metade da década, tendem a ser relacionados mais com os anos 90 do que com a Geração 80. Por fim, como qualquer conceito com permanência na história da arte, seu uso deve ser feito com moderação, pois na maior parte das vezes esse termos referem-se mais à história das ideias do que a história das obras. E as obras nem sempre se deixam submeter a ideias/ideologias, quase sempre, exteriores a elas. Hoje, o termo Geração 80 é certamente mais um objeto da história da arte, datado e localizado, do que da crítica (do juízo estético ligado às obras). 209 Notas 1 Cf.: DANTO, Arthur C. Três décadas após o fim da arte. In: _____. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Edusp: Odysseus, 2006 [1997], pp. 23-43. 2 KOSELLECK, Reinhardt. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas [1975]. In: _____. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. da PUC-Rio, 2006 [1979], pp. 309-310. Importante salientar que enquanto “conceitos” estão ligados à linguagem das fontes (como no caso do termo “experiência” para a arte dos anos 1970 ou “geração” para a de 1980), “categorias” são definidas posteriormente e estão ligadas à teoria da história. Para Koselleck, o emprego cotidiano das expressões experiência e expectativa não transmite em si uma realidade histórica, o que ocorre somente quando estas passam a constituir categorias, entrelaçando, desse modo, passado e futuro. 3 Esse ensaio possui como base a tese Arte e crítica de arte na década de 1980: vínculos possíveis entre o debate teórico internacional e os discursos críticos no Brasil, defendida pelo autor junto ao Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, em 2012, sob orientação da Dr. Glória Ferreira. No ano seguinte, a tese recebeu o Prêmio Gilberto Velho de Teses da UFRJ e foi indicada pelo Programa para concorrer ao Prêmio Capes de Tese. 4 O palacete fora ocupado em 1966 pelo Instituto de Belas Artes – IBA. Quando o artista Rubens Gerchman (1942-2008) assumiu a direção, em 1975, reformulou o currículo e transformou o antigo Instituto na atual Escola de Artes Visuais. 5 Duas outras exposições, de menor proporção, obteriam certo destaque em 1983, contudo, por motivo diverso das anteriores, por concentrarem-se na produção de jovens artistas. Em São Paulo, a mostra Pintura Como Meio foi concebida por Sergio Romagnolo (1957-), um dos cinco expositores, com apoio da crítica e diretora Aracy Amaral (1930-), no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP – Aracy Amaral chegaria mesmo a reforçar, no texto de apresentação, a faixa etária entre 23 e 26 anos desses artistas, destacando ainda mais sua já evidente “afinidade geracional”; no Rio de Janeiro, por sua vez, Pintura! Pintura! foi organizada pelo então jovem crítico Márcio Doctors (1952-), na Fundação Casa de Rui Barbosa, em torno de artistas que frequentavam os cursos livres da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. proferiu sarcasticamente: “A [Geração] 90 vem aí para passar por cima da gente”. In: MANCINI, Piero; ARAÚJO, Carlos (dir.). Geração 80. Vídeo realizado durante a abertura da exposição Como Vai Você, Geração 80?. Rio de Janeiro: Produtora Studio Line, 1984. Vale lembrar que em alguns discursos críticos também houve referência a uma atmosfera “apocalíptica”, ligada ao fim do milênio e à possível iminência de uma guerra nuclear (um dos sintomas do Zeitgeist). Isso explicaria, de certo modo, a grande ênfase dada ao presente, ao “aqui-e-agora”, uma vez que o futuro, muitas vezes, era vivenciado como incerto. 6 No ano anterior, Marcus de Lontra Costa e Paulo Roberto Leal fizeram parte do júri do VI Salão Nacional de Artes Plásticas, promovido pela Funarte, percorrendo ateliês e visitando exposições no país todo, o que contribuiu para a percepção de que algo novo começava a se evidenciar entre os jovens artistas. A partir de então, os dois começaram a planejar uma exposição-mapeamento, que ocorreria no MAM-RJ, mas por problemas de agenda, acabou sendo transferida para a Escola de Artes Visuais. 9 Cf.: GUINLE, Jorge. Papai era surfista profissional, mamãe fazia mapa astral legal. Geração 80 ou como matei uma aula de arte num shopping Center [1984]. In: Módulo – Catálogo oficial da exposição “Como Vai Você, Geração 80?”, Rio de Janeiro, edição especial, julho/agosto 1984. Também em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte brasileira contemporânea: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos: Contra Capa, 2001, p. 231; COSTA, Marcus de Lontra (cur.). Onde Está Você, Geração 80?. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 104. 7 “Sabe que eu não me lembro direito, mas eu acho que [o nome] surgiu em uma reunião com Ronaldo Macedo. Eu me lembro que a gente discutia muito a questão tecnológica da geração. A gente brincava dizendo assim: que era uma geração muito tecnológica a partir da relação dela com a televisão. A gente já falava em computador naquela época e aí quando a gente começou a falar em tecnologia e computador, tinha aquela história de computador de primeira geração, de segunda geração, de terceira geração... Eu não sei quem foi, falou assim: ‘Então é Geração 80’. Aí a gente achou legal (...)” COSTA. Marcus de Lontra. Entrevista realizada por Carlos Eduardo Vianna A. Soares, em 4 de agosto de 1997. In: SOARES, Carlos Eduardo Vianna A. O rastro da modernidade: o discurso da Modernidade e a pintura brasileira até o evento “Como vai você, Geração 80?”. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998, p. 145. 8 Hilton Berredo, já na abertura da exposição que “lançaria” a nova geração, 10 PONTUAL, Roberto. Explode Geração!. Rio de Janeiro: Avenir, 1984, p. 50; COSTA, Marcus de Lontra (cur.). Onde Está Você, Geração 80?. Op. cit., p. 111. 11 HERKENHOFF, Paulo. As primeiras respostas.... In: Módulo – Catálogo oficial da exposição “Como Vai Você, Geração 80?, Op. cit., s/p. 12 MORAIS. Frederico. Arte brasileira, anos 70: o fim da vanguarda?. In: Módulo, Rio de Janeiro, n. 55, p. 54, setembro 1979. 13 MORAIS, Frederico. Panorama confirma novas tendências da pintura [1979]. In: FERREIRA, Glória (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006, p 322. 14 Idem. Gosto desse cheiro de pintura [1983]. In: 3.4 – Grandes Formatos. Rio de Janeiro: Centro Empresarial Rio, 1983, pp. 7-8, 11. 15 Idem. Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você? [1984] In: Módulo – Catálogo oficial da exposição “Como Vai Você, Geração 80?”, Op. cit., s/p.; COSTA, Marcus de Lontra (cur.). Onde Está Você, Geração 80?. Op. cit, p. 101. 16 MORAIS, Frederico. Rio de Janeiro: prazer e reflexão [1991]. In: MORAIS, Frederico (cur.). BR/80: Pintura Brasil Década 80. 2a ed. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1992, p. 30; COSTA, Marcus de Lontra (cur.). Onde Está Você, Geração 80?. Op. cit, p. 116. 17 PONTUAL, Roberto. Explode Geração!. Op. cit., p. 59; COSTA, Marcus de Lontra (cur.). Onde Está Você, Geração 80?. Op. cit., p. 114. 1997. Bienal do Mercosul: Reescrever a História da Arte na América Latina (?) Bianca Knaak Porto Alegre, 1997. I Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Um projeto gerido por empresários gaúchos e administrado por uma fundação de direito privado que rapidamente se tornou referência nacional, e, regionalmente, modelar para o setor das artes visuais. Essa segunda bienal brasileira foi idealizada em 1996 e, enquanto projeto, nasceu assumindo o tom integracionista dos entusiastas do Tratado de Assunção para os países do Cone do Sul. Assim, a I Bienal de Artes Visuais do Mercosul (BAVM), com o intuito de celebrar e fortalecer o acordo para o MERCOSUL1, visou estabelecer um espaço simbólico estratégico para a integração econômica regional, que àquela altura já dava mostras de enfraquecimento político e comercial.2 A Bienal do Mercosul, como se popularizou chamar, foi desde o início atenta às imposições de um mundo mercadificado globalizadamente: chegou anunciando, pública e publicitariamente, sua pretensão internacional, disposta a constituir a si e à sua legitimidade identitária tanto pela abrangência e potência do evento artístico (a maior exposição) quanto pela extensão territorial desse mercado (América Latina) e, mais ainda, pela ambição curatorial de “reescrever a história da arte”. Contava para isso, artística e conceitualmente, com a respeitável curadoria de Frederico Morais. Na montagem inaugural do evento, o curador desprezou programaticamente a representação por nações em benefício das afinidades e identificações estéticas entre as obras. Essa estratégia de apresentação foi, à época, seminal para a construção de um entendimento histórico da arte na América Latina a partir de suas margens e fronteiras internas. Por isso mesmo foi, talvez, diante do conjunto de edições subsequentes, até o momento, a abordagem mais audaciosa em suas pretensões curatoriais e expositivas. Em que pese para isso o fato de ter sido a primeira edição de um evento de proporções inéditas em Porto Alegre. Mas a I BAVM pretendia reescrever a história da arte latino-americana e desde então foi difundida como a maior mostra de arte da América Latina. Isso porque, segundo Frederico Morais, a primeira tentativa brasileira de organizar uma bienal de arte latino-americana, ainda nos anos 1970, sofreu com a má condução do projeto, que a tornou HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 1 Fernando Limberger, 1997. Um. Instalação. ideologicamente subalterna e pouco afirmativa para a arte do terceiro mundo, como definiam seus organizadores, além de inviabilizar sua continuidade. Segundo Morais, “a ridícula representação de alguns países, a ausência de países com grande peso cultural (...) e, sobretudo dos nomes mais representativos da arte continental (...) anulam grande parte do significado desta Bienal”.3 Assim, a primeira e única Bienal Latino-Americana4 teria se consumido soterrada pelos erros de seus próprios gestores e curadores. Frederico Morais, defensor da insubordinação da arte latino-americana aos modelos hegemônicos vigentes, ao repudiar aquela bienal qualificou-a como a “última das grandes ideias de Francisco Matarrazzo Sobrinho”.5 Para o crítico, naquela mostra, “as