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Direito e Estruturas de Poder: gênero, raça e classe

2021

Os textos deste livro organizado pelos professores Vanessa Batista Berner e Manuel Gándara, são o produto de debares e reflexões provocados nas aulas de de Teoria Crítica dos Direitos Humanos do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ). Os temas abrangem questões de gênero, raça e classe na perspectiva crítica, problemas contemporâneos numa abordagem inovadora. Os textos deste livro, portanto, foram elaborados a partir do desejo de pensar a realidade e transformá-la.

EDITORA Direito e estruturas de poder: Gênero, Raça e Classe Vanessa Batista Berner Manuel E. Gándara Carballido (organizadores) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Direito e estruturas de poder [livro eletrônico] : gênero, raça e classe / organização Vanessa Oliveira Batista Berner , Manuel Eugénio Gándara Carballido. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Vanessa Oliveira Batista Berner : Faculdade Nacional de Direito, 2021. PDF Vários autores ISBN 978-65-00-20130-7 1. Ciências sociais 2. Democracia 3. Descolonização - História 4. Direitos fundamentais 5. Direitos humanos 6. Gêneros - Estudos 7. Luta de classes 8. Racismo I. Berner, Vanessa Oliveira Batista. II. Gándara Carballido, Manuel Eugénio. 21-61181 CDD-361.614 Índices para catálogo sistemático: 1. Direitos humanos : Bem-estar social 361.614 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 2 Sumário 3 3 Apresentação 4 Sobre as autoras e autores 7 Pensamentos descolonizadores: conceitos-chave para ampliar o debate democrático. Ana Laura Becker de Aguiar 33 Direitos humanos, raça e criminalização da violência de gênero: nuances do controle social via direito penal. Ana Míria dos S. C. Carinhanha 58 A incorporação da colonialidade de gênero enquanto elemento complexificador das reflexões feministas na brasilidade criminológica. Bruna Martins Costa 75 Do racismo colonial ao sujeito neoliberal: A naturalização que invisibiliza o trabalho explorado em condições análogas à de escravo. Daniela Valle da Rocha Muller 92 A criminalização de expressões artísticas desviantes: um estudo à luz do diamante ético de Herrera Flores. Lívia de Meira Lima Paiva 107 El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria articulación de luchas sociales. Manuel E. Gándara Carballido 122 Calin: uma proposta de estudo descolonial sobre as relações étnico-raciais e o anticiganismo na sociedade brasileira. Phillipe Cupertino Salloum e Silva 143 Entre a violência doméstica e a sub-representação de mulheres na política: uma breve análise da violência contra a mulher no Brasil e da violência política contra as mulheres. Roberta Cristina E. dos S. Silva 154 Mulheres, feminismo e resistência política. Vanessa Oliveira Batista Berner Apresentacão Entender os direitos humanos como o resultado de lutas a favor de uma vida digna leva a reconhecer que tais direitos só são possíveis graças à participação daqueles que identificam em suas condições de existência uma situação que exige ser transformada e que, para isso, se organizam e mobilizam, a fim de superar as condições materiais e simbólicas, mudando assim sua realidade conseguindo que suas reivindicações inspirem outras e outros com suas lutas. Os direitos, portanto, não são o resultado de uma concessão graciosa daqueles que representam as instâncias de poder, seja o Estado ou qualquer outra “instância superior; sua conquista segue uma dinâmica de baixo para cima, do grupal ao coletivo-público, dos setores empobrecidos, discriminados e menos favorecidos à população em geral. São os setores afetados pela injustiça que impera no sistema, e quem se solidariza com essas lutas, que têm a possibilidade de desvelar as relações de poder, identificando a desordem normalizada e naturalizada, para desestabilizá-la e mudar a história. Não se pode falar de direitos humanos sem avaliar as relações de poder, e a maneira como elas estabelecem dinâmicas de exclusão, exploração, domínio e opressão. Por trás das violações de direitos humanos estão essas estruturas de poder. Por isso, uma concepção de direitos que invisibiliza essas relações e, sobretudo, que invisibiliza as lutas por superálas e aos atores sociais que delas participam faz parte do problema e não da solução. Essa é a aposta que inspira o pensamento crítico em direitos humanos, e tem sido também a intenção que orientou os textos que reunimos neste livro, produto de alguns debates e reflexões provocados nas aulas de Teoria Crítica dos Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/ UFRJ). Os temas abrangem questões de gênero, raça e classe na perspectiva crítica, problemas contemporâneos numa abordagem inovadora. Os textos deste livro, portanto, foram elaborados a partir do desejo de pensar a realidade para transformá-la. Vanessa Berner e Manuel Gándara Rio de Janeiro, dezembro de 2020 4 Sobre as autoras e autores Ana Laura Becker de Aguiar é Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília- UnB (2006), mestra em Direito Internacional e Direitos Humanos pela United Nations Mandated University for Peace - UPEACE (2009), mestra em Estudos de Gênero pela London School of Economics and Political Science - LSE (2010), e doutoranda em Direito pelo PPGD/UFRJ). Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha é mediadora, artista e advogada, doutoranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Ciências Sociais e Jurídicas no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do Grupo de pesquisa em criminologia (GPCRIM - UEFS/UNEB), no Grupo de Pesquisa em Sexualidade, Direito e Democracia (SDD-UFF) e no grupo de pesquisa Anastácia Bantu (UFF); mestre em criminologia pela Faculdade de Direito e Criminologia da Université Catholique de Louvain (2014), devidamente revalidado pela Universidade Federal Fluminense no curso de Pós-Graduação em Sociologia e Direito; bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (2011) e bacharela Interdisciplinar em Artes com foco em Políticas e Gestão da Cultura pela Universidade Federal da Bahia (2011); mediadora pela formação especializada e interdisciplinar à mediação local, escolar e penal pela Université Catholique de Louvain, Université Saint-Louis e Université de Namur, Bélgica. Compõe atualmente a equipe da INNPD - Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Bruna Martins Costa é Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Daniela Valle da Rocha Muller é Mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos NEPP-DH/UFRJ, Juíza do Trabalho e Conselheira da AJD – Associação Juízes para a Democracia. Lívia De Meira Lima Paiva é Doutoranda em Direito e Mestre em Direito na linha de pesquisa Direitos Humanos, Sociedade e Arte, ambos na UFRJ (PPGD/UFRJ). Professora efetiva 40h DE do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) nas disciplinas de Gênero e Direitos Humanos. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Membro do Fórum Permanente de Direitos Humanos da EMERJ e pesquisadora do NUPEGRE (Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia) na mesma instituição. Possui curso de extensão na Université Paris VIII (2011) em cultura e organizações internacionais e Université Paris-Dauphine (2011) em literatura francesa. 5 Manuel Eugénio Gándara Carballido é Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo. Membro da Red de Apoyo por la Justicia y la Paz e do Instituto Joaquín Herrera Flores. Professor no Programa Oficial de Máster en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo da Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, Espanha; Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Phillipe Cupertino Salloum e Silva é Professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual de Goiás. Doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. O autor atua como assessor jurídico popular, desde 2015, para movimentos e associações ciganas de diferentes estados da federação. Roberta Cristina Eugênio dos Santos Silva Mestre em Direito pela UFRJ e bacharela em Direito pela UERJ. Com experiência profissional nas áreas de Direitos Humanos, Teoria das Relações Raciais, Políticas Públicas, Gênero e Violência Política, foi advogada de organizações do terceiro setor que atuam em defesa dos direitos humanos, bem como atuou como assessora jurídica parlamentar na esfera municipal e estadual. Atualmente integra o Instituto Alziras e é colunista do Congresso em Foco. Vanessa Oliveira Batista Berner é Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Professora Titular de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; e Coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. 6 Pensamentos descolonizadores: Conceitos-chave para ampliar o debate democrático Ana Laura Becker de Aguiar Introdução Este artigo tem como objetivo apresentar conceitos-chave dos pensamentos póscolonial e descolonial1, aqui chamados de descolonizadores2, com o intuito de auxiliar na compreensão dessas perspectivas teóricas e de suas ferramentas metodológicas. Esse esforço justifica-se pela percepção de que as teorias hegemônicas do pensamento ocidental eurocentrado não conseguiram enfrentar adequadamente a discussão sobre uma democracia pluralista, antirracista e feminista. Os conceitos que serão apresentados auxiliam a compreender a crise do Estado moderno e a crise democrática que seus teóricos denunciaram. Ademais, ajudam-nos a pensar alternativas além dos moldes universalizantes para imaginar o inimaginável a partir de baixo, ou seja, da perspectiva daqueles que estão à margem da democracia ocidental atual (LANDER, 2005). Sob essa perspectiva, e reconhecendo a fertilização cruzada entre os pensamentos pós-colonial e descolonial, este artigo buscará apresentar e sistematizar os seguintes conceitos-chave: 1. 2. 3. 4. 5. 6. A teoria da perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade O Orientalismo e o eurocentrismo O mito da modernidade A diferença do terceiro mundo A diferença colonial A colonialidade do poder e a invenção da raça Em conjunto, esses conceitos são ferramentas epistemológicas que nos ajudam a dar um passo atrás para descontruir pré-conceitos teóricos e filosóficos e para pensar de maneira crítica a realidade, aprofundando o debate democrático com foco transformação e transgressão da sociedade a partir dos interesses dos grupos mais marginalizados 7 1. Neste artigo será utilizado o termo “descolonial” para se referir ao 2. Empresto o termo descolonizadores de Silvia Rivera Cusicanqui, conjunto dos pensamentos descolonial e decolonial, com exceção conforme utilizado em seu livro intitulado “Ch’ixinakax utxiwa: Una dos trechos em que esteja indicado em contrário. Essa abordagem reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores” (RIVERA será explicada na seção de contextualização histórica e teórica. CUSICANQUI, 2010 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR e excluídos. Nesse contexto, a democratização não deve ser apenas um método de escolha de líderes representativos e deve representar muito mais que um codinome para a reestruturação sócio-política mundial gerada pelo processo colonial capitalista. Se quisermos levar a sério a necessidade de envolver o maior setor do eleitorado do “Sul Glo-bal” no processo democrático, será necessário descolonizar, racializar e feminizar nossa perspectiva por meio de uma epistemologia voltada para o subalterno, aprendendo a (re)aprender com as pessoas que estão excluídas do sistema (SPIVAK, 2004). Este é o esforço proposto pelos pensamentos descolonizadores. Na próxima seção será realizada uma contextualização teórica e histórica sobre os pensamentos descolonizadores, pós-coloniais e descolonial, de modo a localizar as teorias e trazer à tona suas interconexões. Nas seções seguintes serão abordados diretamente os conceitos-chave mencionados. Antes de prosseguir, cabe observar que, ainda que se reconheça as diferenças entre os pensamentos pós-coloniais, descolonial ou decolonial, feministas, dos estudos culturais e da raça, interessa-nos estudar alguns conceitos descolonizadores e como eles se entrecruzam, tornando-se cada vez mais complexos e radicais, proporcionado um debate crítico, antirracista, anti-imperialista, feminista e plural. Trata-se de um esforço transfronteiriço e transdisciplinar, que visa apontar e estudar ferramentas epistêmicas críticas e não identificar os conceitos como parte de uma ou outra teoria. Adota-se uma abordagem que busca destacar as relações e diálogos entre os diferentes referenciais teóricos e seus ricos debates, em lugar de apontar descontinuidades ou limites teóricos. Não se pretende esgotar o debate, compreendendo que muitos conceitos, autores e debates teóricos não foram citados, pelos limites do escopo deste artigo. Tampouco busca-se criar novas terminologias. O artigo se propõe a costurar alguns pontos de partida em comum entre autores e conceitos que buscaram aprofundar ideias descolonizadoras com foco na transformação e transgressão das vidas das pessoas subalternizadas. Contextualização teórica e histórica dos pensamentos descolonizadores Os pensamentos descolonizadores, tanto pós-colonial, quanto descolonial, fazem parte do arcabouço teórico crítico cujo grande desafio é desnaturalizar o mundo e a maneira como este funciona (OLIVEIRA BATISTA; LOPES, 2014). No entanto, essas perspectivas teóricas oferecem uma crítica ao pensamento crítico, buscando superar os limites do pensamento monocultural moderno e da construção dos seus sujeitos modernos (racializados, hierarquizados, generificados) buscando dar um passo além na mudança 8 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR de perspectiva para que o foco seja a transformação da vida dos mais marginalizados das sociedades (GÁNDARA CARBALLIDO, 2015). O pensamento pós-colonial O pensamento pós-colonial refere-se a uma proposta ampla que apresenta uma ruptura epistemológica partindo de uma construção coletiva crítica e interdisciplinar envolvendo história, literatura, estudos culturais, sociologia, estudos de gênero, raça, entre outros (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007). O pensamento pós-colonial, em linhas gerais, consiste em uma perspectiva teórica que busca descortinar os impactos do processo de colonização nas relações de poder que moldaram as estruturas econômicas, políticas e sociais nos últimos séculos, apontando para os efeitos contínuos da colonização até o presente, especialmente na produção e reprodução do conhecimento, assim como das estruturas sociais. No entanto, mais do que uma teoria, a perspectiva pós-colonial refere-se a um grupo de respostas, lutas e atitudes contra o processo colonial e as estruturas de poder e dominação que se fizeram presentes a partir de então. Por esse motivo, é possível traçar suas origens no surgimento de autores e lideranças envolvidas com as lutas anticoloniais da virada do século XIX para XX, tendo culminado com sua institucionalização e expansão na academia nos anos 1980, com a criação do Grupo de Estudos Subalternos – GES (MCEWAN, 2009; YOUNG, 2001). Um dos primeiros marcos do pensamento pós-colonial pode ser traçado a partir do movimento pan-africanista dos anos 1890, que é um movimento político de luta antirracista e anticolonial por libertação dos africanos e descendentes de africanos afetados pelo tráfico de pessoas escravizadas. Esse movimento proporcionou uma nova narrativa epistêmica na qual os povos africanos e seus descentes foram protagonizados e valorizados com o objetivo de proporcionar sua união, tanto na África como em diáspora, por meio de um movimento de solidariedade e resistência à exploração, tendo como base princípios antirracistas, anticoloniais e anti-imperialistas. O movimento é considerado um marco no pensamento pós-colonial por apresentar uma inovação no discurso: uma narrativa contra-hegemônica com novos desenvolvimentos epistemológicos, que defendia direitos de igualdade para a população negra e subalternizada, fortemente discriminada pelo discurso hegemônico colonial (MCEWAN, 2009). 9 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Os principais expoentes do pan-africanismo foram Henry Sylvester Williams, advogado e escritor de Trinidad e Tobago, e William Edward Burghardt (W.E.B.) Du Bois, historiador, sociólogo e ativista dos direitos civis dos Estados Unidos da América (EUA), ambos considerados os pais do movimento pan-africanista. Du Bois desenvolveu a ideia bastante utilizada por teóricos pós-coloniais e descoloniais de que o mundo é dividido por uma “linha de cor”, que divide a humanidade entre a categoria humano (humanitas/ humanidades), composta por brancos, e a categoria não-humano (anthropos), composta pelas comunidades colonizadas e desumanizadas (DU BOIS, 2007; MALDONADO-TORRES, 2012; MCEWAN, 2009; SPIVAK, 2018b). Alguns dos líderes dos movimentos de luta pan-africanistas foram: Marcus Mosiah Garvey, jamaicano, líder do movimento “De volta para a África” durante os anos 20; e Sol Plaatje, da África do Sul, ativista contra a falaciosa caracterização dos negros como não civilizados. Esses pensadores influenciaram muitas lutas por libertação em diversos países e diversos intelectuais que se tornaram importantes figuras políticas, como Jomo Kenyatta, primeiro presidente do Quênia, e Kwawe Nkrumah, primeiro presidente de Gana. O pan-africanismo também inspirou Haile Selassie, imperador da Etiópia entre 1930 a 1974 e símbolo do movimento rastafári. Também com inspiração pan-africanista, entre 1920 e 1930, nos Estados Unidos, surgiu o movimento cultural de Renascimento do Harlem, marcado pela promoção do orgulho racial e das artes e da literatura negra do qual faziam parte muitos afrodescendentes de colônias africanas e do Caribe. Entre os anos 40 e 50, o Renascimento do Harlem inspirou outro movimento, conhecido como “negritude”, que emergiu entre intelectuais negros francófonos das colônias francesas do Caribe e da África. Entre eles, destacamse Léopold Sédar Senghor, que se tornou presidente do Senegal em 1960, Aimé Césaire, poeta da Martinica, e Léon Gontran Damas, poeta, escritor e político da Guiana Francesa. O movimento negritude consistia na valorização do negro e na solidariedade em favor de uma identidade negra comum. O movimento representou um esforço para combater os preconceitos do discurso colonial e racista e é inspiração poética e filosófica para o pensamento antirracista até os dias atuais (MCEWAN, 2009). A América Latina, por sua vez, é considerada uma região especial na história do anticolonialismo, tendo forte relação com a teoria pós-colonial. Em referência às lutas anticoloniais que marcaram o pensamento pós-colonial na região, destacam-se os movimentos Zapatista, no México, em 1910, e a revolução cubana de 1959, que inspirou movimentos revolucionários em todo o mundo, inclusive no sudeste da Ásia e na África. 10 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Robert J. C. Young (2001) destaca o fato de que a região foi sujeita ao colonialismo e ao neocolonialismo como nenhuma outra, tendo sido fortemente pressionada pelo imperialismo norte-americano, o que deu origem à teoria da dependência, além de destacar Che Guevara como importante pensador e liderança revolucionária anticolonial. As lutas e narrativas revolucionárias influenciaram o desenvolvimento de uma literatura anticolonial que, posteriormente, serão importantes para a sistematização da teoria acadêmica pós-colonial nos anos 80, com o GES. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos do poeta e romancista Chinua Achebe, da Nigéria, especialmente, por seu artigo sobre o livro “O Coração das Trevas” (Heart of Darkness, no original), de Joseph Conrad, intitulado “Uma imagem da África: racismo no Coração das Trevas de Conrad”, de 19753. O artigo é referência de crítica pós-colonial, pois denuncia o racismo dos europeus na forma como retratavam a África. Também são figuras proeminentes da literatura anticolonial autores como Ousmane Sembène, roteirista e cineasta senegalês; o indiano Mahatma Gandhi; o trinidadiano C.L.R. James; o guianense Walter Rodney; o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o; e o sul-africano Steve Biko. Outra figura importante na transição para a academia foi Amílcar Cabral, da GuineaBissau e Cabo Verde, intelectual, diplomata, poeta e revolucionário anticolonial, que liderou o movimento nacionalista dos seus países de origem. Cabral dizia que a luta anticolonial estava relacionada não somente com lutar por melhores condições dos povos colonizados, contra a pobreza, miséria e por direitos, mas também contra o fato de que os colonialistas tiraram dos povos africanos sua própria história (VILLEN, 2013; YOUNG, 2001). Um dos primeiros autores a trazer para a academia europeia as questões relacionadas aos movimentos e expressões anticoloniais foi Frantz Fanon, considerado o mais proeminente pensador do século XX no campo da descolonização e psicopatologia da colonização. Nascido na Martinica e aluno de Aimé Césaire (pan-africanista), seu primeiro livro, “Pele negra, máscaras brancas” (Peau noire, masques blancs, no original), de 1952, é um marco para os estudos anti-pós-coloniais (HULME, 1995; MCEWAN, 2009). No livro, o autor analisa o impacto da subjugação colonial na psiquê das pessoas negras e como a relação de dominação entre colonizador e colonizado é normalizada. Influenciado pelo existencialismo de Sartre e pelo Lacan, uma das principais questões abordadas por Fanon (2008) é como o racismo cega o próprio homem negro de sua subjugação ao universalizar a experiência branca como norma e o aliena da consciência sobre essa dominação. Abordando questões autobiográficas de forma altamente reflexiva, já que era membro da elite colonizada, mas negro e nascido na Martinica, Fanon introduz de 3. Interessante notar que o referido livro de Conrad também serviu de inspiração para o filme Apocalipse Now enquanto crítica à guerra do Vietnã. 11 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR forma original a análise sobre a maneira como o colonialismo afeta o desenvolvimento das subjetividades dos colonizados, especialmente das elites coloniais, assim como dos novos líderes nacionais (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007). Suas contribuições teóricas demonstram a necessidade urgente de desconstruir e reconstruir os discursos como forma de libertação. A partir da década de 1970, o pensamento pós-colonial passou a ser fortemente influenciado por Michel Foucault e por outros pós-estruturalistas franceses, especialmente por suas contribuições filosóficas e discussões relacionadas ao poder/saber, à linguagem e à desconstrução, conceitos que, inclusive, estão na base da crítica pós-colonial, conforme formalizada na academia na décadas de 1980 (CHAKRABARTY, 2000). Uma das obras consideradas como marco do pensamento pós-colonial é o livro de Edward Said, publicado em 1978, chamado “Orientalismo” e traduzido para o português como “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”. O subtítulo em português explica a grande contribuição da obra em denunciar a construção epistêmica dos nãoeuropeus como “Outros” exóticos a partir do olhar dos ocidentais. Este conceito será abordado com mais detalhamento na seção seguinte. Contudo, conforme mencionado, a sistematização do pensamento pós-colonial na academia europeia deu-se apenas na década de 1980, com o Grupo de Estudos Subalternos (GES), um coletivo de acadêmicos majoritariamente composto por historiadores indianos radicados na Inglaterra, interessados em estudar as sociedades póscoloniais no Sul da Ásia, especialmente na Índia, a partir da perspectiva do subalterno e das não-elites. Por focar-se nesse contexto geopolítico, mais tarde o grupo ficou mais conhecido como Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia. O GES foi fundado por Ranajit Guha, historiador da Universidade de Sussex na época, e editor de vários volumes de genealogias históricas elaboradas pelo grupo, assim como por Shahid Amin, David Arnold, Partha Chatterjee, David Hardiman e Gyan Pandey, que produziram cinco volumes da coleção de ensaios historiográficos chamada Subaltern Studies (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007; GUHA, 1982). Mais tarde, fizeram parte do grupo Gyan Prakash, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakravorty Spivak. Além de colocar o subalterno como protagonista da história, o GES apresentou uma inovação epistêmica a partir de seu olhar crítico e suspeitoso quanto aos pressupostos e às verdades do conhecimento eurocêntrico. Um dos seus objetivos era descolonizar a 12 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR produção do conhecimento. Segundo o historiador Robert J.C Young (2001), o GES foi, em vários sentidos, o herdeiro intelectual e político dos movimentos de libertação em termos de escrita da história a partir da agência e protagonismo dos subalternos. A escolha da utilização do termo subalterno, que dá nome ao grupo, deu-se porque utilizavam, originalmente, uma perspectiva marxiana gramsciana, baseada no conceito de grupos subalternos de Gramsci (MCEWAN, 2009). O GES ampliou e popularizou o termo subalterno, que passou a ser entendido para se referir aos “excluídos da mobilidade social e cujas vozes não são ouvidas ou ignoradas” (SPIVAK, 2004, p. 180). Nesse sentido, os estudos pós-coloniais procuram revelar como uma certa perspectiva da história global foi arbitrariamente construída como algo universal e linear e quais atores sociais e grupos foram “historicizados” e narrados em detrimento de outros, que foram invisibilizados e ocultados. Também buscam trazer luz ao fato de que algumas práticas e culturas foram celebradas e legitimadas, enquanto outras foram desqualificadas ou dizimadas. Nesse sentido, denunciam que a produção do conhecimento não é neutra e desinteressada, mas, reflete, sobretudo, uma narrativa contada pelas elites, detentoras do poder de impor sua versão da história. O pensamento pós-colonial também foi fortemente marcado por Homi Bhabha, também indiano, teórico da literatura, tendo lecionado por dez anos na Universidade de Sussex e, atualmente, reconhecido por tornar mais complexa a compreensão da relação entre colonizador e colonizado e aprofundar a discussão sobre os efeitos da colonialidade e suas expressões contemporâneas, descrevendo o encontro colonial como um espaço de interação ambivalente e híbrido (BHABHA, 1994). Além disso, Gayatri Spivak, indiana, teórica da literatura, é considerada a mais influente pensadora dos estudos pós-coloniais. Foi tradutora do livro “Gramatologia”, de Jacques Derrida, para o inglês e, como mencionado, fez parte do Grupo de Estudos Subalternos. Spivak realizou contribuições teóricas especialmente relevantes por articular, no pensamento pós-colonial, a crítica feminista e problematizar a discussão sobre representação, interpretação e apropriação do discurso da pessoa subalterna. Seu artigo “Pode o subalterno falar? (“Can the subaltern speak?”) (SPIVAK, 1988) é considerado seminal. Nele, Spivak questiona a prática de intelectuais privilegiados de reivindicarem as vozes subalternas através de sua linguagem técnica, por meio da sua essencialização e da busca da vítima autêntica, considerando como efeito desta prática uma violência epistêmica que silencia e contém a própria capacidade subalterna de falar por si mesma (MORTON, 2003). 13 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Em resumo, o pensamento pós-colonial apresenta-se como uma grande contribuição filosófico-teórica devido a seu desengajamento crítico do projeto colonial e do pensamento moderno e eurocentrado, que provocou (e provoca) reflexões sobre as possibilidades e meios para atuar politicamente no campo das ideias e da prática para transformar o mundo em prol dos subalternos (HALL, 2008). Além disso, pode-se dizer que esse pensamento é responsável por popularizar as perspectivas críticas descolonizadoras na produção teórica da academia norteamericana e europeia, fazendo surgir o interesse por estudos e pensamentos descolonizadores no Norte Global. Por outro lado, a incorporação do pensamento póscolonial em muitas universidades norte-americanas como “estudos pós-coloniais”, passou a adotar um viés bastante culturalista e acadêmico, distanciando-se do sentido de emergência política que marcou os intelectuais do Grupo de Estudos Subalternos, muitas vezes reproduzindo práticas (neo)colonizadoras e imperialistas sem alterar a relação de forças dentro dos “palácios” do Império (RIVERA CUSICANQUI, 2010). A própria Spivak passou a se distanciar dos estudos pós-coloniais. Em entrevista, Spivak (2018a) afirma que devemos seguir adiante e não nos preocupar em corrigir ou culpar o uso errado do pensamento, mas refletir sobre qual é o projeto que nos interessa. “Eles não sabem que o subalterno não existe”, logo, devemos seguir a diante4. O pensamento descolonial Inspirados pelo desenvolvimento da nova corrente de pensamento pós-colonial, estudiosos latino-americanos criaram o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos para estudar o subalterno na América Latina (SUBALTERNOS, 1998). O Grupo também era composto majoritariamente por intelectuais radicados nos Estados Unidos e buscava realizar o mesmo esforço de descolonizar a produção de conhecimento sobre e na América Latina (SUBALTERNOS, 1998). Logo em seu início, Grupo se desmembrou. Grosfoguel (2009), um dos integrantes do grupo que optou pela ruptura, explica que o rompimento se deu devido a uma necessidade de transcender epistemologicamente e descolonizar a própria epistemologia e a produção de conhecimento. Entre as várias razões, destaca o desacordo em privilegiar marcos teóricos europeus, como Derrida, Foucault e Gramsci; a compreensão da ideia de subalternidade pelos viés da crítica pós-moderna ao invés da crítica descolonial e da compreensão sobre a colonialidade; e a necessidade de se desenvolver uma epistemologia que privilegiasse 4. Entrevista em inglês, por Adriana Bebiano e Catarina Martins, do Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hdU5G-dun- Programa de Doutoramento em Estudos Feministas, do Centro de PQ&list=PLP5psTSlt25DZZQPuN95x0TgxcEA0cdvn&index=12 Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em 30 de outubro de 2018. 14 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR a produção “do” subalterno e não “sobre” o subalterno, distanciando-se de uma prática comum dos Estudos Regionais presentes nos Estados Unidos de estudar o Sul com as referências do Norte. Nesse sentido, Grosfoguel ressalta que tanto o Grupo de Estudos do Sul da Ásia quanto o Grupo Latino-Americano realizavam uma crítica a partir do pósmodernismo. No entanto, o primeiro privilegiava a crítica pós-moderna a partir do “Sul Global”, enquanto o segundo, do Norte Global. Reconhecendo a importante contribuição do Grupo Sul Asiático sobre os debates contra o eurocentrismo, notou-se a necessidade de ir além dos paradigmas universalistas (pós-)modernos e ocidentais para buscar uma epistemologia que reconheça a diversidade das cosmovisões em um projeto pluriversal, que leve a sério as perspectivas e cosmologias de intelectuais do Sul Global pensando a partir dos corpos e espaços raciais/sexuais/étnicos subalternizados. A esta virada de perspectivas, chamaram de “giro decolonial” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Esta virada foi resumida e apresentada em um excelente artigo acadêmico produzido por Luciana Ballestrin (2013), com o qual este artigo dialoga e complementa. Neste processo, instituiu-se o Grupo Modernidade/Colonialidade (conhecido como Grupo M/C) a partir de uma série de encontros e produções acadêmicas de intelectuais, majoritariamente latino-americanos, caribenhos e norte-americanos que tinham relação com a academia norte-americana. Destaca-se, a participação da Associação Caribenha de Filosofia, do qual faz parte Maldonado-Torres no estabelecimento do grupo (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Dessa forma, criou-se uma rede de pensadores que apresenta como uma crítica ao pensamento crítico pós-colonial, buscando ir mais além dos seus limites anglo-saxões. Quanto à diferença de grafia ou abordagem entre descolonial e decolonial, Catherine Walsh apresenta uma proposta de privilegiar o uso do termo “decolonial” (sem “s”) a fim de demarcar uma nova postura epistêmica. A esse respeito, destaco a explicação de Walsh (2017, p. 16) sobre o tema: Dentro da literatura relacionada à colonialidade do poder, encontramse referências tanto à descolonialidade como ao descolonial, assim como à decolonialidade e ao decolonial. Sua referência dentro do projeto de modernidade/colonialidade começa em 2004, abrindo assim uma nova fase em nossa reflexão e discussão. A supressão do “s” é minha opção. Não se trata de promover um anglicismo. Pelo contrário, visa marcar uma distinção com o significado espanhol de “des” e o que pode ser entendido como um simples desarmar, desfazer ou reverter do colonial. Ou seja, passar de um momento 15 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR colonial para um não-colonial, como se fosse possível que seus padrões e traços deixassem de existir. Com este jogo linguístico, tento colocar em evidência que não existe um estado nulo de colonialidade, mas sim posicionamentos, horizontes e projetos de resistência, transgressão, intervenção, in-surgência, criação e incidência. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua no qual “lugares” de exterioridade e construções alter-(n)ativas podem ser identificados, tornados visíveis e encorajados5. Por outro lado, Silva Rivera Cusicanqui, no livro intitulado “Ch’ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores”6 , publicado em 2010, apresenta uma dura crítica à Walter Mignolo e Catherine Walsh por adotarem práticas de colonialismo interno e da proliferação de neologismos que confundem e paralisam. Cabe resumir aqui alguns trechos da crítica de Rivera Cusicanqui (2010, p. 58, 64–65): Os Mignolos e companhia construíram um pequeno império dentro do império, recuperando estrategicamente as contribuições da escola de estudos subalternos da Índia e de múltiplas vertentes latino-americanas de reflexão crítica sobre colonização e descolonização. (...) Retomou minhas ideias sobre o colonialismo interno e sobre a epistemologia da história oral e as regurgitou em um discurso profundamente despolitizado sobre a alteridade. (...) A moda da história oral se espalhou, então, para a Universidade Andina Simón Bolivar de Quito, cujo Departamento de Estudos Póscoloniais, sob a direção de Catherine Walsh - discípula e amiga de Mignolo, ensina um curso de pós-graduação inteiramente baseado na versão logocêntrica e nominalista da descolonização. Neologismos como “de-colonial”, “transmodernidade”, “eco-si-mia” proliferam e emaranham a linguagem, deixando seus objetos de estudo - povos indígenas e afrodescendentes - paralisados, com quem acreditam dialogar. Mas eles também criam um novo cânone acadêmico, usando um mundo de referências e contra-referências que estabelece hierarquias e adota novos gurus: Mignolo, Dussel, Walsh, Sanjinés. Dotados de capital cultural e simbólico graças ao reconhecimento e certificação de centros acadêmicos nos Estados Unidos, esta nova estrutura de poder acadêmico se realizada na prática através de uma rede de professores convidados e visitantes entre universidades e 5. No original: “Dentro de la literatura relacionada a la colonialidad huellas dejaran de existir. Con este juego lingüístico intento poner del poder, se encuentran referencias tanto a la descolonialidad y lo en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino descolonial, como a la decolonialidad y lo decolonial. Su referencia posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistencia, dentro del proyecto de modernidad/colonialidad se inicia en 2004, transgresión, intervención, in-surgencia, creación e incidencia. Lo abriendo así una nueva fase en nuestra reflexión y discusión. Suprimir decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual la “s” es opción mía. No es promover un anglicismo. Por el contrario, se puede identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y pretende marcar una distinción con el significado en castellano construcciones alter-(n)ativas”. del “des” y lo que puede ser entendido como un simple desarmar, 16 deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, pasar de un momento 6. Em português: Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e colonial a uno no colonial, como si fuera posible que sus patrones y discursos descolonizadores. ANA LAURA BECKER DE AGUIAR através do fluxo - do sul ao norte - de estudantes indígenas ou afrodescendentes da Bolívia, Peru e Equador, que são responsáveis pela sustentação do multiculturalismo teórico, racializado e exótico das academias7. Como mencionado anteriormente, mais do que identificar os limites teóricos e suas diferenças, este artigo busca costurar as relações e entrecruzamentos entre as diversas perspectivas críticas dentro de um projeto comum de repensar e reconstruir a sociedade a partir do ponto de vista das pessoas subalternizadas. Nesse sentido, busca-se apresentar uma leitura dialógica dos pensamentos pós-coloniais e descoloniais e seus debates internos, apontando para as suas convergências, reconhecendo como positivo o esforço de buscar propostas cada vez mais transgressoras de nossa realidade. Como destacado por Spivak (2018a), em entrevista mencionada acima, é preciso refletir sobre quais debates servem aos nossos projetos e, nesse sentido, entende-se que devemos seguir adiante, sempre vigilantes quanto às nossas práticas, para evitar essencializar o subalterno (compreendido enquanto perspectiva) e não praticar novos tipos de colonialismos. Assim, para a finalidade deste artigo, nas próximas seções, será utilizado o termo pensamentos descolonizadores, referindo-se ao pensamento pós-colonial e descolonial. Antes de passar para os conceitos, é importante destacar que o pensamento feminista perpassa os pensamentos descolonizadores de forma transversal, rompendo com as fronteiras disciplinares. Muitas intelectuais feministas introduziram questionamentos aos pensamentos pós-colonial e descolonial a partir de dentro promovendo ideias seminais, como nos casos de Spivak, Mohanty, Curiel e Cusicanqui (CURIEL, 2013; MOHANTY, 1988; RIVERA CUSICANQUI, 2010; SPIVAK, 1988). Abordar os conceitos e contribuições das teóricas feministas fogem ao escopo deste artigo. 17 7. No original: “Los Mignolo y compañía han construído un pequeño mía” proliferan enredan el lenguaje, dejando paralogizados a sus imperio dentro del imperio, recuperando estratégicamente los objetos de estudio –los pueblos indígenas y afrodescendientes– aportes de la escuela de los estudios de la subalternidad de la India y con quienes creen dialogar. Pero además, crean un nuevo canon de múltiples vertientes latinoamericanas de reflexión crítica sobre la académico, utilizando un mundo de referencias y contrarreferencias colonización y la descolonización. (…) Retomaba ideas mías sobre el que establece jerarquías y adopta nuevos gurús: Mignolo, Dussel, colonialismo interno y sobre la epistemología de la historia oral, y las Walsh, Sanjinés. Dotados de capital cultural y simbólico gracias al regurgitaba enredadas en un discurso de la alteridad profundamente reconocimiento y la certificación desde los centros académicos de despolitizado. (…) La moda de la historia oral se difunde entonces a los Estados Unidos, esta nueva estructura de poder académico se la Universidad Andina Simón Bolivar de Quito, cuyo departamento realiza en la práctica a través de una red de profesores invitados y de Estudios Poscoloniales, al mando de Catherine Walsh –discípula visitantes entre universidades y a través del flujo –de sur a norte– y amiga de Mignolo, imparte un postgrado enteramente asentado de estudiantes indígenas o afrodescendientes de Bolivia, Perú y en la versión logocéntrica y nominalista de la descolonización. Ecuador, que se encargan de dar sustento al multiculturalismo Neologismos teórico, racializado y exotizante de las academias”. como “de-colonial”, “transmodernidad”, “eco-si- ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Conceitos-chave: 1 – A Teoria da Perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade Os pensamentos críticos, tanto pós-coloniais, descoloniais, feministas e antirracistas entendem que é preciso reconhecer que o conhecimento não é neutro, mas é um produto histórico das relações de poder, datadas, e que refletem, na maior parte das vezes, interesses ou perspectivas de grupos específicos e hegemônicos. Esse reconhecimento é o primeiro passo para a construção de debates dialógicos e de uma democracia que reconhece as diferenças, a pluralidade de opiniões e a possibilidade de uma visão pluralista e diversa ao invés de monolítica e universal da realidade. Uma das maiores contribuições teóricas realizados nesse debate foi realizado pelas teóricas feministas da “Teoria da Perspectiva” ou “Teoria do Ponto de Vista”8, que tem como base os pressupostos marxianos do ponto de vista do proletário. Entre as principais autoras desta teoria, destacam-se Dorothy Smith, Nancy Hartsock, Sandra Harding, Donna Haraway e Patricia Hill Collins9. A teoria da perspectiva iniciou-se com a discussão sobre a questão da mulher na ciência, mas, especialmente, a questão da “ciência” para o feminismo, problematizando a ciência moderna para o campo do feminismo e questionando a neutralidade como objetividade (HARDING, 1991). A teoria da perspectiva cimentou uma das rupturas epistemológicas mais profundas do pensamento crítico, que trata sobre o reconhecimento de que não há neutralidade na produção de conhecimento/ciência, entendendo-o como um produto das relações sociais a que está inserido. Dessa forma, questionou-se a neutralidade como único grau razoável para garantir objetividade e argumentou-se o contrário, que para ser mais objetivo e transparente (especialmente menos sexista, androcêntrico, antirracista, anti-imperialista) seria necessário partir do ponto de vista dos grupos marginalizados (HARDING, 2019). Inicialmente, para as feministas, como Harding (1991), havia uma preocupação em questionar o androcentrismo (pensamento com foco no homem) na ciência, por 8. No Brasil, a teoria de ponto de vista (“standpoint theory”) já foi 9. Os principais artigos que marcaram essas contribuições são: traduzida como “teoria do posicionamento alternativo” na revista (HARAWAY, 1988; HARDING, 1991; HARTSOCK, 1983; MIÑOSO, 2019; Estudos Feministas, em artigo intitulado “A instabilidade das SARDENBERG, 2002; SMITH, 1987). categorias analíticas na teoria feminista”, em 1993 (HARDING, 1993). Também foi traduzida como “teoria da perspectiva” na tradução do artigo de Sandra Harding, intitulado “Objetividade mais forte para ciências exercidas a partir de baixo”, em 2019 (HARDING, 2019). Também ficou bastante conhecida a partir da publicação do livro de Djamila Ribeiro que traduziu a perspectiva para ideia de lugar de fala em seu livro intitulado “O que é: lugar de fala?” (RIBEIRO, 2017). 18 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR meio da qual foram justificadas perspectivas sexistas, ainda que suas bases tenham sido elaboradas para categorias amplas de pessoas marginalizadas. Posteriormente, Patricia Hill Collins (1986) expandiu os debates de forma a incluir a discussão sobre raça. Apresentou a ideia de que a mulher negra, sendo uma “outsider within” (forasteira de dentro), possui um lugar privilegiado e um ponto de vista especial a sociologia e a produção de conhecimento. Cabe ressaltar, por exemplo, que a inferioridade intelectual da mulher e de populações negras e indígenas foram justificadas “cientificamente” pela biologia (HARDING, 2019). Harding (2013) destaca, por exemplo, o fato de Fanon (1965) ter denunciado como a medicina foi cúmplice das atrocidades cometidas tanto pelo Estado nazista quanto pelos Estados coloniais. Como será abordado mais adiante, a partir das construções de Quijano (2005), essas diferenciações “naturais” justificadas pelas perspectivas modernas dominantes serviam a interesses coloniais de dominação e hierarquizações de humanos entendida como parte da colonialidade do poder. A teoria da perspectiva entende que é preciso levar em consideração o conceito de “parcialidade” das experiências e a posicionalidade, localidade ou lugar de fala dos sujeitos na produção do conhecimento, uma vez que toda perspectiva será relativa e parcial (HARAWAY, 1995). Nesse sentido, a perspectiva dos grupos marginalizados tornase um local privilegiado para compreender a matriz de opressão e buscar a transformação da sociedade em realidades mais democráticas e inclusivas (BREWER; COLLINS, 1992). Adotar a perspectiva do subalterno não significa procurar uma relação de identidade com o seu objeto de pesquisa, mas uma relação de objetividade, que é sempre entendida como parcial. Segundo Haraway (1995): O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico não procura a posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial. Não há maneira de “estar” simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero, raça, nação e classe. E esta é uma lista resumida das posições críticas. A procura por uma tal posição “inteira” e total é a procura pelo objeto perfeito, fetichizado, da história oposicional, que às vezes aparece na teoria feminista como a essencializada Mulher do Terceiro Mundo (Mohanty, 1984). 19 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Logo, compreende-se que o estudo científico é resultado de conhecimentos localizados e do engajamento dos pesquisadores, os quais devem reconhecer seu lugar de fala e onde se situam na história, na cultura e na sociedade, uma vez que o contexto implicará nos seus valores, metodologias, temas de pesquisa e interpretações (HARDING, 1991). A fim de aprofundar a ideia de objetividade, tão prezada pela ciência moderna, Harding apresentou o conceito de “forte objetividade”10 , segundo o qual o pesquisador ou pesquisadora (o eu cognoscente) não deve negar seu posicionamento, mas apresentálo de forma transparente. Além disso, deve-se sempre questionar se as convicções de quem pesquisa influenciam suas premissas e suas conclusões, adotando uma postura reflexiva sobre sua prática de produção de conhecimento, entendida como “reflexividade” (HARDING, 1991). Sendo assim, não é possível universalizar a experiência humana, suas relações, visões de mundo ou sistema de valores e a ideia de que a construção do conhecimento e da ciência é moldada pelos valores socioculturais de quem a produz. Nesse sentido, a própria concepção do Estado moderno, da ideia de um contrato social, da estrutura democrática como a conhecemos é parte de um processo histórico que é colonialista, androcentrêntrico, ocidental e, na maioria das vezes, monocultural. Outra importante reflexão nesse sentido é a necessidade de romper com a perspectiva universalista dos direitos humanos e dialogar com sua proposta ética a partir de sua localização histórica e sociocultural (HERRERA FLORES, 2009; SEGATO, 2006; SPIVAK, 2004). No mesmo sentido, análises críticas revelam o enviesamento de ideias supostamente neutras, abstratas e universais, como: o desvelamento do Estado como uma estrutura patriarcal feito por Catherine MacKinnon (1989); a denúncia do Estado como perpetuador de uma estrutura heterossexual feita por Ochy Curiel (2013); e a crítica à ideia de contrato social desnudado por Carol Pateman (1988) como contrato sexual. Essas análises revelam que, ao se adotar uma metodologia que parte de um ponto de vista marginal, é possível questionar as estruturas e pensamentos vigentes para transformá-las. 2 - O orientalismo e eurocentrismo Um importante conceito pós-colonial que nos ajuda a entender o viés ou a localização do conhecimento e seus efeitos nefastos é o “orientalismo”, cunhado pelo pensador palestino Edward Said (1978), que publicou o livro de mesmo nome considerado como textos fundacional da teoria pós-colonial (SAID, 2003). Esse conceito é usado para explicar o processo pelo qual os pensadores e líderes ocidentais criaram um discurso, um sistema de verdade, no qual o não-Ocidente foi entendido como exótico, inferior 10. Também traduzido como “objetividade mais forte”(HARDING, 2019). 