EDITORA
Direito e
estruturas
de poder:
Gênero, Raça
e Classe
Vanessa Batista Berner
Manuel E. Gándara Carballido
(organizadores)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Direito e estruturas de poder [livro eletrônico] :
gênero, raça e classe / organização Vanessa Oliveira
Batista Berner , Manuel Eugénio Gándara Carballido.
-- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Vanessa Oliveira Batista
Berner : Faculdade Nacional de Direito, 2021.
PDF
Vários autores
ISBN 978-65-00-20130-7
1. Ciências sociais 2. Democracia 3. Descolonização
- História 4. Direitos fundamentais 5. Direitos
humanos 6. Gêneros - Estudos 7. Luta de classes
8. Racismo I. Berner, Vanessa Oliveira Batista.
II. Gándara Carballido, Manuel Eugénio.
21-61181
CDD-361.614
Índices para catálogo sistemático:
1. Direitos humanos : Bem-estar social 361.614
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
2
Sumário
3
3
Apresentação
4
Sobre as autoras e autores
7
Pensamentos descolonizadores: conceitos-chave para ampliar o
debate democrático.
Ana Laura Becker de Aguiar
33
Direitos humanos, raça e criminalização da violência de gênero:
nuances do controle social via direito penal.
Ana Míria dos S. C. Carinhanha
58
A incorporação da colonialidade de gênero enquanto elemento
complexificador das reflexões feministas na brasilidade
criminológica.
Bruna Martins Costa
75
Do racismo colonial ao sujeito neoliberal: A naturalização que
invisibiliza o trabalho explorado em condições análogas à de
escravo.
Daniela Valle da Rocha Muller
92
A criminalização de expressões artísticas desviantes: um estudo à
luz do diamante ético de Herrera Flores.
Lívia de Meira Lima Paiva
107
El pensamiento crítico en derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales.
Manuel E. Gándara Carballido
122
Calin: uma proposta de estudo descolonial sobre as relações
étnico-raciais e o anticiganismo na sociedade brasileira.
Phillipe Cupertino Salloum e Silva
143
Entre a violência doméstica e a sub-representação de mulheres na
política: uma breve análise da violência contra a mulher no Brasil
e da violência política contra as mulheres.
Roberta Cristina E. dos S. Silva
154
Mulheres, feminismo e resistência política.
Vanessa Oliveira Batista Berner
Apresentacão
Entender os direitos humanos como o resultado de lutas a favor de uma vida digna
leva a reconhecer que tais direitos só são possíveis graças à participação daqueles que
identificam em suas condições de existência uma situação que exige ser transformada
e que, para isso, se organizam e mobilizam, a fim de superar as condições materiais e
simbólicas, mudando assim sua realidade conseguindo que suas reivindicações inspirem
outras e outros com suas lutas.
Os direitos, portanto, não são o resultado de uma concessão graciosa daqueles que
representam as instâncias de poder, seja o Estado ou qualquer outra “instância superior;
sua conquista segue uma dinâmica de baixo para cima, do grupal ao coletivo-público,
dos setores empobrecidos, discriminados e menos favorecidos à população em geral. São
os setores afetados pela injustiça que impera no sistema, e quem se solidariza com essas
lutas, que têm a possibilidade de desvelar as relações de poder, identificando a desordem
normalizada e naturalizada, para desestabilizá-la e mudar a história.
Não se pode falar de direitos humanos sem avaliar as relações de poder, e a maneira
como elas estabelecem dinâmicas de exclusão, exploração, domínio e opressão. Por trás
das violações de direitos humanos estão essas estruturas de poder. Por isso, uma concepção
de direitos que invisibiliza essas relações e, sobretudo, que invisibiliza as lutas por superálas e aos atores sociais que delas participam faz parte do problema e não da solução.
Essa é a aposta que inspira o pensamento crítico em direitos humanos, e tem sido
também a intenção que orientou os textos que reunimos neste livro, produto de alguns
debates e reflexões provocados nas aulas de Teoria Crítica dos Direitos Humanos do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/
UFRJ). Os temas abrangem questões de gênero, raça e classe na perspectiva crítica,
problemas contemporâneos numa abordagem inovadora. Os textos deste livro,
portanto, foram elaborados a partir do desejo de pensar a realidade para transformá-la.
Vanessa Berner e Manuel Gándara
Rio de Janeiro, dezembro de 2020
4
Sobre as autoras e autores
Ana Laura Becker de Aguiar é Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade
de Brasília- UnB (2006), mestra em Direito Internacional e Direitos Humanos pela United
Nations Mandated University for Peace - UPEACE (2009), mestra em Estudos de Gênero
pela London School of Economics and Political Science - LSE (2010), e doutoranda em
Direito pelo PPGD/UFRJ).
Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha é mediadora, artista e advogada, doutoranda
em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal do Rio
de Janeiro e doutora em Ciências Sociais e Jurídicas no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do Grupo de
pesquisa em criminologia (GPCRIM - UEFS/UNEB), no Grupo de Pesquisa em Sexualidade,
Direito e Democracia (SDD-UFF) e no grupo de pesquisa Anastácia Bantu (UFF);
mestre em criminologia pela Faculdade de Direito e Criminologia da Université
Catholique de Louvain (2014), devidamente revalidado pela Universidade Federal
Fluminense no curso de Pós-Graduação em Sociologia e Direito; bacharela em Direito pela
Universidade do Estado da Bahia (2011) e bacharela Interdisciplinar em Artes com foco em
Políticas e Gestão da Cultura pela Universidade Federal da Bahia (2011); mediadora pela
formação especializada e interdisciplinar à mediação local, escolar e penal pela
Université Catholique de Louvain, Université Saint-Louis e Université de Namur, Bélgica.
Compõe atualmente a equipe da INNPD - Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.
Bruna Martins Costa é Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharela
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Daniela Valle da Rocha Muller é Mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos
NEPP-DH/UFRJ, Juíza do Trabalho e Conselheira da AJD – Associação Juízes para
a Democracia.
Lívia De Meira Lima Paiva é Doutoranda em Direito e Mestre em Direito na linha de
pesquisa Direitos Humanos, Sociedade e Arte, ambos na UFRJ (PPGD/UFRJ). Professora
efetiva 40h DE do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) nas disciplinas de Gênero
e Direitos Humanos. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2013). Membro do Fórum Permanente de Direitos Humanos da EMERJ e pesquisadora
do NUPEGRE (Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia) na mesma instituição. Possui
curso de extensão na Université Paris VIII (2011) em cultura e organizações internacionais
e Université Paris-Dauphine (2011) em literatura francesa.
5
Manuel Eugénio Gándara Carballido é Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo.
Membro da Red de Apoyo por la Justicia y la Paz e do Instituto Joaquín Herrera Flores.
Professor no Programa Oficial de Máster en Derechos Humanos, Interculturalidad y
Desarrollo da Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, Espanha; Professor Visitante no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Phillipe Cupertino Salloum e Silva é Professor de Direito Constitucional da
Universidade Estadual de Goiás. Doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade
Federal da Paraíba. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. O
autor atua como assessor jurídico popular, desde 2015, para movimentos e associações
ciganas de diferentes estados da federação.
Roberta Cristina Eugênio dos Santos Silva Mestre em Direito pela UFRJ e bacharela
em Direito pela UERJ. Com experiência profissional nas áreas de Direitos Humanos,
Teoria das Relações Raciais, Políticas Públicas, Gênero e Violência Política, foi advogada de
organizações do terceiro setor que atuam em defesa dos direitos humanos, bem como
atuou como assessora jurídica parlamentar na esfera municipal e estadual. Atualmente
integra o Instituto Alziras e é colunista do Congresso em Foco.
Vanessa Oliveira Batista Berner é Mestre e Doutora em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais; Professora Titular de Direito Constitucional da Faculdade
Nacional de Direito da UFRJ; e Coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.
6
Pensamentos descolonizadores:
Conceitos-chave para ampliar o
debate democrático
Ana Laura Becker de Aguiar
Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar conceitos-chave dos pensamentos póscolonial e descolonial1, aqui chamados de descolonizadores2, com o intuito de auxiliar
na compreensão dessas perspectivas teóricas e de suas ferramentas metodológicas. Esse
esforço justifica-se pela percepção de que as teorias hegemônicas do pensamento
ocidental eurocentrado não conseguiram enfrentar adequadamente a discussão sobre
uma democracia pluralista, antirracista e feminista. Os conceitos que serão apresentados
auxiliam a compreender a crise do Estado moderno e a crise democrática que seus
teóricos denunciaram. Ademais, ajudam-nos a pensar alternativas além dos moldes
universalizantes para imaginar o inimaginável a partir de baixo, ou seja, da perspectiva
daqueles que estão à margem da democracia ocidental atual (LANDER, 2005).
Sob essa perspectiva, e reconhecendo a fertilização cruzada entre os pensamentos
pós-colonial e descolonial, este artigo buscará apresentar e sistematizar os seguintes
conceitos-chave:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
A teoria da perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade
O Orientalismo e o eurocentrismo
O mito da modernidade
A diferença do terceiro mundo
A diferença colonial
A colonialidade do poder e a invenção da raça
Em conjunto, esses conceitos são ferramentas epistemológicas que nos ajudam a dar
um passo atrás para descontruir pré-conceitos teóricos e filosóficos e para pensar de
maneira crítica a realidade, aprofundando o debate democrático com foco transformação
e transgressão da sociedade a partir dos interesses dos grupos mais marginalizados
7
1. Neste artigo será utilizado o termo “descolonial” para se referir ao
2. Empresto o termo descolonizadores de Silvia Rivera Cusicanqui,
conjunto dos pensamentos descolonial e decolonial, com exceção
conforme utilizado em seu livro intitulado “Ch’ixinakax utxiwa: Una
dos trechos em que esteja indicado em contrário. Essa abordagem
reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores” (RIVERA
será explicada na seção de contextualização histórica e teórica.
CUSICANQUI, 2010
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
e excluídos. Nesse contexto, a democratização não deve ser apenas um método de
escolha de líderes representativos e deve representar muito mais que um codinome
para a reestruturação sócio-política mundial gerada pelo processo colonial capitalista.
Se quisermos levar a sério a necessidade de envolver o maior setor do eleitorado do “Sul
Glo-bal” no processo democrático, será necessário descolonizar, racializar e feminizar
nossa perspectiva por meio de uma epistemologia voltada para o subalterno, aprendendo
a (re)aprender com as pessoas que estão excluídas do sistema (SPIVAK, 2004). Este é o
esforço proposto pelos pensamentos descolonizadores.
Na próxima seção será realizada uma contextualização teórica e histórica sobre os
pensamentos descolonizadores, pós-coloniais e descolonial, de modo a localizar as
teorias e trazer à tona suas interconexões. Nas seções seguintes serão abordados
diretamente os conceitos-chave mencionados.
Antes de prosseguir, cabe observar que, ainda que se reconheça as diferenças entre os
pensamentos pós-coloniais, descolonial ou decolonial, feministas, dos estudos culturais
e da raça, interessa-nos estudar alguns conceitos descolonizadores e como eles se
entrecruzam, tornando-se cada vez mais complexos e radicais, proporcionado um
debate crítico, antirracista, anti-imperialista, feminista e plural. Trata-se de um esforço
transfronteiriço e transdisciplinar, que visa apontar e estudar ferramentas epistêmicas
críticas e não identificar os conceitos como parte de uma ou outra teoria. Adota-se uma
abordagem que busca destacar as relações e diálogos entre os diferentes referenciais
teóricos e seus ricos debates, em lugar de apontar descontinuidades ou limites teóricos.
Não se pretende esgotar o debate, compreendendo que muitos conceitos, autores e
debates teóricos não foram citados, pelos limites do escopo deste artigo. Tampouco
busca-se criar novas terminologias. O artigo se propõe a costurar alguns pontos de partida
em comum entre autores e conceitos que buscaram aprofundar ideias descolonizadoras
com foco na transformação e transgressão das vidas das pessoas subalternizadas.
Contextualização teórica e histórica dos pensamentos descolonizadores
Os pensamentos descolonizadores, tanto pós-colonial, quanto descolonial, fazem
parte do arcabouço teórico crítico cujo grande desafio é desnaturalizar o mundo e a
maneira como este funciona (OLIVEIRA BATISTA; LOPES, 2014). No entanto, essas
perspectivas teóricas oferecem uma crítica ao pensamento crítico, buscando superar os
limites do pensamento monocultural moderno e da construção dos seus sujeitos modernos
(racializados, hierarquizados, generificados) buscando dar um passo além na mudança
8
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
de perspectiva para que o foco seja a transformação da vida dos mais marginalizados das
sociedades (GÁNDARA CARBALLIDO, 2015).
O pensamento pós-colonial
O pensamento pós-colonial refere-se a uma proposta ampla que apresenta uma ruptura
epistemológica partindo de uma construção coletiva crítica e interdisciplinar envolvendo
história, literatura, estudos culturais, sociologia, estudos de gênero, raça, entre outros
(ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007).
O pensamento pós-colonial, em linhas gerais, consiste em uma perspectiva teórica que
busca descortinar os impactos do processo de colonização nas relações de poder que
moldaram as estruturas econômicas, políticas e sociais nos últimos séculos, apontando
para os efeitos contínuos da colonização até o presente, especialmente na produção e
reprodução do conhecimento, assim como das estruturas sociais.
No entanto, mais do que uma teoria, a perspectiva pós-colonial refere-se a um grupo
de respostas, lutas e atitudes contra o processo colonial e as estruturas de poder e
dominação que se fizeram presentes a partir de então. Por esse motivo, é possível traçar
suas origens no surgimento de autores e lideranças envolvidas com as lutas anticoloniais
da virada do século XIX para XX, tendo culminado com sua institucionalização e expansão
na academia nos anos 1980, com a criação do Grupo de Estudos Subalternos – GES
(MCEWAN, 2009; YOUNG, 2001).
Um dos primeiros marcos do pensamento pós-colonial pode ser traçado a partir
do movimento pan-africanista dos anos 1890, que é um movimento político de luta
antirracista e anticolonial por libertação dos africanos e descendentes de africanos
afetados pelo tráfico de pessoas escravizadas. Esse movimento proporcionou uma nova
narrativa epistêmica na qual os povos africanos e seus descentes foram protagonizados e
valorizados com o objetivo de proporcionar sua união, tanto na África como em diáspora,
por meio de um movimento de solidariedade e resistência à exploração, tendo como base
princípios antirracistas, anticoloniais e anti-imperialistas. O movimento é considerado
um marco no pensamento pós-colonial por apresentar uma inovação no discurso:
uma narrativa contra-hegemônica com novos desenvolvimentos epistemológicos, que
defendia direitos de igualdade para a população negra e subalternizada, fortemente
discriminada pelo discurso hegemônico colonial (MCEWAN, 2009).
9
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Os principais expoentes do pan-africanismo foram Henry Sylvester Williams, advogado
e escritor de Trinidad e Tobago, e William Edward Burghardt (W.E.B.) Du Bois,
historiador, sociólogo e ativista dos direitos civis dos Estados Unidos da América (EUA),
ambos considerados os pais do movimento pan-africanista. Du Bois desenvolveu a ideia
bastante utilizada por teóricos pós-coloniais e descoloniais de que o mundo é dividido
por uma “linha de cor”, que divide a humanidade entre a categoria humano (humanitas/
humanidades), composta por brancos, e a categoria não-humano (anthropos), composta
pelas comunidades colonizadas e desumanizadas (DU BOIS, 2007; MALDONADO-TORRES,
2012; MCEWAN, 2009; SPIVAK, 2018b).
Alguns dos líderes dos movimentos de luta pan-africanistas foram: Marcus Mosiah
Garvey, jamaicano, líder do movimento “De volta para a África” durante os anos 20; e
Sol Plaatje, da África do Sul, ativista contra a falaciosa caracterização dos negros como
não civilizados. Esses pensadores influenciaram muitas lutas por libertação em diversos
países e diversos intelectuais que se tornaram importantes figuras políticas, como Jomo
Kenyatta, primeiro presidente do Quênia, e Kwawe Nkrumah, primeiro presidente de
Gana. O pan-africanismo também inspirou Haile Selassie, imperador da Etiópia entre
1930 a 1974 e símbolo do movimento rastafári.
Também com inspiração pan-africanista, entre 1920 e 1930, nos Estados Unidos, surgiu
o movimento cultural de Renascimento do Harlem, marcado pela promoção do orgulho
racial e das artes e da literatura negra do qual faziam parte muitos afrodescendentes
de colônias africanas e do Caribe. Entre os anos 40 e 50, o Renascimento do Harlem
inspirou outro movimento, conhecido como “negritude”, que emergiu entre intelectuais
negros francófonos das colônias francesas do Caribe e da África. Entre eles, destacamse Léopold Sédar Senghor, que se tornou presidente do Senegal em 1960, Aimé Césaire,
poeta da Martinica, e Léon Gontran Damas, poeta, escritor e político da Guiana Francesa.
O movimento negritude consistia na valorização do negro e na solidariedade em favor
de uma identidade negra comum. O movimento representou um esforço para combater
os preconceitos do discurso colonial e racista e é inspiração poética e filosófica para o
pensamento antirracista até os dias atuais (MCEWAN, 2009).
A América Latina, por sua vez, é considerada uma região especial na história do
anticolonialismo, tendo forte relação com a teoria pós-colonial. Em referência às lutas
anticoloniais que marcaram o pensamento pós-colonial na região, destacam-se os
movimentos Zapatista, no México, em 1910, e a revolução cubana de 1959, que inspirou
movimentos revolucionários em todo o mundo, inclusive no sudeste da Ásia e na África.
10
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Robert J. C. Young (2001) destaca o fato de que a região foi sujeita ao colonialismo e
ao neocolonialismo como nenhuma outra, tendo sido fortemente pressionada pelo
imperialismo norte-americano, o que deu origem à teoria da dependência, além de
destacar Che Guevara como importante pensador e liderança revolucionária anticolonial.
As lutas e narrativas revolucionárias influenciaram o desenvolvimento de uma literatura
anticolonial que, posteriormente, serão importantes para a sistematização da teoria
acadêmica pós-colonial nos anos 80, com o GES. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos
do poeta e romancista Chinua Achebe, da Nigéria, especialmente, por seu artigo sobre o
livro “O Coração das Trevas” (Heart of Darkness, no original), de Joseph Conrad, intitulado
“Uma imagem da África: racismo no Coração das Trevas de Conrad”, de 19753. O artigo
é referência de crítica pós-colonial, pois denuncia o racismo dos europeus na forma
como retratavam a África. Também são figuras proeminentes da literatura anticolonial
autores como Ousmane Sembène, roteirista e cineasta senegalês; o indiano Mahatma
Gandhi; o trinidadiano C.L.R. James; o guianense Walter Rodney; o queniano Ngũgĩ wa
Thiong’o; e o sul-africano Steve Biko.
Outra figura importante na transição para a academia foi Amílcar Cabral, da GuineaBissau e Cabo Verde, intelectual, diplomata, poeta e revolucionário anticolonial, que
liderou o movimento nacionalista dos seus países de origem. Cabral dizia que a luta
anticolonial estava relacionada não somente com lutar por melhores condições dos povos
colonizados, contra a pobreza, miséria e por direitos, mas também contra o fato de que os
colonialistas tiraram dos povos africanos sua própria história (VILLEN, 2013; YOUNG, 2001).
Um dos primeiros autores a trazer para a academia europeia as questões relacionadas
aos movimentos e expressões anticoloniais foi Frantz Fanon, considerado o mais
proeminente pensador do século XX no campo da descolonização e psicopatologia da
colonização. Nascido na Martinica e aluno de Aimé Césaire (pan-africanista), seu primeiro
livro, “Pele negra, máscaras brancas” (Peau noire, masques blancs, no original), de 1952,
é um marco para os estudos anti-pós-coloniais (HULME, 1995; MCEWAN, 2009). No livro,
o autor analisa o impacto da subjugação colonial na psiquê das pessoas negras e como
a relação de dominação entre colonizador e colonizado é normalizada. Influenciado
pelo existencialismo de Sartre e pelo Lacan, uma das principais questões abordadas
por Fanon (2008) é como o racismo cega o próprio homem negro de sua subjugação ao
universalizar a experiência branca como norma e o aliena da consciência sobre essa
dominação. Abordando questões autobiográficas de forma altamente reflexiva, já que
era membro da elite colonizada, mas negro e nascido na Martinica, Fanon introduz de
3. Interessante notar que o referido livro de Conrad também serviu de inspiração para o filme Apocalipse Now enquanto crítica à guerra
do Vietnã.
11
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
forma original a análise sobre a maneira como o colonialismo afeta o desenvolvimento
das subjetividades dos colonizados, especialmente das elites coloniais, assim como dos
novos líderes nacionais (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007). Suas contribuições
teóricas demonstram a necessidade urgente de desconstruir e reconstruir os discursos
como forma de libertação.
A partir da década de 1970, o pensamento pós-colonial passou a ser fortemente influenciado
por Michel Foucault e por outros pós-estruturalistas franceses, especialmente por suas
contribuições filosóficas e discussões relacionadas ao poder/saber, à linguagem e à
desconstrução, conceitos que, inclusive, estão na base da crítica pós-colonial, conforme
formalizada na academia na décadas de 1980 (CHAKRABARTY, 2000).
Uma das obras consideradas como marco do pensamento pós-colonial é o livro de
Edward Said, publicado em 1978, chamado “Orientalismo” e traduzido para o português
como “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”. O subtítulo em português
explica a grande contribuição da obra em denunciar a construção epistêmica dos nãoeuropeus como “Outros” exóticos a partir do olhar dos ocidentais. Este conceito será
abordado com mais detalhamento na seção seguinte.
Contudo, conforme mencionado, a sistematização do pensamento pós-colonial na
academia europeia deu-se apenas na década de 1980, com o Grupo de Estudos
Subalternos (GES), um coletivo de acadêmicos majoritariamente composto por
historiadores indianos radicados na Inglaterra, interessados em estudar as sociedades póscoloniais no Sul da Ásia, especialmente na Índia, a partir da perspectiva do subalterno e das
não-elites. Por focar-se nesse contexto geopolítico, mais tarde o grupo ficou mais
conhecido como Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia.
O GES foi fundado por Ranajit Guha, historiador da Universidade de Sussex na época, e
editor de vários volumes de genealogias históricas elaboradas pelo grupo, assim como
por Shahid Amin, David Arnold, Partha Chatterjee, David Hardiman e Gyan Pandey, que
produziram cinco volumes da coleção de ensaios historiográficos chamada Subaltern
Studies (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 2007; GUHA, 1982). Mais tarde, fizeram parte
do grupo Gyan Prakash, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakravorty Spivak.
Além de colocar o subalterno como protagonista da história, o GES apresentou uma
inovação epistêmica a partir de seu olhar crítico e suspeitoso quanto aos pressupostos
e às verdades do conhecimento eurocêntrico. Um dos seus objetivos era descolonizar a
12
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
produção do conhecimento. Segundo o historiador Robert J.C Young (2001), o GES foi,
em vários sentidos, o herdeiro intelectual e político dos movimentos de libertação em
termos de escrita da história a partir da agência e protagonismo dos subalternos.
A escolha da utilização do termo subalterno, que dá nome ao grupo, deu-se porque
utilizavam, originalmente, uma perspectiva marxiana gramsciana, baseada no conceito
de grupos subalternos de Gramsci (MCEWAN, 2009). O GES ampliou e popularizou o termo
subalterno, que passou a ser entendido para se referir aos “excluídos da mobilidade
social e cujas vozes não são ouvidas ou ignoradas” (SPIVAK, 2004, p. 180). Nesse sentido,
os estudos pós-coloniais procuram revelar como uma certa perspectiva da história
global foi arbitrariamente construída como algo universal e linear e quais atores
sociais e grupos foram “historicizados” e narrados em detrimento de outros, que foram
invisibilizados e ocultados. Também buscam trazer luz ao fato de que algumas práticas
e culturas foram celebradas e legitimadas, enquanto outras foram desqualificadas ou
dizimadas. Nesse sentido, denunciam que a produção do conhecimento não é neutra e
desinteressada, mas, reflete, sobretudo, uma narrativa contada pelas elites, detentoras
do poder de impor sua versão da história.
O pensamento pós-colonial também foi fortemente marcado por Homi Bhabha,
também indiano, teórico da literatura, tendo lecionado por dez anos na Universidade de
Sussex e, atualmente, reconhecido por tornar mais complexa a compreensão da relação
entre colonizador e colonizado e aprofundar a discussão sobre os efeitos da
colonialidade e suas expressões contemporâneas, descrevendo o encontro colonial
como um espaço de interação ambivalente e híbrido (BHABHA, 1994).
Além disso, Gayatri Spivak, indiana, teórica da literatura, é considerada a mais influente
pensadora dos estudos pós-coloniais. Foi tradutora do livro “Gramatologia”, de Jacques
Derrida, para o inglês e, como mencionado, fez parte do Grupo de Estudos Subalternos.
Spivak realizou contribuições teóricas especialmente relevantes por articular, no
pensamento pós-colonial, a crítica feminista e problematizar a discussão sobre
representação, interpretação e apropriação do discurso da pessoa subalterna. Seu artigo
“Pode o subalterno falar? (“Can the subaltern speak?”) (SPIVAK, 1988) é considerado seminal.
Nele, Spivak questiona a prática de intelectuais privilegiados de reivindicarem as vozes
subalternas através de sua linguagem técnica, por meio da sua essencialização e da busca
da vítima autêntica, considerando como efeito desta prática uma violência epistêmica que
silencia e contém a própria capacidade subalterna de falar por si mesma (MORTON, 2003).
13
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Em resumo, o pensamento pós-colonial apresenta-se como uma grande contribuição
filosófico-teórica devido a seu desengajamento crítico do projeto colonial e do pensamento
moderno e eurocentrado, que provocou (e provoca) reflexões sobre as possibilidades e
meios para atuar politicamente no campo das ideias e da prática para transformar o
mundo em prol dos subalternos (HALL, 2008).
Além disso, pode-se dizer que esse pensamento é responsável por popularizar as
perspectivas críticas descolonizadoras na produção teórica da academia norteamericana e europeia, fazendo surgir o interesse por estudos e pensamentos
descolonizadores no Norte Global. Por outro lado, a incorporação do pensamento póscolonial em muitas universidades norte-americanas como “estudos pós-coloniais”,
passou a adotar um viés bastante culturalista e acadêmico, distanciando-se do sentido
de emergência política que marcou os intelectuais do Grupo de Estudos Subalternos,
muitas vezes reproduzindo práticas (neo)colonizadoras e imperialistas sem alterar a
relação de forças dentro dos “palácios” do Império (RIVERA CUSICANQUI, 2010).
A própria Spivak passou a se distanciar dos estudos pós-coloniais. Em entrevista, Spivak
(2018a) afirma que devemos seguir adiante e não nos preocupar em corrigir ou culpar o
uso errado do pensamento, mas refletir sobre qual é o projeto que nos interessa. “Eles
não sabem que o subalterno não existe”, logo, devemos seguir a diante4.
O pensamento descolonial
Inspirados pelo desenvolvimento da nova corrente de pensamento pós-colonial,
estudiosos latino-americanos criaram o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos
para estudar o subalterno na América Latina (SUBALTERNOS, 1998). O Grupo também
era composto majoritariamente por intelectuais radicados nos Estados Unidos e buscava
realizar o mesmo esforço de descolonizar a produção de conhecimento sobre e na
América Latina (SUBALTERNOS, 1998).
Logo em seu início, Grupo se desmembrou. Grosfoguel (2009), um dos integrantes do grupo
que optou pela ruptura, explica que o rompimento se deu devido a uma necessidade de
transcender epistemologicamente e descolonizar a própria epistemologia e a produção de
conhecimento. Entre as várias razões, destaca o desacordo em privilegiar marcos teóricos
europeus, como Derrida, Foucault e Gramsci; a compreensão da ideia de subalternidade
pelos viés da crítica pós-moderna ao invés da crítica descolonial e da compreensão sobre
a colonialidade; e a necessidade de se desenvolver uma epistemologia que privilegiasse
4. Entrevista em inglês, por Adriana Bebiano e Catarina Martins, do
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hdU5G-dun-
Programa de Doutoramento em Estudos Feministas, do Centro de
PQ&list=PLP5psTSlt25DZZQPuN95x0TgxcEA0cdvn&index=12
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em 30 de outubro de 2018.
14
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
a produção “do” subalterno e não “sobre” o subalterno, distanciando-se de uma prática
comum dos Estudos Regionais presentes nos Estados Unidos de estudar o Sul com as
referências do Norte. Nesse sentido, Grosfoguel ressalta que tanto o Grupo de Estudos
do Sul da Ásia quanto o Grupo Latino-Americano realizavam uma crítica a partir do pósmodernismo. No entanto, o primeiro privilegiava a crítica pós-moderna a partir do “Sul
Global”, enquanto o segundo, do Norte Global. Reconhecendo a importante contribuição
do Grupo Sul Asiático sobre os debates contra o eurocentrismo, notou-se a necessidade
de ir além dos paradigmas universalistas (pós-)modernos e ocidentais para buscar uma
epistemologia que reconheça a diversidade das cosmovisões em um projeto pluriversal,
que leve a sério as perspectivas e cosmologias de intelectuais do Sul Global pensando
a partir dos corpos e espaços raciais/sexuais/étnicos subalternizados. A esta virada de
perspectivas, chamaram de “giro decolonial” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Esta virada foi resumida e apresentada em um excelente artigo acadêmico produzido
por Luciana Ballestrin (2013), com o qual este artigo dialoga e complementa.
Neste processo, instituiu-se o Grupo Modernidade/Colonialidade (conhecido como
Grupo M/C) a partir de uma série de encontros e produções acadêmicas de intelectuais,
majoritariamente latino-americanos, caribenhos e norte-americanos que tinham
relação com a academia norte-americana. Destaca-se, a participação da Associação
Caribenha de Filosofia, do qual faz parte Maldonado-Torres no estabelecimento do grupo
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Dessa forma, criou-se uma rede de pensadores
que apresenta como uma crítica ao pensamento crítico pós-colonial, buscando ir mais
além dos seus limites anglo-saxões.
Quanto à diferença de grafia ou abordagem entre descolonial e decolonial, Catherine
Walsh apresenta uma proposta de privilegiar o uso do termo “decolonial” (sem “s”) a
fim de demarcar uma nova postura epistêmica. A esse respeito, destaco a explicação de
Walsh (2017, p. 16) sobre o tema:
Dentro da literatura relacionada à colonialidade do poder, encontramse referências tanto à descolonialidade como ao descolonial, assim como
à decolonialidade e ao decolonial. Sua referência dentro do projeto de
modernidade/colonialidade começa em 2004, abrindo assim uma nova fase em
nossa reflexão e discussão. A supressão do “s” é minha opção. Não se trata de
promover um anglicismo. Pelo contrário, visa marcar uma distinção com o
significado espanhol de “des” e o que pode ser entendido como um simples
desarmar, desfazer ou reverter do colonial. Ou seja, passar de um momento
15
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
colonial para um não-colonial, como se fosse possível que seus padrões e traços
deixassem de existir. Com este jogo linguístico, tento colocar em evidência
que não existe um estado nulo de colonialidade, mas sim posicionamentos,
horizontes e projetos de resistência, transgressão, intervenção, in-surgência,
criação e incidência. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua
no qual “lugares” de exterioridade e construções alter-(n)ativas podem ser
identificados, tornados visíveis e encorajados5.
Por outro lado, Silva Rivera Cusicanqui, no livro intitulado “Ch’ixinakax utxiwa: Una
reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores”6 , publicado em 2010, apresenta
uma dura crítica à Walter Mignolo e Catherine Walsh por adotarem práticas de
colonialismo interno e da proliferação de neologismos que confundem e paralisam. Cabe
resumir aqui alguns trechos da crítica de Rivera Cusicanqui (2010, p. 58, 64–65):
Os Mignolos e companhia construíram um pequeno império dentro do
império, recuperando estrategicamente as contribuições da escola de
estudos subalternos da Índia e de múltiplas vertentes latino-americanas de
reflexão crítica sobre colonização e descolonização. (...) Retomou minhas
ideias sobre o colonialismo interno e sobre a epistemologia da história
oral e as regurgitou em um discurso profundamente despolitizado sobre a
alteridade. (...) A moda da história oral se espalhou, então, para a Universidade
Andina Simón Bolivar de Quito, cujo Departamento de Estudos Póscoloniais, sob a direção de Catherine Walsh - discípula e amiga de
Mignolo, ensina um curso de pós-graduação inteiramente baseado na
versão logocêntrica e nominalista da descolonização. Neologismos como
“de-colonial”, “transmodernidade”, “eco-si-mia” proliferam e emaranham a linguagem, deixando seus objetos de estudo - povos indígenas e
afrodescendentes - paralisados, com quem acreditam dialogar. Mas eles
também criam um novo cânone acadêmico, usando um mundo de referências e
contra-referências que estabelece hierarquias e adota novos gurus: Mignolo,
Dussel, Walsh, Sanjinés. Dotados de capital cultural e simbólico graças ao
reconhecimento e certificação de centros acadêmicos nos Estados Unidos,
esta nova estrutura de poder acadêmico se realizada na prática através
de uma rede de professores convidados e visitantes entre universidades e
5. No original: “Dentro de la literatura relacionada a la colonialidad
huellas dejaran de existir. Con este juego lingüístico intento poner
del poder, se encuentran referencias tanto a la descolonialidad y lo
en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino
descolonial, como a la decolonialidad y lo decolonial. Su referencia
posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistencia,
dentro del proyecto de modernidad/colonialidad se inicia en 2004,
transgresión, intervención, in-surgencia, creación e incidencia. Lo
abriendo así una nueva fase en nuestra reflexión y discusión. Suprimir
decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual
la “s” es opción mía. No es promover un anglicismo. Por el contrario,
se puede identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y
pretende marcar una distinción con el significado en castellano
construcciones alter-(n)ativas”.
del “des” y lo que puede ser entendido como un simple desarmar,
16
deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, pasar de un momento
6. Em português: Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e
colonial a uno no colonial, como si fuera posible que sus patrones y
discursos descolonizadores.
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
através do fluxo - do sul ao norte - de estudantes indígenas ou
afrodescendentes da Bolívia, Peru e Equador, que são responsáveis pela
sustentação do multiculturalismo teórico, racializado e exótico das academias7.
Como mencionado anteriormente, mais do que identificar os limites teóricos e suas
diferenças, este artigo busca costurar as relações e entrecruzamentos entre as diversas
perspectivas críticas dentro de um projeto comum de repensar e reconstruir a sociedade
a partir do ponto de vista das pessoas subalternizadas. Nesse sentido, busca-se apresentar
uma leitura dialógica dos pensamentos pós-coloniais e descoloniais e seus debates
internos, apontando para as suas convergências, reconhecendo como positivo o esforço
de buscar propostas cada vez mais transgressoras de nossa realidade. Como destacado
por Spivak (2018a), em entrevista mencionada acima, é preciso refletir sobre quais
debates servem aos nossos projetos e, nesse sentido, entende-se que devemos seguir
adiante, sempre vigilantes quanto às nossas práticas, para evitar essencializar o subalterno
(compreendido enquanto perspectiva) e não praticar novos tipos de colonialismos.
Assim, para a finalidade deste artigo, nas próximas seções, será utilizado o termo
pensamentos descolonizadores, referindo-se ao pensamento pós-colonial e descolonial.
Antes de passar para os conceitos, é importante destacar que o pensamento feminista
perpassa os pensamentos descolonizadores de forma transversal, rompendo
com as fronteiras disciplinares. Muitas intelectuais feministas introduziram
questionamentos aos pensamentos pós-colonial e descolonial a partir de dentro
promovendo ideias seminais, como nos casos de Spivak, Mohanty, Curiel e Cusicanqui
(CURIEL, 2013; MOHANTY, 1988; RIVERA CUSICANQUI, 2010; SPIVAK, 1988). Abordar
os conceitos e contribuições das teóricas feministas fogem ao escopo deste artigo.
17
7. No original: “Los Mignolo y compañía han construído un pequeño
mía” proliferan enredan el lenguaje, dejando paralogizados a sus
imperio dentro del imperio, recuperando estratégicamente los
objetos de estudio –los pueblos indígenas y afrodescendientes–
aportes de la escuela de los estudios de la subalternidad de la India y
con quienes creen dialogar. Pero además, crean un nuevo canon
de múltiples vertientes latinoamericanas de reflexión crítica sobre la
académico, utilizando un mundo de referencias y contrarreferencias
colonización y la descolonización. (…) Retomaba ideas mías sobre el
que establece jerarquías y adopta nuevos gurús: Mignolo, Dussel,
colonialismo interno y sobre la epistemología de la historia oral, y las
Walsh, Sanjinés. Dotados de capital cultural y simbólico gracias al
regurgitaba enredadas en un discurso de la alteridad profundamente
reconocimiento y la certificación desde los centros académicos de
despolitizado. (…) La moda de la historia oral se difunde entonces a
los Estados Unidos, esta nueva estructura de poder académico se
la Universidad Andina Simón Bolivar de Quito, cuyo departamento
realiza en la práctica a través de una red de profesores invitados y
de Estudios Poscoloniales, al mando de Catherine Walsh –discípula
visitantes entre universidades y a través del flujo –de sur a norte–
y amiga de Mignolo, imparte un postgrado enteramente asentado
de estudiantes indígenas o afrodescendientes de Bolivia, Perú y
en la versión logocéntrica y nominalista de la descolonización.
Ecuador, que se encargan de dar sustento al multiculturalismo
Neologismos
teórico, racializado y exotizante de las academias”.
como
“de-colonial”,
“transmodernidad”,
“eco-si-
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Conceitos-chave:
1 – A Teoria da Perspectiva e os conceitos de forte objetividade e reflexividade
Os pensamentos críticos, tanto pós-coloniais, descoloniais, feministas e antirracistas
entendem que é preciso reconhecer que o conhecimento não é neutro, mas é um produto
histórico das relações de poder, datadas, e que refletem, na maior parte das vezes,
interesses ou perspectivas de grupos específicos e hegemônicos. Esse reconhecimento
é o primeiro passo para a construção de debates dialógicos e de uma democracia que
reconhece as diferenças, a pluralidade de opiniões e a possibilidade de uma visão
pluralista e diversa ao invés de monolítica e universal da realidade.
Uma das maiores contribuições teóricas realizados nesse debate foi realizado pelas
teóricas feministas da “Teoria da Perspectiva” ou “Teoria do Ponto de Vista”8, que tem
como base os pressupostos marxianos do ponto de vista do proletário. Entre as principais
autoras desta teoria, destacam-se Dorothy Smith, Nancy Hartsock, Sandra Harding,
Donna Haraway e Patricia Hill Collins9.
A teoria da perspectiva iniciou-se com a discussão sobre a questão da mulher na ciência,
mas, especialmente, a questão da “ciência” para o feminismo, problematizando a ciência
moderna para o campo do feminismo e questionando a neutralidade como objetividade
(HARDING, 1991). A teoria da perspectiva cimentou uma das rupturas epistemológicas
mais profundas do pensamento crítico, que trata sobre o reconhecimento de que não há
neutralidade na produção de conhecimento/ciência, entendendo-o como um produto
das relações sociais a que está inserido. Dessa forma, questionou-se a neutralidade como
único grau razoável para garantir objetividade e argumentou-se o contrário, que para ser
mais objetivo e transparente (especialmente menos sexista, androcêntrico, antirracista,
anti-imperialista) seria necessário partir do ponto de vista dos grupos marginalizados
(HARDING, 2019).
Inicialmente, para as feministas, como Harding (1991), havia uma preocupação em
questionar o androcentrismo (pensamento com foco no homem) na ciência, por
8. No Brasil, a teoria de ponto de vista (“standpoint theory”) já foi
9. Os principais artigos que marcaram essas contribuições são:
traduzida como “teoria do posicionamento alternativo” na revista
(HARAWAY, 1988; HARDING, 1991; HARTSOCK, 1983; MIÑOSO, 2019;
Estudos Feministas, em artigo intitulado “A instabilidade das
SARDENBERG, 2002; SMITH, 1987).
categorias analíticas na teoria feminista”, em 1993 (HARDING, 1993).
Também foi traduzida como “teoria da perspectiva” na tradução
do artigo de Sandra Harding, intitulado “Objetividade mais forte
para ciências exercidas a partir de baixo”, em 2019 (HARDING, 2019).
Também ficou bastante conhecida a partir da publicação do livro
de Djamila Ribeiro que traduziu a perspectiva para ideia de lugar de
fala em seu livro intitulado “O que é: lugar de fala?” (RIBEIRO, 2017).
18
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
meio da qual foram justificadas perspectivas sexistas, ainda que suas bases tenham
sido elaboradas para categorias amplas de pessoas marginalizadas. Posteriormente,
Patricia Hill Collins (1986) expandiu os debates de forma a incluir a discussão sobre
raça. Apresentou a ideia de que a mulher negra, sendo uma “outsider within” (forasteira
de dentro), possui um lugar privilegiado e um ponto de vista especial a sociologia e
a produção de conhecimento. Cabe ressaltar, por exemplo, que a inferioridade intelectual
da mulher e de populações negras e indígenas foram justificadas “cientificamente”
pela biologia (HARDING, 2019). Harding (2013) destaca, por exemplo, o fato de Fanon
(1965) ter denunciado como a medicina foi cúmplice das atrocidades cometidas tanto
pelo Estado nazista quanto pelos Estados coloniais. Como será abordado mais adiante,
a partir das construções de Quijano (2005), essas diferenciações “naturais” justificadas
pelas perspectivas modernas dominantes serviam a interesses coloniais de dominação e
hierarquizações de humanos entendida como parte da colonialidade do poder.
A teoria da perspectiva entende que é preciso levar em consideração o conceito de
“parcialidade” das experiências e a posicionalidade, localidade ou lugar de fala dos
sujeitos na produção do conhecimento, uma vez que toda perspectiva será relativa e
parcial (HARAWAY, 1995). Nesse sentido, a perspectiva dos grupos marginalizados tornase um local privilegiado para compreender a matriz de opressão e buscar a transformação
da sociedade em realidades mais democráticas e inclusivas (BREWER; COLLINS, 1992).
Adotar a perspectiva do subalterno não significa procurar uma relação de identidade
com o seu objeto de pesquisa, mas uma relação de objetividade, que é sempre entendida
como parcial. Segundo Haraway (1995):
O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo,
dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita
e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser
outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico não
procura a posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de
conexão parcial. Não há maneira de “estar” simultaneamente em todas, ou
inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas
por gênero, raça, nação e classe. E esta é uma lista resumida das posições
críticas. A procura por uma tal posição “inteira” e total é a procura pelo objeto
perfeito, fetichizado, da história oposicional, que às vezes aparece na teoria
feminista como a essencializada Mulher do Terceiro Mundo (Mohanty, 1984).
19
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Logo, compreende-se que o estudo científico é resultado de conhecimentos localizados e
do engajamento dos pesquisadores, os quais devem reconhecer seu lugar de fala e onde
se situam na história, na cultura e na sociedade, uma vez que o contexto implicará nos
seus valores, metodologias, temas de pesquisa e interpretações (HARDING, 1991).
A fim de aprofundar a ideia de objetividade, tão prezada pela ciência moderna, Harding
apresentou o conceito de “forte objetividade”10 , segundo o qual o pesquisador ou
pesquisadora (o eu cognoscente) não deve negar seu posicionamento, mas apresentálo de forma transparente. Além disso, deve-se sempre questionar se as convicções de
quem pesquisa influenciam suas premissas e suas conclusões, adotando uma postura
reflexiva sobre sua prática de produção de conhecimento, entendida como “reflexividade”
(HARDING, 1991). Sendo assim, não é possível universalizar a experiência humana,
suas relações, visões de mundo ou sistema de valores e a ideia de que a construção do
conhecimento e da ciência é moldada pelos valores socioculturais de quem a produz.
Nesse sentido, a própria concepção do Estado moderno, da ideia de um contrato social,
da estrutura democrática como a conhecemos é parte de um processo histórico que é
colonialista, androcentrêntrico, ocidental e, na maioria das vezes, monocultural.
Outra importante reflexão nesse sentido é a necessidade de romper com a perspectiva
universalista dos direitos humanos e dialogar com sua proposta ética a partir de sua
localização histórica e sociocultural (HERRERA FLORES, 2009; SEGATO, 2006; SPIVAK,
2004). No mesmo sentido, análises críticas revelam o enviesamento de ideias supostamente
neutras, abstratas e universais, como: o desvelamento do Estado como uma estrutura
patriarcal feito por Catherine MacKinnon (1989); a denúncia do Estado como perpetuador
de uma estrutura heterossexual feita por Ochy Curiel (2013); e a crítica à ideia de contrato
social desnudado por Carol Pateman (1988) como contrato sexual. Essas análises revelam
que, ao se adotar uma metodologia que parte de um ponto de vista marginal, é possível
questionar as estruturas e pensamentos vigentes para transformá-las.
2 - O orientalismo e eurocentrismo
Um importante conceito pós-colonial que nos ajuda a entender o viés ou a localização
do conhecimento e seus efeitos nefastos é o “orientalismo”, cunhado pelo pensador
palestino Edward Said (1978), que publicou o livro de mesmo nome considerado como
textos fundacional da teoria pós-colonial (SAID, 2003). Esse conceito é usado para
explicar o processo pelo qual os pensadores e líderes ocidentais criaram um discurso,
um sistema de verdade, no qual o não-Ocidente foi entendido como exótico, inferior
10. Também traduzido como “objetividade mais forte”(HARDING, 2019).
20
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
e misterioso, que deveria ser temido ou controlado. O “orientalismo” estabeleceu um
padrão monolítico de conhecimento e cultura que colocou o “Ocidente” como centro e
tudo em torno dele como primitivo e inferior, o “outro” (SAID, 2003). Enquanto palestino,
Said elaborou o conceito tendo como base o contexto do Oriente Médio e da Ásia.