falhas no que tange a representatividade da produção atual nos diversos países são tão gritantes que, a rigor, não se pode dizer que tivemos, em São Paulo (novembro de 1978), uma bienal latino-americana”.6 Talvez por isso, quase vinte anos depois, quando ele apresentou seu projeto curatorial para a I Bienal do Mercosul, enfatizou a possibilidade de apresentar, em Porto Alegre, a produção artística latino-americana em inédita revisão histórica. Cumpriria assim, com a Bienal do Mercosul, aquilo que, no seu entender, a despeito da frustrada e frustrante Bienal Latino-Americana, jamais tinha sido realizado no país. Para a edição de estreia da nova bienal ele pretendia, então, finalmente apresentar obras e artistas de significado basilar no contexto latino-americano.7 Exatamente por essa razão, chegou a receber algumas críticas que sublinhavam a excessiva presença de obras produzidas há mais de 30 ou 40 anos em relação ao evento, o que demonstraria uma visão curatorial histórica, e não, como queriam alguns, prospectiva da jovem arte do Cone Sul. Além do mais, em todos os lugares as bienais de arte costumam apresentar obras prioritariamente contemporâneas apesar dos sempre bem-vindos (principalmente pelos patrocinadores) resgates históricos. No entanto, foi sob o compromisso curatorial revisionista que os destaques artísticos seriam eleitos em cada país participante, a partir de um olhar panorâmico endógeno e orgânico, pretensamente autônomo e independente. Isso talvez tenha deixado espaço 214 BIANCA KNAAK para a prospecção contemporânea independente dos ditames do mercado internacional hegemônico, pois, afirmava Frederico Morais, Desde os tempos da colonização europeia, a principal marca da nossa marginalização é a ausência da América Latina na história da arte universal. Segundo uma perspectiva metropolitana, nós, latino-americanos, estaríamos fatalizados a ser eternamente uma “cultura de repetição”, reprodutora de modelos, não nos cabendo fundar ou inaugurar estéticas ou movimentos que poderiam ser incorporados à arte universal. (...) A questão como se vê não é ontológica, mas política e econômica, de poder, enfim. Afinal temos artistas que desde muito tempo integraram o ecúmeno da arte universal, como temos arte, isto é, teorias estéticas. Teorias que não se aplicam só ao contexto latino-americano, mas que podem ser instrumentos indispensáveis à compreensão de todo o processo da arte moderna e contemporânea.8 Não obstante, foi mesmo a abordagem da cena latino-america o que ancorou e foi, de fato, o grande diferencial da Bienal do Mercosul, em relação às demais. Isso atraiu a curiosidade (incredulidade, às vezes) dos agentes e animadores do circuito cultural nacional e internacional, como atesta o depoimento de Mari-Carmen Ramirez.9 Para ela, a Bienal do Mercosul, “(...) partindo de muitos ângulos, foi uma bienal cheia de revelações ainda para aqueles que sofrem já de um alto nível de ceticismo e por que não dizer de fastio diante deste tipo de evento”.10 Afinal, além de apresentar e contextualizar a cena contemporânea latino-america, a I Bienal do Mercosul pretendia revisar a lógica expositiva de eventos internacionais similares, como a própria Bienal de São Paulo e a centenária Bienal de Veneza. Exposição-ocupação Ocupando 34 espaços de Porto Alegre11 com exposições e atividades da Bienal, as 880 obras de 256 artistas foram distribuídas e organizadas seguindo as interpretações do curador. Ele estabeleceu para a produção plástica latino-americana uma divisão em vetores, a partir de três vertentes produtivas: a vertente “Construtiva – a arte e suas estruturas”; a vertente “Política – A arte e seu contexto” e a vertente “Cartográfica – Território e história”. Este recorte conceitual lhe permitiu exibir as obras não por países, mas por afinidade estética, como já dissemos, o que deu ao todo uma unidade artística ainda mais potente sob essas três vertentes criativas/propositivas. Essa divisão se revelava providencial, pois era preciso, a priori, “reescrever a história da arte universal”12 também na forma de apresentação visual da arte desse continente, colonizado por espanhóis e portugueses, depois, por tantas outras imigrações e movimentos. Além destas vertentes genealógicas13, uma curadoria de apostas inclassificáveis, por assim dizer, reuniu obras realizadas entre 1995 e 1997, por 11 artistas emergentes (3 dos quais brasileiros), num segmento intitulado Último Lustro e simultaneamente uma segunda mostra: Último Lustro – Arte e Técnica, reunindo Julio Le Parc, Eduardo Kac, Sammy Cucher e José Antonio Hernández-Diéz. Some-se a isso a homenagem ao 215 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 2 Carlos Cruz-Diez. Cromobus. Ônibus adesivado com tiras de PVA. Aqui fazendo a linha T2. artista argentino Alejandro Xul Solar (1887-1963) e ao crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981), a descentralização da mostra em 12 espaços expositivos distribuídos entre oficiais, alternativos, eventuais e inusitados, 2 seminários internacionais, 8 mostras paralelas oficiais, happenings, performances e intervenções urbanas – incluindo um jardim de esculturas (com instalação definitiva na cidade) e um ônibus de linha. Este ônibus, o Cromobus, proposta do venezuelano Carlos Cruz-Diez, foi todo adesivado, externamente, com tiras verticais de PVA laranja, verde, azul e preto, para tornarse uma obra de arte circulante. O coletivo, da empresa Carris, durante o período da exposição circulava atendendo passageiros normalmente e se alternou entre as linhas T2 e T5 da capital, ampliando a visibilidade do ônibus-arte e da própria Bienal que, assim entendia, estava também ampliando o acesso público à fruição artística.14 Entre tantas obras que circularam por Porto Alegre em 1997, devido à I Bienal, algumas permanecem até hoje, apesar das más condições de conservação e da depredação sistemática. Somadas, até 2014 a Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul já legou às ruas 15 obras de intervenção urbana definitiva em Porto Alegre, todas efetivamente instaladas próximas às margens do Lago Guaíba e ao ar livre. São obras oriundas da 1ª, 4ª e 5ª edições da Bienal do Mercosul15 e, desse acervo público-privado, o conjunto maior deve-se ao segmento “Escultura no Espaço Urbano” da primeira edição da BAVM. Sob esse segmento e acompanhando os interesses urbanísticos da municipalidade para uma área de aterro que margeia o Lago Guaíba e o shopping center Praia de Belas, houve a criação do Jardim de Esculturas Permanentes no Parque Marinha do Brasil, com obras dos artistas Amilcar de Castro, Aluisio Carvão, Francisco Stockinger, Franz Weissmann e Carlos Fajardo, do Brasil; Ennio Iommi, Julio Péres Sanz e Hernán Dompé, da Argentina; Francine Secretán e Ted Carrasco, da Bolívia. O outro segmento que atuava a céu aberto, “Intervenções na cidade”,16 também trouxe 10 artistas convidados com o objetivo explícito de ampliar o “acesso à produção artística para além dos espaços expositivos da 1ª Bienal”17. Ressalta-se ainda que “[...] os artistas procuraram estabelecer relações plásticas em espaços característicos da cidade, anteriormente impensáveis para abrigar projetos artísticos”,18como os de Gastón 216 BIANCA KNAAK Ugalde e sua performance na escadaria da rua 24 de maio, e Mario Soro, que elaborou uma pintura para a fachada do prédio das Lojas Tumelero, ambas no centro da cidade, além do trabalho conjunto de Eduardo Cardozo e Fernando Peirano: Contrato de Trabajo. Esta proposta consistiu na seleção de um pedreiro que, a partir de um anúncio de vaga publicado no jornal, ao ser contratado, “[...] pudesse livremente conceber e executar uma obra de arte, tendo como material apenas tijolos e argamassa”.19 O pedreiro Máximo Vieira Souza foi contratado pela Fundação Bienal do Mercosul para a realização da proposta/obra da dupla de artistas uruguaios. Ele teve à sua disposição 3.000 tijolos e a garantia de que receberia R$ 0,15 por tijolo utilizado. Foi assim que, no centro da cidade numa área de 8m² em frente ao Mercado Público, o Largo Glênio Peres, o então o pedreiro-artista elaborou uma grande cuia de chimarrão estilizada, um banco e um cercado, utilizando apenas metade dos tijolos disponíveis. Interrogado pelos artistas e organizadores sobre o que havia feito, ele justificou: “Não me preocupei em colocar uma maior quantidade de tijolos para ganhar mais dinheiro. Eu queria fazer algo bonito”. Contrato de Trabajo participava do segmento Intervenções Efêmeras que se voltava à inserção de obras em lugares muito populares da cidade, alguns inclusive conhecidos como atrações turísticas. Esses trabalhos distribuídos em via pública e, principalmente, fora dos museus de arte da cidade tiveram grande repercussão social e midiática, sendo apontados como interativos e democráticos. A partir de então, o sucesso da almejada ampliação do acesso à arte e a ativação de espaços públicos da capital para a recepção sensível da produção artística acabou por integrar a identidade da própria Bienal do Mercosul que em suas edições vindouras se expandiu por cidades do interior do Rio Grande do Sul, através de projetos específicos de residência artística ou de imersão exploratória. Perspectivas e Representações Tão audaciosa, a I BAVM foi ao mesmo tempo pouco prospectiva. Comparada às edições seguintes, a jovem arte contemporânea, stricto sensu, teve poucos expoentes. Num conjunto de 210 eleitos, o segmento Último Lustro, por exemplo, reuniria apenas 15 artistas, divididos em duas montagens. No entanto, naquele momento, esse recorte, sob o gigantismo estrutural do evento, representava uma base histórica necessária e basilar para uma Bienal em Porto Alegre. Mesmo sem abarcar toda América Latina e suas complexidades, a representação dos países extrapolou os signatários do bloco econômico comemorado e, além do Brasil, país anfitrião que destacou 50 artistas, compareceram representações da Argentina, com 43 artistas, da Bolívia, com 8 artistas, do Chile, com 20 artistas, do Paraguai, com 14 artistas, do Uruguai, com 22 artistas e, da Venezuela, país convidado, com 53 artistas.20 Para atender ao desafio de estarem todos “reescrevendo