20 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR e misterioso, que deveria ser temido ou controlado. O “orientalismo” estabeleceu um padrão monolítico de conhecimento e cultura que colocou o “Ocidente” como centro e tudo em torno dele como primitivo e inferior, o “outro” (SAID, 2003). Enquanto palestino, Said elaborou o conceito tendo como base o contexto do Oriente Médio e da Ásia. Na perspectiva descolonial, voltada para América Latina, esse processo foi elaborado por meio do conceito de eurocentrismo (DUSSEL, 2000; QUIJANO, 2005). Nesse sentido, o Ocidente deixa de ser apenas um termo geográfico para se tornar uma metáfora da cultura e de um sistema de pensamento baseado na Europa (eurocentrado) que é exportado como pensamento único (MCEWAN, 2009). O orientalismo é um conceito útil para descrever e compreender as estruturas de relações de poder dentro do Norte/Sul, ou “Primeiro”/“Terceiro” mundo, “Desenvolvido”/“Subdesenvolvido”, “Primitivo”/“Civilizado” que persistem relevantes na discussão sobre desenvolvimento, Estado e democracia até hoje, como nos debates sobre terrorismo, direitos dos povos e comunidades tradicionais, e direito das mulheres, para citar alguns exemplos. Na mesma linha, na América Latina, Dussel denuncia o eurocentrismo ao destacar que a concepção da Europa como centro do mundo é uma invenção ideológica que apresenta a cultura grega como exclusivamente europeia e ocidental, como se sempre tivesse sido o “centro” da história (DUSSEL, 2000, p. 2,3). Dussel revela que a narrativa que coloca a Europa no centro do mundo desconsidera as diversas histórias de distintos povos da humanidade e o próprio lugar geopolítico da Europa, muito mais no limite ocidental do mercado euro-afro-asiático. 3 - O mito da modernidade Uma das principais expressões do orientalismo e do eurocentrismo foi a construção do mito da modernidade. Dussel, membro do Grupo Latino-americano da Modernidade/ Colonialidade, explica o mito da modernidade descrevendo-o como a ideia autodidata de que a Europa moderna era mais desenvolvida do que o resto do mundo (DUSSEL, 2000, p. 49). Essa superioridade criou uma imposição na dinâmica do poder, exploração e dominação, para se lograr o “progresso prometido” nas sociedades “subdesenvolvidas” e ditas “primitivas”. Com base nessa concepção, caso os “bárbaros” resistissem à civilização, a violência seria usada como recurso pelo “bem” da comunidade a ser modernizada. A violência e o sofrimento dos “primitivos” eram entendidos como uma circunstância 21 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR inevitável que enfrentavam em seu caminho natural para o “progresso”. Era tratada como uma “violência inocente”, pois teria sido produzida por sua própria culpa: resistir ao “progresso” e à “emancipação” (DUSSEL, 2000, p. 5). Dessa forma, atrocidades foram cometidas contra as populações consideradas “primitivas” enquanto povos foram exterminados e suas histórias dizimadas. A narrativa da modernidade defende que assim se deu a “evolução” da humanidade, fundada na violência “inocente” praticada pelos europeus para o próprio “bem” dos “não-europeus”. Segundo Dussel (2000), somente quando negamos a inocência dessa violência e o mito da modernidade será possível reconhecer a dignidade do “outro”, “oriental”, exótico, bárbaro e primitivo, aquele sobre o qual não conhecemos por meio das lentes modernas. O autor também cita o mito do estado de natureza (criados pelos autores contratualistas na construção do Estado moderno), que contribui para separar corpo e mente, reiterando a ideia de que os dominadores, racionais, modernos e evoluídos, são civilizados enquanto os dominados (fora do contrato social eurocêntrico) são raças inferiores, irracionais, primitivas e subdesenvolvidas, mais próximas da “natureza” e dos animais. Descontruir o mito da modernidade permite-nos denunciar os Estados modernos como estruturas coloniais, que se fundaram na desumanização dos povos originários e das populações escravizadas, com efeitos que se perpetuam até os dias atuais. Segundo Mignolo (2014, p. 46), a democracia liberal (fundada pelo Estado moderno) é na verdade uma armadilha que beneficia a poucos (brancos e europeus) e marginaliza os demais. Não é preciso muita imaginação para comparar o mito da modernidade ao mito do “desenvolvimento”, da “segurança” e, também, em alguns casos, dos “direitos humanos”. As vítimas desses projetos (de guerra contra o terrorismo, guerra contra as drogas, dos deslocados por megaprojetos de infraestrutura e grande eventos, ou das vítimas das intervenções pela ordem e segurança) são as mesmas de sempre, que as teorias póscolonial e descolonial chamam de “subalternas”. O trabalho dos estudiosos pós-coloniais e descoloniais em desconstruir esses mitos temporais e espaciais é útil para compreender as relações de poder e os efeitos de certas políticas e práticas na vida daqueles que são os afetados por elas. Rita Segato (2013) destaca que é preciso reconhecer a continuidade histórica entre a conquista colonial, o ordenamento colonial do mundo e a formação pós-colonial republicana que se estende até hoje. Para a autora: 11. No original: “En esa línea histórica, el calificativo de ‘bárbaros’ com el que actualmente la prensa describe a los bandidos es el mismo que se utilizaba antes, como parte de la díada civilizacion-barbarie, para caracterizar a los indígenas, y, posteriormente, a todos aquellos que quedaran al margen del disciplinamento letrado, todos los no blancos”. 22 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR “Nesta linha histórica, o termo ‘bárbaros’, como descrito atualmente pela imprensa para os bandidos, é o mesmo usado anteriormente, como parte da barbárie civilizatória, para caracterizar os índios, e mais tarde, todos aqueles que permaneceram fora da disciplina da lei, todos os não-brancos” (SEGATO, 2013, p. 264, tradução nossa)11. No mesmo sentido, ao referir-se sobre o pensamento iluminista e liberal que fundamenta a formulação dos direitos no Estado moderno, Spivak nos atenta para o risco de se utilizar o discurso dos direitos humanos como forma de corrigir os grupos de pessoas que não se enquadram na categoria do “sujeito moderno”, da mesma forma como foram justificadas as “violações capacitantes” (enabling violations) da produção do sujeito colonial com base no mito da modernidade (SPIVAK, 2004). A utilização do discurso dos direitos humanos para justificar intervenções humanitárias, por exemplo, pode se aproximar das narrativas que um dia permitiram a realização de atrocidades e extermínios em nome do fardo do homem branco colonial de levar “desenvolvimento” e “civilização” para as populações primitivas onde se queria colonizar e dominar. As teorias pós-colonial e descolonial clamam por uma nova epistemologia, complexa, lenta, localizada, focada no subalterno e que inclua a diversidade das experiências histórico-políticas e culturais. Nesse sentido, Luiz Tapia propõe a experimentação de políticas selvagens, de desorganização e suspensão da ordem social de opressão e das estruturas de desigualdades que possibilitem tempos de intersubjetividade igualitária (TAPIA, 2001, p. 126). Apenas uma teoria complicada, selvagem e fluída conseguirá começar a responder aos desafios sociais contemporâneos para um debate realmente democrático. A proposta descolonial avança no sentido de buscar alternativas de democracia e de práticas políticas fora do eurocentrismo e dos pressupostos da modernidade. Como apontado por Mignolo: A democracia liberal é apresentada por aqueles que acreditam nela como a opção preferida. O mesmo ocorre com as outras opções. Entretanto, o diferencial de poder ainda está vigente. “Democracia” ainda reina no senso comum. A tarefa de descolonizar a democracia consiste em remover as espessas camadas de senso comum que consomem a ideia de democracia sem refletir sobre o que traz nela os traços da colonialidade. A questão é que se sempre foi uma aberração fingir que os fins propostos pela filosofia política e econômica de uma história local são válidos para as outras, a aberração já começou a ser corrigida (MIGNOLO, 2014)12. 12. No original: “La democracia liberal es presentada, por quienes creen en ella, como la opción preferida. Igual ocurre con las otras opciones. Sin embargo, el diferencial de poder está todavía vigente. “Democracia” todavía reina en el sentido común. La tarea de descolonizar la democracia consiste en remover las espesas capas del sentido común que consume la idea de democracia sin reflexionar en que acarrea en ella las huellas de la colonialidad. La cuestión es que si siempre fue una aberración pretender que los fines que proponen la filosofia política y económica de una historia local sean válidos para las otras, la aberración comenzó ya a ser corregida”. 23 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR 4 - A diferença do terceiro mundo Segundo Mohanty (1988, 2020), a partir de uma interpretação do mundo, geralmente realizada por intelectuais brancas, ocidentais e do Norte Global e de suas experiências e pontos de vista, o feminismo hegemônico apresentou uma narrativa de exploração e violência que seria universal e comum a todas as mulheres, com base na sua subordinação pelas relações de gênero. Essas violências seriam ainda mais intensas no então terceiro mundo. Dessa forma, o feminismo hegemônico criou a narrativa da “diferença do terceiro mundo” e de uma categoria monolítica de “mulheres do terceiro mundo” como vítimas autênticas (MOHANTY, 1988). Nessa perspectiva, a experiência das mulheres ocidentais e brancas (eurocêntrica) foi utilizada como parâmetro para definir o que é ser mulher, omitindo a diversidade cultural e a pluralidade das mulheres e dos seus contextos sociais, retirando-lhes toda a capacidade de agência e as figurando como vítimas permanentes. Dessa forma o feminismo hegemônico estabelece uma relação de saber-poder a partir de seus lugares de privilégio de sexo, raça, sexualidade e geopolítica. Mohanty (1988) argumenta que, assim como no orientalismo, esse tipo de feminismo (hegemônico), ao criar uma ideia de opressão sexual universal entre as mulheres, gerou uma noção ou categoria monolítica de mulheres que, por consequência, gerou também uma categoria identitária monolítica de “mulheres do terceiro mundo”, enquanto mulheres não-ocidentais que compartilham a mesma opressão. Em geral, “as mulheres do terceiro mundo”, por estarem posicionadas geopoliticamente em um local menos privilegiado dentro do sistema-mundo capitalista, foram consideradas como mulheres ignorantes, impotentes, pobres, sem instrução e vitimizadas, constituindo uma colonização das experiências heterogêneas de mulheres não-ocidentais. Mohanty chamou essa visão essencializada, monolítica e simplificada das mulheres do então terceiro mundo de “diferença do terceiro mundo” (MOHANTY, 1988). A crítica feminista pós-colonial apresentada por Mohanty repercutiu em um intenso debate nos estudos de gênero e, associada às críticas apresentadas pelas feministas negras, chicanas, especialmente as localizadas no “Ocidente”, contribuiu para promover reconsiderações e desenvolvimentos teóricos mais complexos e densos sobre as categorias de “mulheres” nos estudos feministas, produzindo, entre outros debates e conceitos, o pensamento feminista interseccional, fronteiriço e descolonial. 24 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR 5 - A diferença colonial No mesmo sentido, o pensador da teoria descolonial Walter Mignolo desenvolveu o termo “diferença colonial”. Para ele: “A colonialidade do poder é o dispositivo que produz e reproduz a diferença colonial. A diferença colonial consiste em classificar grupos de pessoas ou populações e identificálos em suas falhas ou excessos, o que marca a diferença e a inferioridade em relação àquele que classifica. A colonialidade do poder é, acima de tudo, o lugar epistêmico de enunciação no qual o poder é descrito e legitimado. Neste caso, o poder colonial”13 (MIGNOLO, 2014, p. 39). Tanto a “diferença do terceiro mundo” de Mohanty quanto a “diferença colonial” de Mignolo são expressões do orientalismo e do eurocentrismo aplicadas aos sujeitos do “terceiro mundo” ou aos sujeitos coloniais de forma a essencializar e homogeneizar as suas experiências. Presume-se que como o sujeito colonial está localizado em um lugar periférico no mapa do colonialismo, sua experiência será “naturalmente” mais opressiva e frágil. Dessa forma, presume-se que o sujeito do terceiro mundo é essencialmente mais frágil, identificando-lhe como vítima. Essas são formas de retratar e classificar as pessoas e povos de forma homogênea e pejorativa, ou os identificando como cruéis estranhos/terroristas ou como vítimas a serem resgatadas/pobres inocentes. Por meio da diferença do terceiro mundo/colonial, o sujeito colonial é essencializado, homogeneizado, inferiorizado e excluído de agência/ autonomia e do poder. 6 - A colonialidade do poder e a invenção da raça Anibal Quijano, sociólogo peruano, sistematizou e ampliou a compreensão do processo de inferiorização hierárquica e dominação através da diferença colonial por meio do conceito-chave de “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005). Para o autor, o capitalismo mundial, com base nas raízes coloniais e eurocentradas, criou um novo padrão de poder mundial através do controle da subjetividade, da cultura, do conhecimento e do trabalho, seus recursos e produtos em torno do capital e do mercado mundial. Nesse processo, a invenção da raça tem papel primordial, sendo a principal categoria mental da modernidade na qual irá se fundar a hierarquização social e a divisão internacional do trabalho. Tanto a colonialidade do poder, quanto a ideia de raça são fenômenos que se dão de forma muito particular na região da América. Quijano 13. No original: “La colonialdad del poder es el dispositivo que produce y reproduce la diferencia colonial. La diferencia colonial consiste em clasificar grupos de gentes o poblaciones e identificarlos en sus faltas o excesos, lo cual marca la diferencia y la inferioridad con respecto a quien clasifica. La colonialdd del poder es, sobre todo, el lugar epistémico de enunciación en el que se describe y se legitima el poder. En este caso, el poder colonial”. 25 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR (2005) identifica a América como o primeiro espaço/tempo deste novo padrão de poder mundial. Antes do “descobrimento” da América, não havia uma construção narrativa de raça no seu sentido moderno. É com o encontro da “América” que se cria a “Europa” e as novas categorias identitárias forjadas pela colonialidade do poder. Nesse novo contexto, o discurso colonial e moderno criou identidades sociais historicamente novas, agrupando diversos povos e comunidades completamente distintas e plurais (cada um com a sua própria história, linguagem, cultura, memória e identidade) em categorias identitárias homogêneas de “índios”, “negros”, “mestiços” e “brancos”. Essas categorias foram (e são) determinantes para a distribuição da população em níveis, espaços e papéis hierárquicos na estrutura de poder da nova sociedade capitalista, gerando uma divisão racial do trabalho em níveis globais. Essas diferenças identitárias são visíveis e localizam o subalterno nos diversos espaços à margem dos territórios valorizados, das profissões mais bem remuneradas, do acesso à informação e da produção do conhecimento, das normas e, especialmente, do controle do Estado. Forma-se uma verdadeira hierarquia étnico-racial global. No novo contexto capitalista global, Mignolo destaca que a ideia de democracia foi montada nos Estados ditos hoje como desenvolvidos durante um período de crescimento econômico que se deu às custas das colônias e do comércio advindo de sua exploração, e de guerras como a guerra do Ópio (MIGNOLO, 2014, p. 26). A democracia ocidental foi construída ao mesmo tempo em que eram explorados os recursos, mas, especialmente, as pessoas dos países em desenvolvimento, das ex-colôniais, do “terceiro mundo”, do “Sul Global”. Nesse lugar da história e da distribuição global, o Estado brasileiro se formou dentro de um contexto em que o controle do trabalho esteve articulado para favorecer o desenvolvimento do capitalismo global e colonial, no qual se inseria como colônia de exploração (QUIJANO, 2005). Assim, a colonialidade do trabalho determinou a distribuição geográfica social do capitalismo e fez com que a Europa se constituísse no centro do mundo capitalista (QUIJANO, 2005)14. Nesse contexto, as identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas aos papéis e lugares que se ocupava na nova estrutura global de controle do trabalho, que resultou em uma divisão racial do trabalho tão explicita nos indicadores sociais globais e nacionais ainda nos dias atuais. É inviável pensar ou problematizar as questões sobre democracia no Brasil sem se reconhecer as origens das principais categorias de identidades que foram constituídas ao longo de nossa história colonial. 14. Essa configuração mundial foi descrita por Raúl Prebish na imagem de Centro- Periferia 26 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Como retrata Rita Segato (2013), o lugar da empregada doméstica no Brasil é uma herança colonial, que passou das escravas, às amas de leite, às amas-secas, até chegar às babás e às empregadas domésticas contemporâneas, em sua maioria negras. Segundo a autora, a hierarquia que o trabalho doméstico remunerado ocupa no mercado de trabalho contemporâneo também reflete essa herança identitária. A empregada doméstica no Brasil é o retrato da colonialidade do poder e suas intersecções entre raça, classe e gênero. Entende-se que não há como pensar em representatividade, participação e democracia no Brasil sem considerar, por exemplo, a necessidade de transformação da representação das mulheres negras no imaginário político-social e cultural da sociedade. Apenas quando houver a naturalização da presença de mulheres negras nos espaços de poder, poderemos iniciar, dar o primeiro passo, rumo a um processo de transformação verdadeiramente democrático, antirracista, feminista e descolonial. Ao mesmo tempo, refletir sobre uma democracia pluralista antirracista e feminista deve reconhecer como legítima outras formas de saber e viver distintas dos moldes ocidentais instituídos pelo processo colonial capitalista e respeitar as diferenças dos modos de vida de forma não colonial ou imperialista, mas promovendo o pluralismo democrático. Conclusão Os pensamentos descolonizadores apresentam conceitos e perspectivas inovadoras que complicam, desarmonizam e aprofundam os debates acerca do Estado moderno, cidadania e democracia em sua pretensão representativa e de garantia de direitos iguais. Os pensamentos questionam a coerência evolutiva das narrativas históricas e desenvolvimentistas, dialogando, complicando e se contrapondo a conceitos modernos como a ideia de direitos humanos de forma a expandir o debate para além dos limites do conhecimento ocidental. Não nos apresentam respostas prontas, mas nos orientam a reconhecer as ambivalências dos conceitos e tensionar a realidade na medida da nossa utopia inclusiva e plural. Espera-se que a partir dos conceitos apresentados o artigo tenha contribuído para a compreensão dos pensamentos descolonizadores e suas ferramentas metodológicas que buscam contribuir para a descolonização do debate sobre a democracia e representação no Brasil, localizando a construção do Estado brasileiro no seu contexto colonial, escravocrata, capitalista, patriarcal e eurocentrado. 27 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Assim, os pensamentos descolonizadores, por meio dos conceitos da teoria da perspectiva promovem a adoção de uma postura fortemente objetiva, reflexiva e localmente responsável, evitam o eurocentrismo, denunciam o mito da modernidade e a colonialidade do poder, rejeitam a exclusão racializada dos povos não-europeus e promovem a busca da transgressão das estruturas de opressão coloniais. Destrinchando e escancarando a complexidade e a colonialidade do poder entre as experiências e saberes, os pensamentos descolonizadores orientam a reconhecer a complexidade dos debates e disputar narrativas para lutar por uma democracia em que seja possível imaginar diversos sujeitos plurais não-ocidentais atuando com verdadeiros agentes e sujeitos, em diálogo coletiva e responsável, convivendo em seus diversos modos de vida. 28 ANA LAURA BECKER DE AGUIAR Referências bibliográficas ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. Post-Colonial Studies. The Key Concepts. 2a Edition ed. New York: Routledge, 2007. E-book. Disponível em: http://reader.eblib.com.au.ezproxy.scu.edu.au/ (S(e4v5zn3crljuq4i5qgmd5w3f))/Reader.aspx?p=149019 &o=188&u=AIoUwYCt5z+QDpJRoh7l3g==&t=1342297912 &h=6052C0EBB09BCCC40ED8BD8FCA9F828C97072A90 &s=6250573&ut=606&pg=1&r=img&c=-1&pat=n# BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. 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Carinhanha Resumo: Neste trabalho, analisaremos nuances das políticas penais de enfrentamento à violência de gênero via criminalização, no Brasil, a partir de três óticas de análise: a) decolonial: apresentaremos o sistema de justiça como uma técnica hegemônica de regulação de conflitos, e buscaremos compreender como o “controle social” exercido através do direito se utiliza de dinâmicas pautadas em “colonialidades” para o exercício desta regulação; b) interseccional: buscaremos utilizar esta sensibilidade analítica para nos interrogar sobre a importância de aliar a perspectiva de gênero; à perspectiva racial para observar o direito enquanto regulador social, bem como as suas consequências fáticas no que diz respeito à criminalização da violência de gênero, observados os marcadores sociais da diferença de gênero e raça; c) crítica dos direitos humanos: considerando a perspectiva racial, apresentaremos um dilema considerado por muitos como paradoxal, no que concerne à dinâmica dos movimentos sociais feministas ao mobilizarem o discurso dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior intensidade na criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda uma disputa pelos chamados “efeitos simbólicos do direito penal” num contexto de instrumentalização do mesmo para fins políticos e de reconhecimento. Deste modo, apontamos um horizonte possível para problematizar as políticas penais de gênero no Brasil identificando nesta demanda uma disputa pelos efeitos simbólicos do direito penal e também as consequências de vícios estruturantes contidos nessas dinâmicas, que acentuam a opressão sobre públicos específicos. Palavras-chave: Políticas penais de combate à violência de gênero, Decolonialidade; Interseccionalidade; Teoria Crítica em Direitos Humanos; Mulheres Negras, Raça. 33 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Introdução Observar o fenômeno das políticas de gênero via processos de criminalização no Brasil hoje é uma tarefa que nos demanda observar também o contexto de tempo/espaço no qual estamos inseridos. Para saber como viemos parar aqui e porque nos fazemos esse questionamento, é preciso considerar que o sistema penal, a branquitude e a colonialidade são gramáticas de organização jurídica criminal, social/racial e estrutural que regulam hegemonicamente a nossa sociedade desde a conformação do “Estado” brasileiro até os dias de hoje. Não se pretende com essa afirmação traçar qualquer perspectiva universalizante ou definitorial da história, contudo, colocamos em questão esses sistemas, muitas vezes descritos genericamente como “universais, neutros e objetivos”, para que possamos nos interrogar sobre “como os direitos humanos e o controle social penal via criminalização da violência de gênero nos permitem pensar dinâmicas de sexismo e racismo no sistema de justiça brasileiro?”. A este questionamento pretencioso não vislumbramos apresentar respostas categóricas sobre técnicas de identificação de práticas racistas ou sexistas no sistema de justiça, tampouco oferecer soluções para esses sintomas que são constitutivos da nossa sociedade. Buscaremos interrogar o “sistema de justiça” brasileiro a partir da observação das políticas de gênero via processos de criminalização e questões correlatas ao funcionamento da justiça penal, e da análise de dados sobre a temática, observando os marcadores de raça e gênero. Este trabalho traz consigo uma preocupação epistemológica e busca problematizar as hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2005) das quais não podemos simplesmente escapar. Nesse sentido, apresentamos uma preocupação específica em situar o sistema de justiça brasileiro como fruto/técnica da colonialidade, instrumento hegemônico de regulação de conflitos e de controle social em uma sociedade que se pretende “moderna”. Tendo como objeto as dinâmicas de gênero/raça a serem observadas em dados de pesquisas que tem por objeto a análise de políticas de gênero via processos de criminalização, buscaremos problematizar como são produzidas algumas das “entradas” e “saídas” do sistema de justiça, e a partir daí iremos nos interrogar sobre as influências dos marcadores sociais da diferença de raça e gênero na produção do direito e de seus resultados enquanto regulador social. Nesse sentido, a perspectiva crítica dos direitos humanos nos ajuda a apresentar e a repensar um dilema considerado por muitos como paradoxal no que concerne à 34 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA dinâmica dos movimentos sociais feministas que mobilizaram/mobilizam o discurso dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior intensidade na criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda uma disputa pelos efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização do mesmo para fins políticos e de reconhecimento. I – Racionalidades modernas e sistemas situados de controle, regulação e poder Para iniciar esta reflexão à qual nos propusemos, é imprescindível situar o lugar a partir do qual o paradigma do direito moderno foi pensado, inclusive o modo como ele foi e vem sendo utilizado para produzir e reproduzir as mais diversas hierarquias (de classe, de gênero, de raça/cor, de sexo, de trabalho, de espiritualidade, de epistemologias, de linguagens, etc...). (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2008) O “sistema de justiça ocidental” com suas instituições ditas democráticas, consolidouse ao redor do mundo a partir do advento das revoluções e reformas burguesas, e de outros sujeitos históricos invisibilizados, após a necessidade de implementação de um “sistema” regulador e garantidor das propriedades, dos costumes e das instituições criadas no “mundo ocidental” de modo a garantir “ordens sociais” para além dos arbítrios dos reis, rainhas e senhores feudais. O surgimento dos Estados Nacionais na Europa e os massacres promovidos pelos colonizadores, que, transferiram, em alguma medida, os seus “costumes regulatórios jurídicos” para os países colonizados, são o grande contexto de fundo que nos explica um pouco sobre o início da história do “sistema de justiça” do Brasil, então colonizado por Portugal. Apesar das limitações deste resumo, é possível afirmar que a instituição e as mutações do “sistema de justiça” brasileiro (observado de uma maneira ampla, incluindo os órgãos do executivo, as polícias, e também os espaços de formação dos profissionais do direito, como os cursos de Direito) nos permitem identificar, em sua formação e consolidação, bases coloniais, escravocratas e patriarcais. Desde a instituição das primeiras faculdades de Direito no Brasil (em São Paulo e em Pernambuco), com o propósito de formar uma elite dirigente para comandar o país (ADORNO, 1988), o “sistema de justiça” (aqui compreendido em sentido amplo) do Brasil configurou-se com o propósito de atender aos anseios de uma elite que se utilizava do direito para atender às demandas de uma vida prática pautada em necessidades (também jurídicas) garantidoras dos seus “bens e costumes”. Tendo as mulheres como sujeitos relativamente capazes, os negros escravizados como propriedades-semoventes, os indígenas como povos selvagens a serem catequizados e 35 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA educados conforme a “moral e os bons costumes” do novo mundo, o “direito” e o “sistema de justiça” serviram como instrumentos “normalizadores” de condutas e valores de uma colonialidade instaurada no Brasil e que se perpetua em práticas e imaginários de longa duração com base na força e em relações de poder exercidas contra as populações mais vulneráveis até hoje. A institucionalização do jurídico no território então denominado Brasil está, portanto, diretamente ligada à história do capitalismo, do imperialismo (das colonizações), da escravidão e do patriarcado. O sistema penal, de maneira mais específica, segue uma racionalidade colonial que foi instituída com base em um poder soberano e se consolidou enquanto Jus Puniendi, poder/dever de punir do Estado, no que diz respeito à regulação de conflitos por parte do Estado moderno. O sistema penal brasileiro se estrutura com base na “racionalidade penal moderna” (PIRES, 2004), conceito definido pelo criminólogo Álvaro Pires como sistema de pensamento: a) punitivo (hostil, autoritário, negativo, abstrato, atomista); b) que fundamenta a punição como uma obrigação/necessidade; c) se constrói como um sistema de pensamento “prépolítico” ou “trans-político”, pois se sedimenta antes ou independentemente das visões políticas do mundo; d) onde as relações entre o direito penal e os direitos humanos se constroem de modo paradoxal e conflitante. A esse respeito gostaríamos de destacar o pensamento de Álvaro Pires (2004): A pena aflitiva é frequentemente valorizada como uma “maneira forte” de defender ou afirmar os direitos humanos. A representação da pena aflitiva como necessária ou obrigatória produz então um paradoxo: certa degradação dos direitos humanos no direito penal, a afirmação de uma obrigação de punir, a resistência a outros tipos de sanções, tudo isso pode se apresentar, em diferentes graus e formas, como uma maneira de proteger os direitos humanos, enquanto um observador externo poderá ver os direitos humanos como um objetivo ou um ideal de reduzir as penas e diversificar as sanções. A racionalidade penal moderna é levada então a veicular vários enunciados teóricos visando “conciliar” uma política de austeridade com os temas da justiça e do humanismo (com a humanitas). Mas como justificar a exclusão de meios jurídicos mais humanos ou mais justos em nome da justiça e do humanismo? Uma das soluções para essa questão consiste em distinguir o humanismo da justiça e repensar separadamente cada um desses conceitos em matéria penal. Assim, “ser justo” não teria mais relação com “ser 36 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA humano” — como afirma Tocqueville, “o objetivo da filantropia não é tornar os prisioneiros felizes, mas melhores”. A noção de justiça é então reduzida ao sentido dado por uma das teorias da pena aflitiva: “O mal se sana pelo mal”. Enfim, o próprio humanismo é reinterpretado pelas teorias da pena, de modo que nos tornamos responsáveis pela nossa tolerância (note-se: não por nossa intolerância) e favorecemos o crime quando deixamos de punir ou até quando não punimos com severidade suficiente. Em consequência, a falta não punida seria o verdadeiro tormento do verdadeiro humanista. O sentimento de humanismo com relação ao culpado e às penas aflitivas seria a expressão de uma fraqueza, de um humanismo desorientado, um pseudohumanismo: o verdadeiro humanismo estaria dirigido aos cidadãos honestos, à vítima e à humanidade abstratamente considerada. Para a racionalidade penal moderna tudo se passa como se o direito penal não pudesse defender os direitos humanos e ao mesmo tempo devesse exprimi-los de forma positiva, concreta e imediata. Desse ponto de vista, os direitos humanos são em parte neutralizados como finalidades para a reforma do direito penal, pois é a este último que é designada a função de proteger os direitos humanos, ao passo que estes não devem “enfraquecer” sua própria proteção humanizando demasiadamente o direito penal. (PIRES, 2004, p. 46-7) O paradoxo apresentado por Pires (2014) coloca o direito penal e os direitos humanos em um dilema marcado por uma possível “degradação dos direitos humanos” na racionalidade penal moderna. É a partir de considerações como essas que os movimentos feministas vem sofrendo inúmeras críticas, como a de Pires (2014, p. 48): Esses movimentos caracterizavam-se também por um engajamento de urgência em causas precisas (em oposição a um engajamento na reforma global); por privilegiar uma auto-representação como vítimas e uma única orientação de reforma (natureza repressiva); por utilizar toda sorte de canais para publicizar o tema em questão e para obter uma solução predeterminada; e pela tendência a instrumentalizar o Estado e apresentar sua causa como “útil para todos”. Gostaríamos aqui de problematizar esse tipo de impressão, sobretudo considerando a pertinência das críticas que evidenciam inconsistências no fato de os movimentos feministas engajarem a sua luta por reconhecimento a partir da demanda por criminalização de condutas. É preciso complexificar a compreensão de leituras simplistas 37 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA que veem o advento da Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio (ou as demandas de criminalização dos movimentos feministas), por exemplo, como um simples elo que relaciona os movimentos feministas ao modelo penal punitivo/retributivo e até contrário aos direitos humanos, sem observar os processos históricos que culminaram em tais demandas. II – Possibilidades: o que as mulheres têm a nos dizer sobre a disputa pelas políticas punitivas? Com a entrada em vigor da lei nº 13.104/2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848/1940, e incluiu o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio, passou-se a considerar “feminicídio” como sendo o assassinato cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Segundo a mesma legislação, “considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I. violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (BRASIL, 2015). Nesse sentido, cumpre observar que: A Lei que incluiu o feminicídio no Código Penal brasileiro foi criada a partir de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou a violência contra as mulheres nos Estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013. O texto sofreu alterações na tramitação na Câmara e no Senado e, no momento da aprovação no Congresso Nacional, diante de pressões de parlamentares da bancada religiosa, a palavra ‘gênero’ foi retirada da Lei. De todo modo, compreender as desigualdades que concorrem para que as mortes violentas aconteçam continua sendo essencial para a correta aplicação da Lei e, principalmente, para a atuação preventiva. (PRADO, Débora; SANEMATSU, Marisa, 2017) Além da tipificação do feminicídio, um marco anterior ao combate à violência de gênero no Brasil foi a promulgação da Lei Maria da Penha, lei 11.340/2006, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, dentre eles mecanismos penais. Os movimentos de mulheres, autodenominados feministas ou não, reconhecem, em sua maioria, que as legislações foram um avanço no enfrentamento à violência de gênero no Brasil. 38 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Não obstante o paradoxo de os movimentos sociais feministas mobilizarem o discurso dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior intensidade na criminalização de condutas determinadas, identifica-se nesta demanda uma disputa pelos chamados efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização do mesmo para fins políticos e de reconhecimento. Observa-se, ainda, um movimento não uniforme no que concerne à crença com relação aos efeitos manifestos da lei. Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2016) apresenta um posicionamento que nos ajuda a refletir para além da incerteza sobre a eficácia da tipificação de condutas relacionadas à violência de gênero diante da possibilidade de redução das taxas de criminalidade. Ela acredita que “visibilizar é muito importante”, sendo fundamental a nomeação do “feminicídio”, pois: ela vai quebrando um paradigma da linguagem do Direito, que é sexista, e é sexista justamente por ser pretensamente assexuada. Na verdade, vai quebrando esse ‘neutro’, esse ‘alguém’ em quem não conseguimos ver as mulheres. Não conseguimos ver as mulheres nas lesões corporais que acontecem, e nem nos homicídios. Visibilizar é muito importante, o simbólico é a força dessa tipificação. (DE CASTILHO, 2016) Para além da análise da eficácia normativa manifesta destas normas penais criminalizadoras, os discursos feministas ditos punitivos apresentam pretensões de necessidade de problematização de uma temática que é anterior e constitutiva ao/do próprio direito enquanto instituição patriarcal: o machismo. Nesse mesmo sentido, observa-se que o advento das leis supracitadas faz parte de um contexto muito mais amplo de lutas e reivindicações dos movimentos feministas. Os processos de criminalização e o endurecimento da punibilidade no âmbito penal aparecem, nesse sentido, como uma etapa possível para o enfrentamento ao patriarcado. O enfrentamento ao patriarcado se apresenta como necessário diante da própria ineficácia do sistema jurídico em garantir os direitos das mulheres. A ordem patriarcal institui uma ilegitimidade originária, violência moral, muitas vezes invisível, não porque não produz efeitos, mas porque se torna automática, denomina o conjunto de mecanismos legitimados pelo costume para garantir a manutenção dos estatutos relativos entre os termos de gênero operando controles de permanência de hierarquias de outras ordens e que também são reproduzidas pelo direito. (SEGATO, 2003) 39 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA A insatisfação das mulheres com a resposta dada pelo modelo hegemônico do direito apresenta para as mesmas o desejo de disputar, também através do direito, um outro modelo de justiça, incluindo um outro modelo de justiça criminal que aborde temas e maneiras através dos quais desejam disputa-lo. Saldarriaga e Góez (2018) nos apresentam os feminismos como caminhos possíveis para o questionamento dos fundamentos tradicionais do direito e propor novos caminhos para discussões por igualdade, justiça e liberdade. Em suas palavras, os feminismos podem ser compreendidos: Como teoría crítica del derecho [que] cuestionan los fundamentos tradicionales del derecho y plantean nuevos debates en torno a la igualdad, la justicia y la libertad. Aportan elementos para debatir la imparcialidad normativa y la objetivad a la hora de producir y aplicar normas. Los feminismos han generado prácticas políticas que formalmente han modificado normas jurídicas y trabajan permanentemente para que el alcance de las normas transforme los valores de la sociedad, que de manera naturalizada avalan la discriminación en contra de las mujeres. A esse propósito, Gerlinda Smaus (1993) nos apresenta um ponto de vista, segundo o qual as mulheres buscam ganhar espaço também no sistema, declarando públicos e políticos seus problemas, até então considerados privados. Para ela, trazer as relações de gênero para o âmbito da punibilidade representa os esforços por igualdade no direito privado (direito subjetivo das mulheres) e também os esforços pela funcionalização do direito penal (punição para outros homens). Segundo a criminóloga, impor a tutela de seus interesses no direito é processo histórico. Nesse sentido, a busca pelo reconhecimento e representação pública de seus interesses políticos (mesmo que através do sistema penal) surge, a princípio, como algo que se contrapõe às críticas abolicionistas penais. Para Smaus (1993), as mulheres podem ser contrárias ou a favor ao abolicionismo penal, a questão que elas apresentam com o desejo de criminalização dos crimes de gênero é anterior ao próprio abolicionismo penal. Para ela, se, a partir de um ponto de vista meramente funcional seria necessário desaconselhar as mulheres a esperar do instrumento patriarcal que é o direito penal alguma melhora de sua situação, é preciso considerar que o direito penal possui várias dívidas com as mulheres e que este também é um campo de disputa: os bens jurídicos tutelados se restringiam à moral, e não a identidade e a dignidade física da mulher, ou ainda, a utilização do direito penal se dirigia à culpabilização da vítima mulher e a sua condenação moral. 40 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Ela destaca que o pensamento dos abolicionistas penais é seletivo e está cheio de lacunas, como por exemplo, Louk Hulsman não vê o direito penal em sua totalidade, ou seja, em suas funções tanto manifestas como latentes. Ele observaria apenas os seus objetivos declarados e não alcançados do direito penal e então se movimenta em prol da sua abolição. Nesse sentido, ela admite que cada movimento só pode se colocar objetivos limitados, de modo seletivo, cuja contingência é limitada e cada solução também, sem tocar em determinados conflitos e provocando novos. Gerlinda Smaus (1993) nos convida a refletir os efeitos das campanhas de criminalização da violência de gênero que não são frequentemente tematizados, como por exemplo os efeitos integrativos e de própria manutenção da consciência do movimento de mulheres. Para ela, os resultados positivos das reivindicações não devem coincidir forçosamente com os limites declarados, sendo que até mesmo uma campanha não exitosa pode gerar um debate transformador na sociedade e revelar o caráter sexista do direito. As vias da criminalização podem também ser vistas como estratégia, já que as mulheres, como outros grupos sociais, devem recorrer com suas reclamações ao Estado, regulador social tido como legítimo para dirimir as querelas públicas. Deste modo, instrumentalizase o penal para que determinados temas morais se convertam em públicos. É inegável que isso tem sido feito desde sempre contra as mulheres e demais grupos vulneráveis. Os processos de criminalização são processos políticos e o penal tem se apresentado como zona privilegiada de regulação moral, como é o caso da criminalização do aborto e também da criminalização das drogas hoje no Brasil. Smaus (1993) reconhece a invocação da função simbólica do direito penal pelas mulheres como uma possibilidade de provocar uma discussão no direito penal, esse instrumento de poder patriarcal ao qual devemos atacar mais do que cooperar com ele. Para ela: este fato pode ser criticado, pero presenta la ventaja de hacer que temas morales sean privados de su connotación moral, y que su carácter instrumental - la hegemonía masculina - resulte claro. Con razón domina la teoría por la cual el derecho penal no debería ocuparse de la moral. (SMAUS, 1993) Nesse sentido, é imprescindível para as feministas que estes temas não se concentrem unicamente nas legislações, mas que estejam presentes mais diversas iniciativas políticas e públicas. 41 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA As principais críticas que as feministas fazem aos movimentos abolicionistas penais é a de que o abolicionismo tenha sido omisso com relação ao reconhecimento das mulheres, que aparecem sobretudo como vítimas ao longo das abordagens dos abolicionistas penais, inclusive porque o direito penal é um instrumento que busca controlar o desvio masculino. De fato, o discurso feminista tem se debruçado sobre determinadas questões relativas à natureza dos problemas sociais com uma lente mais inclusiva no que diz respeito às questões de gênero: a seu status ontológico e epistemológico e a suas causas; ao fundamento social do direito e de suas definições; e à legitimação de estratégias de transformação e a suas conexões com a análise das causas, que são desde sempre questões de natureza política. Se as controvérsias entre abolicionismo penal e feminismo podem ser resolvidas, resta evidente que isso se daria sobretudo a partir da política. Reconhecer que devemos ter reservas com o abolicionismo penal, observado o contexto histórico em que ele se constrói não significa, contudo, que não devamos reconhecer as limitações em observar a criminalização das violências de gênero exclusivamente como conquistas. As críticas que fizemos à racionalidade penal moderna se aplicam igualmente a esse raciocínio que gostaríamos de complexificar. Seria possível lançar a essa questão um olhar anticolonial, antipatriarcal e antirracista? Como poderíamos analisar esta questão a partir de uma perspectiva crítica de direitos humanos que considere a teoria e a prática? Para além da ineficácia do sistema jurídico em garantir os direitos das mulheres é necessário que reconheçamos que tanto os feminismos quanto os abolicionismos são movimentos plurais e de muitas facetas, e que há feministas que propõem o abolicionismo penal e os feminismos como teorias de resistência à colonialidade. Nesse sentido, tanto o abolicionismo penal quanto o feminismo poderiam ser entendidos enquanto “formas de liberação epistêmica, política e social que possibilitam outras maneiras de existência” (SALDARRIAGA e GÓEZ, 2018). Reconhecemos que a possibilidade de afirmação das demandas dos movimentos feministas pelo direito tenha ocorrido considerando criticamente a possibilidade de recorrer ao direito penal; e também considerando que este mesmo apresenta a necessidade do reconhecimento de suas pretensões por parte do sistema político. É possível assinalar como uma das pretensões do feminismo (enquanto teoria crítica do direito) é questionar relações assimétricas em busca de um propósito transformador. 42 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Nesse sentido, não podemos ignorar o abolicionismo penal como importante ferramenta crítica do direito penal e das práticas sociais, nem tampouco menosprezar as teorias decoloniais como ferramentas teórico-práticas para “despatriarcalizar” o direito. III – Limitações: dos acessos diferenciados aos resultados das políticas punitivas no Brasil. A omissão dos abolicionistas penais e criminólogos em incluir o gênero como um novo paradigma teórico, e a sua negligência na inobservância dos resultados práticos desta omissão geraram críticas pertinentes aos movimentos, sobretudo a partir da instrumentalização do penal pelos movimentos feministas para a consecução de objetivos políticos/públicos. Não partimos da compreensão da existência de um abolicionismo ou feminismo unitário, mas gostaríamos de problematizar consequências fáticas dos posicionamentos teórico/práticos de ambos os movimentos, considerando alguns apontamentos pautados na prática e na teoria crítica dos direitos humanos. Se, historicamente, a noção de direitos humanos está atrelada à afirmação da dignidade da pessoa frente ao Estado (NIKKEN, 1997) não podemos desconsiderar que esses direitos sejam frutos de disputas políticas que se materializam em reconhecimento e em ações fáticas, como é o caso das reivindicações dos movimentos feministas. Diferente da compreensão de inerência desses direitos, sustentamos que os enfrentamentos e as disputas (ideológicas, físicas, econômicas, institucionais, etc) possibilitam o acesso aos direitos, inclusive os direitos humanos, e, também pelas vias penais. Ademais, as interpretações sobre o direito mudam ao longo do tempo, e a vida prática nos relembra que o ideário de direitos que se afirmam para além de toda lei, ordem ou autoridade não existe. A via penal, portanto, ainda que colocada em questão com relação à sua eficiência/eficácia, em muitos âmbitos, não deixa de ser um território legítimo de disputa de poder, sob determinadas circunstâncias e em determinado momento histórico. Ao longo das últimas décadas, sobretudo depois da segunda guerra mundial, temos observado o advento do direito internacional humanitário como marco inquestionável para o mundo jurídico ocidental. Contudo, temos observado também a sua relativização em disputas por bens simbólicos e materiais nas relações de poder. A despeito da ordem jurídica interna ou de serem signatários de tratados internacionais de direitos humanos, países como o Brasil possuem no poder público, em seu corpo jurídico, executivo, 43 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA legislativo, e também no âmbito privado e popular, a anuência e a conivência de pessoas que orquestram massacres diários contra grupos sociais em situação de subalternidade. Sob essa perspectiva, não podemos adotar uma concepção de direitos humanos que não esteja relacionada à observação dos seus processos de conquista e do acesso real a bens essenciais à dignidade das pessoas (HERRERA FLORES, 2008). Ao observar as práticas sociais dos movimentos feministas e as reivindicações pela criminalização das violências de gênero, pretendemos “recuperar a memória das lutas para superar o sequestro da narrativa dos direitos”, (GANDARA, 2014) apresentando a razão e o modo pelos quais as feministas decidiram disputar a luta por direitos também a partir do direito penal. Sem qualquer juízo de valor com relação ao método utilizado para realizar esse enfrentamento, entendemos que esse é um campo no qual o direito assume um papel de “arena” em que se disputa algo para além do reconhecimento jurídico, mas que implica em mudanças materiais na vida das pessoas. Buscar o entendimento dos direitos humanos a partir de uma compreensão sóciohistórica e admitir que os direitos estão intimamente relacionados aos marcos de luta e resistência populares (GANDARA, 2014), implica a necessidade de superar uma concepção de direitos formalista em prol da construção de vida digna para todos, sobretudo para aqueles que estejam em condições de vida mais precárias, submetidos à exploração, exclusão ou subalternização (GANDARA, 2013). Esse raciocínio nos ajuda a des-ontologizar o resultado tipificado de uma norma jurídica (ainda que penal) para deslocar o nosso olhar em direção ao processo de discussão e problematização não só da norma, mas das condições sociológicas que nos levaram a discuti-la. O interesse primeiro dos feminismos ao demandar a criminalização das violências de gênero não é punir, é reconhecer e responsabilizar. Aqui é essencial que nos questionemos sobre quais os instrumentos possíveis para impor a tutela dos direitos das mulheres (problemática da própria estrutura capitalista) além do penal? Ao nos questionarmos sobre os modos de se efetivar direitos em um sistema de dominação e em uma nova ordem marcada pela violação sistemática de direitos humanos, Gallardo (2014) nos informa que a saída encontrada estava no sentido de reconhecer os direitos humanos como mobilização e movimento social. Ademais, para ele “uma cultura de direitos humanos não se faz sem a transferência de poder social e pessoal”. Nesse sentido, considero impróprio pensar que as demandas de criminalização das 44 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA violências de gênero pelos movimentos feministas sejam algo diferente do que uma luta por direitos humanos. Contudo, compreender socio-historicamente esta luta e reconhecê-la em sua legitimidade não nos afasta da tarefa de observar as suas consequências práticas e reconhecer também as suas limitações. Observamos, contudo, que as avaliações de eficácia das políticas penais de gênero têm produzido invisibilidades interseccionais. A esse propósito, Kimberlé Crenshaw (2002, p. 173) nos traz uma reflexão que gostaríamos de destacar: Há um reconhecimento crescente de que o tratamento simultâneo das várias diferenças que caracterizam os problemas e dificuldades de diferentes grupos de mulheres pode operar no sentido de obscurecer ou de negar a proteção aos direitos humanos que todas as mulheres deveriam ter. Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual, são diferenças que fazem diferença na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres. Do mesmo modo que as vulnerabilidades especificamente ligadas a gênero não podem mais ser usadas como justificativa para negar a proteção dos direitos humanos das mulheres em geral, não se pode também permitir que as ‘diferenças entre mulheres’ marginalizem alguns problemas de direitos humanos das mulheres, nem que lhes sejam negados cuidado e preocupação iguais sob o regime predominante dos direitos humanos. Tanto a lógica da incorporação do gênero quanto o foco atual no racismo e em formas de intolerância correlatas refletem a necessidade de integrar a raça e outras diferenças ao trabalho com enfoque de gênero das instituições de direitos humanos. (p. 173) Lélia Gonzalez (1984) explica como a neurose cultural brasileira se constitui de maneira sintomática e como a sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher, especialmente a mulher negra. A “diferenciação interna das categorias da diversidade” é visível nos dados sobre a violência de gênero no Brasil, sendo possível perceber diferentes padrões de estratificação e de segregação produzidos em contextos em que racismos e sexismos exercem papeis determinantes (KERNER, 2012). 45 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA É possível observar, a partir dos dados oficiais que dispomos, com o desmembramento da categoria raça, que as condições de vida e de morte dos negros e não negros no Brasil são bastante diferentes. De acordo com o Atlas da Violência (2020, p. 47): Uma das principais expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra. Enquanto os jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre os brancos os índices de mortalidade são muito menores quando comparados aos primeiros e, em muitos casos, apresentam redução. Apenas em 2018, para citar o exemplo mais recente, os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras. Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra (tabela 17). Entre não negros, a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor. O mesmo processo foi identificado entre os homicídios femininos: a redução ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais fortemente entre as mulheres não negras. Ao analisarmos os dados da última década, vemos que as desigualdades raciais se aprofundaram ainda mais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros e não negros. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%. (Atlas da Violência, 2020, p. 47) A análise da superinclusão das mulheres negras na apresentação dos dados fáticos de enfrentamento à violência de gênero como um sucesso é, por exemplo, um problema 46 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA grave. Ao inserir a variável raça e desmembrar os dados que avaliam as políticas de enfrentamento à violência de gênero percebemos comportamentos diferentes na avaliação das políticas para mulheres brancas e mulheres negras. Com relação aos índices de feminicídio, por exemplo, observa-se que o comportamento da curva no que concerne à violência das mulheres negras é crescente, muito embora o dado geral apresente-se como decrescente, analisando a média das ocorrências entre mulheres negras e brancas. Segundo o Atlas da Violência (2020), observado o período entre 2008 e 2018, “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.”. Ainda segundo o mesmo relatório: Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Enquanto entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no último ano foi de 2,8 por 100 mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por 100 mil, praticamente o dobro. A diferença fica ainda mais explícita em estados como Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as taxas de homicídios de mulheres negras foram quase quatro vezes maiores do que aquelas de mulheres não negras. Em Alagoas, estado com a maior diferença entre negras e não negras, os homicídios foram quase sete vezes maiores entre as mulheres negras. (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020, p. 37) Segundo o Anuário de Segurança Pública (2020) “Em 2019, 66,6% das vítimas de feminicídio no Brasil eram negras”. As mulheres negras correspondem a 53,6% das vítimas de mortalidade materna (SIM/Ministério da Saúde/2015) e a 65,9% das vítimas de violência obstétrica (Cadernos de Saúde Pública 30, 2014, Fiocruz). A mesma instituição observa que as mulheres negras correspondem a 68,8% das mulheres mortas por agressão (Diagnóstico dos homicídios no Brasil (Ministério da Justiça/2015) e também concluem que as mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas que as brancas. Destacam também a desproporção no que diz respeito à taxa de homicídios por agressão com relação às mulheres brancas e negras: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da Justiça/2015). Segundo o Dossiê Mulher (2020, p. 19), as “Mulheres negras são mais vitimadas por crimes contra a vida”. As mulheres negras também são “as mais vitimadas por homicídio doloso e tentativa de homicídio” no Rio de Janeiro: 59,6% das vítimas de tentativa de homicídio e 63,6% das vítimas de homicídio consumado no Rio de Janeiro são mulheres negras. (DOSSIÊ MULHER, 2020, p. 29). Segundo o mesmo documento, as mulheres 47 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA negras correspondem a 56,3% das vítimas de estupro e 56,5% de estupro de vulnerável registrados no Estado do Rio de Janeiro em 2019. Esses dados, e tantos outros mais que poderíamos citar, nos fazem refletir sobre a violência contra a mulher negra a partir de uma ótica que demanda um olhar diferenciado e urgente, que nos convida a problematizar a questão racial juntamente à questão de gênero. Esses dados nos alertam não só para a necessidade da compreensão do funcionamento da justiça penal no Brasil , mas também do que diz respeito à promoção e execução de políticas públicas, das instituições e das relações que guardam com as dinâmicas estruturais da realidade, no caso do Brasil, uma sociedade marcada por dinâmicas de exclusão e exploração, dentre as quais destacamos o racismo, o patriarcado e a colonialidade. Esse conjunto de evidências nos mostra como o racismo forja e organiza a sociedade brasileira desde o período da escravidão e de como os efeitos do racismo, associados aos efeitos de diferenciação relacionados a outros marcadores sociais da diferença, se desdobram em permanências de longa duração que promovem a exclusão e a exploração de grupos determinados em favor de outros. Quijano (2005) situa a raça como eixo fundamental da classificação social da população mundial, como categoria mental da modernidade. Nesse sentido, gostaríamos de levantar uma provocação, seria a racionalidade penal moderna brasileira essencialmente racista? Os dados racializados que temos na arena penal/criminal nos permitem observar a sobrerrepresentação dos negros em situações de opressão e vulnerabilidade, como por exemplo, no sistema carcerário e/ou relativos à violência letal. Segundo o Anuário de Segurança Pública (2020) 66,7% das pessoas encarceradas em 2019 eram pessoas negras; a maior parte das pessoas vítimas de mortes violentas e intencionais no Brasil são pessoas negras (entre os homens e as mulheres): o padrão de vitimização por raça/cor, que indica superioridade dos homicídios entre os homens e mulheres negros (pretos e pardos), em relação a homens e mulheres não negros, chegando a ser 74,0% superior para homens negros e 64,4% para as mulheres negras. Quando comparamos com os mesmos indicadores da edição anterior do Atlas 2019, que trazia os dados de 2007 a 2017, verificamos que a vitimização negra aumentou ainda mais, uma vez que esses índices para homens e mulheres, respectivamente, eram de 73,15% e 63,4% (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020, p. 68). 48 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA O Anuário de Segurança Pública (2020) nos informa que são os homens jovens negros as principais vítimas da violência letal no país (65%), e os dados sobre “Proporção de Mortes decorrentes de intervenções policiais em relação às Mortes Violentas Intencionais” também chamam bastante a atenção. Eles nos informam que: 79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultaram em morte eram pretas e pardas, indicando a sobrerrepresentação de negros entre as vítimas da letalidade policial. Este percentual é superior à média nacional verificada no total das mortes violentas intencionais, em que 74,4% de todas as vítimas são negras. É de destacar que padrão similar foi encontrado entre os policiais vítimas de homicídio e latrocínio, sendo que 65,1% dos agentes de segurança assassinados no último ano eram pretos e pardos. (...) A comparação da taxa por 100 mil habitantes indica que a mortalidade entre pessoas negras em decorrência de intervenções policiais é 183,2% superior à taxa verificada entre brancos. Enquanto entre brancos a taxa fica em 1,5 por 100 mil habitantes brancos, entre negros é de 4,2 por 100 mil negros. (Anuário de Segurança Pública, 2020, p. 90-91). Nos espaços de poder, inversamente, os negros estão sub-representados. O projeto e o destino de um Estado que se forjou em bases latifundiárias, escravocratas e patriarcais, não têm sido questionados pela ideologia jurídico-penal. Ademais, além de perpetuar essas bases, o Estado brasileiro ainda não colocou em prática instrumentos de reparação satisfatórios. Pelo contrário, o sucessivo apagamento de uma memória criminosa e reprovável pautada em sequestros, torturas, assassinatos e roubos, se reflete em um espelho ainda mais perverso ao se pretender “universal” que se pretende isonômico no campo jurídico e continua gerando privilégios e opressões para grupos determinados. Vivenciamos o insucesso das políticas estruturais e de segurança pública para a população negra no Brasil, inclusive quando falamos das políticas de enfrentamento à violência de gênero. As políticas criminais/penais expressam a relação do trabalho penal com a estruturação de uma sociedade pautada em hierarquias sociais, dentre as quais a raça é apresentada como marcador determinante. A ideologia jurídico-penal se apresenta conformada e conformadora por esta/desta sociedade, (re)produzindo os seus valores, e, ao mesmo tempo, influenciando-a. 49 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA O insucesso das políticas penais de gênero para as mulheres negras (comparando com os dados relativos às mulheres brancas) nos convidam a pensar estrategicamente os diferentes padrões de estratificação e segregação social dos racismos e sexismos em suas dimensões epistêmicas, institucionais e pessoais (KERNER, 2012) das suas consequências. Como pode uma política pública “funcionar” de maneira tão destoante? Como podemos observar esse problemaconsiderando uma sensibilidade analítica interseccional, que considere raça e gênero? O que podemos apresentar como solução ou saída para esta crise? Destaco um trecho da aula ministrada por Angela Davis (2017) em Salvador, Bahia, na qual ela apresenta elementos para pensar a necessidade estrutural de dizer não ao que muitos chamam de “feminismo carcerário” e sim ao que ficou conhecido como “feminismo abolicionista” para que possamos avançar nessa discussão. Em suas palavras: nós não podemos excluir a violência doméstica, a violência no âmbito íntimo e a violência intima das nossas teorias sobre violência estatal e a violência institucional. Frequentemente agimos como se um não tivesse nada a ver com o outro e que se as mulheres negras são vítimas dessa violência cotidiana que é infligida por seus maridos e seus namorados, isso significa simplesmente que os homens negros e os rapazes negros são violentos. Mas como é que podemos pensar isso? Nós precisamos nos perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e que fere tantas mulheres negras? Qual a relação dessa violência com a violência policial e a violência do sistema carcerário? Se essa violência do âmbito doméstico esta simbioticamente conectada com a violência institucional e a violência estatal? Isso significa que nós não conseguiremos erradicar a violência doméstica simplesmente por enviar aqueles que perpetuam a violência doméstica para o sistema carcerário. Isso significa que se queremos, se desejamos erradicar as formas mais endêmicas de violência individual na face da terra, devemos também eliminar as fontes institucionais de violência. 50 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Essa fala de Ângela Davis nos convida a pensar a relação entre essas violências e, sobretudo, pensar os efeitos da própria violência carcerária sobre a população negra e também a ilusão aparente que as políticas penais de gênero imprimem às mulheres negras. Nesse sentido, nos lançamos ao questionamento, como poderíamos “sentir, pensar e lutar” (GALLARDO, 2011) a relação entre essas violências de modo a considerar a luta por direitos humanos das feministas que reivindicam a sua proteção através do direito penal? Como superar as invisibilidades interseccionais? É preciso reconhecer o processo de luta por direitos, mas precisamos também nos responsabilizar por esses processos, a fim de não promover outras omissões que relegam ao sofrimento as populações mais vulneráveis. Não falamos apenas de questões criminológicas, relacionadas à problemática funcional do sistema penal face aos altos índices de superpopulação carcerária, ao aumento das taxas de reincidência e de criminalidade, bem como à ineficácia das técnicas repressivas adotadas como resposta penal e todas as demais críticas dirigidas à “racionalidade penal moderna” (PIRES, 2004), reativa, com relação ao crime; punitivista, com relação ao autor; e displicente ou indiferente com relação à vítima. Falamos do acesso a bens e direitos pelas mulheres negras, que continuam sendo prejudicadas nesse processo histórico de luta por direitos. Para além do questionamento da legitimidade do sistema penal, face à sua ineficácia com relação aos fins aos quais se propõe, e da compreensão de um movimento de inflação legislativa acompanhada pela superestimação das práticas repressivas adotadas pelo sistema punitivo, bem como a sua falência estrutural, que contribuem para a sensação de desconforto que abala o sistema penal e o mundo jurídico, é importante que nos questionemos sobre os resultados paradoxais de serviços prestados pelo sistema de justiça, e outros serviços sociais, a depender do público que os acessam (e quando acessam). Esses questionamentos se dirigem às bases ideológicas e pragmáticas que sustentam os sistemas sociais e devem observar os mais diversos níveis de opressões em uma sociedade determinada. Tendo a sociedade brasileira se conformado a partir de relações de dominação estrutural (re)produzidas institucionalmente e também nas relações pessoais, não só no âmbito econômico, mas também político, científico, cultural jurídico e individual, como poderíamos pensar as lutas de modo crítico, sem desconsiderar as lutas dos sujeitos vistos como minorias políticas? 51 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Seria possível, como propõe Gândara (2015), “visar à emancipação humana? Em todas as suas dimensões de opressão? Sobretudo a opressão que se estabelece a partir do próprio direito? Lyra Filho (1991) nos ensina que o direito não se resume à lei e não concentra a sua produção no Estado, o direito é um processo histórico em construção e somos atores nesse processo. Cabe a nós pensar qual o nosso papel e qual o nosso poder de agência. O direito encontra-se inscrito nas relações de poder globais onde não podemos ignorar a predominância do capitalismo e dos modelos nortistas (eurocêntrico e norte-americano) de dominação. A adoção e exaltação de um paradigma de direito alicerçado sob os princípios da abstração, generalidade, objetividade, imparcialidade, além dos imperativos de ‘ordem e progresso’ (referência a um darwinismo social que influenciou o projeto de República do Brasil) , nos modelos de uma sociedade colonialista, patriarcal, heteronormativa, racista e patrimonialista, foram fatores determinantes para culminação de uma sociedade que apresenta em seu contexto sócio-histórico intensas relações de conflito que refletem a grande anomia proveniente desses desencontros. É nesse sentido que observamos como o direito brasileiro, sobretudo o sistema penal, encontra-se imerso em uma estrutura colonial que vem se perpetuando ao longo do tempo sem romper com as suas bases estruturantes. E é por isso que problematizamos o enfrentamento à violência de gênero a partir das políticas penais. Não ignoramos os possíveis benefícios que a instrumentalização do direito penal tem trazido para as mulheres, sobretudo as brancas, mas também não podemos ignorar os padrões diferenciados de eficácia destas políticas com relação às mulheres negras. Ademais, ao reconhecer o direito (e principalmente o direito penal) como instrumento hegemônico de manutenção do poder, e também por isso como arena de disputa política que não podemos ignorar, reconhecemos também que este é um campo de transformação a ser transformado. 52 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Considerações Finais Problematizar as políticas penais de gênero no Brasil a partir de lentes decoloniais, interseccionais e da perspectiva crítica dos direitos humanos é uma tarefa que nos traz inúmeras indagações sobre o tipo de emancipação que visamos para os sujeitos (observadas as suas diferenças) e também sobre o nosso poder de agência diante do modelo de transformação pretendido. Para isso, interrogamos a reivindicação, pelos movimentos feministas, do aumento da punibilidade e a maior intensidade na criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda uma disputa pelos efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização do mesmo para fins políticos e de reconhecimento, inclusive pautados em discursos de direitos humanos. Deste modo, trouxemos elementos que nos permitissem discutir não só questões específicas sobre raça e gênero, mas sobretudo as questões interseccionais relacionadas à estruturação das respostas que mobilizamos para solucioná-las. A utilização da racionalidade penal moderna, sobretudo no âmbito da criminalização da violência de gênero apresenta-se legítima, contudo trazendo vícios próprios da sua constituição também oriunda de um modelo patriarcal, racista e colonial, reproduzindo as suas condições estruturantes. Nos lançamos à tarefa de pensar as consequências desses vícios estruturantes e observando os dados de avaliação destas políticas, concluímos que o contexto de precariedade, sobretudo no que diz respeito à raça, pode inviabilizar inclusive a instrumentalização do penal, que mais uma vez acentua a opressão sobre os negros de diversas maneiras. As condições de vida e de morte da população negra e não negra, dos homens e mulheres, hoje, no Brasil, são muito diferentes. A ausência do reconhecimento da desigualdade social (leia-se, inclusive racial e de gênero) brasileira é um entrave para qualquer modelo que presuma a existência de uma igualdade formal e material entre os beneficiários de qualquer política pública. É aí que identificamos o principal gargalo com relação a avaliação das políticas penais de gênero no Brasil e nos perguntamos: porque essas políticas parecem funcionar de maneira mais efetiva para as mulheres brancas do que para as mulheres negras? A disputa a partir do feminismo parece mais uma vez ignorar as diferenças raciais que mantém a população negra em situação de desvantagem na luta por direitos e no acesso de bens e serviços. O aumento de normas que regulamentem a violência de gênero por si só não é capaz de nos dar um parâmetro de sucesso, para isso é preciso olhar principalmente para os 53 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA índices que avaliam a efetividade e eficácia dessas políticas. É certo que essas normas provocaram mudanças positivas no modo como o problema da violência de gênero vem sendo olhado pelas instituições públicas, criando mecanismos de combate à violência e apoio às mulheres que vão além da perspectiva punitiva. Contudo, é preciso considerar as condições de manutenção e exequibilidade dessas políticas. Se por um lado, temos o aumento do número de notificações de violência, por outro temos a desconsiderada cifra oculta que representa muitas mulheres que não conseguem chegar aos sistemas de proteção e ao judiciário; as mulheres que tem medo; as mulheres que não se enxergam capazes de romper barreiras estruturais; que não possuem condições financeiras; ou que não acreditam no judiciário como um meio capaz/possível de resolver o seu conflito; aquelas que já foram revitimizadas ao tentar procurar ajuda, etc. Nos diferentes territórios existem uma série de fatores que condicionam a eficácia das leis e das políticas públicas. No Brasil, a própria questão de gênero é algo que é visto como um tabu pelas instâncias oficiais, reduzindo verbas e a própria amplitude das políticas. Os pronunciamentos oficiais atuais demarcam uma narrativa conservadora e reacionária, que ignora as pautas dos movimentos sociais organizados, estudiosos e dados oficiais sobre as condições de vida e de morte da população brasileira, desrespeitando não somente normas internas, mas também tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. As mulheres no Brasil, sobretudo as mulheres negras, estão submetidas a ciclos de violências pessoais, institucionais e estruturais que balizam o grau de dificuldade no acesso a essas políticas públicas. Renda e cor são elementos que marcam essas diferenças e podem ser verificados nos dados que versam sobre violência doméstica e feminicídio, por exemplo. Se os dados apontam que as políticas penais de gênero funcionam para as mulheres brancas e não funcionam para as mulheres negras, elas nos dizem que a raça é um fator determinante do acesso e na qualidade de acesso a essas políticas. Porque então a questão racial não é privilegiada para a reformulação dessas políticas? Onde estão as políticas públicas de enfrentamento ao racismo? Os recursos destinados a este fim? As ações implementadas em caráter estrutural? 54 ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA Referências bibliográficas ADORNO, Sérgio. O liberalismo sob as Arcadas: o confronto entre a academia formal e a academia real. In: Aprendizes do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Cap. 3, p. 91-155. ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020. IPEA – Instituto de Pesquisa Aplicada. Disponível em:; https://www. ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_ institucional/200826_ri_atlas_da_violencia.pdf Acesso em 25 de outubro de 2020. BRASIL. LEI Nº 13.104, DE 9 DE MARÇO DE 2015. 2015. 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Em um primeiro momento, será apresentada a proposta de Katheleen Daly, que parece estar em maior conformidade com o que considero fecundo, sem correr o risco de ser ingênuo, na produção de um novo campo criminológico. A sugestão de trabalhar dentro e fora da criminologia, produzindo saberes conjuntos, mas sem deixar de lado as críticas, parece uma leitura acertada do que pode ser feito diante da realidade concreta dos debates entre os feminismos e a criminologia crítica. Com o intuito de facilitar a identificação da criminologia feminista, alguns conceitos serão apresentados no curso deste artigo. Isso, contudo, tendo como plano de fundo o fato de que as categorias analíticas feministas são em sua gênese instáveis e transitórias, estando em conformidade com a própria dinâmica da sociedade contemporânea e com as diversas experiências das mulheres. Por fim, a colonialidade de gênero será introduzida enquanto um novo componente a ser considerado para a construção de uma criminologia feminista latino-americana e, mais especificamente, brasileira. A incorporação dessa análise, juntamente com uma abordagem interseccional, que considere os marcadores raça/etnia, classe, sexualidade, elevaria o debate criminológico a um outro patamar, muito mais atento às complexidades da realidade social na qual as mulheres estão inseridas. 15. Tomo a liberdade de utilizar o termo que foi (re)tomado pela professora Vera Regina Pereira de Andrade, em 2010, ao propor o projeto de pesquisa intitulado “Bases para uma Criminologia do controle penal no Brasil: em busca da brasilidade criminológica”, financiado pelo CNPq e que tem como objetivo orientar investigações pautadas na busca por uma latinidade e por uma brasilidade criminológica. 58 BRUNA MARTINS COSTA 1 CRÍTICA FEMINISTA À CRIMINOLOGIA A modernidade deixou como herança um modelo de produção teórica totalizante, mas que sempre adotou como parâmetro o homem. O caso do discurso criminológico não foi diferente: ainda que se propusesse a questionar as premissas deterministas da criminologia positivista, a criminologia crítica, erigida sobre as bases do marxismo, é uma teoria que intenta explicar todos os fenômenos criminais. Entretanto, essa teoria foi elaborada para falar da experiência do homem trabalhador oprimido pelo capital. Ou seja, ainda que se proponha a explicar os fenômenos criminais, a criminologia crítica não considerou em sua elaboração teórica as experiências das mulheres. A crítica feminista à criminologia acontece de diversas formas, sendo que algumas autoras advogam pela construção de um campo do saber que alie tanto contribuições da teoria feminista quanto da criminologia crítica. Outras autoras, por sua vez, acreditam ser impossível que algo frutífero emerja dessa relação, tendo em vista que durante muito tempo, e ainda hoje, a criminologia crítica segue bastante relutante em incorporar as críticas do feminismo. Neste trabalho adotar-se-á uma postura favorável a construção de uma perspectiva feminista em criminologia, de uma criminologia feminista, ou, ainda, de um feminismo criminológico. Para tanto, utilizar-se-á a leitura de Katheleen Daly. Importante destacar que essa autora, além de considerar possível uma criminologia feminista, comprometese, também, com a construção de uma criminologia interseccional, que considere questões de raça e de sexualidade em suas análises. Diante do conflito entre o feminismo e a criminologia crítica, Daly e Maher (1998) propõem uma terceira via, na perspectiva de trabalhar dentro e fora da criminologia. Para tanto, o trabalho feminista em relação a esse campo deveria ocorrer em duas frentes: uma pautar-se-ia na construção de conhecimentos feministas dentro da esfera criminológica, enquanto a outra continuaria a desafiá-lo e corrigi-lo de sua cegueira de gênero, etnocentrismo e rigidez teórica. Assim, essa postura possibilitaria a abertura de um espaço de convergência entre o feminismo e a criminologia. Sustenta-se que as perspectivas feministas estão, hoje, muito próximas das criminologias crítica, multiétnica, antirracista e cultural16 , que transgridem e transformam a criminologia. Nesse sentido, a análise do crime, da vitimização, da justiça e do direito 16. Para informações detalhadas sobre essas vertentes criminológicas ver Campos (2017). 59 BRUNA MARTINS COSTA deve ser feita a partir das múltiplas relações e identidades (gênero, raça/etnia, classe, idade, sexualidade), mediadas pela cultura, história e linguagem. Tendo em vista que se trata de um campo em construção, as feministas sentiram a necessidade de apresentar alguns dos principais conceitos utilizados de modo recorrente pela criminologia feminista. Campos (2017) se preocupa em sistematizar esse exercício de conceituação, trazendo um apanhado dos principais posicionamentos e discussões sobre a temática. Por criminologia feminista entende-se um determinado corpo da pesquisa e da teoria criminológica que situa o estudo do crime e da justiça criminal dentro de um complexo entendimento de que o corpo social é sistematicamente formado pelas relações de sexo/ gênero. Ela incluiria, além de uma perspectiva teórica sobre gênero e desigualdade de gênero, a recepção e a incorporação de marcadores como raça/etnia, classe, idade, sexualidade, dentre outros. Desse modo, é possível considerar que a criminologia feminista seria, pela sua própria constituição original, necessariamente interseccional. O que distinguiria a criminologia feminista da análise criminológica dominante sobre mulher e crime é o fato de que as teorias de gênero são o ponto de partida para as análises criminológico-feministas. Assim, de forma esquematizada, é possível dizer que a) gênero não é um fato natural, mas um complexo produto histórico, social e cultural, relacionado, mas não simplesmente derivado da diferença sexual biológica ou das capacidades reprodutivas; b) O gênero e as relações de gênero estruturam a vida e as instituições sociais de modo fundamental; c) As relações de gênero e as construções de feminilidade e masculinidade não são simétricas, mas estão baseadas em um princípio organizador da superioridade masculina e na dominação econômica, social e política das mulheres; d) A produção do conhecimento reflete a visão dos homens sobre o mundo social e natural. O conhecimento é gendrado; d) As mulheres devem estas no centro da pesquisa intelectual e não periféricas, invisíveis ou apêndices dos homens. (DALY; CHESNEY-LIND, 1988, p. 504 apud CAMPOS, 2017, p. 272). O gênero é a base da sustentação da teoria feminista contemporânea e um guia na pesquisa criminológica feminista, mas sozinho não supre as defasagens identificadas na produção criminológico-crítica “tradicional” no Brasil. As experiências dos sujeitos não são compartilhadas da mesma forma, e quando tratamos de mulheres privadas de liberdade é fundamental explicitar sua raça e sua classe, uma vez que são fatores relacionados à seletividade do sistema de justiça penal. (COSTA; BOITEUX, 2020). 60 BRUNA MARTINS COSTA Fica evidente, portanto, que o debate não se encerra com o enfoque de gênero. Pelo contrário, desenvolve-se de forma a incorporar as complexidades da sociedade contemporânea, incluindo, desse modo, as relações imbricadas entre diversos marcadores sociais. Sobre a importância de se adotar uma postura interseccional na pesquisa, Vanessa Berner (2017, p. 41) traz que: o feminismo negro, o pós-colonial, o lésbico e outros, se colocam contra essa ideia de uma categoria homogênea e universal de “mulher” como sujeito político e de direito, justamente por se tratar de uma categoria que, por representar valores ocidentais, exclui outras categorias de mulheres. Sua reivindicação é a interseccionalidade, cujo propósito é encontrar fórmulas que considerem a soma das diferentes desigualdades, como raça, sexo, classe social, orientação sexual etc. Fórmulas que sejam capazes de conceber sujeitos como categorias sociais heterogêneas. O feminismo interseccional pretende diminuir as assimetrias e as opressões por meio da visibilidade e da heterogeneidade. Interseccionalidade e descolonialidade são importantes instrumentos teóricometodológicos, uma vez que contemplam as mulheres negras, indígenas, lésbicas, terceiro-mundistas, que estão longe das cisgeneridade branca heteropatriarcal que fundamenta o modelo feminino hegemônico. Precisam, portanto, ser utilizados para a elaboração de metodologias adequadas à realidade destes grupos, de modo que possam mobilizá-los para responder à sua condição de opressão (COSTA, 2020). Daly (1998), numa busca por marcar as distinções entre a criminologia tradicional e a criminologia feminista, sustenta que a segunda estaria melhor localizada no que denomina de teorias de médio alcance. Estas seriam teorias que, primariamente, procuram explorar como amplas forças estruturais são realizadas tanto dentro de particulares contextos organizacionais como nas interações de atores sociais no nível micro, dentro de uma área ou domínio específico. Opostas às grandes teorias, que muitas vezes excessivamente generalizam os efeitos situacionais na tentativa de explicar tudo de uma vez, as teorias de médio alcance tentam fornecer explicações mais contidas, mais focadas em situações e contextos. Assim, a criminologia feminista parte do entendimento de que o gênero é complexo e contingente, variando conforme o contexto histórico e a posição social do sujeito. Dessa forma, preocupa-se em investigar como as organizações gendradas (ZANELLO, 2018), através de suas estruturas, políticas, ideologias e práticas, são construídas sobre as hierarquias de gênero e as reproduzem. 61 BRUNA MARTINS COSTA Essa preocupação se estende para compreender de que modo os atores se movem em ambientes marcados pelo gênero para tentarem realizar seus objetivos pessoais e fortalecer suas posições sociais, bem como para compreender a forma como as interseccionalidades de gênero, raça, classe, idade, sexualidade criam variações na natureza e afetam a desigualdade de gênero (CAMPOS, 2017). Dentro da criminologia feminista, assim como em outros campos, o gênero operaria em três níveis. O nível macro, denominado ordem de gênero, pode ser observado no fato de que, aplicado aos estudos criminológicos, o feminismo utilizou as análises estruturais para mudar a perspectiva da criminologia tradicional, ao incluir as mulheres na análise dos processos de criminalização. O nível intermediário, denominado regime de gênero, voltou a atenção feminista à família, às ruas, à economia de drogas e às redes de ofensores, além dos estudos relacionados à escola e outras instituições. O nível micro, também reconhecido com a dimensão das relações de gênero, diz respeito às interações pessoais, diretas e indiretas, mediadas por relações de poder, produtivas, emocionais e simbólicas. Nesse âmbito, podemos situar os estudos sobre violência contra as mulheres (CAMPOS, 2017). As dimensões da ordem, do regime e das relações de gênero operam simultaneamente e estão interligadas. O reconhecimento da interdisciplinaridade das teorias de gênero e da criminologia permitiria avanços nos estudos sobre as relações entre gênero e crime, nas pesquisas qualitativas e quantitativas, e legitimariam a utilidade dessa área de investigação. Portanto, a saída sugerida por Daly, de trabalhar dentro e contra a criminologia, parece ser a mais frutífera e proveitoas. A partir da necessidade de que novos marcadores identitários fossem incluídos na teorização feminista em criminologia, a perspectiva da criminologia das mulheres negras e dos estudos queer reivindicaram seu lugar. Sobre as possibilidades de uma criminologia das mulheres negras, Daly e Stephens (1995, apud CAMPOS, 2017, p. 276) argumentam que uma análise feminista negra e multiétinica em criminologia significaria uma consciência de gênero racializada, aplicada a qualquer circunstância no campo do crime e do sistema de justiça, tendo em vista que o conceito de opressões múltiplas é central para a teoria feminista negra. Ainda que a possibilidade de uma criminologia feminista negra e multiétnica venha ampliar a análise étnico-racial, ela segue não considerando as mulheres lésbicas e a questão da sexualidade como objetos de investigação criminológica. Esse locus incerto 62 BRUNA MARTINS COSTA ocupado pelos sujeitos que estão entre as diversas categorias de opressão é apontada por Glória Anzaldua (2005), ao mencionar sua condição de mulher racializada e latinoamericana. A emergência dos estudos queer, sustentada nos estudos teóricos gays, lésbicos e trans, marcam uma etapa de dupla crítica da ordem vigente. Primeiro, porque objetam o padrão naturalista que estabelece a superioridade masculina sobre as mulheres, e, segundo, porque questionam a normatização da sexualidade masculina como padrão, produzindo uma norma política androcentrada e homofóbica. Para Carvalho (2012), o silêncio da criminologia crítica sobre a (heteros)sexualidade retoma o debate acerca da cultura ocidental se erigir sobre o paradigma da hipermasculinidade violenta, na qual a homofobia configura o paradigma científico moderno e o estatuto científico das ciências criminais. Campos (2017) defende que a inclusão de novos sujeitos para a construção de uma criminologia feminista só pode ser compreendida a partir de uma perspectiva feminista pós-moderna e de um repensar teórico desconstrutivista da própria criminologia. Para tanto, argumenta que não nega a realidade concreta, nem das mulheres, nem do poder punitivo. No entanto, não deixa de demonstrar que a exclusão das mulheres nas teorias criminológicas é um exercício de poder do discurso criminológico. Nessa linha, a desconstrução feminista do sujeito não significa o abandono das mulheres reais, mas um duplo deslocamento. O primeiro, no campo discursivo-teórico, pois não existe a mulher enquanto categoria unificada. O segundo, no campo contextual e político, tendo em vista que existem mulheres em diferentes posições, e, por isso, em diferentes condições de opressão. Assim, o sujeito criminológico não mais possui um status fixo, mas é atravessado por vários marcadores identitários. Embora trabalhe-se aqui sobre a necessidade de incorporar os discursos feministas, antirracistas e queer aos debates criminológicos, nem sempre isso é evidente. A crítica pós-moderna ameaça os pressupostos da ilustração, sobre os quais foi construída a sociologia e, por consequência, a criminologia, cujo método científico materialista histórico prometia revelar os fundamentos da opressão humana e do poder punitivo. Como já mencionado anteriormente, o saber moderno é, portanto, regido pela lógica das grandes, e generalizantes, narrativas. No entanto, esse modelo teórico não é possível para o feminismo, como adverte Harding (1993). Isso porque o feminismo vem denunciando o androcentrismo, lógica sobre a qual 63 BRUNA MARTINS COSTA diversas teorias foram construídas, incluindo a criminologia, o que torna difícil sua utilização acrítica. Consequentemente, não sendo possível assumir totalmente a análise criminológica, pode-se utilizar parte de seu discurso, parte de outro, e formar criativa e temporariamente uma outra perspectiva teórica conectada à vida e às experiências específicas das mulheres. Além disso, a vida social da qual se nutre a teoria feminista está em constante transformação, impedindo uma teorização completa e estática. Disso, extrai-se que as próprias categorias analíticas feministas são instáveis e, portanto, não compatíveis com um pensamento previamente estabelecido e que se proponha imutável. Não passa de delírio imaginar que o feminismo chegue a uma teoria perfeita, a um paradigma de “ciência normal” com pressupostos conceituais e metodológicos aceitos por todas as correntes. As categorias analíticas feministas devem ser instáveis: teorias coerentes e consistentes em um mundo instável e incoerente são obstáculos tanto ao conhecimento quanto às práticas sociais (HARDING, 1993). A criminologia, para abarcar essa nova abordagem, precisa “abdicar as tentações dos modelos totalizadores, representados pelas grandes narrativas sobre o crime, o criminoso, os processos de criminalização e os mecanismos de controle social” (CARVALHO, 2012, p. 163, apud CAMPOS, 2017, p. 282-283). Para o autor, a fragmentação pós-moderna traz consigo a possiblidade de uma criminologia propriamente contemporânea. Sobre os atuais desafios para uma abordagem feminista em criminologia no Brasil, Campos (2017) apresenta três problemas que considera centrais. O primeiro relaciona-se a uma perspectiva feminista multidimensional em criminologia e diz respeito aos sujeitos apagados da vista — mulheres negras, pobres, de periferia, indígenas, ribeirinhas —, submetidos às múltiplas violências decorrentes das diversas vulnerabilidades às quais estão expostos. Assim, a dimensão étnico-racial é indispensável a uma criminologia feminista brasileira - assim como a adoção de uma perspectiva de(s)colonial, que será, em seguida, melhor explicitada -, pois o racismo se constituiu na exclusão social e está na base da violência institucional no Brasil. O segundo problema diz respeito à violência homofóbica sofrida pelas mulheres lésbicas e trans, negando-lhes a possibilidade de exercício de suas sexualidades e subjetividades. O terceiro problema diz respeito à violência doméstica e sua atual dimensão no país. Ela constitui um dos maiores desafios da criminologia contemporânea, “pois se tornou o crime mais reportado ao sistema penal, representando boa parte dos estudos brasileiros que se autointitulam criminologia feminista (MARTINS; GAUER, 2020). 64 BRUNA MARTINS COSTA Ainda que o olhar feminista sobre a criminologia seja sempre problematizador, e que essa relação seja conflituosa, tem-se trabalhado no sentido da produção de sínteses a partir do diálogo entre criminologia e feminismos17. Há esforços pelo desenvolvimento de uma criminologia de resistência e marginal, que incorpore as particularidades das mulheres latino-americanas, negras, indígenas, ribeirinhas, faveladas, lésbicas, latinoamericanas. Importante é o apontamento de Harding (1993), no que diz respeito ao fato de que as feministas devem colocar esforços para construir conhecimento feminista e não somente em contrapor e refutar teorias não feministas. 2 FEMINISMO DE(S)COLONIAL18 E A COLONIALIDADE DE GÊNERO Este trabalho trouxe um breve panorama acerca da tentativa em curso da construção de uma perspectiva feminista em criminologia – ou de uma criminologia feminista, de um feminismo criminológico -, que seja necessariamente interseccional. Neste tópico, será tratada de forma um pouco mais detalhada a discussão acerca da colonialidade de gênero e a importância da incorporação desse debate para a construção de uma criminologia feminista latino-americana e, de forma ainda mais específica, brasileira. Assim como a criminologia crítica latino-americana revelou que os processos de criminalização nos países periféricos têm peculiaridades decorrentes da situação de desigualdade social, e de dependência política e econômica dos países centrais, o feminismo de(s)colonial faz uma crítica ao movimento feminista liberal. Ele sinaliza como a desigualdade e a violência de gênero são ainda mais acentuadas para as mulheres não brancas e habitantes dos países do dito sul global — ou de terceiro mundo. Pode-se entender enquanto feminismo de(s)colonial uma perspectiva feminista que integra a análise da discriminação social ao classismo e ao racismo, que busca descolonizar as correntes feministas eurocêntricas, que tem em vista a diversidade existente mesmo dentro dos grupos oprimidos. Todos esses elementos, já presentes em uma abordagem feminista pós-colonial, são considerados e complexificados sob a ideia de colonialidade de gênero (ANDRADE, 2017). Importa pontuar, portanto, que colonialidade não se confunde com colonialismo. Enquanto o primeiro se limita aos processos de exploração do território, do trabalho e das riquezas da colônia em favor do colonizador, através de dominação política e militar, a ideia segunda ultrapassa esse limite. 17. Destaco aqui a tese de doutorado da Fernanda Martins, intit- 18. Há uma série de discussões em torno da grafia do termo, a ulada Feminismos criminológicos: heterot[r]opias da abolição, e maioria delas pautada em argumentos fundamentados. Entretan- último manifesto de Vera Andrade (2020), intitulado Criminologia to, neste artigo, não entrarei nesse mérito, e utilizarei a grafia de(s) em pedaços: manifesto por uma aliança para a brasilidade, que colonial como alternativa. trazem algumas reflexões importantes para o prosseguimento dos debates. 65 BRUNA MARTINS COSTA Esse é, portanto, um fenômeno que até se inicia com o colonialismo, mas se estende para além dele, podendo ser conceituado como um padrão de poder através do qual são governados e hierarquizados os seres humanos, os lugares, o trabalho, a cultura e o saber, a partir de sua racialização e das formas de exploração capitalista, configurandose como estrutura do sistema-mundo moderno (ANDRADE, 2017). Quijano (2005), pela perspectiva da colonialidade do poder, explica que a categorização e hierarquização dos seres humanos por raças, assim como a definição destas a partir da cor, surgiu com o colonialismo, como forma de naturalizar e justificar a dominação dos europeus sobre os não europeus. Nesse sentido, o controle e a exploração da produção e do trabalho pelos europeus na América, a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o salário, eram originais na medida em que estavam completamente voltados à produção de mercadorias para o mercado mundial, e, dessa forma, articuladas com o capital e mobilizadas entre si – o que não ocorria até então. O autor ainda entende que simultaneamente a essas formas de dominação surgiu a divisão racial do trabalho – relegando os negros à escravidão, os índios à servidão e aos brancos, e em alguns casos, aos mestiços, o privilégio de receber salários e ocupar funções de comando.” Embora abolidas formalmente a escravidão e a servidão, o sistema de controle pautado na relação raça/trabalho é até hoje bem-sucedido, existindo reflexos visíveis daquela divisão, sobretudo na América Latina, onde as classes sociais têm cor. Por esse motivo, sustentam os teóricos da colonialidade não ser possível compreender de maneira adequada a realidade latino-americana caso se ignore que as questões raça e classe — e também, como se verá, gênero — atuam simultaneamente na estrutura de poder operante na região (QUIJANO, 2005). Interessante perceber que essa teoria traz uma visão mais ampla do que as teorias europeias sobre as classes sociais, centralizando, portanto, a questão de raça para explicar as desigualdades e violências decorrentes da colonialidade. No que se refere à questão de gênero, apesar de Quijano chegar a mencioná-lo como componente da colonialidade do poder, enxergava a hierarquização em razão do sexo como subordinada à hierarquização da raça. As feministas pós-coloniais e de(s)coloniais, no entanto, avaliam o gênero como elemento estruturador, e não uma categoria acessória, da colonialidade do poder (ANDRADE, 2017). 