Na perspectiva descolonial, voltada para América Latina, esse processo foi elaborado
por meio do conceito de eurocentrismo (DUSSEL, 2000; QUIJANO, 2005). Nesse sentido,
o Ocidente deixa de ser apenas um termo geográfico para se tornar uma metáfora
da cultura e de um sistema de pensamento baseado na Europa (eurocentrado) que é
exportado como pensamento único (MCEWAN, 2009).
O orientalismo é um conceito útil para descrever e compreender as estruturas
de relações de poder dentro do Norte/Sul, ou “Primeiro”/“Terceiro” mundo,
“Desenvolvido”/“Subdesenvolvido”, “Primitivo”/“Civilizado” que persistem relevantes na
discussão sobre desenvolvimento, Estado e democracia até hoje, como nos debates sobre
terrorismo, direitos dos povos e comunidades tradicionais, e direito das mulheres, para
citar alguns exemplos.
Na mesma linha, na América Latina, Dussel denuncia o eurocentrismo ao destacar que a
concepção da Europa como centro do mundo é uma invenção ideológica que apresenta
a cultura grega como exclusivamente europeia e ocidental, como se sempre tivesse sido
o “centro” da história (DUSSEL, 2000, p. 2,3). Dussel revela que a narrativa que coloca a
Europa no centro do mundo desconsidera as diversas histórias de distintos povos da
humanidade e o próprio lugar geopolítico da Europa, muito mais no limite ocidental do
mercado euro-afro-asiático.
3 - O mito da modernidade
Uma das principais expressões do orientalismo e do eurocentrismo foi a construção do
mito da modernidade. Dussel, membro do Grupo Latino-americano da Modernidade/
Colonialidade, explica o mito da modernidade descrevendo-o como a ideia autodidata
de que a Europa moderna era mais desenvolvida do que o resto do mundo (DUSSEL,
2000, p. 49). Essa superioridade criou uma imposição na dinâmica do poder, exploração e
dominação, para se lograr o “progresso prometido” nas sociedades “subdesenvolvidas” e
ditas “primitivas”. Com base nessa concepção, caso os “bárbaros” resistissem à civilização,
a violência seria usada como recurso pelo “bem” da comunidade a ser modernizada.
A violência e o sofrimento dos “primitivos” eram entendidos como uma circunstância
21
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
inevitável que enfrentavam em seu caminho natural para o “progresso”. Era tratada
como uma “violência inocente”, pois teria sido produzida por sua própria culpa: resistir
ao “progresso” e à “emancipação” (DUSSEL, 2000, p. 5). Dessa forma, atrocidades foram
cometidas contra as populações consideradas “primitivas” enquanto povos foram
exterminados e suas histórias dizimadas. A narrativa da modernidade defende que
assim se deu a “evolução” da humanidade, fundada na violência “inocente” praticada
pelos europeus para o próprio “bem” dos “não-europeus”.
Segundo Dussel (2000), somente quando negamos a inocência dessa violência e o mito da
modernidade será possível reconhecer a dignidade do “outro”, “oriental”, exótico, bárbaro
e primitivo, aquele sobre o qual não conhecemos por meio das lentes modernas. O autor
também cita o mito do estado de natureza (criados pelos autores contratualistas na
construção do Estado moderno), que contribui para separar corpo e mente, reiterando a
ideia de que os dominadores, racionais, modernos e evoluídos, são civilizados enquanto
os dominados (fora do contrato social eurocêntrico) são raças inferiores, irracionais,
primitivas e subdesenvolvidas, mais próximas da “natureza” e dos animais.
Descontruir o mito da modernidade permite-nos denunciar os Estados modernos como
estruturas coloniais, que se fundaram na desumanização dos povos originários e das
populações escravizadas, com efeitos que se perpetuam até os dias atuais. Segundo
Mignolo (2014, p. 46), a democracia liberal (fundada pelo Estado moderno) é na verdade
uma armadilha que beneficia a poucos (brancos e europeus) e marginaliza os demais.
Não é preciso muita imaginação para comparar o mito da modernidade ao mito do
“desenvolvimento”, da “segurança” e, também, em alguns casos, dos “direitos humanos”.
As vítimas desses projetos (de guerra contra o terrorismo, guerra contra as drogas, dos
deslocados por megaprojetos de infraestrutura e grande eventos, ou das vítimas das
intervenções pela ordem e segurança) são as mesmas de sempre, que as teorias póscolonial e descolonial chamam de “subalternas”. O trabalho dos estudiosos pós-coloniais
e descoloniais em desconstruir esses mitos temporais e espaciais é útil para compreender
as relações de poder e os efeitos de certas políticas e práticas na vida daqueles que são
os afetados por elas.
Rita Segato (2013) destaca que é preciso reconhecer a continuidade histórica entre a
conquista colonial, o ordenamento colonial do mundo e a formação pós-colonial
republicana que se estende até hoje. Para a autora:
11. No original: “En esa línea histórica, el calificativo de ‘bárbaros’ com el que actualmente la prensa describe a los bandidos es el mismo
que se utilizaba antes, como parte de la díada civilizacion-barbarie, para caracterizar a los indígenas, y, posteriormente, a todos aquellos
que quedaran al margen del disciplinamento letrado, todos los no blancos”.
22
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
“Nesta linha histórica, o termo ‘bárbaros’, como descrito atualmente pela
imprensa para os bandidos, é o mesmo usado anteriormente, como parte da
barbárie civilizatória, para caracterizar os índios, e mais tarde, todos aqueles
que permaneceram fora da disciplina da lei, todos os não-brancos” (SEGATO,
2013, p. 264, tradução nossa)11.
No mesmo sentido, ao referir-se sobre o pensamento iluminista e liberal que fundamenta
a formulação dos direitos no Estado moderno, Spivak nos atenta para o risco de se utilizar
o discurso dos direitos humanos como forma de corrigir os grupos de pessoas que não se
enquadram na categoria do “sujeito moderno”, da mesma forma como foram justificadas
as “violações capacitantes” (enabling violations) da produção do sujeito colonial com
base no mito da modernidade (SPIVAK, 2004). A utilização do discurso dos direitos
humanos para justificar intervenções humanitárias, por exemplo, pode se aproximar
das narrativas que um dia permitiram a realização de atrocidades e extermínios em
nome do fardo do homem branco colonial de levar “desenvolvimento” e “civilização” para
as populações primitivas onde se queria colonizar e dominar. As teorias pós-colonial e
descolonial clamam por uma nova epistemologia, complexa, lenta, localizada, focada
no subalterno e que inclua a diversidade das experiências histórico-políticas e
culturais. Nesse sentido, Luiz Tapia propõe a experimentação de políticas selvagens,
de desorganização e suspensão da ordem social de opressão e das estruturas de
desigualdades que possibilitem tempos de intersubjetividade igualitária (TAPIA, 2001, p.
126). Apenas uma teoria complicada, selvagem e fluída conseguirá começar a responder
aos desafios sociais contemporâneos para um debate realmente democrático.
A proposta descolonial avança no sentido de buscar alternativas de democracia e de
práticas políticas fora do eurocentrismo e dos pressupostos da modernidade. Como
apontado por Mignolo:
A democracia liberal é apresentada por aqueles que acreditam nela como
a opção preferida. O mesmo ocorre com as outras opções. Entretanto, o
diferencial de poder ainda está vigente. “Democracia” ainda reina no senso
comum. A tarefa de descolonizar a democracia consiste em remover as
espessas camadas de senso comum que consomem a ideia de democracia sem
refletir sobre o que traz nela os traços da colonialidade. A questão é que se
sempre foi uma aberração fingir que os fins propostos pela filosofia política
e econômica de uma história local são válidos para as outras, a aberração já
começou a ser corrigida (MIGNOLO, 2014)12.
12. No original: “La democracia liberal es presentada, por quienes creen en ella, como la opción preferida. Igual ocurre con las otras opciones. Sin embargo, el diferencial de poder está todavía vigente. “Democracia” todavía reina en el sentido común. La tarea de descolonizar
la democracia consiste en remover las espesas capas del sentido común que consume la idea de democracia sin reflexionar en que acarrea en ella las huellas de la colonialidad. La cuestión es que si siempre fue una aberración pretender que los fines que proponen la filosofia
política y económica de una historia local sean válidos para las otras, la aberración comenzó ya a ser corregida”.
23
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
4 - A diferença do terceiro mundo
Segundo Mohanty (1988, 2020), a partir de uma interpretação do mundo, geralmente
realizada por intelectuais brancas, ocidentais e do Norte Global e de suas experiências
e pontos de vista, o feminismo hegemônico apresentou uma narrativa de exploração
e violência que seria universal e comum a todas as mulheres, com base na sua
subordinação pelas relações de gênero. Essas violências seriam ainda mais intensas
no então terceiro mundo. Dessa forma, o feminismo hegemônico criou a narrativa da
“diferença do terceiro mundo” e de uma categoria monolítica de “mulheres do terceiro
mundo” como vítimas autênticas (MOHANTY, 1988). Nessa perspectiva, a experiência das
mulheres ocidentais e brancas (eurocêntrica) foi utilizada como parâmetro para definir
o que é ser mulher, omitindo a diversidade cultural e a pluralidade das mulheres e dos
seus contextos sociais, retirando-lhes toda a capacidade de agência e as figurando como
vítimas permanentes. Dessa forma o feminismo hegemônico estabelece uma relação de
saber-poder a partir de seus lugares de privilégio de sexo, raça, sexualidade e geopolítica.
Mohanty (1988) argumenta que, assim como no orientalismo, esse tipo de feminismo
(hegemônico), ao criar uma ideia de opressão sexual universal entre as mulheres, gerou
uma noção ou categoria monolítica de mulheres que, por consequência, gerou também
uma categoria identitária monolítica de “mulheres do terceiro mundo”, enquanto
mulheres não-ocidentais que compartilham a mesma opressão. Em geral, “as mulheres
do terceiro mundo”, por estarem posicionadas geopoliticamente em um local menos
privilegiado dentro do sistema-mundo capitalista, foram consideradas como mulheres
ignorantes, impotentes, pobres, sem instrução e vitimizadas, constituindo uma
colonização das experiências heterogêneas de mulheres não-ocidentais. Mohanty
chamou essa visão essencializada, monolítica e simplificada das mulheres do então
terceiro mundo de “diferença do terceiro mundo” (MOHANTY, 1988).
A crítica feminista pós-colonial apresentada por Mohanty repercutiu em um intenso
debate nos estudos de gênero e, associada às críticas apresentadas pelas feministas
negras, chicanas, especialmente as localizadas no “Ocidente”, contribuiu para promover
reconsiderações e desenvolvimentos teóricos mais complexos e densos sobre as
categorias de “mulheres” nos estudos feministas, produzindo, entre outros debates e
conceitos, o pensamento feminista interseccional, fronteiriço e descolonial.
24
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
5 - A diferença colonial
No mesmo sentido, o pensador da teoria descolonial Walter Mignolo desenvolveu o
termo “diferença colonial”. Para ele:
“A colonialidade do poder é o dispositivo que produz e reproduz a diferença colonial. A
diferença colonial consiste em classificar grupos de pessoas ou populações e identificálos em suas falhas ou excessos, o que marca a diferença e a inferioridade em relação
àquele que classifica. A colonialidade do poder é, acima de tudo, o lugar epistêmico
de enunciação no qual o poder é descrito e legitimado. Neste caso, o poder colonial”13
(MIGNOLO, 2014, p. 39).
Tanto a “diferença do terceiro mundo” de Mohanty quanto a “diferença colonial” de
Mignolo são expressões do orientalismo e do eurocentrismo aplicadas aos sujeitos do
“terceiro mundo” ou aos sujeitos coloniais de forma a essencializar e homogeneizar as
suas experiências. Presume-se que como o sujeito colonial está localizado em um lugar
periférico no mapa do colonialismo, sua experiência será “naturalmente” mais opressiva
e frágil. Dessa forma, presume-se que o sujeito do terceiro mundo é essencialmente
mais frágil, identificando-lhe como vítima.
Essas são formas de retratar e classificar as pessoas e povos de forma homogênea e
pejorativa, ou os identificando como cruéis estranhos/terroristas ou como vítimas a
serem resgatadas/pobres inocentes. Por meio da diferença do terceiro mundo/colonial,
o sujeito colonial é essencializado, homogeneizado, inferiorizado e excluído de agência/
autonomia e do poder.
6 - A colonialidade do poder e a invenção da raça
Anibal Quijano, sociólogo peruano, sistematizou e ampliou a compreensão do processo
de inferiorização hierárquica e dominação através da diferença colonial por meio do
conceito-chave de “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005). Para o autor, o capitalismo
mundial, com base nas raízes coloniais e eurocentradas, criou um novo padrão de
poder mundial através do controle da subjetividade, da cultura, do conhecimento
e do trabalho, seus recursos e produtos em torno do capital e do mercado mundial.
Nesse processo, a invenção da raça tem papel primordial, sendo a principal categoria
mental da modernidade na qual irá se fundar a hierarquização social e a divisão
internacional do trabalho. Tanto a colonialidade do poder, quanto a ideia de raça
são fenômenos que se dão de forma muito particular na região da América. Quijano
13. No original: “La colonialdad del poder es el dispositivo que produce y reproduce la diferencia colonial. La diferencia colonial consiste em
clasificar grupos de gentes o poblaciones e identificarlos en sus faltas o excesos, lo cual marca la diferencia y la inferioridad con respecto a
quien clasifica. La colonialdd del poder es, sobre todo, el lugar epistémico de enunciación en el que se describe y se legitima el poder. En
este caso, el poder colonial”.
25
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
(2005) identifica a América como o primeiro espaço/tempo deste novo padrão de
poder mundial. Antes do “descobrimento” da América, não havia uma construção
narrativa de raça no seu sentido moderno. É com o encontro da “América” que se cria a
“Europa” e as novas categorias identitárias forjadas pela colonialidade do poder. Nesse
novo contexto, o discurso colonial e moderno criou identidades sociais historicamente
novas, agrupando diversos povos e comunidades completamente distintas e plurais
(cada um com a sua própria história, linguagem, cultura, memória e identidade) em
categorias identitárias homogêneas de “índios”, “negros”, “mestiços” e “brancos”. Essas
categorias foram (e são) determinantes para a distribuição da população em níveis,
espaços e papéis hierárquicos na estrutura de poder da nova sociedade capitalista,
gerando uma divisão racial do trabalho em níveis globais.
Essas diferenças identitárias são visíveis e localizam o subalterno nos diversos espaços
à margem dos territórios valorizados, das profissões mais bem remuneradas, do acesso
à informação e da produção do conhecimento, das normas e, especialmente, do controle
do Estado. Forma-se uma verdadeira hierarquia étnico-racial global. No novo contexto
capitalista global, Mignolo destaca que a ideia de democracia foi montada nos Estados
ditos hoje como desenvolvidos durante um período de crescimento econômico que se
deu às custas das colônias e do comércio advindo de sua exploração, e de guerras como a
guerra do Ópio (MIGNOLO, 2014, p. 26). A democracia ocidental foi construída ao mesmo
tempo em que eram explorados os recursos, mas, especialmente, as pessoas dos países
em desenvolvimento, das ex-colôniais, do “terceiro mundo”, do “Sul Global”.
Nesse lugar da história e da distribuição global, o Estado brasileiro se formou dentro
de um contexto em que o controle do trabalho esteve articulado para favorecer o
desenvolvimento do capitalismo global e colonial, no qual se inseria como colônia
de exploração (QUIJANO, 2005). Assim, a colonialidade do trabalho determinou a
distribuição geográfica social do capitalismo e fez com que a Europa se constituísse no
centro do mundo capitalista (QUIJANO, 2005)14. Nesse contexto, as identidades históricas
produzidas sobre a ideia de raça foram associadas aos papéis e lugares que se ocupava
na nova estrutura global de controle do trabalho, que resultou em uma divisão racial do
trabalho tão explicita nos indicadores sociais globais e nacionais ainda nos dias atuais.
É inviável pensar ou problematizar as questões sobre democracia no Brasil sem se
reconhecer as origens das principais categorias de identidades que foram constituídas
ao longo de nossa história colonial.
14. Essa configuração mundial foi descrita por Raúl Prebish na imagem de Centro- Periferia
26
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Como retrata Rita Segato (2013), o lugar da empregada doméstica no Brasil é uma herança
colonial, que passou das escravas, às amas de leite, às amas-secas, até chegar às babás e
às empregadas domésticas contemporâneas, em sua maioria negras. Segundo a autora,
a hierarquia que o trabalho doméstico remunerado ocupa no mercado de trabalho
contemporâneo também reflete essa herança identitária. A empregada doméstica no
Brasil é o retrato da colonialidade do poder e suas intersecções entre raça, classe e
gênero.
Entende-se que não há como pensar em representatividade, participação e democracia
no Brasil sem considerar, por exemplo, a necessidade de transformação da representação
das mulheres negras no imaginário político-social e cultural da sociedade. Apenas quando
houver a naturalização da presença de mulheres negras nos espaços de poder, poderemos
iniciar, dar o primeiro passo, rumo a um processo de transformação verdadeiramente
democrático, antirracista, feminista e descolonial.
Ao mesmo tempo, refletir sobre uma democracia pluralista antirracista e feminista deve
reconhecer como legítima outras formas de saber e viver distintas dos moldes ocidentais
instituídos pelo processo colonial capitalista e respeitar as diferenças dos modos de vida
de forma não colonial ou imperialista, mas promovendo o pluralismo democrático.
Conclusão
Os pensamentos descolonizadores apresentam conceitos e perspectivas inovadoras
que complicam, desarmonizam e aprofundam os debates acerca do Estado moderno,
cidadania e democracia em sua pretensão representativa e de garantia de direitos
iguais. Os pensamentos questionam a coerência evolutiva das narrativas históricas e
desenvolvimentistas, dialogando, complicando e se contrapondo a conceitos modernos
como a ideia de direitos humanos de forma a expandir o debate para além dos limites
do conhecimento ocidental. Não nos apresentam respostas prontas, mas nos orientam a
reconhecer as ambivalências dos conceitos e tensionar a realidade na medida da nossa
utopia inclusiva e plural.
Espera-se que a partir dos conceitos apresentados o artigo tenha contribuído para a
compreensão dos pensamentos descolonizadores e suas ferramentas metodológicas que
buscam contribuir para a descolonização do debate sobre a democracia e representação
no Brasil, localizando a construção do Estado brasileiro no seu contexto colonial,
escravocrata, capitalista, patriarcal e eurocentrado.
27
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
Assim, os pensamentos descolonizadores, por meio dos conceitos da teoria da perspectiva
promovem a adoção de uma postura fortemente objetiva, reflexiva e localmente
responsável, evitam o eurocentrismo, denunciam o mito da modernidade e a colonialidade
do poder, rejeitam a exclusão racializada dos povos não-europeus e promovem a busca
da transgressão das estruturas de opressão coloniais.
Destrinchando e escancarando a complexidade e a colonialidade do poder entre as
experiências e saberes, os pensamentos descolonizadores orientam a reconhecer a
complexidade dos debates e disputar narrativas para lutar por uma democracia em que
seja possível imaginar diversos sujeitos plurais não-ocidentais atuando com verdadeiros
agentes e sujeitos, em diálogo coletiva e responsável, convivendo em seus diversos
modos de vida.
28
ANA LAURA BECKER DE AGUIAR
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Direitos humanos, raça e criminalização
da violência de gênero: nuances do
controle social via direito penal
Ana Míria dos S. C. Carinhanha
Resumo:
Neste trabalho, analisaremos nuances das políticas penais de enfrentamento à violência
de gênero via criminalização, no Brasil, a partir de três óticas de análise: a) decolonial:
apresentaremos o sistema de justiça como uma técnica hegemônica de regulação de
conflitos, e buscaremos compreender como o “controle social” exercido através do
direito se utiliza de dinâmicas pautadas em “colonialidades” para o exercício desta
regulação; b) interseccional: buscaremos utilizar esta sensibilidade analítica para nos
interrogar sobre a importância de aliar a perspectiva de gênero; à perspectiva racial para
observar o direito enquanto regulador social, bem como as suas consequências fáticas
no que diz respeito à criminalização da violência de gênero, observados os marcadores
sociais da diferença de gênero e raça; c) crítica dos direitos humanos: considerando a
perspectiva racial, apresentaremos um dilema considerado por muitos como paradoxal,
no que concerne à dinâmica dos movimentos sociais feministas ao mobilizarem o
discurso dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior
intensidade na criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda
uma disputa pelos chamados “efeitos simbólicos do direito penal” num contexto de
instrumentalização do mesmo para fins políticos e de reconhecimento. Deste modo,
apontamos um horizonte possível para problematizar as políticas penais de gênero no
Brasil identificando nesta demanda uma disputa pelos efeitos simbólicos do direito
penal e também as consequências de vícios estruturantes contidos nessas dinâmicas,
que acentuam a opressão sobre públicos específicos.
Palavras-chave: Políticas penais de combate à violência de gênero, Decolonialidade;
Interseccionalidade; Teoria Crítica em Direitos Humanos; Mulheres Negras, Raça.
33
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Introdução
Observar o fenômeno das políticas de gênero via processos de criminalização no Brasil
hoje é uma tarefa que nos demanda observar também o contexto de tempo/espaço no
qual estamos inseridos. Para saber como viemos parar aqui e porque nos fazemos esse
questionamento, é preciso considerar que o sistema penal, a branquitude e a colonialidade
são gramáticas de organização jurídica criminal, social/racial e estrutural que regulam
hegemonicamente a nossa sociedade desde a conformação do “Estado” brasileiro
até os dias de hoje. Não se pretende com essa afirmação traçar qualquer perspectiva
universalizante ou definitorial da história, contudo, colocamos em questão esses
sistemas, muitas vezes descritos genericamente como “universais, neutros e objetivos”,
para que possamos nos interrogar sobre “como os direitos humanos e o controle social
penal via criminalização da violência de gênero nos permitem pensar dinâmicas de
sexismo e racismo no sistema de justiça brasileiro?”. A este questionamento pretencioso
não vislumbramos apresentar respostas categóricas sobre técnicas de identificação de
práticas racistas ou sexistas no sistema de justiça, tampouco oferecer soluções para esses
sintomas que são constitutivos da nossa sociedade. Buscaremos interrogar o “sistema
de justiça” brasileiro a partir da observação das políticas de gênero via processos de
criminalização e questões correlatas ao funcionamento da justiça penal, e da análise de
dados sobre a temática, observando os marcadores de raça e gênero.
Este trabalho traz consigo uma preocupação epistemológica e busca problematizar as
hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais
do “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2005)
das quais não podemos simplesmente escapar. Nesse sentido, apresentamos uma
preocupação específica em situar o sistema de justiça brasileiro como fruto/técnica da
colonialidade, instrumento hegemônico de regulação de conflitos e de controle social
em uma sociedade que se pretende “moderna”.
Tendo como objeto as dinâmicas de gênero/raça a serem observadas em dados
de pesquisas que tem por objeto a análise de políticas de gênero via processos de
criminalização, buscaremos problematizar como são produzidas algumas das “entradas”
e “saídas” do sistema de justiça, e a partir daí iremos nos interrogar sobre as influências
dos marcadores sociais da diferença de raça e gênero na produção do direito e de seus
resultados enquanto regulador social.
Nesse sentido, a perspectiva crítica dos direitos humanos nos ajuda a apresentar
e a repensar um dilema considerado por muitos como paradoxal no que concerne à
34
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
dinâmica dos movimentos sociais feministas que mobilizaram/mobilizam o discurso
dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior intensidade
na criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda uma disputa
pelos efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização do mesmo
para fins políticos e de reconhecimento.
I – Racionalidades modernas e sistemas situados de controle, regulação e poder
Para iniciar esta reflexão à qual nos propusemos, é imprescindível situar o lugar a partir
do qual o paradigma do direito moderno foi pensado, inclusive o modo como ele foi e
vem sendo utilizado para produzir e reproduzir as mais diversas hierarquias (de classe,
de gênero, de raça/cor, de sexo, de trabalho, de espiritualidade, de epistemologias, de
linguagens, etc...). (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2008)
O “sistema de justiça ocidental” com suas instituições ditas democráticas, consolidouse ao redor do mundo a partir do advento das revoluções e reformas burguesas, e de
outros sujeitos históricos invisibilizados, após a necessidade de implementação de um
“sistema” regulador e garantidor das propriedades, dos costumes e das instituições
criadas no “mundo ocidental” de modo a garantir “ordens sociais” para além dos arbítrios
dos reis, rainhas e senhores feudais. O surgimento dos Estados Nacionais na Europa e
os massacres promovidos pelos colonizadores, que, transferiram, em alguma medida, os
seus “costumes regulatórios jurídicos” para os países colonizados, são o grande contexto
de fundo que nos explica um pouco sobre o início da história do “sistema de justiça” do
Brasil, então colonizado por Portugal.
Apesar das limitações deste resumo, é possível afirmar que a instituição e as mutações
do “sistema de justiça” brasileiro (observado de uma maneira ampla, incluindo os órgãos
do executivo, as polícias, e também os espaços de formação dos profissionais do direito,
como os cursos de Direito) nos permitem identificar, em sua formação e consolidação,
bases coloniais, escravocratas e patriarcais. Desde a instituição das primeiras faculdades
de Direito no Brasil (em São Paulo e em Pernambuco), com o propósito de formar uma elite
dirigente para comandar o país (ADORNO, 1988), o “sistema de justiça” (aqui compreendido
em sentido amplo) do Brasil configurou-se com o propósito de atender aos anseios de
uma elite que se utilizava do direito para atender às demandas de uma vida prática
pautada em necessidades (também jurídicas) garantidoras dos seus “bens e costumes”.
Tendo as mulheres como sujeitos relativamente capazes, os negros escravizados como
propriedades-semoventes, os indígenas como povos selvagens a serem catequizados e
35
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
educados conforme a “moral e os bons costumes” do novo mundo, o “direito” e o “sistema
de justiça” serviram como instrumentos “normalizadores” de condutas e valores de uma
colonialidade instaurada no Brasil e que se perpetua em práticas e imaginários de longa
duração com base na força e em relações de poder exercidas contra as populações mais
vulneráveis até hoje.
A institucionalização do jurídico no território então denominado Brasil está, portanto,
diretamente ligada à história do capitalismo, do imperialismo (das colonizações), da
escravidão e do patriarcado. O sistema penal, de maneira mais específica, segue uma
racionalidade colonial que foi instituída com base em um poder soberano e se consolidou
enquanto Jus Puniendi, poder/dever de punir do Estado, no que diz respeito à regulação
de conflitos por parte do Estado moderno.
O sistema penal brasileiro se estrutura com base na “racionalidade penal moderna” (PIRES,
2004), conceito definido pelo criminólogo Álvaro Pires como sistema de pensamento: a)
punitivo (hostil, autoritário, negativo, abstrato, atomista); b) que fundamenta a punição
como uma obrigação/necessidade; c) se constrói como um sistema de pensamento “prépolítico” ou “trans-político”, pois se sedimenta antes ou independentemente das visões
políticas do mundo; d) onde as relações entre o direito penal e os direitos humanos se
constroem de modo paradoxal e conflitante. A esse respeito gostaríamos de destacar o
pensamento de Álvaro Pires (2004):
A pena aflitiva é frequentemente valorizada como uma “maneira forte” de
defender ou afirmar os direitos humanos. A representação da pena aflitiva
como necessária ou obrigatória produz então um paradoxo: certa degradação
dos direitos humanos no direito penal, a afirmação de uma obrigação de
punir, a resistência a outros tipos de sanções, tudo isso pode se apresentar,
em diferentes graus e formas, como uma maneira de proteger os direitos
humanos, enquanto um observador externo poderá ver os direitos humanos
como um objetivo ou um ideal de reduzir as penas e diversificar as sanções.
A racionalidade penal moderna é levada então a veicular vários enunciados
teóricos visando “conciliar” uma política de austeridade com os temas da
justiça e do humanismo (com a humanitas). Mas como justificar a exclusão
de meios jurídicos mais humanos ou mais justos em nome da justiça e do
humanismo? Uma das soluções para essa questão consiste em distinguir o
humanismo da justiça e repensar separadamente cada um desses conceitos
em matéria penal. Assim, “ser justo” não teria mais relação com “ser
36
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
humano” — como afirma Tocqueville, “o objetivo da filantropia não é tornar
os prisioneiros felizes, mas melhores”. A noção de justiça é então reduzida
ao sentido dado por uma das teorias da pena aflitiva: “O mal se sana pelo
mal”. Enfim, o próprio humanismo é reinterpretado pelas teorias da pena, de
modo que nos tornamos responsáveis pela nossa tolerância (note-se: não por
nossa intolerância) e favorecemos o crime quando deixamos de punir ou até
quando não punimos com severidade suficiente. Em consequência, a falta não
punida seria o verdadeiro tormento do verdadeiro humanista. O sentimento
de humanismo com relação ao culpado e às penas aflitivas seria a expressão
de uma fraqueza, de um humanismo desorientado, um pseudohumanismo:
o verdadeiro humanismo estaria dirigido aos cidadãos honestos, à vítima
e à humanidade abstratamente considerada. Para a racionalidade penal
moderna tudo se passa como se o direito penal não pudesse defender os
direitos humanos e ao mesmo tempo devesse exprimi-los de forma positiva,
concreta e imediata. Desse ponto de vista, os direitos humanos são em parte
neutralizados como finalidades para a reforma do direito penal, pois é a
este último que é designada a função de proteger os direitos humanos, ao
passo que estes não devem “enfraquecer” sua própria proteção humanizando
demasiadamente o direito penal. (PIRES, 2004, p. 46-7)
O paradoxo apresentado por Pires (2014) coloca o direito penal e os direitos humanos em
um dilema marcado por uma possível “degradação dos direitos humanos” na racionalidade
penal moderna. É a partir de considerações como essas que os movimentos feministas
vem sofrendo inúmeras críticas, como a de Pires (2014, p. 48):
Esses movimentos caracterizavam-se também por um engajamento de
urgência em causas precisas (em oposição a um engajamento na reforma
global); por privilegiar uma auto-representação como vítimas e uma única
orientação de reforma (natureza repressiva); por utilizar toda sorte de canais
para publicizar o tema em questão e para obter uma solução predeterminada;
e pela tendência a instrumentalizar o Estado e apresentar sua causa como
“útil para todos”.
Gostaríamos aqui de problematizar esse tipo de impressão, sobretudo considerando
a pertinência das críticas que evidenciam inconsistências no fato de os movimentos
feministas engajarem a sua luta por reconhecimento a partir da demanda por
criminalização de condutas. É preciso complexificar a compreensão de leituras simplistas
37
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
que veem o advento da Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio (ou as demandas
de criminalização dos movimentos feministas), por exemplo, como um simples elo que
relaciona os movimentos feministas ao modelo penal punitivo/retributivo e até contrário
aos direitos humanos, sem observar os processos históricos que culminaram em tais
demandas.
II – Possibilidades: o que as mulheres têm a nos dizer sobre a disputa pelas políticas
punitivas?
Com a entrada em vigor da lei nº 13.104/2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal
brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848/1940, e incluiu o feminicídio como qualificadora do crime
de homicídio, passou-se a considerar “feminicídio” como sendo o assassinato cometido
“contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Segundo a mesma legislação,
“considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I.
violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher”
(BRASIL, 2015). Nesse sentido, cumpre observar que:
A Lei que incluiu o feminicídio no Código Penal brasileiro foi criada a partir
de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre
Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou a violência contra
as mulheres nos Estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013. O
texto sofreu alterações na tramitação na Câmara e no Senado e, no momento
da aprovação no Congresso Nacional, diante de pressões de parlamentares
da bancada religiosa, a palavra ‘gênero’ foi retirada da Lei. De todo modo,
compreender as desigualdades que concorrem para que as mortes violentas
aconteçam continua sendo essencial para a correta aplicação da Lei e,
principalmente, para a atuação preventiva. (PRADO, Débora; SANEMATSU,
Marisa, 2017)
Além da tipificação do feminicídio, um marco anterior ao combate à violência de gênero
no Brasil foi a promulgação da Lei Maria da Penha, lei 11.340/2006, que “cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, dentre eles mecanismos
penais. Os movimentos de mulheres, autodenominados feministas ou não, reconhecem,
em sua maioria, que as legislações foram um avanço no enfrentamento à violência de
gênero no Brasil.
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Não obstante o paradoxo de os movimentos sociais feministas mobilizarem o discurso
dos direitos humanos para reivindicar o aumento da punibilidade e a maior intensidade
na criminalização de condutas determinadas, identifica-se nesta demanda uma disputa
pelos chamados efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização
do mesmo para fins políticos e de reconhecimento. Observa-se, ainda, um movimento
não uniforme no que concerne à crença com relação aos efeitos manifestos da lei.
Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2016) apresenta um posicionamento que nos ajuda a
refletir para além da incerteza sobre a eficácia da tipificação de condutas relacionadas
à violência de gênero diante da possibilidade de redução das taxas de criminalidade.
Ela acredita que “visibilizar é muito importante”, sendo fundamental a nomeação do
“feminicídio”, pois:
ela vai quebrando um paradigma da linguagem do Direito, que é sexista, e
é sexista justamente por ser pretensamente assexuada. Na verdade, vai
quebrando esse ‘neutro’, esse ‘alguém’ em quem não conseguimos ver as
mulheres. Não conseguimos ver as mulheres nas lesões corporais que
acontecem, e nem nos homicídios. Visibilizar é muito importante, o simbólico
é a força dessa tipificação. (DE CASTILHO, 2016)
Para além da análise da eficácia normativa manifesta destas normas penais
criminalizadoras, os discursos feministas ditos punitivos apresentam pretensões de
necessidade de problematização de uma temática que é anterior e constitutiva ao/do
próprio direito enquanto instituição patriarcal: o machismo. Nesse mesmo sentido,
observa-se que o advento das leis supracitadas faz parte de um contexto muito mais amplo
de lutas e reivindicações dos movimentos feministas. Os processos de criminalização e
o endurecimento da punibilidade no âmbito penal aparecem, nesse sentido, como uma
etapa possível para o enfrentamento ao patriarcado.
O enfrentamento ao patriarcado se apresenta como necessário diante da própria ineficácia
do sistema jurídico em garantir os direitos das mulheres. A ordem patriarcal institui
uma ilegitimidade originária, violência moral, muitas vezes invisível, não porque não
produz efeitos, mas porque se torna automática, denomina o conjunto de mecanismos
legitimados pelo costume para garantir a manutenção dos estatutos relativos entre os
termos de gênero operando controles de permanência de hierarquias de outras ordens e
que também são reproduzidas pelo direito. (SEGATO, 2003)
39
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
A insatisfação das mulheres com a resposta dada pelo modelo hegemônico do direito
apresenta para as mesmas o desejo de disputar, também através do direito, um outro
modelo de justiça, incluindo um outro modelo de justiça criminal que aborde temas e
maneiras através dos quais desejam disputa-lo. Saldarriaga e Góez (2018) nos apresentam
os feminismos como caminhos possíveis para o questionamento dos fundamentos
tradicionais do direito e propor novos caminhos para discussões por igualdade, justiça e
liberdade. Em suas palavras, os feminismos podem ser compreendidos:
Como teoría crítica del derecho [que] cuestionan los fundamentos tradicionales
del derecho y plantean nuevos debates en torno a la igualdad, la justicia y
la libertad. Aportan elementos para debatir la imparcialidad normativa y la
objetivad a la hora de producir y aplicar normas. Los feminismos han generado
prácticas políticas que formalmente han modificado normas jurídicas y
trabajan permanentemente para que el alcance de las normas transforme los
valores de la sociedad, que de manera naturalizada avalan la discriminación
en contra de las mujeres.
A esse propósito, Gerlinda Smaus (1993) nos apresenta um ponto de vista, segundo o qual
as mulheres buscam ganhar espaço também no sistema, declarando públicos e políticos
seus problemas, até então considerados privados. Para ela, trazer as relações de gênero
para o âmbito da punibilidade representa os esforços por igualdade no direito privado
(direito subjetivo das mulheres) e também os esforços pela funcionalização do direito
penal (punição para outros homens). Segundo a criminóloga, impor a tutela de seus
interesses no direito é processo histórico. Nesse sentido, a busca pelo reconhecimento e
representação pública de seus interesses políticos (mesmo que através do sistema penal)
surge, a princípio, como algo que se contrapõe às críticas abolicionistas penais.
Para Smaus (1993), as mulheres podem ser contrárias ou a favor ao abolicionismo
penal, a questão que elas apresentam com o desejo de criminalização dos crimes de
gênero é anterior ao próprio abolicionismo penal. Para ela, se, a partir de um ponto
de vista meramente funcional seria necessário desaconselhar as mulheres a esperar do
instrumento patriarcal que é o direito penal alguma melhora de sua situação, é preciso
considerar que o direito penal possui várias dívidas com as mulheres e que este também
é um campo de disputa: os bens jurídicos tutelados se restringiam à moral, e não a
identidade e a dignidade física da mulher, ou ainda, a utilização do direito penal se dirigia
à culpabilização da vítima mulher e a sua condenação moral.
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Ela destaca que o pensamento dos abolicionistas penais é seletivo e está cheio de
lacunas, como por exemplo, Louk Hulsman não vê o direito penal em sua totalidade,
ou seja, em suas funções tanto manifestas como latentes. Ele observaria apenas os seus
objetivos declarados e não alcançados do direito penal e então se movimenta em prol da
sua abolição. Nesse sentido, ela admite que cada movimento só pode se colocar objetivos
limitados, de modo seletivo, cuja contingência é limitada e cada solução também, sem
tocar em determinados conflitos e provocando novos.
Gerlinda Smaus (1993) nos convida a refletir os efeitos das campanhas de criminalização
da violência de gênero que não são frequentemente tematizados, como por exemplo os
efeitos integrativos e de própria manutenção da consciência do movimento de mulheres.
Para ela, os resultados positivos das reivindicações não devem coincidir forçosamente
com os limites declarados, sendo que até mesmo uma campanha não exitosa pode gerar
um debate transformador na sociedade e revelar o caráter sexista do direito.
As vias da criminalização podem também ser vistas como estratégia, já que as mulheres,
como outros grupos sociais, devem recorrer com suas reclamações ao Estado, regulador
social tido como legítimo para dirimir as querelas públicas. Deste modo, instrumentalizase o penal para que determinados temas morais se convertam em públicos. É inegável
que isso tem sido feito desde sempre contra as mulheres e demais grupos vulneráveis.
Os processos de criminalização são processos políticos e o penal tem se apresentado
como zona privilegiada de regulação moral, como é o caso da criminalização do aborto e
também da criminalização das drogas hoje no Brasil.
Smaus (1993) reconhece a invocação da função simbólica do direito penal pelas mulheres
como uma possibilidade de provocar uma discussão no direito penal, esse instrumento
de poder patriarcal ao qual devemos atacar mais do que cooperar com ele. Para ela:
este fato pode ser criticado, pero presenta la ventaja de hacer que temas
morales sean privados de su connotación moral, y que su carácter instrumental
- la hegemonía masculina - resulte claro. Con razón domina la teoría por la
cual el derecho penal no debería ocuparse de la moral. (SMAUS, 1993)
Nesse sentido, é imprescindível para as feministas que estes temas não se concentrem
unicamente nas legislações, mas que estejam presentes mais diversas iniciativas
políticas e públicas.
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
As principais críticas que as feministas fazem aos movimentos abolicionistas penais é a
de que o abolicionismo tenha sido omisso com relação ao reconhecimento das mulheres,
que aparecem sobretudo como vítimas ao longo das abordagens dos abolicionistas
penais, inclusive porque o direito penal é um instrumento que busca controlar o desvio
masculino. De fato, o discurso feminista tem se debruçado sobre determinadas questões
relativas à natureza dos problemas sociais com uma lente mais inclusiva no que diz
respeito às questões de gênero: a seu status ontológico e epistemológico e a suas causas;
ao fundamento social do direito e de suas definições; e à legitimação de estratégias de
transformação e a suas conexões com a análise das causas, que são desde sempre questões
de natureza política. Se as controvérsias entre abolicionismo penal e feminismo podem
ser resolvidas, resta evidente que isso se daria sobretudo a partir da política.
Reconhecer que devemos ter reservas com o abolicionismo penal, observado o contexto
histórico em que ele se constrói não significa, contudo, que não devamos reconhecer as
limitações em observar a criminalização das violências de gênero exclusivamente como
conquistas. As críticas que fizemos à racionalidade penal moderna se aplicam igualmente
a esse raciocínio que gostaríamos de complexificar. Seria possível lançar a essa questão
um olhar anticolonial, antipatriarcal e antirracista? Como poderíamos analisar esta
questão a partir de uma perspectiva crítica de direitos humanos que considere a teoria
e a prática?
Para além da ineficácia do sistema jurídico em garantir os direitos das mulheres é
necessário que reconheçamos que tanto os feminismos quanto os abolicionismos são
movimentos plurais e de muitas facetas, e que há feministas que propõem o abolicionismo
penal e os feminismos como teorias de resistência à colonialidade.
Nesse sentido, tanto o abolicionismo penal quanto o feminismo poderiam ser entendidos
enquanto “formas de liberação epistêmica, política e social que possibilitam outras
maneiras de existência” (SALDARRIAGA e GÓEZ, 2018).
Reconhecemos que a possibilidade de afirmação das demandas dos movimentos
feministas pelo direito tenha ocorrido considerando criticamente a possibilidade
de recorrer ao direito penal; e também considerando que este mesmo apresenta a
necessidade do reconhecimento de suas pretensões por parte do sistema político. É
possível assinalar como uma das pretensões do feminismo (enquanto teoria crítica do
direito) é questionar relações assimétricas em busca de um propósito transformador.
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Nesse sentido, não podemos ignorar o abolicionismo penal como importante ferramenta
crítica do direito penal e das práticas sociais, nem tampouco menosprezar as teorias
decoloniais como ferramentas teórico-práticas para “despatriarcalizar” o direito.
III – Limitações: dos acessos diferenciados aos resultados das políticas punitivas no
Brasil.
A omissão dos abolicionistas penais e criminólogos em incluir o gênero como um
novo paradigma teórico, e a sua negligência na inobservância dos resultados práticos
desta omissão geraram críticas pertinentes aos movimentos, sobretudo a partir da
instrumentalização do penal pelos movimentos feministas para a consecução de objetivos
políticos/públicos. Não partimos da compreensão da existência de um abolicionismo
ou feminismo unitário, mas gostaríamos de problematizar consequências fáticas dos
posicionamentos teórico/práticos de ambos os movimentos, considerando alguns
apontamentos pautados na prática e na teoria crítica dos direitos humanos.
Se, historicamente, a noção de direitos humanos está atrelada à afirmação da dignidade
da pessoa frente ao Estado (NIKKEN, 1997) não podemos desconsiderar que esses direitos
sejam frutos de disputas políticas que se materializam em reconhecimento e em ações
fáticas, como é o caso das reivindicações dos movimentos feministas.
Diferente da compreensão de inerência desses direitos, sustentamos que os
enfrentamentos e as disputas (ideológicas, físicas, econômicas, institucionais, etc)
possibilitam o acesso aos direitos, inclusive os direitos humanos, e, também pelas vias
penais. Ademais, as interpretações sobre o direito mudam ao longo do tempo, e a vida
prática nos relembra que o ideário de direitos que se afirmam para além de toda lei,
ordem ou autoridade não existe. A via penal, portanto, ainda que colocada em questão
com relação à sua eficiência/eficácia, em muitos âmbitos, não deixa de ser um território
legítimo de disputa de poder, sob determinadas circunstâncias e em determinado
momento histórico.
Ao longo das últimas décadas, sobretudo depois da segunda guerra mundial, temos
observado o advento do direito internacional humanitário como marco inquestionável
para o mundo jurídico ocidental. Contudo, temos observado também a sua relativização
em disputas por bens simbólicos e materiais nas relações de poder. A despeito da ordem
jurídica interna ou de serem signatários de tratados internacionais de direitos humanos,
países como o Brasil possuem no poder público, em seu corpo jurídico, executivo,
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
legislativo, e também no âmbito privado e popular, a anuência e a conivência de pessoas
que orquestram massacres diários contra grupos sociais em situação de subalternidade.
Sob essa perspectiva, não podemos adotar uma concepção de direitos humanos que não
esteja relacionada à observação dos seus processos de conquista e do acesso real a bens
essenciais à dignidade das pessoas (HERRERA FLORES, 2008).
Ao observar as práticas sociais dos movimentos feministas e as reivindicações pela
criminalização das violências de gênero, pretendemos “recuperar a memória das lutas
para superar o sequestro da narrativa dos direitos”, (GANDARA, 2014) apresentando a
razão e o modo pelos quais as feministas decidiram disputar a luta por direitos também
a partir do direito penal. Sem qualquer juízo de valor com relação ao método utilizado
para realizar esse enfrentamento, entendemos que esse é um campo no qual o direito
assume um papel de “arena” em que se disputa algo para além do reconhecimento
jurídico, mas que implica em mudanças materiais na vida das pessoas.
Buscar o entendimento dos direitos humanos a partir de uma compreensão sóciohistórica e admitir que os direitos estão intimamente relacionados aos marcos de
luta e resistência populares (GANDARA, 2014), implica a necessidade de superar uma
concepção de direitos formalista em prol da construção de vida digna para todos,
sobretudo para aqueles que estejam em condições de vida mais precárias, submetidos
à exploração, exclusão ou subalternização (GANDARA, 2013). Esse raciocínio nos ajuda
a des-ontologizar o resultado tipificado de uma norma jurídica (ainda que penal) para
deslocar o nosso olhar em direção ao processo de discussão e problematização não só da
norma, mas das condições sociológicas que nos levaram a discuti-la.