a história da arte latino-americana”,21 os curadores internacionais selecionaram um elenco de artistas que pudesse 217 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES resumir a trajetória pós-colonial das artes visuais em seus países de origem, mais especificamente no contexto moderno e contemporâneo. A seu modo, cada curador convidado ponderou, em seus territórios bem demarcados, as inegáveis influências estrangeiras, hegemonicamente europeias, assim como também as reveladoras e dinâmicas apropriações, releituras, fusões, inovações e retroinfluências desses modelos externos e seus sistemas artísticos. Neste sentido, Irma Arestizábal, partindo da produção artística dos anos 40 e chegando até meados dos noventa do século XX, se propunha a “entender y definir” a cena artística argentina “realizando ‘cortes’ cronológicos aproximados que nos den la visión de movimientos similares que surgieron o se influenciaron contemporáneamente”.22Ao passo que, Justo Pastor Mellado, do Chile, pretendia, com a sua seleção, “una aproximación problematizadora de las condiciones de constituición de la última treitena de produción artística chilena (...) al hacer uso de dos nociones: transferência y transversalidad”.23 Para Mellado, a transferência, que ele elabora como conceito operatório, significa a assimilação não linear com que os artistas chilenos incursionam pelos movimentos e tendências artísticas estrangeiras. Mas a influência na produção local, advinda destas assimilações, ou como prefere Mellado, transferências, também podem aproximar-se, conceitual ou referencialmente, ao trabalho de outros artistas, não exclusivamente latino-americanos. Transversalidade e transferência são conceitos que Mellado ainda utilizará para explicar a representação chilena na II Bienal do Mercosul24 como continuidade de sua reflexão nessa primeira edição.25 A curadoria da II Bienal do Mercosul26 buscou a pluralidade de manifestações de identidades questionando “o espaço do regional em um mundo globalizado” e também “em que medida a globalização destrói ou acolhe diferentes identidades culturais?”27 o que lhe era, teoricamente, bastante propício em termos analíticos e artisticamente palpável na produção chilena em destaque. Irma Arestizábal e Justo Pastor Mellado valeram-se, ambos, de uma proposta metodológica que veremos reproduzidas nas demais curadorias mesmo que, por alguns curadores, este horizonte metodológico reversível tenha sido alargado em seus pressupostos históricos e cronológicos. É o caso, por exemplo, da curadoria boliviana de Pedro Querejazu. Ele anuncia em seu texto de apresentação que, com os 8 artistas bolivianos destacados, trazia “una visión analítica dentro del Cono Sur americano con relación al arte contructivo, a la cartografia y a la vertiente política”.28 Portanto, atendo-se estritamente ao eixo curatorial proposto por Frederico Morais. Para cumprir seu propósito, o curador faz uma releitura histórica das condições bolivianas de desenvolvimento artístico desde o século XVII até a geração 90, do século XX. Querejazu considerou, nestas imbricações estéticas, sobretudo as influências do Barroco e do “mundo mítico-religioso del Barroco mestizo” e do “Neoclasicismo como expresión de la modernidad, de la ilustración y del racionalismo”, substituídos, no século XIX, pelo “Academismo, mucho más estricto y sóbrio en sus parámetros estéticos.” Assim, até chegar ao século XX, “en Pós de una imagen própria”,29 ele nos apresenta um percurso a partir de 218 BIANCA KNAAK um roteiro influenciado e mestiçado pelo barroco, pelo neoclassicismo e pelo academicismo, configurando, assim, uma arte nacional que em muito se alimenta, ainda, de suas referências coloniais e das quais não consegue emancipar seu imaginário. É a partir de 1977 que Pedro Querejazu seleciona as obras apresentadas. No entanto, a maioria destas obras fora produzida nos anos de 1990, as quais o curador situa, sem nos dar muitos detalhes, como uma produção que se alterna entre a pós-modernidade e a trans-modernidade. En la década de los años noventa, la constatación de la compleja realidad pluricultural y multilingüe del país, y de la existencia de muchas corrientes estéticas y de pensamiento, se hacen evidentes en el arte. Han desaparecido las polarizaciones ideológicas, se desdibujan los limites, y el panorama pareciera confuso. El arte boliviano de los últimos años se manifiesta en forma eclética y grotesca, acaso asumiendo el debate sobre lo pluricultural y multiétnico y el fin de los purismos. Las tendências y manifestaciones estéticas tienen gran diversidad.30 Se nos anos 1990 as tendências e manifestações estéticas tiveram grande diversidade, foi também sob a mesma perspectiva (um olhar retroativo esclarecedor) que se empenhou Tício Escobar, curador paraguaio. Sem descuidar-se da classificação em vertentes produtivas, conforme propôs Frederico Morais, com sua seleção, Escobar entende que se pode: (...) arriesgar una cierta mirada de conjunto, necesaria para una historia que hoy precisa tanto expulsar las visiones totales como rearmar un mínimo proyeto colectivo. (...) Para ello resume (...) la producción artística actual del Paraguay confrontando dos momentos suyos: el primero coincide con el período de la dictadura militar y corresponde al momento propriamente moderno y vanguardístico; el segundo concuerda con el momento llamado de transición y converge con ciertas posturas derivadas de la critica a la modernidad.31 Enquanto isso, com sua curadoria de 22 artistas, Angel Kalenberg pretendia explicar que a permeabilidade dos artistas uruguaios às influências exógenas se dá, desde os anos 1940, de forma seletiva e ambígua: [En el] arte uruguayo de los útimos sesenta años (...) se asiste a la transformación de aquello que recibe de los centros, lo qual precisamente nos há llevado a caracterizar al uruguayo como un arte permeable. Esta permeabilidad no significa epigonismo ni alucinación por el internacionalismo, sino un arte de asimilación, por el cual las corrientes extranjeras son incorporadas selectivamente y elaboradas, evidenciando que el médio artístico uruguayo resultó tener una refracción peculiar. El próprio Joaquin Torres García padeció esse fenômeno y acaso la actitud ambivalente de sus soluciones plástico-teóricas no sean sino consecuencia de esa refracción, de una selectividad que va em la senda del serenamiento racional y del control, de la ponderación.32 Sob essa ótica permeável e com os artistas destacados por sua assimilação estética ponderada, o curador procurou demonstrar como a produção artística uruguaia ainda era em 1997, em larga escala, tributária do legado de Torres García.33 Para ele, “los movimientos formalistas europeos, cubismo, neoplasticismo y contructivismo, o sea, las corrientes en las cuales el artista impone la racionalidad, somete el ‘impresionismo’ subjetivo a las reglas (objetivas), irrumpen en Montevideo con el regreso de Torres García em 1934”.34 Já Roberto Guevara, curador da mostra venezuelana, fez uma interpretação identitária mais política e prospectiva. Como país convidado, ele trouxe 53 artistas para propor uma 219 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES “lectura de la creación en la Venezuela como un arte para una era de câmbios”.35 E também inicia sua apresentação com a contextualização conjetural da emancipação de seu país: La emancipación de Venezuela no es simple ruptura con las metrópolis europeas; es un complejo proceso de violento crecimiento expansivo, acorde con la idea de concebir el continente americano como el proyecto cultural y social más importante y vasto de la humanidad. Todo um Nuevo Mundo es en consecuencia planteado con la independência, basado en los derechos universales del hombre derivados del Enciclopedismo Francês y las visiones de hombres como Simón Bolívar, para quienes la ‘pátria es América’.36 Seguindo-se a este parágrafo introdutório, Roberto Guevara analisou a profusão artística venezuelana, em direta implicação política ao longo de sua história, introduzindo a leitura das obras apresentadas a partir do engajamento de seus autores, um a um, nas tendências estéticas unificadoras (as vertentes produtivas) da produção nacional. Sua abordagem se assenta numa possível classificação histórica da arte no território latino-americano por leituras e interpretações reversíveis como previa o curador geral da Bienal. Talvez por conta dessa reversibilidade constatada, ou seja, concepções estéticas e teóricas que se aplicam em circunstâncias, instâncias, nacionalidades e territórios distintos, o próprio Frederico Morais, curador geral e curador da representação brasileira (a segunda maior desta Bienal: apenas 3 artistas menos que a representação venezuelana), parece minimizar a importância do enquadramento dos artistas destacados nas vertentes produtivas propostas. Para favorecer leituras mais abertas e fluidas, ao apresentar os artistas escolhidos, Morais nos previne com declarações do tipo: “o artista brasileiro não é, pois, de fechar questões. Prefere deixar uma porta aberta, consciente de que há, sempre, a possibilidade de reabrir o debate, de estabelecer novas pontes em busca de novos caminhos”.37 Estabelecer pontes, para Douglas Crimp, é expressão de que se valem curadores e críticos de arte para, “calculadamente”, não precisar dizer nada que extrapole o limite e o sentido puramente estético na análise das obras em questão. Ainda segundo Crimp, ao valer-se do termo ponte, o curador ou crítico “recorre novamente ao mito da versatilidade artística para diminuir a importância da produção artística verdadeiramente alternativa e socialmente engajada”.38 Mas, no caso em que empregou Morais, está mais próximo de um pendant (como ele mesmo usa) com outras produções e contextos artísticos, mais ou menos alternativos, políticos e socialmente engajados, pois, segundo Morais, “quando se faz necessário o artista brasileiro sabe ser radical”.39 Contradição ou paradoxos? Frederico Morais solicitou aos curadores estrangeiros que os representantes de seus países fossem eleitos a partir de um olhar “descolonizado”, supostamente o mesmo olhar pretendido para os artistas