66 BRUNA MARTINS COSTA Lugones (2014, p. 936), para iniciar a discussão sobre colonialidade de gênero, entende a diferenciação feita pelo colonizador entre europeus e não europeus como uma hierarquização dicotômica entre humanos e não humanos, sendo esta a “dicotomia central da modernidade colonial”. A referência seria o europeu branco burguês, que se reivindica civilizado. Para atingir esse modelo, tinha-se como essencial também a diferenciação entre homem e mulher. Sendo assim, os colonizados e colonizadas, por não se encaixarem na padronização de gênero e papéis sociais definidos para homens e mulheres — e por não serem brancos e europeus —, eram bestializados e considerados simplesmente machos e fêmeas. Desse modo, sob o pretexto de que eram não humanos, seria possível infligirem-lhes as mais diversas crueldades, “através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático” (LUGONES, 2014, p. 937- 938). Acrescenta a autora que a transformação civilizatória do colonizador, ao impor aos colonizados sua visão de mundo, fez com que deles fossem tolhidas a memória, a noção de si - das pessoas, da relação intersubjetiva, da relação com o mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade -, a identidade, a organização social, ecológica e cosmológica. A situação para as colonizadas era de uma subalternização ainda mais extrema, estando elas em posição hierárquica inferior à do colonizado. A religião cristã, professada pelos colonizadores, trazia uma visão de mundo que servia “para marcar a sexualidade feminina como maligna, uma vez que as mulheres colonizadas eram figuradas em relação a Satanás, às vezes como possuídas por Satanás” e, assim, através de mais essa hierarquização, era possível colocar os colonizados e colonizadas contra si próprios (LUGONES, 2014, p. 938). Com efeito, a imposição da ideologia da dominação masculina nas colônias coloca o homem colonizado em uma condição dúplice: por um lado, é oprimido pelo colonizador; por outro, é empoderado em relação a sua aldeia. Frente ao colonizador, tem sua masculinidade e sua virilidade relativizadas, pois subjugado por este. Diante dessa violência, busca reafirmar seu controle e seu poder masculino no único espaço em que lhe é possível, que entre as mulheres colonizadas (MARQUES, 2016). Esse processo de apagamento da subjetividade originária do colonizado, associado à introdução de ideia de inferiorização feminina, rompe os laços de solidariedade entre colonizados e colonizadas. Isso implica o fato de que, ainda hoje, mesmo os homens vítimas da colonialidade do poder, do racismo e do capitalismo são, muitas vezes, indiferentes 67 BRUNA MARTINS COSTA à violência operada pelo Estado, pelo patriarcado e perpetuada por eles próprios, que recai, drasticamente, sobre as mulheres não brancas vítimas da colonialidade de gênero (MARQUES, 2016).” Reforça-se então a ideia de interseccionalidade indissociável entre gênero, raça, trabalho (ou classe) e sexualidade, para que se possam enxergar, de fato, as mulheres não brancas e toda a opressão por elas vivenciada a partir da colonialidade de gênero. Isso porque, quando aquelas categorias são consideradas apenas isoladamente, são excluídas de sua visão as pessoas que se encontram justamente na intersecção entre tais categorias. É o que ocorre, por exemplo, com as mulheres negras em relação ao feminismo universalizante ou mesmo a estudos sobre racismo que desconsideram o gênero. Quando se considera as categorias dominantes, entre elas mulher, negro e pobre, vê-se que não estão articuladas de maneira que incluam pessoas que são mulheres, negras e pobres. A intersecção entre mulher e negro revela a ausência das mulheres negras em vez da sua presença. Isso porque a lógica categorial moderna constrói as categorias em termos homogêneos, atomizados, separáveis, e constituídos dicotomicamente. (LUGONES, 2014). Essa construção procede a partir da presença generalizada de dicotomias hierárquicas na lógica da modernidade e das instituições modernas, como já mencionado anteriormente. A interseccionalidade é importante, nesse caso, por ser capaz de mostrar a falha das instituições em incluir a opressão das mulheres racializadas.” O feminismo de(s)colonial, portanto, visa superar a colonialidade de gênero, criticando essas categorias estáveis da modernidade, de modo a permitir que se percebam as subjetividades daquelas oprimidas para além da dominação racial, colonial, capitalista, heterossexual e de gênero. Trata-se não somente de uma nova epistemologia, mas também de uma praxis que pretende a transformação social, possibilitando às mulheres “compreender sua situação sem sucumbir a ela” (LUGONES, 2014, p. 940). É importante assinalar que o feminismo de(s)colonial não é um movimento acabado e sim uma ideia em construção, que se nutre das experiências de cada uma das mulheres oprimidas, dos saberes comunitários, indígenas, afros e populares urbanos e do campo, com vistas a questionar e fazer oposição à lógica imperialista. A criminologia da libertação é uma vertente de estudos criminológicos críticos desenvolvida dentro da América Latina e para seu contexto e realidade . É enormemente reconhecida por criminólogos de todo o mundo, especialmente por suas atividades desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980, e tem como plano de fundo teórico a teoria 19. Para uma compreensão mais detalhada acerca da criminologia da libertação enquanto corrente e movimento criminológico, ver os trabalhos de Rosa del Olmo (2004), Lola Anyiar de Castro (2005) e Christina Coutinho (2018). 68 BRUNA MARTINS COSTA crítica marxista. É uma teoria marcada pela análise predominante do elemento classe, reconhecendo brevemente, em alguns casos, os elementos raça e gênero. Ainda que seja possível reconhecer o brilhante trabalho desenvolvido por pesquisadores dessa corrente, percebe-se uma preocupação escassa e insuficiente no que diz respeito às particularidades das mulheres latino-americanas (COUTINHO, 2018). Conforme já mencionando, as opressões sofridas pelas mulheres latino-americanas, bem como pelas mulheres não brancas e de outros locais do sul global, baseiam-se não somente nas dominações de classe e de gênero, mas também de raça. “De acordo com os estudos feitos pelas teóricas da colonialidade de gênero, se forem analisadas separadamente cada uma dessas categorias de poder, estarão excluídas da análise aquelas pessoas situadas na intersecção entre elas (ANZALDUA, 2005; LUGONES, 2014). É o caso, justamente, das mulheres latino-americanas, que são subalternizadas por questões de gênero, por serem oriundas de uma região marginal, por serem não brancas e, muitas vezes, pobres. À época em que se desenvolveu a criminologia da libertação, emergiam, quase que concomitantemente, os estudos pós-coloniais. Isso significa que as teorias de(s)coloniais só surgiriam alguns anos depois20, sendo, portanto, compreensível que não se tenha adotado uma lente de(s)colonial para enxergar os fenômenos relacionados ao crime na América Latina. De qualquer forma, entende-se que tanto a criminologia da libertação como as teorias de(s)coloniais compartilham, enquanto objetivo em comum, a produção de um conhecimento autenticamente latino-americano — local e territorializado —, com propostas de transformação social para seu povo, e que se dá pela crítica e superação do sistema moderno capitalista. A colonialidade, que opera até hoje, traz consigo a imposição do padrão eurocêntrico, que tem como sujeito o homem branco, heterossexual, burguês. “Esse modelo perpetuado pelas instituições de controle social que a criminologia da libertação se propõe a estudar, também influencia na forma como o controle formal e informal incide sobre as mulheres.” 20. Os estudos de(s)coloniais surgiram a partir do grupo a respeito da geopolítica do conhecimento e da colonialidade do modernidade/colonialidade, ao final dos anos 1990, sendo o grupo poder. O grupo tem ampliado sua rede e se mantém fortalecido, formado por pensadores que, até então, trabalhavam temas como inclusive com a criação de programas de pós-graduação do Brasil a teoria da dependência, a análise do sistema-mundo, a filosofia da e em outros países da América Latina, que permitem a formação libertação. Em 1998 foi realizado um evento na Venezuela que contou de mais acadêmicos para continuar os estudos sobre o tema. Para com a presença de destacados membros do grupo e resultou em maiores informações sobre o desenvolvimento dos pensamentos um dos mais importantes livros sobre o tema. No ano seguinte, em de(s)coloniais, ver o texto de Ramón Grosfoguel e Santiago Castro- um evento nos Estados Unidos iniciou-se um diálogo com as teorias Gomes (2007). pós-coloniais. Paralelamente, criou-se uma rede entre universidades latino-americanas e norte-americanas para organizar publicações 69 BRUNA MARTINS COSTA Buscando encerrar este breve trabalho, propõe-se que seja pensada uma nova forma de leitura da teoria crítica do controle social na América Latina, que incorpore a perspectiva de(s)colonial, mais especificamente da colonialidade de gênero. O desenvolvimento de uma nova abordagem criminológica que considere as opressões raciais, capitalistas, de gênero, e a colonialidade, despontaria como uma crítica mais complexa e com maior potencial emancipatório para as mulheres latino-americanas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho tinha como proposta inicial introduzir de forma sucinta o debate acerca da incorporação à criminologia crítica da crítica de(s)colonial e de gênero, com o intuito de elaborar uma criminologia feminista autenticamente latino-americana e, de forma ainda mais específica, brasileira. São vastas as críticas feministas à criminologia crítica, sendo comum divergências radicais entre elas. Tendo isso em vista, foi aqui apresentada a perspectiva de Katheleen Daly, que sugere, enquanto método de trabalho, atuar dentro e fora da criminologia. A escolha por trabalhar com esse referencial aconteceu em virtude da autora deste presente trabalho considerá-lo o mais fecundo, sem parecer ingenuamente conciliador. Para Daly, o trabalho feminista em relação à criminologia deveria ocorrer em duas frentes, sendo que uma pautar-se-ia na construção de conhecimentos feministas dentro do campo criminológico, enquanto a outra continuaria a desafiar e corrigir o campo não feminista de sua cegueira de gênero, etnocentrismo e rigidez teórica. Essa postura possibilitaria a abertura de um campo de convergência entre o feminismo e a criminologia. Ainda sobre a construção de saberes dentro de uma perspectiva feminista, marginal e interseccional em criminologia, foi endossada a importância da incorporação das perspectivas negra, multiétnica e queer. Parece que inclusão de novos sujeitos só pode ser, portanto, compreendida a partir de uma perspectiva feminista pós-moderna e de um repensar teórico desconstrutivista da própria criminologia. Não significa a negação da realidade concreta das mulheres e do poder punitivo, ao mesmo tempo em que não deixa de demonstrar que a exclusão das mulheres nas teorias criminológicas é um exercício de poder do discurso criminológico. Nessa linha, a desconstrução feminista do sujeito não significa o abandono das mulheres reais, mas um duplo deslocamento. O primeiro, no campo discursivo-teórico, pois não existe a mulher enquanto categoria universal. O segundo, no campo contextual e político, 70 BRUNA MARTINS COSTA tendo em vista que existem mulheres em diferentes posições, e, por isso, em diferentes condições de opressão. Assim, o sujeito criminológico não mais possui um status fixo, mas é atravessado por vários marcadores identitários. Sandra Harding já alertava sobre a necessidade de as feministas estarem constantemente atentas ao proporem novos saberes e formas de pensar. Isso porque as categorias analíticas do feminismo são, por si só, instáveis, e tentar adequá-las a um modelo pautado nas grandes e generalizantes narrativas vai contra sua proposta de produzir um conhecimento localizado, que leve em consideração as múltiplas opressões e atravessamentos vividos distintamente pela imensa diversidade de mulheres. Para a construção de uma criminologia feminista marginal, considerou-se de extrema importância incorporar ao debate desse campo a noção de colonialidade de gênero. Uma vez que a proposta dessa nova abordagem criminológica é interseccional e voltada para a realidade de mulheres não brancas – negras, indígenas, mestiças, ribeirinhas, faveladas, latino-americanas - e dos países ditos periféricos, parece que uma melhor compreensão sobre como a colonialidade opera estruturalmente na realidade concreta desses territórios enriqueceria e complexificaria as análises locais sobre a realidade do crime e do sistema de justiça em relação a essas mulheres. Diante disso, foi introduzido o conceito de colonialidade de gênero, bem como foi sinalizada a principal diferença entre o que se entende por colonialismo e por colonialidade. Ainda que não fosse o enfoque deste trabalho, também foram brevemente apontadas as diferenças entre a perspectiva pós e a perspectiva de(s)colonial, sendo importante ressaltar que uma não é o reverso da outra, mas sim a segunda é um passo adiante nos caminhos apontados inicialmente pela primeira. Ainda que tenha existido na América Latina uma produção de uma criminologia territorializada, é importante reconhecer suas limitações. “Percebe-se que a criminologia da libertação é escassa e insuficiente no que diz respeito às preocupações com as particularidades das opressões sofridas pelas mulheres latino-americanas, que se baseiam, não somente nas dominações de classe e de gênero, mas também de raça. Entretanto, na época em que se desenvolveu a criminologia da libertação emergiam, quase que simultaneamente, os estudos pós-coloniais. Isso significa que as teorias de(s) coloniais só surgiriam alguns anos depois, sendo, portanto, compreensível que não se tenha adotado uma lente de(s)colonial para enxergar os fenômenos relacionados ao crime na América Latina. “Como proposta para encerrar este trabalho e para a partir dele iniciar novas reflexões, sugere-se que seja pensada uma nova leitura da teoria crítica do controle social na América Latina, que leve em consideração a perspectiva de(s)colonial, mais especificamente 71 BRUNA MARTINS COSTA da colonialidade de gênero. Isso porque o desenvolvimento de uma nova abordagem criminológica interseccional, que incorpore, também, esse elemento, despontaria como uma crítica mais complexa e com maior potencial emancipatório para as mulheres latino- americanas. 72 BRUNA MARTINS COSTA Referências bibliográficas ANDRADE, Camila Damasceno de. Do trabalho ao cárcere: criminalização e encarceramento feminino em Santa Catarina (1950-1979). 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Daniela Valle da Rocha Muller Introdução A persistência da exploração de trabalho humano em condições análogas a de escravo e a dificuldade em efetivar seu combate e erradicação, a par das políticas públicas implementadas nos últimos quinze anos, indica a necessidade de “constituir uma sensibilidade sócio-hegemônica alternativa àquela exitosamente gestada pelo capitalismo” onde o imaginário burguês se impôs sobre os demais, como se fosse o único possível, verdadeiro e válido (GÁNDARA, 2014). Esse imaginário dá suporte à forma mercantil do trabalho humano, através da ficção contratual. Essa sensibilidade liberal hegemônica, que adota a lógica contratual, individualista e competitiva nas relações econômicas, sociais e culturais, atua para legitimar a exploração desmedida dos trabalhadores, especialmente aqueles identificados com os antigos escravos fenotípica, cultural e socialmente. A legitimação desse processo se apóia na concepção de que certos grupos sociais são naturalmente destinados a realizar atividades degradantes e exaustivas, a ponto da escravidão contemporânea “muitas vezes [ser] praticada de forma inconsciente seja pelo explorado, seja pelo explorador. Age como se estivesse entranhada em nossa cultura, embora tenha adquirido características próprias que a distinguem da escravidão do passado e que também a diferenciam de outras violações dos Direitos Humanos” (ALMEIDA e SECCHIN, 2015, p.11). Seguindo esse caminho, na busca de compreender os mecanismos que levam o trabalho análogo ao de escravo a ser aceito, vulgarmente utilizado e muitas vezes praticado às escâncaras, o presente artigo tem por objetivo analisar como a conformação racista colonial, a colonialidade do poder e a subjetividade do sujeito neoliberal se somam e atuam para naturalizar a hiper-exploração do fazer humano, no tempo presente. 15. Tomo a liberdade de utilizar o termo que foi (re)tomado pela professora Vera Regina Pereira de Andrade, em 2010, ao propor o projeto de pesquisa intitulado “Bases para uma Criminologia do controle penal no Brasil: em busca da brasilidade criminológica”, financiado pelo CNPq e que tem como objetivo orientar investigações pautadas na busca por uma latinidade e por uma brasilidade criminológica. 75 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER 2. Imaginário burguês, contrato e a forma mercantil do trabalho humano. Discursos constituem os sujeitos, orientam as tecnologias de poder. O discurso da modernidade constituiu o sujeito científico, cuja subjetividade é moldada, em linhas gerais, pelo relógio e pela cartografia “científica”, que lhe concedem a noção do “tempo universal” e da terra mensurável, ambos divisíveis e, portanto, comercializáveis através de leis que dão forma de mercadoria fictícia “para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, (...) salários, aluguel e juro” (POLANYI, 2001, p. 89-90). A ficção contratual moderna viabilizou a separação entre o corpo e a força de trabalho das pessoas, uma novidade que tornou possível comercializar o trabalho, que desse modo se torna uma mercadoria como as demais, cujo preço e condições de troca são ditados pelas regras do mercado e não pela dignidade do indivíduo envolvido na transação. Com isso, se oculta o fato concreto de que dentro da relação contratual existe uma pessoa, um ser humano que trabalha. Na prática o corpo da pessoa é entregue junto com a força de trabalho contratada, ou seja, a ficção contratual não elimina o fato de que toda a pessoa do trabalhador está comprometida no cumprimento desse contrato. A hegemonia dessa ficção contratual não decorre apenas dos textos normativos, sendo fruto, também, do imaginário moldado desde os primórdios da modernidade pelo iluminismo, liberalismo e pensamento científico, difundidos através de romances, peças de teatro, filmes, fotos, quadros, arquitetura e demais expressões artísticas. Aliás, o arcabouço jurídico que ampara a forma contratual do trabalho só é aceito e praticado por corresponder à concepção moderna de indivíduo, moldada e constituída a partir das revoluções liberais do final do século XVIII. A noção que hoje se tem de indivíduo foi construída sob grande influência das artes plásticas e da literatura, que por sua vez expressaram, conformaram, estilizaram, reproduziram e difundiram as ideias iluministas e liberais então emergentes. Segundo Lynn Hunt (2009, p.25), os direitos individuais não são apenas uma doutrina formulada em documentos: “baseiam-se numa disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o bem do mal”, enfim, em sentimentos que tinham de ser experimentados por muitas pessoas e não somente pelos filósofos. A autora demonstra que os direitos individuais e humanos são socialmente construídos e não fatos auto-evidentes da natureza. Para que os direitos humanos se tornassem auto-evidentes, as pessoas comuns precisaram ter novas compreensões que nasceram de novos tipos de sentimentos. Ela sustenta, em suma, que os novos tipos de 76 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER leitura, de representação artística, arquitetônica e musical criaram novas experiências individuais, que por sua vez tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos dos quais nascem os direitos humanos. Exemplo dessa construção da subjetividade individualista liberal é a popularização dos retratos entre os burgueses a partir do século XIX, telas reproduzindo os traços específicos de determinadas pessoas, que antes eram exclusivas aos nobres, se popularizaram e forjaram a noção de auto-imagem, a “proliferação de retratos individuais estimulou a visão de que cada pessoa era um indivíduo – isto é, singular, separado, distinto e original” (HUNT, 2009, p.89). De igual modo, romances como os de Rousseau, Voltaire e Baudelaire foram dando forma a conceitos como “mundo interior” e privacidade, que são a semente da autonomia da vontade privada individual, noções absolutamente novas para as pessoas egressas do antigo regime, onde as referencias eram teocêntricas. Logo, ao criar a noção de indivíduo e individualidade, a modernidade presenciou o deslocamento de uma estrutura religiosa transcendente para uma estrutura humana interior, onde prevalecem ideias que deram (e ainda dão) suporte às liberdades individuais mercantis. Quando essa liberdade se traduz na venda da força de trabalho, vista unicamente como um patrimônio do trabalhador, uma mercadoria, se fortalece a ideia do direito à liberdade pelo viés egoísta, que vislumbra os seres isolados das suas relações sociais, dos vínculos de solidariedade com os seus semelhantes, como já percebia Marx (2009, p.64) no século XIX: o direito humano à liberdade [no viés burguês] não se baseia na vinculação do homem com o homem, mas, antes, no isolamento do homem relativamente ao homem. Aquela liberdade individual, assim como esta aplicação dela, forma a base da sociedade civil. Ela faz com que cada homem encontre no outro não a realização, mas a barreira da sua liberdade. O sentido burguês clássico de liberdade, portanto, consiste na possibilidade de acumular ganhos individuais, independentemente das conseqüências coletivas e sociais dessa concentração ilimitada de riqueza. Esse modo egoísta de conceber a liberdade está presente tanto na indiferença da sociedade brasileira do século XIX diante do sofrimento das pessoas escravizadas, em nome do respeito e da garantia ao direito de propriedade, quanto no isolamento social do sujeito neoliberal contemporâneo, guiado pelo senso de competição, pela meritocracia e insensível às contingências sociais. A partir da segunda metade do século XIX, “a intensificação da produção industrial/ 77 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER comercial, entre outros fatores, impulsionou a compressão do tempo-espaço” e, mais uma vez, a representação artística registra, divulga e alimenta esse fenômeno. O movimento impressionista iniciou a desconstrução das imagens, processo que se intensificou no Cubismo, “onde a fragmentação da figura contribui para surgir uma nova concepção espacial, através da qual se transmite a ideia da passagem do tempo, movimento e simultaneidades” (HARVEY, 2017, p. 241-245). Essa sensibilidade forjada ao longo da modernidade foi e é fundamental para o funcionamento do capitalismo, em todas as suas fases. Henry Ford (1862-1947), no contexto da modernidade tardia, racionalizou velhas tecnologias e, assim, aumentou a produtividade através da decomposição de cada processo de trabalho, fragmentando-o, de uma forma semelhante à representada pelo cubismo, nas artes plásticas. Segundo Harvey (2017) a reorganização fordista da produção transformou a maneira de trabalhar, padronizou procedimentos e produtos, levou à produção e ao consumo de massa, forjando uma nova estética, uma nova psicologia, onde o eu individual burguês já estava consolidado e hegemônico. Em resumo, forjou um novo tipo de sociedade racionalizada, modernista. Essa nova organização da produção forjou, ainda, uma divisão social, sexual e técnica altamente organizada do trabalho, um princípio da modernização capitalista e com ela trouxe o contexto do individualismo possessivo, o empreendimentismo, implicando na transformação necessária das relações sociais, onde aquele que produz e comercializa vê os outros em termos puramente instrumentais e a liberdade é concebida em termos cada vez mais individuais e egoístas. Aqui, a ficção do contrato de trabalho, da separação entre corpo e força de trabalho, mascara a exploração humana contida na relação de trabalho própria do sistema capitalista, consolidada a partir do séc. XIX. Essa ficção se consolida filosófica, econômica, social e culturalmente, tendo, por isso, a força de estar firmemente instalada na doxa, ou seja, no “conjunto de crenças usado rotineiramente pelo público leigo para pensar, mas poucas vezes, se tanto, objeto de reflexão” (BAUMAN, 2015, p. 41). Nessa lógica, as condições de trabalho e de vida, a alegria, a raiva ou a frustração que estão por trás da produção de mercadorias, os estados de ânimo dos trabalhadores, tudo isso está oculto de nós ao trocarmos um objeto (dinheiro) por outro (mercadoria). Como observa Harvey (2017) não podemos dizer ou mesmo imaginar, a partir da contemplação de um objeto no supermercado, as condições de trabalho que estiveram por trás da sua produção. Tudo isso se torna opaco para o conjunto da sociedade, uma vez que 78 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER não há impressões digitais da exploração nas mercadorias materiais e imateriais que consumimos a cada dia. Há estreita ligação, portanto, entre os movimentos artísticos, culturais, e as transformações próprias do capitalismo, em todas as suas fases, notadamente na naturalização da organização da produção própria desse sistema, que aliena o corpo que trabalha do resultado desse trabalho. A subjetividade que cria e ao mesmo tempo é criada por movimentos artísticos nas suas diversas formas, conforma e naturaliza as relações sociais, econômicas, políticas, familiares, enfim, forja uma visão de mundo adequada ao sistema capitalista de livre comércio, inclusive o “mercado de braços”. 3. Colonialidade do poder, racismo e escravidão. Dentro dessa sensibilidade engendrada pela modernidade se insere a criação do conceito de raças classificadas por traços geográficos, fenotípicos e culturais. A modernidade não se restringe às transformações ocorridas na Europa, é um processo forjado através da mundialização, ou seja, da chegada dos europeus em outros territórios do planeta para conquistá-los e dominá-los econômica, militar e culturalmente, movimento que levou à construção do sistema-mundo22, ao desenho das fronteiras e demarcação de territórios onde, mais tarde, foram instalados os conceitos e o modelo de Estado-Nação e de Direito próprios do sistema liberal europeu-estadunidense. Em linhas gerais, após a independência das antigas colônias européias formaram-se Estados Nacionais inspirados nos ideais liberais de liberdade e igualdade perante a lei. Contudo, para boa parte da população das antigas colônias isso não representou o fim do trabalho forçado, extenuante e degradante, o que decorre, em grande parte, da manutenção da hierarquia social, cultural, econômica e fenotípica, própria do racismo engendrado no curso da mundialização, da colonização européia além-mar, onde se via com naturalidade a exploração dos povos “inferiores”. Aníbal Quijano (2005) afirma a necessidade de um olhar interseccional para compreender a realidade específica da América Latina, fruto de múltiplas e heterogêneas hierarquias globais de dominação, por se tratar do primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial, com dois eixos fundamentais: a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, bem como, articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho de seus recursos e seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial. 22. “os paradigmas eurocêntricos hegemônicos dos últimos 500 anos conformaram o sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/ moderno; [...] o que chagou às Américas (no séc. XVI) foi uma enredada estrutura de poder mais ampla e mais vasta, que uma redutora perspectiva econômica do sistema-mundo não é capaz de explicar. De acordo com Rigoberta Menchu (Guatemala) e Domitila (Bolívia): chegou às Américas o homem heterossexual/ branco/ patriarcal/ cristão/ militar/ capitalista/ europeu.” (GROSFOGUEL, 2008, pp. 118 e 122). 79 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER A ideia de raça, segundo ele, foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferentes entre grupos, que situavam uns naturalmente inferiores em relação a outros. Nesse processo, traços fenotípicos e culturais, entre outros, foram usados para colocar os povos dominados numa situação “natural” de inferioridade e, assim, legitimar as relações de dominação impostas pela conquista. Mais uma vez as expressões artísticas difundem e consolidam as marcações raciais que colocam o homem branco europeu iluminista como referência de progresso, ética, beleza, bom gosto, arte e religião, ao mesmo tempo em que marcavam de modo pejorativo os referenciais não-europeus, tidos por atrasados, feios, etc. Além disso, na inédita articulação de todas as formas de controle de trabalho, deliberadamente estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial, se relacionava cada forma de trabalho com uma raça particular. Dava-se a constituição da Europa Ocidental como sede central do controle do mercado mundial: Enquanto isso, todas as demais regiões e populações incorporadas ao novo mercado mundial colonizado ou em curso de colonização sob domínio europeu permaneciam basicamente sob relações não-salariais ainda que desde cedo esse trabalho, seus recursos e seus produtos se tenham articulado numa cadeia de transferência de valor e de benefícios cujo controle cabia à Europa Ocidental. Nas regiões não-européias, o trabalho assalariado concentrava-se quase exclusivamente entre os brancos. [...] desde o começo da América, os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não-assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores [...] mão-de-obra descartável, forçada a trabalhar até a morte. (QUIJANO, 2005, p.119-120). Basicamente, o sistema colonial delegava aos africanos o trabalho escravizado e aos ameríndios a servidão, que resultavam em trabalho forçado, miséria e violência, enquanto aos brancos, “raça superior”, cabia o trabalho remunerado e o lucro com a riqueza gerada através do trabalho espoliado das “raças inferiores”. O colonizado foi forçado a aprender parcialmente os referenciais culturais dos dominadores em tudo que fosse útil para dominação, uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas, a cultura, como observa Aníbal Quijano (2005). Lélia Gonzalez (1984), ao pensar sobre o racismo e o sexismo na realidade específica do Brasil, também o percebe a ideia de raça como uma construção cultural colonial que 80 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER impõe uma pretensa superioridade européia aos dominados: Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo [...]. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências atuais o critério é o mesmo. Já o lugar do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos ‘habitacionais’ [...] basta que a gente pense nesse mito de origem elaborado pelo Mário de Andrade que é o Macunaíma. Como todo mundo sabe, Macunaíma nasceu negro, ‘preto retinto e filho do medo da noite’. Depois ele branqueia como muito crioulo que a gente conhece, que, se bobear, quer virar nórdico. É por aí que dá prá gente entender a ideologia do branqueamento, a lógica da dominação que visa a dominação da negrada mediante a internalização e a reprodução dos valores brancos ocidentais. Nesse sentido, “o conceito de raças inferiores serviu ao Ocidente branco para sua obra de expansão e conquista” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 57), o sentimento difuso de superioridade dos euro-americanos serve, ainda hoje, para justificar as relações fáticas de dominação na ordem mundial, tal como no colonialismo. Acredita-se, com isso, que é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utiliza-las, aos povos de “cultura superior”, honestos de berço, enquanto nós seríamos corruptos de berço, portanto, ineptos e indignos da nossa própria riqueza. A colonização da elite brasileira sobre toda a população só foi e ainda é possível pelo uso, contra a própria população, de um racismo travestido em culturalismo. “Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso” (SOUZA, 2017, p. 24). Mais uma vez se nota a interligação entre a dominação simbólica, cultural, artística e a dominação econômica e política nas sociedades modernas. Nessa perspectiva, o racismo se irradia nas mais diversas manifestações culturais e simbólicas, desde critérios estabelecidos para selecionar o conhecimento reconhecido como válido, que sempre convergem para confirmação científica da superioridade do branco europeu adotado como paradigma universal (colonização hermenêutica), até a desqualificação estética de tudo relacionado aos povos dominados. Esse racismo cultural, refletido em filmes, livros, 81 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER quadros, entre outras expressões simbólicas, atua na consolidação da subjetividade do homem moderno e contemporâneo, especialmente no sentido de naturalizar e, assim, invisibilizar a exploração extrema dos grupos sociais estigmatizados e já identificados com a realização de trabalhos subalternizados e rejeitados pelos que se acreditam “superiores”. O etnocentrismo colonial e a classificação racial universal ajudam a explicar porque os europeus foram levados a se sentir naturalmente superiores e, no mesmo caminho, como a “opressão tende a ser exercida, cada vez mais, por portadores de valores europeus, contra os pobres, africanos e índios” (SOUZA, 2017, p. 60). Essa constituição colonial peculiar do tempo-espaço que hoje conhecemos como América, notadamente no que se refere à imposição da raça e da cultura européias como superiores e, portanto, como o caminho natural da evolução humana, marcou profundamente o processo de constituição dos Estados pós-coloniais na América latina, que resultou em um paradoxo: Estados independentes e sociedades coloniais. (QUIJANO, 2005) Segundo Quijano (2005), nos casos de nacionalização bem-sucedida de sociedades e estados europeus, houve um importante processo de democratização como condição básica para a nacionalização dessas sociedades e a organização política do Estado-nação moderno. Essa democratização não aconteceu na maioria dos Estados modernos latinoamericanos, inclusive no Brasil, onde o processo de independência não representou melhoria da condição de vida da maioria da população, nem mesmo o fim da escravidão e da servidão para boa parte dela. O peruano J. C. Mariátegui (2010) foi um dos primeiros a perceber que a independência das colônias latino-americanas pouco significaria para grande parte da população, enquanto não fosse realmente enfrentado o poder dos grandes latifundiários e oligarcas – o gamonalismo, que perpetuava o “feudalismo colonial” através da hegemonia dos grandes proprietários de terra na política, no Estado, na religião e na cultura. Nas primeiras décadas do século XX o autor constatou que: Contra sua autoridade [do gamonalismo], favorecida pelo ambiente e pelo hábito, a lei escrita é impotente. O trabalho forçado está proibido por lei, no entanto, o trabalho gratuito, e até o trabalho forçado, sobrevivem no latifundio. O Juiz, o subprefeito, o comissário, o professor, o coletor, estão todos enfeudados à grande propriedade. [...] entre os primeiros atos da república, contaram-se várias leis e decretos favoráveis aos índios. Foi 82 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER ordenada a repartição das terras, a abolição dos trabalhos gratuitos, etc.; mas como a revolução não representou no Peru o advento de uma nova classe dirigente, todas essas disposições ficaram somente escritas com a falta de governantes capazes de aplicá-las. A aristocracia latifundiária da colônia, dona do poder, conservou intactos seus direitos feudais sobre a terra e, por conseqüência, sobre o índio.” (p. 55; 62). Na maioria dos países americanos a pequena minoria branca controladora dos Estados independentes e das sociedades pós-coloniais não sentiu nenhum interesse social comum com os índios, negros e mestiços. Ao contrário, seus interesses sociais eram explicitamente antagônicos com relação a eles, pois seus privilégios compunham-se precisamente do domínio e da exploração dessas gentes. Assim, do ponto de vista dos dominadores nas nações latinas, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia européia; os senhores latino-americanos não podiam investir em trabalho assalariado e livre, precisamente porque isso ia contra a reprodução de sua condição de senhores, a colonialidade de seu poder leva-os a perceber seus interesses sociais como iguais aos dos outros brancos dominantes, na Europa e nos Estados Unidos, consequentemente não podiam ser nada além de sócios menores da burguesia européia. (QUIJANO, 2005) Em resumo, a ideia eurocêntrica de racismo, que naturalizou a associação entre o trabalho exaustivo, degradante e não remunerado às raças inferiores, ou seja, não-européias, está na constituição dos Estados Nacionais pós-coloniais latino-americanos, onde a concretização do ideário liberal (forma republicana, sufrágio universal, etc.) não foi capaz de implementar uma cidadania efetiva para a maior parte da população, especialmente no que se refere à promessa liberal de trabalho livre e (dignamente) assalariado, com valor e condições do serviço ajustados mediante contrato firmado entre homens livres e iguais, até porque os homens livres, na prática, até hoje não são real e satisfatoriamente iguais. A produção cultural hegemônica reafirma esses referenciais, que vinculam os signos europeus ao progresso, ao conhecimento válido, à beleza, à seriedade ao comprometimento com a produtividade, reafirmando o destino “natural” dos brancos aos melhores postos de trabalho, enquanto os não-brancos são relacionados ao atraso, à crendice, à feiúra, à malícia, vadiagem e preguiça, alimentando uma subjetividade onde se acredita que os “trabalhadores pouco escolarizados e submetidos a jornadas extensas, devem ‘reparar’ a sua baixa produtividade com muito trabalho, em troca de qualquer emprego de baixa 83 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER remuneração e sem direitos elementares” (BARBERINO, 2014). Portanto, para compreender a perpetuação e a naturalização da extrema exploração das classes subalternizadas no Brasil, é necessário analisar a estreita ligação entre o racismo que hierarquiza os seres humanos e a colonialidade do poder, mantendo uma parte considerável da população latino-americana submetida a condições subumanas de trabalho e de vida. Para tanto, há de se observar o fenômeno social através dos seus aspectos raciais e de gênero, além das questões de classe: Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente porque a gente é preto. Prá gente que é preta então, nem se fala. [...] a escrava de cor [...] cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. [...] O amor para a escrava [...] tinha aspectos de verdadeiro pesadelo (GONZALES. 1984). O sociólogo Jessé Souza também identifica essa conformação social e política no estado brasileiro, constituída a partir de 1822 com a Independência e intensificada após a Abolição da escravatura em 1888 e a proclamação da República em 1889. É nesse período que os aspectos raciais se consolidam como justificativa científica e legal para a imposição de certas condições de trabalho para determinados grupos sociais, considerados inferiores, especialmente os escravizados e seus descendentes. Jessé Souza (2017) percebe que o liberalismo, no Brasil, não surge como demanda de setores burgueses, para garantir espaços de autonomia e ação contra uma ordem estamental e elitista. Ao contrário, o liberalismo aqui passa a ser o ideário do “mandonismo privado”23, concluindo que: Somos nós brasileiros filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana. Isso é herança escravocrata e não portuguesa. Por conta disso, até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas, como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacina contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc. (SOUZA, 2017, p. 208). 23. Por “mandonismo” o Jessé Souza (2017, p. 112) entende a vontade individual exercida sem limite externo, seja moral, religioso, institucional ou cultural; se estabeleceu como um “direito” de fato do senhor de terra e de escravos, como contrapartida tácita da colonização de terras estrangeiras e hostis fora de Portugal. 84 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER A indiferença de boa parte da população diante da degradação e hiper-exploração de certos grupos sociais é fruto desse processo de modernização brasileiro, que não debelou o corte ontológico típico escravismo, onde as pessoas são categorizadas em humanos e sub-humanos, constituindo-se uma sociedade estruturalmente “sadomasoquista”, ou seja, onde a dor alheia é indiferente e a perversão do prazer transforma-se em objetivo máximo das relações interpessoais. Os parâmetros racistas e patriarcais, consolidados desde o período colonial e imperial, se entrelaçam e reforçam as opressões de classe na sociedade brasileira, onde ser considerado homem branco era ser considerado útil ao esforço de modernização do país. Era (e continua sendo) um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais, que permitem e legitimam a visão de alguns como superiores e dignos de privilégios, e de outros como inferiores e merecedores de sua posição marginal e humilhante. A posse, real ou suposta, desses valores eurocêntricos e individualistas vai legitimar a dominação social de um estrato social sobre o outro, justificar os privilégios de uns sobre o outro, racionalizar a injustiça (SOUZA, 2017). Em resumo: No Brasil não há como separar o preconceito de classe do preconceito de raça. As classes excluídas em países de passado escravocrata tão presente como o nosso, são uma forma de continuar a escravidão e seus padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e superexploradas. [...] A ralé de novos escravos será não só a classe que todas as outras vão procurar se distinguir e se afastar, mas, também, vão procurar explorar o trabalho farto e barato. Isso vale para a classe do privilégio, a elite econômica, e a classe média, que monopolizam o capital econômico e o capital cultural e utilizam a ralé como se utilizavam os escravos domésticos. (SOUZA, 2017, p. 82; 103). Resgatar os alicerces das relações sociais brasileiras é fundamental para a compreensão da colonialidade do poder e também do saber como mecanismos através dos quais a elite local se identifica com os padrões brancos europeus e euro-americanos e não com os do seu próprio povo, gerando um mecanismo que possibilita a continuidade de formas coloniais de dominação, através de novas roupagens. Ainda hoje a visão dos países centrais acerca das relações de trabalho é adotada de modo acrítico, desprezando-se as peculiaridades da estrutura dessas relações engendradas pelo processo de modernização brasileiro, induzindo uma concepção de que a mera adoção do trabalho livre e subordinado, regido pelo Direito do Trabalho, estabelece um 85 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER contraponto e sepulta as relações de trabalho escravas e servis, que seriam por si só incompatíveis com a hegemonia do livre comércio. Porém, essa visão acaba por escamotear as múltiplas opressões que naturalizam a extrema exploração de certos grupos sociais, por considerá-las superadas com a simples adoção do trabalho próprio do sistema capitalista, ou seja, livre e subordinado e ajustado através de um contrato firmado entre pessoas abstratamente iguais. A doutrina pátria majoritária juslaboral, ao perpetuar o pensamento eurocentrico que estabelece esta pretensa diferença transhistórica entre trabalho escravo-servil e trabalho livre-subordinado, tratou de esconder as sobreposições entre tais formas de trabalho que ocorreram no Brasil colônia e suas respectivas articulações com raça e gênero, o que oculta, até hoje no Direito do Trabalho, sujeições interseccionais. [...] A distribuição simultânea do trabalho escravo, servil e livre na América colonial articulada com raça e gênero criou sujeições interseccionais ainda presentes na divisão laboral brasileira [...]. A exclusão de certos segmentos sociais dos espaços de poder, como legado colonial da distribuição desigual de funções laborais pré-configuradas conforme raça, classe e gênero, faz com que a entrada no mercado de trabalho brasileiro desses grupos – especificamente homens negros e, principalmente, mulheres negras – seja sempre precária, em posições subalternas, mal remuneradas, caracterizadas pela vulnerabilidade em termos de direitos laborais” (MURADAS e PEREIRA, 2018, p. 2131; 2134). Todos esses fatores levaram à construção de uma percepção negativa dos escravos e de seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo de forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas. Desse modo, se constituiu uma classe de humilhados para assim explorá-los por pouco e para constituir uma distinção pretensamente meritocrática contra quem nunca teve igualdade de ponto de partida, um verdadeiro recurso de desqualificação simbólica dos escravos e seus descendentes, um mecanismo muito eficiente para legitimar a exploração extrema e o desprezo pela dignidade de certos trabalhadores, associados basicamente aos africanos, ameríndios e seus descendentes. O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa por seu destino. Até o início do século XX esse mecanismo funcionou pela introjeção dos valores racistas próprios do sistema euro-americano de dominação dos territórios, que reforça essa visão de pessoas “inferiores” responsáveis pela própria 86 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER exploração. Hoje, uma concepção semelhante está presente na visão de mundo neoliberal, onde valores ultra-individualistas tecem uma verdadeira “capa de invisibilidade” ao redor do trabalho escravo contemporâneo. 4. Trabalho escravo contemporâneo e o sujeito neoliberal. A intensificação do desempenho como valor, aliada à visão de que o fracasso social de certos grupos se deve a escolhas equivocadas, “falta de empenho”, preguiça e falta de “capital individual” adequado dos próprios atingidos, gera a convicção de que a deficiência e os equívocos desse grupo devem ser compensados com trabalho duro, ou seja, exaustivo. Quanto à degradância, também é vista como resultado da inépcia, hábito ou tradição individual do trabalhador ignorante e incivilizado, ao invés de uma inadmissível forma de exploração do trabalho humano com finalidade lucrativa. Após a Revolução Industrial, a intensificação do trabalho decorreu da fragmentação e sobreposição de tempos/espaços, processo que se acelerou na pós-modernidade com a acumulação flexível e que hoje está naturalizado a ponto das pessoas sentirem como se o mundo sempre tivesse funcionado com a atual configuração e ritmo de compressão tempo-espaço (HARVEY, 2017). Essa subjetividade possibilita a articulação simultânea de diversas formas de exploração em benefício da economia de mercado, inclusive as consideradas “arcaicas”. A acumulação flexível parece enquadrar-se como uma combinação simples das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx [mais-valia absoluta e mais-valia relativa]. [...] Em condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade entre eles. [...] O ecletismo nas práticas de trabalho parece quase tão marcado, em nosso tempo, quanto o ecletismo das filosofias e gostos pós-modernos. [...] os recursos dos capitalistas na tentativa de promover o espírito de competição entre os trabalhadores, ao mesmo tempo que exigem flexibilidade e disposição, de localização e de abordagem de tarefas.” (HARVEY, 2017, p. 174-175). Outro fator que alimenta as piores formas de exploração do trabalhador é o vício do ser humano em objetos mercantis, uma tendência a ele próprio se tornar um objeto que vale pelo que produz no campo econômico, um objeto que será descartado quando tiver perdido a “performance”, percepção compatível com a lógica da exploração do 87 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER fazer humano em condições análogas a de escravo, onde o trabalhador é simplesmente descartado depois de perder sua utilidade, sua força e/ou sua saúde. Dardot e Laval (2018) observam que o neoliberalismo, além de ser uma ideologia, uma política, é também “um sistema normativo que ampliou sua influencia ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e todas as esferas da vida”. Disso decorre um conjunto de discursos, práticas, dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens e dos Estados segundo o princípio universal da competição medida pela eficiência e produtividade, regida pela lógica de mercado, que se generaliza como lógica normativa, levando as pessoas a estabelecerem transações ao invés de relações, na vida pessoal e social. Forma-se desse modo um ambiente de egoísmo social, com a negação da solidariedade e da redistribuição, onde impera a responsabilidade individual e o autocontrole. Há infinita responsabilidade do indivíduo por seu próprio destino, por sua capacidade de ser bem-sucedido e feliz, o que dependeria apenas do mérito individual da pessoa, que deve se comprometer plenamente, entregar-se por inteiro a sua atividade profissional, sendo mais que o um sujeito produtivo um homem responsável. É nessa medida em que se torna “natural” empenhar doze horas de trabalho por dia ou mais, o que passa a ser visto como responsabilidade do sujeito produtivo regido pela lógica da competição individual, e não mais uma exploração ilegal do trabalho humano. A sensibilidade própria do sujeito neoliberal oculta o racismo e o machismo que persistem na divisão social, sexual e internacional do trabalho, para assim legitimar a exploração do trabalho farto e barato das classes estigmatizadas, apontadas como responsáveis pela própria situação, seja pela falta de “cultura”, falta de “investimento” e de empenho pessoal na própria formação profissional. A associação de formas “violentas” e “livres” de trabalho, a sua articulação simultânea no tempo e no espaço, onde se enredam diferentes formas de trabalho para gerar riqueza em proveito exclusivo das empresas transnacionais, das elites das ex-colônias e de algumas Nações centrais, é dissimulada através de estratégias ideológico-simbólicas onde subjaz a cultura colonial racista. A responsabilidade daqueles poucos beneficiados por essa articulação fica nebulosa, opaca, na medida em que a hiper-exploração de trabalhadores brasileiros passa a ser vista como natural e justificada pelo “atraso” e pela “problemática”, próprios da região. 