O interesse primeiro dos feminismos ao demandar a criminalização das violências de
gênero não é punir, é reconhecer e responsabilizar. Aqui é essencial que nos questionemos
sobre quais os instrumentos possíveis para impor a tutela dos direitos das mulheres
(problemática da própria estrutura capitalista) além do penal?
Ao nos questionarmos sobre os modos de se efetivar direitos em um sistema de dominação
e em uma nova ordem marcada pela violação sistemática de direitos humanos, Gallardo
(2014) nos informa que a saída encontrada estava no sentido de reconhecer os direitos
humanos como mobilização e movimento social. Ademais, para ele “uma cultura de
direitos humanos não se faz sem a transferência de poder social e pessoal”.
Nesse sentido, considero impróprio pensar que as demandas de criminalização das
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
violências de gênero pelos movimentos feministas sejam algo diferente do que uma
luta por direitos humanos. Contudo, compreender socio-historicamente esta luta
e reconhecê-la em sua legitimidade não nos afasta da tarefa de observar as suas
consequências práticas e reconhecer também as suas limitações.
Observamos, contudo, que as avaliações de eficácia das políticas penais de gênero têm
produzido invisibilidades interseccionais. A esse propósito, Kimberlé Crenshaw (2002, p.
173) nos traz uma reflexão que gostaríamos de destacar:
Há um reconhecimento crescente de que o tratamento simultâneo das
várias diferenças que caracterizam os problemas e dificuldades de diferentes
grupos de mulheres pode operar no sentido de obscurecer ou de negar a
proteção aos direitos humanos que todas as mulheres deveriam ter. Assim
como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo,
sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros
fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça,
cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual, são diferenças
que fazem diferença na forma como vários grupos de mulheres vivenciam
a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas e
vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que
afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres. Do mesmo modo
que as vulnerabilidades especificamente ligadas a gênero não podem mais
ser usadas como justificativa para negar a proteção dos direitos humanos
das mulheres em geral, não se pode também permitir que as ‘diferenças
entre mulheres’ marginalizem alguns problemas de direitos humanos das
mulheres, nem que lhes sejam negados cuidado e preocupação iguais sob o
regime predominante dos direitos humanos. Tanto a lógica da incorporação
do gênero quanto o foco atual no racismo e em formas de intolerância
correlatas refletem a necessidade de integrar a raça e outras diferenças ao
trabalho com enfoque de gênero das instituições de direitos humanos. (p. 173)
Lélia Gonzalez (1984) explica como a neurose cultural brasileira se constitui de maneira
sintomática e como a sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a
mulher, especialmente a mulher negra. A “diferenciação interna das categorias da
diversidade” é visível nos dados sobre a violência de gênero no Brasil, sendo possível
perceber diferentes padrões de estratificação e de segregação produzidos em contextos
em que racismos e sexismos exercem papeis determinantes (KERNER, 2012).
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
É possível observar, a partir dos dados oficiais que dispomos, com o desmembramento
da categoria raça, que as condições de vida e de morte dos negros e não negros no Brasil
são bastante diferentes. De acordo com o Atlas da Violência (2020, p. 47):
Uma das principais expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil
é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.
Enquanto os jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios
do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento
ao longo dos anos, entre os brancos os índices de mortalidade são muito
menores quando comparados aos primeiros e, em muitos casos, apresentam
redução. Apenas em 2018, para citar o exemplo mais recente, os negros (soma
de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das
vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes
de 37,8. Comparativamente, entre os não negros (soma de brancos, amarelos
e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que, para cada indivíduo não
negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos. Da mesma forma, as mulheres
negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com
uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando
comparada à das mulheres não negras.
Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores
sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de
12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre
a população não negra do que na população negra (tabela 17). Entre não negros,
a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros
foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor. O mesmo processo foi identificado entre os
homicídios femininos: a redução ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou
mais fortemente entre as mulheres não negras. Ao analisarmos os dados da
última década, vemos que as desigualdades raciais se aprofundaram ainda
mais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros
e não negros. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um
aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma
diminuição de 12,9%. (Atlas da Violência, 2020, p. 47)
A análise da superinclusão das mulheres negras na apresentação dos dados fáticos de
enfrentamento à violência de gênero como um sucesso é, por exemplo, um problema
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
grave. Ao inserir a variável raça e desmembrar os dados que avaliam as políticas de
enfrentamento à violência de gênero percebemos comportamentos diferentes na
avaliação das políticas para mulheres brancas e mulheres negras.
Com relação aos índices de feminicídio, por exemplo, observa-se que o comportamento
da curva no que concerne à violência das mulheres negras é crescente, muito embora
o dado geral apresente-se como decrescente, analisando a média das ocorrências entre
mulheres negras e brancas. Segundo o Atlas da Violência (2020), observado o período
entre 2008 e 2018, “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a
taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.”. Ainda segundo o mesmo relatório:
Em 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Enquanto
entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no
último ano foi de 2,8 por 100 mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por 100
mil, praticamente o dobro. A diferença fica ainda mais explícita em estados
como Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as taxas de homicídios
de mulheres negras foram quase quatro vezes maiores do que aquelas de
mulheres não negras. Em Alagoas, estado com a maior diferença entre negras
e não negras, os homicídios foram quase sete vezes maiores entre as mulheres
negras. (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020, p. 37)
Segundo o Anuário de Segurança Pública (2020) “Em 2019, 66,6% das vítimas de feminicídio
no Brasil eram negras”. As mulheres negras correspondem a 53,6% das vítimas de
mortalidade materna (SIM/Ministério da Saúde/2015) e a 65,9% das vítimas de violência
obstétrica (Cadernos de Saúde Pública 30, 2014, Fiocruz). A mesma instituição observa
que as mulheres negras correspondem a 68,8% das mulheres mortas por agressão
(Diagnóstico dos homicídios no Brasil (Ministério da Justiça/2015) e também concluem
que as mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas que as
brancas. Destacam também a desproporção no que diz respeito à taxa de homicídios por
agressão com relação às mulheres brancas e negras: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre
negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da Justiça/2015).
Segundo o Dossiê Mulher (2020, p. 19), as “Mulheres negras são mais vitimadas por
crimes contra a vida”. As mulheres negras também são “as mais vitimadas por homicídio
doloso e tentativa de homicídio” no Rio de Janeiro: 59,6% das vítimas de tentativa de
homicídio e 63,6% das vítimas de homicídio consumado no Rio de Janeiro são mulheres
negras. (DOSSIÊ MULHER, 2020, p. 29). Segundo o mesmo documento, as mulheres
47
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
negras correspondem a 56,3% das vítimas de estupro e 56,5% de estupro de vulnerável
registrados no Estado do Rio de Janeiro em 2019.
Esses dados, e tantos outros mais que poderíamos citar, nos fazem refletir sobre a violência
contra a mulher negra a partir de uma ótica que demanda um olhar diferenciado e urgente,
que nos convida a problematizar a questão racial juntamente à questão de gênero.
Esses dados nos alertam não só para a necessidade da compreensão do funcionamento
da justiça penal no Brasil , mas também do que diz respeito à promoção e execução
de políticas públicas, das instituições e das relações que guardam com as dinâmicas
estruturais da realidade, no caso do Brasil, uma sociedade marcada por dinâmicas
de exclusão e exploração, dentre as quais destacamos o racismo, o patriarcado e a
colonialidade. Esse conjunto de evidências nos mostra como o racismo forja e organiza
a sociedade brasileira desde o período da escravidão e de como os efeitos do racismo,
associados aos efeitos de diferenciação relacionados a outros marcadores sociais da
diferença, se desdobram em permanências de longa duração que promovem a exclusão
e a exploração de grupos determinados em favor de outros.
Quijano (2005) situa a raça como eixo fundamental da classificação social da população
mundial, como categoria mental da modernidade. Nesse sentido, gostaríamos de levantar
uma provocação, seria a racionalidade penal moderna brasileira essencialmente racista?
Os dados racializados que temos na arena penal/criminal nos permitem observar a
sobrerrepresentação dos negros em situações de opressão e vulnerabilidade, como por
exemplo, no sistema carcerário e/ou relativos à violência letal. Segundo o Anuário de
Segurança Pública (2020) 66,7% das pessoas encarceradas em 2019 eram pessoas negras; a
maior parte das pessoas vítimas de mortes violentas e intencionais no Brasil são pessoas
negras (entre os homens e as mulheres):
o padrão de vitimização por raça/cor, que indica superioridade dos homicídios
entre os homens e mulheres negros (pretos e pardos), em relação a homens
e mulheres não negros, chegando a ser 74,0% superior para homens negros
e 64,4% para as mulheres negras. Quando comparamos com os mesmos
indicadores da edição anterior do Atlas 2019, que trazia os dados de 2007 a
2017, verificamos que a vitimização negra aumentou ainda mais, uma vez que
esses índices para homens e mulheres, respectivamente, eram de 73,15% e
63,4% (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020, p. 68).
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ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
O Anuário de Segurança Pública (2020) nos informa que são os homens jovens negros as
principais vítimas da violência letal no país (65%), e os dados sobre “Proporção de Mortes
decorrentes de intervenções policiais em relação às Mortes Violentas Intencionais”
também chamam bastante a atenção. Eles nos informam que:
79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultaram em morte eram
pretas e pardas, indicando a sobrerrepresentação de negros entre as vítimas
da letalidade policial. Este percentual é superior à média nacional verificada
no total das mortes violentas intencionais, em que 74,4% de todas as vítimas
são negras. É de destacar que padrão similar foi encontrado entre os policiais
vítimas de homicídio e latrocínio, sendo que 65,1% dos agentes de segurança
assassinados no último ano eram pretos e pardos. (...)
A comparação da taxa por 100 mil habitantes indica que a mortalidade entre
pessoas negras em decorrência de intervenções policiais é 183,2% superior à
taxa verificada entre brancos. Enquanto entre brancos a taxa fica em 1,5 por
100 mil habitantes brancos, entre negros é de 4,2 por 100 mil negros. (Anuário
de Segurança Pública, 2020, p. 90-91).
Nos espaços de poder, inversamente, os negros estão sub-representados. O projeto e o
destino de um Estado que se forjou em bases latifundiárias, escravocratas e patriarcais,
não têm sido questionados pela ideologia jurídico-penal. Ademais, além de perpetuar
essas bases, o Estado brasileiro ainda não colocou em prática instrumentos de reparação
satisfatórios. Pelo contrário, o sucessivo apagamento de uma memória criminosa e
reprovável pautada em sequestros, torturas, assassinatos e roubos, se reflete em um
espelho ainda mais perverso ao se pretender “universal” que se pretende isonômico no
campo jurídico e continua gerando privilégios e opressões para grupos determinados.
Vivenciamos o insucesso das políticas estruturais e de segurança pública para a população
negra no Brasil, inclusive quando falamos das políticas de enfrentamento à violência
de gênero. As políticas criminais/penais expressam a relação do trabalho penal com a
estruturação de uma sociedade pautada em hierarquias sociais, dentre as quais a raça
é apresentada como marcador determinante. A ideologia jurídico-penal se apresenta
conformada e conformadora por esta/desta sociedade, (re)produzindo os seus valores, e,
ao mesmo tempo, influenciando-a.
49
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
O insucesso das políticas penais de gênero para as mulheres negras (comparando com
os dados relativos às mulheres brancas) nos convidam a pensar estrategicamente os
diferentes padrões de estratificação e segregação social dos racismos e sexismos em suas
dimensões epistêmicas, institucionais e pessoais (KERNER, 2012) das suas consequências.
Como pode uma política pública “funcionar” de maneira tão destoante? Como podemos
observar esse problemaconsiderando uma sensibilidade analítica interseccional, que
considere raça e gênero? O que podemos apresentar como solução ou saída para esta crise?
Destaco um trecho da aula ministrada por Angela Davis (2017) em Salvador, Bahia, na
qual ela apresenta elementos para pensar a necessidade estrutural de dizer não ao
que muitos chamam de “feminismo carcerário” e sim ao que ficou conhecido como
“feminismo abolicionista” para que possamos avançar nessa discussão. Em suas palavras:
nós não podemos excluir a violência doméstica, a violência no âmbito íntimo
e a violência intima das nossas teorias sobre violência estatal e a violência
institucional.
Frequentemente agimos como se um não tivesse nada a ver com o outro e que
se as mulheres negras são vítimas dessa violência cotidiana que é infligida por
seus maridos e seus namorados, isso significa simplesmente que os homens
negros e os rapazes negros são violentos.
Mas como é que podemos pensar isso? Nós precisamos nos perguntar qual é
a fonte dessa violência que prejudica e que fere tantas mulheres negras? Qual
a relação dessa violência com a violência policial e a violência do sistema
carcerário? Se essa violência do âmbito doméstico esta simbioticamente
conectada com a violência institucional e a violência estatal?
Isso significa que nós não conseguiremos erradicar a violência doméstica
simplesmente por enviar aqueles que perpetuam a violência doméstica para
o sistema carcerário. Isso significa que se queremos, se desejamos erradicar
as formas mais endêmicas de violência individual na face da terra, devemos
também eliminar as fontes institucionais de violência.
50
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Essa fala de Ângela Davis nos convida a pensar a relação entre essas violências e, sobretudo,
pensar os efeitos da própria violência carcerária sobre a população negra e também a
ilusão aparente que as políticas penais de gênero imprimem às mulheres negras.
Nesse sentido, nos lançamos ao questionamento, como poderíamos “sentir, pensar e
lutar” (GALLARDO, 2011) a relação entre essas violências de modo a considerar a luta por
direitos humanos das feministas que reivindicam a sua proteção através do direito penal?
Como superar as invisibilidades interseccionais? É preciso reconhecer o processo de
luta por direitos, mas precisamos também nos responsabilizar por esses processos, a
fim de não promover outras omissões que relegam ao sofrimento as populações mais
vulneráveis.
Não falamos apenas de questões criminológicas, relacionadas à problemática funcional
do sistema penal face aos altos índices de superpopulação carcerária, ao aumento das
taxas de reincidência e de criminalidade, bem como à ineficácia das técnicas repressivas
adotadas como resposta penal e todas as demais críticas dirigidas à “racionalidade penal
moderna” (PIRES, 2004), reativa, com relação ao crime; punitivista, com relação ao autor;
e displicente ou indiferente com relação à vítima. Falamos do acesso a bens e direitos
pelas mulheres negras, que continuam sendo prejudicadas nesse processo histórico de
luta por direitos.
Para além do questionamento da legitimidade do sistema penal, face à sua ineficácia com
relação aos fins aos quais se propõe, e da compreensão de um movimento de inflação
legislativa acompanhada pela superestimação das práticas repressivas adotadas pelo
sistema punitivo, bem como a sua falência estrutural, que contribuem para a sensação
de desconforto que abala o sistema penal e o mundo jurídico, é importante que nos
questionemos sobre os resultados paradoxais de serviços prestados pelo sistema de
justiça, e outros serviços sociais, a depender do público que os acessam (e quando acessam).
Esses questionamentos se dirigem às bases ideológicas e pragmáticas que sustentam
os sistemas sociais e devem observar os mais diversos níveis de opressões em uma
sociedade determinada. Tendo a sociedade brasileira se conformado a partir de relações
de dominação estrutural (re)produzidas institucionalmente e também nas relações
pessoais, não só no âmbito econômico, mas também político, científico, cultural jurídico
e individual, como poderíamos pensar as lutas de modo crítico, sem desconsiderar as
lutas dos sujeitos vistos como minorias políticas?
51
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Seria possível, como propõe Gândara (2015), “visar à emancipação humana? Em todas as
suas dimensões de opressão? Sobretudo a opressão que se estabelece a partir do próprio
direito? Lyra Filho (1991) nos ensina que o direito não se resume à lei e não concentra a
sua produção no Estado, o direito é um processo histórico em construção e somos atores
nesse processo. Cabe a nós pensar qual o nosso papel e qual o nosso poder de agência.
O direito encontra-se inscrito nas relações de poder globais onde não podemos ignorar a
predominância do capitalismo e dos modelos nortistas (eurocêntrico e norte-americano)
de dominação. A adoção e exaltação de um paradigma de direito alicerçado sob os princípios
da abstração, generalidade, objetividade, imparcialidade, além dos imperativos de ‘ordem
e progresso’ (referência a um darwinismo social que influenciou o projeto de República do
Brasil) , nos modelos de uma sociedade colonialista, patriarcal, heteronormativa, racista
e patrimonialista, foram fatores determinantes para culminação de uma sociedade que
apresenta em seu contexto sócio-histórico intensas relações de conflito que refletem a
grande anomia proveniente desses desencontros.
É nesse sentido que observamos como o direito brasileiro, sobretudo o sistema penal,
encontra-se imerso em uma estrutura colonial que vem se perpetuando ao longo do
tempo sem romper com as suas bases estruturantes. E é por isso que problematizamos
o enfrentamento à violência de gênero a partir das políticas penais.
Não ignoramos os possíveis benefícios que a instrumentalização do direito penal tem
trazido para as mulheres, sobretudo as brancas, mas também não podemos ignorar
os padrões diferenciados de eficácia destas políticas com relação às mulheres negras.
Ademais, ao reconhecer o direito (e principalmente o direito penal) como instrumento
hegemônico de manutenção do poder, e também por isso como arena de disputa política
que não podemos ignorar, reconhecemos também que este é um campo de transformação
a ser transformado.
52
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
Considerações Finais
Problematizar as políticas penais de gênero no Brasil a partir de lentes decoloniais,
interseccionais e da perspectiva crítica dos direitos humanos é uma tarefa que nos
traz inúmeras indagações sobre o tipo de emancipação que visamos para os sujeitos
(observadas as suas diferenças) e também sobre o nosso poder de agência diante
do modelo de transformação pretendido. Para isso, interrogamos a reivindicação,
pelos movimentos feministas, do aumento da punibilidade e a maior intensidade na
criminalização de condutas determinadas, identificando nesta demanda uma disputa
pelos efeitos simbólicos do direito penal num contexto de instrumentalização do mesmo
para fins políticos e de reconhecimento, inclusive pautados em discursos de direitos
humanos.
Deste modo, trouxemos elementos que nos permitissem discutir não só questões
específicas sobre raça e gênero, mas sobretudo as questões interseccionais relacionadas
à estruturação das respostas que mobilizamos para solucioná-las. A utilização da
racionalidade penal moderna, sobretudo no âmbito da criminalização da violência de
gênero apresenta-se legítima, contudo trazendo vícios próprios da sua constituição
também oriunda de um modelo patriarcal, racista e colonial, reproduzindo as suas
condições estruturantes.
Nos lançamos à tarefa de pensar as consequências desses vícios estruturantes e observando
os dados de avaliação destas políticas, concluímos que o contexto de precariedade,
sobretudo no que diz respeito à raça, pode inviabilizar inclusive a instrumentalização do
penal, que mais uma vez acentua a opressão sobre os negros de diversas maneiras.
As condições de vida e de morte da população negra e não negra, dos homens e mulheres,
hoje, no Brasil, são muito diferentes. A ausência do reconhecimento da desigualdade
social (leia-se, inclusive racial e de gênero) brasileira é um entrave para qualquer modelo
que presuma a existência de uma igualdade formal e material entre os beneficiários
de qualquer política pública. É aí que identificamos o principal gargalo com relação
a avaliação das políticas penais de gênero no Brasil e nos perguntamos: porque essas
políticas parecem funcionar de maneira mais efetiva para as mulheres brancas do que
para as mulheres negras? A disputa a partir do feminismo parece mais uma vez ignorar
as diferenças raciais que mantém a população negra em situação de desvantagem na
luta por direitos e no acesso de bens e serviços.
O aumento de normas que regulamentem a violência de gênero por si só não é capaz
de nos dar um parâmetro de sucesso, para isso é preciso olhar principalmente para os
53
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
índices que avaliam a efetividade e eficácia dessas políticas. É certo que essas normas
provocaram mudanças positivas no modo como o problema da violência de gênero vem
sendo olhado pelas instituições públicas, criando mecanismos de combate à violência e
apoio às mulheres que vão além da perspectiva punitiva. Contudo, é preciso considerar
as condições de manutenção e exequibilidade dessas políticas.
Se por um lado, temos o aumento do número de notificações de violência, por outro
temos a desconsiderada cifra oculta que representa muitas mulheres que não conseguem
chegar aos sistemas de proteção e ao judiciário; as mulheres que tem medo; as mulheres
que não se enxergam capazes de romper barreiras estruturais; que não possuem condições
financeiras; ou que não acreditam no judiciário como um meio capaz/possível de resolver
o seu conflito; aquelas que já foram revitimizadas ao tentar procurar ajuda, etc.
Nos diferentes territórios existem uma série de fatores que condicionam a eficácia das
leis e das políticas públicas. No Brasil, a própria questão de gênero é algo que é visto como
um tabu pelas instâncias oficiais, reduzindo verbas e a própria amplitude das políticas. Os
pronunciamentos oficiais atuais demarcam uma narrativa conservadora e reacionária,
que ignora as pautas dos movimentos sociais organizados, estudiosos e dados oficiais
sobre as condições de vida e de morte da população brasileira, desrespeitando não
somente normas internas, mas também tratados internacionais de direitos humanos
dos quais o Brasil é signatário.
As mulheres no Brasil, sobretudo as mulheres negras, estão submetidas a ciclos de
violências pessoais, institucionais e estruturais que balizam o grau de dificuldade no
acesso a essas políticas públicas. Renda e cor são elementos que marcam essas diferenças
e podem ser verificados nos dados que versam sobre violência doméstica e feminicídio,
por exemplo. Se os dados apontam que as políticas penais de gênero funcionam para as
mulheres brancas e não funcionam para as mulheres negras, elas nos dizem que a raça
é um fator determinante do acesso e na qualidade de acesso a essas políticas. Porque
então a questão racial não é privilegiada para a reformulação dessas políticas? Onde
estão as políticas públicas de enfrentamento ao racismo? Os recursos destinados a este
fim? As ações implementadas em caráter estrutural?
54
ANA MÍRIA DOS S. C. CARINHANHA
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57
A incorporação da colonialidade
de gênero enquanto elemento
complexificador das reflexões
femininas na brasilidade15
criminológica
Bruna Martins Costa
Introdução
O presente trabalho diz respeito às mulheres não brancas, e advindas dos países
denominados periféricos – ou seja, negras, indígenas, mestiças, faveladas, ribeirinhas,
latino-americanas -, e à construção de uma perspectiva feminista, interseccional e
marginal na criminologia brasileira. Assim, pretende-se iniciar a investigação sobre os
desafios e as possibilidades da construção de uma terceira via, partindo dos debates
entre as teorias feministas e a criminologia crítica, sem perder de vista as intensas
divergências existentes entre elas.
Em um primeiro momento, será apresentada a proposta de Katheleen Daly, que parece
estar em maior conformidade com o que considero fecundo, sem correr o risco de
ser ingênuo, na produção de um novo campo criminológico. A sugestão de trabalhar
dentro e fora da criminologia, produzindo saberes conjuntos, mas sem deixar de lado as
críticas, parece uma leitura acertada do que pode ser feito diante da realidade concreta
dos debates entre os feminismos e a criminologia crítica.
Com o intuito de facilitar a identificação da criminologia feminista, alguns conceitos
serão apresentados no curso deste artigo. Isso, contudo, tendo como plano de fundo o
fato de que as categorias analíticas feministas são em sua gênese instáveis e transitórias,
estando em conformidade com a própria dinâmica da sociedade contemporânea e com
as diversas experiências das mulheres.
Por fim, a colonialidade de gênero será introduzida enquanto um novo componente a
ser considerado para a construção de uma criminologia feminista latino-americana e,
mais especificamente, brasileira. A incorporação dessa análise, juntamente com uma
abordagem interseccional, que considere os marcadores raça/etnia, classe, sexualidade,
elevaria o debate criminológico a um outro patamar, muito mais atento às complexidades
da realidade social na qual as mulheres estão inseridas.
15. Tomo a liberdade de utilizar o termo que foi (re)tomado pela professora Vera Regina Pereira de Andrade, em 2010, ao propor o projeto
de pesquisa intitulado “Bases para uma Criminologia do controle penal no Brasil: em busca da brasilidade criminológica”, financiado pelo
CNPq e que tem como objetivo orientar investigações pautadas na busca por uma latinidade e por uma brasilidade criminológica.
58
BRUNA MARTINS COSTA
1 CRÍTICA FEMINISTA À CRIMINOLOGIA
A modernidade deixou como herança um modelo de produção teórica totalizante, mas
que sempre adotou como parâmetro o homem. O caso do discurso criminológico não
foi diferente: ainda que se propusesse a questionar as premissas deterministas da
criminologia positivista, a criminologia crítica, erigida sobre as bases do marxismo, é
uma teoria que intenta explicar todos os fenômenos criminais.
Entretanto, essa teoria foi elaborada para falar da experiência do homem trabalhador
oprimido pelo capital. Ou seja, ainda que se proponha a explicar os fenômenos criminais,
a criminologia crítica não considerou em sua elaboração teórica as experiências das
mulheres.
A crítica feminista à criminologia acontece de diversas formas, sendo que algumas
autoras advogam pela construção de um campo do saber que alie tanto contribuições da
teoria feminista quanto da criminologia crítica. Outras autoras, por sua vez, acreditam
ser impossível que algo frutífero emerja dessa relação, tendo em vista que durante muito
tempo, e ainda hoje, a criminologia crítica segue bastante relutante em incorporar as
críticas do feminismo.
Neste trabalho adotar-se-á uma postura favorável a construção de uma perspectiva
feminista em criminologia, de uma criminologia feminista, ou, ainda, de um feminismo
criminológico. Para tanto, utilizar-se-á a leitura de Katheleen Daly. Importante destacar
que essa autora, além de considerar possível uma criminologia feminista, comprometese, também, com a construção de uma criminologia interseccional, que considere
questões de raça e de sexualidade em suas análises.
Diante do conflito entre o feminismo e a criminologia crítica, Daly e Maher (1998)
propõem uma terceira via, na perspectiva de trabalhar dentro e fora da criminologia.
Para tanto, o trabalho feminista em relação a esse campo deveria ocorrer em duas
frentes: uma pautar-se-ia na construção de conhecimentos feministas dentro da esfera
criminológica, enquanto a outra continuaria a desafiá-lo e corrigi-lo de sua cegueira de
gênero, etnocentrismo e rigidez teórica. Assim, essa postura possibilitaria a abertura de
um espaço de convergência entre o feminismo e a criminologia.
Sustenta-se que as perspectivas feministas estão, hoje, muito próximas das criminologias
crítica, multiétnica, antirracista e cultural16 , que transgridem e transformam a
criminologia. Nesse sentido, a análise do crime, da vitimização, da justiça e do direito
16. Para informações detalhadas sobre essas vertentes criminológicas ver Campos (2017).
59
BRUNA MARTINS COSTA
deve ser feita a partir das múltiplas relações e identidades (gênero, raça/etnia, classe,
idade, sexualidade), mediadas pela cultura, história e linguagem.
Tendo em vista que se trata de um campo em construção, as feministas sentiram a
necessidade de apresentar alguns dos principais conceitos utilizados de modo recorrente
pela criminologia feminista. Campos (2017) se preocupa em sistematizar esse exercício
de conceituação, trazendo um apanhado dos principais posicionamentos e discussões
sobre a temática.
Por criminologia feminista entende-se um determinado corpo da pesquisa e da teoria
criminológica que situa o estudo do crime e da justiça criminal dentro de um complexo
entendimento de que o corpo social é sistematicamente formado pelas relações de sexo/
gênero. Ela incluiria, além de uma perspectiva teórica sobre gênero e desigualdade
de gênero, a recepção e a incorporação de marcadores como raça/etnia, classe, idade,
sexualidade, dentre outros. Desse modo, é possível considerar que a criminologia
feminista seria, pela sua própria constituição original, necessariamente interseccional.
O que distinguiria a criminologia feminista da análise criminológica dominante sobre
mulher e crime é o fato de que as teorias de gênero são o ponto de partida para as
análises criminológico-feministas.
Assim, de forma esquematizada, é possível dizer que
a) gênero não é um fato natural, mas um complexo produto histórico, social e cultural,
relacionado, mas não simplesmente derivado da diferença sexual biológica ou das
capacidades reprodutivas; b) O gênero e as relações de gênero estruturam a vida e as
instituições sociais de modo fundamental; c) As relações de gênero e as construções
de feminilidade e masculinidade não são simétricas, mas estão baseadas em um
princípio organizador da superioridade masculina e na dominação econômica, social
e política das mulheres; d) A produção do conhecimento reflete a visão dos homens
sobre o mundo social e natural. O conhecimento é gendrado; d) As mulheres devem
estas no centro da pesquisa intelectual e não periféricas, invisíveis ou apêndices dos
homens. (DALY; CHESNEY-LIND, 1988, p. 504 apud CAMPOS, 2017, p. 272).
O gênero é a base da sustentação da teoria feminista contemporânea e um guia na
pesquisa criminológica feminista, mas sozinho não supre as defasagens identificadas
na produção criminológico-crítica “tradicional” no Brasil. As experiências dos sujeitos
não são compartilhadas da mesma forma, e quando tratamos de mulheres privadas
de liberdade é fundamental explicitar sua raça e sua classe, uma vez que são fatores
relacionados à seletividade do sistema de justiça penal. (COSTA; BOITEUX, 2020).
60
BRUNA MARTINS COSTA
Fica evidente, portanto, que o debate não se encerra com o enfoque de gênero. Pelo
contrário, desenvolve-se de forma a incorporar as complexidades da sociedade
contemporânea, incluindo, desse modo, as relações imbricadas entre diversos
marcadores sociais. Sobre a importância de se adotar uma postura interseccional na
pesquisa, Vanessa Berner (2017, p. 41) traz que:
o feminismo negro, o pós-colonial, o lésbico e outros, se colocam contra essa
ideia de uma categoria homogênea e universal de “mulher” como sujeito
político e de direito, justamente por se tratar de uma categoria que, por
representar valores ocidentais, exclui outras categorias de mulheres. Sua
reivindicação é a interseccionalidade, cujo propósito é encontrar fórmulas que
considerem a soma das diferentes desigualdades, como raça, sexo, classe social,
orientação sexual etc. Fórmulas que sejam capazes de conceber sujeitos como
categorias sociais heterogêneas. O feminismo interseccional pretende diminuir
as assimetrias e as opressões por meio da visibilidade e da heterogeneidade.
Interseccionalidade e descolonialidade são importantes instrumentos teóricometodológicos, uma vez que contemplam as mulheres negras, indígenas, lésbicas,
terceiro-mundistas, que estão longe das cisgeneridade branca heteropatriarcal que
fundamenta o modelo feminino hegemônico. Precisam, portanto, ser utilizados para a
elaboração de metodologias adequadas à realidade destes grupos, de modo que possam
mobilizá-los para responder à sua condição de opressão (COSTA, 2020).
Daly (1998), numa busca por marcar as distinções entre a criminologia tradicional
e a criminologia feminista, sustenta que a segunda estaria melhor localizada no que
denomina de teorias de médio alcance. Estas seriam teorias que, primariamente,
procuram explorar como amplas forças estruturais são realizadas tanto dentro de
particulares contextos organizacionais como nas interações de atores sociais no nível
micro, dentro de uma área ou domínio específico.
Opostas às grandes teorias, que muitas vezes excessivamente generalizam os efeitos
situacionais na tentativa de explicar tudo de uma vez, as teorias de médio alcance
tentam fornecer explicações mais contidas, mais focadas em situações e contextos.
Assim, a criminologia feminista parte do entendimento de que o gênero é complexo e
contingente, variando conforme o contexto histórico e a posição social do sujeito.
Dessa forma, preocupa-se em investigar como as organizações gendradas (ZANELLO,
2018), através de suas estruturas, políticas, ideologias e práticas, são construídas sobre
as hierarquias de gênero e as reproduzem.
61
BRUNA MARTINS COSTA
Essa preocupação se estende para compreender de que modo os atores se movem
em ambientes marcados pelo gênero para tentarem realizar seus objetivos pessoais
e fortalecer suas posições sociais, bem como para compreender a forma como as
interseccionalidades de gênero, raça, classe, idade, sexualidade criam variações na
natureza e afetam a desigualdade de gênero (CAMPOS, 2017).
Dentro da criminologia feminista, assim como em outros campos, o gênero operaria em
três níveis. O nível macro, denominado ordem de gênero, pode ser observado no fato de
que, aplicado aos estudos criminológicos, o feminismo utilizou as análises estruturais
para mudar a perspectiva da criminologia tradicional, ao incluir as mulheres na análise
dos processos de criminalização.
O nível intermediário, denominado regime de gênero, voltou a atenção feminista à família,
às ruas, à economia de drogas e às redes de ofensores, além dos estudos relacionados
à escola e outras instituições. O nível micro, também reconhecido com a dimensão das
relações de gênero, diz respeito às interações pessoais, diretas e indiretas, mediadas por
relações de poder, produtivas, emocionais e simbólicas. Nesse âmbito, podemos situar os
estudos sobre violência contra as mulheres (CAMPOS, 2017).
As dimensões da ordem, do regime e das relações de gênero operam simultaneamente
e estão interligadas. O reconhecimento da interdisciplinaridade das teorias de gênero
e da criminologia permitiria avanços nos estudos sobre as relações entre gênero e
crime, nas pesquisas qualitativas e quantitativas, e legitimariam a utilidade dessa área
de investigação. Portanto, a saída sugerida por Daly, de trabalhar dentro e contra a
criminologia, parece ser a mais frutífera e proveitoas.
A partir da necessidade de que novos marcadores identitários fossem incluídos na
teorização feminista em criminologia, a perspectiva da criminologia das mulheres
negras e dos estudos queer reivindicaram seu lugar.
Sobre as possibilidades de uma criminologia das mulheres negras, Daly e Stephens (1995,
apud CAMPOS, 2017, p. 276) argumentam que uma análise feminista negra e multiétinica
em criminologia significaria uma consciência de gênero racializada, aplicada a qualquer
circunstância no campo do crime e do sistema de justiça, tendo em vista que o conceito
de opressões múltiplas é central para a teoria feminista negra.
Ainda que a possibilidade de uma criminologia feminista negra e multiétnica venha
ampliar a análise étnico-racial, ela segue não considerando as mulheres lésbicas e a
questão da sexualidade como objetos de investigação criminológica. Esse locus incerto
62
BRUNA MARTINS COSTA
ocupado pelos sujeitos que estão entre as diversas categorias de opressão é apontada
por Glória Anzaldua (2005), ao mencionar sua condição de mulher racializada e latinoamericana.
A emergência dos estudos queer, sustentada nos estudos teóricos gays, lésbicos e trans,
marcam uma etapa de dupla crítica da ordem vigente. Primeiro, porque objetam o padrão
naturalista que estabelece a superioridade masculina sobre as mulheres, e, segundo,
porque questionam a normatização da sexualidade masculina como padrão, produzindo
uma norma política androcentrada e homofóbica.
Para Carvalho (2012), o silêncio da criminologia crítica sobre a (heteros)sexualidade retoma
o debate acerca da cultura ocidental se erigir sobre o paradigma da hipermasculinidade
violenta, na qual a homofobia configura o paradigma científico moderno e o estatuto
científico das ciências criminais.
Campos (2017) defende que a inclusão de novos sujeitos para a construção de uma
criminologia feminista só pode ser compreendida a partir de uma perspectiva feminista
pós-moderna e de um repensar teórico desconstrutivista da própria criminologia. Para
tanto, argumenta que não nega a realidade concreta, nem das mulheres, nem do poder
punitivo. No entanto, não deixa de demonstrar que a exclusão das mulheres nas teorias
criminológicas é um exercício de poder do discurso criminológico.
Nessa linha, a desconstrução feminista do sujeito não significa o abandono das mulheres
reais, mas um duplo deslocamento. O primeiro, no campo discursivo-teórico, pois não
existe a mulher enquanto categoria unificada. O segundo, no campo contextual e político,
tendo em vista que existem mulheres em diferentes posições, e, por isso, em diferentes
condições de opressão. Assim, o sujeito criminológico não mais possui um status fixo,
mas é atravessado por vários marcadores identitários.
Embora trabalhe-se aqui sobre a necessidade de incorporar os discursos feministas,
antirracistas e queer aos debates criminológicos, nem sempre isso é evidente. A crítica
pós-moderna ameaça os pressupostos da ilustração, sobre os quais foi construída a
sociologia e, por consequência, a criminologia, cujo método científico materialista
histórico prometia revelar os fundamentos da opressão humana e do poder punitivo.
Como já mencionado anteriormente, o saber moderno é, portanto, regido pela lógica das
grandes, e generalizantes, narrativas.
No entanto, esse modelo teórico não é possível para o feminismo, como adverte Harding
(1993). Isso porque o feminismo vem denunciando o androcentrismo, lógica sobre a qual
63
BRUNA MARTINS COSTA
diversas teorias foram construídas, incluindo a criminologia, o que torna difícil sua
utilização acrítica. Consequentemente, não sendo possível assumir totalmente a análise
criminológica, pode-se utilizar parte de seu discurso, parte de outro, e formar criativa
e temporariamente uma outra perspectiva teórica conectada à vida e às experiências
específicas das mulheres.
Além disso, a vida social da qual se nutre a teoria feminista está em constante
transformação, impedindo uma teorização completa e estática. Disso, extrai-se que as
próprias categorias analíticas feministas são instáveis e, portanto, não compatíveis com
um pensamento previamente estabelecido e que se proponha imutável.
Não passa de delírio imaginar que o feminismo chegue a uma teoria perfeita, a um
paradigma de “ciência normal” com pressupostos conceituais e metodológicos aceitos
por todas as correntes. As categorias analíticas feministas devem ser instáveis: teorias
coerentes e consistentes em um mundo instável e incoerente são obstáculos tanto ao
conhecimento quanto às práticas sociais (HARDING, 1993).
A criminologia, para abarcar essa nova abordagem, precisa “abdicar as tentações dos
modelos totalizadores, representados pelas grandes narrativas sobre o crime, o criminoso,
os processos de criminalização e os mecanismos de controle social” (CARVALHO, 2012,
p. 163, apud CAMPOS, 2017, p. 282-283). Para o autor, a fragmentação pós-moderna traz
consigo a possiblidade de uma criminologia propriamente contemporânea.
Sobre os atuais desafios para uma abordagem feminista em criminologia no Brasil,
Campos (2017) apresenta três problemas que considera centrais. O primeiro relaciona-se
a uma perspectiva feminista multidimensional em criminologia e diz respeito aos sujeitos
apagados da vista — mulheres negras, pobres, de periferia, indígenas, ribeirinhas —,
submetidos às múltiplas violências decorrentes das diversas vulnerabilidades às quais
estão expostos. Assim, a dimensão étnico-racial é indispensável a uma criminologia
feminista brasileira - assim como a adoção de uma perspectiva de(s)colonial, que será,
em seguida, melhor explicitada -, pois o racismo se constituiu na exclusão social e está
na base da violência institucional no Brasil.
O segundo problema diz respeito à violência homofóbica sofrida pelas mulheres lésbicas
e trans, negando-lhes a possibilidade de exercício de suas sexualidades e subjetividades.
O terceiro problema diz respeito à violência doméstica e sua atual dimensão no país. Ela
constitui um dos maiores desafios da criminologia contemporânea, “pois se tornou o
crime mais reportado ao sistema penal, representando boa parte dos estudos brasileiros
que se autointitulam criminologia feminista (MARTINS; GAUER, 2020).
64
BRUNA MARTINS COSTA
Ainda que o olhar feminista sobre a criminologia seja sempre problematizador, e que
essa relação seja conflituosa, tem-se trabalhado no sentido da produção de sínteses a
partir do diálogo entre criminologia e feminismos17. Há esforços pelo desenvolvimento
de uma criminologia de resistência e marginal, que incorpore as particularidades das
mulheres latino-americanas, negras, indígenas, ribeirinhas, faveladas, lésbicas, latinoamericanas. Importante é o apontamento de Harding (1993), no que diz respeito ao fato
de que as feministas devem colocar esforços para construir conhecimento feminista e
não somente em contrapor e refutar teorias não feministas.
2 FEMINISMO DE(S)COLONIAL18 E A COLONIALIDADE DE GÊNERO
Este trabalho trouxe um breve panorama acerca da tentativa em curso da construção de
uma perspectiva feminista em criminologia – ou de uma criminologia feminista, de um
feminismo criminológico -, que seja necessariamente interseccional. Neste tópico, será
tratada de forma um pouco mais detalhada a discussão acerca da colonialidade de gênero
e a importância da incorporação desse debate para a construção de uma criminologia
feminista latino-americana e, de forma ainda mais específica, brasileira.
Assim como a criminologia crítica latino-americana revelou que os processos de
criminalização nos países periféricos têm peculiaridades decorrentes da situação
de desigualdade social, e de dependência política e econômica dos países centrais, o
feminismo de(s)colonial faz uma crítica ao movimento feminista liberal. Ele sinaliza
como a desigualdade e a violência de gênero são ainda mais acentuadas para as mulheres
não brancas e habitantes dos países do dito sul global — ou de terceiro mundo.
Pode-se entender enquanto feminismo de(s)colonial uma perspectiva feminista que
integra a análise da discriminação social ao classismo e ao racismo, que busca descolonizar
as correntes feministas eurocêntricas, que tem em vista a diversidade existente mesmo
dentro dos grupos oprimidos. Todos esses elementos, já presentes em uma abordagem
feminista pós-colonial, são considerados e complexificados sob a ideia de colonialidade
de gênero (ANDRADE, 2017).
Importa pontuar, portanto, que colonialidade não se confunde com colonialismo.
Enquanto o primeiro se limita aos processos de exploração do território, do trabalho e
das riquezas da colônia em favor do colonizador, através de dominação política e militar,
a ideia segunda ultrapassa esse limite.
17. Destaco aqui a tese de doutorado da Fernanda Martins, intit-
18. Há uma série de discussões em torno da grafia do termo, a
ulada Feminismos criminológicos: heterot[r]opias da abolição, e
maioria delas pautada em argumentos fundamentados. Entretan-
último manifesto de Vera Andrade (2020), intitulado Criminologia
to, neste artigo, não entrarei nesse mérito, e utilizarei a grafia de(s)
em pedaços: manifesto por uma aliança para a brasilidade, que
colonial como alternativa.
trazem algumas reflexões importantes para o prosseguimento dos
debates.
65
BRUNA MARTINS COSTA
Esse é, portanto, um fenômeno que até se inicia com o colonialismo, mas se estende
para além dele, podendo ser conceituado como um padrão de poder através do qual
são governados e hierarquizados os seres humanos, os lugares, o trabalho, a cultura e o
saber, a partir de sua racialização e das formas de exploração capitalista, configurandose como estrutura do sistema-mundo moderno (ANDRADE, 2017).
Quijano (2005), pela perspectiva da colonialidade do poder, explica que a categorização e
hierarquização dos seres humanos por raças, assim como a definição destas a partir da
cor, surgiu com o colonialismo, como forma de naturalizar e justificar a dominação dos
europeus sobre os não europeus.
Nesse sentido, o controle e a exploração da produção e do trabalho pelos europeus na
América, a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o
salário, eram originais na medida em que estavam completamente voltados à produção
de mercadorias para o mercado mundial, e, dessa forma, articuladas com o capital e
mobilizadas entre si – o que não ocorria até então.
O autor ainda entende que simultaneamente a essas formas de dominação surgiu a
divisão racial do trabalho – relegando os negros à escravidão, os índios à servidão e
aos brancos, e em alguns casos, aos mestiços, o privilégio de receber salários e ocupar
funções de comando.” Embora abolidas formalmente a escravidão e a servidão, o sistema
de controle pautado na relação raça/trabalho é até hoje bem-sucedido, existindo reflexos
visíveis daquela divisão, sobretudo na América Latina, onde as classes sociais têm cor.
Por esse motivo, sustentam os teóricos da colonialidade não ser possível compreender
de maneira adequada a realidade latino-americana caso se ignore que as questões raça
e classe — e também, como se verá, gênero — atuam simultaneamente na estrutura de
poder operante na região (QUIJANO, 2005).
Interessante perceber que essa teoria traz uma visão mais ampla do que as teorias
europeias sobre as classes sociais, centralizando, portanto, a questão de raça para
explicar as desigualdades e violências decorrentes da colonialidade.
No que se refere à questão de gênero, apesar de Quijano chegar a mencioná-lo como
componente da colonialidade do poder, enxergava a hierarquização em razão do sexo
como subordinada à hierarquização da raça. As feministas pós-coloniais e de(s)coloniais,
no entanto, avaliam o gênero como elemento estruturador, e não uma categoria acessória,
da colonialidade do poder (ANDRADE, 2017).
66
BRUNA MARTINS COSTA
Lugones (2014, p. 936), para iniciar a discussão sobre colonialidade de gênero, entende
a diferenciação feita pelo colonizador entre europeus e não europeus como uma
hierarquização dicotômica entre humanos e não humanos, sendo esta a “dicotomia
central da modernidade colonial”. A referência seria o europeu branco burguês, que
se reivindica civilizado. Para atingir esse modelo, tinha-se como essencial também a
diferenciação entre homem e mulher.
Sendo assim, os colonizados e colonizadas, por não se encaixarem na padronização de
gênero e papéis sociais definidos para homens e mulheres — e por não serem brancos e
europeus —, eram bestializados e considerados simplesmente machos e fêmeas. Desse
modo, sob o pretexto de que eram não humanos, seria possível infligirem-lhes as mais
diversas crueldades, “através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle
da reprodução e terror sistemático” (LUGONES, 2014, p. 937- 938).