brasileiros. No entanto, ao apresentar seus próprios critérios para a seleção brasileira, ele apontava para uma produção emergente equi220 BIANCA KNAAK valente à produção dos grandes centros internacionais, o que desconstruía sua tese curatorial de uma classificação da arte por vertentes: Na arte brasileira dos anos 90, na criatividade plástica do último lustro do século XX, não existem mais fronteiras entre vertentes, tendências, temas, formas, atitudes, comportamentos. (…) O que temos, hoje, são re-criações, re-composições, re-leituras, re-apropriações e re-ready-mades.40 Àquela altura, os parâmetros do curador não eram apenas a expressão de preferências particulares. Antes, eram já naquele contexto a indicação judicativa de um campo artístico que se organizaria noutra plataforma de afirmação. Ou seja, naquela Bienal que pretendia a descolonização da história da arte, ironicamente exibia-se o alinhamento da produção recente com a arte promovida nos centros euro-norte-americanos. Afirmava-se a força do mainstream internacional para a difusão artística hegemônica. Em bienais e eventos tais, mais do que a internacionalização, o alvo era (e continua sendo) a visibilidade internacional advinda dos modos de exposição que progressivamente minimizem dissidências ao modelo, digamos assim, ao mesmo tempo em que não inibem a experimentação de iniciativas de resistência estética, conceitual, política. Ao revisarmos a seleção brasileira, apesar das intenções do curador, perceberemos que os artistas destacados não foram constituídos pelo sistema artístico local segundo um programa estético contra-hegemônico propriamente dito. E mais: do universo composto por 50 artistas brasileiros selecionados para uma apresentação histórica, em 10 anos, 28 deles tiveram suas produções reivindicadas para participar também FIGURA 3 Jorge Barrão, 1997. Instalação. Um porco, cinco galinhas, um galo e uma cadelinha, escolhida no canil da UFRGS, faziam parte da obra. 221 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES de outras edições da própria BAVM. Estes dados denotam o pioneirismo da curadoria de Frederico Morais para um projeto potencialmente revelador, descentralizado (uma bienal em Porto Alegre), inaugural no contexto regional globalizado (MERCOSUL), mas denotam também a afirmação de uma narrativa que constrói uma tradição artística que, na contemporaneidade, valora e legitima a produção brasileira condicionada ao fato de ser exibida internacionalmente. Ao esclarecer suas escolhas, Frederico Morais expõe a peculiaridade de uma atitude menos comprometida, por parte dos artistas nacionais, com a ética dos encaminhamentos das questões estéticas no Brasil. Isso se justificaria, segundo o curador, pelo tamanho de nosso território e pela afirmação de uma identidade artística formada e informada, muito mais voltada para fora, do que para seus pares latino-americanos. Apesar de suas fronteiras geográficas, o Brasil “raramente se pensou como América Latina” e, isso se revelaria na ausência de “uma política de integração continental na área cultural”.41 Uma postura de distanciamento e deslocação identitária no conjunto latino-americano por certo contraria a “idea de concebir el continente americano como el proyecto cultural y social más importante y vasto de la humanidad”, como apontava o curador venezuelano Roberto Guevara.42 Mesmo assim, segundo Morais, são características da produção artística brasileira – “do modernismo à contemporaneidade – a ausência de dogmatismo e sectarismo estético”. Segundo o curador, diferentemente dos demais artistas latino-americanos, “o artista brasileiro não é de viajar muito para o exterior”. Pelo contrário, prefere ficar na terra natal “e, de preferência, em sua província natal”. Portanto, “num país de dimensões continentais como o Brasil, com grande diversidade cultural, as regiões ou polos regionais exercem um papel moderador no tocante às influências vindas do exterior”. E, com todo esse comodismo regional, por aqui não encontraria eco uma “atitude fechada e autoritária como a de Siqueiros que, no auge do muralismo mexicano, dizia que ‘la única ruta es la nuestra’ ”. Ou mesmo um artista com a postura de Torres García que, na visão de Frederico Morais, “impôs à arte uruguaia, mediante uma pregação, próxima da catequese, sua teoria do Universalismo Construtivo”.43 O Brasil não é coeso em suas produções simbólicas. Tampouco se define estética, política ou artisticamente a partir de paradoxos. E a produção brasileira que Morais destacou para sua parcela de responsabilidade pela reescritura da história da arte latino-americana era tributária, principalmente, dos efeitos locais da modernização, pois, a partir de 1951, a Bienal Internacional de São Paulo “ajudou a acertar os ponteiros da arte brasileira de acordo com o relógio da arte internacional”, num evidente esforço de “atualização plástica”44 que já havia sido iniciado com o trabalho dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e Rio de Janeiro. Por fim, analisando a produção mais jovem de sua exposição, incluída no segmento chamado Último Lustro, Frederico Morais conclui: Na arte brasileira dos anos 90, na criatividade plástica do último lustro do século XX, não existem mais fronteiras entre vertentes, tendências, temas, formas, atitudes, comportamentos. Tudo é deslizante, híbrido, anfíbio. Dogmas e regras deixaram de prevalecer. Tudo se mescla, tudo se recompõe. Nada mais 222 BIANCA KNAAK existe em estado de pureza – geometrias, conceitos, figurações. O que temos, hoje, são re-criações, recomposições, re-leituras, re-apropriações e re-ready-mades.45 Partindo das observações de Frederico Morais, no texto intitulado “Arte brasileira; lo de afuera lo de adentro”,46 o que se pode concluir sobre a produção artística brasileira selecionada para a I Bienal é que, nas grandes mostras de artes visuais, como a Bienal do Mercosul e a própria Bienal de São Paulo – que teria o papel de “elaborar leituras da arte brasileira e internacional” e “de formular um ponto de vista sobre o que acontece no universo da arte” –, existe um nível de celebração visual e aproximação formal e conceitual quase homogêneo. Modos de ver e reescrever a história da arte Se a primeira edição da Bienal do Mercosul encontrou condições especialmente favoráveis à sua realização, já a continuidade deste projeto foi sempre um desafio político, econômico e curatorial, nesta ordem, balizada por suas repercussões públicas e midiáticas. No entanto, a reescritura pretendida pela I Bienal do Mercosul alinhava a produção artística latino-americana recente com a arte contemporânea exibida nos centros hegemônicos internacionais. E, na verdade, com variações e singularidades ao longo de suas edições, o que acompanhamos com a Bienal do Mercosul na capital do Rio Grande do Sul foi a internacionalização de uma exposição de arte contemporânea que, desde o início e sistematicamente, vem ocupando vários espaços públicos e interferindo nos modos de pensar e fomentar a arte não apenas através de intervenções na paisagem urbana, mas principalmente em seus desdobramentos cultural, social, artísticos e econômicos. Frente a eventos pares, no entanto, a repercussão dessa Bienal parece ainda não estabilizada consensualmente. Talvez hoje um pouco mais, sobretudo nos circuitos acadêmicos e universitários, pois a afluência local de obras de artistas nacionais e estrangeiros, às vezes em exibição inédita, amenizam a falta de grandes acervos e políticas culturais consolidadas no estado que pudessem melhorar as “condições de visibilidade cognitiva e pública da arte brasileira”.47 Alguns pesquisadores já se dedicam a analisar as exposições das Bienais do Mercosul in loco e também a partir de seus registros em catálogos. E, de parte a parte, percebe-se a vontade de enfrentar questões relativas à “geopolítica dos intercâmbios entre o Brasil e outros centros, uma reescritura da história global da arte parecendo encontrar hoje contexto mais favorável, mas ainda não concretizado”.48 Não por menos, de uma primeira edição gigantesca, a mostra vem se reinventando conceitualmente e adequando também em dimensões e orçamentos, mas ainda está longe de abandonar o megamodelo em que a organização unificada da cultura artística regional reunida ainda se mostra um recurso promocional análogo às necessidades econômicas e comerciais do mercado internacional. Nesse cenário global que fomenta bienais e instâncias espetaculares de visibilidade, pode-se lamentar que numa “cultura internacional de comunicación y espetáculo el 223 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES arte como cuestionamiento ha perdido no solo relevancia sino capacidad crítica y desde luego capacidad transformadora”.49 No entanto, em 1979, Frederico Morais, aliando-se ao pensamento de Aníbal Quijano, já alertava: (...) a realidade cultural deve ser encarada como um sistema paralelo (ao social e econômico) de dominação, enquadrando a pluralidade cultural de países dentro de um sistema nacional e mundial de dominação. Quer dizer, o problema está em localizar, dentro do país, os intermediários dessa cultura dominante, como as linguagens internacionais atuam dentro de cada país, quais são seus agentes, veículos ou canais de divulgação, quais são as estruturas e estratégias de ação: exposições, bolsas de estudo, revistas, bienais, crítica de arte, etc.50 Segundo Mari-Carmen Ramirez, de acordo com as obras apresentadas em mostras internacionais irradiadoras, tais como a Bienal do Mercosul, lamentavelmente aquilo que para nós latino americanos “se podría apreciar cómo uno de los rasgos más sobresalientes, de las manifestaciones contemporáneas en el continente, es su nivel de paridad formal y conceptual con las prácticas centrales”.51 Tal constatação pode bem apontar a voluntária submissão dos artistas aos modelos hegemônicos, em detrimento das abordagens identitárias (locais, regionais, nacionais) de cunho ideológico mais ou menos evidente, mais ou menos engajada. Além do quê, pelo formato em que se apresentam as grandes exposições internacionais e de acordo com os movimentos artísticos contemporâneos, a derrocada das hierarquias