88 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER Enfim, os preconceitos sociais amparados na herança escravista e no culturalismo racista e sexista que dela brotou, encontram no atual neoliberalismo global um ambiente confortável para a postura complacente com o modo de acumulação ilimitada de riqueza através de trabalho precário, exaustivo, indigno e praticamente gratuito de outros seres humanos. Um sistema que prega como valor a superação infinita de si, uma subjetivação pelo excesso e que vê com naturalidade o exaurimento e a degradação daqueles grupos taxados como não capacitados para a concorrência no mercado de trabalho contemporâneo. 5. Considerações finais. Na atual fase do capitalismo neoliberal global, a subjetividade dominante, que fragmenta corpo e trabalho, tempo e espaço, ampara a intensificação ainda maior da produção e do ritmo de trabalho, uma vez que o funcionamento em rede das empresas transnacionais, por exemplo, “depende da abolição do âmbito espácio-temporal do trabalhador, através da fantasia da ubiqüidade que o transporta para um mundo virtual e um ‘tempo real’”. (SUPIOT, 2007, p. 163) É desse modo que a subjetividade do sujeito neoliberal, segundo a qual a desigualdade é natural, deslegitima a legislação social. Através dessa concepção de mundo as mazelas sociais não devem ser combatidas pelo Estado de bem-estar social, mas sim superadas pelo esforço individual de cada pessoa. Essa convicção leva que se veja o amparo social como vantagem indevida aos fracos, irresponsáveis que não teriam investido nos requisitos individuais necessários para vencer a competição generalizada, para “empreender”, atrapalhando na “seleção natural” dos mais aptos. Essa subjetividade se casa com o racismo e a colonialidade do poder na América latina, levando à naturalização do trabalho realizado em condições análogas a de escravo, ou seja, exaustivo, precário e/ou forçado, conforme previsão do art.149 do Código Penal Brasileiro, e que é realizado pelos grupos socialmente estigmatizados, atravessados por múltiplas opressões. Forma-se um ambiente onde florescem e se consolidam formas precárias de trabalho: Que implicam sujeição pelo trabalho, particularmente em segmentos sociais interseccionalmente marginalizados, que continuam em posições subalternas herdadas do colonialismo. O Direito do Trabalho brasileiro, ao assumir como único núcleo-neutro protetivo o paradoxal trabalho livre e subordinado, atribui direitos somente para aqueles que estão acobertados pela relação de 89 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER emprego, invisibilizando sujeições interseccionais articuladas pelas margens trabalho, derivadas de uma divisão racial-sexual laboral colonial, que se perpetua pela colonialidade do saber. [...] O pensamento moderno liberal eurocêntrico que permanece até hoje, legitimando e ocultando sujeições interseccionais provenientes do colonialismo, que se manifestam na massificada precarização das relações de trabalho de específicos segmentos sociais. (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 2136). A erradicação do trabalho realizado em condições análogas a de escravo não depende apenas de boas normas jurídicas que proíbam a prática, sendo necessário compreender as sujeições interseccionais que se camuflam no ambiente cultural, sustentadas pela subjetividade naturalizadora da degradância e da exploração até a morte de certos grupos sociais latino-americanos, identificados com raça, classe e gênero classificados segundo os parâmetros eurocêntricos como inferiores. 90 DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER Referências bibliográficas ALMEIDA, Margarida B. e SECCHIN, Cláudio. Trabalho escravo: um depoimento In: Trabalho escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira e FINELLI, Lília Carvalho (orgs.). Belo Horizonte: Editora RTM, 2015 - pp. 09-22. BAUMAN, Z. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2015. BARBERINO, Marcus. 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Os chamados funks proibidões são, há alguns anos, centro de discussões acerca da possibilidade jurídica de censura em detrimento de uma suposta apologia ao crime. No entanto, no últimos anos, outro tipo de expressão marginal tem sido atacada por grupos conservadores e ecoou nas instituições estatais, especialmente no Congresso e no Poder Judiciário. Em todas as manifestações silenciadas há uma expressividade antihegemônica, que confronta uma determinada moral ou normatividade dominante. As denúncias calcadas em suposta imoralidade e ilicitude nas obras surgem como estratégia de grupos que, através de exposições fragmentárias e descontextualizadas, criam narrativas fundadas em certos valores conservadores que encontram eco na sociedade e nas instituições estatais. Em alguns casos, quando o conflito é judicializado ou quando o Direito passa a ser o instrumento de “leitura” destes eventos, as narrativas jurídicas revelam em seu discurso visões conservadoras eivadas de conteúdo moralizante, semelhante aos expressados pelos movimentos que deram origem aos boicotes e censuras. A análise jurídica dos casos escamoteada por uma pretensão “puramente” dogmática ou técnica chancela por meio de instituições e aparatos estatais um conjunto de valores que historicamente se revela hegemônico. Muitas autoras e autores se esforçaram por demonstrar que por detrás do paradigma liberal clássico do Direito está a universalização de uma moral ocidental, masculina, branca, cristã, burguesa e cisheteronormativa24. Para a realização deste artigo partimos do entendimento do discurso como mecanismo de poder e de representação do “Outro”. Longe de ser uma manifestação passiva da linguagem, o discurso enquanto prática social define certos grupos sociais como “outros” e “outras” a partir de lugares de poder e dominação25. Neste sentido, pretende-se analisar como as instituições através de um conjunto de 24. Entre muitos outros, conferir: HINKELAMMERT, F. La inversión derecho. The Politics of Law (Nueva York, Pantheon, 1990), pp. 452- de los derechos humanos: el caso de John Locke. En: El vuelo de 467. Traducción de Mariela Santoro y Christian Courtis. Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la razón Liberal. Joaquín Herrera Flores, editor. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000; SMART, 25. CURIEL, Ochy. La nación heterossexual: Análisis del discurso Carol: La teoria feminista y el discurso juridico. In: El derecho en el jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dom- genero y el genero en el derecho. Cedael. Editorial Biblos. Buenos inación. Bogotá:Brecha Lésbica y en la frontera, 2013, p. 28 Aires, Argentina. Septiembre, 2000; OLSEN, Frances. El sexo del 92 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA valores articulam narrativas através do Direito capazes de silenciar (ou não) expressões periféricas. Como metodologia, elegemos o diamante ético criado por Herrera Flores por possibilitar uma análise interacional destes três elementos26. Sendo assim, na primeira parte deste estudo apresentaremos de forma resumida algumas das principais interdições que ocorreram por todo o país com objetivo de compreendêlas em um contexto amplo de ataques. Em seguida, partindo da compreensão do discurso jurídico como uma prática social ativa, analisaremos à luz do diamante ético como as instituições do Estado podem articular determinados valores e/em narrativas com objetivo de violar ou garantir a dignidade humana, elemento central dos direitos humanos. 1. Boicotes e censuras A interdição policial da performance do paranaense Maikon K em julho de 2017 prenúncio da tsunami conservadora e criminalizante que se espalhou pelo país. Durante a apresentação de “DNA de DAN” na programação oficial do circuito cultural “Palco Giratório” do Sesc, o artista foi abordado pela Polícia Militar do Distrito Federal e encaminhado à delegacia de polícia onde assinou um termo circunstanciado por “ato obsceno27”. Em seguida, outra interdição, desta vez judicial, do espetáculo “O Evangelho segundo Jesus Rainha do Céu” impediu que o espetáculo se apresentasse no Sesc Jundiaí. A censura fez com que em algumas cidades por onde o espetáculo passou fossem propostas demandas judiciais com objetivo de impedir a apresentação. Quase na sequência, ocorreu o fechamento precoce da exposição “Queermuseum – cartografias da diferença” em Porto Alegre sob as acusações de “vilipêndio de objeto religioso”28, “incitação ao crime” e “apologia ao crime”29, “pedofilia”30 e “zoofilia”31 em alguns trabalhos expostos. 26. HERRERA FLORES, Joaquin. A reinvenção dos Direitos Humanos. meses, ou multa” e “Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso Tradução de Carlos Roberto, Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa”. Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. 30. Embora não haja previsão legal do tipo penal de “pedofilia”, as condutas 27. O tipo penal está descrito no artigo 233 da seguinte forma: “Praticar relacionadas a esse tipo de prática estão previstas, entre outros, nos artigos ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena 240 a 241-E do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e 217-A, 218 e 218-A - detenção, de três meses a um ano, ou multa”. do Código Penal. Neste caso, o suposto crime envolveria as práticas descritas no artigo 240: Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por 28. O “Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo” qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança está descrito no Art. 208 do Código Penal da seguinte forma: Escarnecer ou adolescente: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”. de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar 31. De forma semelhante, não há previsão legal do tipo penal de zoofilia. publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês Neste caso, argumentou-se que algumas obras faziam apologia ao a um ano, ou multa. Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é crime de maus-tratos de animais, previsto no artigo 32 da Lei 9.605/98 aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. (Lei de Crimes Ambientais): Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos 93 29. Os artigos 286 e 287 trazem a descrição dos tipos penais de “Incitação ou exóticos: §1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência ao crime” e “Apologia ao crime”, respectivamente entendidos como: “Art. dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis científicos, quando existirem recursos alternativo”. LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Após o fechamento da exposição em Porto Alegre, houve uma tentativa de leva-la ao Museu de Arte do Rio (MAR) no Rio de Janeiro, que foi vetada pelo prefeito Marcelo Crivella ao afirmar que a mostra só viria para a cidade se fosse “para o fundo do mar”.32 Quatro dias após a polêmica em torno da Queermuseu, a obra intitulada “Pedofilia” da artista Alessandra Cunha foi retirada do Marco (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul) pela Polícia Civil, acusado de incitar um crime que, na verdade, ele denuncia. A obra foi apreendida e devolvida ao curador no dia seguinte, mas não voltou a ser exposta.33 Algumas semanas depois, no final de setembro de 2017, a performance “La bête” foi suspensa no Museu de Arte Moderna em São Paulo. O coreógrafo e performer Wagner Schwartz realizou a performance inspirada na obra “Bicho”, de Lygia Clark, na mostra “Brasil em Multiplicação” onde seu corpo poderia ser tocado pelo público. Após a divulgação de um vídeo onde uma mãe e sua filha menor de idade interagem com o artista nu, a obra passou a sofrer acusações de incentivo à pedofilia.34 No início de outubro a exposição LGBT Curto Circuito foi suspensa dois dias antes de sua inauguração no Castelinho do Flamengo. A retirada seletiva e sem qualquer comunicação de algumas obras do Coletivo FLSH sobre nus que expressam a diversidade entre os corpos, fez com que alguns artistas ocupassem o espaço cultural.35 Um manifesto redigido coletivamente exigia, entre outras demandas que Secretaria Municipal de Cultura: “2. Divulgue imediatamente onde estão as obras da exposição Curto-Circuito” e “3. Informe oficialmente qual foi a classificação para retirada de algumas obras;”.36 Esses eventos narrados acima são somente alguns dos acontecimentos mais recentes que envolvem a censura de expressões LGBTQIA.37 Todos os eventos narrados acima tem em comum a tentativa de apagamento de identidades desviantes, ou seja, não-cisgeneras e não-heterossexuais, não conformadas com expressões hegemônicas de sexualidade. Mais do que isto, em todos os casos utiliza-se como estratégia de silenciamento um discurso criminalizante que mobiliza categoriais penais como “ato obsceno”, “vilipêndio de objeto religioso”, incentivo a “pedofilia” e “zoofilia”. 32. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilus- condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança trada/2017/10/1923483-so-se-for-para-o-fundo-do-mar-diz-crivella- a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita”. sobre-queermuseu-no-rio.shtml Acesso em 10 jan. 2018. 35. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/artistas-de33. Disponível em https://www.campograndenews.com.br/lado-b/ nunciam-sumico-de-obras-sobre-violencia-e-diversidade-sexu- artes-23-08-2011-08/artista-tentou-combater-o-machismo-e-a-pedo- al-no-rj/ Acesso em 12 jan. 2018. filia-mas-foi-julgada-no-cadafalso Acesso em 12 jan. 2018. 36.A íntegra do manifesto pode ser encontrada em: http://teatro34. O dispositivo penal mobilizado neste caso foi o previsto no artigo emcena.com.br/home/artistas-ocupam-castelinho-do-flamen- 241-D: “Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por go-em-protesto-contra-censura/ Acesso em 12 jan. 2018. qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela prati- 94 car ato libidinoso. Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 37. Ainda em outubro, a exposição “Faça Você Mesmo sua Capela Sisti- Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: I – facilita ou induz na” do artista Pedro Moraleida no Palácio das Artes em Belo Horizonte o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou por- foi invadida por um grupo que tentou impedir pessoas de visitarem a nográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; II – pratica as exposição. No entanto, a exposição não foi fechada ao público. LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Em alguns casos houve uma resposta institucional por parte do Poder Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público, que se manifestaram sobre a existência de crimes ou práticas que justificassem a interdição do evento. A resposta de artistas veio através de atos de resistência pontuais, na frente de museus ou em locais públicos, (como o ocorrido na abertura do Festival de Cinema do Rio)38 e a partir de um movimento horizontal em resposta à onda de interdições, os protestos se passaram a adotar o lema “Censura nunca mais”. Em 2018, os artistas censurados Elisabete Finger, Wagner Schwartz, Maikon K e Renata Carvalho realizaram a peça “Domínio Público” com objetivo de “pensar e agir a partir das situações de censura e dos julgamentos apressados e cheios de preconceitos que envolveram os nossos trabalhos no ano passado”. 2. A censura como violação de Direitos Humanos Para elaborar uma análise que leve em consideração algumas das intersecções presentes na disputa de narrativa sobre a criminalização da arte elegemos o “diamante ético”, desenvolvido por Herrera Flores. Para o autor “a maior violação aos direitos humanos consiste em impedir que algum indivíduo, grupo ou cultura possa lutar por seus objetivos éticos e políticos mais gerais; entre os quais, se destaca o acesso igualitário aos bens necessários ou exigíveis para se viver dignamente”. Como exemplos de violação Herrera Flores cita o impedimento do acesso de imigrantes à cidadania ou de mulheres à educação ou à saúde. De forma semelhante, consideramos o impedimento de determinadas formas de expressão como uma violação da dignidade humana, elemento central do “diamante ético”. Descritos por Herrera Flores de forma ampla como “preferências individuais ou coletivas, majoritárias ou minoritárias, a respeito de alguma coisa, bem ou situação social e que permitem manter relação com os outros” os valores constituem o elemento central da analise que estamos propondo.39 Isto porque é a partir da compreensão que diferentes grupos têm sobre moralidade ou o que é ou deve ser a arte que o conflito se estabelece. De um lado, grupos de conservadores, especialmente religiosos, veem nas manifestações artísticas em questão uma ofensa a determinados valores e costumes. De outro, identidades historicamente oprimidas por mesmo conjunto de valores ligados à moral cristã (hegemônica) e à cishetenormativiade se expressam de maneira direta ou não a esses valores. Algumas obras fazem menção direta ao conjunto de valores cristãos, com releituras consideradas profanas de figuras sagradas como o quadro “Cruzando Jesus Cristo com o deus Shiva”, de Fernando Baril (de 1996) exposto na Queermuseu ou o espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu”. 38. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/festival-do-rio-2017-protestos-contra-censura-se-intensificam-no-segundo-dia-de-premiere-brasil-21922916 Acesso em 15 jan. 2018. 39. HERRERA FLORES, Op. Cit., p. 120. 95 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Em outros casos, como na performance “La bete” no MAM-SP a moral religiosa cristã é mobilizada: é através desta matriz de valores que a nudez é lida. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, a nudez é marcada em nossa cultura por uma forte tradição teológica. Não podemos, portanto, falar de nudez sem pensar em sua mediação com a noção do pecado. Adão e Eva, nus no paraíso, não se davam conta de sua própria nudez, pois viviam em estado de graça. A nudez original era aquela de não haver nada escondido para o outro: “E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam”40. Porém, ao pecarem, a primeira coisa que percebem é que estavam nus. Sentem, pela primeira vez, vergonha: “Então os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; em seguida entrelaçaram folhas de figueira e fizeram cintas para cobrir-se”41. O pecado original inaugura uma nova visão da interdição dos corpos, da vergonha do corpo nu. 40. Gênesis 2:25 41. Gênesis 3:7. 96 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Esta mediação com a interdição nos dá pistas valiosas acerca da criminalização da nudez. Só existe, para a cultura cristã, o nu derivado do pecado. Qualquer possibilidade de exposição parte desta matriz de inteligibilidade. Para Agamben, a nudez “é sempre desnudamento e pôr a nu, ou seja, nunca forma e posse estável. Em todo caso, difícil de ser apreendida, impossível de ser contida”.42 O artista nu (também no sentido não literal, do artista que desvela através de sua arte) ou a obra nua não expõe somente a si. Expõe principalmente quem vê e é obrigado a reagir com seu repertório, com sua caixa de ferramentas morais. A exposição fortuita do espectador por vezes vem seguida de reações animalescas: tal como Adão e Eva agarram rapidamente folhas para taparem sua intimidade, também o espectador exposto, posto nu, responde instintivamente ao ato. A nudez da obra expõe a limitação daqueles que só entendem os corpos mediados pelo pecado original. Não há outro nu possível para este: o nu não obsceno, não pornográfico não existe.43 Outras obras que foram alvo de protestos e censuras expressam identidades não conformadas com o padrão cisheternormativo e corpos não-normatizados, como o quadro “Travesti da lambada e deusa das águas”, de Bia Leite exposto na Queermuseu ou as fotos do coletivo FLHS censuradas pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. 42. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. 43. “BENTES, IVANA. O corpo não pornográfico existe. Revista Cult, 2 out. 2017. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corpo-nao-pornografico-existe/ Acesso em 20 abr. 2021”. 97 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA A articulação desses valores em narrativas mobilizam um conjunto de expressões LGBTQIA historicamente reprimidas e legadas ao silêncio, à patologização ou à criminalização. A afirmação dessas identidades sempre teve na arte um espaço luta e questionamento da moral vigente. Em uma das faixas expostas nas grades do Castelinho do Flamengo lia-se a seguinte frase, que também foi utilizada como abertura do manifesto dos ocupantes: “A arte é o exercício experimental da liberdade”. Não por coincidência, esta súbita interdição de um espaço público da maior importância para a cultura carioca, ocorre na mesma semana em que o Prefeito Marcelo Crivella publicou um vídeo atacando a exposição QueerMuseu e expressando, de forma inequívoca, que coloca suas convicções religiosas acima do interesse público da população do Rio de Janeiro. Este movimento, que hoje ocupou o Castelinho e que pretende manifestar-se em outros espaços da cidade, reafirma que não aceita a censura às artes que tem ocorrido de forma sistemática no país, afetando a cultura livre e divulgando uma série de mentiras e absurdos para criar preconceitos e disseminar o ódio. Neste sentido, após cinco horas de ocupação pacífica, democrática e organizada da área externa do Castelinho, saímos do local, mas expressamos a nossa pauta de lutas, que nos manterá mobilizados de forma crescente.44 44. Trecho do manifesto dos ocupantes do Castelinho do Flamengo. Disponível em: http://teatroemcena.com.br/home/artistas-ocupam-castelinho-do-flamengo-em-protesto-contra-censura/ Acesso em 30 jan.2018 98 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Para Herrera Flores as narrações são “as formas como definimos as coisas ou situações; modos a partir dos quais as coisas ou situações nos são definidas; e, também, a forma pela qual nos dizem como devemos participar das relações sociais”. O fazer artístico historicamente constituiu-se como um dos principais espaços de luta por direitos e resistência através de formas alternativas de agir, pensar os valores e construir narrações plurais, dissonantes e críticas. A onda conservadora que tenta silenciar essas expressões mobiliza categorias morais, patológicas (como pedofilia e zoofilia) e criminais (como vilipêndio de objeto religioso e outras exemplificadas acima) para “conquistar” e silenciar um dos maiores espaços de existência e resistência de minorias. A narrativa da imoralidade ou ilicitude é construída de forma fragmentária com ataques individualizados e sistemáticos que retiram do contexto determinadas obras para construir uma narrativa que esteja de acordo com o conjunto de valores que se pretende exaltar. A estratégia de produção de uma narrativa de criminalização serve para a manutenção de uma determinada forma de vida, que exclui qualquer expressividade desviante. A parte final deste estudo tem como objetivo verificar como essas narrações são (re) produzidas pelas instituições estatais com a finalidade de garantir ou cercear direitos. As instituições são definidas por Herrera Flores no diamante ético como “normas, regras e procedimentos que articulam hierárquica e burocraticamente a resolução de um conflito ou satisfação de uma expectativa”.45 A institucionalidade é encarada como um importante espaço de luta, de mediação nos quais se cristalizam os resultados sempre provisórios das lutas sociais pela dignidade. O espetáculo “O evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu” sofreu algumas tentativas de censura por meio de demandas judiciais. A estratégia, aplicada em várias das cidades pelas quais a obra passou, consistia na distribuição de uma ação judicial na maioria das vezes de “obrigação de não fazer” com pedido liminar de antecipação de tutela. Na cidade de Jundiaí, a decisão em caráter liminar, do juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível da cidade no dia 15 de setembro de 2017 concedeu o pedido ao considerar que figuras religiosas e sagradas não podem ser “expostas ao ridículo”, fixando multa no valor diário de R$ 1.000,00 (mil reais). Desse cenário extrai-se, portanto, que a tutela de urgência almejada comporta deferimento, uma vez que, muito embora o Brasil seja um Estado Laico, não 45. HERRERA FLORES, Op. Cit., p. 121. 99 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA é menos verdadeiro o fato de se obstar que figuras religiosas e até mesmo sagradas sejam expostas ao ridículo, além de ser uma peça de indiscutível mau gosto e desrespeitosa ao extremo, inclusive. De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas. Não se trata aqui de imposição a uma crença e nem tampouco a uma religiosidade. Cuida-se na verdade de impedir um ato desrespeitoso e de extremo mau gosto, que certamente maculará o sentimento do cidadão comum, avesso à esse estado de coisa.’ Vale dizer, não se pode produzir uma peça teatral de um nível tão agressivo, ainda que a entrada seja franqueada ao público. (...) Não se olvida a liberdade de expressão, em referência no caso específico, a arte, mas o que não pode ser tolerado é o desrespeito a uma crença, a uma religião, enfim, a uma figura venerada no mundo inteiro. Nessa esteira, levando-se em conta que a liberdade de expressão não se confunde com agressão e falta de respeito e, malgrado a inexistência da censura prévia, não se pode admitir a exibição de uma peça com um baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a invadir a existência do senso comum, que deve sempre permear por toda a sociedade. (a grafia em letras maiúsculas se encontra assim na decisão original)46 A decisão deixa evidente o suposto desrespeito à fé cristã pelo simples fato da interprete de Jesus Cristo ser uma atriz travesti. De acordo com o julgador, há uma ofensa quando o “HOMEM SAGRADO”, “figura venerada no mundo inteiro” e pelo “senso comum”, “seja encenado como um travesti”. O que o espetáculo propõe não é somente a encenação “como um travesti”, mas por uma travesti. A identidade real da atriz não é um mero acaso. Adaptado da obra da dramaturga inglesa Jo Clifford, o espetáculo tem como argumento “e se Jesus vivesse nos tempos de hoje e fosse uma mulher transgênero?”. A obra problematiza a opressão e a intolerância sofridas por pessoas trans* e minorias em 46. Decisão liminar proferida nos autos do processo 1016422-86.2017.8.26.0309 Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.foro=309&processo.codigo=8L0006G240000 Acesso em 03 nov. 2017 100 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA geral na sociedade ao recontar passagens bíblicas sob uma perspectiva contemporânea, destacando que a mensagem cristã é de amor, perdão e aceitação. No dia 3 de outubro foi concedido um efeito suspensivo da decisão liminar, mas a peça não voltou a ser encenada na cidade. Em nota publicada na página virtual do espetáculo, a diretora Natalia Mello expôs o caráter silenciador da primeira decisão judicial: Todas as situações de violência que passamos tiveram algo em comum: contestam a presença de uma travesti em cena interpretando Jesus. Afirmar que a travestilidade da atriz representa em si uma afronta à fé cristã ou concluir, antes de assistir o trabalho, que é um insulto à imagem de Jesus é, do nosso ponto de vista, negar a diversidade da experiência humana, criando categorias onde algumas experiências são válidas e outras não, algumas vidas tem valor e outras não. São os discursos e práticas que tornam o Brasil um país extremamente desigual, e um território inóspito para quem vive fora da normatividade branca, cisgênera e heterossexual.47 Em seguida, o espetáculo seguiu para Porto Alegre, onde outro pedido para cancelamento de exibição foi solicitado. A demanda judicial foi movida pelo advogado Pedro Geraldo Cancian Lagomarcino Gomes contra a Prefeitura de Porto Alegre que é a responsável pela promoção do festival, e contra a Pinacoteca Rubem Berta, onde a peça seria apresentada nos dias 21 e 22 de setembro de 2017. De acordo com o resumo da demanda presente na sentença, o autor afirmou que a peça é financiada com recursos públicos, advindos do Pró-Cultura RS, Prefeitura de Porto Alegre e Ministério da Cultura. Para o autor, ao trazer a figura de Jesus Cristo representada por um travesti, propondo seu retorno na “condição”(sic) de transexual, a peça afronta os costumes religiosos. Por fim, requereu, liminarmente, que fosse suspendida a exibição da peça teatral. Na sentença, o juiz indefere o pedido liminar sem fazer uso de qualquer dogmática com o argumento central de que “a liberdade de expressão tem de ser garantida e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano”: Não se pode simplesmente censurar a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – 47. Disponível em: https://www.facebook.com/jesusrainhadoceu/posts/1523817404330896 Acesso em 03 nov. 2017 101 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano. O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade preservada. A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe – fato notório – uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa. Ao Juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura. Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar. Não, ao Juiz não compete censurar a fé ou sua ausência. A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual, homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência, não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro. Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher, de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante. Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim, uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema, possível arriscar que erra o autor quando afirma “ isso não é arte” E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais”. (grifos nossos)48 48. Decisão liminar proferida nos autos do processo 9038978-35.2017.8.21.0001. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-peca-porto-alegre-evangelho.pdf Acesso em 03 nov. 2017 102 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA A laicidade do Estado serviu como justificativa para em dois momentos e cidades diferentes – Belo Horizonte e Salvador respectivamente – se conceder e indeferir o pedido de tutela de urgência para suspender da exibição da peça teatral. Em Belo horizonte o pedido de suspensão foi feito por Leonardo Junqueira, André Dellisola Denardi e David de Hollanda, mas foi negado pela juíza Cláudia Maria Resende Neves Guimarães, titular da 28ª Vara Federal. A liberdade de expressão encontra limite tão somente na manifestação do pensamento de ódio, não podendo o Estado contribuir, com sua inércia, para a disseminação do preconceito contra minorias estigmatizadas, criando um ambiente de hostilidade entre os diversos grupos que compõem a sociedade. No caso do Brasil, a Constituição obriga o estado a combater o preconceito e a discriminação, inclusive por meio da criminalização do discurso de ódio. (...) Não vislumbro, na hipótese, qualquer indício de que a peça teatral contenha manifestação de pensamento contrária ao ordenamento jurídico brasileiro ou ofensa à dignidade da pessoa humana, cingindo-se a insurreição dos autores tão somente a juízos de valor de patente subjetivismo, à semelhança de uma crítica de arte, exercício que, embora nobre, nem ao menos tangencia a função do Poder Judiciário. Não cabe ao Estado limitar o exercício da liberdade de expressão, direito constitucionalmente assegurado, sem que haja comprovação de prática de ilícito penal ou civil por meio de discursos de ódio, sob pena de se instalar, novamente, o obscuro período de censura estatal sob a roupagem de judicialização da arte. Ademais, quanto à “ofensa à fé cristã”, a laicidade do Estado é elemento estruturante da própria ideia de república democrática e plural, previsto no art. 19, I, da CF/88, o Poder Público é obrigado a adotar uma posição de neutralidade em relação aos inúmeros credos e religiões professados em seu território, isto é, de equidistância em relação a todos e adesão a nenhum. Nesse ponto, ressalto que o Estado brasileiro, como consequência natural de seu processo de democratização, preza pela realização do pluralismo religioso, cabendo ao juiz rechaçar qualquer pretensão que possa implicar hegemonia de 103 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA uma única religião ou atentado à multiplicidade de manifestações religiosas e pensamentos. Um Estado plural e tolerante só conseguirá sê-lo se seus cidadãos zelarem por uma separação entre a esfera pública (entenda-se aqui o âmbito intersubjetivo submetido à normatividade estatal) e a esfera privada, deixando de levar à primeira matérias cujo âmbito se restringe à segunda. A lógica do pluralismo é justamente a não intervenção naquilo que é restrito à esfera individual. (grifos nossos)49 Neste caso, argumenta-se que a laicidade obriga o Estado a se manter neutro e equidistante diante de demandas religiosas. A concessão da ordem, de acordo com o entendimento da magistrada implicaria no fortalecimento da hegemonia de uma única religião. Em Salvador, a peça, que integrava a programação do FIAC (Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia), um dos festivais de teatro mais tradicionais do país, teve sua apresentação suspensa. A decisão liminar da 12ª Vara Cívil de Salvador foi concedida e impediu que a peça fosse apresentada no Espaço Cultural da Barroquinha com multa diária de R$1.000.000,00 (um milhão de reais). O magistrado fundamenta igualmente a concessão da ordem na laicidade do Estado, que tem o dever de “proteger amplamente a liberdade religiosa” e na impossibilidade de se eliminar expressões religiosas que compõem as raízes da cultura brasileira. Na contramão da decisão de Belo Horizonte, a laicidade entendida como o respeito por parte do Estado de toda expressão religiosa obrigaria uma ação estatal no sentido de não impedir uma vivência religiosa ou uma ação hostil ao fenômeno religioso. Ao fazermos um juízo de valor cauteloso, prudente e provisório em relação aos documentos de fls.23/24, na qual especificou os dias da apresentação da peça, chega-se a ilação de que, provavelmente, as partes suplicantes se encontram em situação de prejuízo nos seus interesses jurídicos. O princípio da laicidade comporta o respeito de toda confissão religiosa por parte do Estado. Laicidade, corretamente entendida, significa que o Estado deve proteger amplamente a liberdade religiosa tanto em sua dimensão pessoal como social, e não impor, por meio de leis e decretos, nenhuma verdade especificamente religiosa ou filosófica, mas elaborar as leis com base nas verdades morais naturais. O fundamento do direito à liberdade religiosa se encontra na própria dignidade da pessoa humana. Um Estado não deve tenta 49. Decisão liminar proferida nos autos do processo 1007943-39.2017.4.01.3800. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/pje/ConsultaPublica/ DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=8a3dfec31d173b0b41868ae54b2d6df49e4f81d5d2d2c937 Acesso em 1 fev. 2018. 104 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA impedir a vivência religiosa do povo, especialmente o Cristianismo, com uma ação hostil ao fenômeno religioso e a tentativa de encerrá-lo unicamente na esfera privada. Ao que parece a parte acionada desrespeitou o princípio constitucional no art. 5.º, inciso VI, da Constituição Federal a qual dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religioso se garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. Compreendo que não se pode tentar, assim, eliminar os símbolos/crenças religiosos mais tradicionais do povo, com narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes. (grifos nossos)50 Apesar do deferimento do pedido de suspensão o espetáculo foi realizado em outra localidade na cidade de Salvador, no Instituto Cultural Brasil Alemanha (ICBA). A brecha encontrada na proibição para a realização do espetáculo se baseou na justificativa de que a decisão vinculou somente a Fundação Gregório de Mattos, pólo passivo na ação. Sendo assim, a decisão vetou apenas aquele espaço específico não vinculando o Festival (FIAC) e a produção do espetáculo. Nas quatro decisões judiciais supracitadas as instituições judiciárias mobilizaram narrativas com valores antagônicos para duas vezes conceder e indeferir as demandas pela suspensão da apresentação. Nas decisões, os/as magistrados/as mobilizaram argumentos normativos e principiológicos para justificar o dever de agir ou não agir do Estado. Em um dos casos, a decisão por não utilizar a dogmática é expressa “sem citar um único artigo de lei vamos garantir a liberdade de expressão”. Em todos os casos a violação da “dignidade da pessoa humana” foi iluminada para garantir o direito a liberdade de expressão ou o direito a liberdade de culto – neste último caso sob o argumento de que a ofensa à fé violaria dignidade humana dos devotos das religiões cristãs. O Direito com sua inerente imperatividade surge como uma poderosa estratégia de alguns grupos para, amparados na construção de determinadas narrativas, impedir que expressões “outras” possam existir publicamente, em espaços de arte. Como vimos, essas narrações encontram ecos institucionais de forma contingente em alguns magistrados. A arte enquanto exercício experimental da liberdade passa a ser controlada e patrulhada por grupos conservadores que encontram respaldo nas instituições – no caso o Poder Judiciário – para interpretá-la à luz de um dever ser moral e legal. O resultado da estratégia censora é reservado ao acaso. 50. Decisão liminar proferida nos autos do processo 0566408-05.2017.8.05.0001. Disponível em: http://www.correio24horas.com.br/fileadmin/user_upload/correio24horas/2017/10/27/doc_23148754.pdf Acesso em 2 fev. 2018 105 LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. CURIEL, Ochy. La nación heterossexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Brecha Lésbica y en la frontera, 2013. HERRERA FLORES, Joaquin. A reinvenção dos Direitos Humanos. Tradução de Carlos Roberto, Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. HINKELAMMERT, F. La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke. En: El vuelo de Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la razón Liberal. Joaquín Herrera Flores, editor. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000; OLSEN, Frances. El sexo del derecho. The Politics of Law (Nueva York, Pantheon, 1990), pp. 452-467. Traducción de Mariela Santoro y Christian Courtis. SMART, Carol: La teoria feminista y el discurso juridico. In: El derecho en el genero y el genero en el derecho. Cedael. Editorial Biblos. Buenos Aires, Argentina. Septiembre, 2000. “BENTES, IVANA. O corpo não pornográfico existe. Revista Cult, 2 out. 2017. Disponível em: https:// revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corponao-pornografico-existe/ Acesso em 20 abr. 2021”. 106 El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria articulación de luchas sociales Manuel E. Gándara Carballido Resumen El trabajo aborda el necesario aporte que el pensamiento crítico en derechos humanos debe brindar a una práctica de diálogo de saberes y de articulación de luchas sociales, identificando para ello la urgencia por superar la fragmentación del conocimiento sobre la realidad en que ha incurrido la modernidad occidental, condenando así tanto a los intelectuales como a colectivos de activistas que luchan por la transformación social, al empobrecimiento de sus prácticas y al desperdicio de sus experiencias y aportes, con un significativo costo para las luchas emancipatorias. Palabras clave: pensamiento crítico, derechos humanos, heterarquía, luchas sociales. Introducción Necesitamos nuevos horizontes teóricos que acompañen las luchas que se vienen llevando adelante en nombre de los derechos humanos. De esta necesidad da cuenta el progresivo distanciamiento con el discurso hegemónico (liberal) de los derechos por parte de muchos de los actores que protagonizan estas luchas. De resolver o no este conflicto depende no sólo la coherencia teórica de muchos activistas y el potenciamiento de sus prácticas, sino también la misma recuperación del potencial político del discurso de los derechos humanos, y por tanto su pertinencia histórica (Santos: 1997). No deja de crecer entre diversos actores sociales el malestar ante la ambigüedad en el uso del discurso de los derechos humanos, toda vez que este discurso es utilizado tanto por quienes intervienen a favor de los intereses del sistema de relaciones sociales organizado en función de la lógica de acumulación capitalista, como por los grupos que llevan adelante diversas luchas en contra de ésta lógica y de sus efectos sobre vastos sectores de la población. Así, si por una parte se reconoce a los derechos humanos el valor que tienen en diversos procesos de liberación, al mismo tiempo es necesario afirmar que éstos sirven también discurso a favor de los intereses del capitalismo globalizado. 107 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO Sin desconocer la legitimidad que el discurso que los derechos humanos ha alcanzado, y su capacidad de convocatoria y movilización social a favor de las luchas por una vida digna, la ambigüedad antes mencionada, que puede ser denunciada como el secuestro de la narrativa de los derechos en función de los intereses de las clases sociales que detentan el poder y de la ideología y la cultura dominantes, hace necesario un proceso de reapropiación de la narrativa de los derechos que permita recuperar todo su potencial emancipador. La lucha por los derechos incluye la lucha por la forma de enunciarlos En el análisis que nos proponemos es necesario prestar atención a los derechos humanos como artefacto discursivo, atendiendo a los modos en que dicho discurso es usado con diferentes propósitos, bien para potenciar la indignación y las luchas, bien para legitimar el orden asimétrico imperante. Más allá de su uso formal como instrumento jurídico destinado a garantizar las conquistas, los derechos se constituyen también en un referente simbólico que brinda orientación y da marco a múltiples luchas a nivel mundial (Cfr. Santos: 2012, p. 193), sirviendo, por tanto, de herramienta discursiva legitimadora. Sin embargo, este uso que podemos denominar de estratégico, requiere de discernimiento. En general, podemos afirmar que “los derechos humanos son pasivamente asumidos como significante compartido y culturalmente aceptado, contribuyendo así a un imaginario social difuso de la categoría de derechos humanos entendida como homogénea” (Santos: 2012, p. 203). Así, aun cuando los movimientos sociales hacen uso del discurso de los derechos humanos evidenciando su potencial político emancipador, ello no niega la necesidad de someter a discernimiento crítico dicho concepto. Al respecto, Helio Gallardo describe la manifestación de este fenómeno en el contexto latinoamericano en los siguientes términos: Las instituciones jurídicas latinoamericanas y las lógicas que las animan, así como la enseñanza académica del Derecho y la práctica, con el inevitable sentido común que las acompaña, de las ONGs interesadas en derechos humanos, están fuertemente permeadas por ideologías de Derecho natural, ya sea el de inspiración clerical, o clásico, por provenir del Mundo Antiguo, ya sea del iusnaturalismo o derecho natural moderno. Para estos imaginarios ideológicos, conceptos/valores como el de justicia poseen un carácter metafísico, es decir, flotan por encima de las tramas sociales y las deshistorizan como función de la reproducción de las dominaciones vigentes y necesarias y de sus instituciones e identificaciones grupales e individuales inerciales, estas últimas como dispositivos internalizados o subjetivos imprescindibles para esa reproducción. (Gallardo: 2008, p. 429) 108 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO Se hace necesario, por tanto, analizar los usos ideológicos de la narrativa de los derechos, realizando así una crítica del discurso hegemónico liberal que conforma a nuestras sociedades. Una concepción de derechos construida a partir del ocultamiento de los procesos de lucha, que niegue la dimensión socio-histórica en su forma de comprenderlos, invisibiliza a los actores sociales y sus causas, construyendo una compresión de los derechos despolitizada. Igualmente, una concepción de derechos descontextualizada impide comprender las interrelaciones entre las dimensiones social, política, económica, cultural, etc. Debe entenderse que, dado que a nuestra práctica siempre le subyace una formulación teórica, y que la política es la administración de las expectativas del futuro, la acción política busca controlar el lenguaje sobre el cual se construyen dichas expectativas. Las palabras construyen mundo, construyen subjetividades y definen programas de comprensión e intervención en la realidad. Implican, por tanto, una construcción política. Sin este discernimiento crítico no hay posibilidad de autonomía ni de futuros alternativos. De cara a los retos que se nos presentan, es necesario despensar y repensar las cosas, las palabras, los conceptos que utilizamos para apropiarnos de esa realidad que queremos transformar. No nos sirven los discursos construidos desde los centros de poder, pues quien controla los nombres y las categorías, quien controla el discurso, está en capacidad de construir e imponer su comprensión de la realidad. Al mismo tiempo, para un correcto análisis del contexto, es necesario comprender la cultura como constitutiva de la sociedad. Dado que la cultura configura la dimensión simbólica de la práctica social, funcionando en un circuito estructural que relaciona lo político, lo económico y lo simbólico, será importante atender a su potencial emancipador. Los distintos enfoques en el análisis del contexto, aun cuando no versen explícitamente sobre su componente cultural, dejan claro que sin una transformación a este nivel se hace inviable un cambio en las relaciones de poder y una superación de la postura hegemónica. Este aspecto resulta significativo dada la capacidad de influencia que tienen en la dimensión cultural los actores alternativos al modelo dominante. De esta manera, una teoría crítica de los derechos humanos debe atender a los contextos, a los discursos, a las representaciones desde las cuales la realidad es comprendida, analizada e intervenida; ha de preguntarse por las formas de hacer viable este cambio cultural; procurará construir herramientas teórico-prácticas capaces de desmontar las narrativas desde las cuales la globalización neoliberal coloniza las concepciones de ser humano, de mundo, de sociedad y de Estado, desde las cuales esta nueva cara del capitalismo define un horizonte de (sin)sentido. Al mismo tiempo, la teoría crítica en derechos humanos ha de asumir una tarea propositiva capaz de visibilizar, provocar, convocar y articular otros modos de ser, de significar y de transformar la realidad, poniendo a dialogar las múltiples formas socio-culturales desde las cuales se intenta 109 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO hacer posible un mundo más justo y digno para todos y todas. La transformación de la hegemonía cultural exige intervenir en el sistema de creencias, en el lenguaje, en el conocimiento. Se parte de unas condiciones concretas que conforman la realidad social que nos demanda una respuesta, y sobre la que la acción tiene un potencial transformador. Frente a ello, el desafío cultural, tal y como propone Herrera Flores, es el desarrollo de subjetividades rebeldes capaces de confrontar el sentido común imperante “irrumpiendo intempestivamente en lo real (Herrera: 2005. pp. 17-45).” Para esta tarea, “lo más urgente es contar con una nueva capacidad de espanto y de indignación que sustente una nueva teoría y una nueva práctica de inconformismo desestabilizadora, es decir, rebelde (Santos: 2003, p. 57).” Todo ello apunta a la configuración de un nuevo imaginario social inconformista y creativo, crítico y lúcido (Cfr. Herrera: 2007). Pero este proceso deberá necesariamente superar la reductiva concepción propia de la racionalidad abstracta moderna, incorporando los afectos, las sensaciones, las pasiones y la búsqueda de sentido: Se trata de nuevas constelaciones donde se combinan ideas, emociones, sentimientos de espanto y de indignación, pasiones de sentidos inagotables. Son monogramas del espíritu puestos a la disposición de nuevas prácticas rebeldes e inconformistas. (Santos: 2003, p. 66) La práctica social a favor de los derechos humanos exige no sólo una formulación teórica atractiva, una idea convocante y movilizadora, requiere también tener sustento en los afectos y emociones de la gente, sostenerse en la capacidad para apasionar y