Acrescenta a autora que a transformação civilizatória do colonizador, ao impor aos
colonizados sua visão de mundo, fez com que deles fossem tolhidas a memória, a noção
de si - das pessoas, da relação intersubjetiva, da relação com o mundo espiritual, com a
terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade -, a identidade, a organização
social, ecológica e cosmológica.
A situação para as colonizadas era de uma subalternização ainda mais extrema, estando
elas em posição hierárquica inferior à do colonizado. A religião cristã, professada
pelos colonizadores, trazia uma visão de mundo que servia “para marcar a sexualidade
feminina como maligna, uma vez que as mulheres colonizadas eram figuradas em
relação a Satanás, às vezes como possuídas por Satanás” e, assim, através de mais essa
hierarquização, era possível colocar os colonizados e colonizadas contra si próprios
(LUGONES, 2014, p. 938).
Com efeito, a imposição da ideologia da dominação masculina nas colônias coloca o
homem colonizado em uma condição dúplice: por um lado, é oprimido pelo colonizador;
por outro, é empoderado em relação a sua aldeia. Frente ao colonizador, tem sua
masculinidade e sua virilidade relativizadas, pois subjugado por este. Diante dessa
violência, busca reafirmar seu controle e seu poder masculino no único espaço em que
lhe é possível, que entre as mulheres colonizadas (MARQUES, 2016).
Esse processo de apagamento da subjetividade originária do colonizado, associado à
introdução de ideia de inferiorização feminina, rompe os laços de solidariedade entre
colonizados e colonizadas. Isso implica o fato de que, ainda hoje, mesmo os homens vítimas
da colonialidade do poder, do racismo e do capitalismo são, muitas vezes, indiferentes
67
BRUNA MARTINS COSTA
à violência operada pelo Estado, pelo patriarcado e perpetuada por eles próprios, que
recai, drasticamente, sobre as mulheres não brancas vítimas da colonialidade de gênero
(MARQUES, 2016).”
Reforça-se então a ideia de interseccionalidade indissociável entre gênero, raça, trabalho
(ou classe) e sexualidade, para que se possam enxergar, de fato, as mulheres não brancas
e toda a opressão por elas vivenciada a partir da colonialidade de gênero. Isso porque,
quando aquelas categorias são consideradas apenas isoladamente, são excluídas de sua
visão as pessoas que se encontram justamente na intersecção entre tais categorias.
É o que ocorre, por exemplo, com as mulheres negras em relação ao feminismo
universalizante ou mesmo a estudos sobre racismo que desconsideram o gênero. Quando
se considera as categorias dominantes, entre elas mulher, negro e pobre, vê-se que não
estão articuladas de maneira que incluam pessoas que são mulheres, negras e pobres.
A intersecção entre mulher e negro revela a ausência das mulheres negras em vez da
sua presença. Isso porque a lógica categorial moderna constrói as categorias em termos
homogêneos, atomizados, separáveis, e constituídos dicotomicamente. (LUGONES, 2014).
Essa construção procede a partir da presença generalizada de dicotomias hierárquicas na
lógica da modernidade e das instituições modernas, como já mencionado anteriormente.
A interseccionalidade é importante, nesse caso, por ser capaz de mostrar a falha das
instituições em incluir a opressão das mulheres racializadas.”
O feminismo de(s)colonial, portanto, visa superar a colonialidade de gênero, criticando
essas categorias estáveis da modernidade, de modo a permitir que se percebam as
subjetividades daquelas oprimidas para além da dominação racial, colonial, capitalista,
heterossexual e de gênero. Trata-se não somente de uma nova epistemologia, mas
também de uma praxis que pretende a transformação social, possibilitando às mulheres
“compreender sua situação sem sucumbir a ela” (LUGONES, 2014, p. 940).
É importante assinalar que o feminismo de(s)colonial não é um movimento acabado e
sim uma ideia em construção, que se nutre das experiências de cada uma das mulheres
oprimidas, dos saberes comunitários, indígenas, afros e populares urbanos e do campo,
com vistas a questionar e fazer oposição à lógica imperialista.
A criminologia da libertação é uma vertente de estudos criminológicos críticos
desenvolvida dentro da América Latina e para seu contexto e realidade . É enormemente
reconhecida por criminólogos de todo o mundo, especialmente por suas atividades
desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980, e tem como plano de fundo teórico a teoria
19. Para uma compreensão mais detalhada acerca da criminologia da libertação enquanto corrente e movimento criminológico, ver os
trabalhos de Rosa del Olmo (2004), Lola Anyiar de Castro (2005) e Christina Coutinho (2018).
68
BRUNA MARTINS COSTA
crítica marxista. É uma teoria marcada pela análise predominante do elemento classe,
reconhecendo brevemente, em alguns casos, os elementos raça e gênero.
Ainda que seja possível reconhecer o brilhante trabalho desenvolvido por pesquisadores
dessa corrente, percebe-se uma preocupação escassa e insuficiente no que diz respeito
às particularidades das mulheres latino-americanas (COUTINHO, 2018). Conforme já
mencionando, as opressões sofridas pelas mulheres latino-americanas, bem como pelas
mulheres não brancas e de outros locais do sul global, baseiam-se não somente nas
dominações de classe e de gênero, mas também de raça.
“De acordo com os estudos feitos pelas teóricas da colonialidade de gênero, se forem
analisadas separadamente cada uma dessas categorias de poder, estarão excluídas da
análise aquelas pessoas situadas na intersecção entre elas (ANZALDUA, 2005; LUGONES,
2014). É o caso, justamente, das mulheres latino-americanas, que são subalternizadas
por questões de gênero, por serem oriundas de uma região marginal, por serem não
brancas e, muitas vezes, pobres.
À época em que se desenvolveu a criminologia da libertação, emergiam, quase que
concomitantemente, os estudos pós-coloniais. Isso significa que as teorias de(s)coloniais
só surgiriam alguns anos depois20, sendo, portanto, compreensível que não se tenha
adotado uma lente de(s)colonial para enxergar os fenômenos relacionados ao crime na
América Latina.
De qualquer forma, entende-se que tanto a criminologia da libertação como as
teorias de(s)coloniais compartilham, enquanto objetivo em comum, a produção de um
conhecimento autenticamente latino-americano — local e territorializado —, com
propostas de transformação social para seu povo, e que se dá pela crítica e superação do
sistema moderno capitalista.
A colonialidade, que opera até hoje, traz consigo a imposição do padrão eurocêntrico, que
tem como sujeito o homem branco, heterossexual, burguês. “Esse modelo perpetuado
pelas instituições de controle social que a criminologia da libertação se propõe a estudar,
também influencia na forma como o controle formal e informal incide sobre as mulheres.”
20. Os estudos de(s)coloniais surgiram a partir do grupo
a respeito da geopolítica do conhecimento e da colonialidade do
modernidade/colonialidade, ao final dos anos 1990, sendo o grupo
poder. O grupo tem ampliado sua rede e se mantém fortalecido,
formado por pensadores que, até então, trabalhavam temas como
inclusive com a criação de programas de pós-graduação do Brasil
a teoria da dependência, a análise do sistema-mundo, a filosofia da
e em outros países da América Latina, que permitem a formação
libertação. Em 1998 foi realizado um evento na Venezuela que contou
de mais acadêmicos para continuar os estudos sobre o tema. Para
com a presença de destacados membros do grupo e resultou em
maiores informações sobre o desenvolvimento dos pensamentos
um dos mais importantes livros sobre o tema. No ano seguinte, em
de(s)coloniais, ver o texto de Ramón Grosfoguel e Santiago Castro-
um evento nos Estados Unidos iniciou-se um diálogo com as teorias
Gomes (2007).
pós-coloniais. Paralelamente, criou-se uma rede entre universidades
latino-americanas e norte-americanas para organizar publicações
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BRUNA MARTINS COSTA
Buscando encerrar este breve trabalho, propõe-se que seja pensada uma nova forma de
leitura da teoria crítica do controle social na América Latina, que incorpore a perspectiva
de(s)colonial, mais especificamente da colonialidade de gênero. O desenvolvimento de
uma nova abordagem criminológica que considere as opressões raciais, capitalistas, de
gênero, e a colonialidade, despontaria como uma crítica mais complexa e com maior
potencial emancipatório para as mulheres latino-americanas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho tinha como proposta inicial introduzir de forma sucinta o debate
acerca da incorporação à criminologia crítica da crítica de(s)colonial e de gênero, com o
intuito de elaborar uma criminologia feminista autenticamente latino-americana e, de
forma ainda mais específica, brasileira.
São vastas as críticas feministas à criminologia crítica, sendo comum divergências
radicais entre elas. Tendo isso em vista, foi aqui apresentada a perspectiva de Katheleen
Daly, que sugere, enquanto método de trabalho, atuar dentro e fora da criminologia.
A escolha por trabalhar com esse referencial aconteceu em virtude da autora deste
presente trabalho considerá-lo o mais fecundo, sem parecer ingenuamente conciliador.
Para Daly, o trabalho feminista em relação à criminologia deveria ocorrer em duas
frentes, sendo que uma pautar-se-ia na construção de conhecimentos feministas
dentro do campo criminológico, enquanto a outra continuaria a desafiar e corrigir o
campo não feminista de sua cegueira de gênero, etnocentrismo e rigidez teórica. Essa
postura possibilitaria a abertura de um campo de convergência entre o feminismo e a
criminologia.
Ainda sobre a construção de saberes dentro de uma perspectiva feminista, marginal
e interseccional em criminologia, foi endossada a importância da incorporação das
perspectivas negra, multiétnica e queer. Parece que inclusão de novos sujeitos só pode
ser, portanto, compreendida a partir de uma perspectiva feminista pós-moderna e de um
repensar teórico desconstrutivista da própria criminologia. Não significa a negação da
realidade concreta das mulheres e do poder punitivo, ao mesmo tempo em que não deixa
de demonstrar que a exclusão das mulheres nas teorias criminológicas é um exercício de
poder do discurso criminológico.
Nessa linha, a desconstrução feminista do sujeito não significa o abandono das mulheres
reais, mas um duplo deslocamento. O primeiro, no campo discursivo-teórico, pois não
existe a mulher enquanto categoria universal. O segundo, no campo contextual e político,
70
BRUNA MARTINS COSTA
tendo em vista que existem mulheres em diferentes posições, e, por isso, em diferentes
condições de opressão. Assim, o sujeito criminológico não mais possui um status fixo,
mas é atravessado por vários marcadores identitários.
Sandra Harding já alertava sobre a necessidade de as feministas estarem constantemente
atentas ao proporem novos saberes e formas de pensar. Isso porque as categorias
analíticas do feminismo são, por si só, instáveis, e tentar adequá-las a um modelo
pautado nas grandes e generalizantes narrativas vai contra sua proposta de produzir
um conhecimento localizado, que leve em consideração as múltiplas opressões e
atravessamentos vividos distintamente pela imensa diversidade de mulheres.
Para a construção de uma criminologia feminista marginal, considerou-se de extrema
importância incorporar ao debate desse campo a noção de colonialidade de gênero.
Uma vez que a proposta dessa nova abordagem criminológica é interseccional e voltada
para a realidade de mulheres não brancas – negras, indígenas, mestiças, ribeirinhas,
faveladas, latino-americanas - e dos países ditos periféricos, parece que uma melhor
compreensão sobre como a colonialidade opera estruturalmente na realidade concreta
desses territórios enriqueceria e complexificaria as análises locais sobre a realidade do
crime e do sistema de justiça em relação a essas mulheres.
Diante disso, foi introduzido o conceito de colonialidade de gênero, bem como
foi sinalizada a principal diferença entre o que se entende por colonialismo e por
colonialidade. Ainda que não fosse o enfoque deste trabalho, também foram brevemente
apontadas as diferenças entre a perspectiva pós e a perspectiva de(s)colonial, sendo
importante ressaltar que uma não é o reverso da outra, mas sim a segunda é um passo
adiante nos caminhos apontados inicialmente pela primeira.
Ainda que tenha existido na América Latina uma produção de uma criminologia
territorializada, é importante reconhecer suas limitações. “Percebe-se que a
criminologia da libertação é escassa e insuficiente no que diz respeito às preocupações
com as particularidades das opressões sofridas pelas mulheres latino-americanas, que
se baseiam, não somente nas dominações de classe e de gênero, mas também de raça.
Entretanto, na época em que se desenvolveu a criminologia da libertação emergiam,
quase que simultaneamente, os estudos pós-coloniais. Isso significa que as teorias de(s)
coloniais só surgiriam alguns anos depois, sendo, portanto, compreensível que não se
tenha adotado uma lente de(s)colonial para enxergar os fenômenos relacionados ao
crime na América Latina.
“Como proposta para encerrar este trabalho e para a partir dele iniciar novas reflexões,
sugere-se que seja pensada uma nova leitura da teoria crítica do controle social na América
Latina, que leve em consideração a perspectiva de(s)colonial, mais especificamente
71
BRUNA MARTINS COSTA
da colonialidade de gênero. Isso porque o desenvolvimento de uma nova abordagem
criminológica interseccional, que incorpore, também, esse elemento, despontaria como
uma crítica mais complexa e com maior potencial emancipatório para as mulheres
latino- americanas.
72
BRUNA MARTINS COSTA
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Do racismo colonial ao sujeito
neoliberal: A naturalização que
invisibiliza o trabalho explorado
em condições análogas a de
escravo.
Daniela Valle da Rocha Muller
Introdução
A persistência da exploração de trabalho humano em condições análogas a de
escravo e a dificuldade em efetivar seu combate e erradicação, a par das políticas
públicas implementadas nos últimos quinze anos, indica a necessidade de “constituir
uma sensibilidade sócio-hegemônica alternativa àquela exitosamente gestada pelo
capitalismo” onde o imaginário burguês se impôs sobre os demais, como se fosse o único
possível, verdadeiro e válido (GÁNDARA, 2014). Esse imaginário dá suporte à forma
mercantil do trabalho humano, através da ficção contratual.
Essa sensibilidade liberal hegemônica, que adota a lógica contratual, individualista
e competitiva nas relações econômicas, sociais e culturais, atua para legitimar a
exploração desmedida dos trabalhadores, especialmente aqueles identificados com os
antigos escravos fenotípica, cultural e socialmente. A legitimação desse processo se
apóia na concepção de que certos grupos sociais são naturalmente destinados a realizar
atividades degradantes e exaustivas, a ponto da escravidão contemporânea “muitas
vezes [ser] praticada de forma inconsciente seja pelo explorado, seja pelo explorador. Age
como se estivesse entranhada em nossa cultura, embora tenha adquirido características
próprias que a distinguem da escravidão do passado e que também a diferenciam de
outras violações dos Direitos Humanos” (ALMEIDA e SECCHIN, 2015, p.11).
Seguindo esse caminho, na busca de compreender os mecanismos que levam o trabalho
análogo ao de escravo a ser aceito, vulgarmente utilizado e muitas vezes praticado às
escâncaras, o presente artigo tem por objetivo analisar como a conformação racista
colonial, a colonialidade do poder e a subjetividade do sujeito neoliberal se somam e
atuam para naturalizar a hiper-exploração do fazer humano, no tempo presente.
15. Tomo a liberdade de utilizar o termo que foi (re)tomado pela professora Vera Regina Pereira de Andrade, em 2010, ao propor o projeto
de pesquisa intitulado “Bases para uma Criminologia do controle penal no Brasil: em busca da brasilidade criminológica”, financiado pelo
CNPq e que tem como objetivo orientar investigações pautadas na busca por uma latinidade e por uma brasilidade criminológica.
75
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
2. Imaginário burguês, contrato e a forma mercantil do trabalho humano.
Discursos constituem os sujeitos, orientam as tecnologias de poder. O discurso da
modernidade constituiu o sujeito científico, cuja subjetividade é moldada, em linhas
gerais, pelo relógio e pela cartografia “científica”, que lhe concedem a noção do “tempo
universal” e da terra mensurável, ambos divisíveis e, portanto, comercializáveis através
de leis que dão forma de mercadoria fictícia “para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo
seus preços chamados, respectivamente, (...) salários, aluguel e juro” (POLANYI, 2001, p.
89-90).
A ficção contratual moderna viabilizou a separação entre o corpo e a força de trabalho
das pessoas, uma novidade que tornou possível comercializar o trabalho, que desse modo
se torna uma mercadoria como as demais, cujo preço e condições de troca são ditados
pelas regras do mercado e não pela dignidade do indivíduo envolvido na transação. Com
isso, se oculta o fato concreto de que dentro da relação contratual existe uma pessoa, um
ser humano que trabalha. Na prática o corpo da pessoa é entregue junto com a força de
trabalho contratada, ou seja, a ficção contratual não elimina o fato de que toda a pessoa
do trabalhador está comprometida no cumprimento desse contrato.
A hegemonia dessa ficção contratual não decorre apenas dos textos normativos, sendo
fruto, também, do imaginário moldado desde os primórdios da modernidade pelo
iluminismo, liberalismo e pensamento científico, difundidos através de romances, peças
de teatro, filmes, fotos, quadros, arquitetura e demais expressões artísticas. Aliás, o
arcabouço jurídico que ampara a forma contratual do trabalho só é aceito e praticado
por corresponder à concepção moderna de indivíduo, moldada e constituída a partir das
revoluções liberais do final do século XVIII.
A noção que hoje se tem de indivíduo foi construída sob grande influência das artes
plásticas e da literatura, que por sua vez expressaram, conformaram, estilizaram,
reproduziram e difundiram as ideias iluministas e liberais então emergentes. Segundo
Lynn Hunt (2009, p.25), os direitos individuais não são apenas uma doutrina formulada em
documentos: “baseiam-se numa disposição em relação às outras pessoas, um conjunto de
convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o bem do mal”, enfim, em
sentimentos que tinham de ser experimentados por muitas pessoas e não somente pelos
filósofos. A autora demonstra que os direitos individuais e humanos são socialmente
construídos e não fatos auto-evidentes da natureza. Para que os direitos humanos se
tornassem auto-evidentes, as pessoas comuns precisaram ter novas compreensões que
nasceram de novos tipos de sentimentos. Ela sustenta, em suma, que os novos tipos de
76
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
leitura, de representação artística, arquitetônica e musical criaram novas experiências
individuais, que por sua vez tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos dos
quais nascem os direitos humanos.
Exemplo dessa construção da subjetividade individualista liberal é a popularização dos
retratos entre os burgueses a partir do século XIX, telas reproduzindo os traços específicos
de determinadas pessoas, que antes eram exclusivas aos nobres, se popularizaram e
forjaram a noção de auto-imagem, a “proliferação de retratos individuais estimulou
a visão de que cada pessoa era um indivíduo – isto é, singular, separado, distinto e
original” (HUNT, 2009, p.89). De igual modo, romances como os de Rousseau, Voltaire
e Baudelaire foram dando forma a conceitos como “mundo interior” e privacidade, que
são a semente da autonomia da vontade privada individual, noções absolutamente novas
para as pessoas egressas do antigo regime, onde as referencias eram teocêntricas.
Logo, ao criar a noção de indivíduo e individualidade, a modernidade presenciou o
deslocamento de uma estrutura religiosa transcendente para uma estrutura humana
interior, onde prevalecem ideias que deram (e ainda dão) suporte às liberdades
individuais mercantis. Quando essa liberdade se traduz na venda da força de trabalho,
vista unicamente como um patrimônio do trabalhador, uma mercadoria, se fortalece a
ideia do direito à liberdade pelo viés egoísta, que vislumbra os seres isolados das suas
relações sociais, dos vínculos de solidariedade com os seus semelhantes, como já percebia
Marx (2009, p.64) no século XIX:
o direito humano à liberdade [no viés burguês] não se baseia na vinculação do
homem com o homem, mas, antes, no isolamento do homem relativamente
ao homem. Aquela liberdade individual, assim como esta aplicação dela,
forma a base da sociedade civil. Ela faz com que cada homem encontre no
outro não a realização, mas a barreira da sua liberdade.
O sentido burguês clássico de liberdade, portanto, consiste na possibilidade de acumular
ganhos individuais, independentemente das conseqüências coletivas e sociais dessa
concentração ilimitada de riqueza. Esse modo egoísta de conceber a liberdade está
presente tanto na indiferença da sociedade brasileira do século XIX diante do sofrimento
das pessoas escravizadas, em nome do respeito e da garantia ao direito de propriedade,
quanto no isolamento social do sujeito neoliberal contemporâneo, guiado pelo senso de
competição, pela meritocracia e insensível às contingências sociais.
A partir da segunda metade do século XIX, “a intensificação da produção industrial/
77
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
comercial, entre outros fatores, impulsionou a compressão do tempo-espaço” e, mais uma
vez, a representação artística registra, divulga e alimenta esse fenômeno. O movimento
impressionista iniciou a desconstrução das imagens, processo que se intensificou no
Cubismo, “onde a fragmentação da figura contribui para surgir uma nova concepção
espacial, através da qual se transmite a ideia da passagem do tempo, movimento e
simultaneidades” (HARVEY, 2017, p. 241-245).
Essa sensibilidade forjada ao longo da modernidade foi e é fundamental para o
funcionamento do capitalismo, em todas as suas fases. Henry Ford (1862-1947), no
contexto da modernidade tardia, racionalizou velhas tecnologias e, assim, aumentou a
produtividade através da decomposição de cada processo de trabalho, fragmentando-o,
de uma forma semelhante à representada pelo cubismo, nas artes plásticas. Segundo
Harvey (2017) a reorganização fordista da produção transformou a maneira de trabalhar,
padronizou procedimentos e produtos, levou à produção e ao consumo de massa,
forjando uma nova estética, uma nova psicologia, onde o eu individual burguês já estava
consolidado e hegemônico. Em resumo, forjou um novo tipo de sociedade racionalizada,
modernista.
Essa nova organização da produção forjou, ainda, uma divisão social, sexual e técnica
altamente organizada do trabalho, um princípio da modernização capitalista e com ela
trouxe o contexto do individualismo possessivo, o empreendimentismo, implicando na
transformação necessária das relações sociais, onde aquele que produz e comercializa
vê os outros em termos puramente instrumentais e a liberdade é concebida em termos
cada vez mais individuais e egoístas.
Aqui, a ficção do contrato de trabalho, da separação entre corpo e força de trabalho,
mascara a exploração humana contida na relação de trabalho própria do sistema
capitalista, consolidada a partir do séc. XIX. Essa ficção se consolida filosófica, econômica,
social e culturalmente, tendo, por isso, a força de estar firmemente instalada na doxa, ou
seja, no “conjunto de crenças usado rotineiramente pelo público leigo para pensar, mas
poucas vezes, se tanto, objeto de reflexão” (BAUMAN, 2015, p. 41).
Nessa lógica, as condições de trabalho e de vida, a alegria, a raiva ou a frustração que
estão por trás da produção de mercadorias, os estados de ânimo dos trabalhadores, tudo
isso está oculto de nós ao trocarmos um objeto (dinheiro) por outro (mercadoria). Como
observa Harvey (2017) não podemos dizer ou mesmo imaginar, a partir da contemplação
de um objeto no supermercado, as condições de trabalho que estiveram por trás da
sua produção. Tudo isso se torna opaco para o conjunto da sociedade, uma vez que
78
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
não há impressões digitais da exploração nas mercadorias materiais e imateriais que
consumimos a cada dia.
Há estreita ligação, portanto, entre os movimentos artísticos, culturais, e as
transformações próprias do capitalismo, em todas as suas fases, notadamente na
naturalização da organização da produção própria desse sistema, que aliena o corpo
que trabalha do resultado desse trabalho. A subjetividade que cria e ao mesmo tempo
é criada por movimentos artísticos nas suas diversas formas, conforma e naturaliza
as relações sociais, econômicas, políticas, familiares, enfim, forja uma visão de mundo
adequada ao sistema capitalista de livre comércio, inclusive o “mercado de braços”.
3. Colonialidade do poder, racismo e escravidão.
Dentro dessa sensibilidade engendrada pela modernidade se insere a criação do conceito
de raças classificadas por traços geográficos, fenotípicos e culturais. A modernidade não
se restringe às transformações ocorridas na Europa, é um processo forjado através da
mundialização, ou seja, da chegada dos europeus em outros territórios do planeta para
conquistá-los e dominá-los econômica, militar e culturalmente, movimento que levou à
construção do sistema-mundo22, ao desenho das fronteiras e demarcação de territórios
onde, mais tarde, foram instalados os conceitos e o modelo de Estado-Nação e de Direito
próprios do sistema liberal europeu-estadunidense.
Em linhas gerais, após a independência das antigas colônias européias formaram-se
Estados Nacionais inspirados nos ideais liberais de liberdade e igualdade perante a
lei. Contudo, para boa parte da população das antigas colônias isso não representou o
fim do trabalho forçado, extenuante e degradante, o que decorre, em grande parte, da
manutenção da hierarquia social, cultural, econômica e fenotípica, própria do racismo
engendrado no curso da mundialização, da colonização européia além-mar, onde se via
com naturalidade a exploração dos povos “inferiores”.
Aníbal Quijano (2005) afirma a necessidade de um olhar interseccional para compreender
a realidade específica da América Latina, fruto de múltiplas e heterogêneas hierarquias
globais de dominação, por se tratar do primeiro espaço/tempo de um padrão de poder
de vocação mundial, com dois eixos fundamentais: a codificação das diferenças entre
conquistadores e conquistados na ideia de raça, bem como, articulação de todas as
formas históricas de controle do trabalho de seus recursos e seus produtos, em torno do
capital e do mercado mundial.
22. “os paradigmas eurocêntricos hegemônicos dos últimos 500 anos conformaram o sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/
moderno; [...] o que chagou às Américas (no séc. XVI) foi uma enredada estrutura de poder mais ampla e mais vasta, que uma redutora
perspectiva econômica do sistema-mundo não é capaz de explicar. De acordo com Rigoberta Menchu (Guatemala) e Domitila (Bolívia):
chegou às Américas o homem heterossexual/ branco/ patriarcal/ cristão/ militar/ capitalista/ europeu.” (GROSFOGUEL, 2008, pp. 118 e 122).
79
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
A ideia de raça, segundo ele, foi construída como referência a supostas estruturas
biológicas diferentes entre grupos, que situavam uns naturalmente inferiores em relação
a outros. Nesse processo, traços fenotípicos e culturais, entre outros, foram usados para
colocar os povos dominados numa situação “natural” de inferioridade e, assim, legitimar
as relações de dominação impostas pela conquista.
Mais uma vez as expressões artísticas difundem e consolidam as marcações raciais
que colocam o homem branco europeu iluminista como referência de progresso, ética,
beleza, bom gosto, arte e religião, ao mesmo tempo em que marcavam de modo pejorativo
os referenciais não-europeus, tidos por atrasados, feios, etc. Além disso, na inédita
articulação de todas as formas de controle de trabalho, deliberadamente estabelecidas
e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial, se relacionava cada
forma de trabalho com uma raça particular. Dava-se a constituição da Europa Ocidental
como sede central do controle do mercado mundial:
Enquanto isso, todas as demais regiões e populações incorporadas ao novo
mercado mundial colonizado ou em curso de colonização sob domínio europeu
permaneciam basicamente sob relações não-salariais ainda que desde cedo
esse trabalho, seus recursos e seus produtos se tenham articulado numa
cadeia de transferência de valor e de benefícios cujo controle cabia à Europa
Ocidental. Nas regiões não-européias, o trabalho assalariado concentrava-se
quase exclusivamente entre os brancos. [...] desde o começo da América, os
futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não-assalariado com as
raças dominadas, porque eram raças inferiores [...] mão-de-obra descartável,
forçada a trabalhar até a morte. (QUIJANO, 2005, p.119-120).
Basicamente, o sistema colonial delegava aos africanos o trabalho escravizado e
aos ameríndios a servidão, que resultavam em trabalho forçado, miséria e violência,
enquanto aos brancos, “raça superior”, cabia o trabalho remunerado e o lucro com a
riqueza gerada através do trabalho espoliado das “raças inferiores”. O colonizado foi
forçado a aprender parcialmente os referenciais culturais dos dominadores em tudo que
fosse útil para dominação, uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de
produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva,
do imaginário, do universo de relações intersubjetivas, a cultura, como observa Aníbal
Quijano (2005).
Lélia Gonzalez (1984), ao pensar sobre o racismo e o sexismo na realidade específica do
Brasil, também o percebe a ideia de raça como uma construção cultural colonial que
80
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
impõe uma pretensa superioridade européia aos dominados:
Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção
econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a
reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época
colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao
espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do
grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos
recantos da cidade ou do campo [...]. Desde a casa grande e do sobrado até
aos belos edifícios e residências atuais o critério é o mesmo. Já o lugar do
negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões,
alagados e conjuntos ‘habitacionais’ [...] basta que a gente pense nesse
mito de origem elaborado pelo Mário de Andrade que é o Macunaíma.
Como todo mundo sabe, Macunaíma nasceu negro, ‘preto retinto e filho
do medo da noite’. Depois ele branqueia como muito crioulo que a gente
conhece, que, se bobear, quer virar nórdico. É por aí que dá prá gente
entender a ideologia do branqueamento, a lógica da dominação que visa
a dominação da negrada mediante a internalização e a reprodução dos
valores brancos ocidentais.
Nesse sentido, “o conceito de raças inferiores serviu ao Ocidente branco para sua obra de
expansão e conquista” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 57), o sentimento difuso de superioridade
dos euro-americanos serve, ainda hoje, para justificar as relações fáticas de dominação na
ordem mundial, tal como no colonialismo. Acredita-se, com isso, que é melhor entregar
nossas riquezas a quem sabe melhor utiliza-las, aos povos de “cultura superior”, honestos
de berço, enquanto nós seríamos corruptos de berço, portanto, ineptos e indignos da
nossa própria riqueza. A colonização da elite brasileira sobre toda a população só foi
e ainda é possível pelo uso, contra a própria população, de um racismo travestido em
culturalismo. “Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar
seu corpo e seu bolso” (SOUZA, 2017, p. 24).
Mais uma vez se nota a interligação entre a dominação simbólica, cultural, artística e a
dominação econômica e política nas sociedades modernas. Nessa perspectiva, o racismo
se irradia nas mais diversas manifestações culturais e simbólicas, desde critérios
estabelecidos para selecionar o conhecimento reconhecido como válido, que sempre
convergem para confirmação científica da superioridade do branco europeu adotado
como paradigma universal (colonização hermenêutica), até a desqualificação estética de
tudo relacionado aos povos dominados. Esse racismo cultural, refletido em filmes, livros,
81
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
quadros, entre outras expressões simbólicas, atua na consolidação da subjetividade do
homem moderno e contemporâneo, especialmente no sentido de naturalizar e, assim,
invisibilizar a exploração extrema dos grupos sociais estigmatizados e já identificados
com a realização de trabalhos subalternizados e rejeitados pelos que se acreditam
“superiores”.
O etnocentrismo colonial e a classificação racial universal ajudam a explicar porque os
europeus foram levados a se sentir naturalmente superiores e, no mesmo caminho, como
a “opressão tende a ser exercida, cada vez mais, por portadores de valores europeus,
contra os pobres, africanos e índios” (SOUZA, 2017, p. 60).
Essa constituição colonial peculiar do tempo-espaço que hoje conhecemos como América,
notadamente no que se refere à imposição da raça e da cultura européias como superiores
e, portanto, como o caminho natural da evolução humana, marcou profundamente o
processo de constituição dos Estados pós-coloniais na América latina, que resultou em
um paradoxo: Estados independentes e sociedades coloniais. (QUIJANO, 2005)
Segundo Quijano (2005), nos casos de nacionalização bem-sucedida de sociedades e
estados europeus, houve um importante processo de democratização como condição
básica para a nacionalização dessas sociedades e a organização política do Estado-nação
moderno. Essa democratização não aconteceu na maioria dos Estados modernos latinoamericanos, inclusive no Brasil, onde o processo de independência não representou
melhoria da condição de vida da maioria da população, nem mesmo o fim da escravidão
e da servidão para boa parte dela.
O peruano J. C. Mariátegui (2010) foi um dos primeiros a perceber que a independência
das colônias latino-americanas pouco significaria para grande parte da população,
enquanto não fosse realmente enfrentado o poder dos grandes latifundiários e oligarcas
– o gamonalismo, que perpetuava o “feudalismo colonial” através da hegemonia dos
grandes proprietários de terra na política, no Estado, na religião e na cultura. Nas
primeiras décadas do século XX o autor constatou que:
Contra sua autoridade [do gamonalismo], favorecida pelo ambiente e pelo
hábito, a lei escrita é impotente. O trabalho forçado está proibido por lei,
no entanto, o trabalho gratuito, e até o trabalho forçado, sobrevivem no
latifundio. O Juiz, o subprefeito, o comissário, o professor, o coletor, estão
todos enfeudados à grande propriedade. [...] entre os primeiros atos da
república, contaram-se várias leis e decretos favoráveis aos índios. Foi
82
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
ordenada a repartição das terras, a abolição dos trabalhos gratuitos, etc.; mas
como a revolução não representou no Peru o advento de uma nova classe
dirigente, todas essas disposições ficaram somente escritas com a falta de
governantes capazes de aplicá-las. A aristocracia latifundiária da colônia,
dona do poder, conservou intactos seus direitos feudais sobre a terra e, por
conseqüência, sobre o índio.” (p. 55; 62).
Na maioria dos países americanos a pequena minoria branca controladora dos Estados
independentes e das sociedades pós-coloniais não sentiu nenhum interesse social
comum com os índios, negros e mestiços. Ao contrário, seus interesses sociais eram
explicitamente antagônicos com relação a eles, pois seus privilégios compunham-se
precisamente do domínio e da exploração dessas gentes.
Assim, do ponto de vista dos dominadores nas nações latinas, seus interesses sociais
estiveram muito mais próximos dos de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre
inclinados a seguir os interesses da burguesia européia; os senhores latino-americanos
não podiam investir em trabalho assalariado e livre, precisamente porque isso ia contra a
reprodução de sua condição de senhores, a colonialidade de seu poder leva-os a perceber
seus interesses sociais como iguais aos dos outros brancos dominantes, na Europa e nos
Estados Unidos, consequentemente não podiam ser nada além de sócios menores da
burguesia européia. (QUIJANO, 2005)
Em resumo, a ideia eurocêntrica de racismo, que naturalizou a associação entre o trabalho
exaustivo, degradante e não remunerado às raças inferiores, ou seja, não-européias,
está na constituição dos Estados Nacionais pós-coloniais latino-americanos, onde a
concretização do ideário liberal (forma republicana, sufrágio universal, etc.) não foi capaz
de implementar uma cidadania efetiva para a maior parte da população, especialmente no
que se refere à promessa liberal de trabalho livre e (dignamente) assalariado, com valor e
condições do serviço ajustados mediante contrato firmado entre homens livres e iguais, até
porque os homens livres, na prática, até hoje não são real e satisfatoriamente iguais.
A produção cultural hegemônica reafirma esses referenciais, que vinculam os signos
europeus ao progresso, ao conhecimento válido, à beleza, à seriedade ao comprometimento
com a produtividade, reafirmando o destino “natural” dos brancos aos melhores postos
de trabalho, enquanto os não-brancos são relacionados ao atraso, à crendice, à feiúra,
à malícia, vadiagem e preguiça, alimentando uma subjetividade onde se acredita que os
“trabalhadores pouco escolarizados e submetidos a jornadas extensas, devem ‘reparar’
a sua baixa produtividade com muito trabalho, em troca de qualquer emprego de baixa
83
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
remuneração e sem direitos elementares” (BARBERINO, 2014).
Portanto, para compreender a perpetuação e a naturalização da extrema exploração
das classes subalternizadas no Brasil, é necessário analisar a estreita ligação entre o
racismo que hierarquiza os seres humanos e a colonialidade do poder, mantendo uma
parte considerável da população latino-americana submetida a condições subumanas
de trabalho e de vida. Para tanto, há de se observar o fenômeno social através dos seus
aspectos raciais e de gênero, além das questões de classe:
Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar
muita coisa interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o
branco faz com a gente porque a gente é preto. Prá gente que é preta então,
nem se fala. [...] a escrava de cor [...] cozinhava, lavava, passava a ferro,
esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da
senhora e satisfazia as exigências do senhor. [...] O amor para a escrava [...]
tinha aspectos de verdadeiro pesadelo (GONZALES. 1984).
O sociólogo Jessé Souza também identifica essa conformação social e política no estado
brasileiro, constituída a partir de 1822 com a Independência e intensificada após a Abolição
da escravatura em 1888 e a proclamação da República em 1889. É nesse período que os
aspectos raciais se consolidam como justificativa científica e legal para a imposição de
certas condições de trabalho para determinados grupos sociais, considerados inferiores,
especialmente os escravizados e seus descendentes.
Jessé Souza (2017) percebe que o liberalismo, no Brasil, não surge como demanda de setores
burgueses, para garantir espaços de autonomia e ação contra uma ordem estamental e
elitista. Ao contrário, o liberalismo aqui passa a ser o ideário do “mandonismo privado”23,
concluindo que:
Somos nós brasileiros filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo
de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui
valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece
até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.
Isso é herança escravocrata e não portuguesa. Por conta disso, até hoje,
reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas, como exclusão social
massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacina contra pobres
indefesos que são comemoradas pela população, etc. (SOUZA, 2017, p. 208).
23. Por “mandonismo” o Jessé Souza (2017, p. 112) entende a vontade individual exercida sem limite externo, seja moral, religioso, institucional ou cultural; se estabeleceu como um “direito” de fato do senhor de terra e de escravos, como contrapartida tácita da colonização de
terras estrangeiras e hostis fora de Portugal.
84
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
A indiferença de boa parte da população diante da degradação e hiper-exploração de
certos grupos sociais é fruto desse processo de modernização brasileiro, que não debelou
o corte ontológico típico escravismo, onde as pessoas são categorizadas em humanos
e sub-humanos, constituindo-se uma sociedade estruturalmente “sadomasoquista”, ou
seja, onde a dor alheia é indiferente e a perversão do prazer transforma-se em objetivo
máximo das relações interpessoais.
Os parâmetros racistas e patriarcais, consolidados desde o período colonial e imperial,
se entrelaçam e reforçam as opressões de classe na sociedade brasileira, onde ser
considerado homem branco era ser considerado útil ao esforço de modernização do país.
Era (e continua sendo) um indicador da existência de uma série de atributos morais
e culturais, que permitem e legitimam a visão de alguns como superiores e dignos
de privilégios, e de outros como inferiores e merecedores de sua posição marginal e
humilhante. A posse, real ou suposta, desses valores eurocêntricos e individualistas vai
legitimar a dominação social de um estrato social sobre o outro, justificar os privilégios
de uns sobre o outro, racionalizar a injustiça (SOUZA, 2017). Em resumo:
No Brasil não há como separar o preconceito de classe do preconceito de
raça. As classes excluídas em países de passado escravocrata tão presente
como o nosso, são uma forma de continuar a escravidão e seus padrões de
ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e superexploradas.
[...] A ralé de novos escravos será não só a classe que todas as outras vão
procurar se distinguir e se afastar, mas, também, vão procurar explorar o
trabalho farto e barato. Isso vale para a classe do privilégio, a elite econômica,
e a classe média, que monopolizam o capital econômico e o capital cultural e
utilizam a ralé como se utilizavam os escravos domésticos. (SOUZA, 2017, p.
82; 103).
Resgatar os alicerces das relações sociais brasileiras é fundamental para a compreensão
da colonialidade do poder e também do saber como mecanismos através dos quais a elite
local se identifica com os padrões brancos europeus e euro-americanos e não com os
do seu próprio povo, gerando um mecanismo que possibilita a continuidade de formas
coloniais de dominação, através de novas roupagens.
Ainda hoje a visão dos países centrais acerca das relações de trabalho é adotada de modo
acrítico, desprezando-se as peculiaridades da estrutura dessas relações engendradas
pelo processo de modernização brasileiro, induzindo uma concepção de que a mera
adoção do trabalho livre e subordinado, regido pelo Direito do Trabalho, estabelece um
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DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
contraponto e sepulta as relações de trabalho escravas e servis, que seriam por si só
incompatíveis com a hegemonia do livre comércio.
Porém, essa visão acaba por escamotear as múltiplas opressões que naturalizam a
extrema exploração de certos grupos sociais, por considerá-las superadas com a simples
adoção do trabalho próprio do sistema capitalista, ou seja, livre e subordinado e ajustado
através de um contrato firmado entre pessoas abstratamente iguais.
A doutrina pátria majoritária juslaboral, ao perpetuar o pensamento
eurocentrico que estabelece esta pretensa diferença transhistórica entre
trabalho escravo-servil e trabalho livre-subordinado, tratou de esconder
as sobreposições entre tais formas de trabalho que ocorreram no Brasil
colônia e suas respectivas articulações com raça e gênero, o que oculta, até
hoje no Direito do Trabalho, sujeições interseccionais. [...] A distribuição
simultânea do trabalho escravo, servil e livre na América colonial articulada
com raça e gênero criou sujeições interseccionais ainda presentes na divisão
laboral brasileira [...]. A exclusão de certos segmentos sociais dos espaços
de poder, como legado colonial da distribuição desigual de funções laborais
pré-configuradas conforme raça, classe e gênero, faz com que a entrada no
mercado de trabalho brasileiro desses grupos – especificamente homens
negros e, principalmente, mulheres negras – seja sempre precária, em
posições subalternas, mal remuneradas, caracterizadas pela vulnerabilidade
em termos de direitos laborais” (MURADAS e PEREIRA, 2018, p. 2131; 2134).
Todos esses fatores levaram à construção de uma percepção negativa dos escravos e de
seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo
de forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas. Desse modo, se constituiu uma
classe de humilhados para assim explorá-los por pouco e para constituir uma distinção
pretensamente meritocrática contra quem nunca teve igualdade de ponto de partida,
um verdadeiro recurso de desqualificação simbólica dos escravos e seus descendentes,
um mecanismo muito eficiente para legitimar a exploração extrema e o desprezo pela
dignidade de certos trabalhadores, associados basicamente aos africanos, ameríndios e
seus descendentes.
O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono
social se culpa por seu destino. Até o início do século XX esse mecanismo funcionou
pela introjeção dos valores racistas próprios do sistema euro-americano de dominação
dos territórios, que reforça essa visão de pessoas “inferiores” responsáveis pela própria
86
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
exploração. Hoje, uma concepção semelhante está presente na visão de mundo neoliberal,
onde valores ultra-individualistas tecem uma verdadeira “capa de invisibilidade” ao
redor do trabalho escravo contemporâneo.
4. Trabalho escravo contemporâneo e o sujeito neoliberal.
A intensificação do desempenho como valor, aliada à visão de que o fracasso social
de certos grupos se deve a escolhas equivocadas, “falta de empenho”, preguiça e falta
de “capital individual” adequado dos próprios atingidos, gera a convicção de que a
deficiência e os equívocos desse grupo devem ser compensados com trabalho duro,
ou seja, exaustivo. Quanto à degradância, também é vista como resultado da inépcia,
hábito ou tradição individual do trabalhador ignorante e incivilizado, ao invés de uma
inadmissível forma de exploração do trabalho humano com finalidade lucrativa.
Após a Revolução Industrial, a intensificação do trabalho decorreu da fragmentação e
sobreposição de tempos/espaços, processo que se acelerou na pós-modernidade com a
acumulação flexível e que hoje está naturalizado a ponto das pessoas sentirem como se
o mundo sempre tivesse funcionado com a atual configuração e ritmo de compressão
tempo-espaço (HARVEY, 2017). Essa subjetividade possibilita a articulação simultânea
de diversas formas de exploração em benefício da economia de mercado, inclusive as
consideradas “arcaicas”.
A acumulação flexível parece enquadrar-se como uma combinação simples
das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx
[mais-valia absoluta e mais-valia relativa]. [...] Em condições de acumulação
flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a
lado, no mesmo espaço, de uma maneira que permita que os empreendedores
capitalistas escolham à vontade entre eles. [...] O ecletismo nas práticas de
trabalho parece quase tão marcado, em nosso tempo, quanto o ecletismo das
filosofias e gostos pós-modernos. [...] os recursos dos capitalistas na tentativa
de promover o espírito de competição entre os trabalhadores, ao mesmo
tempo que exigem flexibilidade e disposição, de localização e de abordagem
de tarefas.” (HARVEY, 2017, p. 174-175).
Outro fator que alimenta as piores formas de exploração do trabalhador é o vício do
ser humano em objetos mercantis, uma tendência a ele próprio se tornar um objeto
que vale pelo que produz no campo econômico, um objeto que será descartado quando
tiver perdido a “performance”, percepção compatível com a lógica da exploração do
87
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
fazer humano em condições análogas a de escravo, onde o trabalhador é simplesmente
descartado depois de perder sua utilidade, sua força e/ou sua saúde.
Dardot e Laval (2018) observam que o neoliberalismo, além de ser uma ideologia, uma
política, é também “um sistema normativo que ampliou sua influencia ao mundo inteiro,
estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e todas as esferas da vida”.
Disso decorre um conjunto de discursos, práticas, dispositivos que determinam um
novo modo de governo dos homens e dos Estados segundo o princípio universal da
competição medida pela eficiência e produtividade, regida pela lógica de mercado, que
se generaliza como lógica normativa, levando as pessoas a estabelecerem transações ao
invés de relações, na vida pessoal e social.