simbólicas enfatizada pela reprodução midiática global das culturas pode neutralizar diversidades e pluralidades. Assim, apesar das reiteradas afirmações e reivindicações das diferenças, destaca-se o fato de a produção artística recente dos países participantes das primeiras edições da Bienal do Mercosul estarem tão próximas entre si, conceitual e esteticamente. A nacionalidade dos artistas, neste caso, não foi suficiente para distinguir peculiaridades ou assimetrias históricas, tampouco para antepor dissidências visuais ao circuito hegemônico. Pelo contrário, em grande medida, observamos um alinhamento artístico seduzido pelo mainstream internacional, no qual se reconhece uma conjuntura macropolítica sobreposta às possibilidades identitárias e nacionais em questão. Por isso, apesar de todas as considerações sobre as opressões hegemônicas às quais estariam submetidos os artistas periféricos sob os auspícios da globalização econômica, no conjunto das exposições trazidas pelas primeiras Bienais, também não se destacam as implicações estéticas mais diretamente derivadas dessa situação em seus contextos locais. Menos ainda, das possíveis atualizações dos circuitos artísticos em suas instâncias de produção, circulação e consumo da arte e das pressões do mercado e suas estratégias de consagração e legitimação, tanto que percebe-se nos últimos anos a simultaneidade internacional de eventos de arte e a potencialidade midiática desses eventos repercutindo na redução do caráter nacional da obra de arte e das produções estéticas em geral. A arte contemporânea, que assim se difunde, permite “el reordenamiento de los mercados e imaginarios nacionales bajo la lógica globalizadora, y el pasaje del liderazgo de las vanguardias cosmopolitas a instituciones y empresarios glocalizados”.52 224 BIANCA KNAAK Nessa perspectiva conflui a reordenação curatorial da Bienal do Mercosul que, nos seus recortes geopolíticos, vem revisando, dilatando e transpassando artisticamente seu sítio por outras nacionalidades, praticamente em todas as edições. Isso já era observável na primeira edição, ainda que em 1997 a questão estivesse limitada às reflexões teóricas, e foram compartilhadas principalmente nos seminários internacionais que a I BAVM promoveu. Note-se por fim que, até a 5ª edição, os curadores gerais da Bienal do Mercosul sempre foram brasileiros, atuantes notadamente no eixo Rio - São Paulo, porém com experiência internacional. Mas, a partir 6ª edição, realizada em 2007, pela primeira vez a Bienal do Mercosul teve um curador estrangeiro, Gabriel Perez-Barreiro, o que imprimiu um novo olhar para a constituição dos critérios seletivos da mostra, estabelecendo leituras progressivas e sistemicamente transversais que nas edições futuras puderam também evidenciar obras e artistas que se desprendiam de seus territórios pátrios e se perfilavam em sensibilidade estética e construção artística hors sol. Essa nova aposta da Fundação Bienal do Mercosul de certa forma radicalizava as experiências maturadas pelos curadores das edições anteriores. Também deslocava a ordem de exposição das obras de um modo de apresentação da arte do MERCOSUL para a apreensão cognitiva da arte a partir do MERCOSUL. E as falas curatoriais aqui destacadas já apontavam, em 1997, à diversidade cultural que pulula sob a alcunha de latino-americanismo e são afirmativas quanto ao fato de que, neste território, mais do que semelhanças, o que nos qualifica são as diferenças, muito embora não esteja claro, nas formas de apresentação expositiva ou nos argumentos dos curadores, o tipo de experiência que se pode propor ou desejar a partir de uma reiterada necessidade de integração cultural. Mas sabemos que a afirmação de Milton Santos – de que a origem da história se encontra na contradição entre mundo e lugar – foi transposta por Frederico Morais para o campo das artes visuais e inspirou sua curadoria para I Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Assim, passados 18 anos desde a primeira edição da Bienal do Mercosul, ainda encontra eco a possibilidade de uma reescritura afirmativa da história universal da arte. Mesmo que seja preciso renovar o fôlego e atualizar os meios, métodos e modos de ver, conceber, descentralizar e multiplicar essa escrita. Ou não? 225 Nota 1 Mercado Comum do Países do Cone Sul. 2 O mesmo entusiasmo com que, na 4ª edição da Bienal do Mercosul, apontariam Simón Bolívar, encontrando neste personagem, um ícone distante ainda eficiente para seus discursos de integração cultural e artística. 3 MORAIS, 1979, p. 63 – 64. 4 São Paulo, Nov. 1978. Curadoria de Juan Acha, crítico peruano radicado no México. Teve como tema condutor o título “Mitos e Magia”. Supercuia de Saint-Clair Cemin e, na 5ª edição, do segmento “Transformações do Espaço Público”, as obras de José Resende, Carmela Gros, Waltercio Caldas e Mauro Fuke. 26 Fábio Magalhães e Leonor Amarante, curadores geral e adjunto, respectivamente, na II e III Bienais do Mercosul. Na II edição, Leonor Amarante respondeu pela seleção de artistas brasileiros. 16 Tanto o segmento “Escultura no Espaço Urbano” quanto “Intervenções na cidade” e já na 5ª edição o segmento “Transformações do Espaço Público”, foram coordenados por José Francisco Alves (Brasil). 27 MAGALHÃES, 1999, p. 16. 17 FIDELIS, 2005, p. 60. 31 ESCOBAR, 1997, p. 312. Note-se que Ticio Escobar reclama, na citação acima, a necessidade de se reorganizar, na América Latina, um “mínimo proyecto colectivo”, para o quê, noutras oportunidades, ele apontará a Bienal do Mercosul como iniciativa louvável. 18 Idem. 5 ALAMBERT, 2004, p. 150. 19 Ibidem. 6 MORAIS, 1979, p.63. 20 A inclusão de países convidados tornou-se uma prática recorrente nas cinco primeiras bienais e, além da Venezuela, participaram como convidados a Colômbia (1999), o Peru (2001) e o México, por duas vezes consecutivas (2003 e 2005). 7 Frederico Morais apresentou à Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul também o projeto de sua segunda edição, onde contemplaria a participação de Iberê Camargo artista que foi deixado de fora da primeira edição da Bienal do Mercosul. 8 MORAIS, 1997, p. 12 – 13. 9 À época curadora da Archer M. Huntington Art Gallery, da Universidade do Texas. Durante a Bienal do Mercosul participou do seminário “América Latina vista da Europa e dos Estados Unidos” (Porto Alegre, 03 a 05 de novembro de 1997), na mesa temática “Globalização e arte latino-americana” (03.11.97). 10 RAMIREZ apud SEFFRINI, 2004, p.182. 11 E pelo menos uma adjacência documentada: a Galeria Modernidade, em Novo Hamburgo, cidade distante 50 km da capital. 12 MORAIS, 1997, p.14. 13 Genealogia da arte na América Latina que, para Morais, só estaria completa com as representações da vertente fantástica, o que dependeria, sobretudo, da participação mexicana, naquele momento ausente da mostra. 14 Na primeira viagem do Cromobus, fruindo o ônibus-obra e agregando valor sociopolítico ao evento, viajaram a bordo o Secretário de Estado da Cultura, Nelson Boeira e o Presidente da Bienal, Justo Werlang. 15 Na 4ª edição foi doada a obra 21 Título da apresentação de Morais no catálogo da I Bienal do Mercosul. 22 ARESTIZÁBAL, 1997, p. 36. 23 MELLADO, 1997, p. 264. 24 Apesar da renovação de nomes, alguns curadores atuaram em mais de uma edição. Angel Kalenberg (Uruguay), Pedro Querejazu (Bolívia) foram curadores da I e da II Bienal do Mercosul e Justo Pastor Mellado (Chile) e Tício Escobar (Paraguai), curadores na I, II, III e V edição da Bienal do Mercosul, e mais recentemente Gaudêncio Fidelis, curador adjunto da V e curador geral na X edição. 25 Na II Bienal do Mercosul, o que Justo Mellado chamou de transferência ou transversalidade o curador geral Fábio Magalhães apontou como contaminação cultural no mundo globalizado. Talvez por isso nenhum dos curadores da II BAVM, à exceção de Kalenberg, deteve-se em analisar as obras apresentadas. Preferiram, ao invés disso, tecer longos comentários sobre os contextos globalizados e pós-modernos, donde emergiram as sensibilidades artísticas que agora operam no circuito contemporâneo em instâncias nacionais internacionalizadas pelos meios massivos de comunicação midiática. 28 QUEREJAZU, 1997, p. 132. 29 QUEREJAZU, 1997, p. 132-133. 30 QUEREJAZU,1997, p. 135. 32 KALENBERG, 1997, p. 346. 33 Joaquin Torres García (Montevideo, Uruguay, 1874 – 1949). Propositor da criação de uma “Escuela del Sur” e autor da “Teoria de Universalismo Constructivo”. 34 KALENBERG, 1997, p. 372. 35 GUEVARA, 1997, p. 399. 36 GUEVARA, 1997, p. 398. 37 MORAIS, 1997, p. 158. 38 CRIMP, 2005, p. 239. 39 MORAIS, 1997, p. 158. 40 MORAIS, 1997, p. 159. 41 MORAIS, 1997, p.156. 42 GUEVARA, 1997, p.398. 43 MORAIS, 1997, p.156-157. 44 MORAIS, 1997, p. 157. 45 Idem, p. 159. 46 MORAIS, 1997, p. 157. 47 HUCHET, 2008, p. 49. 48 Idem, idem. 49OLMO, 2000, p.17. 50 MORAIS, 1979, p.41-42. 51 RAMIREZ, 2000, p.17. 52 CANCLINI, 2000, p. 145-146. 2009. Sobre a mostra Olhar e Fingir. Transtemporalidades na trilha da ficção fotográfica Fernando de Tacca FIGURA 1 Las historias, como cualquier outro producto humano, están controladas por convenciones, creencias y circunstancias de tiempo y de lugar...La Historia de la fotografia se fragmenta en las múltiples historias posibles. Reducir el território de análisis garantiza mayor coherencia em los planteamientos a costa de sacrificar una perspectiva más transversal. Joan Fontcuberta HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES O modelo canônico de Newhall Como sabido, Beaumont Newhall organizou no MoMA em 1937 a mostra mais importante da primeira metade do século XX, e que pretendia reunir autores e estilos com o imponente título Photography. 