vincular desde los quereres, convocando a la totalidad de la persona. El reto consiste en ser capaces de ofrecer propuestas lúcidas, lúdicas y sabias. A partir de la necesidad de reconocer el discurso como ámbito de disputa en la construcción de la realidad social, desarrollaremos en seguida algunas críticas a elementos que subyacen a la teoría liberal de los derechos humanos y que requieren particular atención por parte de los actores implicados en procesos de liberación. Superar la fragmentación de lo social para seguir pensando críticamente A continuación nos proponemos dar cuenta de un aspecto que consideramos central para la praxis de los derechos humanos; nos referimos a la necesidad de estructurar una forma de pensar la realidad y, por tanto, de asumir las luchas por transformarla, que haga posible superar la fragmentación a que ha conducido la perspectiva cognitiva hegemónica en la modernidad occidental. Tal y como señala el sociólogo Edgardo Lander, 110 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO miembro del grupo de investigación modernidad/colonialidad, tal fragmentación de las estructuras cognitivas, que él asigna concretamente al pensamiento liberal, subyace a las separaciones que operan en nuestra forma de entender los ámbitos de la realidad y en los mismos saberes disciplinarios con que nos acercamos a ella (Cfr. Lander: 2006, p. 59). El pensamiento crítico tiene por delante el desafío de ser capaz de develar, discernir, visibilizar y desestabilizar el sistema de dominación múltiple (hablamos de relaciones de dominación en diversos ámbitos de la vida, pero que existen de manera interconectada: de clase, de etnia, de género, etaria, de dominio sobre lo libidinal y de la naturaleza) que define a nuestras sociedades y que, como parte de su configuración de poder, logran presentarse como racionales, naturales, necesarias e inmodificables (Cfr. Solórzano: 2010, p. 8). El pensamiento crítico debe enfrentar el desafío que implica superar la fragmentación de las formas de saber y la artificiosa separación de los ámbitos de la realidad; ello le ayudará a comprender las interrelaciones entre las distintas formas de opresión, exclusión, subordinación y explotación que operan en nuestras sociedades, favoreciendo de esa manera el trabajo de articulación y traducción de las distintas luchas contrahegemónicas que se vienen adelantando en el mundo. En este sentido, como es sabido, apunta el concepto de interseccionalidad formulado desde el feminismo anglosajón para evidenciar las diversas formas de discriminación a que son sometidas las mujeres a partir de los múltiples ejes de identidad y opresión, impactando sobre la posibilidad de su acceso a derechos y oportunidades (Cfr. AWID: 2004, pp. 1-8). Según muestra Lander, el pensamiento hegemónico occidental representa lo sociohistórico a partir de una visión “compartimentada” del mundo; se conciben así las dimensiones política, social y económica como si éstas fuesen dimensiones autónomas, asignándole además a cada una de ellas una disciplina del saber encargada de su estudio: la economía se encarga del mundo de la producción de mercado, la ciencia política de lo político y el estado, y la sociología de lo social (Cfr. Lander: 2004, p. 171). A partir de esta separación de ámbitos es posible el mecanismo que supone la autonomía teórica e ideológica de las decisiones políticas con respecto de la economía (Saul: 2000, p. 109). La fragmentación de los ámbitos de vida actúa y se refuerza desde la segmentación disciplinar que opera en el campo de los saberes, y hace necesario transitar hacia enfoques realmente interdisciplinarios y transdisciplinarios que hagan frente a los moldes que rigen la organización dominante del conocimiento; sólo así será posible avanzar hacia un saber social que rompiendo con los actuales parámetros ideológicos, teóricos y metodológicos, se aventure por nuevos caminos. (Zemelman: SD, p. 7). Por eso resulta particularmente significativa la denuncia que Atilio Borón dirige a la manera en que esta estrategia de control del conocimiento social se encuentra instalada en el mundo académico: 111 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO La academia rechaza, por lo tanto, al intelectual, es decir, a quien traspasa con su pensamiento universal las absurdas y caprichosas fronteras disciplinarias que separan la sociología, la ciencia política, la antropología, la economía y la historia, como si en la vida real de los pueblos y las naciones la sociedad, la política, la cultura, la economía y la historia fuesen “cosas” separadas o compartimientos estancos que pudieran ser inteligibles en su espléndido aislamiento. Desoyen, de este modo, el consejo de Gramsci cuando advertía sobre los riesgos de hipostasiar lo que no son, ni pueden ser, otra cosa que distinciones meramente metodológicas. ¿Qué más artificial y artificioso que la separación en “departamentos” disciplinarios que terminan por deseducar a nuestros estudiantes, convirtiéndolos en nuevos bárbaros del conocimiento? A pesar de las apariencias, existen grandes diferencias entre un académico y un intelectual. Este rechaza por completo la validez de las fronteras disciplinarias, inclusive de la “multidisciplinariedad” porque cree, por el contrario, en la “unidisciplinariedad”, es decir, en un saber integral y unificado que es lo único que permite reproducir, en el plano del pensamiento, la totalidad compleja y siempre cambiante de la vida social. (Borón: 2009, p. 130) Esa nueva perspectiva epistemológica que reclama Borón se hace urgente ante la constatación de que la fragmentación disciplinaria funciona como mecanismo de “naturalización de la realidad” (Lander: 2006, p. 59), imposibilitando aquellas “otras” realidades que por su carácter fronterizo desbordan a la racionalidad disciplinar (Cfr. Fornet-Betancourt: 2001, p. 57). Según hacen ver Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel, al analizar los aportes de determinadas corrientes críticas de innegable significación, los propios teóricos poscoloniales anglosajones, así como los estudiosos del sistema-mundo, incurren en este centramiento en alguna dimensión de la realidad en desmedro de otras, inclinándose a favor de lo cultural, los primeros (aun reconociendo como hacen la importancia de prestar atención a las estructuras económicas), y a favor de la dimensión económica, en el segundo caso (aunque asuman los discursos racistas y sexistas como propios del discurso capitalista) (Castro-Gómez y Grosfoguel: 2007, p. 15). Esa misma crítica es realizada por Payne en los siguientes términos: Dado que esos diversos movimientos longitudinales dentro de los estudios culturales proceden a demostrar un sexismo, colonialismo, etnocentrismo o racismo predominante dentro de las diversas disciplinas de las humanidades y las ciencias sociales, cada uno a su vez presenta su proyecto crítico como el medio más efectivo o legítimamente universal de exponer un etnocentrismo métodológico que opera en la producción del conocimiento. (Payne: 2002, p. XXIV) 112 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO De igual manera, desde el pensamiento feminista se acusa a la teología de la liberación, y al propio pensamiento decolonial, de no prestar la atención necesaria a la perspectiva de género en sus análisis sobre las formas de opresión social (Cfr. Mendoza: 2010, pp. 24 y 30). En este contexto, y frente al desconocimiento de las diferencias raciales, sexuales, étnicas, etc., que caracteriza al capitalismo global, Santos llama la atención sobre la importancia de atender a la relación de reforzamiento mutuo entre la materialidad de las relaciones sociales y políticas, y los discursos, ideologías y prácticas simbólicas, siendo necesario asumir análisis complejos que integren las diversas dimensiones de la realidad, y desarrollar criterios analíticos que permitan comprender y empoderar las luchas económicas, sociales, políticas o culturales, sin establecer prioridades entre ellas (Santos: 2008, pp. 59-60). Además, a propósito de la referida invisibilización de las diferencias y desigualdades, propia de la comprensión hegemónica de nuestras sociedades, este mismo autor advierte del papel que en tal ocultamiento juega el Estado moderno: La supuesta inconmensurabilidad entre diferentes formas de desigualdad y de dominación está en la base del Estado monocultural moderno, pues torna creíble la igualdad jurídico-formal de los ciudadanos: como las diferencias son múltiples (potencialmente infinitas) entre los ciudadanos y no se acumulan, es posible la indiferencia con relación a ellas. (Santos: 2010, pp. 86-87) Ante este panorama, el giro decolonial propuesto por el grupo modernidad/colonialidad plantea la necesidad de que el proceso de segunda descolonización (luego de la muy limitada primera experiencia que fue restringida a lo jurídico-político), se dirija a “la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas” (Castro-Gómez y Grosfoguel: 2007, pp. 16-17). Precisamente por ello, en lugar de hablar de “sistemamundo capitalista”, como hiciera Wallerstein (1991), prefieren hablar de “sistema-mundo europeo / euro-norteamericano capitalista / patriarcal moderno / colonial” (Grosfoguel: 2005). Este llamado de atención sobre la necesidad de una comprensión “heterárquica” de las estructuras de poder-dominación nos parece sumamente valioso para el desarrollo de un pensamiento crítico en derechos humanos. Más allá de la clásica jerarquización de los ámbitos de la realidad entre estructura y superestructura, se propone entender que la articulación entre los regímenes de poder conforma lo que el sociólogo Kyriakos Kontopoulos denomina una “heterarquía” (1993); de esta forma, se conciben las estructuras sociales desde un pensamiento heterárquico que posibilite una comprensión de la realidad en la que no prime una sola jerarquía de poder. En los términos de CastroGómez y Grosfoguel: 113 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO Necesitamos un lenguaje capaz de pensar los sistemas de poder como una serie de dispositivos heterónomos vinculados en red. Las heterarquías son estructuras complejas en las que no existe un nivel básico que gobierna sobre los demás, sino que todos los niveles ejercen algún grado de influencia mutua en diferentes aspectos particulares y atendiendo a coyunturas históricas específicas. En una heterarquía, la integración de los elementos disfuncionales al sistema jamás es completa, como en la jerarquía, sino parcial, lo cual significa que en el capitalismo global no hay lógicas autónomas ni tampoco una sola lógica determinante ‘en última instancia’ que gobierna sobre todas las demás, sino que más bien existen procesos complejos, heterogéneos y múltiples, con diferentes temporalidades, dentro de un solo sistema-mundo de larga duración. En el momento en que los múltiples dispositivos de poder son considerados como sistemas complejos vinculados en red, la idea de una lógica ‘en última instancia’ y del dominio autónomo de unos dispositivos sobre otros desaparece. (2007, p. 10) Se pretende así dotarnos de herramientas de análisis que permitan una comprensión de la realidad sociohistórica capaz de articular las diversas relaciones de poder: las relaciones coloniales y postcoloniales, la explotación de clase propia del sistema capitalista, el sexismo y el racismo, entre otras (Cfr. Santos: 2009a, pp. 287-288). Esa complejización del análisis, repetimos, es una de los aportes fundamentales que se hace desde el giro decolonial, al poner en evidencia cómo “el proceso de incorporación periférica a la incesante acumulación de capital se articuló de manera compleja con prácticas y discursos homofóbicos, eurocéntricos, sexistas y racistas” (Castro-Gómez y Grosfoguel: 2007, pp. 18-19). Repetimos que éste es un aporte que consideramos fundamental para el desarrollo del pensamiento crítico en general y para un pensamiento crítico en derechos humanos en particular. El énfasis que hacemos en esta propuesta tiene como base el entendido de que hoy en día nos encontramos en el momento propicio para la producción de otros discursos, fruto de las luchas que han llevado adelante los distintos sectores sociales históricamente oprimidos, y ahora emergentes, quienes gracias a su historia de resistencia y al saber que subyace a su experiencia de organización y movilización, pueden hoy dar forma a tales discursos. Un pensamiento y una forma de pensar que permita articular las luchas Necesitamos construcciones teóricas que nos permitan comprender el conjunto de desafíos que se nos presentan en los procesos emancipadores; construcciones que sin pretender una teoría total o universal, nos permitan superar la fragmentación de los 114 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO ámbitos de la realidad social y de las luchas que buscan su transformación. Es necesaria una reconstrucción teórica que contribuya a la constitución de una base de convergencia de las luchas, las iniciativas, de los movimientos sociales. En palabra del sociólogo Edgardo Lander: Es esto lo que define hoy los mayores retos políticos de las resistencias anticapitalistas, y la reivindicación de las emancipaciones humanas: las articulaciones múltiples entre esta diversidad de comunidades, sujetos, organizaciones y movimientos que hoy se incluyen bajo la denominación de movimiento en contra de la globalización neoliberal. El reconocimiento de esta diversidad humana exige igualmente el reconocimiento de la rica multiplicidad de formas y regímenes del saber humano y la imposibilidad de postular la primacía o privilegio epistemológico de cualquiera de estos, sea a nombre de la ciencia o a nombre de la vanguardia (2012, pp. 41-42). Como consecuencia concreta de no intentar invisibilizar o subordinar ninguna dimensión de la realidad dando prioridad a algún factor específico de ella, el pensamiento crítico estará en mejores condiciones para brindar su aporte a la necesaria articulación y traducción entre las distintas luchas emancipatorias. Pero, para ello, es necesario, como decíamos, dejar atrás la pretensión de encontrar un principio particular de transformación social y un determinado colectivo como el agente o sujeto de liberación total (Cfr. Santos: 1999, p. 201). Tal principio único no existe y la pretensión de ofrecer una explicación total que estructure y organice el conjunto de las resistencias no sólo resulta errónea sino sumamente peligrosa para las propias luchas sociales, por impedir a los distintos actores reconocerse en sus propias prácticas y, desde ahí, poner en común sus formas de resistencia y las aspiraciones desde las que dotan de sentido su realidad (Cfr. Santos: 1999, p. 203). Tal y como plantea Santos: Ninguna teoría unificada puede, eventualmente, traducir el inmenso mosaico de movimientos, luchas e iniciativas de una manera coherente. Bajo el paradigma revolucionario moderno, la creencia en una teoría unificada estaba tan afianzada que los diferentes movimientos revolucionarios tuvieron que adherirse a las descripciones más simples de su realidad empírica, a fin de que encajaran con las exigencias teóricas… En lugar de una teoría que unifique la inmensa variedad de luchas y movimientos, lo que necesitamos es una teoría de traducción, es decir, una teoría que en lugar de dirigirse a crear otra realidad (teórica) por encima y además de los movimientos, intente conseguir crear un entendimiento mutuo, una mutua inteligibilidad entre éstos para que se beneficien de las experiencias de los otros y para que se interconecten entre ellos (2009b, p. 571). 115 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO Se pretende, pues, un quehacer teórico que facilite la traducción de las luchas, que haga puente entre los saberes que desde esas luchas se construyen, que posibilite aprendizajes compartidos. Este quehacer se nos presenta como desafío a un pensamiento crítico que hasta ahora no ha sabido ofrecer ese servicio a la emancipación social, posibilitando que las tensiones y contradicciones entre los diversos colectivos que luchan sean trabajadas favoreciendo la articulación entre los movimientos de distinta índole, promoviendo alianzas en las que ningún actor se sienta excluido o subordinado a las lógicas, necesidades e intereses de otros actores o de identidades diversas (Cfr. Santos, 2011). Más allá de las dudas en torno a la posibilidad de formular un modelo explicativo de la realidad y su construcción histórica, el pensamiento crítico se enfrenta a desafíos muy significativos en torno a la manera de estructurar y articular las luchas. Es necesario un modo de pensar que permita confrontar las formas de control biopolítico impuestas desde el capital globalizado, y construir alternativas que, reconociendo las múltiples formas de hacer posible la vida digna, generen un proyecto amplio e inclusivo de mundo en el que quepan muchos mundos. El método de trabajo debe permitir pensar las prácticas sociales creando lugares de encuentro y debate donde cada uno de los actores implicados pueda hacer ver su mundo y horizontes de sentido y hacer valer sus necesidades e intereses. Si bien es cierto que la capacidad de articulación entre las alternativas a la globalización neoliberal se han incrementado, un análisis materialista de los derechos humanos no puede desconocer la brutal asimetría de fuerza y capacidad de control simbólico existente entre las propuestas subalternas y el poder hegemónico. Todo lo planteado sobre la necesidad de superar una concepción fragmentada de los ámbitos de la realidad y la segmentación disciplinaria del saber, tiene claros correlatos en la forma de concebir la lucha por los derechos humanos, toda vez que éstos son, de hecho, una realidad pluridimensional (Cfr. Fariñas Dulce: 1997, p. 57), por lo que requieren de análisis complejos, de definiciones transdisciplinarias y de luchas articuladas que respondan a los diversos mecanismos en que las dinámicas de subordinación se posibilitan y retroalimentan. Tal y como plantea la profesora Fariñas Dulce, es necesario acercarse a dichas luchas por los derechos considerándolos no como mero objeto cognitivo, sino como campo cognitivo; aproximación que los hace susceptibles de distintas perspectivas de análisis y diferentes métodos de comprensión. Pensar los derechos humanos desde este nuevo marco contribuirá a enfrentar las trampas teóricas e ideológicas que subyacen a la concepción hegemónica que sobre estos derechos ofrece el pensamiento liberal, apoyando de esta manera las luchas por transformar las relaciones de poder que constituyen nuestro momento sociohistórico; esto es, relaciones de explotación, racismo, patriarcado, fetichismo mercantil, colonialidad, exclusión, subordinación, marginación, etc. (Cfr. Santos: 2011). 116 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO La consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz heterárquica de poder encuentra desarrollos posibles con una concepción de derechos humanos que no limite las luchas a un ámbito específico de lo social, sino que formule una noción capaz de acoger la diversidad de procesos. Al fin y al cabo, como bien dice Herrera Flores: Bajo la convención terminológica derechos humanos lo que subyacen son los diferentes y plurales procesos históricos de lucha por la dignidad humana. Siendo el contenido de ésta, toda forma de acción antagonista contra la división social del trabajo y de los roles cotidianos que coloca a unos en posiciones privilegiadas en relación con los bienes necesarios para la vida y a otros en marcos de desigualdad, de subordinación y de falta de medios para llevar al debate público sus pretensiones de vida digna. Es decir, paralelamente a nuestra denuncia de los procesos de división social del trabajo y del acceso a los bienes, hay que reflexionar sobre cómo ir actuando política, social y teóricamente para hacer visibles esas otras dominaciones (la creación de espacios de visibilidad) que no son más que otras formas –junto a la dominación de clase y la constatación de que unas y otras se entrelazan sistemáticamente- de secuestrar la capacidad humana de hacer y de actuar con el objetivo de transformar el mundo (la creación de espacios de lucha) (2005, p. 151). El discurso liberal sobre los derechos humanos desmoviliza a los actores sociales simplificando los fenómenos, fragmentando y aislando las luchas, a la vez que homogeneiza los modos de entender a la humanidad; así mismo, invisibiliza a los sujetos sociales arrebatándoles el protagonismo en la construcción histórica de los derechos, en un claro intento por contrarrestar la construcción de poder que esas luchas les permite construir. Para ir concluyendo… Son amplias y lamentables las consecuencias de una aproximación ingenua por parte de los actores sociales con respecto a los instrumentos con los que comprenden la realidad y a partir de los cuales definen los modos de intervención en ella. Consideramos que los costos de tal ingenuidad pueden ser demasiado altos en términos prácticos y de contradicción ideológica. Las teorías no son meros conjuntos de relaciones entre conceptos; ellas funcionan como marco de comprensión, condicionando nuestra aproximación a la realidad, nuestra valoración de ella y la manera en que entendemos si podemos o no transformarla. Por ello, cuando se plantea la necesidad de una opción teórica específica, se hace apuntando más allá de esa misma teoría, atendiendo a sus consecuencias prácticas en los distintos 117 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO ámbitos de acción. La crítica de la teoría liberal de los derechos humanos, y de la concepción liberal del derecho en general, puede servir a los actores sociales comprometidos con la transformación social para repensar el horizonte de su práctica, de manera que la misma no quede atrapada en los límites que establece esta concepción de lo jurídico. Si bien es necesario mantener la lucha en el plano del derecho, es igualmente necesario ir creando otras formas de garantía de tipo político, social, económico y cultural, que sirvan para anclar los logros que se van alcanzando en el marco de la lucha social. Las claves ofrecidas por el pensamiento crítico pueden resultar de particular significación en los procesos de lucha por una vida digna, en la medida en que buscan ofrecer a los colectivos que emprenden tales luchas herramientas que contribuyan al discernimiento crítico de las teorías subyacentes a sus prácticas, y de los efectos que tales teorías acarrean. Consideramos que éste puede ser un aporte a ser considerado por los sujetos implicados en procesos de transformación social, quienes frecuentemente dan cuenta en su discurso de diversas concepciones de derechos humanos, que en ocasiones llegan a ser contradictorias. Esta diversidad de concepciones, más que a una opción teórica explícita por parte de los colectivos y movimientos sociales, responde con frecuencia a la inercia propia de cierto activismo, en la que los diferentes discursos se van sobreponiendo sin que exista el conveniente debate en torno al marco teórico que los alimenta. Para quienes están implicados en las diversas luchas por la emancipación social, resulta de particular importancia determinar hasta qué punto su práctica se ha visto frenada por un análisis de la realidad y por un marco teórico que no se corresponden con sus objetivos de transformación social, ni sus opciones éticas, políticas e ideológicas. Así, de manera coherente con lo que entendemos debe ser la labor de una teoría crítica de los derechos humanos y con sus claves epistemológicas, cuestionamos el marco conceptual de los derechos humanos que ha venido imperando, por considerar que éste dificulta las necesarias prácticas sociales de promoción y defensa de los derechos en el actual contexto histórico. En este mismo sentido, asumimos los derechos humanos como el resultado de procesos de lucha sociales y colectivas, en la búsqueda por construir espacios que hagan posible el empoderamiento de los sujetos, de manera tal que puedan formular y llevar adelante una vida digna, a partir de sus diferenciados horizontes socioculturales. Frente a los postulados que sostiene el discurso liberal hegemónico, el concepto de derechos humanos ha de asumirse siempre en proceso de construcción y necesitado de contextualización e historización, de complejización y de atención a la pluralidad humana. La reinvención de los derechos humanos estará así inscrita en los diversos contextos socio-históricos en los que desarrollan sus prácticas quienes pretendan llevar a cabo las diversas formas de lucha emancipatoria; será, por tanto, una producción 118 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO contextualizada que supere las lógicas fragmentadas y de razonamiento lineal. Esta historización del quehacer teórico asegurará que la misma, evitando ejercicios de idealización, pueda entrar en diálogo y enriquecerse con las formulaciones surgidas desde otros contextos y prácticas. En este marco, la consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz heterárquica de poder contribuye con los posibles desarrollos de una concepción de derechos humanos que no limite las luchas necesarias a un único ámbito de lo social, sino que formule una noción capaz de acoger los diversos procesos en curso en los distintos campos de la realidad. El ejercicio realizado en este trabajo ha querido dar cuenta de la posibilidad y de la necesidad del diálogo de saberes y de prácticas; además de identificar la urgencia por superar los compartimientos estancos en las formas de concebir y actuar a que la fragmentación del conocimiento sobre la realidad social ha condenado tanto a los intelectuales como a los colectivos de activistas que luchan por la transformación de la realidad; todo ello ha llevado tanto a unos como a otros a un empobrecimiento de sus prácticas y a un desperdicio de sus experiencias y aportes, con un significativo costo para sus luchas. 119 MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO Referências bibliográficas AWID- Association for Women’s Rights in Development (2004) “Intersectionality: A Tool for Gender and economic Justice”, Women´s Rights and Economics Change, 9 (Disponible en www.awid.org/Library/ Intersectionality-A-Tool-for-Gender-and-EconomicJustice2). BORÓN, A. 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Calin51: uma proposta de estudo descolonial sobre as relações étnico-raciais e o anticiganismo na sociedade brasileira Phillipe Cupertino Salloum e Silva Resumo: A forma como os povos ciganos de diferentes partes do mundo interagem na sociedade majoritária revela a continuidade da classificação social do mundo a partir da raça/etnia, sobre novas bases, no contexto pós-colonial. No Brasil, onde se especula existir mais de meio milhão de pessoas ciganas, especialmente da etnia calon, essa população está associada a baixos indicadores sociais, como educação, saúde e moradia. Este trabalho científico pretende, com base em duas situações concretas acompanhadas pelo autor, analisar os argumentos adotados pelo Ministério Público Federal para arquivarem duas denúncias de racismo envolvendo mulheres calins, de modo a refletir sobre o pensamento jurídico brasileiro e, ao mesmo tempo, as possíveis permanências racistas, ciganofóbicas, patriarcais e classistas na sociedade brasileira. Almeja-se, simultaneamente, pensar as teorias decoloniais, situando os povos ciganos enquanto sujeitos dos direitos humanos. A pesquisa de campo, do ponto de vista metodológico, intercala a observação participante do autor, na condição de advogado e educador popular, na defesa dos direitos humanos dos calons, entrevistas (informais) a uma revisão bibliográfica. Conclui-se que a necessidade de uma análise descolonizadora e crítica sobre o anti- ciganismo implica considerar que esse fenômeno social foi e é estruturante para a conformação da modernidade, do capitalismo e, ao mesmo tempo, para a naturalização da ideia de superioridade branca eurocentrada. Entretanto, apontar as contradições do sistema de justiça e a ineficiência protetiva dos direitos humanos em face das relações étnico-raciais envolvendo pessoas identificadas como ciganas é uma medida ainda inicial e será limitada, caso a luta anticiganismo não seja pensada de forma interseccional, assumida por toda sociedade e articulada a projetos políticos pautados na transformação da realidade em benefício do povo. Palavras-chave: Mulheres ciganas. Direitos Humanos. Relações étnico-raciais. Pensamento jurídico. Resumen: La forma en que los pueblos gitanos de diferentes partes del mundo interactúan en la sociedad mayoritaria revela la continuidad de la clasificación social del mundo a partir de la raza, sobre nuevas bases, en el contexto poscolonial. En Brasil, donde se 51. Calin significa mulher cigana na língua falada pelo povo Calon, a maior etnia cigana do território brasileiro, que, somada aos ciganos Rom e aos Sinti, é estimulada a existir mais de quinhentas mil pessoas. Os Calons são os ciganos associados à diáspora ocorrida a partir da Península Ibérica, foram os primeiros ciganos a chegarem no território brasileiro, a partir do século XVI. (BRASIL, 2013). 122 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA especula que hay más de medio millón de personas gitanas, la mayoría de los calons y las calins, esta población está asociada a bajos indicadores sociales, como educación, salud y vivienda.. Este trabajo científico pretende, con base en dos situaciones concretas acompañadas por el autor, analizar los argumentos adoptados por el Ministerio Público Federal para archivar dos denuncias de racismo que involucra calins,de modo a reflexionar sobre el pensamiento jurídico brasileño y al mismo tiempo las posibles permanencias racistas, gitanofóbicas, patriarcales y clasistas en la sociedad brasileña. Al mismo tiempo, se intenta reflexionar las teorías críticas descoloniales, situando a los pueblos gitanos como sujetos de los derechos humanos. Desde el punto de vista metodológico, este texto intercala las experiencias del autor, como abogado popular y investigador, en la defensa de los derechos humanos de los calons, a una revisión de bibliografía. Se concluye que la necesidad de un análisis descolonizante y crítico sobre el antigitanismo implica considerar que ese fenómeno social fue y es estructurante para la conformación de la modernidad y, al mismo tiempo, para la naturalización de la idea de superioridad blanca eurocentrada. Palabras clave: Derechos Humanos. Relaciones étnicas y raciales. Feminismo. Pensamiento jurídico. 1 - Introdução A forma como os povos ciganos de diferentes partes do mundo, inclusive do Brasil, interagem na sociedade majoritária revela a continuidade da classificação social do mundo a partir da raça, de forma atualizada, no contexto pós-colonial. No Brasil, onde se especula existir mais de meio milhão de pessoas ciganas, a maioria da etnia calon, essa população está associada a baixos indicadores sociais, como educação, saúde e moradia (BRASIL, 2013)52. A necessidade de redefinir as fronteiras dos direitos humanos e a luta pela emancipação humana que inclua também os povos ciganos são questões centrais para se pensar a (des)colonialização do ser, do saber e do poder na América Latina e no Brasil. Embora o anticiganismo alcance a generalidade desse povo, o presente artigo opta por destacar a realidade das calin, que se encontram em situação duplamente vulnerável, seja na sociedade de modo geral e no âmbito das próprias comunidades. 52. “Gypsy”, “cigano” ou “gitano”, são termos genéricos que surgiram, presença na Europa central (Hungria, Polônia, Eslováquia, República em meados do século XV, para classificar pessoas com o objetivo Tcheca e Alemanha) (BRASIL, 2013). Este artigo adota o termo calon de transmitir um significado pejorativo (GHEORGHE, 1991), sendo e calin, maior grupo étnico cigano presente no estado da Paraíba que “rom” ou “roma”, “calon” ou “calin” representam denominações onde atuou o autor. O uso de novos conceitos não é apenas por mais aceitas entre essa população. No caso do Brasil, os calons semântica, mas uma forma de contribuir para o processo de representam um grupo étnico com forte presença em todo descolonização do ser, do conhecimento e do poder. “As palavras território nacional, especialmente na região nordeste. Eles estão e as línguas são poderosos. Eles afetam a maneira como vemos associados aos chamados ciganos de origem Ibérica que entraram o mundo como nós pensamos. É por isso que o colonizador tem nas Américas (expulsos, perseguidos ou condenados ao degredo) a impusido sua linguagem sobre os povos colonizados, controlar partir do século XVI. Os roms brasileiros pertencem principalmente como é chamado um grupo é controlar o que você pensa sobre esse aos subgrupos kalderash, machwaia e rudari, originalmente grupo, assim como o que esse grupo pensa de si mesmo” (OPREA, da Romênia; os horahané, da Turquia e Grécia, e os lovaras, com forte 123 2012, p.13). P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Diante desse cenário, romper com a invisibilidade no âmbito acadêmico, político e social constitui um desafio para os movimentos ciganos em sua luta pelo direito de viver com dignidade e de se autodeterminar. Este artigo científico pretende, com base em duas situações concretas acompanhadas pelo autor, analisar os argumentos adotados pelo Ministério Público Federal para arquivarem denúncias envolvendo racismo em face de mulheres ciganas, com o objetivo de refletir sobre o pensamento jurídico brasileiro e as possíveis permanências racistas, ciganofóbicas, patriarcais e classistas na sociedade. Almeja-se compreender o papel do Estado, quando este se depara em face de episódios que envolvem mulheres etnicamente identificadas como ciganas, buscando identificar possíveis violações de direitos e se há alguma omissão da burocracia estatal quando se demanda proteção. Para desenvolver este trabalho, é necessário refletir conjuntamente com o pensamento crítico nos Direitos Humanos e os estudos descoloniais, problematizando o anticiganismo, situando o povo cigano e especialmente as mulheres ciganas enquanto sujeitos dos direitos humanos. Um sujeito não mais abstrato, mas concreto, diverso, que, em sua maioria, vive da sua força de trabalho, e por sua condição cigana pode ser exposto a diferentes vivências, e constantes violências, criminalizações e vitimizações. Do ponto de vista metodológico, este texto intercala experiências do autor como advogado, educador popular e pesquisador na defesa dos direitos humanos dos ciganos no estado da Paraíba, a uma revisão da literatura. Além disso, procura, com base em contribuições de outros pesquisadores e pesquisadoras jurons53 e estudiosas feministas ciganas, discutir se há ineficácia de proteção dos direitos humanos no contexto brasileiro e pós-colonial em face dos calons, especialmente das calin. Este artigo está dividido em dois tópicos. O primeiro tópico compartilha dois episódios de anti- ciganismo que levou à proposição de notícia de fato ao MPF, e analisa os argumentos utilizados pelo órgão para arquivar os casos. O segundo tópico compartilha um fato que levou à denúncia de racismo praticada por uma página comercial do instagram e o termo de ajuste de conduta proposto pelo MPF. A partir de uma perspectiva interseccional que articula as categorias de gênero, raça, classe e território, busca-se influenciar o desenvolvimento os estudos dos direitos humanos voltada para uma prática libertadora, assim como vislumbrar os calons e calins, pobres e que vivem da sua força de trabalho como sujeitos de direitos, dignidade, possuidoras e possuidores do direito de forjar sua própria história. 53. “Pessoa não cigana” na linguagem falada pelo comunidade calon que o autor trabalha. 124 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA 2 - A desumanização da calin A luta pela sobrevivência é uma prática permanente de todos aqueles e todos aqueles que vivem, dependem de sua força de trabalho, inclusive para as mulheres que praticam a quiromancia54 nas ruas dos centros das cidades brasileiras, especialmente perto das feiras, estações terminais de ônibus, mercados públicos e regiões com lojas comerciais concentradas. Em relação ao rancho55 calon do município de Condado, “a quiromancia é quase não mais praticada entre o grupo, com exceção da cigana Rosa56, que todos os dias vai para a cidade de Patos, fazer quiromancia” (CUNHA, 2015, p. 9). Em novembro de 2017, um episódio ocorreu com Rosa e fez com que ela interrompesse as viagens diárias para o centro de Patos57. Antes desse episódio, Rosa já vinha enfrentando constantes hostilidades, por meio de ataques verbais como “ladra” ou “bruxa”, especialmente, feitas por motoristas de táxi que permanecem estacionados em pontos no centro deste município, espantando as pessoas que se aproximavam de Rosa quando tentava oferecer a leitura de suas mãos. A reportagem do portal de notícias está intitulada “‘Baiana’ é acusada de pedir para ‘ler a mão’ das pessoas no Centro de Patos e depois fazer ameaças”, fundamenta o texto com base em narrativas de três pessoas, obtidas de postagens do facebook, que alegam ter sido perseguidas e ameaçadas por uma mulher que se dizia baiana. Esta reportagem atraiu dezenas de comentários de conteúdo preconceituoso e agressivo, entre eles: “não é baiana é sim cigana, já vi por várias vezes”; “trapaceou minha outra irmã que é besta e cai em qualquer lorota de macumbeira”; “põe essa pilantra pra ver o céu nascer quadrado”; “era para ter dado...um murro na cara dela”; “volta para Bahia despacho”58. A Associação Comunitária dos Ciganos de Condado entrou em contato com o portal de notícias para que a reportagem, que compartilha, sem averiguar, acusações de rede sociais, fosse excluída por induzir e estimular o preconceito e a intolerância em relação a quiromancia, prática habitualmente associada às mulheres ciganas, o que motivou e atraiu reações racistas, misóginas e ciganofóbicas por meio dos comentários. O portal recusou-se a excluir a reportagem. Durante uma audiência pública organizada pelo MPF, no início de 2017, meses antes do episódio envolvendo Rosa, Maria Jane, presidenta da ASCOCIC, informou sobre a falta de respeito com a prática de leitura de mãos. A militante lembra que mulheres ciganas já foram presas na Paraíba por praticar leitura de mão. “E até hoje elas são”, acrescenta. “Eu fui pega por isso. Minha mãe também. Já fomos colocadas fora das cidades da Paraíba. Eles não aceitam, eles nos chamam de vagabundas. Então, por que eles não nos dão empregos? 54. A arte, que ao mesmo tempo é um trabalho, que busca conhecer uma pessoa e dizer sua sorte através da leitura das linhas de sua mão. 55. “Rancho” é como muitas comunidades calons chamam sua moradia, as regiões onde moram suas famílias. 56. Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento do presente artigo. 57. Este fato obteve grande repercussão nas redes sociais por ter sido noticiado em um relevante portal de notícias da região. Disponível em: <http://www.folhapatoense.com/2017/11/24/baiana-pede-para-ler-a-mao-das-pessoas-no-centro-de-patos-e- depois-fazameacas-e-as-persegue/#.W2RSvShKjIV>. Acesso em: 8 ago. 2018. 58. Esses comentários podem ser vistos nos anexos do artigo. 125 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Por que eles não nos dão espaço? Por que eles não nos dão a oportunidade (de trabalhar)?” (MPF, 2017). Maria Jane Soares também é integrante do Conselho Nacional do Ministério Política Cultural da Cultura, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Paraíba e da Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais Nacionais. A presidenta explica que a partir de 2013 começou a frequentar a capital federal e aprendeu que ler mãos e cartas jogadas são parte da cultura cigana e, portanto, não deve deixar morrer. A reportagem, ao atribuir as supostas condutas a uma “baiana”, ainda que se tratasse de uma cigana calin, reforça pejorativos associados às mulheres ciganas, não brancas, praticantes de religiões africanas ou de condutas simplesmente não cristãs. Os preconceitos e estereótipos racistas e ciganofóbicos aos quais essas mulheres são submetidas “são sempre produzidos por marcas de gênero e por conotações fortemente sexualizadas (cigana misteriosa e identificada como uma bruxa)” (REA, 2017). A feminista romani Camilla Ida Ravnbøl (2010, p. 3, tradução nossa) destaca que as mulheres ciganas “são representativas de múltiplas discriminações que muitas minorias experimentam na sociedade; discriminação, como mulher, e para algumas mulheres também em grupos de pobreza”, ou seja, enfrentam a discriminação dentro e fora da comunidade que pertencem. Por essa razão, muitas mulheres ciganas ativistas criticam a comunidade internacional, o movimento cigano global e os movimentos feministas em geral por não abordarem especificamente o problema das mulheres ciganas. Durante uma audiência pública organizada pelo MPF59, no início de 2017, meses antes do episódio envolvendo Rosa, Maria Jane, presidenta da ASCOCIC, informou sobre a falta de respeito com a prática de leitura de mãos. A militante lembra que mulheres ciganas já foram presas na Paraíba por praticar leitura de mão. “E até hoje elas são”, acrescenta. “Eu fui pega por isso. Minha mãe também. Já fomos colocadas fora das cidades da Paraíba. Eles não aceitam, eles nos chamam de vagabundas. Então, por que eles não nos dão empregos? Por que eles não nos dão espaço? Por que eles não nos dão a oportunidade (de trabalhar)?” (MPF, 2017). Maria Jane Soares também é integrante do Conselho Nacional do Ministério Política Cultural da Cultura, o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Paraíba e Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais Nacionais. A presidenta explica que a partir de 2013 começou a frequentar a capital federal e aprendeu que “lê mãos” e “cartas jogadas” são parte da cultura cigana e, portanto, não deve deixar morrer60. 59. A audiência pública contou com a presença de representantes Apesar da formação técnica, ela alegou não conseguir emprego e de todas as entidades da federação, incluindo o município onde diz que sofre muito preconceito. Nas suas palavras: “eu trabalhei o evento noticiado pelo blog ocorreu. Durante a audiência foi como aprendiz nos dois postos médicos da cidade, perguntei, até anunciado e uma série de medidas para promover a inclusão e implorei para me dar uma oportunidade de mostrar o meu trabalho combater o preconceito contra os ciganos na cidade. como técnico de enfermagem, mas a oportunidade foi dada a outros. Até agora não consegui exercer minha profissão” (MPF, 2017). 60. Janete, irmã de Maria Jane, também falou na audiência que sua mãe sustenta a família, que pagou pelo seu curso de técnica de enfermagem, lendo a mão, sendo através da cultura que criou, deu comida e educação para a crianças ela, que tem um filho de dez anos e sobrevive do Bolsa Família, um programa social estatal. 126 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA A reportagem, ao atribuir as supostas condutas a uma “baiana”, ainda que se tratasse de uma cigana calin, reforça pejorativos associados às mulheres ciganas, não brancas, praticantes de religiões africanas ou de condutas simplesmente não cristãs. Os preconceitos e estereótipos racistas e ciganofóbicos aos quais essas mulheres são submetidas “são sempre produzidos por marcas de gênero e por conotações fortemente sexualizadas (cigana misteriosa e identificada como uma bruxa)” (REA, 2017). A feminista romani Camilla Ida Ravnbøl destaca que as mulheres ciganas “são representativas de múltiplas discriminações que muitas minorias experimentam na sociedade; discriminação, como mulher, e para algumas mulheres também em grupos de pobreza” (2010, p. 3, tradução nossa), ou seja, enfrentam a discriminação dentro e fora da comunidade que pertencem. Por essa razão, muitas mulheres ciganas ativistas criticam a comunidade internacional, o movimento cigano global e os movimentos feministas em geral por não abordar especificamente o problema das mulheres ciganas61. A recusa do portal em excluir a publicação motivou a ASCOCIC, que atua na comunidade de Rosa, a noticiar o fato ao MPF, por identificar que a reportagem induz e estimula o preconceito e o anticiganismo, conforme evidenciado nos comentários. O órgão, por sua vez, discordou da ASCOCIC e encaminhou o caso para o arquivamento62, argumentando que o blog apenas veiculou um fato jornalístico e que não houve o intuito de gerar preconceito contra a comunidade cigana, que, tradicionalmente, é identificada com a leitura de mãos. Utilizou-se do princípio da ponderação para fundamentar a decisão pelo arquivamento da notícia de fato, em que a liberdade de expressão e imprensa prevalecem sobre uma ‘imaginária incitação à discriminação dos povos e tradições ciganas’. O MPF classifica o episódio noticiado ao órgão como uma ‘imaginária incitação’ ao preconceito. No entanto, a publicação atraiu uma série de comentários de leitores ao suposto fato jornalístico reproduzido no blog, que atribuíam a leitura de mãos à ‘trapaça’ e à ‘coisa de macumbeira’, adjetivando a ‘baiana’ de ‘pilantra’ e ‘louca’ ou propondo que se deveria ‘ter dado um murro na cara dela’. O órgão admite que se tratam de ‘externações exageradas de preconceitos arraigados’ e indicou que há uma causa para essas repercussões tão negativas: o ‘déficit de educação’, notadamente, voltada para ‘os direitos humanos dos povos tradicionais’. Contudo, sustenta que não cabe responsabilização penal para o que considera se tratar de uma ‘falta de educação para tratar com a diferença’, sendo mais uma ‘ignorância completa’ que com ‘o cerne do discurso de ódio, que é a agressão ao diferente por ser diferente’. 127 61. Angela Davis (2016) já havia mostrado como a exclusão de mulheres Ela é uma mendiga persistente, uma vassoura de rua. Ela é agressiva e não brancas da categoria feminilidade não confere os privilégios da suja. Mesmo em sua velhice, ela mantém suas qualidades masculinas. masculinidade, mas as torna particularmente vulneráveis à violência Estes são os estereótipos que permitiram a escravização, e são os sexista e a qualquer forma de abuso sexual. Oprea também aponta estereótipos que justificam a brutalidade do Estado em relação a ela.” a exclusão da categoria de feminilidade da mulher cigana quando (2012, página 16, tradução da nossa). afirma que, para a sociedade majoritária, “uma mulher cigana não é 62. Trata-se do arquivamento da notícia de fato nº 1.24.003.000306/2017- uma mulher e, portanto, não recebe um tratamento cavalheiresco. 