Forma-se desse modo um ambiente de egoísmo social, com a negação da solidariedade
e da redistribuição, onde impera a responsabilidade individual e o autocontrole. Há
infinita responsabilidade do indivíduo por seu próprio destino, por sua capacidade de
ser bem-sucedido e feliz, o que dependeria apenas do mérito individual da pessoa, que
deve se comprometer plenamente, entregar-se por inteiro a sua atividade profissional,
sendo mais que o um sujeito produtivo um homem responsável. É nessa medida em
que se torna “natural” empenhar doze horas de trabalho por dia ou mais, o que passa a
ser visto como responsabilidade do sujeito produtivo regido pela lógica da competição
individual, e não mais uma exploração ilegal do trabalho humano.
A sensibilidade própria do sujeito neoliberal oculta o racismo e o machismo que persistem
na divisão social, sexual e internacional do trabalho, para assim legitimar a exploração
do trabalho farto e barato das classes estigmatizadas, apontadas como responsáveis
pela própria situação, seja pela falta de “cultura”, falta de “investimento” e de empenho
pessoal na própria formação profissional.
A associação de formas “violentas” e “livres” de trabalho, a sua articulação simultânea no
tempo e no espaço, onde se enredam diferentes formas de trabalho para gerar riqueza em
proveito exclusivo das empresas transnacionais, das elites das ex-colônias e de algumas
Nações centrais, é dissimulada através de estratégias ideológico-simbólicas onde subjaz
a cultura colonial racista. A responsabilidade daqueles poucos beneficiados por essa
articulação fica nebulosa, opaca, na medida em que a hiper-exploração de trabalhadores
brasileiros passa a ser vista como natural e justificada pelo “atraso” e pela “problemática”,
próprios da região.
88
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
Enfim, os preconceitos sociais amparados na herança escravista e no culturalismo
racista e sexista que dela brotou, encontram no atual neoliberalismo global um
ambiente confortável para a postura complacente com o modo de acumulação ilimitada
de riqueza através de trabalho precário, exaustivo, indigno e praticamente gratuito de
outros seres humanos. Um sistema que prega como valor a superação infinita de si,
uma subjetivação pelo excesso e que vê com naturalidade o exaurimento e a degradação
daqueles grupos taxados como não capacitados para a concorrência no mercado de
trabalho contemporâneo.
5. Considerações finais.
Na atual fase do capitalismo neoliberal global, a subjetividade dominante, que fragmenta
corpo e trabalho, tempo e espaço, ampara a intensificação ainda maior da produção e do
ritmo de trabalho, uma vez que o funcionamento em rede das empresas transnacionais,
por exemplo, “depende da abolição do âmbito espácio-temporal do trabalhador, através
da fantasia da ubiqüidade que o transporta para um mundo virtual e um ‘tempo real’”.
(SUPIOT, 2007, p. 163)
É desse modo que a subjetividade do sujeito neoliberal, segundo a qual a desigualdade é
natural, deslegitima a legislação social. Através dessa concepção de mundo as mazelas
sociais não devem ser combatidas pelo Estado de bem-estar social, mas sim superadas pelo
esforço individual de cada pessoa. Essa convicção leva que se veja o amparo social como
vantagem indevida aos fracos, irresponsáveis que não teriam investido nos requisitos
individuais necessários para vencer a competição generalizada, para “empreender”,
atrapalhando na “seleção natural” dos mais aptos.
Essa subjetividade se casa com o racismo e a colonialidade do poder na América latina,
levando à naturalização do trabalho realizado em condições análogas a de escravo, ou
seja, exaustivo, precário e/ou forçado, conforme previsão do art.149 do Código Penal
Brasileiro, e que é realizado pelos grupos socialmente estigmatizados, atravessados por
múltiplas opressões. Forma-se um ambiente onde florescem e se consolidam formas
precárias de trabalho:
Que implicam sujeição pelo trabalho, particularmente em segmentos sociais
interseccionalmente marginalizados, que continuam em posições subalternas
herdadas do colonialismo. O Direito do Trabalho brasileiro, ao assumir como
único núcleo-neutro protetivo o paradoxal trabalho livre e subordinado,
atribui direitos somente para aqueles que estão acobertados pela relação de
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DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
emprego, invisibilizando sujeições interseccionais articuladas pelas margens
trabalho, derivadas de uma divisão racial-sexual laboral colonial, que se
perpetua pela colonialidade do saber. [...] O pensamento moderno liberal
eurocêntrico que permanece até hoje, legitimando e ocultando sujeições
interseccionais provenientes do colonialismo, que se manifestam na
massificada precarização das relações de trabalho de específicos segmentos
sociais. (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 2136).
A erradicação do trabalho realizado em condições análogas a de escravo não depende
apenas de boas normas jurídicas que proíbam a prática, sendo necessário compreender
as sujeições interseccionais que se camuflam no ambiente cultural, sustentadas pela
subjetividade naturalizadora da degradância e da exploração até a morte de certos
grupos sociais latino-americanos, identificados com raça, classe e gênero classificados
segundo os parâmetros eurocêntricos como inferiores.
90
DANIELA VALLE DA ROCHA MULLER
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A criminalização de expressões
artísticas desviantes: um estudo
à luz do diamante ético de
Herrera Flores
Lívia de Meira Lima Paiva
Introdução
A interdição por parte dos aparatos estatais de determinadas identidades e expressões
culturais não é nova. Os chamados funks proibidões são, há alguns anos, centro de discussões
acerca da possibilidade jurídica de censura em detrimento de uma suposta apologia ao crime.
No entanto, no últimos anos, outro tipo de expressão marginal tem sido atacada por
grupos conservadores e ecoou nas instituições estatais, especialmente no Congresso e
no Poder Judiciário. Em todas as manifestações silenciadas há uma expressividade antihegemônica, que confronta uma determinada moral ou normatividade dominante.
As denúncias calcadas em suposta imoralidade e ilicitude nas obras surgem como
estratégia de grupos que, através de exposições fragmentárias e descontextualizadas,
criam narrativas fundadas em certos valores conservadores que encontram eco na
sociedade e nas instituições estatais.
Em alguns casos, quando o conflito é judicializado ou quando o Direito passa a ser o
instrumento de “leitura” destes eventos, as narrativas jurídicas revelam em seu discurso
visões conservadoras eivadas de conteúdo moralizante, semelhante aos expressados
pelos movimentos que deram origem aos boicotes e censuras. A análise jurídica dos casos
escamoteada por uma pretensão “puramente” dogmática ou técnica chancela por meio
de instituições e aparatos estatais um conjunto de valores que historicamente se revela
hegemônico.
Muitas autoras e autores se esforçaram por demonstrar que por detrás do paradigma liberal
clássico do Direito está a universalização de uma moral ocidental, masculina, branca, cristã,
burguesa e cisheteronormativa24. Para a realização deste artigo partimos do entendimento
do discurso como mecanismo de poder e de representação do “Outro”. Longe de ser uma
manifestação passiva da linguagem, o discurso enquanto prática social define certos grupos
sociais como “outros” e “outras” a partir de lugares de poder e dominação25.
Neste sentido, pretende-se analisar como as instituições através de um conjunto de
24. Entre muitos outros, conferir: HINKELAMMERT, F. La inversión
derecho. The Politics of Law (Nueva York, Pantheon, 1990), pp. 452-
de los derechos humanos: el caso de John Locke. En: El vuelo de
467. Traducción de Mariela Santoro y Christian Courtis.
Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la razón Liberal. Joaquín
Herrera Flores, editor. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000; SMART,
25. CURIEL, Ochy. La nación heterossexual: Análisis del discurso
Carol: La teoria feminista y el discurso juridico. In: El derecho en el
jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dom-
genero y el genero en el derecho. Cedael. Editorial Biblos. Buenos
inación. Bogotá:Brecha Lésbica y en la frontera, 2013, p. 28
Aires, Argentina. Septiembre, 2000; OLSEN, Frances. El sexo del
92
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
valores articulam narrativas através do Direito capazes de silenciar (ou não) expressões
periféricas. Como metodologia, elegemos o diamante ético criado por Herrera Flores por
possibilitar uma análise interacional destes três elementos26.
Sendo assim, na primeira parte deste estudo apresentaremos de forma resumida algumas
das principais interdições que ocorreram por todo o país com objetivo de compreendêlas em um contexto amplo de ataques. Em seguida, partindo da compreensão do discurso
jurídico como uma prática social ativa, analisaremos à luz do diamante ético como as
instituições do Estado podem articular determinados valores e/em narrativas com objetivo
de violar ou garantir a dignidade humana, elemento central dos direitos humanos.
1. Boicotes e censuras
A interdição policial da performance do paranaense Maikon K em julho de 2017
prenúncio da tsunami conservadora e criminalizante que se espalhou pelo país. Durante
a apresentação de “DNA de DAN” na programação oficial do circuito cultural “Palco
Giratório” do Sesc, o artista foi abordado pela Polícia Militar do Distrito Federal e
encaminhado à delegacia de polícia onde assinou um termo circunstanciado por “ato
obsceno27”. Em seguida, outra interdição, desta vez judicial, do espetáculo “O Evangelho
segundo Jesus Rainha do Céu” impediu que o espetáculo se apresentasse no Sesc Jundiaí.
A censura fez com que em algumas cidades por onde o espetáculo passou fossem
propostas demandas judiciais com objetivo de impedir a apresentação.
Quase na sequência, ocorreu o fechamento precoce da exposição
“Queermuseum – cartografias da diferença” em Porto Alegre sob as
acusações de “vilipêndio de objeto religioso”28, “incitação ao crime” e
“apologia ao crime”29, “pedofilia”30 e “zoofilia”31 em alguns trabalhos expostos.
26. HERRERA FLORES, Joaquin. A reinvenção dos Direitos Humanos.
meses, ou multa” e “Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso
Tradução de Carlos Roberto, Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano
ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa”.
Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
30. Embora não haja previsão legal do tipo penal de “pedofilia”, as condutas
27. O tipo penal está descrito no artigo 233 da seguinte forma: “Praticar
relacionadas a esse tipo de prática estão previstas, entre outros, nos artigos
ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena
240 a 241-E do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e 217-A, 218 e 218-A
- detenção, de três meses a um ano, ou multa”.
do Código Penal. Neste caso, o suposto crime envolveria as práticas descritas
no artigo 240: Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por
28. O “Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”
qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança
está descrito no Art. 208 do Código Penal da seguinte forma: Escarnecer
ou adolescente: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”.
de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar
31. De forma semelhante, não há previsão legal do tipo penal de zoofilia.
publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês
Neste caso, argumentou-se que algumas obras faziam apologia ao
a um ano, ou multa. Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é
crime de maus-tratos de animais, previsto no artigo 32 da Lei 9.605/98
aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
(Lei de Crimes Ambientais): Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir
ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos
93
29. Os artigos 286 e 287 trazem a descrição dos tipos penais de “Incitação
ou exóticos: §1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência
ao crime” e “Apologia ao crime”, respectivamente entendidos como: “Art.
dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou
286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis
científicos, quando existirem recursos alternativo”.
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
Após o fechamento da exposição em Porto Alegre, houve uma tentativa de leva-la ao
Museu de Arte do Rio (MAR) no Rio de Janeiro, que foi vetada pelo prefeito Marcelo
Crivella ao afirmar que a mostra só viria para a cidade se fosse “para o fundo do mar”.32
Quatro dias após a polêmica em torno da Queermuseu, a obra intitulada “Pedofilia”
da artista Alessandra Cunha foi retirada do Marco (Museu de Arte Contemporânea de
Mato Grosso do Sul) pela Polícia Civil, acusado de incitar um crime que, na verdade, ele
denuncia. A obra foi apreendida e devolvida ao curador no dia seguinte, mas não voltou
a ser exposta.33
Algumas semanas depois, no final de setembro de 2017, a performance “La bête” foi
suspensa no Museu de Arte Moderna em São Paulo. O coreógrafo e performer Wagner
Schwartz realizou a performance inspirada na obra “Bicho”, de Lygia Clark, na mostra
“Brasil em Multiplicação” onde seu corpo poderia ser tocado pelo público. Após a
divulgação de um vídeo onde uma mãe e sua filha menor de idade interagem com o
artista nu, a obra passou a sofrer acusações de incentivo à pedofilia.34
No início de outubro a exposição LGBT Curto Circuito foi suspensa dois dias antes de sua
inauguração no Castelinho do Flamengo. A retirada seletiva e sem qualquer comunicação
de algumas obras do Coletivo FLSH sobre nus que expressam a diversidade entre os
corpos, fez com que alguns artistas ocupassem o espaço cultural.35 Um manifesto redigido
coletivamente exigia, entre outras demandas que Secretaria Municipal de Cultura: “2.
Divulgue imediatamente onde estão as obras da exposição Curto-Circuito” e “3. Informe
oficialmente qual foi a classificação para retirada de algumas obras;”.36
Esses eventos narrados acima são somente alguns dos acontecimentos mais recentes
que envolvem a censura de expressões LGBTQIA.37 Todos os eventos narrados acima tem
em comum a tentativa de apagamento de identidades desviantes, ou seja, não-cisgeneras
e não-heterossexuais, não conformadas com expressões hegemônicas de sexualidade.
Mais do que isto, em todos os casos utiliza-se como estratégia de silenciamento um
discurso criminalizante que mobiliza categoriais penais como “ato obsceno”, “vilipêndio
de objeto religioso”, incentivo a “pedofilia” e “zoofilia”.
32. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilus-
condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança
trada/2017/10/1923483-so-se-for-para-o-fundo-do-mar-diz-crivella-
a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita”.
sobre-queermuseu-no-rio.shtml Acesso em 10 jan. 2018.
35. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/artistas-de33. Disponível em https://www.campograndenews.com.br/lado-b/
nunciam-sumico-de-obras-sobre-violencia-e-diversidade-sexu-
artes-23-08-2011-08/artista-tentou-combater-o-machismo-e-a-pedo-
al-no-rj/ Acesso em 12 jan. 2018.
filia-mas-foi-julgada-no-cadafalso Acesso em 12 jan. 2018.
36.A íntegra do manifesto pode ser encontrada em: http://teatro34. O dispositivo penal mobilizado neste caso foi o previsto no artigo
emcena.com.br/home/artistas-ocupam-castelinho-do-flamen-
241-D: “Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por
go-em-protesto-contra-censura/ Acesso em 12 jan. 2018.
qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela prati-
94
car ato libidinoso. Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
37. Ainda em outubro, a exposição “Faça Você Mesmo sua Capela Sisti-
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: I – facilita ou induz
na” do artista Pedro Moraleida no Palácio das Artes em Belo Horizonte
o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou por-
foi invadida por um grupo que tentou impedir pessoas de visitarem a
nográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; II – pratica as
exposição. No entanto, a exposição não foi fechada ao público.
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
Em alguns casos houve uma resposta institucional por parte do Poder Judiciário, do
Legislativo e do Ministério Público, que se manifestaram sobre a existência de crimes ou
práticas que justificassem a interdição do evento. A resposta de artistas veio através de atos
de resistência pontuais, na frente de museus ou em locais públicos, (como o ocorrido na
abertura do Festival de Cinema do Rio)38 e a partir de um movimento horizontal em resposta
à onda de interdições, os protestos se passaram a adotar o lema “Censura nunca mais”.
Em 2018, os artistas censurados Elisabete Finger, Wagner Schwartz, Maikon K e Renata
Carvalho realizaram a peça “Domínio Público” com objetivo de “pensar e agir a partir
das situações de censura e dos julgamentos apressados e cheios de preconceitos que
envolveram os nossos trabalhos no ano passado”.
2. A censura como violação de Direitos Humanos
Para elaborar uma análise que leve em consideração algumas das intersecções presentes na
disputa de narrativa sobre a criminalização da arte elegemos o “diamante ético”, desenvolvido
por Herrera Flores. Para o autor “a maior violação aos direitos humanos consiste em impedir
que algum indivíduo, grupo ou cultura possa lutar por seus objetivos éticos e políticos mais
gerais; entre os quais, se destaca o acesso igualitário aos bens necessários ou exigíveis para se
viver dignamente”. Como exemplos de violação Herrera Flores cita o impedimento do acesso
de imigrantes à cidadania ou de mulheres à educação ou à saúde. De forma semelhante,
consideramos o impedimento de determinadas formas de expressão como uma violação da
dignidade humana, elemento central do “diamante ético”.
Descritos por Herrera Flores de forma ampla como “preferências individuais ou coletivas,
majoritárias ou minoritárias, a respeito de alguma coisa, bem ou situação social e que
permitem manter relação com os outros” os valores constituem o elemento central da
analise que estamos propondo.39 Isto porque é a partir da compreensão que diferentes
grupos têm sobre moralidade ou o que é ou deve ser a arte que o conflito se estabelece.
De um lado, grupos de conservadores, especialmente religiosos, veem nas manifestações
artísticas em questão uma ofensa a determinados valores e costumes. De outro, identidades
historicamente oprimidas por mesmo conjunto de valores ligados à moral cristã (hegemônica)
e à cishetenormativiade se expressam de maneira direta ou não a esses valores.
Algumas obras fazem menção direta ao conjunto de valores cristãos, com releituras
consideradas profanas de figuras sagradas como o quadro “Cruzando Jesus Cristo com
o deus Shiva”, de Fernando Baril (de 1996) exposto na Queermuseu ou o espetáculo “O
Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu”.
38. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/festival-do-rio-2017-protestos-contra-censura-se-intensificam-no-segundo-dia-de-premiere-brasil-21922916 Acesso em 15 jan. 2018.
39. HERRERA FLORES, Op. Cit., p. 120.
95
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
Em outros casos, como na performance “La bete” no MAM-SP a moral religiosa cristã é
mobilizada: é através desta matriz de valores que a nudez é lida. Para o filósofo italiano
Giorgio Agamben, a nudez é marcada em nossa cultura por uma forte tradição teológica.
Não podemos, portanto, falar de nudez sem pensar em sua mediação com a noção do
pecado. Adão e Eva, nus no paraíso, não se davam conta de sua própria nudez, pois viviam
em estado de graça. A nudez original era aquela de não haver nada escondido para o
outro: “E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam”40.
Porém, ao pecarem, a primeira coisa que percebem é que estavam nus. Sentem, pela
primeira vez, vergonha: “Então os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam
nus; em seguida entrelaçaram folhas de figueira e fizeram cintas para cobrir-se”41. O pecado
original inaugura uma nova visão da interdição dos corpos, da vergonha do corpo nu.
40. Gênesis 2:25
41. Gênesis 3:7.
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
Esta mediação com a interdição nos dá pistas valiosas acerca da criminalização da
nudez. Só existe, para a cultura cristã, o nu derivado do pecado. Qualquer possibilidade
de exposição parte desta matriz de inteligibilidade. Para Agamben, a nudez “é sempre
desnudamento e pôr a nu, ou seja, nunca forma e posse estável. Em todo caso, difícil de
ser apreendida, impossível de ser contida”.42
O artista nu (também no sentido não literal, do artista que desvela através de sua arte)
ou a obra nua não expõe somente a si. Expõe principalmente quem vê e é obrigado a
reagir com seu repertório, com sua caixa de ferramentas morais. A exposição fortuita do
espectador por vezes vem seguida de reações animalescas: tal como Adão e Eva agarram
rapidamente folhas para taparem sua intimidade, também o espectador exposto, posto
nu, responde instintivamente ao ato. A nudez da obra expõe a limitação daqueles que só
entendem os corpos mediados pelo pecado original. Não há outro nu possível para este:
o nu não obsceno, não pornográfico não existe.43
Outras obras que foram alvo de protestos e censuras expressam identidades não
conformadas com o padrão cisheternormativo e corpos não-normatizados, como o quadro
“Travesti da lambada e deusa das águas”, de Bia Leite exposto na Queermuseu ou as fotos
do coletivo FLHS censuradas pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
42. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
43. “BENTES, IVANA. O corpo não pornográfico existe. Revista Cult, 2 out. 2017. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corpo-nao-pornografico-existe/ Acesso em 20 abr. 2021”.
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
A articulação desses valores em narrativas mobilizam um conjunto de expressões LGBTQIA
historicamente reprimidas e legadas ao silêncio, à patologização ou à criminalização. A
afirmação dessas identidades sempre teve na arte um espaço luta e questionamento da
moral vigente. Em uma das faixas expostas nas grades do Castelinho do Flamengo lia-se
a seguinte frase, que também foi utilizada como abertura do manifesto dos ocupantes:
“A arte é o exercício experimental da liberdade”.
Não por coincidência, esta súbita interdição de um espaço público da maior
importância para a cultura carioca, ocorre na mesma semana em que o Prefeito
Marcelo Crivella publicou um vídeo atacando a exposição QueerMuseu e expressando,
de forma inequívoca, que coloca suas convicções religiosas acima do interesse público
da população do Rio de Janeiro.
Este movimento, que hoje ocupou o Castelinho e que pretende manifestar-se
em outros espaços da cidade, reafirma que não aceita a censura às artes que tem
ocorrido de forma sistemática no país, afetando a cultura livre e divulgando
uma série de mentiras e absurdos para criar preconceitos e disseminar o
ódio. Neste sentido, após cinco horas de ocupação pacífica, democrática e
organizada da área externa do Castelinho, saímos do local, mas expressamos a
nossa pauta de lutas, que nos manterá mobilizados de forma crescente.44
44. Trecho do manifesto dos ocupantes do Castelinho do Flamengo. Disponível em: http://teatroemcena.com.br/home/artistas-ocupam-castelinho-do-flamengo-em-protesto-contra-censura/ Acesso em 30 jan.2018
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
Para Herrera Flores as narrações são “as formas como definimos as coisas ou situações;
modos a partir dos quais as coisas ou situações nos são definidas; e, também, a forma
pela qual nos dizem como devemos participar das relações sociais”.
O fazer artístico historicamente constituiu-se como um dos principais espaços de luta
por direitos e resistência através de formas alternativas de agir, pensar os valores e
construir narrações plurais, dissonantes e críticas. A onda conservadora que tenta
silenciar essas expressões mobiliza categorias morais, patológicas (como pedofilia e
zoofilia) e criminais (como vilipêndio de objeto religioso e outras exemplificadas acima)
para “conquistar” e silenciar um dos maiores espaços de existência e resistência de
minorias.
A narrativa da imoralidade ou ilicitude é construída de forma fragmentária com ataques
individualizados e sistemáticos que retiram do contexto determinadas obras para construir
uma narrativa que esteja de acordo com o conjunto de valores que se pretende exaltar. A
estratégia de produção de uma narrativa de criminalização serve para a manutenção de
uma determinada forma de vida, que exclui qualquer expressividade desviante.
A parte final deste estudo tem como objetivo verificar como essas narrações são (re)
produzidas pelas instituições estatais com a finalidade de garantir ou cercear direitos.
As instituições são definidas por Herrera Flores no diamante ético como “normas, regras
e procedimentos que articulam hierárquica e burocraticamente a resolução de um
conflito ou satisfação de uma expectativa”.45 A institucionalidade é encarada como um
importante espaço de luta, de mediação nos quais se cristalizam os resultados sempre
provisórios das lutas sociais pela dignidade.
O espetáculo “O evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu” sofreu algumas tentativas de
censura por meio de demandas judiciais. A estratégia, aplicada em várias das cidades
pelas quais a obra passou, consistia na distribuição de uma ação judicial na maioria das
vezes de “obrigação de não fazer” com pedido liminar de antecipação de tutela.
Na cidade de Jundiaí, a decisão em caráter liminar, do juiz Luiz Antonio de Campos
Júnior, da 1ª Vara Cível da cidade no dia 15 de setembro de 2017 concedeu o pedido
ao considerar que figuras religiosas e sagradas não podem ser “expostas ao ridículo”,
fixando multa no valor diário de R$ 1.000,00 (mil reais).
Desse cenário extrai-se, portanto, que a tutela de urgência almejada comporta
deferimento, uma vez que, muito embora o Brasil seja um Estado Laico, não
45. HERRERA FLORES, Op. Cit., p. 121.
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
é menos verdadeiro o fato de se obstar que figuras religiosas e até mesmo
sagradas sejam expostas ao ridículo, além de ser uma peça de indiscutível
mau gosto e desrespeitosa ao extremo, inclusive.
De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS
CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este
HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência,
caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas.
Não se trata aqui de imposição a uma crença e nem tampouco a uma
religiosidade. Cuida-se na verdade de impedir um ato desrespeitoso e de
extremo mau gosto, que certamente maculará o sentimento do cidadão
comum, avesso à esse estado de coisa.’
Vale dizer, não se pode produzir uma peça teatral de um nível tão agressivo,
ainda que a entrada seja franqueada ao público.
(...)
Não se olvida a liberdade de expressão, em referência no caso específico, a
arte, mas o que não pode ser tolerado é o desrespeito a uma crença, a uma
religião, enfim, a uma figura venerada no mundo inteiro.
Nessa esteira, levando-se em conta que a liberdade de expressão não se
confunde com agressão e falta de respeito e, malgrado a inexistência
da censura prévia, não se pode admitir a exibição de uma peça com um
baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a invadir a existência
do senso comum, que deve sempre permear por toda a sociedade.
(a grafia em letras maiúsculas se encontra assim na decisão original)46
A decisão deixa evidente o suposto desrespeito à fé cristã pelo simples fato da interprete
de Jesus Cristo ser uma atriz travesti. De acordo com o julgador, há uma ofensa quando
o “HOMEM SAGRADO”, “figura venerada no mundo inteiro” e pelo “senso comum”, “seja
encenado como um travesti”. O que o espetáculo propõe não é somente a encenação
“como um travesti”, mas por uma travesti. A identidade real da atriz não é um mero
acaso.
Adaptado da obra da dramaturga inglesa Jo Clifford, o espetáculo tem como argumento
“e se Jesus vivesse nos tempos de hoje e fosse uma mulher transgênero?”. A obra
problematiza a opressão e a intolerância sofridas por pessoas trans* e minorias em
46. Decisão liminar proferida nos autos do processo 1016422-86.2017.8.26.0309 Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.foro=309&processo.codigo=8L0006G240000 Acesso em 03 nov. 2017
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
geral na sociedade ao recontar passagens bíblicas sob uma perspectiva contemporânea,
destacando que a mensagem cristã é de amor, perdão e aceitação.
No dia 3 de outubro foi concedido um efeito suspensivo da decisão liminar, mas a peça
não voltou a ser encenada na cidade. Em nota publicada na página virtual do espetáculo,
a diretora Natalia Mello expôs o caráter silenciador da primeira decisão judicial:
Todas as situações de violência que passamos tiveram algo em comum:
contestam a presença de uma travesti em cena interpretando Jesus. Afirmar
que a travestilidade da atriz representa em si uma afronta à fé cristã ou
concluir, antes de assistir o trabalho, que é um insulto à imagem de Jesus é,
do nosso ponto de vista, negar a diversidade da experiência humana, criando
categorias onde algumas experiências são válidas e outras não, algumas vidas
tem valor e outras não. São os discursos e práticas que tornam o Brasil um
país extremamente desigual, e um território inóspito para quem vive fora da
normatividade branca, cisgênera e heterossexual.47
Em seguida, o espetáculo seguiu para Porto Alegre, onde outro pedido para cancelamento
de exibição foi solicitado. A demanda judicial foi movida pelo advogado Pedro Geraldo
Cancian Lagomarcino Gomes contra a Prefeitura de Porto Alegre que é a responsável pela
promoção do festival, e contra a Pinacoteca Rubem Berta, onde a peça seria apresentada
nos dias 21 e 22 de setembro de 2017.
De acordo com o resumo da demanda presente na sentença, o autor afirmou que a peça é
financiada com recursos públicos, advindos do Pró-Cultura RS, Prefeitura de Porto Alegre
e Ministério da Cultura. Para o autor, ao trazer a figura de Jesus Cristo representada por
um travesti, propondo seu retorno na “condição”(sic) de transexual, a peça afronta os
costumes religiosos. Por fim, requereu, liminarmente, que fosse suspendida a exibição
da peça teatral.
Na sentença, o juiz indefere o pedido liminar sem fazer uso de qualquer dogmática
com o argumento central de que “a liberdade de expressão tem de ser garantida e não
cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento
é impedir desenvolvimento humano”:
Não se pode simplesmente censurar a peça “O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu”, sob argumento de que estamos em desacordo com seu
conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada –
47. Disponível em: https://www.facebook.com/jesusrainhadoceu/posts/1523817404330896 Acesso em 03 nov. 2017
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento
é impedir desenvolvimento humano.
O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade
preservada. A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero
escocesa, propõe – fato notório – uma reflexão sobre o preconceito que recai
sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho
corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito
algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa,
pouco importa.
Ao Juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta
desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.
Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie
Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados.
Censurados por expressar sua maneira de pensar.
Não, ao Juiz não compete censurar a fé ou sua ausência.
A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o
espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual,
homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência,
não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa
diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.
Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e
muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher,
de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida,
em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante.
Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim,
uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema,
possível arriscar que erra o autor quando afirma “ isso não é arte”
E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão
dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo
mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais”. (grifos nossos)48
48. Decisão liminar proferida nos autos do processo 9038978-35.2017.8.21.0001. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-peca-porto-alegre-evangelho.pdf Acesso em 03 nov. 2017
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
A laicidade do Estado serviu como justificativa para em dois momentos e cidades
diferentes – Belo Horizonte e Salvador respectivamente – se conceder e indeferir o
pedido de tutela de urgência para suspender da exibição da peça teatral.
Em Belo horizonte o pedido de suspensão foi feito por Leonardo Junqueira, André
Dellisola Denardi e David de Hollanda, mas foi negado pela juíza Cláudia Maria Resende
Neves Guimarães, titular da 28ª Vara Federal.
A liberdade de expressão encontra limite tão somente na manifestação do
pensamento de ódio, não podendo o Estado contribuir, com sua inércia, para
a disseminação do preconceito contra minorias estigmatizadas, criando um
ambiente de hostilidade entre os diversos grupos que compõem a sociedade.
No caso do Brasil, a Constituição obriga o estado a combater o preconceito
e a discriminação, inclusive por meio da criminalização do discurso de ódio.
(...)
Não vislumbro, na hipótese, qualquer indício de que a peça teatral contenha
manifestação de pensamento contrária ao ordenamento jurídico brasileiro
ou ofensa à dignidade da pessoa humana, cingindo-se a insurreição dos
autores tão somente a juízos de valor de patente subjetivismo, à semelhança
de uma crítica de arte, exercício que, embora nobre, nem ao menos tangencia
a função do Poder Judiciário.
Não cabe ao Estado limitar o exercício da liberdade de expressão, direito
constitucionalmente assegurado, sem que haja comprovação de prática de
ilícito penal ou civil por meio de discursos de ódio, sob pena de se instalar,
novamente, o obscuro período de censura estatal sob a roupagem de
judicialização da arte.
Ademais, quanto à “ofensa à fé cristã”, a laicidade do Estado é elemento
estruturante da própria ideia de república democrática e plural, previsto
no art. 19, I, da CF/88, o Poder Público é obrigado a adotar uma posição de
neutralidade em relação aos inúmeros credos e religiões professados em seu
território, isto é, de equidistância em relação a todos e adesão a nenhum.
Nesse ponto, ressalto que o Estado brasileiro, como consequência natural de
seu processo de democratização, preza pela realização do pluralismo religioso,
cabendo ao juiz rechaçar qualquer pretensão que possa implicar hegemonia de
103
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
uma única religião ou atentado à multiplicidade de manifestações religiosas
e pensamentos.
Um Estado plural e tolerante só conseguirá sê-lo se seus cidadãos zelarem por
uma separação entre a esfera pública (entenda-se aqui o âmbito intersubjetivo
submetido à normatividade estatal) e a esfera privada, deixando de levar à
primeira matérias cujo âmbito se restringe à segunda. A lógica do pluralismo
é justamente a não intervenção naquilo que é restrito à esfera individual.
(grifos nossos)49
Neste caso, argumenta-se que a laicidade obriga o Estado a se manter neutro e equidistante
diante de demandas religiosas. A concessão da ordem, de acordo com o entendimento da
magistrada implicaria no fortalecimento da hegemonia de uma única religião.
Em Salvador, a peça, que integrava a programação do FIAC (Festival Internacional de
Artes Cênicas da Bahia), um dos festivais de teatro mais tradicionais do país, teve sua
apresentação suspensa. A decisão liminar da 12ª Vara Cívil de Salvador foi concedida e
impediu que a peça fosse apresentada no Espaço Cultural da Barroquinha com multa
diária de R$1.000.000,00 (um milhão de reais).
O magistrado fundamenta igualmente a concessão da ordem na laicidade do Estado,
que tem o dever de “proteger amplamente a liberdade religiosa” e na impossibilidade
de se eliminar expressões religiosas que compõem as raízes da cultura brasileira. Na
contramão da decisão de Belo Horizonte, a laicidade entendida como o respeito por
parte do Estado de toda expressão religiosa obrigaria uma ação estatal no sentido de não
impedir uma vivência religiosa ou uma ação hostil ao fenômeno religioso.
Ao fazermos um juízo de valor cauteloso, prudente e provisório em relação
aos documentos de fls.23/24, na qual especificou os dias da apresentação
da peça, chega-se a ilação de que, provavelmente, as partes suplicantes se
encontram em situação de prejuízo nos seus interesses jurídicos. O princípio
da laicidade comporta o respeito de toda confissão religiosa por parte do
Estado. Laicidade, corretamente entendida, significa que o Estado deve
proteger amplamente a liberdade religiosa tanto em sua dimensão pessoal
como social, e não impor, por meio de leis e decretos, nenhuma verdade
especificamente religiosa ou filosófica, mas elaborar as leis com base nas
verdades morais naturais. O fundamento do direito à liberdade religiosa se
encontra na própria dignidade da pessoa humana. Um Estado não deve tenta
49. Decisão liminar proferida nos autos do processo 1007943-39.2017.4.01.3800. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/pje/ConsultaPublica/
DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=8a3dfec31d173b0b41868ae54b2d6df49e4f81d5d2d2c937 Acesso em 1 fev. 2018.
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LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
impedir a vivência religiosa do povo, especialmente o Cristianismo, com uma
ação hostil ao fenômeno religioso e a tentativa de encerrá-lo unicamente na
esfera privada.
Ao que parece a parte acionada desrespeitou o princípio constitucional no
art. 5.º, inciso VI, da Constituição Federal a qual dispõe que “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religioso se garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e as suas liturgias”. Compreendo que não se pode tentar, assim, eliminar
os símbolos/crenças religiosos mais tradicionais do povo, com narrativas
debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes. (grifos nossos)50
Apesar do deferimento do pedido de suspensão o espetáculo foi realizado em
outra localidade na cidade de Salvador, no Instituto Cultural Brasil Alemanha
(ICBA). A brecha encontrada na proibição para a realização do espetáculo se
baseou na justificativa de que a decisão vinculou somente a Fundação Gregório
de Mattos, pólo passivo na ação. Sendo assim, a decisão vetou apenas aquele
espaço específico não vinculando o Festival (FIAC) e a produção do espetáculo.
Nas quatro decisões judiciais supracitadas as instituições judiciárias mobilizaram
narrativas com valores antagônicos para duas vezes conceder e indeferir as demandas
pela suspensão da apresentação. Nas decisões, os/as magistrados/as mobilizaram
argumentos normativos e principiológicos para justificar o dever de agir ou não agir do
Estado. Em um dos casos, a decisão por não utilizar a dogmática é expressa “sem citar
um único artigo de lei vamos garantir a liberdade de expressão”.
Em todos os casos a violação da “dignidade da pessoa humana” foi iluminada para garantir
o direito a liberdade de expressão ou o direito a liberdade de culto – neste último caso sob o
argumento de que a ofensa à fé violaria dignidade humana dos devotos das religiões cristãs.
O Direito com sua inerente imperatividade surge como uma poderosa estratégia de alguns grupos
para, amparados na construção de determinadas narrativas, impedir que expressões “outras”
possam existir publicamente, em espaços de arte. Como vimos, essas narrações encontram
ecos institucionais de forma contingente em alguns magistrados. A arte enquanto exercício
experimental da liberdade passa a ser controlada e patrulhada por grupos conservadores que
encontram respaldo nas instituições – no caso o Poder Judiciário – para interpretá-la à luz de
um dever ser moral e legal. O resultado da estratégia censora é reservado ao acaso.
50. Decisão liminar proferida nos autos do processo 0566408-05.2017.8.05.0001. Disponível em: http://www.correio24horas.com.br/fileadmin/user_upload/correio24horas/2017/10/27/doc_23148754.pdf Acesso em 2 fev. 2018
105
LÍVIA DE MEIRA LIMA PAIVA
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“BENTES, IVANA. O corpo não pornográfico existe.
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revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corponao-pornografico-existe/ Acesso em 20 abr. 2021”.
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El pensamiento crítico en
derechos humanos y la necesaria
articulación de luchas sociales
Manuel E. Gándara Carballido
Resumen
El trabajo aborda el necesario aporte que el pensamiento crítico en derechos humanos
debe brindar a una práctica de diálogo de saberes y de articulación de luchas sociales,
identificando para ello la urgencia por superar la fragmentación del conocimiento sobre
la realidad en que ha incurrido la modernidad occidental, condenando así tanto a los
intelectuales como a colectivos de activistas que luchan por la transformación social, al
empobrecimiento de sus prácticas y al desperdicio de sus experiencias y aportes, con un
significativo costo para las luchas emancipatorias.
Palabras clave: pensamiento crítico, derechos humanos, heterarquía, luchas sociales.
Introducción
Necesitamos nuevos horizontes teóricos que acompañen las luchas que se vienen
llevando adelante en nombre de los derechos humanos. De esta necesidad da cuenta
el progresivo distanciamiento con el discurso hegemónico (liberal) de los derechos por
parte de muchos de los actores que protagonizan estas luchas. De resolver o no este
conflicto depende no sólo la coherencia teórica de muchos activistas y el potenciamiento
de sus prácticas, sino también la misma recuperación del potencial político del discurso
de los derechos humanos, y por tanto su pertinencia histórica (Santos: 1997).
No deja de crecer entre diversos actores sociales el malestar ante la ambigüedad en
el uso del discurso de los derechos humanos, toda vez que este discurso es utilizado
tanto por quienes intervienen a favor de los intereses del sistema de relaciones sociales
organizado en función de la lógica de acumulación capitalista, como por los grupos que
llevan adelante diversas luchas en contra de ésta lógica y de sus efectos sobre vastos
sectores de la población. Así, si por una parte se reconoce a los derechos humanos el valor
que tienen en diversos procesos de liberación, al mismo tiempo es necesario afirmar que
éstos sirven también discurso a favor de los intereses del capitalismo globalizado.
107
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
Sin desconocer la legitimidad que el discurso que los derechos humanos ha alcanzado,
y su capacidad de convocatoria y movilización social a favor de las luchas por una vida
digna, la ambigüedad antes mencionada, que puede ser denunciada como el secuestro
de la narrativa de los derechos en función de los intereses de las clases sociales que
detentan el poder y de la ideología y la cultura dominantes, hace necesario un proceso de
reapropiación de la narrativa de los derechos que permita recuperar todo su potencial
emancipador.
La lucha por los derechos incluye la lucha por la forma de enunciarlos
En el análisis que nos proponemos es necesario prestar atención a los derechos
humanos como artefacto discursivo, atendiendo a los modos en que dicho discurso
es usado con diferentes propósitos, bien para potenciar la indignación y las luchas,
bien para legitimar el orden asimétrico imperante. Más allá de su uso formal como
instrumento jurídico destinado a garantizar las conquistas, los derechos se constituyen
también en un referente simbólico que brinda orientación y da marco a múltiples
luchas a nivel mundial (Cfr. Santos: 2012, p. 193), sirviendo, por tanto, de herramienta
discursiva legitimadora. Sin embargo, este uso que podemos denominar de estratégico,
requiere de discernimiento. En general, podemos afirmar que “los derechos humanos
son pasivamente asumidos como significante compartido y culturalmente aceptado,
contribuyendo así a un imaginario social difuso de la categoría de derechos humanos
entendida como homogénea” (Santos: 2012, p. 203). Así, aun cuando los movimientos
sociales hacen uso del discurso de los derechos humanos evidenciando su potencial
político emancipador, ello no niega la necesidad de someter a discernimiento crítico
dicho concepto. Al respecto, Helio Gallardo describe la manifestación de este fenómeno
en el contexto latinoamericano en los siguientes términos:
Las instituciones jurídicas latinoamericanas y las lógicas que las animan, así
como la enseñanza académica del Derecho y la práctica, con el inevitable
sentido común que las acompaña, de las ONGs interesadas en derechos
humanos, están fuertemente permeadas por ideologías de Derecho natural,
ya sea el de inspiración clerical, o clásico, por provenir del Mundo Antiguo,
ya sea del iusnaturalismo o derecho natural moderno. Para estos imaginarios
ideológicos, conceptos/valores como el de justicia poseen un carácter
metafísico, es decir, flotan por encima de las tramas sociales y las deshistorizan
como función de la reproducción de las dominaciones vigentes y necesarias
y de sus instituciones e identificaciones grupales e individuales inerciales,
estas últimas como dispositivos internalizados o subjetivos imprescindibles
para esa reproducción. (Gallardo: 2008, p. 429)
108
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
Se hace necesario, por tanto, analizar los usos ideológicos de la narrativa de los derechos,
realizando así una crítica del discurso hegemónico liberal que conforma a nuestras
sociedades. Una concepción de derechos construida a partir del ocultamiento de los
procesos de lucha, que niegue la dimensión socio-histórica en su forma de comprenderlos,
invisibiliza a los actores sociales y sus causas, construyendo una compresión de los
derechos despolitizada. Igualmente, una concepción de derechos descontextualizada
impide comprender las interrelaciones entre las dimensiones social, política, económica,
cultural, etc.
Debe entenderse que, dado que a nuestra práctica siempre le subyace una formulación
teórica, y que la política es la administración de las expectativas del futuro, la acción
política busca controlar el lenguaje sobre el cual se construyen dichas expectativas.
Las palabras construyen mundo, construyen subjetividades y definen programas de
comprensión e intervención en la realidad. Implican, por tanto, una construcción
política. Sin este discernimiento crítico no hay posibilidad de autonomía ni de futuros
alternativos. De cara a los retos que se nos presentan, es necesario despensar y repensar
las cosas, las palabras, los conceptos que utilizamos para apropiarnos de esa realidad
que queremos transformar. No nos sirven los discursos construidos desde los centros de
poder, pues quien controla los nombres y las categorías, quien controla el discurso, está
en capacidad de construir e imponer su comprensión de la realidad.
Al mismo tiempo, para un correcto análisis del contexto, es necesario comprender la
cultura como constitutiva de la sociedad. Dado que la cultura configura la dimensión
simbólica de la práctica social, funcionando en un circuito estructural que relaciona
lo político, lo económico y lo simbólico, será importante atender a su potencial
emancipador. Los distintos enfoques en el análisis del contexto, aun cuando no versen
explícitamente sobre su componente cultural, dejan claro que sin una transformación a
este nivel se hace inviable un cambio en las relaciones de poder y una superación de la
postura hegemónica. Este aspecto resulta significativo dada la capacidad de influencia
que tienen en la dimensión cultural los actores alternativos al modelo dominante.
De esta manera, una teoría crítica de los derechos humanos debe atender a los contextos,
a los discursos, a las representaciones desde las cuales la realidad es comprendida,
analizada e intervenida; ha de preguntarse por las formas de hacer viable este cambio
cultural; procurará construir herramientas teórico-prácticas capaces de desmontar
las narrativas desde las cuales la globalización neoliberal coloniza las concepciones de
ser humano, de mundo, de sociedad y de Estado, desde las cuales esta nueva cara del
capitalismo define un horizonte de (sin)sentido. Al mismo tiempo, la teoría crítica en
derechos humanos ha de asumir una tarea propositiva capaz de visibilizar, provocar,
convocar y articular otros modos de ser, de significar y de transformar la realidad,
poniendo a dialogar las múltiples formas socio-culturales desde las cuales se intenta
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MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
hacer posible un mundo más justo y digno para todos y todas. La transformación de
la hegemonía cultural exige intervenir en el sistema de creencias, en el lenguaje, en el
conocimiento.
Se parte de unas condiciones concretas que conforman la realidad social que nos
demanda una respuesta, y sobre la que la acción tiene un potencial transformador.
Frente a ello, el desafío cultural, tal y como propone Herrera Flores, es el desarrollo de
subjetividades rebeldes capaces de confrontar el sentido común imperante “irrumpiendo
intempestivamente en lo real (Herrera: 2005. pp. 17-45).” Para esta tarea, “lo más urgente
es contar con una nueva capacidad de espanto y de indignación que sustente una nueva
teoría y una nueva práctica de inconformismo desestabilizadora, es decir, rebelde
(Santos: 2003, p. 57).” Todo ello apunta a la configuración de un nuevo imaginario social
inconformista y creativo, crítico y lúcido (Cfr. Herrera: 2007). Pero este proceso deberá
necesariamente superar la reductiva concepción propia de la racionalidad abstracta
moderna, incorporando los afectos, las sensaciones, las pasiones y la búsqueda de
sentido:
Se trata de nuevas constelaciones donde se combinan ideas, emociones,
sentimientos de espanto y de indignación, pasiones de sentidos inagotables.
Son monogramas del espíritu puestos a la disposición de nuevas prácticas
rebeldes e inconformistas. (Santos: 2003, p. 66)
La práctica social a favor de los derechos humanos exige no sólo una formulación teórica
atractiva, una idea convocante y movilizadora, requiere también tener sustento en los
afectos y emociones de la gente, sostenerse en la capacidad para apasionar y vincular
desde los quereres, convocando a la totalidad de la persona. El reto consiste en ser
capaces de ofrecer propuestas lúcidas, lúdicas y sabias.
A partir de la necesidad de reconocer el discurso como ámbito de disputa en la construcción
de la realidad social, desarrollaremos en seguida algunas críticas a elementos que
subyacen a la teoría liberal de los derechos humanos y que requieren particular atención
por parte de los actores implicados en procesos de liberación.