1839 – 1937. A mostra foi acompanhada do catálogo Photography. A Short Critical History, 1839 – 1937. O êxito da exposição e do catálogo nos anos subsequentes fez com que o mesmo fosse publicado com o título The History of Photography. From 1839 to the Present Day (George Eastman House/MoMA, 1949). O livro foi constantemente reeditado até a sexta edição com revisão do próprio autor em 1986. Para um fotógrafo, estar presente em uma das edições consagrava sua obra, tornando-o colecionável. Newhall e seus seguidores consolidaram um modelo eurocentrado (Alemanha, França, Inglaterra) somando-o aos EUA, e procuravam alinhar esse modelo como um ramo da História da Arte. Diferenciando-se da história da fotografia do século XIX, que buscava raízes na ciência e na técnica, a obra de Newhall deslocou radicalmente o objeto histórico e privilegiou o estudo dos autores e suas imagens, entretanto, demarcando-as por uma forte periodização ancorada no desenvolvimento da técnica. Newhall foi um dos crentes na literalidade analógica do fotográfico em relação ao real. Essa tentativa de tornar-se um ramo da História da Arte fez escola até os dias de hoje, perdendo-se relações ontológicas da fotografia, ou de sua própria natureza como existência diferenciada das belas artes. Entretanto, muitos autores são críticos a esse modelo, como transparece em muitos ensaios presentes no livro Fotografia. Crisis de História,1 e, entre eles, José Navarrete acentua que ocorreu uma virada decisiva nos anos 1960 exatamente quando esse modelo se consolidava, na qual a história da fotografia passou a ser vista a partir de outros paradigmas: pela sociologia, pela semiologia dentro do estruturalismo e nos estudos pós-estruturalistas, e também nos Estudos Culturais, ampliando consideravelmente os campos da abordagem histórica. No contexto dos ensaios do livro citado, Ian Jeffrey faz dura crítica ao modelo de Newhall, que se baseava na ideia de que a história é obra de indivíduos, uma posição liberal, como acentua. Em artigo escrito em 1976 e muito citado na bibliografia específica, A.D. Coleman publicou na revista Artforum, depois reproduzido em livros, colocando-se em confronto à perspectiva de Newhall, como cita Chevrier sua defesa do conceito de “fotografia fabricada”: El argumento pretendia estabelecer uma espécie de estética en respuesta a um realismo oficial, del que Beaumont Newhall...había escrito uma y otra vez, desde hacía treinta años, la gênesis canônica. Pero, tal como era de se esperar, lo que era aún uma alternativa em 1970 se convirtió, a partir de esta fecha, em una corriente dominante em las nuevas instituciones especializadas. El término de Coleman (método dirigido) no prosperó, pero las nociones de ‘fotografía puesta em escena’ y de ‘imagen fabricada’ se convirtieron en las consignas de un formalismo que celebra la especificidad del médio a través del inventario de sus transgresiones.2 A também difusão da obra de Walter Benjamin abriu novos caminhos para enfocar o fotográfico, e como o próprio autor diz na sua obra Pequena história da fotografia, “... 228 FERNANDO DE TACCA não se pude reduzir a fotografia para as dimensões essencialmente ‘estilísticas’ que são as dimensões da história da arte”. Quando se pensava também que a questão ontológica das fronteiras da existência da fotografia já havia sido superada, em pleno século XXI, no entanto, ainda essas questões se presentificavam no ambiente artístico. Joan Fontcuberta, em um ensaio chamado La Escritura de las Apariencias3, alertou-nos para essas práticas ainda sobreviventes de colocar o objeto histórico (“história da fotografia”) dentro de metodologias que pareciam ultrapassadas. Fontcuberta cita a derivação do prefixo foto de fos, que significa luz, mas, se o autor tivesse de chamar esse invento, derivaria de fàos, e assim teríamos nos aproximado de faiein e fainein, termos que poderiam ser traduzidos como “aparecer” e não como “brilhar”, e dos quais originaram-se palavras com “fantasmas”, “fantasia” ou “fenômeno”. Para Fontcuberta, essa lexicografia se relacionaria com o mundo espectral das ilusões e aparições. Assim, o autor sugere que “fotografia” poderia significar, então, literalmente, uma “escritura das aparências”. Em outro ensaio, intitulado Ficciones Documentales,4 Fontcuberta parte de uma crítica ao título dado ao evento Mês da Fotografia (Moi de la Photo) em Paris, em 2004, no qual a chamada principal chamada era Histoire, Histoires: du Document à la Fiction. Importunado por esse direcionamento de sentido único de trânsito simbólico das imagens, Fontcuberta adentra os processos criativos e históricos de Louis Daguerre e Hyppolite Bayard. Do primeiro, Daguerre, cerca o engraxate e seu cliente colocando-os na condição de mise-en-scène, retirando sua aderência ao espontâneo e ao corriqueiro; e do segundo, da emulação de Bayard, acentua a polissemia do fotográfico, no qual a conotação da legenda supera a denotação fotográfica, levando-a para múltiplas realidades possíveis. Fontcuberta finaliza seu ensaio dizendo então que seria tão genuíno propor “Do documento à ficção” como também “Da ficção ao documento”. A coleção M+M Auer 5 Michele e Michel Auer mantiveram coleções isoladas que iniciaram desde o final dos anos 1950 e começo dos 1960. Encontraram-se nos anos 1970, se casaram e um ano depois uniram as duas coleções. A coleção é composta por volta de 70.000 itens, entre câmeras (500 câmeras), posters, caricaturas, livros (21.000) e 50.000 fotografias. O casal franco-suíço mantém uma fundação na Suíça e já editou muitos livros e realizou muitas exposições. A exposição no MAM ocorreu nas comemorações do Ano da França no Brasil. Segundo os curadores, as primeiras abordagens da coleção foram negociações temáticas com o casal e, para surpresa dos mesmos, o recorte conceitual não era o comumente realizado, ou seja, sempre seria recortado o campo confortável de temas redutores da coleção. Os curadores propuseram duas primeiras palavras-guia da primeira pré-seleção de autores e obras: “Transgressão” e “Imaginário”. São dois grandes abrigos que permitiram uma navegação livre pelo conjunto de imagens da coleção, sem determinismos. 229 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Ao final, depois de criarem várias possibilidades modulares, fecharam em 4 módulos ou “linhas de força”, como chama Eder Chiodetto, que poderíamos também chamar de “linhas de tensão”. Elas agem como ancoragem conceitual, atuando, assim, como grandes guarda-chuvas para abrigar as escolhas das imagens e suas possíveis e indizíveis relações. Nas palavras dos curadores: “Olhar além do aparente. Fingir, criar ficções a partir dos vestígios captados na realidade, para representar um mundo paralelo, nem sempre visível, no qual o homem possa investigar seus desejos, fantasias e inquietações. Olhar e Fingir é a fotografia em estado transgressivo e questionador.”6 No módulo “Transfigurações” estariam as imagens que transformam o referente, elemento fundante de teorias do fotográfico, historicamente representado na história da fotografia na inflexão das pioneiras imagens de Paul Strand publicadas em 1916/1917 pela revista Camera Work, principalmente, mas presente anteriormente nos biombos ou camadas cromáticas e nos desfoques do pictorialismo (escola que responde às vozes de Baudelaire e as imagens maquínicas sem alma do artista) e também nas vanguardas. O módulo, então, busca as imagens que quebram a objetividade positivista e histórica da fotografia, uma âncora inercial até os dias de hoje. Pictorialismo, vanguardas e imagens contemporâneas são justapostas em silenciosos diálogos. Transfigurar fisicamente o registro fotográfico, subtraindo dele a suposta objetividade, a fim de expandir o repertório de sua representação e colocá-lo em diálogo com linguagens artísticas como a pintura e o desenho, é procedimento que perpassa a história da fotografia. Este módulo engloba experiências pioneiras dos pictorialistas, obras mais recentes sob o mesmo ideário, além de pesquisas cromáticas.7 O módulo “Beleza Convulsiva” é inspirado em Breton e seu texto com o mesmo título publicado na revista Minotaure, e que acrescentamos: “A beleza será convulsiva ou não será” ( texto da contracapa do livro Nadja), e que podemos reconhecer nas imagens de Atget e sua descoberta pelo movimento surrealista: imagens fantasmagóricas dos reflexos e do vazio das ruas, fotografias de um crime, segundo Benjamin. Imagens que adentram o onírico e incomodam o inconsciente, imagens realizadas antes mesmo do movimento surrealista. O campo do inconsciente ótico de Benjamin é lugar para o acaso e o afloramento das pulsões mais íntimas; imagens do ser psicanalítico e de suas sombras. A fotografia que rompe a superfície do visível para investigar os mistérios do inconsciente e o universo dos sonhos. A fotografia como ferramenta de acesso e representação das dimensões surreais dos desejos, fantasias e temores do ser humano. Neste mesmo módulo, as imagens de “Fantasmagorias” deslindam o enigma da morte, oscilando entre o sombrio e o desejo de desvendar o desconhecido.8 No módulo “Fantasias Formais” temos a experimentação formalista da geometria na qual podemos encontrar o fotógrafo autor como enunciador, como Alexander Rodchenko assim fez na conhecida e referencial fotografia O Chofer (1933), em que o ângulo é o principal formador da imagem e a ele se associam o enquadramento, o foco e os gestos. A articulação desses elementos propriamente constitutivos do fotográfico nos coloca em estranhamento e somente o compreendemos se fizermos parte da composição, ou seja, é para o espectador que a imagem é formada. Quase três séculos 230 FERNANDO DE TACCA depois do famoso quadro de Velásquez, Las Meninas, quando o pintor nos coloca dentro do quadro, Rodchenko faz a mesma estratégia. São imagens que transitam entre a procura pela forma, espaço e volume, e também como situações inusitadas do ser em movimento, seja o próprio fotógrafo, seja seu personagem. Nessas imagens, adentramos o campo de uma primeira realidade, depois transformada em múltiplas realidades no olhar visualizador. Olhar a paisagem. Abstrair a paisagem. Reduzi-la a formas, linhas, texturas. Perceber na paisagem, na rua, no mundo, sua essência formal, a geometria lúdica que se cria quando a luz escorrega por um volume. O corpo humano como escultura. O visor que harmoniza com lógica matemática a natureza caótica e a fotografia documental contemporânea, que absorveu estas experimentações.9 No módulo “Performances”, o fotógrafo aparece com diretor de cena e construtor de cenários, controlador dos gestos e poses. Bayard é seu precursor, e talvez até mesmo