03, procedimento que ocorreu em 19 de dezembro de 2017. P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Ainda que não esteja presente a necessidade de responsabilização penal, os comentários em tons odiosos e preconceituosos estão, de alguma forma, relacionados à conduta do portal de notícias. Este elemento não foi suficiente para que o MPF adotasse medidas mais concretas em relação ao fato noticiado que estimula o preconceito, como exigir uma veiculação de uma reportagem que trouxesse esclarecimentos sobre a cultura da leitura de mãos e uma advertência direta aos autores dos comentários que fazem apologia ao ódio e à violência. Além de pedir a exclusão do texto63. Ao provocar o MPF a se posicionar sobre a reportagem, o objetivo da organização cigana, segundo a presidenta da ASCOCIC, era levantar o debate sobre a intolerância em relação à prática da quiromancia, exigindo que o portal de notícias trouxesse outro texto esclarecendo o que consiste essa prática e a desassociando de uma conduta deplorável, negativa. Ao simplesmente arquivar a notícia do fato, sem exigir nenhuma contrapartida do portal, o MPF perde a oportunidade de usar suas atribuições para cumprir com um papel educativo, transcendendo o dualismo do punitivismo versus inocência, oportunizando aos leitores do portal de notícias a conhecerem outras perspectivas sobre a quiromancia, como uma prática que atravessa séculos e que corresponde a uma forma de sobrevivência de algumas mulheres ciganas. De forma abstrata, o referido órgão propõe, no arquivamento, a necessidade de inclusão das tradições ciganas nos currículos escolares das escolas municipais, contudo, não indica como deve proceder com essa demanda, que é urgente. Essa pauta já é de conhecimento do MPF, que organizou uma audiência pública realizada, em março de 2017, para discutir a realidade dos ciganos e buscar soluções para as demandas reivindicativas das comunidades calon da região. A presidenta da ASCOCIC revela que poucos avanços e esforços foram realizados em face dos compromissos assumidos pelas autoridades e representantes dos órgãos públicos que estavam presentes na audiência pública. Vale mencionar também outro episódio de “anticiganismo”, denunciado ao MPF pelo autor deste artigo, após ser procurado por diversos movimentos ciganos, em que a procuradoria que recepcionou a “Notícia do Fato” também procedeu o arquivamento64. A charge65 objeto da “Notícia de Fato” retrata, evidentemente, uma personagem que reúne todas as simbologias e traços culturais relacionados à identidade étnica cigana. Alegouse que a mensagem transmitida pelo perfil “@ana.nesia” tem natureza discriminatória e preconceituosa, pois, mobiliza representações do imaginário social que historicamente 63. No Brasil, não há monitoramento da mídia, ou em outras áreas envolvendo discurso de ódio. Dessas situações, foram casos individ- da sociedade, no sentido de observar casos de discriminação uais e 83 casos coletivos, entre as vítimas, 149 eram mulheres e 138 racial contra os ciganos. Destaca-se o papel desempenhado pela homens, a maioria entre 16 e 30 anos (FSG, 2016). Fundación Secretariado Gitano (FSG), uma organização não governamental que também monitora casos de discriminação racial 64. O MPF registrou o processo com as seguintes numerações: NF que ocorrem na Espanha. Por exemplo, o FSG identificou 154 casos nº 1.14.004.000324/2020-19 e PRM-FSA-BA-00007072/2020. de discriminação contra os ciganos em 2016, 44 casos que ocorre- 65. A imagem da charge pode ser visualizada nos anexos do pre- ram nos meios de comunicação, 27 no emprego, 12 em tentativas sente artigo. de acesso a bens, 15 envolvendo serviços policiais, 9 envolvendo educação, 20 casos nas moradias, 5 casos na saúde e 22 outros casos 128 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA (e ainda no presente) tenta relacionar a prática cultural da leitura de mão e o jogo de cartas praticada por mulheres ciganas como uma sinônimo de “trapaça”, “desonestidade” e “vantagem ilícita”. Após análise da “Notícia de Fato”, a procuradoria do MPF argumentou que a charge “sequer cita os povos ciganos – apenas faz referência a estes de forma velada”. Além disso, ao optar pelo arquivamento, o Ministério Público Federal justificou tal procedimento fazendo referência ao “princípio constitucional da liberdade de expressão”, enquanto um direito dos administradores do perfil “@dona.anesia”66 ; concluindo, por fim, que a “charge” não constitui “efetiva disseminação de discursos de ódio e discriminatórios ou de incitação à violência”. É possível afirmar que o fato das procuradorias do MPF, que receberam as denúncias aqui expostas, não tomarem nenhuma atitude concreta para remover os conteúdos ofensivos revela a falta de empatia dos operadores do direito brasileiro, especialmente os ocupantes de altos cargos de funcionalismo público, com questões de ordem social e cultural. Entre outras razões, segundo Vanessa Berner (2017), é um reflexo do fato de os cursos jurídicos terem uma longa tradição de não participar da extensão universitária, restringindo sua atuação nesse campo às representações-modelo para a prestação de serviços de assistência social ou estágios para estudantes em escritórios particulares de advocacia ou em órgãos públicos. A autora acrescenta que a ausência de espaços para pensar a sociedade promove um impacto profundo na formação de futuros profissionais do direito, pois os alunos são treinados sem ter contato com a realidade social e política do país. Portanto, há, de fato, um distanciamento entre o mundo jurídico e o que acontece ao nosso redor, “é também um reflexo da baixa interdisciplinaridade presente nos cursos de direito” (BERNER, 2017, p.99). Esse fenômeno decorre das permanências da colonialidade do saber na produção e reprodução do conhecimento no ensino brasileiro. Essa baixa interdisciplinaridade atinge, inevitavelmente, a área de atuação dos Direitos Humanos. Ravnbøl (2010) questiona a separação tradicional no campo internacional dos direitos humanos entre questões de gênero e minorias na prática, que se tornou uma lacuna que pode isolar grupos como as mulheres das minorias da atenção dos direitos humanos. Durante a Conferência de Viena em 1993, foi apresentada a doutrina da indivisibilidade e a inter-relação de todos os direitos humanos, onde a incorporação de perspectivas de “gênero e minorias em programas de direitos humanos é cada vez mais uma área prioritária, é raro que as questões de minorias e gênero sejam combinadas” (RAVNBØL, 2010, p.3, tradução nossa). 66. Trata-se de um perfil cuja conta possui mais de 500 mil seguidores. 129 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Ser mulher e pertencer a uma minoria étnica, como é o caso da calin, soma-se a duas outras condições em que muitas dessas pessoas estão no interior do Nordeste brasileiro: de pobreza e de trabalhadora. Ao circular nos centros das cidades, essas mulheres, que já são muito poucas, recorrem “a sua cultura”, a leitura das mãos para obter uma renda. No caso de Rosa, que pratica a quiromancia há mais de quatro décadas e, devido à repercussão do episódio relatado no portal de notícias, teve que deixar as ruas do centro de Patos por tempo indeterminado, precisando recorrer a outras cidades, até mesmo estados vizinhos, para desenvolver suas atividades. É, em outras palavras, um fenômeno de desterritorialização, negação do direito à cidade de Rosa, assim como outras calin da região. A referência ao termo “desterritorialização” não é a mesma que a modernidade e, consequentemente, a colonialidade estabeleceram para a concepção do território, associada à soberania do Estado sobre um espaço delimitado por fronteiras ou confundida com a ideia de propriedade privada. O território aqui é vislumbrado como um espaço onde pessoas reais, com características e diferentes histórias circulam, vivem e exercitam suas atividades e ações. “Na escala intra-urbana, além das várias territorialidades que se constroem, observa-se, quanto aos ciganos, processos territorializadores, que não evidenciam apenas os locais de moradia, mas também outros espaços das cidades, sendo estes principalmente as praças, locais ligados diretamente às atividades econômicas dos ciganos”. (ESTEVAM, 2009, p. 131-132) As reações de ódio manifestadas no portal de notícias, assim como o próprio arquivamento do caso (os ciganos e suas práticas não são sequer vistos objetos de proteção), são reflexos do que se opta por chamar neste artigo de anticiganismo. Como esclarece o acadêmico cigano espanhol Valeriu Nicolae (2016), o anticiganismo é um tipo específico de ideologia racista, uma ideologia de superioridade racial, ao mesmo tempo semelhante e diferente, e está interconectado com muitos outros tipos de racismo. “O anticiganismo em si é um fenômeno social complexo que se manifesta através da violência, discurso de ódio, exploração e discriminação, na sua forma mais visível” (NICOLAE, 2016, p. 75, tradução nossa). O preconceito contra os ciganos vai claramente além dos estereótipos racistas que os associam a traços e comportamentos negativos. A desumanização é o seu ponto central. Os ciganos são vistos como menos que humanos; sendo menos que humanos, são percebidos como seres que não têm direito moral de gozar de direitos humanos iguais aos do resto da população. (NICOLAE, 2016, p.79, tradução nossa) 130 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA O direito de ir e vir, de estar na cidade, em espaços públicos, institucionais ou não, é vivenciado de diferentes maneiras por homens e mulheres. E o fato de ser negra, indígena e, no caso deste artigo, calin, pobre e trabalhadora, pode expor essas mulheres a diferentes formas de violência, criminalização e vitimização, ampliando os obstáculos e limitações dessas pessoas ao direito à cidade, à vida e ao trabalho. Essa situação fortalece o projeto de consolidação do capitalismo e de uma sociedade colonial e eurocêntrica que impõe um padrão de existência para os seres humanos. O anticiganismo, as hostilidades e a permanente desconfiança com relação à quiromancia, uma prática reconhecida como não cristã e, por isso, vista como contrária à racionalidade eurocentrada, é resultado da tentativa de “homogeneizar as formas básicas de existência social de todas as populações” (QUIJANO, 2000, p. 113). O fato de profissionais do direito, como é caso do procurador que atuou no caso de Rosa, não perceberem que a reportagem faz parte do processo de aniquilamento cultural da diferença, da identidade cigana, é um reflexo de como a formação intelectual do direito esteve e está associado “a ideiaimagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa” (QUIJANO, 2000, p. 122), e, por isso, comprometida, em sua grande maioria, em formar “uma elite jurídica tradicionalista, avessa a uma abertura maior aos interesses sociais” (MASCARO, 2017, p. 29). No próximo tópico, será exposto o episódio de anticiganismo ocorrido nas redes sociais que, após denúncia, levou o Ministério Público Federal a propor um termo de ajuste de conduta aos autores do ato de preconceito. 3 - A importância do anticiganismo para o projeto de colonialidade Em dezembro de 2017, um portal de notícias da rede social Instagram publicou uma foto de duas mulheres vestindo roupas típicas ciganas acompanhadas da seguinte legenda: “Atenção! Ciganas foram flagrantes no Shopping na tarde de segunda. Elas já estão tentando faturar o 13º” . Essa publicação obteve uma ampla repercussão na rede social, inclusive comentários de pessoas que estavam aborrecidas em relação ao preconceito racial manifestado. No entanto, as mensagens que reproduziam uma perspectiva racista e higienista predominaram, insinuando que os ciganos, em geral, são “desonestos”, “sujos” e “perigosos”, e que, por essa razão, deveriam ser expulsos do shopping. O que há de relevante, para fins jornalísticos, no fato de duas mulheres, visivelmente calin, caminharem em um shopping? Talvez a surpresa dos autores da publicação e dos comentários seria motivada pelo fato de pessoas ciganas, vistas como exóticas e 131 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA presumidamente perigosas, frequentando espaços abertos ao público como um shopping, idealizado para trazer conforto e proteção para seu público-alvo. A foto e a legenda, ao adotar o termo ‘atenção’, somado às expressões ‘Ciganas foram flagradas’ e ‘faturar o 13º’, reproduzem e induzem o preconceito étnico e a intolerância. Os membros da ASCOCIC e outras pessoas denunciaram ao Instagram para que a publicação fosse excluída, o que não aconteceu sob a alegação de que a publicação decorre da liberdade de expressão dos autores e que não havia nenhum discurso de ódio. Tentou-se também negociar diretamente com os autores da publicação, que apenas mudaram a legenda da foto, mas se recusaram a excluí-la, justificando que a intenção não era promover ofensa, mas fazer humor. Após essas tentativas, a associação enviou uma representação ao Ministério Público Federal, denunciando o racismo. Por sua vez, o órgão que teria competência legal para oferecer a denúncia realizou uma reunião com os proprietários do perfil do instagram na data de 25 de janeiro de 2018, ocasião em que foi celebrado o Termo de Ajustamento de Conduta. Essa retratação esteve condicionada à publicação de uma mensagem produzida pelo MPF, em forma de esclarecimento sobre os povos ciganos e o preconceito vivenciado por essa etnia, e a exclusão da postagem original. Ocorre que, havendo o crime de preconceito, que exige uma ação pública incondicionada, não é cabível retratação ou outra composição cível. Não se trata de uma injúria racial, visto que a ofensa ocorrida não ocorreu apenas em face da honra subjetiva das mulheres expostas na publicação do perfil de rede social, mas, genericamente, ao grupo étnico reconhecido como cigano. Após o órgão competente renunciar à obrigação de propor a denúncia, a ASCOCIC apresentou um recurso ao procedimento de arquivamento, alegando que não oferecer denúncia corresponde a uma conduta antijurídica, pois viola direitos fundamentais e a norma infraconstitucional que regulamenta a punição e a responsabilização penal dos autores do crime de preconceito. Além disso, indica-se que o arquivamento constitui uma forma de condenação da lei nº 7.716/1989 à condição de letra morta68, em outras palavras, inaplicável no sistema de justiça brasileiro. Ignora-se a condição das pessoas ciganas enquanto sujeitos de proteção dos direitos humanos. Segundo Moore (2007), o racismo é percebido como forma de consciência grupal, não parece mais como racismo e, até mesmo, se nega como tal. É essa característica de poder se negar a si mesmo que lhe confere tal plasticidade e resistência aos esforços de mudança. 68. Segundo Abade, “os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. E os juízes não veem o crime de racismo [...] porque não aceitam o fato de que há racismo no país. Muitas vezes as agressões são entendidas como brincadeiras. Não existe a menor sensibilidade da Justiça para o quanto isso é doloroso para quem sofre o preconceito” (ABADE, 2015). cias/2009/09/30/uma-justicacega-para-o-racismo/>. Acesso em: 21 maio 2017. 132 Disponível em: <http://www.jb.com.br/pais/noti- P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Faz parte do projeto eurocêntrico de capitalismo colonial / moderno negar o racismo69, recusando-se a cumprir uma norma que está positivada na legislação brasileira, quando se refere à responsabilidade por possíveis crimes de racismo. A ausência de uma conduta efetiva do MPF contribui para a naturalização da ideia de superioridade branca européia e mantém, portanto, o sistema judiciário intacto de qualquer responsabilidade quanto ao racismo. Ao mesmo tempo, é importante destacar que o fortalecimento do modelo vigente do direito penal não é a melhor resposta deste, nem outros problemas que se manifestam na sociedade brasileira. A transação proposta pelo MPF exigiu que os proprietários de página divulgassem um texto, acompanhado por uma foto com o emblema do órgão como um meio de cumprimento do termo de ajustamento de conduta. Essa exigência é totalmente desproporcional em relação à conduta preconceituosa da página do instagram que ofendeu milhares de pessoas que se reconhecem e que são reconhecidas como ciganas. A publicação atingiu mais do que 700 curtidas e 150 comentários, ou seja, um fato irreparável. Enquanto o texto produzido pelo MPF obteve aproximadamente 100 curtidas. A reunião no MPF deveria contar pelo menos com a presença da ASCOCIC para que pudesse fornecer sugestões para tentar minimizar os efeitos negativos que a publicação do instagram página promoveu. No mínimo, por exemplo, poderia-se recomendar aos autores do perfil a divulgação de um vídeo e/ou um texto, construído pelo próprio povo calon, ao invés de apenas um grande texto produzido pelos servidores de um organismo público que tem pouco contato com a questão cigana. A inaplicabilidade da Lei Caó, bem como as permanências racistas, classistas e machistas nos meios de comunicação e na sociedade como um todo fazem parte da crise atual brasileira. Como ensina Máscaro (2016), a crise brasileira atravessa a lei, mas não é apenas legal. Ela também passa pelos meios de comunicação de massa, mas não apenas pela mídia. Passa pelo governo, mas não é apenas pela política. Passa pelo regime de acumulação e pelo modo de regulação, mas não é apenas econômico. “A crise brasileira é outro caso da crise geral da reprodução da sociabilidade capitalista. Ele passa, sim, pela composição exata de todos esses fatores, o que perfaz justamente o estrutural de tal sociabilidade” (MÁSCARO, 2016, p. 36). No marco do sistema de justiça, percebe-se que os autores de condutas preconceituosas são tratados como figuras inimputáveis penalmente, não passíveis de responsabilidade. Ao contrário, em situações envolvendo racismo, as procuradorias do MPF analisadas neste estudo adotam uma postura demasiadamente branda em relação aos autores 69. Segundo Mignolo (2002), sobre a formulação original de Quijano, o “padrão colonial de poder” foi descrito como quatro domínios inter-relacionados: controle da economia, autoridade, gênero e sexualidade, e conhecimento e subjetividade. Para o autor, a questão da “natureza” também poderia ser designada como o quinto domínio da matriz colonial, em vez de considerá-la como parte do domínio econômico. 133 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA de ofensas preconceituosas, indicando, por exemplo, a responsabilidade do estado, de forma abstrata, por não fornecer uma educação voltada para diversidade. Para Guimarães (2004), a reprodução ampliada das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos comportamentos racistas. A condição de cigana, e especialmente das mulheres ciganas, enfrenta barreiras que impõem limitações ao exercício de direitos básicos, como exercer sua cultura, trabalhar, circular em espaços, etc. Fronteiras que insistem em permanecer no Brasil no século XXI. Para Teresa Martín Palomo (2002), esse cenário constitui um fenômeno universal – a identidade étnica, os outros são fronteiras criadas a partir das relações sociais e de poder, o que intensifica o controle social diante de grupos étnicos, como os ciganos e as ciganas70. Segundo Quijano (1992), a colonialidade formou por um lado a ideia de que os não europeus têm não somente uma estrutura biológica diferente da europeia, mas que, acima de tudo, pertencem a um tipo ou nível inferior; por outro lado a ideia de que as diferenças culturais estão associadas a tais desigualdades biológicas e não são, portanto, produto da história das relações entre as pessoas e estas com o universo. De acordo com Maria Patrícia Goldfarb (2013), no caso do Brasil, os ciganos não são vistos como portadores de uma identidade cultural diferenciada, mas sim pela ausência de valores e comportamentos aprovados pela sociedade, sendo considerados apolíticos, sem pátria, sem religião. ou leis específicas. Ao insistir em classificar “outros, acabamos incorporando ou subordinando-os aos nossos próprios sistemas de representações coletivas”, porque inevitavelmente, “toda classificação implica uma ordem hierárquica, por meio de conceitos que também sofrem uma hierarquia” (GOLDFARB, 2013, p. 62). O processo de naturalização da sociedade moderna liberal ocorreu, principalmente, pela a instituição do critério de raça como mais uma forma de separação e hierarquização, cumprindo a função de legitimar a dominação ao indicar a superioridade branca em oposição à inferioridade negra, indígena (QUIJANO, 1992) e cigana. Segundo esse autor, a ideia de raça — primeira categoria social da modernidade — surgiu no bojo do processo de destruição e apagamento de sociedades e povos, impondo aos seus sobreviventes, de forma a naturalizá-las, às novas relações de poder que se forjavam no mundo colonial. Parte-se do pressuposto, segundo lecionou Quijano (1992), que os dominados são o que são, não como vítimas de um conflito de poder, mas sim enquanto inferiores em sua natureza material e, por isso, em sua capacidade de produção histórico-cultural. Quijano (2000) argumenta que a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da ideia de raça, uma categoria mental da modernidade, se originou há 70. O termo “cigano” não se “baseia apenas no ódio racial, mas também na misoginia, pois o estereótipo da cigana não é apenas parte da raça inferior, mas também da sexualidade” (OPREA, 2012, p. 16, tradução nossa). 134 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA 500 anos junto com a América, a Europa e o capitalismo71, elas constituem a forma mais profunda e efetiva de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por essa mesma razão, a base intersubjetiva mais universal da dominação política dentro do padrão atual de poder. A associação entre os fenômenos de etnocentrismo colonial e classificação racial universal ajuda a “explicar por que os europeus foram levados a sentir-se não só superior a todos os outros povos do mundo, mas, em particular, naturalmente superior” (Quijano, 2000, p 210). Embora Quijano, nas obras aqui citadas, não faça referência direta aos ciganos em relação às novas identidades históricas e sociais (amarelos, brancos, índios, negros e mestiços) que ocorreram com o desenvolvimento do colonialismo, pode-se dizer, por exemplo, que a lógica aplicada a classificação dos diferentes grupos populacionais como índios ou negros é a mesma que a dos ciganos, povos igualmente heterogêneos, mas reduzidos a uma única denominação, uma única identidade. Apesar de várias denominações, “cigano” é um termo genérico que teria surgido na Europa do século XV (FRASER, 2007), contexto que foi de extrema importância para a consolidação da ideia de Estado-nação e o surgimento da modernidade. Se a classificação racial de pessoas que viviam onde hoje se chama por América, África e Ásia justificou a exploração do trabalho (escravo ou servil) e a colonização dos territórios invadidos, qual o sentido de classificar as pessoas como ciganas, se não possuíam territórios a ser explorado associado a esse grupo? Fraser (1992) chama de “generalizada maré repressiva” metade do século XVI até as últimas décadas do século XVIII, período destacado por esse autor para estudar os ciganos na Europa. Segundo Fraser, este período foi marcado por uma deprimente uniformidade na resposta da maioria das potências europeias a presença de pessoas reconhecidas como ciganas, dificultando o movimento e a coexistência pacífica desses grupos com a população e as autoridades, que, mais do que nunca, dotados de instrumentos legais que limitam qualquer tentativa de demonstração das formas de vida associadas aos ciganos. Antes de intensificar estes contextos de perseguições, Fraser (1992) observa que os grupos ciganos andavam por toda a Europa, sob a proteção de salvos-condutos imperiais ou benefícios papais, que atingiu seu ápice no século XV, num contexto ligado à prática natural do período, tanto pela população quanto pelos soberanos, em prover abrigo e comida aos peregrinos em sua viagem. Essa prática foi usada como instrumento de prestação de contas à Igreja, em um mundo de lógica medieval baseado na consciência aguda do pecado72. 71. Segundo Mignolo (2007), antes de haver classificação social foi substituída pela filosofia secular e pelas ciências. baseada na raça, a teologia cristã era responsável por marcar no 72. No entanto, em virtude de uma série de transformações “sangue” a distinção entre cristãos, mouros e judeus. Apesar da estruturais que abalaram o continente europeu a partir do século disputa entre a religião cristã, islâmica e judaica ter uma longa XVI, esse quadro começa a mudar, e a presença desses peregrinos história, ela foi reconfigurada desde 1492, quando os cristãos (no caso dos ciganos) gera reações graduais e, finalmente, leis e conseguiram expulsar os mouros e judeus da Península Ibérica e decretos de anticiganos severos, que demonstram claramente forçar a conversão daqueles que queriam ficar. Simultaneamente, a que as autoridades preferem vê-los fora dos limites da cidade, configuração racial entre o espanhol, o índio e o africano começou sem expressar qualquer preocupação com o destino dos mesmos a tomar forma no Novo Mundo. No século XVIII, o “sangue” como (FRASER, 1992). marcador de raça / racismo foi transferido para a pele, e a teologia 135 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Desde o século XVI, de acordo com Isabel Borges (2007), os ciganos são explicitamente assimilados pelas autoridades como “pobre” e “andarilhos”, gerando uma sequência de decretos que rejeitavam expressamente os ciganos, mantendo essas pessoas no campo das margens, da periferia. Por meio dos estudos sobre a Era Moderna desenvolvidos por Schimitt (1993), é possível identificar alguns motivos que levaram a uma maior marginalização dos ciganos com o advento da modernidade. Para Schmitt (1993), em função da “razão de Estado” emergente, onde o monarca que é protegido por direito divino passa a ser realizada a partir de novas instituições (justiça, polícia, etc.), a Igreja torna-se parte integrante de um complexo de engrenagem, criada para regular as transformações da transferência da predominante economia rural para um mercado de trabalho que se formava nas cidades. Há, ao mesmo tempo, um crescente processo de valorização do trabalho, como critério essencial da “utilidade social”; o trabalho como um valor moral, especialmente no sentido de servir a alguém. Nesse contexto, o autor destaca que se esvazia, gradativamente, as práticas baseadas no ideal evangélico que, até então, aceitava bem a pobreza voluntária, que, por um longo período, permitia a sobrevivência e melhor adaptação dos ciganos, que poderiam, de alguma forma, circular pelo território europeu, com mais liberdade. Angus Fraser (1993) reconhece os ciganos como a representação da “negação gritante” de valores e premissas que permeou a moral dominante no século XVI da Europa. É possível afirmar que as representações criadas sobre os povos ciganos se opõem ao padrão de civilidade, de humanidade reivindicada pela concepção de modernidade eurocentrada, que começou a emergir a partir do século XV. Não é por acaso que a atividade desenvolvida por Rosa nos centros do município de Patos, cujo caso é descrito no primeiro tópico deste artigo, assim como muitas outras calin que vivem da quiromancia, continuem a ser vistas com desconfiança pela sociedade majoritária. Essa situação é derivada do racismo estrutural, não é apenas um comportamento individual, o que limita os seus lugares de ação,de busca pela sobrevivência, compartilhando com o mundo o conhecimento secular de sua cultura, como a leitura de mãos e o jogo de cartas. Em geral, as atividades desenvolvidas ou associadas aos ciganos e às ciganas sequer são consideradas como uma forma de trabalho. Além disso, o racismo e o anticiganismo acabam por dificultar a inserção de muitos ciganos ao mercado de trabalho formal, o que impõe uma posição marginalizada na divisão social do trabalho. A colonialidade contribui para a destruição de outras formas de vida, de ser, de cosmologias, que não sejam ocidental eurocentrada. De toda forma, o racismo e o sexismo são duas dimensões que também atravessam esse conflito; mulheres indígenas, 136 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA ciganas, negras, “subalternas das subalternas (mulheres brancas) e dos subalternos (homens indígenas, negros, ciganos etc), experimentam múltiplas opressões como mulheres, indígenas e pobres, e como uma minoria dentro da minorias” (BIDASECA, 2011, p. 81-82). Nas palavras das feministas romani Nicoleta Bitu e Enikő de Vincze, “é preciso pensar e agir de maneira interseccional para entender que temos sido sujeitas a várias exclusões e discriminações. A solidariedade entre as mulheres de diferentes etnias, idades e classes sociais não é apenas um jogo emocional. É uma opção política, como o próprio feminismo” (2012, p. 45, tradução nossa). De acordo com Nicoleta Bitu e Enikő Vincze, o feminismo cigano é uma forma de pensar sobre os meios e significados de uma investigação de ação sociocultural que liga a análise descritiva, crítica e desconstrutiva de relações de poder com um compromisso ativista (empoderamento) para desenvolver perspectivas críticas e práticas de pessoas em posições desfavorecidas. Propor valores feministas – cigano/romani/calon73, chicano, indígena, negro etc - para toda a sociedade significa aprofundar nossa democracia no sentido de promover maior igualdade entre todas e todos, levando em conta que o patriarcado não é “uma forma de dominação masculina universal, a-histórica, essencialista e indiferenciada sobre classe ou raça”. (BIDASECA, 2011, p.66). 4 - Considerações finais A proposta do presente estudo é contribuir para pensamento crítico no direito e nos direitos humanos, que estimule reflexões e ações que articulem raça, gênero e classe, combatendo a naturalização do anticiganismo em nossa sociedade. A transformação da realidade, no sentido de melhorar - material e subjetivamente - a vida das pessoas que ao longo da história foram e ainda são colonizadas, subalternizadas, não depende apenas do direito, vem de fora (da sociedade) para dentro, mas passa por ele (sistema de justiça, faculdades de direito, etc), bem como pelos meios de comunicação e outras instâncias de poder que devem ser disputadas. O mito da superioridade branca e masculina, que fundaram a modernidade e permanece no contexto pós-colonial, encontra no Estado e no Sistema de Justiça o suporte que reforça e ao mesmo tempo é indiferente às discriminações e opressões vivenciadas pelos calon, e, especialmente, pelas calin. Na medida em que os órgãos estatais descartam o cumprimento da lei, quando estão diante de denúncias da ocorrência de racismo, percebe-se a seletiva inefetividade material protetiva dos direitos humanos, sobretudo para os ciganos. É indispensável que os movimentos sociais, ciganos ou não, denunciem esse cenário e transformem-no em combustível para impulsionar as lutas por transformação social. 73. Nas palavras da feminista romani Alexandra Oprea (2010), o esforço do feminismo cigano, hoje, é criticar as estruturas patriarcais internas, tentando ao mesmo tempo reforçar os estereótipos negativos sobre a comunidade, ou seja, evitar que as reivindicações de gênero se tornem em instrumento de alteração e estigmatização de um grupo subalterno e racializado. 137 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Os dois casos narrados, ainda que se manifestem de formas diferentes, revelam que a prática, a incitação ou a indução do preconceito contra os povos ciganos é dificilmente investigada pelos órgãos de controle competentes. São arquivados, aceitam-se transações, mesmo quando é obrigatória a proposição de ação penal. A crítica do presente estudo não pretende fortalecer a essência do atual sistema penal e a lógica de encarceramento em massa que, acima de tudo, é racista. Se o Estado brasileiro faz uma opção pela tipificação penal de certas condutas, como o racismo, mas aplica o direito penal, institucionalmente, de forma seletiva, preferindo a abstenção em situações envolvendo acusação do crime de preconceito, é possível afirmar que o Sistema de Justiça Penal se constitui, essencialmente, como um instrumento legitimador do projeto capitalista de controle social das populações indesejadas e a exclusão desse excedente populacional. Cabe abrir mão também da ideia de que o cumprimento da lei, a responsabilização penal dos autores de condutas preconceituosas ou a positivação de direitos são as únicas ou as principais estratégias para enfrentar o racismo contra os calon. Romper com a seletividade do direito penal, descolonizar o saber e os poderes hegemônicos, enfrentar o racismo e o anticiganismo institucionalizados demandam esforços e ações que não podem ser dependentes do provimento e intervenção estatal. No entanto, não se pode também ignorar o potencial que o aparato estatal — mediante captação de recursos, editais, políticas públicas — têm na melhoria das condições concretas de vida das calin e dos calon, buscando atender necessidades imediatas e, ao mesmo tempo, incentivando a organização desses grupos étnicos em torno da luta por direitos, criando condições para pautar a emancipação de todos seres humanos. Com a contribuição do feminismo cigano/romani/calon, chicano, indígena e negro, dentro e fora da academia, é possível pressionar, assim, para que as lutas pela emancipação humana sejam construídas de forma interseccional e orientada para o fortalecimento das organizações políticas - com autonomia – que incluam em seus projetos as pessoas historicamente oprimidas, subalternizadas e colonizadas em nossa sociedade. 138 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Anexos: Imagens 1 e 2 Publicação na rede social Instagram que expõe a duas calins e os respectivos comentários à postagem. Fonte: Acervo do autor (2017). 139 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Imagens 3 e 4 Comentários à reportagem que fala na suposta perseguição e ameaça praticada por uma “baiana” que faz leitura de mão. Fonte: Acervo do autor (2017). Imagem 5 Charge do perfil “@dona.anesia”. 140 P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA Referências bibliográficas ABADE, Luciana. 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Silva Introdução A violência contra a mulher é um tema que, enunciado desta forma, pode ser considerado jovem se comparado aos demais grandes temas que provocam a atenção das pesquisas nas ciências humanas e sociais, ainda que a luta por igualdade de condições e direito das mulheres no mundo e no Brasil sejam seculares. Embora as desigualdades entre homens e mulheres não tenham sido ignoradas na história e muitas ações tenham sido realizadas para modificar tal quadro (como exemplo a luta pelo sufrágio universal), o patriarcado enquanto um sistema de poder seguiu conferindo posição privilegiada aos homens, por meio do afastamento direto e indireto das mulheres dos espaços de poder, da divisão sexual do trabalho, ou mesmo das violências domésticas, familiares e sexuais,– o próprio enfrentamento às desigualdades estruturais contra as mulheres se manteve centrado em políticas públicas que buscavam garantir suas vidas como dos pontos de abertura, já que não era possível dar conta de todo sistema de uma só vez. Assim, a violência política contra as mulheres, enquanto um conjunto de práticas que por ação ou omissão tem por objetivo impedir o exercício político das mulheres, foi pouco analisada e enfrentada, a despeito das crescentes ações de enfrentamento a violência contra a mulher no Brasil. É possível considerar a violência contra a mulher no Brasil como um problema endêmico. O Atlas da Violência de 2020 (CERQUEIRA, ET AL, 2020, p.34), que compreende uma análise dos anos 2008 a 2018, reporta que no ano de 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil representando uma taxa de 4,3 mulheres por 100 mil habitantes, sendo que 68 % das vítimas foram mulheres negras. Apenas no ano de 2016 foram registradas nas delegacias 49.497 casos de estupro e no SUS foram 22.918 casos de violência sexual. Sabese, contudo, que embora esses dados sejam alarmantes eles não refletem o tamanho real deste problema devido à alta subnotificação. Marcos legais tiveram um importante enquanto ferramentas no combate à violência 143 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA doméstica e sexual. Temos, como exemplo emblemático a Lei 11.340/2006, também nomeada de Lei Maria da Penha, que foi o resultado da articulação do movimento feminista, de organizações do terceiro setor e do poder público, que estabeleceu parâmetros normativos para o combate à violência contra a mulher no Brasil. Como ações práticas decorrentes da Lei Maria da Penha temos o desenvolvimento de campanhas de conscientização sobre este tema enquanto um problema público e cotidiano no Brasil, a criação de canal para as denúncias, este último possibilitando que não apenas as mulheres fossem acolhidas ao tempo da ameaça ou violação a sua integridade física mais que também que dessas denúncias se transformassem em dados que refletissem a situação da mulher no Brasil. Contudo, a violência contra a mulher é problema multifacetado e de raiz patriarcal, que utiliza diferenças sexuadas para produzir assimetrias na garantia de direitos e exercício de poderes na vida de todas e todos, agravando-se quando interseccionado com outras opressões, como a produzida pelo racismo e pelo capitalismo. Ainda assim, a luta pelo reconhecimento de que desigualdades podem representar violências contra as mulheres peleja em diversos outros campos, como na política. A sub-representação das mulheres na política institucional é um dado que compartilha da mesma matriz que a violência doméstica, resultado das dinâmicas desenvolvidas em uma sociedade patriarcal. O Brasil hoje se situa na 140 (MAPA MULHERES NA POLÍTICA, 2020) posição no ranking sobre representatividade feminina no poder executivo, considerando o executivo Municipal, Estadual e Federal. Este dado é fruto do levantamento feito pela União Inter Parlamentar (IPU) e ONU Mulheres, que apresentam anualmente um Mapa Global das Mulheres na Política. Por meio de uma breve análise sobre a situação da violência doméstica e sexual contra as mulheres e a sub-representação das mulheres na política brasileira fica claro que a despeito da relevância desses temas o Brasil ainda está longe de combatê-los com efetividade. Ainda que em relação a uma das expressões da violência patriarcal (a violência doméstica e sexual) possamos notar a existência de crescentes políticas para o enfrentamento a essa realidade, da mesma feita é possível afirmar um grande lapso no que tange o enfrentamento à violência contra a mulher na política, que pode ser identificado como um hiato entre o enfrentamento à violência contra as mulheres no espaço público e a proteção da vida das mulheres por meio de políticas públicas no espaço privado. Se a violência contra a mulher é endêmica no Brasil e temos uma sub representação das mulheres nos espaços de poder, por quê a análise da violência política contra as mulheres não é fruto de ações de enfrentamento organizadas, como a violência 144 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA doméstica e sexual? Quais as particularidades entre o espaço público e o privado que impossibilitam a problematização da violência nos espaços públicos, em especial, nas disputas eleitorais e exercícios de mandatos eletivos? Seria a violência política contra as mulheres um problema que mereça esta análise? Essas são algumas das perguntas que conduzem o trabalho que aqui se apresenta. Na pesquisa “O Perfil das Prefeitas no Brasil – 2017-2020” (MELCHIORI, Cintia Ebner, et. al, 2018), foi mapeado o perfil das prefeitas brasileiras com mandatos em exercício de 2017-2020 e dentre as perguntas realizadas duas merecem destaque para o tema que ora se aborda: 1) qual a sua principal dificuldade para acesso e permanência na política? e 2) você reconhece que já sofreu violência política por ser mulher? Em relação à primeira pergunta obteve-se como resposta em primeiro lugar o falta de recursos para campanhas, em segundo o assédio e a violência política por ser mulher e em terceiro a falta de espaço nas campanhas de radio e tv comparativamente aos homens. Diante da segunda pergunta 53% das prefeitas responderam assertivamente a questão. Atento a esta realidade, ainda pouco evidenciada, também se propõe o presente trabalho a entender como a violência política contra as mulheres no Brasil se efetiva e dissemina —embora não seja alvo de ações— como um problema para a vida das mulheres na política. A violência política contra as mulheres, enquanto fenômeno, é compreendida como o conjunto de ações que visam anular, restringir, impedir, ameaçar, manipular ou coagir o exercício político das mulheres. Estas ações são analisadas pela matriz patriarcal, que aqui se compreende como gestora e mantenedora das violências experimentadas pelas mulheres. Contudo, no Brasil, esta violência tem recebido nomes diversos pelas mulheres na política, nomes que registram ora o tipo da ação, ora a forma ou espécie da violência, mas não o conceito que abriga as discriminações, qual seja, somente violência política. Assim, é comum que as políticas brasileiras chamem de machismo e assédio, mas não tão comum que declarem o sofrido como violência ou assédio político. Apesar da polifonia acima mencionada, os fatos nos trazem as evidências necessárias para o reconhecimento do problema: mulheres na política sofrem violência por serem mulheres e disputarem (no sentido do exercício político) este campo. A isso dá-se o nome de violência política contra as mulheres ou violência política de gênero. Deste modo, reconhecendo a violência política contra as mulheres como advinda da mesma matriz patriarcal das outras violências contra as mulheres, se buscará refletir brevemente sobre a relação da base da da violência contra a mulher, como meio de ensaiar respostas sobre os desafios e enfrentamentos necessários para este novo conceito de velhas raízes. 145 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA 1. As bases da violência contra a mulher no pensamento da Dra. Rita Laura Segato. O mandato de violação, como Segato (2003, p.2) nomeia a autorização inominada dentro do patriarcado para a perpetração das diversas violências contra as mulheres, organizase de modo horizontal e vertical. Verticalmente, entre as posições hierárquicas distintas e horizontalmente, por meio do compartilhamento de ações que se autoreforçam gerando um ciclo não regular, mas retro-alimentado, de violência. Para Segato (2003, p.5), é importante que se compreenda como a violência se estrutura, mas também como direito e as leis são meios de manutenção desse mandato, mesmo que por vezes regulem o enfrentamento a algumas expressões dessas violações. No texto “La argamassa Jéraquica: Violencia moral, reproducion del mundo y eficacia simbolica del derecho.” (SEGATO, 2003) a autora busca demonstrar como há algo ilegítimo e artificial no que se refere a ordem que instaura a lei, sendo fruto da ordem patriarcal. A abordagem das base da violência, nesse contexto, não poderia prescindir da observação de como o patriarcado estrutura as relações, mas também importa para a autora que sejam analisados os mecanismos de manutenção dessa ordem dentro do Estado. Revela assim como a violência moral, por ela assim nomeada, fundamentou os mecanismos que “legitimados por lo costumbre, para garantir el mantenimient de los status relativos entre los términos de género” . (SEGATO, 2003, p.2) E segue a autora afirmando que “estos mecanismos de de sistemas de statos operam tambiem en el control de la permanência de jerarquias en otros ordens, como el racial, el étnico, el de classe, el regional y el nacional” (SEGATO, 2003, p.3). A autora remonta, no texto acima mencionado, como a violência psicológica ou moral guarda em si a “novidade” em termos de reconhecimento do que é violência contra a mulher, tendo em vista que, até o século XIX (com resquícios culturais que perduram até os dias atuais) a agressão física era a única forma reconhecida, com esforço, de violência doméstica ou sexual. Não se trata de uma forma de hierarquizar esses tipos de violência, mas sem dúvida aponta a autora como a violência moral (ou psicológica) guarda o cerne do mandato de violação contra a mulher. Dessa forma Segato explora o conceito de violência moral 146 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA como o mais eficiente para a reprodução das desigualdades e de controle social. Por certo falamos de uma violência estrutural que tem como objetivo final a manutenção de um modelo de opressão – ou seja, de controle e poder. A dificuldade de caracterização e ausência de marcas físicas da violência moral e psicológica, representa no campo jurídico uma das razões de perpetuação deste ciclo. Assim, expressa a autora que “Por su sutileza, su caráter difuso y omniprescencia, su eficácia máxima es el control de las categorias sociales subordinadas. En el universo de las relacioes de género, la violencia psicológica es la forma de violencia más maquinal, rutinaria e irreflexiva y,sen embargo, constitue el método más eficiente de subordinación y intimidación.” (SEGATO, 2003, p.7) Seria, portanto, a violência moral (assim também compreendida como violência psicológica pela autora), uma das bases da violência contra a mulher dentro da ordem patriarcal, haja vista que esta, ao passo que não deixa marcas evidentes, tem ao mesmo tempo ampla capacidade de disseminação por meio de compartilhamento de comportamentos que a reproduzam, e que são naturalizados, tidos como normais. É também facilmente absorvida e retroalimentada por valores morais e religiosos e, por fim, encontra-se maior dificuldade de nomeação das ações que materializam sua expressão, levando, portanto, a maior dificuldade de elaboração de mecanismos de denúncia, por parte das vítimas e de coerção, por parte do Estado. Deste modo a violência moral é tida como uma das bases da violência contra as mulheres pois as formas de invisibiliza-la ou menospreza-la diante das demais formas de violência possibilitam a sua perenidade. A representação e reconhecimento da violência psicológica é de grande dificuldade, pois confunde-se com a própria raiz de onde deriva, que é a hierarquia de poder e a distribuição de valor e de opressão por meio do patriarcado. Segato reconhece a violência moral como um grande instrumento de alienação dos direitos das mulheres, embora pouco difundido e combatido mesmo nos programas e políticas de direitos humanos e das mulheres. Assim, empreende a autora, um breve levantamento de quais são as formas mais comuns de violência moral na América Latina, elencando : a) controle econômico; b) controle da sociabilidade; c) controle da mobilidade; d) menosprezo moral; e) menosprezo estético; f) menosprezo sexual; g) desqualificação intelectual e h) desqualificação profissional. Há, portanto, expressões (ações) da violência moral em diversas outras formas reconhecidas —e algumas tipificadas no Brasil— de violências contra a mulher. E neste 147 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA ponto, faz-se importante observar que essas violências são vivenciadas também através de outras formas de opressão, algumas tão silenciadas quanto a de gênero, como as opressões de raça e classe. Olvidar o racismo e as questões de classe e sexualidade quando são analisadas formas de opressão coloniais pode induzir a hierarquizações improdutivas para o enfrentamento a cada uma e a todas essas violações simultaneamente. Compreende-se, portanto, a violência de gênero enquanto um mandato de poder, que tem como base de expressão a violência moral, silenciosa – pois inaudita-, permeável e que impõe desafios a sua apreensão, por ser absorvida por formas de sociabilidade e relações familiares e religiosas que são utilizadas como um véu de proteção a seu enfrentamento. 