Superar la fragmentación de lo social para seguir pensando críticamente
A continuación nos proponemos dar cuenta de un aspecto que consideramos central
para la praxis de los derechos humanos; nos referimos a la necesidad de estructurar
una forma de pensar la realidad y, por tanto, de asumir las luchas por transformarla,
que haga posible superar la fragmentación a que ha conducido la perspectiva cognitiva
hegemónica en la modernidad occidental. Tal y como señala el sociólogo Edgardo Lander,
110
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
miembro del grupo de investigación modernidad/colonialidad, tal fragmentación de las
estructuras cognitivas, que él asigna concretamente al pensamiento liberal, subyace a
las separaciones que operan en nuestra forma de entender los ámbitos de la realidad y en
los mismos saberes disciplinarios con que nos acercamos a ella (Cfr. Lander: 2006, p. 59).
El pensamiento crítico tiene por delante el desafío de ser capaz de develar, discernir,
visibilizar y desestabilizar el sistema de dominación múltiple (hablamos de relaciones de
dominación en diversos ámbitos de la vida, pero que existen de manera interconectada:
de clase, de etnia, de género, etaria, de dominio sobre lo libidinal y de la naturaleza) que
define a nuestras sociedades y que, como parte de su configuración de poder, logran
presentarse como racionales, naturales, necesarias e inmodificables (Cfr. Solórzano:
2010, p. 8).
El pensamiento crítico debe enfrentar el desafío que implica superar la fragmentación de
las formas de saber y la artificiosa separación de los ámbitos de la realidad; ello le ayudará
a comprender las interrelaciones entre las distintas formas de opresión, exclusión,
subordinación y explotación que operan en nuestras sociedades, favoreciendo de esa
manera el trabajo de articulación y traducción de las distintas luchas contrahegemónicas
que se vienen adelantando en el mundo. En este sentido, como es sabido, apunta el
concepto de interseccionalidad formulado desde el feminismo anglosajón para evidenciar
las diversas formas de discriminación a que son sometidas las mujeres a partir de los
múltiples ejes de identidad y opresión, impactando sobre la posibilidad de su acceso a
derechos y oportunidades (Cfr. AWID: 2004, pp. 1-8).
Según muestra Lander, el pensamiento hegemónico occidental representa lo
sociohistórico a partir de una visión “compartimentada” del mundo; se conciben así las
dimensiones política, social y económica como si éstas fuesen dimensiones autónomas,
asignándole además a cada una de ellas una disciplina del saber encargada de su estudio:
la economía se encarga del mundo de la producción de mercado, la ciencia política de
lo político y el estado, y la sociología de lo social (Cfr. Lander: 2004, p. 171). A partir de
esta separación de ámbitos es posible el mecanismo que supone la autonomía teórica
e ideológica de las decisiones políticas con respecto de la economía (Saul: 2000, p. 109).
La fragmentación de los ámbitos de vida actúa y se refuerza desde la segmentación
disciplinar que opera en el campo de los saberes, y hace necesario transitar hacia enfoques
realmente interdisciplinarios y transdisciplinarios que hagan frente a los moldes que rigen
la organización dominante del conocimiento; sólo así será posible avanzar hacia un saber
social que rompiendo con los actuales parámetros ideológicos, teóricos y metodológicos,
se aventure por nuevos caminos. (Zemelman: SD, p. 7). Por eso resulta particularmente
significativa la denuncia que Atilio Borón dirige a la manera en que esta estrategia de
control del conocimiento social se encuentra instalada en el mundo académico:
111
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
La academia rechaza, por lo tanto, al intelectual, es decir, a quien traspasa con
su pensamiento universal las absurdas y caprichosas fronteras disciplinarias
que separan la sociología, la ciencia política, la antropología, la economía y
la historia, como si en la vida real de los pueblos y las naciones la sociedad,
la política, la cultura, la economía y la historia fuesen “cosas” separadas o
compartimientos estancos que pudieran ser inteligibles en su espléndido
aislamiento. Desoyen, de este modo, el consejo de Gramsci cuando advertía
sobre los riesgos de hipostasiar lo que no son, ni pueden ser, otra cosa que
distinciones meramente metodológicas. ¿Qué más artificial y artificioso
que la separación en “departamentos” disciplinarios que terminan por deseducar a nuestros estudiantes, convirtiéndolos en nuevos bárbaros del
conocimiento? A pesar de las apariencias, existen grandes diferencias entre
un académico y un intelectual. Este rechaza por completo la validez de las
fronteras disciplinarias, inclusive de la “multidisciplinariedad” porque cree,
por el contrario, en la “unidisciplinariedad”, es decir, en un saber integral y
unificado que es lo único que permite reproducir, en el plano del pensamiento,
la totalidad compleja y siempre cambiante de la vida social. (Borón: 2009, p. 130)
Esa nueva perspectiva epistemológica que reclama Borón se hace urgente ante la
constatación de que la fragmentación disciplinaria funciona como mecanismo de
“naturalización de la realidad” (Lander: 2006, p. 59), imposibilitando aquellas “otras”
realidades que por su carácter fronterizo desbordan a la racionalidad disciplinar (Cfr.
Fornet-Betancourt: 2001, p. 57).
Según hacen ver Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel, al analizar los aportes
de determinadas corrientes críticas de innegable significación, los propios teóricos
poscoloniales anglosajones, así como los estudiosos del sistema-mundo, incurren en este
centramiento en alguna dimensión de la realidad en desmedro de otras, inclinándose
a favor de lo cultural, los primeros (aun reconociendo como hacen la importancia de
prestar atención a las estructuras económicas), y a favor de la dimensión económica,
en el segundo caso (aunque asuman los discursos racistas y sexistas como propios del
discurso capitalista) (Castro-Gómez y Grosfoguel: 2007, p. 15). Esa misma crítica es
realizada por Payne en los siguientes términos:
Dado que esos diversos movimientos longitudinales dentro de los estudios
culturales proceden a demostrar un sexismo, colonialismo, etnocentrismo o
racismo predominante dentro de las diversas disciplinas de las humanidades y
las ciencias sociales, cada uno a su vez presenta su proyecto crítico como el medio
más efectivo o legítimamente universal de exponer un etnocentrismo métodológico que opera en la producción del conocimiento. (Payne: 2002, p. XXIV)
112
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
De igual manera, desde el pensamiento feminista se acusa a la teología de la liberación,
y al propio pensamiento decolonial, de no prestar la atención necesaria a la perspectiva de
género en sus análisis sobre las formas de opresión social (Cfr. Mendoza: 2010, pp. 24 y 30).
En este contexto, y frente al desconocimiento de las diferencias raciales, sexuales,
étnicas, etc., que caracteriza al capitalismo global, Santos llama la atención sobre la
importancia de atender a la relación de reforzamiento mutuo entre la materialidad
de las relaciones sociales y políticas, y los discursos, ideologías y prácticas simbólicas,
siendo necesario asumir análisis complejos que integren las diversas dimensiones de
la realidad, y desarrollar criterios analíticos que permitan comprender y empoderar
las luchas económicas, sociales, políticas o culturales, sin establecer prioridades entre
ellas (Santos: 2008, pp. 59-60). Además, a propósito de la referida invisibilización de
las diferencias y desigualdades, propia de la comprensión hegemónica de nuestras
sociedades, este mismo autor advierte del papel que en tal ocultamiento juega el Estado
moderno:
La supuesta inconmensurabilidad entre diferentes formas de desigualdad y
de dominación está en la base del Estado monocultural moderno, pues torna
creíble la igualdad jurídico-formal de los ciudadanos: como las diferencias son
múltiples (potencialmente infinitas) entre los ciudadanos y no se acumulan,
es posible la indiferencia con relación a ellas. (Santos: 2010, pp. 86-87)
Ante este panorama, el giro decolonial propuesto por el grupo modernidad/colonialidad
plantea la necesidad de que el proceso de segunda descolonización (luego de la muy
limitada primera experiencia que fue restringida a lo jurídico-político), se dirija a
“la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas,
económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas” (Castro-Gómez
y Grosfoguel: 2007, pp. 16-17). Precisamente por ello, en lugar de hablar de “sistemamundo capitalista”, como hiciera Wallerstein (1991), prefieren hablar de “sistema-mundo
europeo / euro-norteamericano capitalista / patriarcal moderno / colonial” (Grosfoguel:
2005).
Este llamado de atención sobre la necesidad de una comprensión “heterárquica” de las
estructuras de poder-dominación nos parece sumamente valioso para el desarrollo
de un pensamiento crítico en derechos humanos. Más allá de la clásica jerarquización
de los ámbitos de la realidad entre estructura y superestructura, se propone entender
que la articulación entre los regímenes de poder conforma lo que el sociólogo Kyriakos
Kontopoulos denomina una “heterarquía” (1993); de esta forma, se conciben las
estructuras sociales desde un pensamiento heterárquico que posibilite una comprensión
de la realidad en la que no prime una sola jerarquía de poder. En los términos de CastroGómez y Grosfoguel:
113
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
Necesitamos un lenguaje capaz de pensar los sistemas de poder como una
serie de dispositivos heterónomos vinculados en red. Las heterarquías son
estructuras complejas en las que no existe un nivel básico que gobierna sobre
los demás, sino que todos los niveles ejercen algún grado de influencia mutua
en diferentes aspectos particulares y atendiendo a coyunturas históricas
específicas. En una heterarquía, la integración de los elementos disfuncionales
al sistema jamás es completa, como en la jerarquía, sino parcial, lo cual
significa que en el capitalismo global no hay lógicas autónomas ni tampoco
una sola lógica determinante ‘en última instancia’ que gobierna sobre todas
las demás, sino que más bien existen procesos complejos, heterogéneos y
múltiples, con diferentes temporalidades, dentro de un solo sistema-mundo
de larga duración. En el momento en que los múltiples dispositivos de poder
son considerados como sistemas complejos vinculados en red, la idea de una
lógica ‘en última instancia’ y del dominio autónomo de unos dispositivos
sobre otros desaparece. (2007, p. 10)
Se pretende así dotarnos de herramientas de análisis que permitan una comprensión de la
realidad sociohistórica capaz de articular las diversas relaciones de poder: las relaciones
coloniales y postcoloniales, la explotación de clase propia del sistema capitalista, el
sexismo y el racismo, entre otras (Cfr. Santos: 2009a, pp. 287-288). Esa complejización
del análisis, repetimos, es una de los aportes fundamentales que se hace desde el
giro decolonial, al poner en evidencia cómo “el proceso de incorporación periférica a
la incesante acumulación de capital se articuló de manera compleja con prácticas y
discursos homofóbicos, eurocéntricos, sexistas y racistas” (Castro-Gómez y Grosfoguel:
2007, pp. 18-19). Repetimos que éste es un aporte que consideramos fundamental para el
desarrollo del pensamiento crítico en general y para un pensamiento crítico en derechos
humanos en particular.
El énfasis que hacemos en esta propuesta tiene como base el entendido de que hoy en día
nos encontramos en el momento propicio para la producción de otros discursos, fruto
de las luchas que han llevado adelante los distintos sectores sociales históricamente
oprimidos, y ahora emergentes, quienes gracias a su historia de resistencia y al saber
que subyace a su experiencia de organización y movilización, pueden hoy dar forma a
tales discursos.
Un pensamiento y una forma de pensar que permita articular las luchas
Necesitamos construcciones teóricas que nos permitan comprender el conjunto de
desafíos que se nos presentan en los procesos emancipadores; construcciones que sin
pretender una teoría total o universal, nos permitan superar la fragmentación de los
114
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
ámbitos de la realidad social y de las luchas que buscan su transformación. Es necesaria
una reconstrucción teórica que contribuya a la constitución de una base de convergencia
de las luchas, las iniciativas, de los movimientos sociales. En palabra del sociólogo
Edgardo Lander:
Es esto lo que define hoy los mayores retos políticos de las resistencias
anticapitalistas, y la reivindicación de las emancipaciones humanas: las
articulaciones múltiples entre esta diversidad de comunidades, sujetos,
organizaciones y movimientos que hoy se incluyen bajo la denominación
de movimiento en contra de la globalización neoliberal. El reconocimiento
de esta diversidad humana exige igualmente el reconocimiento de la rica
multiplicidad de formas y regímenes del saber humano y la imposibilidad de
postular la primacía o privilegio epistemológico de cualquiera de estos, sea a
nombre de la ciencia o a nombre de la vanguardia (2012, pp. 41-42).
Como consecuencia concreta de no intentar invisibilizar o subordinar ninguna dimensión
de la realidad dando prioridad a algún factor específico de ella, el pensamiento crítico
estará en mejores condiciones para brindar su aporte a la necesaria articulación
y traducción entre las distintas luchas emancipatorias. Pero, para ello, es necesario,
como decíamos, dejar atrás la pretensión de encontrar un principio particular de
transformación social y un determinado colectivo como el agente o sujeto de liberación
total (Cfr. Santos: 1999, p. 201). Tal principio único no existe y la pretensión de ofrecer
una explicación total que estructure y organice el conjunto de las resistencias no sólo
resulta errónea sino sumamente peligrosa para las propias luchas sociales, por impedir
a los distintos actores reconocerse en sus propias prácticas y, desde ahí, poner en común
sus formas de resistencia y las aspiraciones desde las que dotan de sentido su realidad
(Cfr. Santos: 1999, p. 203). Tal y como plantea Santos:
Ninguna teoría unificada puede, eventualmente, traducir el inmenso
mosaico de movimientos, luchas e iniciativas de una manera coherente. Bajo
el paradigma revolucionario moderno, la creencia en una teoría unificada
estaba tan afianzada que los diferentes movimientos revolucionarios tuvieron
que adherirse a las descripciones más simples de su realidad empírica, a fin
de que encajaran con las exigencias teóricas…
En lugar de una teoría que unifique la inmensa variedad de luchas y
movimientos, lo que necesitamos es una teoría de traducción, es decir, una
teoría que en lugar de dirigirse a crear otra realidad (teórica) por encima
y además de los movimientos, intente conseguir crear un entendimiento
mutuo, una mutua inteligibilidad entre éstos para que se beneficien de las
experiencias de los otros y para que se interconecten entre ellos (2009b, p. 571).
115
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
Se pretende, pues, un quehacer teórico que facilite la traducción de las luchas, que haga
puente entre los saberes que desde esas luchas se construyen, que posibilite aprendizajes
compartidos. Este quehacer se nos presenta como desafío a un pensamiento crítico que
hasta ahora no ha sabido ofrecer ese servicio a la emancipación social, posibilitando que
las tensiones y contradicciones entre los diversos colectivos que luchan sean trabajadas
favoreciendo la articulación entre los movimientos de distinta índole, promoviendo
alianzas en las que ningún actor se sienta excluido o subordinado a las lógicas, necesidades
e intereses de otros actores o de identidades diversas (Cfr. Santos, 2011).
Más allá de las dudas en torno a la posibilidad de formular un modelo explicativo de la
realidad y su construcción histórica, el pensamiento crítico se enfrenta a desafíos muy
significativos en torno a la manera de estructurar y articular las luchas. Es necesario
un modo de pensar que permita confrontar las formas de control biopolítico impuestas
desde el capital globalizado, y construir alternativas que, reconociendo las múltiples
formas de hacer posible la vida digna, generen un proyecto amplio e inclusivo de
mundo en el que quepan muchos mundos. El método de trabajo debe permitir pensar
las prácticas sociales creando lugares de encuentro y debate donde cada uno de los
actores implicados pueda hacer ver su mundo y horizontes de sentido y hacer valer
sus necesidades e intereses. Si bien es cierto que la capacidad de articulación entre las
alternativas a la globalización neoliberal se han incrementado, un análisis materialista
de los derechos humanos no puede desconocer la brutal asimetría de fuerza y capacidad
de control simbólico existente entre las propuestas subalternas y el poder hegemónico.
Todo lo planteado sobre la necesidad de superar una concepción fragmentada de los
ámbitos de la realidad y la segmentación disciplinaria del saber, tiene claros correlatos
en la forma de concebir la lucha por los derechos humanos, toda vez que éstos son, de
hecho, una realidad pluridimensional (Cfr. Fariñas Dulce: 1997, p. 57), por lo que requieren
de análisis complejos, de definiciones transdisciplinarias y de luchas articuladas que
respondan a los diversos mecanismos en que las dinámicas de subordinación se posibilitan
y retroalimentan. Tal y como plantea la profesora Fariñas Dulce, es necesario acercarse
a dichas luchas por los derechos considerándolos no como mero objeto cognitivo, sino
como campo cognitivo; aproximación que los hace susceptibles de distintas perspectivas
de análisis y diferentes métodos de comprensión.
Pensar los derechos humanos desde este nuevo marco contribuirá a enfrentar las trampas
teóricas e ideológicas que subyacen a la concepción hegemónica que sobre estos derechos
ofrece el pensamiento liberal, apoyando de esta manera las luchas por transformar las
relaciones de poder que constituyen nuestro momento sociohistórico; esto es, relaciones
de explotación, racismo, patriarcado, fetichismo mercantil, colonialidad, exclusión,
subordinación, marginación, etc. (Cfr. Santos: 2011).
116
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
La consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz heterárquica de
poder encuentra desarrollos posibles con una concepción de derechos humanos que no
limite las luchas a un ámbito específico de lo social, sino que formule una noción capaz
de acoger la diversidad de procesos. Al fin y al cabo, como bien dice Herrera Flores:
Bajo la convención terminológica derechos humanos lo que subyacen
son los diferentes y plurales procesos históricos de lucha por la dignidad
humana. Siendo el contenido de ésta, toda forma de acción antagonista
contra la división social del trabajo y de los roles cotidianos que coloca a
unos en posiciones privilegiadas en relación con los bienes necesarios para
la vida y a otros en marcos de desigualdad, de subordinación y de falta de
medios para llevar al debate público sus pretensiones de vida digna. Es decir,
paralelamente a nuestra denuncia de los procesos de división social del
trabajo y del acceso a los bienes, hay que reflexionar sobre cómo ir actuando
política, social y teóricamente para hacer visibles esas otras dominaciones (la
creación de espacios de visibilidad) que no son más que otras formas –junto
a la dominación de clase y la constatación de que unas y otras se entrelazan
sistemáticamente- de secuestrar la capacidad humana de hacer y de actuar
con el objetivo de transformar el mundo (la creación de espacios de lucha)
(2005, p. 151).
El discurso liberal sobre los derechos humanos desmoviliza a los actores sociales
simplificando los fenómenos, fragmentando y aislando las luchas, a la vez que
homogeneiza los modos de entender a la humanidad; así mismo, invisibiliza a los sujetos
sociales arrebatándoles el protagonismo en la construcción histórica de los derechos, en
un claro intento por contrarrestar la construcción de poder que esas luchas les permite
construir.
Para ir concluyendo…
Son amplias y lamentables las consecuencias de una aproximación ingenua por parte de
los actores sociales con respecto a los instrumentos con los que comprenden la realidad
y a partir de los cuales definen los modos de intervención en ella. Consideramos que
los costos de tal ingenuidad pueden ser demasiado altos en términos prácticos y de
contradicción ideológica.
Las teorías no son meros conjuntos de relaciones entre conceptos; ellas funcionan como
marco de comprensión, condicionando nuestra aproximación a la realidad, nuestra
valoración de ella y la manera en que entendemos si podemos o no transformarla. Por
ello, cuando se plantea la necesidad de una opción teórica específica, se hace apuntando
más allá de esa misma teoría, atendiendo a sus consecuencias prácticas en los distintos
117
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
ámbitos de acción. La crítica de la teoría liberal de los derechos humanos, y de la concepción
liberal del derecho en general, puede servir a los actores sociales comprometidos con
la transformación social para repensar el horizonte de su práctica, de manera que la
misma no quede atrapada en los límites que establece esta concepción de lo jurídico. Si
bien es necesario mantener la lucha en el plano del derecho, es igualmente necesario
ir creando otras formas de garantía de tipo político, social, económico y cultural, que
sirvan para anclar los logros que se van alcanzando en el marco de la lucha social.
Las claves ofrecidas por el pensamiento crítico pueden resultar de particular significación
en los procesos de lucha por una vida digna, en la medida en que buscan ofrecer a los
colectivos que emprenden tales luchas herramientas que contribuyan al discernimiento
crítico de las teorías subyacentes a sus prácticas, y de los efectos que tales teorías
acarrean. Consideramos que éste puede ser un aporte a ser considerado por los sujetos
implicados en procesos de transformación social, quienes frecuentemente dan cuenta en
su discurso de diversas concepciones de derechos humanos, que en ocasiones llegan a ser
contradictorias. Esta diversidad de concepciones, más que a una opción teórica explícita
por parte de los colectivos y movimientos sociales, responde con frecuencia a la inercia
propia de cierto activismo, en la que los diferentes discursos se van sobreponiendo sin
que exista el conveniente debate en torno al marco teórico que los alimenta.
Para quienes están implicados en las diversas luchas por la emancipación social, resulta
de particular importancia determinar hasta qué punto su práctica se ha visto frenada
por un análisis de la realidad y por un marco teórico que no se corresponden con sus
objetivos de transformación social, ni sus opciones éticas, políticas e ideológicas.
Así, de manera coherente con lo que entendemos debe ser la labor de una teoría crítica
de los derechos humanos y con sus claves epistemológicas, cuestionamos el marco
conceptual de los derechos humanos que ha venido imperando, por considerar que éste
dificulta las necesarias prácticas sociales de promoción y defensa de los derechos en
el actual contexto histórico. En este mismo sentido, asumimos los derechos humanos
como el resultado de procesos de lucha sociales y colectivas, en la búsqueda por construir
espacios que hagan posible el empoderamiento de los sujetos, de manera tal que puedan
formular y llevar adelante una vida digna, a partir de sus diferenciados horizontes
socioculturales.
Frente a los postulados que sostiene el discurso liberal hegemónico, el concepto de
derechos humanos ha de asumirse siempre en proceso de construcción y necesitado
de contextualización e historización, de complejización y de atención a la pluralidad
humana. La reinvención de los derechos humanos estará así inscrita en los diversos
contextos socio-históricos en los que desarrollan sus prácticas quienes pretendan llevar
a cabo las diversas formas de lucha emancipatoria; será, por tanto, una producción
118
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
contextualizada que supere las lógicas fragmentadas y de razonamiento lineal. Esta
historización del quehacer teórico asegurará que la misma, evitando ejercicios de
idealización, pueda entrar en diálogo y enriquecerse con las formulaciones surgidas
desde otros contextos y prácticas.
En este marco, la consideración de los procesos de dominación a partir de la matriz
heterárquica de poder contribuye con los posibles desarrollos de una concepción de
derechos humanos que no limite las luchas necesarias a un único ámbito de lo social,
sino que formule una noción capaz de acoger los diversos procesos en curso en los
distintos campos de la realidad.
El ejercicio realizado en este trabajo ha querido dar cuenta de la posibilidad y de la
necesidad del diálogo de saberes y de prácticas; además de identificar la urgencia
por superar los compartimientos estancos en las formas de concebir y actuar a que
la fragmentación del conocimiento sobre la realidad social ha condenado tanto a los
intelectuales como a los colectivos de activistas que luchan por la transformación de la
realidad; todo ello ha llevado tanto a unos como a otros a un empobrecimiento de sus
prácticas y a un desperdicio de sus experiencias y aportes, con un significativo costo
para sus luchas.
119
MANUEL E. GÁNDARA CARBALLIDO
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Consulta realizada el 19 de septiembre de 2012.
Calin51: uma proposta de estudo
descolonial sobre as relações
étnico-raciais e o anticiganismo
na sociedade brasileira
Phillipe Cupertino Salloum e Silva
Resumo: A forma como os povos ciganos de diferentes partes do mundo interagem
na sociedade majoritária revela a continuidade da classificação social do mundo a
partir da raça/etnia, sobre novas bases, no contexto pós-colonial. No Brasil, onde se
especula existir mais de meio milhão de pessoas ciganas, especialmente da etnia calon,
essa população está associada a baixos indicadores sociais, como educação, saúde e
moradia. Este trabalho científico pretende, com base em duas situações concretas
acompanhadas pelo autor, analisar os argumentos adotados pelo Ministério Público
Federal para arquivarem duas denúncias de racismo envolvendo mulheres calins, de
modo a refletir sobre o pensamento jurídico brasileiro e, ao mesmo tempo, as possíveis
permanências racistas, ciganofóbicas, patriarcais e classistas na sociedade brasileira.
Almeja-se, simultaneamente, pensar as teorias decoloniais, situando os povos ciganos
enquanto sujeitos dos direitos humanos. A pesquisa de campo, do ponto de vista
metodológico, intercala a observação participante do autor, na condição de advogado e
educador popular, na defesa dos direitos humanos dos calons, entrevistas (informais) a
uma revisão bibliográfica. Conclui-se que a necessidade de uma análise descolonizadora
e crítica sobre o anti- ciganismo implica considerar que esse fenômeno social foi e é
estruturante para a conformação da modernidade, do capitalismo e, ao mesmo tempo,
para a naturalização da ideia de superioridade branca eurocentrada. Entretanto, apontar
as contradições do sistema de justiça e a ineficiência protetiva dos direitos humanos
em face das relações étnico-raciais envolvendo pessoas identificadas como ciganas é
uma medida ainda inicial e será limitada, caso a luta anticiganismo não seja pensada
de forma interseccional, assumida por toda sociedade e articulada a projetos políticos
pautados na transformação da realidade em benefício do povo.
Palavras-chave: Mulheres ciganas. Direitos Humanos. Relações étnico-raciais.
Pensamento jurídico.
Resumen: La forma en que los pueblos gitanos de diferentes partes del mundo interactúan
en la sociedad mayoritaria revela la continuidad de la clasificación social del mundo a
partir de la raza, sobre nuevas bases, en el contexto poscolonial. En Brasil, donde se
51. Calin significa mulher cigana na língua falada pelo povo Calon, a maior etnia cigana do território brasileiro, que, somada aos ciganos
Rom e aos Sinti, é estimulada a existir mais de quinhentas mil pessoas. Os Calons são os ciganos associados à diáspora ocorrida a partir da
Península Ibérica, foram os primeiros ciganos a chegarem no território brasileiro, a partir do século XVI. (BRASIL, 2013).
122
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
especula que hay más de medio millón de personas gitanas, la mayoría de los calons y
las calins, esta población está asociada a bajos indicadores sociales, como educación,
salud y vivienda.. Este trabajo científico pretende, con base en dos situaciones concretas
acompañadas por el autor, analizar los argumentos adoptados por el Ministerio
Público Federal para archivar dos denuncias de racismo que involucra calins,de modo
a reflexionar sobre el pensamiento jurídico brasileño y al mismo tiempo las posibles
permanencias racistas, gitanofóbicas, patriarcales y clasistas en la sociedad brasileña.
Al mismo tiempo, se intenta reflexionar las teorías críticas descoloniales, situando a
los pueblos gitanos como sujetos de los derechos humanos. Desde el punto de vista
metodológico, este texto intercala las experiencias del autor, como abogado popular y
investigador, en la defensa de los derechos humanos de los calons, a una revisión de
bibliografía. Se concluye que la necesidad de un análisis descolonizante y crítico sobre el
antigitanismo implica considerar que ese fenómeno social fue y es estructurante para la
conformación de la modernidad y, al mismo tiempo, para la naturalización de la idea de
superioridad blanca eurocentrada.
Palabras clave: Derechos Humanos. Relaciones étnicas y raciales. Feminismo.
Pensamiento jurídico.
1 - Introdução
A forma como os povos ciganos de diferentes partes do mundo, inclusive do Brasil,
interagem na sociedade majoritária revela a continuidade da classificação social do
mundo a partir da raça, de forma atualizada, no contexto pós-colonial. No Brasil, onde
se especula existir mais de meio milhão de pessoas ciganas, a maioria da etnia calon, essa
população está associada a baixos indicadores sociais, como educação, saúde e moradia
(BRASIL, 2013)52. A necessidade de redefinir as fronteiras dos direitos humanos e a luta
pela emancipação humana que inclua também os povos ciganos são questões centrais
para se pensar a (des)colonialização do ser, do saber e do poder na América Latina e no
Brasil. Embora o anticiganismo alcance a generalidade desse povo, o presente artigo
opta por destacar a realidade das calin, que se encontram em situação duplamente
vulnerável, seja na sociedade de modo geral e no âmbito das próprias comunidades.
52. “Gypsy”, “cigano” ou “gitano”, são termos genéricos que surgiram,
presença na Europa central (Hungria, Polônia, Eslováquia, República
em meados do século XV, para classificar pessoas com o objetivo
Tcheca e Alemanha) (BRASIL, 2013). Este artigo adota o termo calon
de transmitir um significado pejorativo (GHEORGHE, 1991), sendo
e calin, maior grupo étnico cigano presente no estado da Paraíba
que “rom” ou “roma”, “calon” ou “calin” representam denominações
onde atuou o autor. O uso de novos conceitos não é apenas por
mais aceitas entre essa população. No caso do Brasil, os calons
semântica, mas uma forma de contribuir para o processo de
representam um grupo étnico com forte presença em todo
descolonização do ser, do conhecimento e do poder. “As palavras
território nacional, especialmente na região nordeste. Eles estão
e as línguas são poderosos. Eles afetam a maneira como vemos
associados aos chamados ciganos de origem Ibérica que entraram
o mundo como nós pensamos. É por isso que o colonizador tem
nas Américas (expulsos, perseguidos ou condenados ao degredo) a
impusido sua linguagem sobre os povos colonizados, controlar
partir do século XVI. Os roms brasileiros pertencem principalmente
como é chamado um grupo é controlar o que você pensa sobre esse
aos subgrupos kalderash, machwaia e rudari, originalmente
grupo, assim como o que esse grupo pensa de si mesmo” (OPREA,
da
Romênia; os horahané, da Turquia e Grécia, e os lovaras, com forte
123
2012, p.13).
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
Diante desse cenário, romper com a invisibilidade no âmbito acadêmico, político e social
constitui um desafio para os movimentos ciganos em sua luta pelo direito de viver com
dignidade e de se autodeterminar.
Este artigo científico pretende, com base em duas situações concretas acompanhadas
pelo autor, analisar os argumentos adotados pelo Ministério Público Federal para
arquivarem denúncias envolvendo racismo em face de mulheres ciganas, com o objetivo
de refletir sobre o pensamento jurídico brasileiro e as possíveis permanências racistas,
ciganofóbicas, patriarcais e classistas na sociedade. Almeja-se compreender o papel do
Estado, quando este se depara em face de episódios que envolvem mulheres etnicamente
identificadas como ciganas, buscando identificar possíveis violações de direitos e se há
alguma omissão da burocracia estatal quando se demanda proteção. Para desenvolver
este trabalho, é necessário refletir conjuntamente com o pensamento crítico nos Direitos
Humanos e os estudos descoloniais, problematizando o anticiganismo, situando o povo
cigano e especialmente as mulheres ciganas enquanto sujeitos dos direitos humanos.
Um sujeito não mais abstrato, mas concreto, diverso, que, em sua maioria, vive da sua
força de trabalho, e por sua condição cigana pode ser exposto a diferentes vivências, e
constantes violências, criminalizações e vitimizações.
Do ponto de vista metodológico, este texto intercala experiências do autor como
advogado, educador popular e pesquisador na defesa dos direitos humanos dos
ciganos no estado da Paraíba, a uma revisão da literatura. Além disso, procura, com
base em contribuições de outros pesquisadores e pesquisadoras jurons53 e estudiosas
feministas ciganas, discutir se há ineficácia de proteção dos direitos humanos no
contexto brasileiro e pós-colonial em face dos calons, especialmente das calin.
Este artigo está dividido em dois tópicos. O primeiro tópico compartilha dois episódios de
anti- ciganismo que levou à proposição de notícia de fato ao MPF, e analisa os argumentos
utilizados pelo órgão para arquivar os casos. O segundo tópico compartilha um fato que
levou à denúncia de racismo praticada por uma página comercial do instagram e o termo
de ajuste de conduta proposto pelo MPF. A partir de uma perspectiva interseccional
que articula as categorias de gênero, raça, classe e território, busca-se influenciar o
desenvolvimento os estudos dos direitos humanos voltada para uma prática libertadora,
assim como vislumbrar os calons e calins, pobres e que vivem da sua força de trabalho
como sujeitos de direitos, dignidade, possuidoras e possuidores do direito de forjar sua
própria história.
53. “Pessoa não cigana” na linguagem falada pelo comunidade calon que o autor trabalha.
124
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2 - A desumanização da calin
A luta pela sobrevivência é uma prática permanente de todos aqueles e todos aqueles
que vivem, dependem de sua força de trabalho, inclusive para as mulheres que praticam
a quiromancia54 nas ruas dos centros das cidades brasileiras, especialmente perto das
feiras, estações terminais de ônibus, mercados públicos e regiões com lojas comerciais
concentradas. Em relação ao rancho55 calon do município de Condado, “a quiromancia
é quase não mais praticada entre o grupo, com exceção da cigana Rosa56, que todos os
dias vai para a cidade de Patos, fazer quiromancia” (CUNHA, 2015, p. 9). Em novembro de
2017, um episódio ocorreu com Rosa e fez com que ela interrompesse as viagens diárias
para o centro de Patos57. Antes desse episódio, Rosa já vinha enfrentando constantes
hostilidades, por meio de ataques verbais como “ladra” ou “bruxa”, especialmente,
feitas por motoristas de táxi que permanecem estacionados em pontos no centro deste
município, espantando as pessoas que se aproximavam de Rosa quando tentava oferecer
a leitura de suas mãos.
A reportagem do portal de notícias está intitulada “‘Baiana’ é acusada de pedir para ‘ler
a mão’ das pessoas no Centro de Patos e depois fazer ameaças”, fundamenta o texto com
base em narrativas de três pessoas, obtidas de postagens do facebook, que alegam ter
sido perseguidas e ameaçadas por uma mulher que se dizia baiana. Esta reportagem
atraiu dezenas de comentários de conteúdo preconceituoso e agressivo, entre eles:
“não é baiana é sim cigana, já vi por várias vezes”; “trapaceou minha outra irmã que é
besta e cai em qualquer lorota de macumbeira”; “põe essa pilantra pra ver o céu nascer
quadrado”; “era para ter dado...um murro na cara dela”; “volta para Bahia despacho”58.
A Associação Comunitária dos Ciganos de Condado entrou em contato com o portal de
notícias para que a reportagem, que compartilha, sem averiguar, acusações de rede
sociais, fosse excluída por induzir e estimular o preconceito e a intolerância em relação
a quiromancia, prática habitualmente associada às mulheres ciganas, o que motivou e
atraiu reações racistas, misóginas e ciganofóbicas por meio dos comentários. O portal
recusou-se a excluir a reportagem.
Durante uma audiência pública organizada pelo MPF, no início de 2017, meses antes do
episódio envolvendo Rosa, Maria Jane, presidenta da ASCOCIC, informou sobre a falta de
respeito com a prática de leitura de mãos. A militante lembra que mulheres ciganas já
foram presas na Paraíba por praticar leitura de mão. “E até hoje elas são”, acrescenta. “Eu
fui pega por isso. Minha mãe também. Já fomos colocadas fora das cidades da Paraíba. Eles
não aceitam, eles nos chamam de vagabundas. Então, por que eles não nos dão empregos?
54. A arte, que ao mesmo tempo é um trabalho, que busca conhecer uma pessoa e dizer sua sorte através da leitura das linhas de sua mão.
55. “Rancho” é como muitas comunidades calons chamam sua moradia, as regiões onde moram suas famílias.
56. Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento do presente artigo.
57. Este fato obteve grande repercussão nas redes sociais por ter sido noticiado em um relevante portal de notícias da região.
Disponível em: <http://www.folhapatoense.com/2017/11/24/baiana-pede-para-ler-a-mao-das-pessoas-no-centro-de-patos-e- depois-fazameacas-e-as-persegue/#.W2RSvShKjIV>. Acesso em: 8 ago. 2018.
58. Esses comentários podem ser vistos nos anexos do artigo.
125
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
Por que eles não nos dão espaço? Por que eles não nos dão a oportunidade (de trabalhar)?”
(MPF, 2017). Maria Jane Soares também é integrante do Conselho Nacional do Ministério
Política Cultural da Cultura, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial da
Paraíba e da Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais Nacionais. A presidenta
explica que a partir de 2013 começou a frequentar a capital federal e aprendeu que ler mãos
e cartas jogadas são parte da cultura cigana e, portanto, não deve deixar morrer.
A reportagem, ao atribuir as supostas condutas a uma “baiana”, ainda que se tratasse de uma
cigana calin, reforça pejorativos associados às mulheres ciganas, não brancas, praticantes de
religiões africanas ou de condutas simplesmente não cristãs. Os preconceitos e estereótipos
racistas e ciganofóbicos aos quais essas mulheres são submetidas “são sempre produzidos por
marcas de gênero e por conotações fortemente sexualizadas (cigana misteriosa e identificada
como uma bruxa)” (REA, 2017). A feminista romani Camilla Ida Ravnbøl (2010, p. 3, tradução
nossa) destaca que as mulheres ciganas “são representativas de múltiplas discriminações
que muitas minorias experimentam na sociedade; discriminação, como mulher, e para
algumas mulheres também em grupos de pobreza”, ou seja, enfrentam a discriminação
dentro e fora da comunidade que pertencem. Por essa razão, muitas mulheres ciganas
ativistas criticam a comunidade internacional, o movimento cigano global e os movimentos
feministas em geral por não abordarem especificamente o problema das mulheres ciganas.
Durante uma audiência pública organizada pelo MPF59, no início de 2017, meses antes do
episódio envolvendo Rosa, Maria Jane, presidenta da ASCOCIC, informou sobre a falta de
respeito com a prática de leitura de mãos. A militante lembra que mulheres ciganas já
foram presas na Paraíba por praticar leitura de mão. “E até hoje elas são”, acrescenta. “Eu
fui pega por isso. Minha mãe também. Já fomos colocadas fora das cidades da Paraíba.
Eles não aceitam, eles nos chamam de vagabundas. Então, por que eles não nos dão
empregos? Por que eles não nos dão espaço? Por que eles não nos dão a oportunidade (de
trabalhar)?” (MPF, 2017). Maria Jane Soares também é integrante do Conselho Nacional do
Ministério Política Cultural da Cultura, o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade
Racial da Paraíba e Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais Nacionais. A presidenta
explica que a partir de 2013 começou a frequentar a capital federal e aprendeu que “lê
mãos” e “cartas jogadas” são parte da cultura cigana e, portanto, não deve deixar morrer60.
59. A audiência pública contou com a presença de representantes
Apesar da formação técnica, ela alegou não conseguir emprego e
de todas as entidades da federação, incluindo o município onde
diz que sofre muito preconceito. Nas suas palavras: “eu trabalhei
o evento noticiado pelo blog ocorreu. Durante a audiência foi
como aprendiz nos dois postos médicos da cidade, perguntei, até
anunciado e uma série de medidas para promover a inclusão e
implorei para me dar uma oportunidade de mostrar o meu trabalho
combater o preconceito contra os ciganos na cidade.
como técnico de enfermagem, mas a oportunidade foi dada a
outros. Até agora não consegui exercer minha profissão” (MPF, 2017).
60. Janete, irmã de Maria Jane, também falou na audiência que
sua mãe sustenta a família, que pagou pelo seu curso de técnica
de enfermagem, lendo a mão, sendo através da cultura que criou,
deu comida e educação para a crianças ela, que tem um filho de
dez anos e sobrevive do Bolsa Família, um programa social estatal.
126
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
A reportagem, ao atribuir as supostas condutas a uma “baiana”, ainda que se tratasse
de uma cigana calin, reforça pejorativos associados às mulheres ciganas, não brancas,
praticantes de religiões africanas ou de condutas simplesmente não cristãs. Os preconceitos
e estereótipos racistas e ciganofóbicos aos quais essas mulheres são submetidas “são
sempre produzidos por marcas de gênero e por conotações fortemente sexualizadas
(cigana misteriosa e identificada como uma bruxa)” (REA, 2017). A feminista romani
Camilla Ida Ravnbøl destaca que as mulheres ciganas “são representativas de múltiplas
discriminações que muitas minorias experimentam na sociedade; discriminação, como
mulher, e para algumas mulheres também em grupos de pobreza” (2010, p. 3, tradução
nossa), ou seja, enfrentam a discriminação dentro e fora da comunidade que pertencem.
Por essa razão, muitas mulheres ciganas ativistas criticam a comunidade internacional,
o movimento cigano global e os movimentos feministas em geral por não abordar
especificamente o problema das mulheres ciganas61.
A recusa do portal em excluir a publicação motivou a ASCOCIC, que atua na comunidade
de Rosa, a noticiar o fato ao MPF, por identificar que a reportagem induz e estimula o
preconceito e o anticiganismo, conforme evidenciado nos comentários. O órgão, por sua
vez, discordou da ASCOCIC e encaminhou o caso para o arquivamento62, argumentando
que o blog apenas veiculou um fato jornalístico e que não houve o intuito de gerar
preconceito contra a comunidade cigana, que, tradicionalmente, é identificada com a
leitura de mãos. Utilizou-se do princípio da ponderação para fundamentar a decisão pelo
arquivamento da notícia de fato, em que a liberdade de expressão e imprensa prevalecem
sobre uma ‘imaginária incitação à discriminação dos povos e tradições ciganas’.
O MPF classifica o episódio noticiado ao órgão como uma ‘imaginária incitação’ ao
preconceito. No entanto, a publicação atraiu uma série de comentários de leitores ao
suposto fato jornalístico reproduzido no blog, que atribuíam a leitura de mãos à ‘trapaça’
e à ‘coisa de macumbeira’, adjetivando a ‘baiana’ de ‘pilantra’ e ‘louca’ ou propondo que se
deveria ‘ter dado um murro na cara dela’. O órgão admite que se tratam de ‘externações
exageradas de preconceitos arraigados’ e indicou que há uma causa para essas repercussões
tão negativas: o ‘déficit de educação’, notadamente, voltada para ‘os direitos humanos
dos povos tradicionais’. Contudo, sustenta que não cabe responsabilização penal para
o que considera se tratar de uma ‘falta de educação para tratar com a diferença’, sendo
mais uma ‘ignorância completa’ que com ‘o cerne do discurso de ódio, que é a agressão
ao diferente por ser diferente’.
127
61. Angela Davis (2016) já havia mostrado como a exclusão de mulheres
Ela é uma mendiga persistente, uma vassoura de rua. Ela é agressiva e
não brancas da categoria feminilidade não confere os privilégios da
suja. Mesmo em sua velhice, ela mantém suas qualidades masculinas.
masculinidade, mas as torna particularmente vulneráveis à violência
Estes são os estereótipos que permitiram a escravização, e são os
sexista e a qualquer forma de abuso sexual. Oprea também aponta
estereótipos que justificam a brutalidade do Estado em relação a ela.”
a exclusão da categoria de feminilidade da mulher cigana quando
(2012, página 16, tradução da nossa).
afirma que, para a sociedade majoritária, “uma mulher cigana não é
62. Trata-se do arquivamento da notícia de fato nº 1.24.003.000306/2017-
uma mulher e, portanto, não recebe um tratamento cavalheiresco.
03, procedimento que ocorreu em 19 de dezembro de 2017.
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
Ainda que não esteja presente a necessidade de responsabilização penal, os comentários
em tons odiosos e preconceituosos estão, de alguma forma, relacionados à conduta do
portal de notícias. Este elemento não foi suficiente para que o MPF adotasse medidas
mais concretas em relação ao fato noticiado que estimula o preconceito, como exigir uma
veiculação de uma reportagem que trouxesse esclarecimentos sobre a cultura da leitura
de mãos e uma advertência direta aos autores dos comentários que fazem apologia ao
ódio e à violência. Além de pedir a exclusão do texto63.
Ao provocar o MPF a se posicionar sobre a reportagem, o objetivo da organização
cigana, segundo a presidenta da ASCOCIC, era levantar o debate sobre a intolerância em
relação à prática da quiromancia, exigindo que o portal de notícias trouxesse outro texto
esclarecendo o que consiste essa prática e a desassociando de uma conduta deplorável,
negativa. Ao simplesmente arquivar a notícia do fato, sem exigir nenhuma contrapartida
do portal, o MPF perde a oportunidade de usar suas atribuições para cumprir com
um papel educativo, transcendendo o dualismo do punitivismo versus inocência,
oportunizando aos leitores do portal de notícias a conhecerem outras perspectivas sobre
a quiromancia, como uma prática que atravessa séculos e que corresponde a uma forma
de sobrevivência de algumas mulheres ciganas.
De forma abstrata, o referido órgão propõe, no arquivamento, a necessidade de inclusão
das tradições ciganas nos currículos escolares das escolas municipais, contudo, não indica
como deve proceder com essa demanda, que é urgente. Essa pauta já é de conhecimento
do MPF, que organizou uma audiência pública realizada, em março de 2017, para
discutir a realidade dos ciganos e buscar soluções para as demandas reivindicativas das
comunidades calon da região. A presidenta da ASCOCIC revela que poucos avanços e
esforços foram realizados em face dos compromissos assumidos pelas autoridades e
representantes dos órgãos públicos que estavam presentes na audiência pública.
Vale mencionar também outro episódio de “anticiganismo”, denunciado ao MPF pelo
autor deste artigo, após ser procurado por diversos movimentos ciganos, em que a
procuradoria que recepcionou a “Notícia do Fato” também procedeu o arquivamento64.