Daguerre. Mise-en-scène, em síntese. O retrato, como primeiro e efetivo gênero fotográfico desde o século XIX, aqui tem lugar em imagens de anônimos e famosos. Imagens épicas, grotescas, eróticas e anedóticas foram parte desse universo da representação do objeto, seja corpo em ardência, seja objetos inertes. Nesse módulo, temos a fantástica coleção de 600 imagens do enigmático Monsieur X, o lugar de uma fotografia não canônica, imagem vernacular, marginalizada, distante da lógica dos colecionadores tradicionais. O retrato consentido prevê o espaço interior da câmera como um palco de teatro. Na frente da câmera, o personagem. Atrás, o diretor. Quanto mais o fotógrafo-diretor impõe uma estética e direciona a pose do personagem, mais evidente fica o processo de transferência entre ambos. O módulo apresenta a construção de seres ficcionais, corpos performáticos fragmentados e as modelos do misterioso Monsieur X.10 As trilhas ficcionais: transtemporalidades e transversalidades Os quatro módulos são transpassados por imagens que poderiam estar em trânsito entre eles mesmos e muitos autores poderiam e estão presentes em vários módulos (alguns realmente estão!). Não há uma relação estanque entre os módulos, tanto que o caminho labiríntico se fecha em ângulos estreitos na montagem dos painéis e, como frestas, subitamente um universo se abre ao olhar, como um labirinto a ser caminhado e descoberto. O claro e o escuro são ambientações, passagens, para os sentidos (projeto de Marta Bogéa). Quando parece que começamos a conhecer o território, o mapa se apresenta como navegação, mapa e território se fundem, mas um mapa sem destino certo, sem roteiro e sem orientações discerníveis ao imediato. Aliás, imediatez não faz parte do tempo expositivo, pois é preciso olhar e inventar, olhar e fingir, e para isso, o tempo é individualizado, singular e único. 231 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES FIGURA 2 e 3 Exposição Olhar e Fingir. Transtemporalidades na trilha da ficção fotográfica. Fotos Tuca Vieira Há uma quebra clara de qualquer didatismo, de qualquer cronologia ou rua de mão única na direção do olhar; uma opção metacrônica. As questões técnicas não norteiam as escolhas e as subjetividades ocorrem entre-imagens, entre o olhar do espectador em movimento, possibilitando que ele possa inventar caminhos e encontros entre-imagens. Foi dado ao visitante a liberdade de jogar ludicamente com as denotações simbólicas 232 FERNANDO DE TACCA das imagens e procurar conotações nos vazios que as separam. O visitante foi sujeito e não um receptor passivo de informações históricas, estéticas ou sociais comuns em grandes exposições do gênero. O visitante é hibridizado, contaminado, expandido, e também plasticizado, portanto moldável, e talvez intertextualizado. É dada ao visitante a possibilidade do invisível e do indizível, de certa camuflagem de sentidos explícitos. É da complexidade que pode emergir o contexto para cada um na transversalidade de uma história possível da fotografia. Longe de confirmar modelos da história da fotografia, já que o casal M+M Auer afirma que não colecionam fotografias e sim colecionam “história da fotografia”, os curadores ousam em criar lugar para o sentido não determinista, ou seja, se permitem esconderse, apagar-se, tornarem-se prováveis “linhas de força” (como Eder Chiodetto gosta de nomear), para além do concebido, ou então, como possíveis linhas de tensão. O imaginário como guarda-chuva torna-se transgressor, e as transgressões retroalimentam a imagética expositiva. Os vazios entre-imagens são por onde podemos encontrar nossas projeções e desejos, são lugares do indizível. A unicidade e a singularidade ganham potência nas pontes vazias entre as imagens quando as associamos com outras imagens, sejam por familiaridade, plasticidade ou perturbação, e muitas vezes reconhecemos o diálogo, mas não conhecemos a língua; assim, podemos ficcionar a conversa e modular seus personagens. A presença de inúmeras imagens de Monsieur X no final da exposição demonstra que a história da fotografia pode ser anônima, particular e longe dos cânones legitimadores da arte. Como um literato que ousou fazer “uma história particular da fotografia”, um quase romance realista, caso do livro de Geoff Dyer,11 podemos também aqui indicar que a exposição Olhar e Fingir permitiu ao visitante relacionar imagens para sua história pessoal da fotografia, uma história anacrônica, no sentido de quebra de cronologias didáticas, pautada pelo estranhamento e o pelo desejo da descoberta que lhe foi oferecido. Ao permitir ao espectador alinhar os vazios entre imagens foi-lhe também oferecido transpor temporalidades anteriormente demarcadas, e seu roteiro transformou-se em trilhas ficcionais. Ronaldo Entler, em seu texto de apresentação da exposição “A Invenção do Mundo” (Itaú Cultural 2009), com fotografias do acervo da Maison Européenne de la Photographie, com curadoria também de Eder Chiodetto e Jean-Luc Monterosso, chama-nos a atenção para uma questão importante sobre a “fotografia contemporânea”, que para ele não diz nada, e sim, é mais uma postura contemporânea com pensamento e discurso de nossos tempos e que implica na desmistificação da técnica, da origem tecnológica e mesmo da memória, ou seja, uma posição crítica aos modelos canônicos que pensávamos superados e os lugares temporais que uma imagem pode coexistir, ou, como ele diz, coabitar, e mesmo que aparentemente tenham se esgotado no passado conseguem sobreviver em outros tempos, com outros sentidos. Aplica-se perfeitamente para a curadoria em questão uma postura contemporânea. Tal postura curatorial pode-se perceber em recente exposição no MAC/USP Fronteiras Incertas: Arte e Fotografia no Acervo do MAC USP,12 com curadoria de Helouise Costa, quando um conjunto 233 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES de fotografias experimentais de artistas poloneses dialoga com a coleção do museu13, e ao mesmo tempo, outros conhecidos artistas brasileiros, como Waldemar Cordeiro e Hudinilson Junior, também criam novos lugares de trânsito entre imagens, um campo cada vez mais hibridizado; ao mesmo tempo, a coleção de fotografias ligada ao Banco Santos (Coleção Edmar Cid Ferreira), sob a guarda judicial do MAC/USP, transita nessa exposição dando-lhe potência autoral internacional e nacional, e também emerge em outras exposições recentes do museu. A fotografia transforma-se no tempo, como as ruínas em fluxo sensorial, como já dizia o poeta Leminski, que a cada intempérie, modifica-se ou, a cada apropriação, desloca-se. Na fotografia, nada é constante, perene e contraditoriamente perecível, talvez seja essa sua (des)graça, sua (des)ordem e sua (i)lógica. Suas verdades, tão alentadas e canônicas, são visualidades materiais para todas as ideologias, para todos os gostos e prazeres. Podemos trazer metaforicamente o texto de Vilém Flusser sobre o Vampiroteuthis Infernalis, animal pouco conhecido das profundezas abismais do oceano, que às vezes emergem, mas sempre surgem mortos. A fotografia é como um Vampiroteuthis Infernalis, bárbara e mutante: morre, emerge e ganha sobrevida, como avatar de si mesma. São verdades ficcionais. Sorte daqueles que puderam perceber os trânsitos entre imagens, pois, depois desta exposição, alguns conceitos sobre a chamada “fotografia contemporânea” tornaram-se sem importância, conceitos esses todos, sem exceção, derivados da fatídica expressão “fotografia artística” do século XIX. 234 Notas 1 Navarrete, José. “Adiós, Mr. Newhall”. In: Joan Fontcuberta (org). Fotografia. 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São Paulo: Nobel, EDUSP, 1991. 254 REFERÊNCIAS _____.Vicente do Rego Monteiro: artista e poeta. São Paulo: Empresa das Artes/Marigo Editora, 1997. 255 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Sobre os autores Ana Maria Tavares Cavalcanti é professora de História da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua no Bacharelado em História da Arte e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Doutora em História da Arte pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne (1999), tem trabalhado com os seguintes temas: relação entre crítica e produção artística no século XIX e início do XX no Brasil, salões e exposições de arte, relações entre arte brasileira e europeia. É integrante dos grupos de pesquisa Entresséculos (EBA/UFRJ) e História da arte: modos de ver, exibir e compreender (UFRJ/UnB/Unicamp). De maio de 2013 a abril de 2014 realizou pesquisa sobre os pintores brasileiros e os salões de arte em Paris na segunda metade do século XIX (1861 a 1899) no Institut national d’histoire de l’art, França, contando com o apoio da Capes (Estágio Sênior no Exterior). Annateresa Fabris é historiadora e crítica de arte. Professora titular da Universidade de São Paulo, graduou-se em História pela Universidade de São Paulo (1969). É Doutora e Mestre em Artes pela Universidade de São Paulo (1984 e 1977). Curadora de diversas exposições, ex-pesquisadora do CNPq, recebeu o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas pelo livro O futurismo paulista, o Prêmio Sérgio Milliet da Associação Brasileira de Críticos de Arte pelo livro Candido Portinari e o Prêmio Gonzaga Duque da Associação Brasileira de Críticos de Arte pela curadoria de No ateliê de Portinari: 1920-45 e pelo livro O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas, v. I. Além desses títulos, é autora de vários livros dedicados à Arte Moderna e Contemporânea e à Fotografia. Artur Freitas é professor da Universidade Estadual do Paraná – curso de Artes Visuais, campus Faculdade de Artes do Paraná (FAP/UNESPAR) e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR). É Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (PGHIS/ UFPR), graduado em artes pela mesma instituição (DEARTES/UFPR) e líder do grupo de pesquisa NAVIS – Núcleo de Artes Visuais (CNPq). É autor de Arte de guerilha (EDUSP), Arte e contestação (Medusa) e organizador de História e arte (Intermeios) e Arte e política no Brasil (Perspectiva). Bianca Knaak é professora e pesquisadora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atua junto