2. Ligando os pontos: o enfrentamento à violência doméstica e familiar e a violência política contra as mulheres A sessão anterior permitiu que fossem observadas a questões sobre em que base se organiza a violência contra a mulher e como podemos analisar esta violência para a manutenção da opressão de gênero. Assim, a violência moral (ou psicológica) foi desvelada como uma das formas de violência contra a mulher que possibilita que o mandato de violação de gênero e suas variantes seja exitoso. Contudo, embora a violência moral enunciada tenha como característica sua ampla possibilidade de não nomeação ou identificação, por ser absorvida por questões morais, familiares, religiosas, etc, tal fato não foi capaz de impedir a tipificação da violência moral na Lei Maria da Penha ( Lei 11.340/2006), como uma das formas de violência doméstica e familiar a ser combatida. Assim, é importante que seja realizado neste trabalho, para facilitar a compreensão do texto, a distinção da violência moral conceituada por Segato e a violência moral tipificada na Lei Maria da Penha. Deste modo, abordaremos a violência moral que encontra-se na base das violências contra as mulheres, na base do patriarcado, como violência moral estrutural e, acerca da violência moral tipificada nas leis e tratados sobre direitos e proteção da mulher, como violência moral e /ou psicológica, apenas. Atualmente é possível falarmos, no que tange o debate político sobre a violência doméstica e familiar e as suas formas de enfrentamento, que o conjunto de ações que foram impulsionadas através da Lei Maria da Penha, junto com as ações das Secretarias e órgãos dos Estados, constituem importantes mecanismos para a rede de enfrentamento 148 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA à violência doméstica e familiar, que certamente alçaram a outro patamar a proteção às mulheres no Brasil. Mesmo que os dados já apresentados apontem um universo ainda muito perverso para as mulheres brasileiras, sobretudo para as mulheres negras e pobres, é necessário que se destaque que, se as altas taxas de vítimas revelam, por um lado, um cenário onde as mulheres são mortas e violentadas diariamente, por outro lado, sabese que estes dados são fruto, exatamente, do acesso das mulheres às políticas públicas voltadas para o combate a essa realidade. Como explica Segato (2003, p.3), o mandato de violação que permite as violências de gênero se estruturem vertical e horizontalmente, e atualiza a reprodução horizontalmente, levando a devolução do poder àqueles que estão em posição de vantagem, o mesmo também ocorre verticalmente, contudo, quebrando o ciclo. Ou seja, é através das ações de enfrentamento à violência que as mulheres podem encontrar formas de romper coletivamente com ciclos de violência. Esta análise importa para refletirmos sobre as possíveis relações entre a sub representação das mulheres nos espaços de poder, a violência contra as mulheres e a iolência política contra as mulheres. Aqui, para permitir uma análise mais detida, será observada a situação das mulheres no comando dos municípios do Brasil, ou seja, as Prefeitas Brasileiras com mandatos entre 2017-2020. No ano de 2016 houve um decréscimo 3% no número de mulheres no comando das Prefeituras no Brasil em relação às eleições de 2012, sendo o número de mulheres no comando das Prefeituras no Brasil entre 2017 e 2020 de apenas 649. Ainda assim, o ano de 2016 foi o primeiro no qual se ultrapassou os 30% de candidaturas de mulheres determinados por lei, chegando a 32% o total de candidaturas de mulheres neste ciclo. Analisar o local da mulher na política municipal é de grande importância para o debate da sub-representação já que é através da política local que a maioria das mulheres ingressa na política (não apenas por meio dos cargos eletivos, mas também na composição da estrutura política das câmaras e prefeituras). Até o ano de 2020, dos 5.568 municípios que existem no Brasil apenas 649 eram comandados por mulheres e desses apenas 184 por mulheres negras, autodeclaradas pretas ou pardas. Esses dados revelam sobre o quão agudo é o problema da subrepresentação das mulheres na política, em especial a sub-representação de mulheres negras, que encontram-se dentre os grupos mais sub-representados na política, ainda que sejam o maior grupo populacional (28 %). Infelizmente não revela espanto a ausência de mulheres negras dos espaços de poder no 149 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA Brasil. Os estudos, campanhas ou ações políticas que interseccionam gênero e raça no campo da representação política ainda não tem grande lastro público. Como afirmam as pesquisadoras Rios, Pereira e Rangel (2017, p. 39-44) : Por muito tempo, os estudos sobre desigualdades de raça e gênero andaram apartados. Apesar de trabalharem com a temática das desigualdades na política considerando características adstritas, as pesquisas sobre as relações raciais nesse campo não dialogavam com as pesquisas sobre gênero e viceversa. Dentre as diversas razões que explicam tal realidade, uma delas pode ser atribuída à ausência de informações sobre cor nos documentos e estatísticas oficiais produzidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A emergente bibliografia sobre a sub-representação feminina contrasta com a escassez de estudos sobre a marginalidade da população negra nas instituições de política formal no Brasil. Como assinalaram Luiz Campos e Carlos Machado (10), pouco se sabe sobre os mecanismos sociais e institucionais que favorecem o predomínio de brancos nos quadros eleitos e até mesmo sobre a fase da carreira política em que os negros são afastados da representação. O Tribunal Superior Eleitoral só introduziu a pergunta sobre o pertencimento étnicoracial dos candidatos aos cargos eletivos no ano de 2014, levando a inexistência de dados em seu banco que pudessem ser analisados sobre os critérios de raça e interpretados em conjunto com os demais até poucos anos atrás. O próprio debate conceitual e os marcos legais que provocam sobre as ausências das mulheres nos espaços de poder e da política institucional, de modo endereçado como problema público, tem cerca de três décadas no Brasil, sendo provocado de modo organizado pelas mulheres da Constituinte de 1988/89. Ainda assim, o local das mulheres negras na política seguiu invisibilizado, absorvido ou não pela pauta do movimento de mulheres, a despeito da importância e da luta de mulheres negras na própria Constituinte, como exemplo da Deputada Benedita da Silva e da socióloga Lélia Gonzalez (SHUMAHER; CEVA; p.512, 2015). Não obstante a sub-representação de mulheres, com destaque para mulheres negras, indígenas e LBTQI+, nos deparamos com o fato de que essas mulheres ao ocuparem a política, simplesmente por estarem em um lugar de poder e legitimadas através do voto por seus eleitores, não estão protegidas contra as demais formas de opressão, em específico as de gênero. E a esta ausência de proteção, bem como aos próprios ataques, ameaças, omissões, que tenham por objetivo direto ou indireto violar os direitos políticos 150 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA das mulheres, nomeia-se de violência política contra as mulheres (ou violência política de gênero). E este é o ponto onde a lacuna do campo público e privado se expõe. Se diante da violência doméstica e sexual – e também do feminicídio- a violência moral estrutural ocupa importante local no campo discursivo, já que sustenta o debate sobre a ampliação das violências contra as mulheres, mesmo daquelas que não sejam físicas ou sexuais, por outro lado, no campo político há notória barreira para a compreensão desta mesma violência moral estrutural como a base das diversas agressões, cercamentos, ameaças e até assassinatos políticos de mulheres. A Declaração sobre a Violência e o Assédio Político Contra as Mulheres, produzida pelo Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (Convenção esta da qual o Estado Brasileiro é consignatário), reconhece que para o alcance da paridade na política e na democracia se faz necessária uma abordagem integral sobre a experiência das mulheres na política. Ou seja, para além do acesso, as mulheres precisam de exercícios políticos livres de discriminação. Entretanto, parece que este cenário ainda encontra-se distante do espaço da política brasileira. E aqui, mais uma vez, é urgente que seja retomado o pensamento de Segato. Para a autora a violação funciona como um meio de restaurar o poder (SEGATO, 2003, p.5). De modo que, a violência moral estrutural atua invisibilizando os mandatos de violência de gênero nos espaços de poder, por meio da ficção de que o ambiente político é violento por natureza. Assim, busca-se manter as mulheres na política ora super feminilizadas, como se a sua condição de gênero fosse um atributo que as docilizasse. Mas, quando estratégico, esta mesma categoria dos atributos femininos é utilizada de modo depreciativo, para indicar falta de força e inabilidade para o espaço público. São comuns também as ofensas que utilizam a categoria da masculinização dessas mulheres na política como uma grande anomalia e problema para a performance de gênero “esperada” nesses espaços. Nada tão exemplificativo da violência moral estrutural na política, inclusive. A violencia moral estrutural, assim, não é exclusiva do campo da violencia doméstica e sexual, mas sim base do patriarcado, espraiando-se pelas diversas formas de expressão dos mandatos de violação contra as mulheres – inclusive, na política. E, tal como no campo da violencia doméstica e sexual, urge que a violencia política contra as mulheres seja compreendida e enfrentada como uma das expressões da opressão patriarcal na nossa sociedade. Somente assim será possível que formas de organização e enfrentamento à violencia política possam ganhar força na sociedade brasileira. 151 R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA 3. Considerações finais Compreendendo que a violência e o assédio contra as mulheres na política constitui uma série de ações que afetam o exercício dos direitos políticos das mulheres e prejudicam tanto a sua participação, assim como a qualidade da própria democracia, quais ações poderiam ser desenvolvidas para auxiliar nas políticas de enfrentamento à violência política nos países da América Latina ou colaborar com o registro da inexistência desses marcos? Esta autora acredita que correlacionar a violência doméstica e sexual, já amplamente reconhecida como um problema público na sociedade brasileira seja um dos caminhos. É sabido que na América Latina, dos 21 países, ao menos 17 têm legislações específicas sobre o combate a violência contra a mulher e desses, 3 países (Bolívia, México e Peru) já têm legislação própria sobre o enfrentamento à violência política contra as mulheres. É importante, ainda assim, que se destaque que em outros 4 países países (Brasil, Costa Rica, Honduras e Equador) existem projetos de lei em tramitação voltados para a temática da violência política. Contudo, ainda que as leis informem sobre as problemáticas reconhecidas, ao mesmo tempo também podem servir para a manutenção destes cenários. Em sintese, a simples existência de arcabouço legal sobre o tema não é suficiente para pôr fim no quadro de subrepresentação feminina e mesmo das práticas violentas experimentadas pelas mulheres na política. Os direitos políticos das mulheres não tem início, meio, ou fim no curso de um mandato ou cargo público. Esses são direitos inerentes à vida em sociedade, direitos que guardam em si outros tantos direitos sociais e humanos. As reivindicações pela proteção dos direitos políticos das mulheres brasileiras deveria constituir uma das bases que sustentam o debate sobre a ausência das mulheres nos espaços de poder. As barreiras do acesso não estão apenas nos baixo recursos para campanha, tempo de propaganda, mas, outrossim, encontram-se constituição dessas barreiras em espécie, da qual a violência política é uma das expressões, ou seja, encontram-se nas raízes do patriarcalismo, tendo por berço a violência moral-psicológica como instrumento opressão. A fase pré eleitoral, por exemplo, pode ser compreendida de modo mais amplo do que apenas o período das eleições, ela se constitui anteriormente, nos espaços políticos ocupados por mulheres. E as barreiras podem ser vistas já nessa fase, quando as filiadas aos partidos não ocupam os espaços decisórios nessas instâncias, quando são assediadas por serem solteiras ou assediadas por serem casadas (e estarem “abandonando” seus lares ao ir para a política), dentro dos conselhos políticos comunitários, etc. Sobretudo, o direito das mulheres na política de gozar de seu exercício político eletivo ou comissionado livre de violência deveria ser um direito fundamental em qualquer democracia, já que a violação deste direito pode constituir o início de uma cascata de barreiras, nem sempre nomeadas, mas sem dúvida, devastadoras para nossa organização política e social. 152 Referências bibliográficas ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1985 antropología de la dominación. Bogotá, Brecha Lésbica y en la frontera, 2013. ________. O que significa elaborar o passado. In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995a. 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Mais especificamente, o chamado Estado Democrático de Direito. A proposta é abordar, numa perspectiva feminista, a relação entre essa instituição da modernidade com os igualmente modernos Direitos Humanos. Tratase de um grande desafio em tempos de pouca democracia, de violação sistemática de direitos e, ao mesmo tempo, de busca incessante por um feminismo em comum. A primeira questão que temos que enfrentar para cumprir esta tarefa é compreender qual é, e onde se centra, a política do Estado no sistema capitalista e como o fascismo nele se instala. É o Estado que organiza a sociedade, regulando as relações entre os detentores do poder e dos lucros com aqueles que vendem seu tempo e sua força de trabalho. O trabalho, portanto, é absolutamente central no mundo contemporâneo. É em torno dele que se configura o poder do Estado. E a maioria de nós somos trabalhadoras e trabalhadores. Por que temos que falar disto? Porque, ao regular essas relações, o Estado disciplina os diversos perfis de subjetividade que cada um de nós carrega: homens, mulheres, pessoas LGBTQI+, transexuais, negros, negras, indígenas, imigrantes... Essa normatização do que somos a partir do poder estatal é a raiz do fenômeno que hoje conhecemos como “a invenção do outro”, sendo a alteridade uma categoria necessária para o processo produtivo nas sociedades ocidentais a partir do século XVI. Isto entendido, temos que verificar quais são os mecanismos utilizados pelo Estado para exercer esse poder disciplinar. O Direito – em sua concepção regulatória que visa a uma suposta pacificação social, ao regular condutas individuais e coletivas – é o meio pelo qual o Estado impõe os limites disciplinares. As dimensões de constituição de direitos 154 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER (elaboração do conjunto normativo), efetivação das garantias legais subjetivas (elaboração de políticas públicas) e dissolução de conflitos, seja pela não efetivação daquelas garantias ou pelas suas violações (poder jurisdicional) é função típica e privativa do Estado e, nesta esteira, representa o arcabouço que “legitima” seu poder disciplinar. Nas sociedades latino-americanas, o poder estatal tem se valido das constituições, dos manuais de urbanidade e das regras gramaticais dos idiomas. Em outras palavras: nossa subjetividade se legitima na escrita! Esta é a lógica civilizatória seguida à risca pelo colonizador nas Américas: a civilização por meio da linguagem. Devemos, então, problematizar o discurso que hoje impera nas principais democracias ocidentais, regidas pelo Estado Democrático de Direito. Trabalhar outra ideia de igualdade e de cidadania, pois essas palavras traduzem conceitos vagos utilizados para designar o que, na verdade, são privilégios culturais e políticos. É sobre isto que quero falar, com o objetivo de discutir os papéis de gênero e sua influência na democracia contemporânea, especialmente no Brasil. 1. O fascismo revisitado Theodor Adorno (1995b), em palestra transmitida pela rádio de Hessen em 18 de abril de 1965, disserta sobre as pessoas que possuem o potencial fascista. Ele explica que elas são incapazes de lutar por autonomia, são gente conformada, que acredita no poder e na força do ‘universal’ para solucionar os problemas da humanidade: “eles representam a identificação cega com o coletivo”. Massa de manobra. Pensam estar inseridos em um movimento, mas isto não passa de uma ilusão: a sensação de estar entre iguais, protegido contra o poder, não deriva de sua integração a uma “comunidade”, mas é tão somente a identificação que têm as pessoas autoritárias com o poder em si mesmo, não importa qual seja seu conteúdo. É que essas pessoas são fracas individualmente e precisam se compensar numa identificação grupal, em grandes coletivos que lhes proporcionarão proteção para a manutenção de seus privilégios. A personalidade autoritária deseja que a ordem seja sustentada por um grande aparato estatal, governada com rigor e violência. Esse tipo de personalidade se identifica com os valores do nacionalismo, originando o orgulho nacional, o ufanismo. O sujeito fascista não tem consciência de ter uma missão histórica em comum, até porque ele não é bem formado. Isto o torna facilmente manipulável. Trata-se de um antidemocrata. Os regimes totalitários sempre usaram os meios de comunicação para insuflar este tipo de “personalidade forte”, ressaltando seus valores políticos e estéticos no imaginário popular. Não por acaso, o Ministério da Propaganda do governo nazista era o mais 155 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER importante quadro na Alemanha de Hitler. Nenhum ministro era mais poderoso que Joseph Goebbels. A mídia contemporânea, organizada em grandes comglomerados de alcance global, as redes sociais e muitas mídias digitais fazem este papel, fomentando nas pessoas o traço autoritário e explorando sua própria fraqueza: o uso de palavras de ordem, a defesa das forças armadas, dos símbolos nacionais, dos valores tradicionais… O resultado? Conservadores agindo em bando. Leandro Konder (1977) nos lembra da facilidade com que o fascismo se adaptou na Itália de Mussolini, apresentando-se ora como republicano, ora como monarquista, e até mesmo como “obreirista”. Ou seja, ao gosto do freguês, mas sempre acompanhado de uma violenta repressão. Um movimento eficaz. Boa parte da resistência ao fascismo se deu no meio artístico e intelectual. Não significa que a classe artística estivesse imune. O que se quer dizer é que os artistas e intelectuais, por não serem beneficiários diretos das vantagens econômicas da propriedade capitalista, não se viam na posição de, necessariamente, ter que defender ou contestar o regime. Lá e cá, ontem e hoje, isto não mudou. A desidentificação com o sistema tem a ver com a própria função social desses atores, que consiste em construir representações e/ou interpretações da realidade a fim de que as pessoas possam reconhecê-la por meio da sensibilidade ou da reflexão intelectual. É importante frisar que o fascismo tem uma estética própria. Na Alemannha do período nazista, a política era tratada como espetáculo, o cinema como arte de fazer propaganda partidária, a música e as artes visuais, como instrumentos de valorização do nacionalismo germânico. E, claro, imperava o silenciamento dos opositores ao regime, dos “fora da curva” do sistema. No Brasil, a memória da ditadura civil-militar só pôde ser resgatada, em parte, pelas lembranças daqueles que viveram no subterrâneo do regime, como os militantes de esquerda derrotados ou os próprios militares discordantes. Para reconstruir nossa História desse período muitas vezes os pesquisadores tiveram que recorrer à “história oral” para preencher vazios deixados pelos arquivos oficiais. Porém, outra fonte importante para os historiadores foram os registros dos órgãos diretamente relacionados aos “porões da ditadura”, os órgãos repressivos do regime, como o Serviço Nacional de Informações (SNI); o Centro de Informações do Exército (CIE); e a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP): a censura das diversões públicas tinha caráter prévio em sua grande maioria e, quase sempre, se estabelecia a proibição da divulgação das obras. Essa “censura prévia” era admitida pelos militares abertamente, com base em normas jurídicas, como o Decreto-lei 1.077, que determinava o controle da TV, revistas e livros. Há similaridade com os tempos atuais. Em setembro de 2017, a “estética desviante” da exposição Queermuseu foi objeto de protesto por parte de grupos organizados, como associações religiosas e o Movimento Brasil Livre (MBL)74 . Naquela ocasião, escrevi com 74. O MBL se define como “uma organização não governamental de ativismo político”, e defende propostas como, por exemplo, a “escola sem partido”, a abertura do mercado hospitalar a empresas estrangeiras, a privatização ou transformação em PPPs dos serviços municipais de saneamento básico, o sistema parlamentar inspirado no modelo alemão, a privatização da Caixa Econômica Federal, a privatização dos presídios e o fim da função social da propriedade. Suas propostas liberais não guardam nenhuma empatia social, sendo claramente voltadas para a divulgação de ideias interessantes para o capital e nefastas para a maior parte da população brasileira. 156 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER um grupo de alunas de pós-graduação um artigo75 sobre o ocorrido, em que analisamos o perigoso abismo no qual estamos caindo: (…) a censura à exposição Queermuseu (…) encontra-se na limitação da arte sob justificativas ora moralistas (declaradamente) ora burocráticas, que tendem a afirmar o que é melhor para todos, mas sempre, curiosamente, deixam os mesmos grupos contra-hegemônicos de fora deste “universo dominante”. É o todo representado pelo branco, burguês, cristão, empresário, masculino, heterossexual e claro, despido de preconceitos. É o todo de sempre Na realidade, quem efetivamente “comanda o carnaval” é a elite dominante, auxiliada pela mídia que ela mesma controla. Juntas, aprofundam as contradições internas do sistema, por meio de pressões econômicas76, de intrigas e de benefícios lisonjeiros para os aliados. Adorno (1965) demonstra como as pessoas autoritárias dirigem sua libido para as mercadorias: a fetichização. Ele registra, em sua pesquisa, que aqueles indivíduos afirmavam que amavam mais equipamentos e objetos bonitos do que as pessoas, trocando facilmente o afeto por coisas. Assim, não questionavam, por exemplo, na Alemanha nazista, que as pessoas fossem conduzidas em comboio para Auschwitz, desde que a malha ferroviária fosse moderna e funcional. O fascismo, portanto, não é um conceito simples, não deve ser banalizado. Ele é uma tendência que se exprime por meio de uma política favorável à concentração do capital. É extremamente complexo, envolve a exploração de traços de personalidade comuns a grupos inteiros de cidadãos, é arquitetado de forma minuciosa e pragmática. O fascismo é um movimento social e político de natureza conservadora, porém se apresenta com uma bela capa modernizadora, que nada mais é que um invólucro recheado de mitos irracionais. Nas palavras de Leandro Konder (1977): O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (…); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem com a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro.. Essas condições, que vêm sendo cultivadas no Brasil ao longo dessas duas primeiras décadas do século XXI, ficaram evidentes a partir de 2013, com as grandes manifestações 75. Ver em: https://revistacult.uol.com.br/home/queermuseu-censura-avanco-conservador-democracia/ 76. Note-se, por exemplo, que no dia 24 de janeiro de 2018, dia do julgamento do Presidente Lula, a Bolsa de Valores registrou um recorde de crescimento: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/julgamento-de-lula-faz-bolsa-disparar-e-dolar-cair 157 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER populares daquele ano, conhecidas como Jornadas de Junho77. A situação se agravou a partir do golpe parlamentar de 2016. A atuação pouco republicana do poder judiciário, em diversos episódios ao longo dos últimos vinte anos, é coroada com a Operação Lava Jato78 e o julgamento do Presidente Lula79, resultando em sua condenação, sem provas, em 2018. Em 1977, Konder afirmava que as condições de luta então existentes não animavam o capital financeiro a se arriscar apoiando partidos de massas ostentando bandeiras com a suástica. Ele argumentava que era mais fácil manipular os consumidores de CocaCola assistindo televisão em casa. Para o autor, havia, naquela ocasião, novas condutas políticas, cuidadosamente inculcadas “sob a capa de atitudes ‘não políticas’”. Entretanto, isto não fez com que os fascistas deixassem de existir. Ele profetizava que, embora naquele momento tenham sido levados a ser mais prudentes e discretos, adaptando-se pragmaticamente aos novos tempos, em épocas mais propícias voltariam à cena. Diante do quadro que temos hoje no país, podemos dizer que esse tempo chegou. Temos saída? Para Adorno, a solução para o problema do fascismo reside na educação. Ele espera que “Auschwitz não se repita” (1995a) e defende que qualquer debate sobre educação deve levar em conta esta questão. Para o filósofo alemão, os estabelecimentos de ensino têm a obrigação de elucidar os mecanismos que levam as pessoas a cometerem atrocidades. A educação deve ter por objetivo propiciar uma consciência geral sobre aqueles mecanismos, desenvolvendo a sensibilidade contra a violência, visibilizando as opressões e criticando a ideologia difundida pela indústria cultural. Para o filósofo, o mais importante é que as pessoas sejam capazes de julgar a sociedade em que vivem, por meio do acesso à informação crítica, capaz de analisar e avaliar o contexto em que estão inseridas. Ele sustenta que cabe à escola fomentar a prática política que desenvolva nos sujeitos a consciência das tantas possibilidades de liberdade que existem, uma “pedagogia do esclarecimento” uma educação política tomada seriamente. No mesmo sentido, o brasileiro Paulo Freire, nos anos 1970, destaca que os principais problemas da educação não são as questões pedagógicas, mas as políticas, e alerta que o sistema educacional pode ser fundamental para uma revolução cultural. No livro “Pedagogia do Oprimido” (1970), ele propõe a noção de consciência crítica como conhecimento e prática de classe. 77. Sobre as Jornadas de Junho de 2013, conferir: https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/06/protestos-completam-um-ano-e-violencia-policial-se-repete 78. Sobre a Operação Lava Jato já foram escritos inúmeros livros e artigos, tanto contra como a favor das ações judiciais. Recomendo uma visita à página do próprio Ministério Público Federal para se conhecer os desdobramentos jurídicos do caso: http://www.mpf.mp.br/ grandes-casos/lava-jato. 79. Ação originária que tramita em segredo de justiça à qual estão apensadas todas as demais ações penais contra o ex-Presidente no caso do “Mensalão”: Processo nº 5035204-61.2016.4.04.7000 – 13a Vara Federal da Seção Judiciária de Curitiba/PR. Em 23 de junho de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a decisão da Segunda Turma do Tribunal que declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro na ação penal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva referente ao triplex no Guarujá (SP). Por maioria de votos (8 a3) o colegiado entendeu que o ex-juiz Sergio Moro agiu com parcialidade na condução do processo na 13ª Vara Federal de Curitiba (PR). C om a conclusão do julgamento, fica mantida a anulação de todas as decisões de Moro no caso do triplex, incluindo os atos praticados na fase pré-processual. Conferir o HC 193726 em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6043118 158 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Falhamos. No Brasil, especificamente, ao longo do curto período entre a transição da ditadura para a democracia (1979-1988) e na vivência do regime dito democrático (19882016), pontuado por governos ora neoliberais, ora populares com traços reformistas, não seguimos o conselho de Adorno, não adotamos a praxis pedagógica proposta por Freire. Assistimos impassíveis ao avanço repaginado do nacionalismo e dos ideais fascistas maquiados de republicanismo. Não nos levantamos contra o reerguimento da faceta opressora dos mesmos movimentos de direita que assombraram o século XX. Perdemos a oportunidade de arregimentar as massas em prol do ideal comum e verdadeiramente revolucionário de formar politicamente os cidadãos para que, por fim, todas e todos compreendessem que o nosso ideal comum deve ser libertário, inclusivo, democrático, comunitário. Nesse sentido, a proposta de uma democracia em outros termos se faz urgente, uma democracia em que caibam todas, todes e todos, uma democracia feminista. 2. Contra o fascismo, reforcemos o feminismo Para mudar o grave quadro de retrocessos em que nos encontramos, é preciso voltar os olhos para as mulheres, e começar falando daquilo que causa a maioria dos nossos dilemas no mundo contemporâneo: o Estado. Mas não apenas o Estado, e sim o Estado Democrático de Direito. É importante falar da relação entre essa instituição da modernidade com os igualmente modernos direitos humanos. E mais: numa perspectiva feminista! Um baita desafio em tempos de pouca democracia, de violação sistemática de direitos e, para nossa alegria!, de busca incessante por um feminismo em comum, como proposto pela filósofa Marcia Tiburi (2018). O feminismo é uma teoria política e, ao mesmo tempo, um movimento social em busca de igualdade de direitos que vem transformando a sociedade de muitos países há mais de 300 anos. Essas transformações se deram pela conquista de novos direitos, pela construção de órgãos estatais encarregados de promover a igualdade de gênero por meio de políticas públicas destinadas a diminuir a discriminação. Para compreendermos estes mecanismos de silenciamento e exclusão, é preciso refletir sobre a sutil relação entre o Direito e a Política em uma perspectiva feminista80. 159 80. Segundo BATISTA BERNER, 2019, p. 342: “O Direito e a Política estrutura do patriarcalismo sugere uma realidade universalista, são construídos a partir de um ponto de vista patriarcal, no qual abstrata, onde, obviamente, a desigualdade supera a igualdade. A os valores “masculinos” e “femininos” se naturalizaram, resultando própria concepção de uma mulher abstrata, universal, com direitos em uma situação na qual temos, de um lado, aqueles que são universais, demonstra a inadequação entre a realidade e a abstração iguais diante da lei; e, do outro lado, aqueles que são diferentes. teórica que constroem as normas jurídicas a partir das decisões Nesse sentido, as mulheres, historicamente, não se beneficiam dos políticas tomadas no âmbito institucional. Axiologicamente, o progressos alcançados por todas e todos na mesma proporção que patriarcalismo inflige um conjunto de valores, atitudes e crenças que os homens, recebendo um tratamento sempre pior, sendo menos não derivam da realidade, mas que servem para que determinados remuneradas para as mesmas tarefas, sendo sobrecarregadas de grupos humanos se coloquem “naturalmente” acima dos outros: todas as formas pelo sistema em que ambos, homens e mulheres, “homens são mais fortes”, “mulheres são frágeis”... Sociologicamente, estamos inseridos. O conceito formal de igualdade, no Direito, tem os mecanismos utilizados pelo patriarcalismo são profundamente duas faces muito diferentes no mundo da vida, em que impera o arraigados no tecido social, a fim de facilitar o deslocamento patriarcalismo. Para Patricia Hill Collins (1989), o sistema patriarcal sistemático dos grupos excluídos da participação na cultura, na tem raízes políticas, axiológicas e sociais. Em termos políticos, a economia e na política, em diversos momentos históricos.” VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Então, comecemos pela igualdade. A igualdade que nos interessa é aquela compreendida como equivalência humana (Amélia Valcarcel, 2002). E ela é contraditória com a desigualdade política, esta de ordem sexual, social, econômica, jurídica, cultural. A igualdade como equivalência humana é que nos permite negociar a inclusão daquelas que estão à margem. E isto é muito difícil quando estamos em minoria, quando estamos sob opressão política no momento de pactuar com indivíduos, grupos ou instituições que detêm o poder. Os problemas de gênero estão também intrinsecamente relacionados às questões étnicas, raciais, sexuais e de classe social na lógica do patriarcalismo capitalista, do hetero-patriarcalismo81. Nesse sistema, o ‘fazer humano’ está vinculado com as relações de trabalho e as relações sociais, que são geradas pela produção e negação de diferenças existentes nas relações mercantis capitalistas. Esta realidade afeta a todas e todos nós porque as relações de gênero, raciais, étnicas e de classe são ao mesmo tempo consequência e ponto de partida das relações de poder. Nos ordenamentos jurídicos contemporâneos – seja ao ser constituído, efetivado ou litigado – a realidade se configura sempre discriminatória, colocando à parte, aberta ou veladamente, aqueles não se encaixam nos padrões determinados pelo sistema, que iguala ou desiguala a todas e todos conforme sua própria conveniência, isolando ou excluindo os que não estão em conformidade com os padrões por ele determinado. Segundo Marcela Lagarde (2003) trata-se de uma “pedagogia da identidade”, na qual é “natural que as mulheres ocupem os lugares próprios das mulheres, os negros de negros, os velhos de velhos...” e assim por diante, “a fim de se impor um sistema de percepção política, axiológica e sociológica que nos leve a acreditar que cada qual deve viver em conformidade com a ordem que lhe foi imposta” (BATISTA BERNER, 2019, p. 343). Cabe ao Estado, braço político do Capital, ordenar e regular as relações sociais. Essa ordenação inclui a organização do campo do trabalho, da produção capitalista, bem como a normatização dos corpos e das identidades, envolvendo questões de gênero e raça. A ideia de alteridade é justamente criar um esquema de inclusão/exclusão em que a autoridade estatal exercerá seu poder (CASTRO GÓMEZ, 2005). Para alcançar este intento, o Estado se utiliza de regras gramaticais dos idiomas, de manuais de urbanidade e das constituições (CURIEL, 2013). Na América Latina, os colonizadores usaram a linguagem escrita como forma de implantar seu “processo civilizatório”. Conceitos da modernidade ocidental pouco problematizados, “igualdade” e “cidadania”, basilares no Estado Democrático de Direito, compõem um acervo crucial no discurso hegemônico, 81. Conferir Lagarde, Marcela, “El género”, fragmento literal: ‘La perspectiva de género’, en Género y feminismo. Desarrollo humano y democracia, Ed. horas y HORAS, España, 1996, pp. 13-38. 160 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER mas não passam, nas democracias ocidentais, de privilégios culturais e políticos, destinados aos que se encaixam no padrão desenhado pelo colonizador e contemplam, na verdade, apenas uma pequena parcela da população. (RIVERA CUSICANQUI, 2010). Acho que aqui já se pode vislumbrar onde entra o feminismo. A luta feminista é uma luta política porque ser mulher é uma questão política (BATISTA BERNER, 2017). Qual seria então, a nossa tarefa? Ela começa pela compreensão de que, se queremos mudanças, elas devem vir por meio da descolonização das estruturas políticas e econômicas em que estamos inseridos. E isto se dá pela reformulação das Constituições e leis que, ao longo do tempo, vêm reproduzindo as práticas de exclusão e dominação. E essas práticas estão em todas as esferas de nossas vidas: em nossas relações familiares, na maneira como conduzimos nossos relacionamentos amorosos, em nosso trabalho, em nossa produção acadêmica. Não por acaso, as vozes feministas na política exigem o reconhecimento de direitos para as mulheres. Esses direitos, no entanto, não se limitam ao gênero feminino, ao contrário, interessam a toda a sociedade. As mulheres organizadas, ao participar dos debates constitucionais, seja para o reconhecimento de direitos individuais, seja para clamar por direitos coletivos, estão agindo legitimamente no interesse de toda a população. As feministas não se limitam a fazer propostas sobre assuntos considerados “femininos” como, por exemplo, os direitos reprodutivos das mulheres - mas se dedicam a defender projetos sobre temas variados como a saúde pública, segurança, funcionamento da economia ou da educação, sistema de propriedade, direito da natureza... Isto porque as concepções feministas sobre ética, filosofia, economia, cultura, urbanismo, direito, medicina, etc., são resultado de um corpo próprio de ideias forjado na maneira como nos movemos no interior das sociedades patriarcais em que vivemos. 3. Direitos das mulheres no Brasil contemporâneo: compromissos e desafios A atuação feminina no espaço público e na política no Brasil, e na América Latina como um todo, é muito inferior à masculina, o que tem servido para que se reproduza, também nessa esfera, a subserviência em que a mulher vive diuturnamente no espaço privado. Ainda assim, se fizermos um percurso histórico pelo subcontinente, podemos verificar que os movimentos de mulheres reivindicam, em todos os momentos, direitos individuais relativos à sua identidade de gênero e benefícios coletivos fundados em discriminações compartilhadas, como direitos econômicos, sociais e culturais. No Brasil, o movimento feminista teve importância crucial no processo constituinte de 1986/1988: 161 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Os processos constituintes são o momento em que se repensa o Estado, em que temos a oportunidade de fazer a revisão completa da ordem política, da normatização das relações sociais. O debate constitucional, nessas ocasiões, tem como principal característica o tensionamento das relações de poder e a possibilidade de se repensar toda a organização coletiva da vida. Os movimentos sociais são essenciais na América Latina para essa discussão, pois em uma região em que grassa a exclusão e a desigualdade, a disputa pela refundação do Estado evidentemente traz à tona os grupos de opinião que pretendem conformar, no âmbito de suas respectivas atuações, os conteúdos da cidadania, justiça e bem-estar social. É neste espaço de decisão que os movimentos de mulheres podem trazer para a prática política o conteúdo dos feminismos que os delineiam. É essencial, portanto, que nos processos constituintes sejam sempre garantidos os processos democráticos e participativos, em que as mulheres possam ser protagonistas como coletivo (BATISTA BERNER, 2019, p. 345). As mulheres organizadas têm apresentado demandas históricas nos processos constituintes latinoamericanos e usado estratégias compartilhadas para atuar. Essas consistem em ter como base das demandas o reconhecimento, no âmbito constitucional, dos direitos consagrados no ordenamento internacional para a igualdade de gênero; definir agendas comuns onde sejam contemplados os mínimos aos quais não se pode renunciar; trabalhar na formação e difusão para o debate em todas as etapas dos processos; selecionar e apoiar candidatas consensuais para os órgãos colegiados; construir consensos e políticas de alianças. Fissurar o capitalismo e o patriarcalismo é uma tarefa urgente para os movimentos de mulheres, que precisam estar devidamente articulados, pois aos movimentos sociais cabe a tarefa de atuar politicamente em prol da construção de novas relações de poder, especialmente em processos constituintes. Inserido no contexto latino-americano, o processo constituinte brasileiro fez parte de uma longa e peculiar transição da ditadura civil-militar para a democracia. Seu objetivo era buscar novas alternativas democráticas de organização social, o que ocorreu, lamentavelmente, conforme as regras institucionais do regime autoritário, estabelecendo, dessa forma, uma série de procedimentos de continuidade, de “permanências autoritárias”. A Constituição brasileira, porém, foi fruto do dissenso e da ação coordenada dos movimentos sociais estrategicamente atuando nas articulações políticas durante a Constituinte. E um dos mais expressivos coletivos presentes na 162 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Constituinte foi o de mulheres, que viu uma oportunidade de ampliar a democracia na nova Constituição. Mas, ainda que tenha acolhido muitas (e relevantes) demandas, a Constituição de 1988 não avançou suficientemente nos direitos das minorias - especialmente nas questões de gênero. Alguns temas defendidos pelas feministas, como o aborto e o trabalho das empregadas domésticas, ficaram de fora do texto final por motivos que variavam de questões técnicas a ausência de força política para se sustentar o debate. Apesar disso, o Lobby do Batom garantiu a inclusão de 85% de suas propostas no texto constitucional, ficando demonstrado o papel fundamental dos movimentos de mulheres no processo constituinte brasileiro (SCHUMAHER, 2017). A Constituição Brasileira de 1988, embora mais democrática e includente que suas antecessoras e construída com a participação popular, é fruto de um regime autoritário, sendo o “Congresso Constituinte” composto majoritariamente por uma elite dominante. Por isto, a Bancada Feminina que atuou ao longo do processo constituinte brasileiro, não estava totalmente afinada com a pauta do movimento feminista, posto que a maioria das congressistas pertencia às classes sociais mais privilegiadas do país (BATISTA BERNER, 2019). Assim, a retomada do projeto feminista só vai tomar corpo no país, efetivamente, a partir dos anos 2000. Isto porque os anos que se seguiram à redemocratização foram capturados por governos liberais de direita, que deixaram inativos órgãos como o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Por outro lado, o movimento feminista se fortaleceu no campo teórico exatamente no período compreendido entre os anos de 1990 e 2000, com a introdução dos estudos de gênero nas universidades brasileiras e a ampliação do acesso de parcela da população, historicamente excluída, ao ensino superior. Foram também cruciais a institucionalização, no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM); a promulgação da Lei Maria da Penha, destinada a combater a violência doméstica; e políticas públicas como o programa Bolsa Família, voltado para a transferência de renda, que beneficiou mais de 10 milhões de famílias, sendo que a verba era repassada prioritariamente para mulheres e mães de famílias de baixa renda. O início do século XXI foi um período de intensa participação social, contando com o protagonismo das mulheres. Tome-se, por exemplo, a apresentação da Plataforma Política Feminista em 2002, que resultou na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, pautada pelo fortalecimento da luta contra todas as formas de discriminação de gênero e raça. 163 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Entretanto, em 2016, a primeira presidenta mulher do país foi alvo de um processo de impeachment sem ter cometido crime de responsabilidade, com os votos de um Congresso majoritariamente composto por homens, brancos, proprietários e ligados a bancadas religiosas. Ou seja, a face exposta do patriarcalismo como sistema de opressão e subordinação das mulheres no Brasil. Considerações Finais Hoje, no Brasil e no mundo, estamos vivendo um perigoso momento político e nós, mulheres, não temos nos furtado a manifestar nossa opinião. É o que as mulheres engajadas em projetos feministas estão fazendo ao se inserir na estrutura do Estado Democrático de Direito, aquele que nos exclui e que regula nossas relações de trabalho, as relações do “fazer humano”. Mas quais são as reais possibilidades à nossa disposição, como mulheres, para participar efetivamente das decisões políticas? Um dos problemas mais graves de que padecem as democracias contemporâneas é a representação. Sobre esta questão, Roberta Laena (2020, pp. 105) adverte: A representação é elemento fundante da democracia, por tornar possível o exercício do poder soberano do povo e a concretização dos princípios democráticos fundamentais. Pormeio da representação política, as deliberações coletivas compõem as decisões públicas de interesse da população e do país e cidadãs e cidadãos podem ter suas demandas atendidas; posta em prática por pessoas eleitas pelo voto secreto e universal, a representação reflete a soberania popular e, por isso, faz com que os partidos políticos e os processos eleitorais possuam uma função essencial na realização da democracia. Como mudar este quadro e evitar o ressurgimento do fascismo como projeto político? Em primeiro lugar, precisamos de mais incentivos, como cursos de formação política para que as mulheres tenham vida partidária. E precisamos também avaliar o funcionamento dos partidos no país: poucos partidos, hoje, no Brasil, têm mulheres presidentes ou que chefiem diretórios. E embora o país tenha registrado crescimento de participação de mulheres na política, menos de 10% de nós ocupamos hoje assentos nos poderes Legislativo e Executivo. Esta questão é cultural e tem um nome: machismo. Portanto, precisamos, cada vez mais, debater, nos informar, a fim de nos inserirmos de forma 164 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER realmente efetiva na política, até porque nada justifica a sub-representação, já que hoje, no Brasil, somos 45% do total de chefes de família82. Para mudar o país, precisamos mudar a estrutura do sistema político, precisamos fomentar o surgimento de novas lideranças femininas (e feministas!). Precisamos do olhar da mulher para as questões sociais, pois ele é diferente do masculino, em virtude de nossa experiência na lida com os problemas diários. Isto porque a mulher trabalha, geralmente, em tripla jornada, como mãe, como dona de casa e como parte do sistema produtivo capitalista. Precisamos, então, investir nas possibilidades de participação política para efetivarmos nossos direitos, seja por meio de alternativas como as polêmicas cotas na política83, seja pelo reconhecimento das lideranças femininas. E esta tarefa é muito difícil numa sociedade que nos ensina que “igualdade” consiste em uma mulher ser igual a um homem, já que homens e mulheres partilharmos, de fato, espaços comuns, como as ruas, os transportes públicos, as universidades, as igrejas, as salas de aula… Este “véu da igualdade” (LAGARDE, 2003) nos impede de ver além de nossas presenças e perceber que a desigualdade de gênero prevalece entre os supostamente iguais. O pior é que essa presumida “consciência de igualdade” provoca algumas distorções nas relações entre nós, mulheres. Não raro, mulheres que vivem nas cidades se veem superiores às mulheres do campo; as acadêmicas, acima das não letradas; as dos países ricos, melhores que as indígenas do sul… Essa superioridade hierárquica é a prova de que a “igualdade” que nos ensinam não nos serve. A igualdade que nos interessa é aquela defendida por VALCÁRCEL (2002), a equivalência humana, como já colocado anteriormente. Portanto, construir a cidadania das mulheres requer muita criatividade, pois os homens ainda detêm o monopólio político. A política é patriarcal. Para que se desmantele de forma eficiente a opressão, temos que lutar por uma paridade que seja uma prática contínua, formando gerações seguidas de mulheres políticas. E não temos ainda esta representação simbólica universal que propicie a ininterrupta participação de mulheres. Em pleno século XXI, ainda enfrentamos “tetos de vidro e chão escorregadio” quando se trata de política (Lagarde, 2003): não temos tradição nem memória de gênero, somos minoria em termos de representação e, pior não se aceita que nos representemos a nós mesmas, que coloquemos na mesa nossas necessidades, interesses, olhares próprios sobre a vida, a sociedade, o Estado. Homens brancos, proprietários, heterossexuais, resolvem sobre nossos corpos, sobre nossa saúde, sobre nossa sexualidade, sobre nossas possibilidades de viver. Somos tratadas como “seres-para-os-outros”, nos dizeres de Franca Basaglia. Nosso papel é fissurar este patriarcalismo. 82. Notícia de 16/02/2020: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/02/16/internas_economia,1122167/quase-metade-dos-lares-brasileiros-sao-sustentados-por-mulheres.shtml 83. Sobre as cotas de gênero nas eleições proporcionais, conferir LAENA (2020), pp. 132-159. 165 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Nosso maior investimento deve ser nas alianças de gênero, a fim de melhorar nossas existências/resistências como mulheres, a fim de melhorar a vida em nossas comunidades e no mundo. Trata-se de uma proposta política de enfrentamento ao problema de não sermos reconhecidas, representadas entre nós mesmas. Em lugar de inimizade de gênero, temos que apostar em nossa coalisão política. Para isto, nossa ética tem que ser a da igualdade como princípio reinante entre todas nós. Temos que renunciar, então, ao nosso “direito patriarcal” de oprimir outras mulheres, e impedir que outras mulheres nos oprimam. Não se trata de uma ideologia, mas de uma prática, de um modo de vida, de uma nova maneira de conviver entre nós, de uma outra perspectiva relacional. Esta é também uma proposta estética, pois implica em uma maneira diversa de nos comportarmos, de nos tratarmos, de nos falarmos. Nossa linguagem deve valorizar e respeitar a dignidade que queremos para todas, independente de nossa profissão, posição social, raça ou ocupação. Um compromisso que devemos firmar conosco mesmas e com o mundo, a fim de alcançar nosso próprio desenvolvimento e bem-estar. Quanto mais mulheres incluirmos em nosso acesso ao conhecimento, quanto mais mulheres apoiarmos, mais chances teremos. A verdadeira riqueza consiste no fazer humano (Herrera Flores, 2005b). É nossa tarefa criar utopias, mas também, além de mostrar ao mundo o que queremos, precisamos ganhar territórios para uma nova cultura democrática de gênero. A proposta é promover uma mudança ético-política baseada em nossas alianças. E isto começa por não desacreditarmos as outras mulheres, por não sermos misóginas umas contra as outras, por darmos crédito à capacidade criativa de todas à nossa volta, por convertermos tudo isto em capital político, publicizando o reconhecimento que devotamos aos feitos e conquistas das outras mulheres. Nossa luta está, sobretudo, nos pequenos detalhes. Temos que enfrentar nossa raiva e transformá-la em autoestima de gênero, temos que cessar as agressões contra outras mulheres, temos que eliminar a exploração e o abuso de umas contra as outras, renunciando ao trabalho invisível de outras mulheres e de nós mesmas. Sendo solidárias, reconhecemos a autoridade das outras mulheres. E não podemos cair na armadilha de confundirmos autoridade com autoritarismo. Todas nós temos autoridade para criar alternativas, necessitamos investir nelas, pois este é um dos nossos recursos políticos mais importantes. Quando temos esse reconhecimento mútuo, aprendemos umas com as outras e ampliamos o orgulho por nosso gênero, por sermos mulheres. 166 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Saibamos, portanto, reagir à altura diante do cenário tenebroso que se configura para entrever, como um esperançoso Carlos Drummond de Andrade em 1940, a luz radiante da alvorada em um futuro que se aproxima: Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais acender e dos bens que repartirás com todos os homens. Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna. O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos, teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório. Minha fadiga encontrará em ti o seu termo, minha carne estremece na certeza de tua vinda. O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam, os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão simples e macio… Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã e o sangue que escorre é doce, de tão necessário para colorir tuas pálidas faces, aurora84. 84. A noite dissolve os homens. Sentimento do Mundo. São Paulo, 2012, pp. 39-40. 167 VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER Referências bibliográficas ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1985 antropología de la dominación. Bogotá, Brecha Lésbica y en la frontera, 2013. ________. O que significa elaborar o passado. In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995a. 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