A charge65 objeto da “Notícia de Fato” retrata, evidentemente, uma personagem que reúne
todas as simbologias e traços culturais relacionados à identidade étnica cigana. Alegouse que a mensagem transmitida pelo perfil “@ana.nesia” tem natureza discriminatória e
preconceituosa, pois, mobiliza representações do imaginário social que historicamente
63. No Brasil, não há monitoramento da mídia, ou em outras áreas
envolvendo discurso de ódio. Dessas situações, foram casos individ-
da sociedade, no sentido de observar casos de discriminação
uais e 83 casos coletivos, entre as vítimas, 149 eram mulheres e 138
racial contra os ciganos. Destaca-se o papel desempenhado pela
homens, a maioria entre 16 e 30 anos (FSG, 2016).
Fundación Secretariado Gitano (FSG), uma organização não governamental que também monitora casos de discriminação racial
64. O MPF registrou o processo com as seguintes numerações: NF
que ocorrem na Espanha. Por exemplo, o FSG identificou 154 casos
nº 1.14.004.000324/2020-19 e PRM-FSA-BA-00007072/2020.
de discriminação contra os ciganos em 2016, 44 casos que ocorre-
65. A imagem da charge pode ser visualizada nos anexos do pre-
ram nos meios de comunicação, 27 no emprego, 12 em tentativas
sente artigo.
de acesso a bens, 15 envolvendo serviços policiais, 9 envolvendo
educação, 20 casos nas moradias, 5 casos na saúde e 22 outros casos
128
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(e ainda no presente) tenta relacionar a prática cultural da leitura de mão e o jogo de
cartas praticada por mulheres ciganas como uma sinônimo de “trapaça”, “desonestidade”
e “vantagem ilícita”.
Após análise da “Notícia de Fato”, a procuradoria do MPF argumentou que a charge
“sequer cita os povos ciganos – apenas faz referência a estes de forma velada”. Além disso,
ao optar pelo arquivamento, o Ministério Público Federal justificou tal procedimento
fazendo referência ao “princípio constitucional da liberdade de expressão”, enquanto
um direito dos administradores do perfil “@dona.anesia”66 ; concluindo, por fim, que a
“charge” não constitui “efetiva disseminação de discursos de ódio e discriminatórios ou
de incitação à violência”.
É possível afirmar que o fato das procuradorias do MPF, que receberam as denúncias
aqui expostas, não tomarem nenhuma atitude concreta para remover os conteúdos
ofensivos revela a falta de empatia dos operadores do direito brasileiro, especialmente
os ocupantes de altos cargos de funcionalismo público, com questões de ordem social e
cultural. Entre outras razões, segundo Vanessa Berner (2017), é um reflexo do fato de os
cursos jurídicos terem uma longa tradição de não participar da extensão universitária,
restringindo sua atuação nesse campo às representações-modelo para a prestação de
serviços de assistência social ou estágios para estudantes em escritórios particulares de
advocacia ou em órgãos públicos. A autora acrescenta que a ausência de espaços para
pensar a sociedade promove um impacto profundo na formação de futuros profissionais
do direito, pois os alunos são treinados sem ter contato com a realidade social e política
do país. Portanto, há, de fato, um distanciamento entre o mundo jurídico e o que
acontece ao nosso redor, “é também um reflexo da baixa interdisciplinaridade presente
nos cursos de direito” (BERNER, 2017, p.99). Esse fenômeno decorre das permanências da
colonialidade do saber na produção e reprodução do conhecimento no ensino brasileiro.
Essa baixa interdisciplinaridade atinge, inevitavelmente, a área de atuação dos Direitos
Humanos. Ravnbøl (2010) questiona a separação tradicional no campo internacional dos
direitos humanos entre questões de gênero e minorias na prática, que se tornou uma
lacuna que pode isolar grupos como as mulheres das minorias da atenção dos direitos
humanos. Durante a Conferência de Viena em 1993, foi apresentada a doutrina da
indivisibilidade e a inter-relação de todos os direitos humanos, onde a incorporação de
perspectivas de “gênero e minorias em programas de direitos humanos é cada vez mais
uma área prioritária, é raro que as questões de minorias e gênero sejam combinadas”
(RAVNBØL, 2010, p.3, tradução nossa).
66. Trata-se de um perfil cuja conta possui mais de 500 mil seguidores.
129
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Ser mulher e pertencer a uma minoria étnica, como é o caso da calin, soma-se a duas
outras condições em que muitas dessas pessoas estão no interior do Nordeste brasileiro:
de pobreza e de trabalhadora. Ao circular nos centros das cidades, essas mulheres,
que já são muito poucas, recorrem “a sua cultura”, a leitura das mãos para obter uma
renda. No caso de Rosa, que pratica a quiromancia há mais de quatro décadas e, devido
à repercussão do episódio relatado no portal de notícias, teve que deixar as ruas do
centro de Patos por tempo indeterminado, precisando recorrer a outras cidades, até
mesmo estados vizinhos, para desenvolver suas atividades. É, em outras palavras, um
fenômeno de desterritorialização, negação do direito à cidade de Rosa, assim como
outras calin da região.
A referência ao termo “desterritorialização” não é a mesma que a modernidade e,
consequentemente, a colonialidade estabeleceram para a concepção do território,
associada à soberania do Estado sobre um espaço delimitado por fronteiras ou confundida
com a ideia de propriedade privada. O território aqui é vislumbrado como um espaço onde
pessoas reais, com características e diferentes histórias circulam, vivem e exercitam
suas atividades e ações. “Na escala intra-urbana, além das várias territorialidades que
se constroem, observa-se, quanto aos ciganos, processos territorializadores, que não
evidenciam apenas os locais de moradia, mas também outros espaços das cidades, sendo
estes principalmente as praças, locais ligados diretamente às atividades econômicas dos
ciganos”. (ESTEVAM, 2009, p. 131-132)
As reações de ódio manifestadas no portal de notícias, assim como o próprio
arquivamento do caso (os ciganos e suas práticas não são sequer vistos objetos de
proteção), são reflexos do que se opta por chamar neste artigo de anticiganismo. Como
esclarece o acadêmico cigano espanhol Valeriu Nicolae (2016), o anticiganismo é um
tipo específico de ideologia racista, uma ideologia de superioridade racial, ao mesmo
tempo semelhante e diferente, e está interconectado com muitos outros tipos de
racismo. “O anticiganismo em si é um fenômeno social complexo que se manifesta
através da violência, discurso de ódio, exploração e discriminação, na sua forma mais
visível” (NICOLAE, 2016, p. 75, tradução nossa).
O preconceito contra os ciganos vai claramente além dos estereótipos racistas
que os associam a traços e comportamentos negativos. A desumanização é o seu
ponto central. Os ciganos são vistos como menos que humanos; sendo menos que
humanos, são percebidos como seres que não têm direito moral de gozar de direitos
humanos iguais aos do resto da população. (NICOLAE, 2016, p.79, tradução nossa)
130
P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
O direito de ir e vir, de estar na cidade, em espaços públicos, institucionais ou não,
é vivenciado de diferentes maneiras por homens e mulheres. E o fato de ser negra,
indígena e, no caso deste artigo, calin, pobre e trabalhadora, pode expor essas mulheres a
diferentes formas de violência, criminalização e vitimização, ampliando os obstáculos e
limitações dessas pessoas ao direito à cidade, à vida e ao trabalho. Essa situação fortalece
o projeto de consolidação do capitalismo e de uma sociedade colonial e eurocêntrica que
impõe um padrão de existência para os seres humanos.
O anticiganismo, as hostilidades e a permanente desconfiança com relação à quiromancia,
uma prática reconhecida como não cristã e, por isso, vista como contrária à racionalidade
eurocentrada, é resultado da tentativa de “homogeneizar as formas básicas de existência
social de todas as populações” (QUIJANO, 2000, p. 113). O fato de profissionais do direito,
como é caso do procurador que atuou no caso de Rosa, não perceberem que a reportagem
faz parte do processo de aniquilamento cultural da diferença, da identidade cigana, é
um reflexo de como a formação intelectual do direito esteve e está associado “a ideiaimagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado
de natureza e culmina na Europa” (QUIJANO, 2000, p. 122), e, por isso, comprometida,
em sua grande maioria, em formar “uma elite jurídica tradicionalista, avessa a uma
abertura maior aos interesses sociais” (MASCARO, 2017, p. 29).
No próximo tópico, será exposto o episódio de anticiganismo ocorrido nas redes sociais
que, após denúncia, levou o Ministério Público Federal a propor um termo de ajuste de
conduta aos autores do ato de preconceito.
3 - A importância do anticiganismo para o projeto de colonialidade
Em dezembro de 2017, um portal de notícias da rede social Instagram publicou uma foto
de duas mulheres vestindo roupas típicas ciganas acompanhadas da seguinte legenda:
“Atenção! Ciganas foram flagrantes no Shopping na tarde de segunda. Elas já estão
tentando faturar o 13º” . Essa publicação obteve uma ampla repercussão na rede social,
inclusive comentários de pessoas que estavam aborrecidas em relação ao preconceito
racial manifestado. No entanto, as mensagens que reproduziam uma perspectiva racista
e higienista predominaram, insinuando que os ciganos, em geral, são “desonestos”,
“sujos” e “perigosos”, e que, por essa razão, deveriam ser expulsos do shopping.
O que há de relevante, para fins jornalísticos, no fato de duas mulheres, visivelmente
calin, caminharem em um shopping? Talvez a surpresa dos autores da publicação e
dos comentários seria motivada pelo fato de pessoas ciganas, vistas como exóticas e
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P H I L L I P E C U P E R T I N O S A L LO U M E S I LVA
presumidamente perigosas, frequentando espaços abertos ao público como um shopping,
idealizado para trazer conforto e proteção para seu público-alvo. A foto e a legenda, ao
adotar o termo ‘atenção’, somado às expressões ‘Ciganas foram flagradas’ e ‘faturar o 13º’,
reproduzem e induzem o preconceito étnico e a intolerância.
Os membros da ASCOCIC e outras pessoas denunciaram ao Instagram para que a
publicação fosse excluída, o que não aconteceu sob a alegação de que a publicação
decorre da liberdade de expressão dos autores e que não havia nenhum discurso de ódio.
Tentou-se também negociar diretamente com os autores da publicação, que apenas
mudaram a legenda da foto, mas se recusaram a excluí-la, justificando que a intenção
não era promover ofensa, mas fazer humor. Após essas tentativas, a associação enviou
uma representação ao Ministério Público Federal, denunciando o racismo.
Por sua vez, o órgão que teria competência legal para oferecer a denúncia realizou uma
reunião com os proprietários do perfil do instagram na data de 25 de janeiro de 2018,
ocasião em que foi celebrado o Termo de Ajustamento de Conduta. Essa retratação
esteve condicionada à publicação de uma mensagem produzida pelo MPF, em forma de
esclarecimento sobre os povos ciganos e o preconceito vivenciado por essa etnia, e a
exclusão da postagem original. Ocorre que, havendo o crime de preconceito, que exige
uma ação pública incondicionada, não é cabível retratação ou outra composição cível.
Não se trata de uma injúria racial, visto que a ofensa ocorrida não ocorreu apenas em
face da honra subjetiva das mulheres expostas na publicação do perfil de rede social,
mas, genericamente, ao grupo étnico reconhecido como cigano.
Após o órgão competente renunciar à obrigação de propor a denúncia, a ASCOCIC
apresentou um recurso ao procedimento de arquivamento, alegando que não oferecer
denúncia corresponde a uma conduta antijurídica, pois viola direitos fundamentais e a
norma infraconstitucional que regulamenta a punição e a responsabilização penal dos
autores do crime de preconceito. Além disso, indica-se que o arquivamento constitui
uma forma de condenação da lei nº 7.716/1989 à condição de letra morta68, em outras
palavras, inaplicável no sistema de justiça brasileiro. Ignora-se a condição das pessoas
ciganas enquanto sujeitos de proteção dos direitos humanos. Segundo Moore (2007), o
racismo é percebido como forma de consciência grupal, não parece mais como racismo
e, até mesmo, se nega como tal. É essa característica de poder se negar a si mesmo que
lhe confere tal plasticidade e resistência aos esforços de mudança.
68. Segundo Abade, “os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. E os juízes não veem o crime de racismo [...] porque não aceitam o fato de que há racismo no país. Muitas vezes as agressões são entendidas como brincadeiras. Não existe a menor sensibilidade da
Justiça para o quanto isso é doloroso para quem sofre o preconceito” (ABADE, 2015).
cias/2009/09/30/uma-justicacega-para-o-racismo/>. Acesso em: 21 maio 2017.
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Disponível
em: <http://www.jb.com.br/pais/noti-
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Faz parte do projeto eurocêntrico de capitalismo colonial / moderno negar o racismo69,
recusando-se a cumprir uma norma que está positivada na legislação brasileira, quando
se refere à responsabilidade por possíveis crimes de racismo. A ausência de uma conduta
efetiva do MPF contribui para a naturalização da ideia de superioridade branca européia
e mantém, portanto, o sistema judiciário intacto de qualquer responsabilidade quanto
ao racismo. Ao mesmo tempo, é importante destacar que o fortalecimento do modelo
vigente do direito penal não é a melhor resposta deste, nem outros problemas que se
manifestam na sociedade brasileira.
A transação proposta pelo MPF exigiu que os proprietários de página divulgassem um texto,
acompanhado por uma foto com o emblema do órgão como um meio de cumprimento
do termo de ajustamento de conduta. Essa exigência é totalmente desproporcional em
relação à conduta preconceituosa da página do instagram que ofendeu milhares de
pessoas que se reconhecem e que são reconhecidas como ciganas. A publicação atingiu
mais do que 700 curtidas e 150 comentários, ou seja, um fato irreparável. Enquanto
o texto produzido pelo MPF obteve aproximadamente 100 curtidas. A reunião no MPF
deveria contar pelo menos com a presença da ASCOCIC para que pudesse fornecer
sugestões para tentar minimizar os efeitos negativos que a publicação do instagram
página promoveu. No mínimo, por exemplo, poderia-se recomendar aos autores do
perfil a divulgação de um vídeo e/ou um texto, construído pelo próprio povo calon, ao
invés de apenas um grande texto produzido pelos servidores de um organismo público
que tem pouco contato com a questão cigana.
A inaplicabilidade da Lei Caó, bem como as permanências racistas, classistas e machistas
nos meios de comunicação e na sociedade como um todo fazem parte da crise atual
brasileira. Como ensina Máscaro (2016), a crise brasileira atravessa a lei, mas não é
apenas legal. Ela também passa pelos meios de comunicação de massa, mas não apenas
pela mídia. Passa pelo governo, mas não é apenas pela política. Passa pelo regime de
acumulação e pelo modo de regulação, mas não é apenas econômico. “A crise brasileira é
outro caso da crise geral da reprodução da sociabilidade capitalista. Ele passa, sim, pela
composição exata de todos esses fatores, o que perfaz justamente o estrutural de tal
sociabilidade” (MÁSCARO, 2016, p. 36).
No marco do sistema de justiça, percebe-se que os autores de condutas preconceituosas
são tratados como figuras inimputáveis penalmente, não passíveis de responsabilidade.
Ao contrário, em situações envolvendo racismo, as procuradorias do MPF analisadas
neste estudo adotam uma postura demasiadamente branda em relação aos autores
69. Segundo Mignolo (2002), sobre a formulação original de Quijano, o “padrão colonial de poder” foi descrito como quatro domínios
inter-relacionados: controle da economia, autoridade, gênero e sexualidade, e conhecimento e subjetividade. Para o autor, a questão da
“natureza” também poderia ser designada como o quinto domínio da matriz colonial, em vez de considerá-la como parte do domínio
econômico.
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de ofensas preconceituosas, indicando, por exemplo, a responsabilidade do estado, de
forma abstrata, por não fornecer uma educação voltada para diversidade.
Para Guimarães (2004), a reprodução ampliada das desigualdades raciais no Brasil
coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos comportamentos racistas.
A condição de cigana, e especialmente das mulheres ciganas, enfrenta barreiras que
impõem limitações ao exercício de direitos básicos, como exercer sua cultura, trabalhar,
circular em espaços, etc. Fronteiras que insistem em permanecer no Brasil no século
XXI. Para Teresa Martín Palomo (2002), esse cenário constitui um fenômeno universal
– a identidade étnica, os outros são fronteiras criadas a partir das relações sociais e de
poder, o que intensifica o controle social diante de grupos étnicos, como os ciganos e as
ciganas70.
Segundo Quijano (1992), a colonialidade formou por um lado a ideia de que os não
europeus têm não somente uma estrutura biológica diferente da europeia, mas que,
acima de tudo, pertencem a um tipo ou nível inferior; por outro lado a ideia de que
as diferenças culturais estão associadas a tais desigualdades biológicas e não são,
portanto, produto da história das relações entre as pessoas e estas com o universo. De
acordo com Maria Patrícia Goldfarb (2013), no caso do Brasil, os ciganos não são vistos
como portadores de uma identidade cultural diferenciada, mas sim pela ausência de
valores e comportamentos aprovados pela sociedade, sendo considerados apolíticos,
sem pátria, sem religião. ou leis específicas. Ao insistir em classificar “outros, acabamos
incorporando ou subordinando-os aos nossos próprios sistemas de representações
coletivas”, porque inevitavelmente, “toda classificação implica uma ordem hierárquica,
por meio de conceitos que também sofrem uma hierarquia” (GOLDFARB, 2013, p. 62).
O processo de naturalização da sociedade moderna liberal ocorreu, principalmente, pela
a instituição do critério de raça como mais uma forma de separação e hierarquização,
cumprindo a função de legitimar a dominação ao indicar a superioridade branca em
oposição à inferioridade negra, indígena (QUIJANO, 1992) e cigana. Segundo esse autor, a
ideia de raça — primeira categoria social da modernidade — surgiu no bojo do processo
de destruição e apagamento de sociedades e povos, impondo aos seus sobreviventes, de
forma a naturalizá-las, às novas relações de poder que se forjavam no mundo colonial.
Parte-se do pressuposto, segundo lecionou Quijano (1992), que os dominados são o que
são, não como vítimas de um conflito de poder, mas sim enquanto inferiores em sua
natureza material e, por isso, em sua capacidade de produção histórico-cultural.
Quijano (2000) argumenta que a classificação social básica e universal da população do
planeta em torno da ideia de raça, uma categoria mental da modernidade, se originou há
70. O termo “cigano” não se “baseia apenas no ódio racial, mas também na misoginia, pois o estereótipo da cigana não é apenas parte da raça inferior,
mas também da sexualidade” (OPREA, 2012, p. 16, tradução nossa).
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500 anos junto com a América, a Europa e o capitalismo71, elas constituem a forma mais
profunda e efetiva de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por essa mesma
razão, a base intersubjetiva mais universal da dominação política dentro do padrão atual
de poder. A associação entre os fenômenos de etnocentrismo colonial e classificação
racial universal ajuda a “explicar por que os europeus foram levados a sentir-se não só
superior a todos os outros povos do mundo, mas, em particular, naturalmente superior”
(Quijano, 2000, p 210).
Embora Quijano, nas obras aqui citadas, não faça referência direta aos ciganos em relação
às novas identidades históricas e sociais (amarelos, brancos, índios, negros e mestiços)
que ocorreram com o desenvolvimento do colonialismo, pode-se dizer, por exemplo,
que a lógica aplicada a classificação dos diferentes grupos populacionais como índios
ou negros é a mesma que a dos ciganos, povos igualmente heterogêneos, mas reduzidos
a uma única denominação, uma única identidade. Apesar de várias denominações,
“cigano” é um termo genérico que teria surgido na Europa do século XV (FRASER, 2007),
contexto que foi de extrema importância para a consolidação da ideia de Estado-nação
e o surgimento da modernidade. Se a classificação racial de pessoas que viviam onde
hoje se chama por América, África e Ásia justificou a exploração do trabalho (escravo ou
servil) e a colonização dos territórios invadidos, qual o sentido de classificar as pessoas
como ciganas, se não possuíam territórios a ser explorado associado a esse grupo?
Fraser (1992) chama de “generalizada maré repressiva” metade do século XVI até as
últimas décadas do século XVIII, período destacado por esse autor para estudar os ciganos
na Europa. Segundo Fraser, este período foi marcado por uma deprimente uniformidade
na resposta da maioria das potências europeias a presença de pessoas reconhecidas
como ciganas, dificultando o movimento e a coexistência pacífica desses grupos com a
população e as autoridades, que, mais do que nunca, dotados de instrumentos legais que
limitam qualquer tentativa de demonstração das formas de vida associadas aos ciganos.
Antes de intensificar estes contextos de perseguições, Fraser (1992) observa que os grupos
ciganos andavam por toda a Europa, sob a proteção de salvos-condutos imperiais ou
benefícios papais, que atingiu seu ápice no século XV, num contexto ligado à prática natural
do período, tanto pela população quanto pelos soberanos, em prover abrigo e comida aos
peregrinos em sua viagem. Essa prática foi usada como instrumento de prestação de contas
à Igreja, em um mundo de lógica medieval baseado na consciência aguda do pecado72.
71. Segundo Mignolo (2007), antes de haver classificação social
foi substituída pela filosofia secular e pelas ciências.
baseada na raça, a teologia cristã era responsável por marcar no
72. No entanto, em virtude de uma série de transformações
“sangue” a distinção entre cristãos, mouros e judeus. Apesar da
estruturais que abalaram o continente europeu a partir do século
disputa entre a religião cristã, islâmica e judaica ter uma longa
XVI, esse quadro começa a mudar, e a presença desses peregrinos
história, ela foi reconfigurada desde 1492, quando os cristãos
(no caso dos ciganos) gera reações graduais e, finalmente, leis e
conseguiram expulsar os mouros e judeus da Península Ibérica e
decretos de anticiganos severos, que demonstram claramente
forçar a conversão daqueles que queriam ficar. Simultaneamente, a
que as autoridades preferem vê-los fora dos limites da cidade,
configuração racial entre o espanhol, o índio e o africano começou
sem expressar qualquer preocupação com o destino dos mesmos
a tomar forma no Novo Mundo. No século XVIII, o “sangue” como
(FRASER, 1992).
marcador de raça / racismo foi transferido para a pele, e a teologia
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Desde o século XVI, de acordo com Isabel Borges (2007), os ciganos são explicitamente
assimilados pelas autoridades como “pobre” e “andarilhos”, gerando uma sequência de
decretos que rejeitavam expressamente os ciganos, mantendo essas pessoas no campo
das margens, da periferia. Por meio dos estudos sobre a Era Moderna desenvolvidos
por Schimitt (1993), é possível identificar alguns motivos que levaram a uma maior
marginalização dos ciganos com o advento da modernidade.
Para Schmitt (1993), em função da “razão de Estado” emergente, onde o monarca que é
protegido por direito divino passa a ser realizada a partir de novas instituições (justiça,
polícia, etc.), a Igreja torna-se parte integrante de um complexo de engrenagem, criada
para regular as transformações da transferência da predominante economia rural
para um mercado de trabalho que se formava nas cidades. Há, ao mesmo tempo, um
crescente processo de valorização do trabalho, como critério essencial da “utilidade
social”; o trabalho como um valor moral, especialmente no sentido de servir a alguém.
Nesse contexto, o autor destaca que se esvazia, gradativamente, as práticas baseadas no
ideal evangélico que, até então, aceitava bem a pobreza voluntária, que, por um longo
período, permitia a sobrevivência e melhor adaptação dos ciganos, que poderiam, de
alguma forma, circular pelo território europeu, com mais liberdade.
Angus Fraser (1993) reconhece os ciganos como a representação da “negação gritante” de
valores e premissas que permeou a moral dominante no século XVI da Europa. É possível
afirmar que as representações criadas sobre os povos ciganos se opõem ao padrão de
civilidade, de humanidade reivindicada pela concepção de modernidade eurocentrada,
que começou a emergir a partir do século XV. Não é por acaso que a atividade desenvolvida
por Rosa nos centros do município de Patos, cujo caso é descrito no primeiro tópico
deste artigo, assim como muitas outras calin que vivem da quiromancia, continuem a ser
vistas com desconfiança pela sociedade majoritária. Essa situação é derivada do racismo
estrutural, não é apenas um comportamento individual, o que limita os seus lugares
de ação,de busca pela sobrevivência, compartilhando com o mundo o conhecimento
secular de sua cultura, como a leitura de mãos e o jogo de cartas. Em geral, as atividades
desenvolvidas ou associadas aos ciganos e às ciganas sequer são consideradas como uma
forma de trabalho. Além disso, o racismo e o anticiganismo acabam por dificultar a
inserção de muitos ciganos ao mercado de trabalho formal, o que impõe uma posição
marginalizada na divisão social do trabalho.
A colonialidade contribui para a destruição de outras formas de vida, de ser, de
cosmologias, que não sejam ocidental eurocentrada. De toda forma, o racismo e o
sexismo são duas dimensões que também atravessam esse conflito; mulheres indígenas,
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ciganas, negras, “subalternas das subalternas (mulheres brancas) e dos subalternos
(homens indígenas, negros, ciganos etc), experimentam múltiplas opressões como
mulheres, indígenas e pobres, e como uma minoria dentro da minorias” (BIDASECA,
2011, p. 81-82). Nas palavras das feministas romani Nicoleta Bitu e Enikő de Vincze, “é
preciso pensar e agir de maneira interseccional para entender que temos sido sujeitas
a várias exclusões e discriminações. A solidariedade entre as mulheres de diferentes
etnias, idades e classes sociais não é apenas um jogo emocional. É uma opção política,
como o próprio feminismo” (2012, p. 45, tradução nossa).
De acordo com Nicoleta Bitu e Enikő Vincze, o feminismo cigano é uma forma de pensar
sobre os meios e significados de uma investigação de ação sociocultural que liga a análise
descritiva, crítica e desconstrutiva de relações de poder com um compromisso ativista
(empoderamento) para desenvolver perspectivas críticas e práticas de pessoas em
posições desfavorecidas. Propor valores feministas – cigano/romani/calon73, chicano,
indígena, negro etc - para toda a sociedade significa aprofundar nossa democracia
no sentido de promover maior igualdade entre todas e todos, levando em conta que
o patriarcado não é “uma forma de dominação masculina universal, a-histórica,
essencialista e indiferenciada sobre classe ou raça”. (BIDASECA, 2011, p.66).
4 - Considerações finais
A proposta do presente estudo é contribuir para pensamento crítico no direito e nos
direitos humanos, que estimule reflexões e ações que articulem raça, gênero e classe,
combatendo a naturalização do anticiganismo em nossa sociedade. A transformação da
realidade, no sentido de melhorar - material e subjetivamente - a vida das pessoas que
ao longo da história foram e ainda são colonizadas, subalternizadas, não depende apenas
do direito, vem de fora (da sociedade) para dentro, mas passa por ele (sistema de justiça,
faculdades de direito, etc), bem como pelos meios de comunicação e outras instâncias de
poder que devem ser disputadas.
O mito da superioridade branca e masculina, que fundaram a modernidade e permanece
no contexto pós-colonial, encontra no Estado e no Sistema de Justiça o suporte que
reforça e ao mesmo tempo é indiferente às discriminações e opressões vivenciadas pelos
calon, e, especialmente, pelas calin. Na medida em que os órgãos estatais descartam o
cumprimento da lei, quando estão diante de denúncias da ocorrência de racismo, percebe-se
a seletiva inefetividade material protetiva dos direitos humanos, sobretudo para os ciganos.
É indispensável que os movimentos sociais, ciganos ou não, denunciem esse cenário e
transformem-no em combustível para impulsionar as lutas por transformação social.
73. Nas palavras da feminista romani Alexandra Oprea (2010), o esforço do feminismo cigano, hoje, é criticar as estruturas patriarcais internas, tentando ao mesmo tempo reforçar os estereótipos negativos sobre a comunidade, ou seja, evitar que as reivindicações de gênero se
tornem em instrumento de alteração e estigmatização de um grupo subalterno e racializado.
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Os dois casos narrados, ainda que se manifestem de formas diferentes, revelam que a
prática, a incitação ou a indução do preconceito contra os povos ciganos é dificilmente
investigada pelos órgãos de controle competentes. São arquivados, aceitam-se transações,
mesmo quando é obrigatória a proposição de ação penal. A crítica do presente estudo
não pretende fortalecer a essência do atual sistema penal e a lógica de encarceramento
em massa que, acima de tudo, é racista. Se o Estado brasileiro faz uma opção pela
tipificação penal de certas condutas, como o racismo, mas aplica o direito penal,
institucionalmente, de forma seletiva, preferindo a abstenção em situações envolvendo
acusação do crime de preconceito, é possível afirmar que o Sistema de Justiça Penal se
constitui, essencialmente, como um instrumento legitimador do projeto capitalista de
controle social das populações indesejadas e a exclusão desse excedente populacional.
Cabe abrir mão também da ideia de que o cumprimento da lei, a responsabilização penal
dos autores de condutas preconceituosas ou a positivação de direitos são as únicas
ou as principais estratégias para enfrentar o racismo contra os calon. Romper com a
seletividade do direito penal, descolonizar o saber e os poderes hegemônicos, enfrentar
o racismo e o anticiganismo institucionalizados demandam esforços e ações que não
podem ser dependentes do provimento e intervenção estatal. No entanto, não se pode
também ignorar o potencial que o aparato estatal — mediante captação de recursos,
editais, políticas públicas — têm na melhoria das condições concretas de vida das calin e
dos calon, buscando atender necessidades imediatas e, ao mesmo tempo, incentivando a
organização desses grupos étnicos em torno da luta por direitos, criando condições para
pautar a emancipação de todos seres humanos.
Com a contribuição do feminismo cigano/romani/calon, chicano, indígena e negro, dentro
e fora da academia, é possível pressionar, assim, para que as lutas pela emancipação
humana sejam construídas de forma interseccional e orientada para o fortalecimento
das organizações políticas - com autonomia – que incluam em seus projetos as pessoas
historicamente oprimidas, subalternizadas e colonizadas em nossa sociedade.
138
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Anexos:
Imagens 1 e 2
Publicação na rede social Instagram que expõe a duas calins
e os respectivos comentários à postagem.
Fonte: Acervo do autor (2017).
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Imagens 3 e 4
Comentários à reportagem que fala na suposta perseguição
e ameaça praticada por uma “baiana” que faz leitura de mão.
Fonte: Acervo do autor (2017).
Imagem 5
Charge do perfil “@dona.anesia”.
140
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Entre a violência doméstica e a
sub-representação de mulheres
na política: uma breve análise
da violência contra a mulher
no Brasil e da violência política
contra as mulheres.
Roberta Cristina E. dos S. Silva
Introdução
A violência contra a mulher é um tema que, enunciado desta forma, pode ser considerado
jovem se comparado aos demais grandes temas que provocam a atenção das pesquisas
nas ciências humanas e sociais, ainda que a luta por igualdade de condições e direito das
mulheres no mundo e no Brasil sejam seculares. Embora as desigualdades entre homens
e mulheres não tenham sido ignoradas na história e muitas ações tenham sido realizadas
para modificar tal quadro (como exemplo a luta pelo sufrágio universal), o patriarcado
enquanto um sistema de poder seguiu conferindo posição privilegiada aos homens, por
meio do afastamento direto e indireto das mulheres dos espaços de poder, da divisão
sexual do trabalho, ou mesmo das violências domésticas, familiares e sexuais,– o próprio
enfrentamento às desigualdades estruturais contra as mulheres se manteve centrado
em políticas públicas que buscavam garantir suas vidas como dos pontos de abertura, já
que não era possível dar conta de todo sistema de uma só vez. Assim, a violência política
contra as mulheres, enquanto um conjunto de práticas que por ação ou omissão tem por
objetivo impedir o exercício político das mulheres, foi pouco analisada e enfrentada, a
despeito das crescentes ações de enfrentamento a violência contra a mulher no Brasil.
É possível considerar a violência contra a mulher no Brasil como um problema endêmico.
O Atlas da Violência de 2020 (CERQUEIRA, ET AL, 2020, p.34), que compreende uma análise
dos anos 2008 a 2018, reporta que no ano de 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no
Brasil representando uma taxa de 4,3 mulheres por 100 mil habitantes, sendo que 68
% das vítimas foram mulheres negras. Apenas no ano de 2016 foram registradas nas
delegacias 49.497 casos de estupro e no SUS foram 22.918 casos de violência sexual. Sabese, contudo, que embora esses dados sejam alarmantes eles não refletem o tamanho real
deste problema devido à alta subnotificação.
Marcos legais tiveram um importante enquanto ferramentas no combate à violência
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
doméstica e sexual. Temos, como exemplo emblemático a Lei 11.340/2006, também
nomeada de Lei Maria da Penha, que foi o resultado da articulação do movimento
feminista, de organizações do terceiro setor e do poder público, que estabeleceu
parâmetros normativos para o combate à violência contra a mulher no Brasil. Como ações
práticas decorrentes da Lei Maria da Penha temos o desenvolvimento de campanhas de
conscientização sobre este tema enquanto um problema público e cotidiano no Brasil,
a criação de canal para as denúncias, este último possibilitando que não apenas as
mulheres fossem acolhidas ao tempo da ameaça ou violação a sua integridade física
mais que também que dessas denúncias se transformassem em dados que refletissem a
situação da mulher no Brasil.
Contudo, a violência contra a mulher é problema multifacetado e de raiz patriarcal, que
utiliza diferenças sexuadas para produzir assimetrias na garantia de direitos e exercício
de poderes na vida de todas e todos, agravando-se quando interseccionado com outras
opressões, como a produzida pelo racismo e pelo capitalismo. Ainda assim, a luta pelo
reconhecimento de que desigualdades podem representar violências contra as mulheres
peleja em diversos outros campos, como na política.
A sub-representação das mulheres na política institucional é um dado que compartilha da
mesma matriz que a violência doméstica, resultado das dinâmicas desenvolvidas em uma
sociedade patriarcal. O Brasil hoje se situa na 140 (MAPA MULHERES NA POLÍTICA, 2020)
posição no ranking sobre representatividade feminina no poder executivo, considerando
o executivo Municipal, Estadual e Federal. Este dado é fruto do levantamento feito pela
União Inter Parlamentar (IPU) e ONU Mulheres, que apresentam anualmente um Mapa
Global das Mulheres na Política.
Por meio de uma breve análise sobre a situação da violência doméstica e sexual contra
as mulheres e a sub-representação das mulheres na política brasileira fica claro que
a despeito da relevância desses temas o Brasil ainda está longe de combatê-los com
efetividade. Ainda que em relação a uma das expressões da violência patriarcal (a
violência doméstica e sexual) possamos notar a existência de crescentes políticas para
o enfrentamento a essa realidade, da mesma feita é possível afirmar um grande lapso
no que tange o enfrentamento à violência contra a mulher na política, que pode ser
identificado como um hiato entre o enfrentamento à violência contra as mulheres no
espaço público e a proteção da vida das mulheres por meio de políticas públicas no
espaço privado. Se a violência contra a mulher é endêmica no Brasil e temos uma sub
representação das mulheres nos espaços de poder, por quê a análise da violência política
contra as mulheres não é fruto de ações de enfrentamento organizadas, como a violência
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doméstica e sexual? Quais as particularidades entre o espaço público e o privado que
impossibilitam a problematização da violência nos espaços públicos, em especial, nas
disputas eleitorais e exercícios de mandatos eletivos? Seria a violência política contra as
mulheres um problema que mereça esta análise? Essas são algumas das perguntas que
conduzem o trabalho que aqui se apresenta.
Na pesquisa “O Perfil das Prefeitas no Brasil – 2017-2020” (MELCHIORI, Cintia Ebner, et.
al, 2018), foi mapeado o perfil das prefeitas brasileiras com mandatos em exercício de
2017-2020 e dentre as perguntas realizadas duas merecem destaque para o tema que ora
se aborda: 1) qual a sua principal dificuldade para acesso e permanência na política? e
2) você reconhece que já sofreu violência política por ser mulher? Em relação à primeira
pergunta obteve-se como resposta em primeiro lugar o falta de recursos para campanhas,
em segundo o assédio e a violência política por ser mulher e em terceiro a falta de espaço
nas campanhas de radio e tv comparativamente aos homens. Diante da segunda pergunta
53% das prefeitas responderam assertivamente a questão. Atento a esta realidade, ainda
pouco evidenciada, também se propõe o presente trabalho a entender como a violência
política contra as mulheres no Brasil se efetiva e dissemina —embora não seja alvo de
ações— como um problema para a vida das mulheres na política.
A violência política contra as mulheres, enquanto fenômeno, é compreendida como o
conjunto de ações que visam anular, restringir, impedir, ameaçar, manipular ou coagir
o exercício político das mulheres. Estas ações são analisadas pela matriz patriarcal, que
aqui se compreende como gestora e mantenedora das violências experimentadas pelas
mulheres. Contudo, no Brasil, esta violência tem recebido nomes diversos pelas mulheres
na política, nomes que registram ora o tipo da ação, ora a forma ou espécie da violência,
mas não o conceito que abriga as discriminações, qual seja, somente violência política.
Assim, é comum que as políticas brasileiras chamem de machismo e assédio, mas não tão
comum que declarem o sofrido como violência ou assédio político. Apesar da polifonia
acima mencionada, os fatos nos trazem as evidências necessárias para o reconhecimento
do problema: mulheres na política sofrem violência por serem mulheres e disputarem
(no sentido do exercício político) este campo. A isso dá-se o nome de violência política
contra as mulheres ou violência política de gênero.
Deste modo, reconhecendo a violência política contra as mulheres como advinda da
mesma matriz patriarcal das outras violências contra as mulheres, se buscará refletir
brevemente sobre a relação da base da da violência contra a mulher, como meio de ensaiar
respostas sobre os desafios e enfrentamentos necessários para este novo conceito de
velhas raízes.
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1. As bases da violência contra a mulher no pensamento da Dra. Rita Laura Segato.
O mandato de violação, como Segato (2003, p.2) nomeia a autorização inominada dentro
do patriarcado para a perpetração das diversas violências contra as mulheres, organizase de modo horizontal e vertical. Verticalmente, entre as posições hierárquicas distintas e
horizontalmente, por meio do compartilhamento de ações que se autoreforçam gerando
um ciclo não regular, mas retro-alimentado, de violência.
Para Segato (2003, p.5), é importante que se compreenda como a violência se estrutura,
mas também como direito e as leis são meios de manutenção desse mandato, mesmo que
por vezes regulem o enfrentamento a algumas expressões dessas violações. No texto “La
argamassa Jéraquica: Violencia moral, reproducion del mundo y eficacia simbolica del
derecho.” (SEGATO, 2003) a autora busca demonstrar como há algo ilegítimo e artificial
no que se refere a ordem que instaura a lei, sendo fruto da ordem patriarcal.
A abordagem das base da violência, nesse contexto, não poderia prescindir da observação
de como o patriarcado estrutura as relações, mas também importa para a autora que
sejam analisados os mecanismos de manutenção dessa ordem dentro do Estado. Revela
assim como a violência moral, por ela assim nomeada, fundamentou os mecanismos que
“legitimados por lo costumbre, para garantir el mantenimient de los status relativos
entre los términos de género” . (SEGATO, 2003, p.2)
E segue a autora afirmando que “estos mecanismos de de sistemas de statos operam
tambiem en el control de la permanência de jerarquias en otros ordens, como el racial,
el étnico, el de classe, el regional y el nacional” (SEGATO, 2003, p.3).
A autora remonta, no texto acima mencionado, como a violência psicológica ou moral
guarda em si a “novidade” em termos de reconhecimento do que é violência contra a
mulher, tendo em vista que, até o século XIX (com resquícios culturais que perduram até
os dias atuais) a agressão física era a única forma reconhecida, com esforço, de violência
doméstica ou sexual.
Não se trata de uma forma de hierarquizar esses tipos de violência, mas sem dúvida
aponta a autora como a violência moral (ou psicológica) guarda o cerne do mandato
de violação contra a mulher. Dessa forma Segato explora o conceito de violência moral
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
como o mais eficiente para a reprodução das desigualdades e de controle social. Por
certo falamos de uma violência estrutural que tem como objetivo final a manutenção de
um modelo de opressão – ou seja, de controle e poder. A dificuldade de caracterização e
ausência de marcas físicas da violência moral e psicológica, representa no campo jurídico
uma das razões de perpetuação deste ciclo. Assim, expressa a autora que
“Por su sutileza, su caráter difuso y omniprescencia, su eficácia máxima es el
control de las categorias sociales subordinadas. En el universo de las relacioes
de género, la violencia psicológica es la forma de violencia más maquinal,
rutinaria e irreflexiva y,sen embargo, constitue el método más eficiente de
subordinación y intimidación.” (SEGATO, 2003, p.7)
Seria, portanto, a violência moral (assim também compreendida como violência
psicológica pela autora), uma das bases da violência contra a mulher dentro da
ordem patriarcal, haja vista que esta, ao passo que não deixa marcas evidentes, tem
ao mesmo tempo ampla capacidade de disseminação por meio de compartilhamento
de comportamentos que a reproduzam, e que são naturalizados, tidos como normais.
É também facilmente absorvida e retroalimentada por valores morais e religiosos e,
por fim, encontra-se maior dificuldade de nomeação das ações que materializam sua
expressão, levando, portanto, a maior dificuldade de elaboração de mecanismos de
denúncia, por parte das vítimas e de coerção, por parte do Estado.
Deste modo a violência moral é tida como uma das bases da violência contra as mulheres
pois as formas de invisibiliza-la ou menospreza-la diante das demais formas de violência
possibilitam a sua perenidade. A representação e reconhecimento da violência psicológica
é de grande dificuldade, pois confunde-se com a própria raiz de onde deriva, que é a
hierarquia de poder e a distribuição de valor e de opressão por meio do patriarcado.
Segato reconhece a violência moral como um grande instrumento de alienação dos
direitos das mulheres, embora pouco difundido e combatido mesmo nos programas e
políticas de direitos humanos e das mulheres. Assim, empreende a autora, um breve
levantamento de quais são as formas mais comuns de violência moral na América Latina,
elencando : a) controle econômico; b) controle da sociabilidade; c) controle da mobilidade;
d) menosprezo moral; e) menosprezo estético; f) menosprezo sexual; g) desqualificação
intelectual e h) desqualificação profissional.
Há, portanto, expressões (ações) da violência moral em diversas outras formas
reconhecidas —e algumas tipificadas no Brasil— de violências contra a mulher. E neste
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ponto, faz-se importante observar que essas violências são vivenciadas também através
de outras formas de opressão, algumas tão silenciadas quanto a de gênero, como as
opressões de raça e classe. Olvidar o racismo e as questões de classe e sexualidade quando
são analisadas formas de opressão coloniais pode induzir a hierarquizações improdutivas
para o enfrentamento a cada uma e a todas essas violações simultaneamente.
Compreende-se, portanto, a violência de gênero enquanto um mandato de poder, que
tem como base de expressão a violência moral, silenciosa – pois inaudita-, permeável
e que impõe desafios a sua apreensão, por ser absorvida por formas de sociabilidade
e relações familiares e religiosas que são utilizadas como um véu de proteção a seu
enfrentamento.
2. Ligando os pontos: o enfrentamento à violência doméstica e familiar e a violência
política contra as mulheres
A sessão anterior permitiu que fossem observadas a questões sobre em que base se
organiza a violência contra a mulher e como podemos analisar esta violência para a
manutenção da opressão de gênero. Assim, a violência moral (ou psicológica) foi desvelada
como uma das formas de violência contra a mulher que possibilita que o mandato de
violação de gênero e suas variantes seja exitoso.
Contudo, embora a violência moral enunciada tenha como característica sua ampla
possibilidade de não nomeação ou identificação, por ser absorvida por questões morais,
familiares, religiosas, etc, tal fato não foi capaz de impedir a tipificação da violência
moral na Lei Maria da Penha ( Lei 11.340/2006), como uma das formas de violência
doméstica e familiar a ser combatida.
Assim, é importante que seja realizado neste trabalho, para facilitar a compreensão do
texto, a distinção da violência moral conceituada por Segato e a violência moral tipificada
na Lei Maria da Penha. Deste modo, abordaremos a violência moral que encontra-se na
base das violências contra as mulheres, na base do patriarcado, como violência moral
estrutural e, acerca da violência moral tipificada nas leis e tratados sobre direitos e
proteção da mulher, como violência moral e /ou psicológica, apenas.
Atualmente é possível falarmos, no que tange o debate político sobre a violência
doméstica e familiar e as suas formas de enfrentamento, que o conjunto de ações que
foram impulsionadas através da Lei Maria da Penha, junto com as ações das Secretarias e
órgãos dos Estados, constituem importantes mecanismos para a rede de enfrentamento
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
à violência doméstica e familiar, que certamente alçaram a outro patamar a proteção às
mulheres no Brasil. Mesmo que os dados já apresentados apontem um universo ainda
muito perverso para as mulheres brasileiras, sobretudo para as mulheres negras e pobres,
é necessário que se destaque que, se as altas taxas de vítimas revelam, por um lado, um
cenário onde as mulheres são mortas e violentadas diariamente, por outro lado, sabese que estes dados são fruto, exatamente, do acesso das mulheres às políticas públicas
voltadas para o combate a essa realidade. Como explica Segato (2003, p.3), o mandato de
violação que permite as violências de gênero se estruturem vertical e horizontalmente, e
atualiza a reprodução horizontalmente, levando a devolução do poder àqueles que estão
em posição de vantagem, o mesmo também ocorre verticalmente, contudo, quebrando o
ciclo. Ou seja, é através das ações de enfrentamento à violência que as mulheres podem
encontrar formas de romper coletivamente com ciclos de violência.
Esta análise importa para refletirmos sobre as possíveis relações entre a sub
representação das mulheres nos espaços de poder, a violência contra as mulheres e a
iolência política contra as mulheres. Aqui, para permitir uma análise mais detida, será
observada a situação das mulheres no comando dos municípios do Brasil, ou seja, as
Prefeitas Brasileiras com mandatos entre 2017-2020.