aos Cursos de Artes Visuais e História da Arte. Licenciada em Educação Artística - Artes Plásticas pelo Centro Universitário Feevale (1994), junto a UFRGS obteve os títulos de Doutora em História (IFCH, 2008) com tese sobre as Bienais do Mercosul, e Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte (IA, 1997) com dissertação sobre as referências populares e de massa na arte brasileira contemporânea. Entre 1999 e 2002, dirigiu o Museu de Arte Contemporânea (MAC-RS) e o Instituto Estadual de Artes Visuais do Rio Grande do Sul (IEAVi). É membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) em História, teoria e crítica da arte e da imagem, onde investiga arte e imagem, nas suas manifestações de sentidos e as condições de produção, interpretação e recepção de visualidades, com ênfase nos períodos moderno e contemporâneo. Cristina Freire é professora titular e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Livre Docente (2003), Doutora (1995) e Mestre (1990) pelo Instituto de Psicologia da USP. Mestrado em Museums and Galleries Management - The City University (1996). Foi coordenadora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (2005 256 SOBRE OS AUTORES e 2006/2010) e Vice-Diretora do MAC USP (2010/2014). É docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Coordenadora do GEACC - Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu. Sua produção acadêmica inclui textos em publicações nacionais e internacionais e os livros: Além dos Mapas: Monumentos no Imaginário Urbano Contemporâneo (ed. Annablume, 1997); Poéticas do Processo. Arte Conceitual no Museu (ed. Iluminuras, 1999); Arte Conceitual (ed. Jorge Zahar Editor, 2006); Paulo Bruscky. Arte, Arquivo e Utopia (ed. CEPE, 2007); Walter Zanini: Escrituras Críticas (ed. Annablume/MAC USP, 2013), entre outros. Elaine Dias é Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Especializou-se em Histoire de l’Art no Institut National d’Histoire de l’art, em Paris, como bolsista Getty (2002-2003). É mestre em História da Arte e da Cultura (2001) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Concluiu pós-doutorado na Université de Paris IV - Centre André Chastel (Fapesp) e é pós-doutora pela FAU-USP (Fapesp). É atualmente docente no curso de graduação e pós-graduação em História da Arte da UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo - Campus Guarulhos. É co-autora do livro Nicolas Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos trópicos, Sextante, 2008 e autora de Paisagem e Academia. Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851), Unicamp, 2009. Emerson Dionísio de Oliveira é mestre em Historia da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (1998); doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (2009). Professor Adjunto do Departamento de Artes Visuais, Instituto de Artes da Universidade de Brasília, e professor consorciado do Curso de Museologia na mesma universidade. Editor-chefe de Revista VIS, autor do livro Museus de Fora (Zouk, 2010) e co-organizador do livro Instituições da Arte (Zouk, 2012). Fernando de Tacca é fotógrafo e professor livre-docente na UNICAMP. Foi contemplado três vezes com o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia (FUNARTE – 1984, 2010 e 2014) e Bolsa Vitae de Artes 2002. Em 2006 recebeu o Prêmio Zeferino Vaz de Reconhecimento Acadêmico e o Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico (ABA). Bolsista de Produtividade Científica na área de Artes do CNPq (2010 e 2014). Fez pós-doutorado na Facultad de Bellas Artes/Universidad Complutense de Madrid (FAPESP, 2011). Publicou os livros A Imagética da Comissão Rondon (Papirus, 2001); Imagens do Sagrado (Unicamp/Imesp, 2009); Desmonumentlização (edição de autor, 2014), Colecionadores Privados de Fotografia Brasileira (Intermeios, 2015). Criador e editor da revista Studium: www.studium.iar.unicamp.br. Jean-Marc Poinsot é professor aposentado da Universidade de Rennes 2. Foi fundador e é presidente dos arquivos da crítica de arte, Rennes/França. Dentre suas numerosas publicações, destacam-se L’atelier sans mur: textes (1979-1990), Art Edition, 1991 e Quand l’oeuvre a lieu: l’art exposé et ses récits autorisés, Les presses du réel, 1999. Helouise Costa é professora livre-docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, onde atua desde 1993. É professora/orientadora no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte e no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia, ambos da Universidade de São Paulo. Foi vice-diretora do MAC USP no período de junho 2006-julho 2010 e atualmente é Coordenadora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do Museu. Atua na área de Artes com ênfase nos seguintes temas: fotografia moderna e contemporânea, fotojornalismo, fotografia e representação, teoria e crítica de arte, museologia, história das exposições de arte e arquitetura de museus. 257 HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES Isobel Whitelegg é docente (Lecturer) em Art Museum & Gallery Studies na School of Museum Studies, da Universidade de Leicester. Especializou-se em História e Teoria da Arte Latino-Americana na Universidade de Essex e publicou extensamente sobre a recepção internacional da arte Latino-Americana e sobre a história crítica da Bienal Internacional de São Paulo. Foi curadora de várias exposições, entre elas a retrospectiva de Geraldo de Barros, What Remains (The Photographers Gallery, London, 2012/13), Equipe 3, 1973-2014 (Museu da Cidade da São Paulo, São Paulo, 2014) e György Kepes: The New Landscape (Exhibition Research Centre, 2015). Funções anteriores incluem: curadora do Liverpool John Moores University/Tate Research Centre: Curatorial Practice & Museology, chefe do Public Programme at Nottingham Contemporary (20112014); direção do MA em Curadoria no Chelsea College of Art & Design, UAL (2009-2011) e membro do UAL Research Centre for Transnational Art (2008-2011). Ivair Reinaldim é professor adjunto da Escola de Belas Artes da UFRJ. Doutor em Artes Visuais, com ênfase em História e Crítica da Arte pela EBA-UFRJ, tendo realizado Estágio PDEE junto à École Doctorale Arts plastiques, esthétiques & sciences de l’art na Université Paris 1 - Panthéon Sorbonne. Sua tese Arte e crítica de arte na década de 1980: vínculos possíveis entre o debate teórico internacional e os discursos críticos no Brasil recebeu o Prêmio Gilberto Velho de Teses da UFRJ, em 2013. Foi membro da Comissão Curatorial da Galeria de Arte Ibeu, entre 2009 e 2013, tendo desenvolvido outras curadorias independentes. Maria de Fátima Morethy Couto é doutora em História da Arte pela Universidade de Paris I – Panthéon/ Sorbonne, professora do Instituto de Artes da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Foi presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte (2010-2013) e diretora do Museu de Artes Visuais da Unicamp (20122014). Autora do livro Por uma vanguarda nacional: A crítica brasileira em busca de uma identidade artística – 1940/1960 (Ed. Unicamp, 2004) e co-autora/organizadora dos livros ABCdaire Cézanne (Flammarion, 1995), Instituições da Arte (Zouk, 2012) e Espaços da arte contemporânea (Alameda, 2013). Realizou estágio de pós-doutorado no TrAIN/ University of the Arts London, com bolsa FAPESP, de outubro de 2014 a setembro de 2015. Foi pesquisadora convidada do INHA (Institut national d’histoire de l’art), Paris, nos meses de junho e julho de 2015. Marize Malta Teixeira é doutora em História (UFF), mestre em História da Arte (UFRJ) e professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando na graduação e pós-graduação, com interesses de pesquisa em artefatos e ambientes interiores oitocentistas, a condição decorativa e/ou artística e sua relação com imagem e lugar, enfocando o problema das coleções e de museus-casas. Entre suas publicações, destacam-se O olhar decorativo: ambientes domésticos em fins do século XIX no Rio de Janeiro (Mauad X/Faperj, 2011) e, em co-autoria, Coleções de arte: formação, exibição e ensino (Rio Books, 2015) e Objetos do olhar: história e arte (Rafael Copetti, 2015). Paulo Roberto de Oliveira Reis possui mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná (2004). É professor adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná. É autor de Arte de vanguarda no Brasil: os anos 60. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Foi curador das exposições O corpo na cidade – performance em Curitiba (Fundação Cultural de Curitiba, 2009) e Cena Raul Cruz (Centro Cultural FIEP/Curitiba, 2014), entre outras. Rodrigo Vivas graduou-se em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Realizou seu 258 SOBRE OS AUTORES mestrado em História da Cultura na Universidade Federal de Minas Gerais (2001). Defendeu a tese de Doutorado em História da Arte em 2008, na UNICAMP. Dentre suas inúmeras publicações destaca-se Por uma história da arte em Belo Horizonte: artistas, salões e Exposições, publicado pela Editora ComArte em 2012. Tem se dedicado atualmente ao estudo das obras artísticas pertencentes aos acervos de Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, Museu Mineiro e, principalmente, Museu de Arte da Pampulha. Realizou diversas curadorias, destacando-se, entre elas, O Olhar do Íntimo ao Relacional, realizada no Museu de Arte da Pampulha em 2014. É professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFMG, orientandos temas relacionados a análise de obras artísticas pertencentes aos acervos mineiros. Atualmente é Diretor do Centro Cultural UFMG. Sonia Gomes Pereira possui mestrado em História da Arte na University of Pennsylvania (1976) e doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992). Fez pós-doutorado no Laboratoire du Patrimoine Français/CNRS em Paris (2000). É professora emérita da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora 1A do CNPq. Atua no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. É autora de diversas publicações dedicadas à arte e à arquitetura do século XIX. 259 Rio Book’s Av. Pedro Calmon 550 – Térreo Rio de Janeiro – RJ Telefone: 2252-0084 CAIXA POSTAL 68544 – CEP 21941-972 RIO DE JANEIRO [email protected] www.riobooks.com.br