No ano de 2016 houve um decréscimo 3% no número de mulheres no comando das
Prefeituras no Brasil em relação às eleições de 2012, sendo o número de mulheres no
comando das Prefeituras no Brasil entre 2017 e 2020 de apenas 649. Ainda assim, o
ano de 2016 foi o primeiro no qual se ultrapassou os 30% de candidaturas de mulheres
determinados por lei, chegando a 32% o total de candidaturas de mulheres neste ciclo.
Analisar o local da mulher na política municipal é de grande importância para o debate da
sub-representação já que é através da política local que a maioria das mulheres ingressa
na política (não apenas por meio dos cargos eletivos, mas também na composição da
estrutura política das câmaras e prefeituras).
Até o ano de 2020, dos 5.568 municípios que existem no Brasil apenas 649 eram
comandados por mulheres e desses apenas 184 por mulheres negras, autodeclaradas
pretas ou pardas. Esses dados revelam sobre o quão agudo é o problema da subrepresentação das mulheres na política, em especial a sub-representação de mulheres
negras, que encontram-se dentre os grupos mais sub-representados na política, ainda
que sejam o maior grupo populacional (28 %).
Infelizmente não revela espanto a ausência de mulheres negras dos espaços de poder no
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
Brasil. Os estudos, campanhas ou ações políticas que interseccionam gênero e raça no
campo da representação política ainda não tem grande lastro público. Como afirmam as
pesquisadoras Rios, Pereira e Rangel (2017, p. 39-44) :
Por muito tempo, os estudos sobre desigualdades de raça e gênero andaram
apartados. Apesar de trabalharem com a temática das desigualdades na
política considerando características adstritas, as pesquisas sobre as relações
raciais nesse campo não dialogavam com as pesquisas sobre gênero e viceversa. Dentre as diversas razões que explicam tal realidade, uma delas pode ser
atribuída à ausência de informações sobre cor nos documentos e estatísticas
oficiais produzidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A emergente
bibliografia sobre a sub-representação feminina contrasta com a escassez de
estudos sobre a marginalidade da população negra nas instituições de política
formal no Brasil. Como assinalaram Luiz Campos e Carlos Machado (10),
pouco se sabe sobre os mecanismos sociais e institucionais que favorecem
o predomínio de brancos nos quadros eleitos e até mesmo sobre a fase da
carreira política em que os negros são afastados da representação.
O Tribunal Superior Eleitoral só introduziu a pergunta sobre o pertencimento étnicoracial dos candidatos aos cargos eletivos no ano de 2014, levando a inexistência de dados
em seu banco que pudessem ser analisados sobre os critérios de raça e interpretados em
conjunto com os demais até poucos anos atrás.
O próprio debate conceitual e os marcos legais que provocam sobre as ausências das
mulheres nos espaços de poder e da política institucional, de modo endereçado como
problema público, tem cerca de três décadas no Brasil, sendo provocado de modo
organizado pelas mulheres da Constituinte de 1988/89. Ainda assim, o local das mulheres
negras na política seguiu invisibilizado, absorvido ou não pela pauta do movimento de
mulheres, a despeito da importância e da luta de mulheres negras na própria Constituinte,
como exemplo da Deputada Benedita da Silva e da socióloga Lélia Gonzalez (SHUMAHER;
CEVA; p.512, 2015).
Não obstante a sub-representação de mulheres, com destaque para mulheres negras,
indígenas e LBTQI+, nos deparamos com o fato de que essas mulheres ao ocuparem
a política, simplesmente por estarem em um lugar de poder e legitimadas através do
voto por seus eleitores, não estão protegidas contra as demais formas de opressão, em
específico as de gênero. E a esta ausência de proteção, bem como aos próprios ataques,
ameaças, omissões, que tenham por objetivo direto ou indireto violar os direitos políticos
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
das mulheres, nomeia-se de violência política contra as mulheres (ou violência política
de gênero).
E este é o ponto onde a lacuna do campo público e privado se expõe. Se diante da
violência doméstica e sexual – e também do feminicídio- a violência moral estrutural
ocupa importante local no campo discursivo, já que sustenta o debate sobre a ampliação
das violências contra as mulheres, mesmo daquelas que não sejam físicas ou sexuais,
por outro lado, no campo político há notória barreira para a compreensão desta mesma
violência moral estrutural como a base das diversas agressões, cercamentos, ameaças e
até assassinatos políticos de mulheres.
A Declaração sobre a Violência e o Assédio Político Contra as Mulheres, produzida pelo
Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (Convenção esta da qual o
Estado Brasileiro é consignatário), reconhece que para o alcance da paridade na política
e na democracia se faz necessária uma abordagem integral sobre a experiência das
mulheres na política. Ou seja, para além do acesso, as mulheres precisam de exercícios
políticos livres de discriminação. Entretanto, parece que este cenário ainda encontra-se
distante do espaço da política brasileira.
E aqui, mais uma vez, é urgente que seja retomado o pensamento de Segato. Para a autora
a violação funciona como um meio de restaurar o poder (SEGATO, 2003, p.5). De modo que,
a violência moral estrutural atua invisibilizando os mandatos de violência de gênero nos
espaços de poder, por meio da ficção de que o ambiente político é violento por natureza.
Assim, busca-se manter as mulheres na política ora super feminilizadas, como se a sua
condição de gênero fosse um atributo que as docilizasse. Mas, quando estratégico, esta
mesma categoria dos atributos femininos é utilizada de modo depreciativo, para indicar
falta de força e inabilidade para o espaço público. São comuns também as ofensas que
utilizam a categoria da masculinização dessas mulheres na política como uma grande
anomalia e problema para a performance de gênero “esperada” nesses espaços. Nada tão
exemplificativo da violência moral estrutural na política, inclusive.
A violencia moral estrutural, assim, não é exclusiva do campo da violencia doméstica e
sexual, mas sim base do patriarcado, espraiando-se pelas diversas formas de expressão
dos mandatos de violação contra as mulheres – inclusive, na política. E, tal como no
campo da violencia doméstica e sexual, urge que a violencia política contra as mulheres
seja compreendida e enfrentada como uma das expressões da opressão patriarcal na nossa
sociedade. Somente assim será possível que formas de organização e enfrentamento à
violencia política possam ganhar força na sociedade brasileira.
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R O B E R TA C R I S T I N A E . D O S . S I LVA
3. Considerações finais
Compreendendo que a violência e o assédio contra as mulheres na política constitui uma
série de ações que afetam o exercício dos direitos políticos das mulheres e prejudicam
tanto a sua participação, assim como a qualidade da própria democracia, quais ações
poderiam ser desenvolvidas para auxiliar nas políticas de enfrentamento à violência
política nos países da América Latina ou colaborar com o registro da inexistência
desses marcos? Esta autora acredita que correlacionar a violência doméstica e sexual,
já amplamente reconhecida como um problema público na sociedade brasileira seja um
dos caminhos.
É sabido que na América Latina, dos 21 países, ao menos 17 têm legislações específicas
sobre o combate a violência contra a mulher e desses, 3 países (Bolívia, México e
Peru) já têm legislação própria sobre o enfrentamento à violência política contra as
mulheres. É importante, ainda assim, que se destaque que em outros 4 países países
(Brasil, Costa Rica, Honduras e Equador) existem projetos de lei em tramitação voltados
para a temática da violência política. Contudo, ainda que as leis informem sobre as
problemáticas reconhecidas, ao mesmo tempo também podem servir para a manutenção
destes cenários. Em sintese, a simples existência de arcabouço legal sobre o tema não é
suficiente para pôr fim no quadro de subrepresentação feminina e mesmo das práticas
violentas experimentadas pelas mulheres na política.
Os direitos políticos das mulheres não tem início, meio, ou fim no curso de um mandato ou
cargo público. Esses são direitos inerentes à vida em sociedade, direitos que guardam em
si outros tantos direitos sociais e humanos. As reivindicações pela proteção dos direitos
políticos das mulheres brasileiras deveria constituir uma das bases que sustentam o
debate sobre a ausência das mulheres nos espaços de poder. As barreiras do acesso não
estão apenas nos baixo recursos para campanha, tempo de propaganda, mas, outrossim,
encontram-se constituição dessas barreiras em espécie, da qual a violência política
é uma das expressões, ou seja, encontram-se nas raízes do patriarcalismo, tendo por
berço a violência moral-psicológica como instrumento opressão. A fase pré eleitoral,
por exemplo, pode ser compreendida de modo mais amplo do que apenas o período das
eleições, ela se constitui anteriormente, nos espaços políticos ocupados por mulheres. E
as barreiras podem ser vistas já nessa fase, quando as filiadas aos partidos não ocupam
os espaços decisórios nessas instâncias, quando são assediadas por serem solteiras ou
assediadas por serem casadas (e estarem “abandonando” seus lares ao ir para a política),
dentro dos conselhos políticos comunitários, etc. Sobretudo, o direito das mulheres na
política de gozar de seu exercício político eletivo ou comissionado livre de violência
deveria ser um direito fundamental em qualquer democracia, já que a violação deste
direito pode constituir o início de uma cascata de barreiras, nem sempre nomeadas, mas
sem dúvida, devastadoras para nossa organização política e social.
152
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Mulheres, feminismo
e resistência política
Vanessa Oliveira Batista Berner
Introdução
O tema central deste texto é o feminismo como projeto político. Partirei do conceito
de fascismo como movimento social e político contemporaneamente revisitado para,
em seguida, me debruçar sobre o elemento que causa a maioria dos nossos dilemas no
mundo contemporâneo: o Estado. Mais especificamente, o chamado Estado Democrático
de Direito. A proposta é abordar, numa perspectiva feminista, a relação entre essa
instituição da modernidade com os igualmente modernos Direitos Humanos. Tratase de um grande desafio em tempos de pouca democracia, de violação sistemática de
direitos e, ao mesmo tempo, de busca incessante por um feminismo em comum.
A primeira questão que temos que enfrentar para cumprir esta tarefa é compreender
qual é, e onde se centra, a política do Estado no sistema capitalista e como o fascismo
nele se instala. É o Estado que organiza a sociedade, regulando as relações entre os
detentores do poder e dos lucros com aqueles que vendem seu tempo e sua força de
trabalho. O trabalho, portanto, é absolutamente central no mundo contemporâneo. É em
torno dele que se configura o poder do Estado. E a maioria de nós somos trabalhadoras
e trabalhadores.
Por que temos que falar disto? Porque, ao regular essas relações, o Estado disciplina os
diversos perfis de subjetividade que cada um de nós carrega: homens, mulheres, pessoas
LGBTQI+, transexuais, negros, negras, indígenas, imigrantes... Essa normatização do
que somos a partir do poder estatal é a raiz do fenômeno que hoje conhecemos como
“a invenção do outro”, sendo a alteridade uma categoria necessária para o processo
produtivo nas sociedades ocidentais a partir do século XVI.
Isto entendido, temos que verificar quais são os mecanismos utilizados pelo Estado para
exercer esse poder disciplinar. O Direito – em sua concepção regulatória que visa a uma
suposta pacificação social, ao regular condutas individuais e coletivas – é o meio pelo
qual o Estado impõe os limites disciplinares. As dimensões de constituição de direitos
154
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
(elaboração do conjunto normativo), efetivação das garantias legais subjetivas (elaboração
de políticas públicas) e dissolução de conflitos, seja pela não efetivação daquelas garantias
ou pelas suas violações (poder jurisdicional) é função típica e privativa do Estado e, nesta
esteira, representa o arcabouço que “legitima” seu poder disciplinar.
Nas sociedades latino-americanas, o poder estatal tem se valido das constituições,
dos manuais de urbanidade e das regras gramaticais dos idiomas. Em outras palavras:
nossa subjetividade se legitima na escrita! Esta é a lógica civilizatória seguida à risca
pelo colonizador nas Américas: a civilização por meio da linguagem. Devemos, então,
problematizar o discurso que hoje impera nas principais democracias ocidentais,
regidas pelo Estado Democrático de Direito. Trabalhar outra ideia de igualdade e de
cidadania, pois essas palavras traduzem conceitos vagos utilizados para designar o que,
na verdade, são privilégios culturais e políticos. É sobre isto que quero falar, com o
objetivo de discutir os papéis de gênero e sua influência na democracia contemporânea,
especialmente no Brasil.
1. O fascismo revisitado
Theodor Adorno (1995b), em palestra transmitida pela rádio de Hessen em 18 de abril
de 1965, disserta sobre as pessoas que possuem o potencial fascista. Ele explica que elas
são incapazes de lutar por autonomia, são gente conformada, que acredita no poder e
na força do ‘universal’ para solucionar os problemas da humanidade: “eles representam
a identificação cega com o coletivo”. Massa de manobra. Pensam estar inseridos em um
movimento, mas isto não passa de uma ilusão: a sensação de estar entre iguais, protegido
contra o poder, não deriva de sua integração a uma “comunidade”, mas é tão somente a
identificação que têm as pessoas autoritárias com o poder em si mesmo, não importa
qual seja seu conteúdo. É que essas pessoas são fracas individualmente e precisam se
compensar numa identificação grupal, em grandes coletivos que lhes proporcionarão
proteção para a manutenção de seus privilégios.
A personalidade autoritária deseja que a ordem seja sustentada por um grande aparato
estatal, governada com rigor e violência. Esse tipo de personalidade se identifica com os
valores do nacionalismo, originando o orgulho nacional, o ufanismo. O sujeito fascista
não tem consciência de ter uma missão histórica em comum, até porque ele não é
bem formado. Isto o torna facilmente manipulável. Trata-se de um antidemocrata. Os
regimes totalitários sempre usaram os meios de comunicação para insuflar este tipo
de “personalidade forte”, ressaltando seus valores políticos e estéticos no imaginário
popular. Não por acaso, o Ministério da Propaganda do governo nazista era o mais
155
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
importante quadro na Alemanha de Hitler. Nenhum ministro era mais poderoso que
Joseph Goebbels. A mídia contemporânea, organizada em grandes comglomerados de
alcance global, as redes sociais e muitas mídias digitais fazem este papel, fomentando
nas pessoas o traço autoritário e explorando sua própria fraqueza: o uso de palavras de
ordem, a defesa das forças armadas, dos símbolos nacionais, dos valores tradicionais… O
resultado? Conservadores agindo em bando.
Leandro Konder (1977) nos lembra da facilidade com que o fascismo se adaptou na Itália
de Mussolini, apresentando-se ora como republicano, ora como monarquista, e até
mesmo como “obreirista”. Ou seja, ao gosto do freguês, mas sempre acompanhado de
uma violenta repressão. Um movimento eficaz. Boa parte da resistência ao fascismo
se deu no meio artístico e intelectual. Não significa que a classe artística estivesse
imune. O que se quer dizer é que os artistas e intelectuais, por não serem beneficiários
diretos das vantagens econômicas da propriedade capitalista, não se viam na posição de,
necessariamente, ter que defender ou contestar o regime. Lá e cá, ontem e hoje, isto não
mudou. A desidentificação com o sistema tem a ver com a própria função social desses
atores, que consiste em construir representações e/ou interpretações da realidade a
fim de que as pessoas possam reconhecê-la por meio da sensibilidade ou da reflexão
intelectual.
É importante frisar que o fascismo tem uma estética própria. Na Alemannha do
período nazista, a política era tratada como espetáculo, o cinema como arte de fazer
propaganda partidária, a música e as artes visuais, como instrumentos de valorização do
nacionalismo germânico. E, claro, imperava o silenciamento dos opositores ao regime,
dos “fora da curva” do sistema. No Brasil, a memória da ditadura civil-militar só pôde ser
resgatada, em parte, pelas lembranças daqueles que viveram no subterrâneo do regime,
como os militantes de esquerda derrotados ou os próprios militares discordantes. Para
reconstruir nossa História desse período muitas vezes os pesquisadores tiveram que
recorrer à “história oral” para preencher vazios deixados pelos arquivos oficiais. Porém,
outra fonte importante para os historiadores foram os registros dos órgãos diretamente
relacionados aos “porões da ditadura”, os órgãos repressivos do regime, como o Serviço
Nacional de Informações (SNI); o Centro de Informações do Exército (CIE); e a Assessoria
Especial de Relações Públicas (AERP): a censura das diversões públicas tinha caráter
prévio em sua grande maioria e, quase sempre, se estabelecia a proibição da divulgação
das obras. Essa “censura prévia” era admitida pelos militares abertamente, com base em
normas jurídicas, como o Decreto-lei 1.077, que determinava o controle da TV, revistas e
livros. Há similaridade com os tempos atuais. Em setembro de 2017, a “estética desviante”
da exposição Queermuseu foi objeto de protesto por parte de grupos organizados, como
associações religiosas e o Movimento Brasil Livre (MBL)74 . Naquela ocasião, escrevi com
74. O MBL se define como “uma organização não governamental de ativismo político”, e defende propostas como, por exemplo, a “escola
sem partido”, a abertura do mercado hospitalar a empresas estrangeiras, a privatização ou transformação em PPPs dos serviços municipais de saneamento básico, o sistema parlamentar inspirado no modelo alemão, a privatização da Caixa Econômica Federal, a privatização
dos presídios e o fim da função social da propriedade. Suas propostas liberais não guardam nenhuma empatia social, sendo claramente
voltadas para a divulgação de ideias interessantes para o capital e nefastas para a maior parte da população brasileira.
156
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
um grupo de alunas de pós-graduação um artigo75 sobre o ocorrido, em que analisamos
o perigoso abismo no qual estamos caindo:
(…) a censura à exposição Queermuseu (…) encontra-se na limitação da arte sob
justificativas ora moralistas (declaradamente) ora burocráticas, que tendem
a afirmar o que é melhor para todos, mas sempre, curiosamente, deixam os
mesmos grupos contra-hegemônicos de fora deste “universo dominante”. É
o todo representado pelo branco, burguês, cristão, empresário, masculino,
heterossexual e claro, despido de preconceitos. É o todo de sempre
Na realidade, quem efetivamente “comanda o carnaval” é a elite dominante, auxiliada
pela mídia que ela mesma controla. Juntas, aprofundam as contradições internas do
sistema, por meio de pressões econômicas76, de intrigas e de benefícios lisonjeiros
para os aliados. Adorno (1965) demonstra como as pessoas autoritárias dirigem sua
libido para as mercadorias: a fetichização. Ele registra, em sua pesquisa, que aqueles
indivíduos afirmavam que amavam mais equipamentos e objetos bonitos do que as
pessoas, trocando facilmente o afeto por coisas. Assim, não questionavam, por exemplo,
na Alemanha nazista, que as pessoas fossem conduzidas em comboio para Auschwitz,
desde que a malha ferroviária fosse moderna e funcional.
O fascismo, portanto, não é um conceito simples, não deve ser banalizado. Ele é uma
tendência que se exprime por meio de uma política favorável à concentração do capital.
É extremamente complexo, envolve a exploração de traços de personalidade comuns a
grupos inteiros de cidadãos, é arquitetado de forma minuciosa e pragmática. O fascismo
é um movimento social e político de natureza conservadora, porém se apresenta com
uma bela capa modernizadora, que nada mais é que um invólucro recheado de mitos
irracionais. Nas palavras de Leandro Konder (1977):
O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático,
antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições
históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido
capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (…); e
pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo
dirigido, bem com a existência nele de um certo nível de fusão do capital
bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro..
Essas condições, que vêm sendo cultivadas no Brasil ao longo dessas duas primeiras
décadas do século XXI, ficaram evidentes a partir de 2013, com as grandes manifestações
75. Ver em: https://revistacult.uol.com.br/home/queermuseu-censura-avanco-conservador-democracia/
76. Note-se, por exemplo, que no dia 24 de janeiro de 2018, dia do julgamento do Presidente Lula, a Bolsa de Valores registrou um recorde
de crescimento: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/julgamento-de-lula-faz-bolsa-disparar-e-dolar-cair
157
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
populares daquele ano, conhecidas como Jornadas de Junho77. A situação se agravou a
partir do golpe parlamentar de 2016. A atuação pouco republicana do poder judiciário, em
diversos episódios ao longo dos últimos vinte anos, é coroada com a Operação Lava Jato78
e o julgamento do Presidente Lula79, resultando em sua condenação, sem provas, em
2018. Em 1977, Konder afirmava que as condições de luta então existentes não animavam
o capital financeiro a se arriscar apoiando partidos de massas ostentando bandeiras
com a suástica. Ele argumentava que era mais fácil manipular os consumidores de CocaCola assistindo televisão em casa. Para o autor, havia, naquela ocasião, novas condutas
políticas, cuidadosamente inculcadas “sob a capa de atitudes ‘não políticas’”. Entretanto,
isto não fez com que os fascistas deixassem de existir. Ele profetizava que, embora
naquele momento tenham sido levados a ser mais prudentes e discretos, adaptando-se
pragmaticamente aos novos tempos, em épocas mais propícias voltariam à cena. Diante
do quadro que temos hoje no país, podemos dizer que esse tempo chegou.
Temos saída? Para Adorno, a solução para o problema do fascismo reside na educação.
Ele espera que “Auschwitz não se repita” (1995a) e defende que qualquer debate sobre
educação deve levar em conta esta questão. Para o filósofo alemão, os estabelecimentos
de ensino têm a obrigação de elucidar os mecanismos que levam as pessoas a cometerem
atrocidades. A educação deve ter por objetivo propiciar uma consciência geral sobre
aqueles mecanismos, desenvolvendo a sensibilidade contra a violência, visibilizando as
opressões e criticando a ideologia difundida pela indústria cultural. Para o filósofo, o
mais importante é que as pessoas sejam capazes de julgar a sociedade em que vivem, por
meio do acesso à informação crítica, capaz de analisar e avaliar o contexto em que estão
inseridas. Ele sustenta que cabe à escola fomentar a prática política que desenvolva
nos sujeitos a consciência das tantas possibilidades de liberdade que existem, uma
“pedagogia do esclarecimento” uma educação política tomada seriamente. No mesmo
sentido, o brasileiro Paulo Freire, nos anos 1970, destaca que os principais problemas
da educação não são as questões pedagógicas, mas as políticas, e alerta que o sistema
educacional pode ser fundamental para uma revolução cultural. No livro “Pedagogia do
Oprimido” (1970), ele propõe a noção de consciência crítica como conhecimento e prática
de classe.
77. Sobre as Jornadas de Junho de 2013, conferir: https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/06/protestos-completam-um-ano-e-violencia-policial-se-repete
78. Sobre a Operação Lava Jato já foram escritos inúmeros livros e artigos, tanto contra como a favor das ações judiciais. Recomendo
uma visita à página do próprio Ministério Público Federal para se conhecer os desdobramentos jurídicos do caso: http://www.mpf.mp.br/
grandes-casos/lava-jato.
79. Ação originária que tramita em segredo de justiça à qual estão apensadas todas as demais ações penais contra o ex-Presidente no caso
do “Mensalão”: Processo nº 5035204-61.2016.4.04.7000 – 13a Vara Federal da Seção Judiciária de Curitiba/PR.
Em 23 de junho de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a decisão da Segunda Turma do Tribunal que declarou a
suspeição do ex-juiz Sergio Moro na ação penal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva referente ao triplex no Guarujá (SP).
Por maioria de votos (8 a3) o colegiado entendeu que o ex-juiz Sergio Moro agiu com parcialidade na condução do processo na 13ª Vara
Federal de Curitiba (PR). C om a conclusão do julgamento, fica mantida a anulação de todas as decisões de Moro no caso do triplex, incluindo os atos praticados na fase pré-processual. Conferir o HC 193726 em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6043118
158
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
Falhamos. No Brasil, especificamente, ao longo do curto período entre a transição da
ditadura para a democracia (1979-1988) e na vivência do regime dito democrático (19882016), pontuado por governos ora neoliberais, ora populares com traços reformistas, não
seguimos o conselho de Adorno, não adotamos a praxis pedagógica proposta por Freire.
Assistimos impassíveis ao avanço repaginado do nacionalismo e dos ideais fascistas
maquiados de republicanismo. Não nos levantamos contra o reerguimento da faceta
opressora dos mesmos movimentos de direita que assombraram o século XX. Perdemos
a oportunidade de arregimentar as massas em prol do ideal comum e verdadeiramente
revolucionário de formar politicamente os cidadãos para que, por fim, todas e todos
compreendessem que o nosso ideal comum deve ser libertário, inclusivo, democrático,
comunitário. Nesse sentido, a proposta de uma democracia em outros termos se faz
urgente, uma democracia em que caibam todas, todes e todos, uma democracia feminista.
2. Contra o fascismo, reforcemos o feminismo
Para mudar o grave quadro de retrocessos em que nos encontramos, é preciso voltar
os olhos para as mulheres, e começar falando daquilo que causa a maioria dos nossos
dilemas no mundo contemporâneo: o Estado. Mas não apenas o Estado, e sim o
Estado Democrático de Direito. É importante falar da relação entre essa instituição da
modernidade com os igualmente modernos direitos humanos. E mais: numa perspectiva
feminista! Um baita desafio em tempos de pouca democracia, de violação sistemática de
direitos e, para nossa alegria!, de busca incessante por um feminismo em comum, como
proposto pela filósofa Marcia Tiburi (2018).
O feminismo é uma teoria política e, ao mesmo tempo, um movimento social em busca
de igualdade de direitos que vem transformando a sociedade de muitos países há mais
de 300 anos. Essas transformações se deram pela conquista de novos direitos, pela
construção de órgãos estatais encarregados de promover a igualdade de gênero por meio
de políticas públicas destinadas a diminuir a discriminação. Para compreendermos estes
mecanismos de silenciamento e exclusão, é preciso refletir sobre a sutil relação entre o
Direito e a Política em uma perspectiva feminista80.
159
80. Segundo BATISTA BERNER, 2019, p. 342: “O Direito e a Política
estrutura do patriarcalismo sugere uma realidade universalista,
são construídos a partir de um ponto de vista patriarcal, no qual
abstrata, onde, obviamente, a desigualdade supera a igualdade. A
os valores “masculinos” e “femininos” se naturalizaram, resultando
própria concepção de uma mulher abstrata, universal, com direitos
em uma situação na qual temos, de um lado, aqueles que são
universais, demonstra a inadequação entre a realidade e a abstração
iguais diante da lei; e, do outro lado, aqueles que são diferentes.
teórica que constroem as normas jurídicas a partir das decisões
Nesse sentido, as mulheres, historicamente, não se beneficiam dos
políticas tomadas no âmbito institucional. Axiologicamente, o
progressos alcançados por todas e todos na mesma proporção que
patriarcalismo inflige um conjunto de valores, atitudes e crenças que
os homens, recebendo um tratamento sempre pior, sendo menos
não derivam da realidade, mas que servem para que determinados
remuneradas para as mesmas tarefas, sendo sobrecarregadas de
grupos humanos se coloquem “naturalmente” acima dos outros:
todas as formas pelo sistema em que ambos, homens e mulheres,
“homens são mais fortes”, “mulheres são frágeis”... Sociologicamente,
estamos inseridos. O conceito formal de igualdade, no Direito, tem
os mecanismos utilizados pelo patriarcalismo são profundamente
duas faces muito diferentes no mundo da vida, em que impera o
arraigados no tecido social, a fim de facilitar o deslocamento
patriarcalismo. Para Patricia Hill Collins (1989), o sistema patriarcal
sistemático dos grupos excluídos da participação na cultura, na
tem raízes políticas, axiológicas e sociais. Em termos políticos, a
economia e na política, em diversos momentos históricos.”
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
Então, comecemos pela igualdade. A igualdade que nos interessa é aquela compreendida
como equivalência humana (Amélia Valcarcel, 2002). E ela é contraditória com a
desigualdade política, esta de ordem sexual, social, econômica, jurídica, cultural.
A igualdade como equivalência humana é que nos permite negociar a inclusão daquelas
que estão à margem. E isto é muito difícil quando estamos em minoria, quando estamos
sob opressão política no momento de pactuar com indivíduos, grupos ou instituições
que detêm o poder.
Os problemas de gênero estão também intrinsecamente relacionados às questões
étnicas, raciais, sexuais e de classe social na lógica do patriarcalismo capitalista, do
hetero-patriarcalismo81. Nesse sistema, o ‘fazer humano’ está vinculado com as relações
de trabalho e as relações sociais, que são geradas pela produção e negação de diferenças
existentes nas relações mercantis capitalistas.
Esta realidade afeta a todas e todos nós porque as relações de gênero, raciais, étnicas e
de classe são ao mesmo tempo consequência e ponto de partida das relações de poder.
Nos ordenamentos jurídicos contemporâneos – seja ao ser constituído, efetivado ou
litigado – a realidade se configura sempre discriminatória, colocando à parte, aberta
ou veladamente, aqueles não se encaixam nos padrões determinados pelo sistema, que
iguala ou desiguala a todas e todos conforme sua própria conveniência, isolando ou
excluindo os que não estão em conformidade com os padrões por ele determinado.
Segundo Marcela Lagarde (2003) trata-se de uma “pedagogia da identidade”, na qual é
“natural que as mulheres ocupem os lugares próprios das mulheres, os negros de negros,
os velhos de velhos...” e assim por diante, “a fim de se impor um sistema de percepção
política, axiológica e sociológica que nos leve a acreditar que cada qual deve viver em
conformidade com a ordem que lhe foi imposta” (BATISTA BERNER, 2019, p. 343).
Cabe ao Estado, braço político do Capital, ordenar e regular as relações sociais. Essa
ordenação inclui a organização do campo do trabalho, da produção capitalista, bem
como a normatização dos corpos e das identidades, envolvendo questões de gênero
e raça. A ideia de alteridade é justamente criar um esquema de inclusão/exclusão em
que a autoridade estatal exercerá seu poder (CASTRO GÓMEZ, 2005). Para alcançar este
intento, o Estado se utiliza de regras gramaticais dos idiomas, de manuais de urbanidade
e das constituições (CURIEL, 2013). Na América Latina, os colonizadores usaram a
linguagem escrita como forma de implantar seu “processo civilizatório”. Conceitos da
modernidade ocidental pouco problematizados, “igualdade” e “cidadania”, basilares no
Estado Democrático de Direito, compõem um acervo crucial no discurso hegemônico,
81. Conferir Lagarde, Marcela, “El género”, fragmento literal: ‘La perspectiva de género’, en Género y feminismo. Desarrollo humano y democracia, Ed. horas y HORAS, España, 1996, pp. 13-38.
160
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
mas não passam, nas democracias ocidentais, de privilégios culturais e políticos,
destinados aos que se encaixam no padrão desenhado pelo colonizador e contemplam,
na verdade, apenas uma pequena parcela da população. (RIVERA CUSICANQUI, 2010).
Acho que aqui já se pode vislumbrar onde entra o feminismo. A luta feminista é uma luta
política porque ser mulher é uma questão política (BATISTA BERNER, 2017). Qual seria
então, a nossa tarefa? Ela começa pela compreensão de que, se queremos mudanças,
elas devem vir por meio da descolonização das estruturas políticas e econômicas em que
estamos inseridos. E isto se dá pela reformulação das Constituições e leis que, ao longo
do tempo, vêm reproduzindo as práticas de exclusão e dominação. E essas práticas estão
em todas as esferas de nossas vidas: em nossas relações familiares, na maneira como
conduzimos nossos relacionamentos amorosos, em nosso trabalho, em nossa produção
acadêmica.
Não por acaso, as vozes feministas na política exigem o reconhecimento de direitos para
as mulheres. Esses direitos, no entanto, não se limitam ao gênero feminino, ao contrário,
interessam a toda a sociedade. As mulheres organizadas, ao participar dos debates
constitucionais, seja para o reconhecimento de direitos individuais, seja para clamar
por direitos coletivos, estão agindo legitimamente no interesse de toda a população. As
feministas não se limitam a fazer propostas sobre assuntos considerados “femininos” como, por exemplo, os direitos reprodutivos das mulheres - mas se dedicam a defender
projetos sobre temas variados como a saúde pública, segurança, funcionamento da
economia ou da educação, sistema de propriedade, direito da natureza... Isto porque
as concepções feministas sobre ética, filosofia, economia, cultura, urbanismo, direito,
medicina, etc., são resultado de um corpo próprio de ideias forjado na maneira como nos
movemos no interior das sociedades patriarcais em que vivemos.
3. Direitos das mulheres no Brasil contemporâneo: compromissos e desafios
A atuação feminina no espaço público e na política no Brasil, e na América Latina como
um todo, é muito inferior à masculina, o que tem servido para que se reproduza, também
nessa esfera, a subserviência em que a mulher vive diuturnamente no espaço privado.
Ainda assim, se fizermos um percurso histórico pelo subcontinente, podemos verificar
que os movimentos de mulheres reivindicam, em todos os momentos, direitos individuais
relativos à sua identidade de gênero e benefícios coletivos fundados em discriminações
compartilhadas, como direitos econômicos, sociais e culturais. No Brasil, o movimento
feminista teve importância crucial no processo constituinte de 1986/1988:
161
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
Os processos constituintes são o momento em que se repensa o Estado, em
que temos a oportunidade de fazer a revisão completa da ordem política, da
normatização das relações sociais. O debate constitucional, nessas ocasiões,
tem como principal característica o tensionamento das relações de poder
e a possibilidade de se repensar toda a organização coletiva da vida. Os
movimentos sociais são essenciais na América Latina para essa discussão,
pois em uma região em que grassa a exclusão e a desigualdade, a disputa
pela refundação do Estado evidentemente traz à tona os grupos de opinião
que pretendem conformar, no âmbito de suas respectivas atuações, os
conteúdos da cidadania, justiça e bem-estar social. É neste espaço de decisão
que os movimentos de mulheres podem trazer para a prática política o
conteúdo dos feminismos que os delineiam. É essencial, portanto, que nos
processos constituintes sejam sempre garantidos os processos democráticos
e participativos, em que as mulheres possam ser protagonistas como coletivo
(BATISTA BERNER, 2019, p. 345).
As mulheres organizadas têm apresentado demandas históricas nos processos
constituintes latinoamericanos e usado estratégias compartilhadas para atuar. Essas
consistem em ter como base das demandas o reconhecimento, no âmbito constitucional,
dos direitos consagrados no ordenamento internacional para a igualdade de gênero;
definir agendas comuns onde sejam contemplados os mínimos aos quais não se pode
renunciar; trabalhar na formação e difusão para o debate em todas as etapas dos
processos; selecionar e apoiar candidatas consensuais para os órgãos colegiados;
construir consensos e políticas de alianças.
Fissurar o capitalismo e o patriarcalismo é uma tarefa urgente para os movimentos de
mulheres, que precisam estar devidamente articulados, pois aos movimentos sociais
cabe a tarefa de atuar politicamente em prol da construção de novas relações de poder,
especialmente em processos constituintes.
Inserido no contexto latino-americano, o processo constituinte brasileiro fez parte
de uma longa e peculiar transição da ditadura civil-militar para a democracia. Seu
objetivo era buscar novas alternativas democráticas de organização social, o que
ocorreu, lamentavelmente, conforme as regras institucionais do regime autoritário,
estabelecendo, dessa forma, uma série de procedimentos de continuidade, de
“permanências autoritárias”. A Constituição brasileira, porém, foi fruto do dissenso e
da ação coordenada dos movimentos sociais estrategicamente atuando nas articulações
políticas durante a Constituinte. E um dos mais expressivos coletivos presentes na
162
VANESSA OLIVEIRA BATISTA BERNER
Constituinte foi o de mulheres, que viu uma oportunidade de ampliar a democracia na
nova Constituição.
Mas, ainda que tenha acolhido muitas (e relevantes) demandas, a Constituição de 1988
não avançou suficientemente nos direitos das minorias - especialmente nas questões
de gênero. Alguns temas defendidos pelas feministas, como o aborto e o trabalho das
empregadas domésticas, ficaram de fora do texto final por motivos que variavam de
questões técnicas a ausência de força política para se sustentar o debate. Apesar disso,
o Lobby do Batom garantiu a inclusão de 85% de suas propostas no texto constitucional,
ficando demonstrado o papel fundamental dos movimentos de mulheres no processo
constituinte brasileiro (SCHUMAHER, 2017).
A Constituição Brasileira de 1988, embora mais democrática e includente que suas
antecessoras e construída com a participação popular, é fruto de um regime autoritário,
sendo o “Congresso Constituinte” composto majoritariamente por uma elite dominante.
Por isto, a Bancada Feminina que atuou ao longo do processo constituinte brasileiro, não
estava totalmente afinada com a pauta do movimento feminista, posto que a maioria das
congressistas pertencia às classes sociais mais privilegiadas do país (BATISTA BERNER, 2019).
Assim, a retomada do projeto feminista só vai tomar corpo no país, efetivamente, a partir
dos anos 2000. Isto porque os anos que se seguiram à redemocratização foram capturados
por governos liberais de direita, que deixaram inativos órgãos como o Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (CNDM). Por outro lado, o movimento feminista se fortaleceu
no campo teórico exatamente no período compreendido entre os anos de 1990 e 2000,
com a introdução dos estudos de gênero nas universidades brasileiras e a ampliação do
acesso de parcela da população, historicamente excluída, ao ensino superior.
Foram também cruciais a institucionalização, no governo do Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
(SPM); a promulgação da Lei Maria da Penha, destinada a combater a violência doméstica;
e políticas públicas como o programa Bolsa Família, voltado para a transferência de
renda, que beneficiou mais de 10 milhões de famílias, sendo que a verba era repassada
prioritariamente para mulheres e mães de famílias de baixa renda. O início do século
XXI foi um período de intensa participação social, contando com o protagonismo das
mulheres. Tome-se, por exemplo, a apresentação da Plataforma Política Feminista
em 2002, que resultou na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, pautada pelo
fortalecimento da luta contra todas as formas de discriminação de gênero e raça.
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Entretanto, em 2016, a primeira presidenta mulher do país foi alvo de um processo
de impeachment sem ter cometido crime de responsabilidade, com os votos de um
Congresso majoritariamente composto por homens, brancos, proprietários e ligados a
bancadas religiosas. Ou seja, a face exposta do patriarcalismo como sistema de opressão
e subordinação das mulheres no Brasil.
Considerações Finais
Hoje, no Brasil e no mundo, estamos vivendo um perigoso momento político e nós,
mulheres, não temos nos furtado a manifestar nossa opinião. É o que as mulheres
engajadas em projetos feministas estão fazendo ao se inserir na estrutura do Estado
Democrático de Direito, aquele que nos exclui e que regula nossas relações de trabalho,
as relações do “fazer humano”.
Mas quais são as reais possibilidades à nossa disposição, como mulheres, para participar
efetivamente das decisões políticas? Um dos problemas mais graves de que padecem
as democracias contemporâneas é a representação. Sobre esta questão, Roberta Laena
(2020, pp. 105) adverte:
A representação é elemento fundante da democracia, por tornar possível
o exercício do poder soberano do povo e a concretização dos princípios
democráticos fundamentais. Pormeio da representação política, as deliberações
coletivas compõem as decisões públicas de interesse da população e do país
e cidadãs e cidadãos podem ter suas demandas atendidas; posta em prática
por pessoas eleitas pelo voto secreto e universal, a representação reflete a
soberania popular e, por isso, faz com que os partidos políticos e os processos
eleitorais possuam uma função essencial na realização da democracia.
Como mudar este quadro e evitar o ressurgimento do fascismo como projeto político? Em
primeiro lugar, precisamos de mais incentivos, como cursos de formação política para
que as mulheres tenham vida partidária. E precisamos também avaliar o funcionamento
dos partidos no país: poucos partidos, hoje, no Brasil, têm mulheres presidentes ou
que chefiem diretórios. E embora o país tenha registrado crescimento de participação
de mulheres na política, menos de 10% de nós ocupamos hoje assentos nos poderes
Legislativo e Executivo. Esta questão é cultural e tem um nome: machismo. Portanto,
precisamos, cada vez mais, debater, nos informar, a fim de nos inserirmos de forma
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realmente efetiva na política, até porque nada justifica a sub-representação, já que hoje,
no Brasil, somos 45% do total de chefes de família82.
Para mudar o país, precisamos mudar a estrutura do sistema político, precisamos
fomentar o surgimento de novas lideranças femininas (e feministas!). Precisamos do
olhar da mulher para as questões sociais, pois ele é diferente do masculino, em virtude
de nossa experiência na lida com os problemas diários. Isto porque a mulher trabalha,
geralmente, em tripla jornada, como mãe, como dona de casa e como parte do sistema
produtivo capitalista. Precisamos, então, investir nas possibilidades de participação
política para efetivarmos nossos direitos, seja por meio de alternativas como as polêmicas
cotas na política83, seja pelo reconhecimento das lideranças femininas. E esta tarefa é
muito difícil numa sociedade que nos ensina que “igualdade” consiste em uma mulher
ser igual a um homem, já que homens e mulheres partilharmos, de fato, espaços comuns,
como as ruas, os transportes públicos, as universidades, as igrejas, as salas de aula…
Este “véu da igualdade” (LAGARDE, 2003) nos impede de ver além de nossas presenças e
perceber que a desigualdade de gênero prevalece entre os supostamente iguais.
O pior é que essa presumida “consciência de igualdade” provoca algumas distorções
nas relações entre nós, mulheres. Não raro, mulheres que vivem nas cidades se veem
superiores às mulheres do campo; as acadêmicas, acima das não letradas; as dos países
ricos, melhores que as indígenas do sul… Essa superioridade hierárquica é a prova
de que a “igualdade” que nos ensinam não nos serve. A igualdade que nos interessa
é aquela defendida por VALCÁRCEL (2002), a equivalência humana, como já colocado
anteriormente. Portanto, construir a cidadania das mulheres requer muita criatividade,
pois os homens ainda detêm o monopólio político. A política é patriarcal. Para que se
desmantele de forma eficiente a opressão, temos que lutar por uma paridade que seja
uma prática contínua, formando gerações seguidas de mulheres políticas. E não temos
ainda esta representação simbólica universal que propicie a ininterrupta participação
de mulheres.
Em pleno século XXI, ainda enfrentamos “tetos de vidro e chão escorregadio” quando
se trata de política (Lagarde, 2003): não temos tradição nem memória de gênero, somos
minoria em termos de representação e, pior não se aceita que nos representemos a
nós mesmas, que coloquemos na mesa nossas necessidades, interesses, olhares próprios
sobre a vida, a sociedade, o Estado. Homens brancos, proprietários, heterossexuais,
resolvem sobre nossos corpos, sobre nossa saúde, sobre nossa sexualidade, sobre nossas
possibilidades de viver. Somos tratadas como “seres-para-os-outros”, nos dizeres de
Franca Basaglia. Nosso papel é fissurar este patriarcalismo.
82. Notícia de 16/02/2020: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/02/16/internas_economia,1122167/quase-metade-dos-lares-brasileiros-sao-sustentados-por-mulheres.shtml
83. Sobre as cotas de gênero nas eleições proporcionais, conferir LAENA (2020), pp. 132-159.
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Nosso maior investimento deve ser nas alianças de gênero, a fim de melhorar nossas
existências/resistências como mulheres, a fim de melhorar a vida em nossas comunidades
e no mundo. Trata-se de uma proposta política de enfrentamento ao problema de não
sermos reconhecidas, representadas entre nós mesmas. Em lugar de inimizade de
gênero, temos que apostar em nossa coalisão política. Para isto, nossa ética tem que ser
a da igualdade como princípio reinante entre todas nós. Temos que renunciar, então, ao
nosso “direito patriarcal” de oprimir outras mulheres, e impedir que outras mulheres
nos oprimam. Não se trata de uma ideologia, mas de uma prática, de um modo de vida,
de uma nova maneira de conviver entre nós, de uma outra perspectiva relacional.
Esta é também uma proposta estética, pois implica em uma maneira diversa de nos
comportarmos, de nos tratarmos, de nos falarmos. Nossa linguagem deve valorizar
e respeitar a dignidade que queremos para todas, independente de nossa profissão,
posição social, raça ou ocupação. Um compromisso que devemos firmar conosco mesmas
e com o mundo, a fim de alcançar nosso próprio desenvolvimento e bem-estar. Quanto
mais mulheres incluirmos em nosso acesso ao conhecimento, quanto mais mulheres
apoiarmos, mais chances teremos.
A verdadeira riqueza consiste no fazer humano (Herrera Flores, 2005b). É nossa tarefa
criar utopias, mas também, além de mostrar ao mundo o que queremos, precisamos
ganhar territórios para uma nova cultura democrática de gênero. A proposta é promover
uma mudança ético-política baseada em nossas alianças. E isto começa por não
desacreditarmos as outras mulheres, por não sermos misóginas umas contra as outras,
por darmos crédito à capacidade criativa de todas à nossa volta, por convertermos tudo
isto em capital político, publicizando o reconhecimento que devotamos aos feitos e
conquistas das outras mulheres.
Nossa luta está, sobretudo, nos pequenos detalhes. Temos que enfrentar nossa raiva
e transformá-la em autoestima de gênero, temos que cessar as agressões contra
outras mulheres, temos que eliminar a exploração e o abuso de umas contra as outras,
renunciando ao trabalho invisível de outras mulheres e de nós mesmas. Sendo solidárias,
reconhecemos a autoridade das outras mulheres. E não podemos cair na armadilha de
confundirmos autoridade com autoritarismo. Todas nós temos autoridade para criar
alternativas, necessitamos investir nelas, pois este é um dos nossos recursos políticos
mais importantes. Quando temos esse reconhecimento mútuo, aprendemos umas com
as outras e ampliamos o orgulho por nosso gênero, por sermos mulheres.
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Saibamos, portanto, reagir à altura diante do cenário tenebroso que se configura para
entrever, como um esperançoso Carlos Drummond de Andrade em 1940, a luz radiante
da alvorada em um futuro que se aproxima:
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora84.
84. A noite dissolve os homens. Sentimento do Mundo. São Paulo, 2012, pp. 39-40.
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